Ed.130 Abr-Mai 2014 - Revista Principios

Transcrição

Ed.130 Abr-Mai 2014 - Revista Principios
1
130/2014
2
Editorial
Tantas vezes
bloqueada, a Reforma
Urbana emerge como inadiável
E
ntre os anos 1950 e 1970, quase 40 milhões de
brasileiros marcharam da zona rural para as
cidades. Desprovidos de tudo, migraram buscando trabalho e uma vida melhor. E esta “diáspora”
prosseguiu. Pelos dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,4% dos 190
milhões de brasileiros vivem nas cidades. Em 1940, a
população urbana era apenas de 31%.
Essa vertiginosa e acelerada urbanização se deu
sob a mesma lógica da grande expansão capitalista ocorrida no país: grande crescimento econômico,
volumosa produção de riqueza e, simultaneamente, gigantesca concentração de renda e exclusão da
imensa maioria do povo dos benefícios do crescimento econômico. As cidades brasileiras de hoje,
sobretudo as metrópoles, são um produto e um retrato desta lógica.
No espaço geográfico no qual se expandiram as
cidades, cada metro quadrado adquiriu, conforme a
localização, o valor do ouro. Assim, poderosos grupos capitalistas e sua teia de agentes nas diferentes
esferas do Estado mercantilizaram, privatizaram o
espaço urbano e concentraram, nas regiões de moradia, lazer e trabalho dos ricos e muito ricos, os investimentos públicos para assegurar-lhes bem-estar
e qualidade de vida. Enquanto isto, para os trabalhadores, para os pobres, foi destinada outra “cidade”,
ou melhor, uma “não-cidade”, sem saneamento,
sem espaços de lazer, sem infraestrutura adequada,
sem segurança, sem transporte coletivo que atendesse à demanda com o mínimo de qualidade.
Décadas se passaram desde o início daquela
grande corrida para as cidades. Hoje, os números
escancaram e o grito das ruas denuncia: está instaurada no país uma grave crise urbana. As cidades que
antes significavam perspectiva de uma vida melhor
estão prisioneiras de graves problemas, como o estrangulamento da mobilidade urbana, violência com
estatísticas de guerra civil, a degradação do meio
ambiente, falta de moradia para o povo. O entretenimento, a cultura, o esporte ainda são privilégio de
poucos. Na cidade de São Paulo, um em cada cinco
habitantes vive em favelas – fenômeno comum a ou-
tras metrópoles com suas imensas periferias pauperizadas.
Do sonho de um paraíso, as cidades se transformaram numa espécie de purgatório. Mesmo as elites, com suas áreas “nobres”, tiveram a qualidade
de vida afetada seja pela violência, seja pelo trânsito
caótico.
A situação só não é pior porque, desde os anos
1960, travou-se uma luta liderada por entidades populares e lideranças progressistas por uma Reforma
Urbana que humanizasse as cidades e rompesse com
essa lógica que, na prática, nega à maioria do povo o direito às cidades. De lá para cá essa jornada,
mesmo com oscilações, obteve vitórias significativas
que resultaram no capítulo temático sobre a questão
urbana na Constituição de 1988 – êxito que abriu
portas para a aprovação, em 2001, do avançado Estatuto da Cidade. Contudo, o conservadorismo freou a
aplicação desse Estatuto e bloqueou a realização das
reformas necessárias.
Nos últimos 11 anos, os dois governos do presidente Lula e o governo da presidenta Dilma Rousseff
aprovaram importantes dispositivos legais e conceberam audaciosos programas para dar respostas
à pauta da crise urbana. Entre as realizações deste
período, destacam-se a criação do Ministério das Cidades, a realização de conferências nacionais sobre o
tema, o PAC da Mobilidade Urbana, o Programa Minha Casa Minha Vida – atualmente, já na segunda
etapa, que prevê a construção, até o final deste ano,
de 2, 7 milhões de moradias, e, para o próximo quadriênio, se estipula como meta a edificação de outras
3 milhões de unidades.
Como desafio para o próximo período, destaca-se a necessidade de acelerar a instituição do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU)
como instrumento indispensável para conjugar as
ações das três esferas de governo para que a Reforma
Urbana, questão de dimensão nacional tantas vezes
postergada, seja finalmente realizada.
Adalberto Monteiro
Editor
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12
Capa
Possibilidades para a construção
da Reforma Urbana brasileira
Rosana Helena Miranda...................................
4
7º Fórum Urbano Mundial em Medellín
Inácio Arruda: Aprendendo com a
experiência colombiana
Da redação.....................................................
12
26
Reforma Urbana,
questão essencialmente política
Luciano Siqueira...........................................
20
Prioridade para os interesses
coletivos nas cidades
Bartiria Lima da Costa.................................
26
30
Quando a única possibilidade
é ser coletivo
Jilmar Tatto....................................................
30
Entrevista com Ignacio Cano
“A crise das UPPs é parte de
uma crise mais ampla”
Da redação..................................................
33
41
Cidades incompletas
Ana Paula Bueno...........................................
Economia
51
Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo
“Concepções que levaram o país à
crise predominam porque
se originam naqueles que
têm o poder real”
Adalberto Monteiro, Osvaldo Bertolino
e A. Sérgio Barroso.......................................
45
A busca por uma nova governança
econômica global pós-crise
financeira e o papel do FMI
Marcelo Pereira Fernandes..........................
51
2
Sumário
Brasil
Atos de 50 anos do golpe
clamam por justiça
Cezar Xavier...................................................
58
58
Entrevista com Thiago de Mello
Um canto que enaltece a luta por
um Brasil humano e solidário
Da redação ....................................................
63
Neoliberalismo e pós-neoliberalismo
no Brasil
Emir Sader.................................................
72
Internacional
63
As razões e as consequências
do golpe de Estado na Ucrânia
Ricardo Alemão Abreu................................
78
40 ANOS DA REVOLUÇÃO DE ABRIL
“Quando o povo acorda é
sempre cedo”
82
Pronunciamento de Jerónimo de Sousa........
Cultura
86
O resgate dos valores humanos
Mazé Leite ...................................................
Entrevista com Sérgio Ricardo
“Em 1967, a ditadura já estava de vento
em popa, com uma aresta a aparar:
a cultura que não se calava”
Augusto Buonicore......................................
91
78
Resenhas
A Idade Média e o dinheiro
Le Goff, história e teoria
A. Sérgio Barroso........................................
98
Livros
Rebeliões da Senzala
“O protesto negro que
ainda está atual”
Kabengele Munanga...................................
99
91
3
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Possibilidades para a construção
da Reforma Urbana brasileira
Rosana Helena Miranda*
É necessário avançar na Reforma
Urbana brasileira em cada
perfil de cidade. Essa ideia talvez
se baseie em particularidades
de cada contexto produzindo
diretrizes diferentes. Talvez
ainda tenhamos que enfrentar
o debate da propriedade privada
do solo urbano de maneira mais
contundente, com um novo papel
do Estado no controle do solo
urbano
O
A organização territorial urbana no Brasil
s dados recentes do último censo de
2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que
o Brasil possui hoje 190.755.799 habitantes, com uma taxa de crescimento anual de 1,17% na última década.
Esse indicador indica que o processo
de urbanização do país está se consolidando. Isso abre uma perspectiva de
planejamento das questões do território no sentido
de formular e viabilizar políticas públicas de longo
prazo, tendo em vista que já não teremos maiores
fluxos migratórios.
A Tabela 3 compara as taxas de crescimento da
população no Brasil e em São Paulo. Em três momentos diferentes. Mostra que gradualmente a população urbana se estabiliza apesar da magnitude
dos problemas encontrados nestas regiões, os quais
estão mais relacionados à concentração de renda do
que ao crescimento da população.
Tabela 3
TAXAS ANUAIS DE CRESCIMENTO
POPULACIONAL
Brasil, Estado de São Paulo, Região
Metropolitana e Município de São Paulo –
1980-1991, 1991-2000 e 2000-2009
REGIÕES
1980-1991
1991-2000
2000/2009
Brasil
1.93
1.63
1.34
Estado de São
Paulo
2.13
1.78
1.31
Região
Metropolitana de
São Paulo
1.88
1.64
1.21
Município de São
Paulo
1.16
0.88
0.59
Fonte: IBGE. Censos Demográficos, Contagem da População 2007 e Projeções de 2007 a 2010 e
2008 a 2010 – Fundação SEADE. Elaboração: Secretaria Municipal de Desenvolvimento urbano/
SMDU – Departamento de Estatística e Produção da Informação – DIPRO.
4
Capa
Quinze municípios brasileiros já atingiram mais de um milhão de habitantes
A Tabela 4 abaixo mostra uma tendência à estabilização no crescimento da população brasileira que
pode ser explicado por vários fatores. No ano 2010,
somente a região Norte ainda apresenta índice maior
que a média nacional.
Tabela 4
TAXA MÉDIA GEOMÉTRICA DE
CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO
GRANDES REGIÕES
Região
1950
1960
1970
1980
1991
2000
2010
(1)
Norte
2,29
3,34
3,47
3,7
3,85
2,86
2,09
Nordeste
2,27
2,08
2,4
2,16
1,83
1,31
1,07
Sul
3,25
4,07
3,45
2,48
1,38
1,43
0,87
Sudeste
2,14
3,06
2,67
2
1,77
1,62
1,05
Centro
Oeste
3,41
5,36
5,6
4,05
3,01
2,39
1,9
Fonte: IBGE, Censo demográfico 1950/2010. Até 1991 na tabela extraída de: Estatísticas do
Século XX, Rio de Janeiro, IBGE, 2007, no Anuário Estatístico do Brasil 1979. Rio de Janeiro:
IBGE, vol. 42, 1981.
Provavelmente o fator mais importante que reforça esta tendência é a entrada da mulher de maneira significativa no mercado de trabalho, o que de
alguma maneira começa a limitar o número de filhos
e com isso uma redução de natalidade principalmente nas grandes cidades.
A população urbana no Brasil atingiu 143.792.645
habitantes, o que representa uma taxa de 84,4% da
população total, sendo que o número de municípios
criados, praticamente dobrou desde a década de
1960. Em 1960 eram 2766 contra 5565 municípios
em 2010.
Segundo o IBGE ainda, quinze municípios brasileiros atingiram mais de um milhão de habitantes,
que incluem 13 capitais de estados e o Distrito Federal, as quais somam 23,83% da população do país.
Os estados que possuem a maior população urbana são: São Paulo com 39.585.251 habitantes,
Minas Gerais com 16.715.212, Rio de Janeiro com
15.464.239, Bahia com 10.102.476 e Rio Grande do
Sul com 9.100.291.
No entanto, apenas 608 municípios possuem
mais de 50 mil habitantes, isto é, a grande maioria
em número de 4957 são municípios pequenos em
termos populacionais que representam 89% dos municípios brasileiros.
O estado de São Paulo abriga a maior metrópole
da América Latina e algumas das mais importantes
aglomerações urbanas, não só pelas suas escalas,
mas, pelo que elas produzem de tecnologia e de sofisticação do mundo da ciência, cultura e economia.
Durante todo o século XX, período de formação
das maiores metrópoles mundiais, um debate constante no universo dos técnicos de planejamento das
cidades e dos gestores públicos colocou a questão sobre se é possível trazer para cidades como São Paulo
e outras metrópoles brasileiras, um patamar de qualidade de vida civilizado como nos países desenvolvidos?
Discute-se ainda hoje sobre a necessidade de
que o espaço público seja respeitado por todos, cuidado pelo poder público como bem coletivo maior
da sociedade. Isto remete à reflexão ao problema da
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problema menor, bem como o acesso à água e ao
escala das cidades. O tamanho das cidades constimeio ambiente.
tui-se como entrave ou como elemento facilitador
Todas estas questões precisam ser examinadas à
da realização das ações de desenvolvimento para
luz de uma avaliação das conquistas do Estatuto da
o conjunto da sociedade e principalmente para as
Cidade em seus dez anos de existência completados
classes sociais que vivem nas periferias urbanas deem 2011.
sestruturadas?
No caso brasileiro, a rede de cidades se organizou
No século XXI este debate perdura. Particulara partir da costa brasileira de onde vieram os conmente no Brasil, neste momento em que se retoma
quistadores de nossa terra. Até hoje, a maior parte
o rumo de investimentos e financiamentos públicos
das cidades metropolitanas está no litoral ou num
para as atividades essencialmente de caráter urbano
raio médio de 500 quilômetros da costa, como é posde construção habitacional, equipamentos públicos
sível observar nos mapas do IBGE.
e de infraestrutura, a reflexão deve se aprofundar.
O início do processo de colonização teve como
No entanto, é preciso cautela, pois a visão que
objetivo a posse da terra e uma economia essencialtem prevalecido nas intervenções ou obras públicas
mente extrativista com orientação expressa para que
ou privadas é a visão econômica de geração de emos colonos não se afastassem da costa para ocupar o
prego e renda.
interior do território.
As atividades ligadas principalmente à construRazões objetivas de sobrevivência e a necessidade
ção de infraestrutura, sem dúvida, se caracterizam
de tomar posse efetiva do território, apesar da viocomo atividade intensa e motor do desenvolvimenlência contra os povos indígenas,
to, mas o espaço urbano é finito
os quais ocupavam o Brasil antes
e exige planejamento.
chegada dos portugueses, fizeA política de organização do
O problema energético da
ram com que os colonos bandeiterritório deve ter uma abranrantes se embrenhassem por este
gência estratégica entre a cidade abastecimento
país à procura de ouro e posteriorde e a produção agrícola, e a fidas cidades e de sua
mente de diamante, encontrado
nitude do espaço e dos recursos
nas minas gerais e dessa forma
do meio ambiente.
economia não é um
foram responsáveis pela interioExistem aspectos culturais,
problema menor, bem
rização da ocupação do país além
históricos, ambientais e sociais
da costa.
que merecem ser tratados a parcomo o acesso à água
Esse processo não foi pacífico.
tir de uma visão integrada das
e ao meio ambiente
Gerou diversas lutas pelo territóações de intervenção pública e
rio que fixou populações e expulou privadas no espaço urbano.
sou outras e assim se formou a
As especificidades de cada
nossa rede de cidades com suas funções específicas
lugar na cidade, e de cada cidade em si e de seu papara atender às ordens da coroa portuguesa.
pel no contexto regional ao qual ela pertence, são a
A rede de cidades que formam o conjunto dos
primeira leitura e diagnóstico a ser feito para a elaestados brasileiros onde se encontram as maioboração de políticas públicas para as áreas urbanas.
res densidades populacionais no território reflete a
É necessário avançar na Reforma Urbana brasiimportância dos fluxos migratórios em função das
leira em cada perfil de cidade. Essa ideia talvez se
buscas pelas riquezas minerais em Minas Gerais no
baseie em particularidades de cada contexto produséculo XVIII, fato este que se reflete ainda hoje na
zindo diretrizes diferentes. Talvez na cidade de São
economia acumulada nesta região. Esse padrão de
Paulo, a Reforma Urbana seja equipar a periferia, reourbanização reforçou a concentração da riqueza na
cupar o centro e resgatar a cultura e a história dos bairros
região Sul-Sudeste e consequentemente a maior inoperários do centro ao longo da antiga ferrovia que ligava
fraestrutura instalada.
Santos a Jundiaí, assim como também recuperar seus rios e
Em 1808 com a vinda da família real algumas
democratizar a cidade através da expansão da rede de transmedidas foram tomadas em relação ao controle da
porte público ligando todas as regiões.
terra urbana e a partir daí se tem notícia das priTalvez ainda tenhamos que enfrentar o debate da
meiras cobranças de imposto territorial de que se
propriedade privada do solo urbano de maneira mais
têm registro, conhecidas como “Décima”. Há que se
contundente, com um novo papel do Estado no controle
destacar o papel da igreja na distribuição da propriedo solo urbano.
dade urbana nas cidades brasileiras sendo que inúNos dias atuais, o problema energético de abasmeros núcleos foram formados por colégios jesuítas
tecimento das cidades e de sua economia não é um
6
Capa
ou pelos aldeamentos para domínio das populações indígenas.
Em 1850, com a criação da “lei de terras”,
se consolida a existência da propriedade privada no Brasil e a ordenação das cidades passa a se submeter a este novo estatuto jurídico
para a ordenação do território.
O fim da Escravidão, o processo de industrialização no Brasil no final do século XIX e
depois no século XX trarão um contingente
grande de trabalhadores imigrantes e trabalhadores do campo que darão uma nova
forma aos núcleos urbanos que ganhará contornos com extensos limites na fase de transformação das metrópoles para o novo perfil
de predomínio dos serviços, fruto do avanço do capital financeiro e tecnológico sobre
a atividade produtiva industrial que marcou
a segunda metade do século XX e início do
século XXI.
Desocupações, como a do terreno da antiga Telerj, no Rio de Janeiro,
continuam sendo feitas de forma violenta, sem respeitar direitos básicos
Propriedade privada urbana no Brasil
com vistas a um Programa Socialista –
o Estatuto da Cidade
No Brasil, a propriedade urbana e a rural também, desde a Lei da Terra de 1850, não podem ser
objeto de intervenção estatal a não ser pelo mecanismo da desapropriação compulsória para finalidades
específicas como a declaração de utilidade pública,
para a construção de equipamentos ou obras públicas e o decreto de interesse social que visa a prover
de habitação de interesse social famílias de menor
renda e que não possuam ainda unidade habitacional própria.
Assim, o acesso à terra é um processo bastante
moroso pois depende de ação judicial cujo tempo de
solução é imponderável – o que inúmeras vezes inviabiliza ações e obras públicas, ou de produção de
habitação de interesse social devido ao rito jurídico,
que permite um longo percurso até a concretização
da decisão de escolha de um local adequado para a
melhoria das condições urbanas ou para a concretização de obras de infraestrutura, tais como metrô,
ou obras aeroportuárias.
As obras para grandes eventos, como as Conferências Internacionais da ONU, Copa do Mundo em
2014 ou Olimpíadas de 2016 atuais, que estão movimentando a economia do país, dependem desses
ritos jurídicos para sua concretização.
O Estatuto da Cidade aprovado em 2001, depois
de passados quase 50 anos desde que o primeiro projeto de lei foi enviado ao Congresso Nacional para
regulamentar a organização espacial das cidades
em 1963, regulamentou finalmente o artigo 182 da
Constituição de 1988 e aprovou uma série de instrumentos de regulação do uso da terra que não estivesse cumprindo sua função social conforme estabelece
a Constituição Federal.
Talvez o principal desses instrumentos tenha sido
o reconhecimento da cidade informal, das favelas,
das ocupações e dos cortiços que não constavam anteriormente das estatísticas oficiais e não recebiam
recursos ou financiamentos públicos para solução de
seus problemas de urbanização, regularização e provimento de infraestrutura.
Outro aspecto importante inserido no Estatuto
da Cidade é a questão democrática, é a garantia de
preservar os direitos humanos na relocação de populações de assentamentos precários ou por motivo de
realização de outras obras e a participação nos processos de reurbanização e regularização fundiária.
No entanto, ainda hoje no Brasil este direito não
está sendo respeitado, inúmeros são os casos recentes de violência em desocupação de terras. Mas,
apesar dos direitos conquistados pelo Estatuto da Cidade, há muito que se avançar na cidade agora considerada formal. As condições concretas de precariedade do território no caso das favelas demonstram
que apesar do crescimento econômico, do emprego
e do crédito, a vida nessas comunidades não mudou
substancialmente.
As famílias ainda vivem em condições muito precárias, não há rede de esgoto e tratamento das águas,
as calçadas são estreitas, não há iluminação pública
e a violência urbana está longe de ser eliminada.
A Reforma Urbana está diretamente vinculada à
mudança da situação de concentração da renda no
país, que se constitui num grande entrave para o desenvolvimento.
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É necessário superar aspectos jurídicos das competências sobre as questões de infraestrutura. Em
São Paulo, por exemplo, a gestão da drenagem urbana é do município, mas, a gestão do saneamento
básico é competência do governo do estado, portanto
obras que poderiam complementar umas às outras
ficam inviabilizadas por razão de competências administrativas e prioridades divergentes.
Este caso demonstra que a integração na ação
pública é fundamental para a solução dos problemas
de infraestrutura e de organização do território.
Este é um aspecto da mais alta importância no
sentido de integrar as ações dos poderes públicos das
diferentes esferas de governo e entre as instâncias
inseridas no mesmo nível de governo, é uma necessidade que a realidade impõe para racionalizar todos os tipos de recursos envolvidos e para coordenar
obras e ações incidentes sobre o mesmo território.
Isto significa reorganizar o desenho institucional
do Estado no que diz respeito às questões do território com o objetivo de centralizar e racionalizar os
investimentos, bem como descentralizar e democratizar a prestação de serviços sociais nas cidades.
A questão da propriedade do solo urbano poderá
assumir um enfoque diferente a partir da realidade
urbana e suas necessidades.
Será necessário devolver à terra o seu status de meio
de uso para viabilizar uma condição de vida digna aos
habitantes das cidades. A função social da propriedade
deve preponderar sobre os interesses econômicos privados.
Em determinadas circunstâncias, em áreas estratégicas para o desenvolvimento de infraestrutura e provimento de habitação de interesse social, a
Reforma Urbana incluirá perímetros de estatização do solo
e requisição de caráter público para promoção da vida nas
grandes metrópoles, respaldada por amplos interesses
sociais e por decisões democráticas de uma nova
reordenação das instâncias de participação e gestão
do território.
Assim, numa abordagem inicial consideramos
que a Reforma Urbana no Brasil deve considerar no
mínimo quatro grandes premissas quanto às cidades
brasileiras e a gestão dos problemas urbanos:
1. Em regiões diferentes com realidades diferentes o enfrentamento dos problemas deve se dar de forma diferente.
2. Reordenar as ações do território urbano segundo a
identificação de tipologias das cidades brasileiras segundo o
contexto de inserção e segundo o porte do município, (regiões
metropolitanas, pequenos municípios, Região Amazônica,
cidades litorâneas, cidades-polo regionais etc.).
3. Eleger os temas de caráter estratégicos de acordo com
cada perfil urbano.
4. Construir uma visão estratégica para a ordenação do
território nacional buscando caminhos e potenciais para o
8
desenvolvimento econômico e reestruturando o papel das
cidades e das intervenções de infraestrutura de caráter inter-regional como alavanca para este desenvolvimento.
5. A propriedade urbana deve cumprir sua função social
de maneira qualificada por seu uso residencial, de atividade
econômica geradora de empregos em números significativos
e proteção ao patrimônio histórico, paisagístico e ambiental.
A prática da especulação com a propriedade urbana deverá ser combatida com os instrumentos do
Estatuto da Cidade e com o controle de preços para a
venda de imóveis com financiamentos públicos. Ou
seja, a propriedade imobiliária deve se submeter ao
interesse das políticas públicas.
Assim, a Reforma Urbana no Brasil não pode seguir um caminho único. No entanto, alguns princípios gerais devem ser considerados como pilar desse
grande leque de ações que formam o enfrentamento
daquilo que chamamos de questão urbana.
Por exemplo, o princípio geral de garantir o acesso às condições dignas de moradia e acesso ao que de
melhor as cidades oferecem aos seus cidadãos, bem
como a defesa do patrimônio ambiental e cultural
devem ser uma diretriz geral para o país.
No entanto, as realidades diferentes entre os
municípios, as aglomerações urbanas e as regiões
metropolitanas colocam desafios de perfil, escala e
características diversas.
As Regiões Metropolitanas x
pequenas cidades – escalas diferentes
e problemas de gestão
As Regiões Metropolitanas que concentram grande parcela da população brasileira são diferentes entre si, não só pela sua posição geográfica, mas por
suas características e potencial econômicos peculiares. Salvador não é igual a São Paulo, nem a Florianópolis, apesar de pertencerem a regiões metropolitanas importantes nos estados em que se localizam.
Além disso, há o aspecto interno de cada unidade da federação que apresenta redes de cidades com
funções e participação na vida econômica e política
do país com inserção no contexto regional e/ou nacional específico. Por isso, é necessário examinar as
razões que geram os fluxos entre as cidades e quais
os fatores de atração ou potencial que geram interesse para os cidadãos, comerciantes, técnicos, viajantes, empresários, estudantes etc.
As Tabelas 5 e 5a anexas mostram as principais regiões brasileiras e os principais municípios e Regiões
Metropolitanas e sua participação no PIB do país.
As Regiões Metropolitanas de São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Florianópolis con-
Capa
Urbanização da Favela
do Jardim São Francisco,
São Paulo/SP
centram 44,59% do PIB nacional, sendo que apenas
oito delas ficam com mais de 1% do PIB individualmente. O estado de São Paulo detém 33,47% do total
do PIB nacional e a cidade de São Paulo 9,55%.
José Eli da Veiga em seu livro Cidades Imaginárias
(2003) destaca outro aspecto importante da realidade urbana brasileira: o fato de inúmeros municípios
brasileiros possuírem sua vocação econômica agrícola e com vasta zona rural e com o mesmo papel político de um município predominantemente urbano,
onde com certeza a população é maior e assim exerce
maior importância política no contexto regional.
São Paulo com 11.253.503 habitantes e a cidade do Rio de Janeiro com 6.320.446 habitantes são
as maiores cidades brasileiras e juntas representam
12,18% da população.
O conjunto das capitais brasileiras representa
23,83% da população com 45.466.045 habitantes,
sendo que 13 delas possuem mais de 1 (um) milhão
de habitantes, incluindo a população rural.
No outro extremo, temos 4516 cidades com menos de 20.000 habitantes na área urbana, que representam 81,05% dos municípios brasileiros, de um
total de 5564 cidades, com 28.484.363 habitantes e
19,86% da população.
Com o
reconhecimento da
cidade informal,
favelas, ocupações
e cortiços passaram
a receber recursos
públicos para
regularização e
infraestrutura
Essa distribuição levanta algumas questões do
ponto de vista da
gestão
urbana.
Será que é possível a municipalização de serviços
e de infraestrutura em cidades tão
diminutas?
Observando a distribuição da população regionalmente verificamos, segundo dados do IBGE, que
o estado de Santa Catarina é o que apresenta a existência de vários aglomerados urbanos de grande importância econômica. A hipótese aqui apresentada é
de que regiões com melhor distribuição da população refletem uma melhor distribuição de renda e de
desenvolvimento econômico, o que talvez possa ser
verificado em Santa Catarina.
Os estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo
também apresentam uma distribuição nesse rumo
também de maior equalização da riqueza entre as
regiões, mas não necessariamente entre a população
que vive nessas cidades.
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As Regiões Metropolitanas, por outro lado, também atraíram população ao longo dos anos, em função da economia, mas cada uma delas exerce um
papel diferente em termos regionais e no plano nacional.
Em termos futuros por que não visualizar certa
especialização do papel que cada região poderá cumprir
no plano nacional? Obviamente com uma redistribuição de investimentos como já vem ocorrendo nos
últimos anos nas regiões mais pobres do país.
Por exemplo, será que Recife não seria o ponto
de partida de uma das rotas internacionais de aviões
para a Europa e América do Norte? As empresas aéreas europeias fazem escalas obrigatórias em voos
internacionais em cidades de interesse nacional como Paris, Roma, Zurique ou Frankfurt, apesar da integração continental da moeda.
Ainda quanto à especialização regional, as áreas
com grandes reservas ambientais cuja influência ultrapassa o interesse de uma única sede municipal
merecem um estudo acurado pelo papel estratégico
que representam na questão ambiental.
Também as cidades litorâneas apresentam uma
nova variável de desenvolvimento com a descoberta
das jazidas do pré-sal e seu potencial turístico, vêm
assistindo um boom imobiliário sem o devido planejamento estratégico para seu crescimento. Portanto,
o planejamento territorial regional e municipal é urgente como instrumento de desenvolvimento.
Rosana Helena Miranda é arquiteta e urbanista,
professora doutora da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP. http://rosanamirandaarquiteta.
blogspot.com.br/
Disparidade social: Paraisópolis e condomínio
Paço​dos Reis, São Paulo/SP
10
Tabela 5
PRODUTO INTERNO BRUTO * – ESCALA
DECRESCENTE DE PARTICIPAÇÃO VARIÁVEL
= PRODUTO INTERNO BRUTO A PREÇOS
CORRENTES (MIL REAIS) ANO = 2009
Brasil, Grande Região, Unidade
da Federação,
Mesorregião Geográfica e
Município
BRASIL
Sudeste
São Paulo
Metropolitana de São Paulo – SP
Sul
Nordeste
São Paulo – SP, cidade
Rio de Janeiro
Centro-Oeste
Minas Gerais
Metropolitana do Rio de Janeiro
– RJ
Rio Grande do Su
Paraná
Rio de Janeiro – RJ, cidade
Norte
Bahia
Distrito Federal
Distrito Federal – DF, cidade
Brasília – DF
Santa Catarina
Metropolitana de Belo Horizonte
– MG
Metropolitana de Porto Alegre – RS
Campinas – SP, cidade
Metropolitana de Curitiba – PR
Goiás
Pernambuco
Metropolitana de Salvador – BA
Macro Metropolitana Paulista – SP
Espírito Santo
Ceará
Pará
Mato Grosso
Vale do Paraíba Paulista – SP
Metropolitana de Recife – PE
Amazonas
Central Espírito-santense – ES
Ribeirão Preto – SP, cidade
Centro Amazonense – AM
Curitiba – PR - cidade
Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba
– MG
Centro Goiano – GO
Belo Horizonte – MG, cidade
Metropolitana de Fortaleza – CE
Manaus – AM, cidade
Maranhão
Porto Alegre – RS, cidade
Mato Grosso do Sul
Vale do Itajaí – SC
Noroeste Rio-grandense – RS
Sul/Sudoeste de Minas – MG
Salvador – BA, cidade
Guarulhos – SP, cidade
PIB
Participação
no PIB
Nacional
(%)
3.239.404.053
1.792.049.385
1.084.353.490
651.167.336
535.662.084
437.719.730
389.317.167
353.878.136
310.764.898
287.054.748
100
55,32
33,47
20,10
16,54
13,51
12,02
10,92
9,59
8,86
266.275.422
8,22
215.863.879
189.991.949
175.739.349
163.207.956
137.074.671
131.487.268
131.487.268
131.487.268
129.806.256
6,66
5,87
5,42
5,04
4,23
4,05
4,05
4,05
4,00
124.138.623
3,83
106.259.848
102.451.348
87.818.517
85.615.344
78.428.308
72.108.473
68.617.934
66.763.012
65.703.761
58.401.830
57.294.192
55.594.850
51.100.344
49.614.251
48.090.901
46.199.470
46.109.298
45.762.418
3,28
3,16
2,71
2,64
2,42
2,23
2,11
2,06
2,03
1,80
1,77
1,72
1,57
1,53
1,48
1,42
1,42
1,41
45.348.556
1,40
44.776.045
44.595.205
42.097.333
40.486.107
39.854.677
37.787.913
36.368.094
35.868.683
34.395.716
33.205.305
32.824.229
32.473.827
1,38
1,37
1,30
1,25
1,23
1,17
1,12
1,09
1,06
1,02
1,01
1,00
*A preços correntes, impostos, líquidos de subsídios, sobre produtos a preços correntes
e valor adicionado bruto a preços correntes totais e por atividade econômica, e respectivas
participações. Fonte: IBGE, Censo 2010
Capa
Tabela 5a –
PRODUTO INTERNO BRUTO * – ESCALA
DECRESCENTE DE PARTICIPAÇÃO VARIÁVEL
= PRODUTO INTERNO BRUTO A PREÇOS
CORRENTES (MIL REAIS) ANO = 2009
Referências bibliográficas
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http://www.vitruvius.com.br/pesquisa/bookshelf/book/1170
Brasil, Grande Região,
Unidade da Federação,
Mesorregião Geográfica e
Município.
PIB
BRASIL
3.239.404.053
100
Norte Fluminense – RJ
31.975.443
0,98
Fortaleza – CE, cidade
31.789.186
0,98
Campinas – SP, cidade
31.654.719
0,97
Osasco – SP, cidade
31.616.451
0,97
Norte Central Paranaense – PR
31.456.852
0,97
Piracicaba – SP, cidade
30.659.282
0,95
Sul Fluminense – RJ
30.134.725
0,93
Norte Catarinense – SC
30.130.859
0,93
São Bernardo do Campo – SP
28.935.767
0,89
Paraíba
28.718.598
0,89
Rio Grande do Norte
27.904.989
0,86
Sul Goiano – GO
26.926.821
0,83
Barueri – SP, cidade
26.908.070
0,83
São José do Rio Preto – SP,
cidade
26.791.712
0,83
Metropolitana de Belém – PA
25.858.954
0,80
Bauru – SP, cidade
25.838.544
0,80
Duque de Caxias – RJ, cidade
25.747.558
0,79
Nordeste Rio-Grandense – RS
25.740.282
0,79
Betim – MG, cidade
25.183.730
0,78
Oeste Catarinense – SC
24.920.555
0,77
Recife – PE, cidade
24.835.340
0,77
_________. http://rosanamirandaarquiteta.blogspot.com.br/
Oeste Paranaense – PR
22.879.473
0,71
Santos – SP, cidade
22.546.134
0,70
Zona da Mata – MG
22.296.699
0,69
São José dos Campos – SP,
cidade
22.018.043
0,68
_________. http://www.teses.usp.br/teses
disponiveis/16/16131/tde-17052013-110205/pt-br.php.
Mooca: lugar de fazer casa. Tese de Doutorado –
FAUUSP, 2002.
Norte Mato-Grossense – MT
21.574.162
0,67
Goiânia – GO, cidade
21.386.530
0,66
Alagoas
21.234.951
0,66
Rondônia
20.236.194
0,62
Norte Maranhense – MA
20.206.212
0,62
Vitória – ES, cidade
19.782.628
0,61
Sergipe
Campos dos Goytacazes – RJ,
cidade
Piauí
19.767.111
0,61
19.581.276
0,60
19.032.665
0,59
Sudeste Paraense – PA
18.265.494
0,56
Araraquara – SP, cidade
18.212.929
0,56
Grande Florianópolis – SC
17.738.965
0,55
Participação
no PIB
Nacional
(%)
*A preços correntes, impostos, líquidos de subsídios, sobre produtos a preços correntes
e valor adicionado bruto a preços correntes totais e por atividade econômica, e respectivas
participações. Fonte: IBGE, Censo 2010
_________; VAINER, Carlos & MARICATO, Ermínia. A cidade
do Pensamento único, desmanchando consensos. 2a
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11
130/2014
7º Fórum Urbano Mundial em Medellín:
Aprendendo com a
experiência colombiana
Ana Paula Bueno e Cláudio Gonzalez
Em conversa com a redação da Princípios, o senador Inácio Arruda
(PCdoB-CE) fala sobre os temas debatidos no encontro, relata o que
viu de positivo na cidade colombiana e aponta caminhos que podem
ajudar a solucionar problemas agudos das cidades brasileiras
N
ão foi por um motivo qualquer que o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) escolheu a cidade de Medellín, na Colômbia,
para realizar a sétima edição do Fórum
Urbano Mundial. A cidade colombiana
foi escolhida porque é hoje considerada
um exemplo mundial de superação, inovação e sucesso em intervenções urbanas.
Em texto publicado na revista Fórum logo após
visitar a cidade, o urbanista brasileiro Fernando Lara
12
brinca que “assim como os muçulmanos vão a Meca,
os comunistas vão a Cuba e a classe media vai a Disneylandia; os urbanistas, principalmente os latinoamericanos, devem ir a Medellín”.
E eles foram aos milhares nos dias 5 e 11 de abril
deste ano durante a realização do 7º Fórum Urbano
Mundial (WUF7, na sigla em inglês). Realizado a
cada dois anos, o Fórum convida uma ampla variedade de participantes de todo o mundo para discutir
os principais obstáculos enfrentados pelo ambiente
urbano contemporâneo. Além da discussão da agen-
Capa
Fotos: Andrea González, Juan Fernando Gallego Duque e Carlos Vidal
Medellín desenvolveu um sistema de transporte urbano com foco na integração; o Metrocable, marca-registrada da cidade,
transporta mais de 550 mil pessoas/dia e permite que os moradores de áreas íngremes possam se deslocar com mais rapidez
da de desenvolvimento pós-2015, o evento é o último
Em conversa com a redação da Princípios, em São
antes do Habitat III, que acontece a cada 20 anos. Esta Paulo, Inácio falou sobre os temas debatidos no enconsétima edição reuniu urbanistas, acadêmicos de várias tro, relatou o que viu de positivo na cidade colombiana
áreas, autoridades públicas, parlamentares e ativistas e apontou caminhos que podem ajudar a solucionar
de 164 países. Entre os brasileiros que acompanharam problemas agudos das cidades brasileiras.
as atividades do Fórum estava o senador Inácio ArruO senador relata que no Fórum foram “examinada (PCdoB-CE), a senadora Lídice da Mata (PSB-BA) dos os desafios que o mundo enfrenta em relação à
e o deputado Zezéu Ribeiro (PT-BA).
ocupação humana, como a rápida
Inácio foi relator do Estatuto da
urbanização e seu impacto sobre as
Cidade (Lei 10.257 de 10 de julho de
cidades, comunidades, economias,
2001), que regulamenta os instrumudanças climáticas e políticas,
mentos de política urbana que decom foco na sustentabilidade”, Sevem ser aplicados pela União, pelos
gundo ele, o encontro privilegiou o
estados e municípios. O estatuto esdebate e a apresentação de soluções
tabelece normas de ordem pública e
inovadoras para o espaço urbano. E,
interesse social que regulam o uso da
neste, quesito, Medellín se destapropriedade urbana em prol do bem
ca, tanto que foi premiada em 2013
coletivo, da segurança e do bem-escomo a cidade mais inovadora do
tar dos cidadãos, bem como do equi- Inácio Arruda e Lídice da Mata representaram mundo pelo Urban Land Institute.
o Senado brasileiro no WUF7, em Medellín
líbrio ambiental. O senador cearense
também teve participação destacada em todas as cinco
Uma década de transformações
edições da Conferência das Cidades realizadas até hoje.
Atualmente, Inácio Arruda coordena um ciclo de debaMedellín é capital e maior cidade da província (detes sobre a questão urbana promovido pela Subcomis- partamento) de Antioquia. Com cerca de 2,7 milhões
são de Desenvolvimento Urbano do Senado, colegiado de habitantes, é a segunda cidade mais populosa da
que ele preside. (veja texto na página 18)
Colômbia, atrás somente de Bogotá, e também um dos
Foi com toda esta bagagem que Inácio desembar- principais centros industriais do país.
cou em Medellín para participar do Fórum Mundial
Sua região metropolitana, denominada Área meUrbano e conhecer a experiência colombiana que tan- tropolitana de Medellín, é composta por nove cidades,
to tem atraído a atenção de urbanistas e gestores do constituindo a segunda maior aglomeração urbana do
mundo todo.
país, ficando atrás apenas da Grande Bogotá.
13
130/2014
14
Divulgação
entre elas a educação, e quem deveriam
ser os principais beneficiados pelas iniciativas: a população mais pobre das periferias”, relata Inácio.
O processo de transformação da realidade local desabrochou na década de
1990, logo após a aprovação da denominada Lei 9ª, a Lei de Reforma Urbana da
Colômbia.
Um movimento chamado Compromisso Ciudadano começou a articular acadêmicos, empresários e lideranças comunitárias em torno de um projeto de cidade.
Em 2003, o sucesso do movimento elegeu
No Distrito 13 de Medellín, escadas rolantes ajudam os moradores a
circularem pelas vielas íngremes do bairro
o professor universitário Sergio Fajardo,
atual governador de Antioquia, para a
prefeitura. Seu governo foi marcado por
Até os anos 1990, Medellín também era conhecida
ousadas políticas de educação e segurança
como a cidade mais perigosa do mundo. Dominada
e pela proposta de investir em espaços públicos nas
por uma rede internacional de narcotráfico, empresáreas mais pobres da cidade, dentro de uma filosotou seu nome para o mais conhecido Cartel de drogas
fia que pregava a transformação destas áreas em amda Colômbia, o Cartel de Medellín, chefiado por Pablo
bientes “agradáveis, seguros e bonitos”.
Escobar. Na década de 80, a região chegou a controlar
80% do tráfico de cocaína nas américas.
Iniciativas inovadoras
Além da presença dos cartéis, a cidade, como toda
a Colômbia, também sofria forte impacto da guerra
Desde então, Medellín tem estado na vanguarda
civil entre os grupos guerrilheiros de esquerda lidedo pensamento e da prática urbanística, com ideias
rados pelas Farcs (Forças Armadas Revolucionárias
que vão do uso de teleféricos (Metrocable, que transda Colômbia) e os grupos paramilitares de direita que
portam diariamente 553 mil pessoas) à proibição de
atuam em conluio com as forças armadas e milícias
muros cegos e artefatos de segurança ofensivos como
estrangeiras. Eles espalhavam o terror entre a popucacos de vidro e arame farpado.
lação, sobretudo nas zonas rurais, obrigando dezenas
Grandes e bonitas bibliotecas públicas foram insde milhares de pessoas a migrarem para favelas nas
taladas nas regiões mais pobres da cidade, integrando
áreas metropolitanas onde tentam reconstruir suas
uma rede de 30 bibliotecas que formam verdadeiros
vidas. Atualmente, o conflito armado arrefeceu, mas
centros culturais. E cuidou-se para que elas fossem
ainda é um fator de desestabilização para muitas reefetivamente úteis e servissem como instrumento de
giões do país.
inclusão social e combate à violência. Para isso, foi
Vale lembrar que a Colômbia não é nenhum oásis de prosperidade isolado no continente. Como na maioria das nações da
América Latina, o país sofre com uma severa
desigualdade social agravada pelas políticas
neoliberais praticadas pelos governos que se
sucederam no poder nas últimas décadas.
Nas grandes cidades, há gigantescas favelas que não deixam nada a dever às favelas
brasileiras em termos de miséria, violência e
carência de serviços públicos.
“Medellín conseguiu superar esta realidade adversa e deu um salto qualitativo
numa área crucial, que é a questão urbana.
Para isso, foi preciso planejamento, determinação, apoio da população e, sobretudo, cla- Projeto de Unidade de Vida Articuladas (UVA), nova aposta de Medellín para
reza sobre quais deveriam ser as prioridades, fomentar a convivência, a cultura e a participação comunitária
Capa
criado um Plano Municipal que viabilizou mais de
aquele espaço como delas, e enxergarem o Estado
doze programas para o fomento da leitura. Ao mesmo
como adversário, então, o espaço público sempre setempo, a promoção de arte e cultura foi potencializará alvo de destruição”, explica.
da pela realização de feiras culturais, como a Festa do
Inácio ressalta, porém, que esta nova mentaliLivro e da Cultura, o Festival Internacional de Poesia
dade só foi conquistada porque houve, por parte da
e a Feira das Flores.
administração municipal, a decisão de cuidar com
Praças foram revitalizadas e houve forte investiesmero de todos os espaços e instalações públicas,
mento em educação. Vale ressaltar que graças a um
desde os mais importantes até os menores. “Cheprojeto espacial integrado, as escolas, parques e bigou-se à conclusão de que o espaço público bem
bliotecas são construídos em terrenos adjacentes à
cuidado, organizado, com jardinagem bem feita,
estrutura de transporte público, facria um círculo virtuoso, aflorando
cilitando a vida de quem usa estes
nos cidadãos o sentimento de que
serviços, com a vantagem adicional
aquele espaço lhes é útil, agradável
de que o sistema de transporte da
e precisa ser preservado. É como
cidade se baseia no conceito de inse as pessoas encarassem esses estermodalidade, com articulação dos
paços como uma extensão de suas
sistemas BRT (similar, no Brasil, ao
moradias. Então, aquele cuidado
de Curitiba), com o metrô de seis
que se tem com a sua casa, passa a
composições e ônibus pequenos que
ser o mesmo com relação à praça”,
alimentam todo o sistema.
avalia o senador.
O desenvolvimento sustentável
Também na área de segurança,
da cidade também ganhou imporhouve uma mudança importante
tância. O conceito de Projeto Urbano
na forma de relacionamento com
Integral (UPI) utiliza ferramentas
a população. Ao invés da política
do desenvolvimento social, físico e
de guerra ao crime, o setor da sea coordenação interinstitucional pagurança passou a adotar o conceiO cuidado com os
ra transformar os setores da cidade
to de polícia de ciclo completo. Os
espaços públicos,
com maiores necessidades. O UPI,
patrulheiros trabalham em média
juntamente com outros instrumendois anos na mesma localidade e
particularmente em
tos, como o Plano de Ordenamento
se apresentam de casa em casa,
áreas de periferia,
Territorial (POT) e o Plano Diretor
fornecendo seus nomes e telefones
de áreas verdes, permitiu progrespara a comunidade.
ajudou a criar uma
sos na recuperação de bacias hidroÉ difícil mensurar quais as ininova consciência
gráficas, áreas em risco ambiental,
ciativas foram mais eficazes para a
cidadã; os moradores
gestão do espaço público, habitação
pacificação da cidade. O fato é que
social e políticas mais eficientes de
os homicídios caíram de 6 mil em
começaram a
ocupação do solo.
1991 para 871 em 2008 e não cheentendê-los como
garam a 500 em 2013. Para efeitos
Cuidando bem dos
de comparação, em 2013 o Rio de
uma extensão de
espaços públicos
Janeiro registrou quase 4.000 hosuas moradias
micídios.
Inácio Arruda destaca ainda outra transformação, subjetiva, que
Empresas públicas
tem feito a diferença no caso de Medellín. Trata-se
fazem a diferença
do sentimento de compartilhamento que os cidadãos passaram a ter em relação aos espaços públicos.
Enquanto no Brasil os interesses privados e as cor“Enquanto na maioria das grandes cidades impera
porações de mercado dominam cada vez mais os servia lógica canhestra de que o que é público não é de
ços públicos, na Colômbia as empresas estatais ainda
ninguém, em Medellín sente-se que as pessoas pasrespondem por boa parte dos projetos urbanísticos e
saram a encarar a cidade com a lógica inversa: é púprestação de serviços à população, sobretudo nas maioblico, é de todos, é meu também. Assim, passaram a
res cidades. Além disso, através de uma política de inoconceber os espaços e equipamentos públicos como
vação científica e tecnológica e apoio ao empreendedobens coletivos que devem ser valorizados e preserrismo, a cidade passou a contar com forte presença de
vados. Porque, caso contrário, se não considerarem
empresas locais que se converteram em multilatinas.
15
130/2014
Assim como Bogotá, Medellín tem uma autarquia
municipal forte (EDU – Empresa de Desenvolvimento
Urbano) que garante continuidade dos projetos enquanto prefeitos se alternam no executivo municipal.
Entre os investimentos prioritários para o próximo período, está a construção das UVA (Unidades
de Vida Articuladas). Serão 20 centros urbanos que
integrarão atividades e equipamentos de esporte, recreação e cultura e servirão para o desenvolvimento
de atividades comunitárias e iniciativas sociais. Lembram as estruturas do SESC no Brasil, com a diferença fundamental de que serão espaços abertos à toda
população, financiados e geridos pelo poder público.
Ao lado da EDU, atua outra grande empresa pública de serviços unificada, a EPM. Fundada há 60 anos,
é a segunda maior empresa da Colômbia e uma das
70 maiores da América Latina. Emprega 40.000 funcionários e é qualificada como a empresa com melhor
reputação na Colômbia em prestação de serviços públicos nas áreas de eletricidade, água, telefonia, gás,
esgoto e coleta de lixo.
Outra característica que ajuda muito no sucesso
das iniciativas tomadas pela prefeitura de Medellín é
a constante consulta à população sobre os projetos em
desenvolvimento. Desde a definição de um novo Plano de Ordenamento Territorial até a escolha dos lugares públicos onde serão instalados pontos de internet
gratuita, para quase todas as ações municipais o povo é convidado a dar sua opinião. E, claro, a cidade
dispõe de instâncias democráticas como o Orçamento
Participativo, que já foi adotado com sucesso em muitas cidades brasileiras.
No Brasil, avançar na Reforma Urbana
“Se isso tudo está sendo feito em Medellín, por
que não pode ser feito em São Paulo, Salvador, Recife, Fortaleza, Rio de Janeiro etc.?”, questiona Inácio
Arruda.
Ele mesmo indica algumas respostas. A começar
pela necessidade de se avançar na formulação da Reforma Urbana e colocar em prática a legislação brasileira já existente, como o Estatuto da Cidade.
“O Brasil está dando passos muito lentos nesta direção. Para se ter uma ideia, somente na Constituição
de 1988 é que a palavra urbano passa a ter relevância
na legislação do país. Ou seja, é algo ainda muito recente”, afirma. E completa: “apesar de ser uma parte pequena na Constituição (Capítulos 182 e 183) a
preocupação com um plano integrado urbano passa
a ser desenvolvida e aí é que se insere o Plano Diretor
como uma necessidade para as cidades. Mas ainda
não se conseguiu transformar as diretrizes legais em
uma grande Política Urbana”.
16
Para o senador, esse é um debate urgente diante
da explosão demográfica, que atinge mais fortemente as regiões metropolitanas, e é fundamental para
orientar as discussões durante as campanhas eleitorais deste ano. O senador Inácio Arruda enfatiza
ainda a importância de incluir as cidades da região
metropolitana na articulação das políticas urbanas
elaboradas para a Capital e na definição dos projetos de transporte público. “É preciso ouvir todas as
regiões metropolitanas, ouvir a população, discutir
com ela, debater intensamente para poder alcançar
as proposições que permitam ajustar a legislação que
está em vigor. Nós temos uma série de iniciativas
que foram discutidas e votadas no Congresso Nacional que, para pôr em prática, precisam de um amplo
debate com a sociedade”, defende.
Mobilidade urbana,
uma questão essencial
O senador tem participado de diversas audiências
públicas sobre a questão urbana em diferentes cidades e relata que a busca de soluções para serviços de
baixa qualidade como o de transporte público tornouse um clamor nacional.
“Participei de audiências recentes em Fortaleza,
Natal, Porto Alegre e Curitiba e em todas elas as pessoas reclamam de carências no transporte público, da
pouca oferta, baixa qualidade e limitação das linhas
dos metrôs e também do excesso de automóveis nas
ruas e do tempo gasto no deslocamento para o trabalho e estudo”, relata o senador.
“A população está considerando um equívoco o
governo incentivar permanentemente a compra do
automóvel. Ninguém ficou contra as pessoas terem o
seu automóvel. Todo mundo acha que todos têm direito a ter o seu automóvel. O problema é que o incentivo, principalmente pelos instrumentos tributários,
deve ser dado ao transporte público massivo”, diz.
“Tão importante quanto a execução é ver a expansão de serviços públicos de qualidade, como os de mobilidade, em áreas mais pobres, mais carentes, pois
é onde situa-se a população que mais precisa. Muitos ainda pensam que serviços públicos de qualidade
devem ser feitos para a classe média e não para os
pobres, tanto que quando se fala em Metrô no Brasil, alegam que nas áreas mais pobres deveriam ser
implantados os Veículos Leve sobre Trilhos (VLT) ou
Metrô de Superfície, e não o subterrâneo que é mais
caro”, observa Inácio.
O senador lembra ainda que a maioria das cidades tem dificuldades para desenvolver projetos locais.
“Há muitos recursos disponibilizados pela União,
mas são poucas as cidades que possuem quadros téc-
Capa
nicos e organismos administrativos capacitados para
desenvolver os projetos necessários para obtenção
destes recursos. A imensa burocracia envolvida é um
fator que inibe ainda mais a capacidade dos municípios em buscar este dinheiro. Esses projetos exigem
uma equipe multidisciplinar com engenheiros, arquitetos, geógrafos e outros profissionais que poucas
prefeituras têm condições de contratar”, lamenta. Ele
defende que os processos sejam simplificados e que o
próprio governo federal ofereça soluções práticas com
projetos definidos para o uso dos recursos disponíveis.
Inácio também defende que o país precisa apostar
mais na força do investimento público com estatais
que não apenas forneçam serviços à população mas
que também participem efetivamente da construção
de grandes obras urbanas, deixando de ser reféns
de corporações privadas. “O Metrô de São Paulo, por
exemplo, é uma empresa ligada ao Estado que contrata serviços e obras, mas não entra na obra em si,
não a executa, porque na verdade não há empresas de
engenharia do Estado para isso. Dessa forma, o Metrô
é uma empresa contratante que apenas administra o
empreendimento, quem executa são grandes corporações privadas”, explica o senador.
É de conhecimento de todos que esta relação de
dependência tem sido fonte de inúmeros problemas
pois dá margem para irregularidades como licitações
viciadas, superfaturamento, atraso na execução das
obras e tantos outros desvios.
Para Inácio Arruda, as cidades hoje se transformaram em locais de mega-negócios, onde o direcionamento dos investimentos em desenvolvimento
urbano acaba servindo mais para render lucros para
segmentos restritos do mercado imobiliário do que
para melhorar a cidade para todos os cidadãos.
Ele destaca que “o maior desafio hoje é fazer cumprir o item da Constituição Federal que regulamenta
a função social da propriedade urbana”.
Como se vê, os problemas das cidades brasileiras
são vários e exigem dos governos disposição política
para enfrentar interesses poderosos e grande mobilização popular para dar suporte aos projetos de maior
impacto social.
Neste sentido, são inspiradoras as palavras ditas
pelo prefeito de Medellín, Aníbal Gaviria, na abertura do WUF7: “Medellín não é uma cidade resolvida,
há desigualdades, há injustiças, mas é uma cidade que
demonstrou que é possível avançar, que se pode deixar
para trás a dor, que se pode derrotar a escuridão; é uma
cidade resiliente, uma cidade que inspira”. Ele finalizou o discurso convidando os participantes do Fórum a
“construírem cidades justas porque as cidades modernas foram modelos eficientes para construir riqueza,
mas menos eficientes para construir igualdade”.
Carta de Medellín
Sobre o futuro das áreas urbanas
Durante o 7.º Fórum Urbano Mundial, o prefeito de Medellín,
Aníbal Gaviria Correa, lançou a Carta que representa uma
abordagem histórica para pensar sobre o futuro das cidades e o desenvolvimento – assuntos abordados no Fórum.
Além de divulgar a Carta, Correa apresentou a decisão de
criar a Plataforma Tecnológica de Soluções Urbanas para
dar continuidade às discussões do fórum.
Estruturado em duas partes, o texto busca posicionar o
conceito de “Cidades para a vida com equidade” no centro do debate mundial. A primeira parte do texto discute os
motivos, valores e princípios que poderiam contribuir para
a sustentação da visão da cidade para a vida. A segunda
trata da gestão integral das cidades e seus desafios.
O documento enfatiza o respeito à vida, o desenvolvimento
humano integral e a equidade como os principais desafios
que a cidade deve compartilhar com o resto do mundo.
Propõe um novo diálogo internacional em torno das perguntas: Como podemos tornar as cidades em 2050 locais
onde imperem a vida digna, a segurança e a paz? e como
reduzir o fosso cada vez mais acentuado em cidades que
crescem e avançam, mas com grande desigualdade?
Assim, propõe uma reflexão pública e permanente sobre
a forma como devem ser as cidades do futuro, a partir
da experiência da metamorfose de Medellín, uma cidade
que deixou de ser uma das mais violentas do mundo para
tornar-se um modelo de inovação, resiliência e sustentabilidade. Porém, o documento deixa claro que “não pretende
apresentá-la como o modelo a ser seguido nem torná-la
eixo da argumentação, fundamentalmente porque não trata de prevalecer no espírito universal das urbes, mas simplesmente ilustrar com Medellín algumas formas de gestão
do espaço público, em particular, do urbano.”
Este compêndio de ideias e propostas tem como origem
o conceito de “Cidades para a Vida” que foi apresentado
pela cidade de Medellín no documento Habitat do comitê organizador do Fórum Mundial Urbano. Essa visão que
coloca a vida como centro da cidade coincide com a proposta internacional recém-formulada pelo Secretário-Geral
das Nações Unidas, que, em seu Informe sobre os progressos na construção da Nova Agenda Mundial de Desenvolvimento (2015) e na atualização dos Objetivos do
Milênio, sugere o lema “Vida digna para todos é a obrigatoriedade principal deste século”.
O documento foi possível graças à contribuição de um
grupo de autores e instituições da Colômbia, França, Marrocos, México e Uruguai, incluindo o sociólogo francês Edgar Morin, considerado o pai da teoria da complexidade.
A carta foi traduzida para várias línguas e tem sido replicada em formato digital para diferentes públicos e organizações ao redor do mundo que trabalham pelo desenvolvimento sustentável, pela paz e para reduzir a desigualdade.
A versão em português da Carta de Medellín pode ser
acessada na íntegra no seguinte endereço eletrônico:
www.revistaprincipios.com.br/carta-de-medellin.pdf
17
130/2014
Primeira audiência pública do
ciclo de debates sobre a
Reforma Urbana foi realizada em Natal (RN)
As cidades
brasileiras
em debate
N
o mês de março, o senador Inácio Arruda deu
início a um clico de debates sobre os desafios
da Reforma Urbana. A iniciativa faz parte do
Programa de Trabalho da Subcomissão Permanente
de Infraestrutura e Desenvolvimento Urbano (CISPID), presidida pelo senador, e prevê onze sessões de
debates em várias capitais e suas Regiões Metropolitanas. A subcomissão, ligada à Comissão de Serviços
de Infraestrutura do Senado (CI), tem a finalidade de
apontar soluções aos entraves para uma melhoria na
estrutura e nos serviços públicos nas grandes cidades
e regiões metropolitanas.
A primeira reunião ocorreu no último dia 13 de
março, em Natal. A capital potiguar foi escolhida
para iniciar o ciclo por sua experiência exitosa com o
Parlamento Comum da Região Metropolitana, entidade criada para integrar as Câmaras Municipais da
Grande Natal a fim de planejar a gestão urbana da
metrópole. O fórum é presidido pelo vereador George Câmara (PCdoB) e é formado por vereadores dos
onze municípios que buscam superar o atraso econômico, com foco nas políticas de desenvolvimento
sustentável e nas pessoas: trabalho e renda digna.
Os debates são realizados em parceria com entidades e autoridades de cada cidade onde são sediados e contam com a participação de legisladores,
gestores municipais, representantes de entidades da
sociedade civil, especialistas, lideranças populares e
demais interessados.
De acordo com o vereador de Natal, George Câmara (PCdoB), que também é membro titular do Conselho das Cidades Nacional representando Frente Nacional de Vereadores pela Reforma Urbana (Frenavru), o debate sobre a questão urbana vem ganhando
volume em todo o Brasil. Ele explica que o caos em
que se encontram as cidades brasileiras é resultado
da ausência de planejamento urbano que ocorreu du-
18
rante décadas e que na última década começou a ser
questionado e reivindicado por setores de nossa sociedade. “Tivemos um grande avanço com a criação
do Estatuto da Cidade em 2001, pois o mesmo estabeleceu diretrizes gerais da política urbana em nosso
país. Estamos em fase de debater e aprovar agora o
Estatuto da Metrópole que auxiliará na política de
Urbanismo de nossas Regiões Metropolitanas. Nesse sentido, o encontro promovido pela CISPID tem
importância fundamental no fortalecimento desse
debate”, explicou George.
Além do debate ocorrido em Natal, já foram realizadas reuniões também em Porto Alegre, Curitiba e
Fortaleza. As próximas estão agendadas para Salvador, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Belém, ,
São Paulo e Goiânia. Ao final do ciclo de debates nas
11 capitais, a Subcomissão pretende realizar um seminário em Brasília para debater a Reforma Urbana e
também o Estatuto da Cidade. “Alguns eventos como
Copa do Mundo e Olimpíadas, estão impulsionando a
realização de importantes obras de mobilidade urbana nessas regiões. Então, logo, terão grande impacto,
os investimentos urbanos que estão sendo realizados
naquelas cidades”, afirma o senador Inácio Arruda.
Para o parlamentar, as grandes aglomerações
nas regiões metropolitanas têm impacto econômico
significativo. “As pessoas encontram muitas dificuldades em função do modelo de desenvolvimento estabelecido para as cidades brasileiras”, diz. Segundo
Inácio, as iniciativas da subcomissão visam identificar os desafios e romper os gargalos. “Onde é o nó da
questão urbana, para que a gente possa desatar? É
no problema da função social da propriedade? É no
problema do investimento? É no sistema financeiro
que cria obstáculos?”, indaga o senador. Ele espera
que o ciclo de debates ajude a dar respostas para estas questões.
19
130/2014
Reforma Urbana, questão
essencialmente política
Luciano Siqueira*
Na frente do movimento social, urge retomar a bandeira da
Reforma Urbana com força, associada às demais reformas
estruturais democráticas. Sem a pressão popular, nenhuma
dessas reformas se concretizará. E na frente eleitoral, de partidos
políticos de esquerda e progressistas, cabe incluir com destaque
as reformas estruturais, em especial a urbana, na plataforma da
presidenta Dilma e de candidatos em nível federal e estadual
5ª Conferência Nacional das Cidades, 2013
20
A
Capa
afirmação que dá título a este artigo parece óbvia, mas é necessária. Em mais
de cinco décadas, o movimento social
e a comunidade técnica (urbanistas
em especial) – por caminho difícil, sinuoso, mas progressivo – produziram
conteúdo programático sobre a questão urbana
consentâneo com as necessidades objetivas do desenvolvimento do país na atualidade. Entretanto,
os poderes Executivo e Legislativo, nos três níveis
federativos, têm se mostrado lenientes na viabilização da Reforma – que segue atrasada e claudicante.
As manifestações de junho do ano passado, em que
mais de um milhão de brasileiros foi às ruas reclamar das condições de vida nas cidades, em particular da má qualidade dos serviços públicos, recolocaram o tema na ordem do dia.
A realização da 5ª Conferência Nacional das Cidades, por seu turno, em novembro do ano passado,
se propôs retomar a empreitada. Como a própria presidenta Dilma assinalou na ocasião, “foram os movimentos populares que lutaram pelo Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social e que por sua vez
possibilitou a implantação do Minha Casa Minha Vida. Foi a luta que levou à criação
do Ministério das Cidades. Muito foi feito, mas as pessoas têm
pressa”.
O impasse urbano
Na verdade, na sequência da
“explosão urbana”, que mudou
radicalmente a distribuição espacial da população brasileira (em
1940 residiam nas cidades apenas 31% dos brasileiros; por volta
dos anos 1980, nelas já se encontravam mais de 75% da população; e em 2000, 82%, segundo os
critérios do IBGE), o crescimento
populacional sob a estagnação
econômica (as chamadas “décadas perdidas”) impôs às cidades
novos desafios. A gama de dinâmicas – demográfica, social,
econômica, urbana e ambiental
– que impulsiona alterações no
perfil da ocupação e do uso do
território levou ao agravamento
das desigualdades socioespaciais.
Como indicam as estatísticas
disponíveis, o crescimento das
metrópoles perde terreno para
as cidades de porte médio (de 100.000 a 500.000
habitantes), tanto do ponto de vista da produção
de riquezas como da população. Isto num ambiente crescentemente explosivo, sob rebaixamento de
políticas sociais e de primazia de políticas de alta
concentração da renda e da riqueza e de exclusão
social, que marcou os anos 1980 e 1990 e se estendeu pelos dois governos FHC. Como menciona o
texto de referência da 5ª Conferência Nacional das
Cidades, verifica-se hoje, “de um lado, o aprofundamento da periferização das grandes metrópoles,
com o aumento populacional nos municípios da
fronteira metropolitana e expansão das favelas e
loteamentos irregulares; de outro, o aparecimento
de núcleos de classe média e condomínios fechados
na periferia, tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo.” (1).
Acresce que, conforme demonstra Marcelo Neri (2), entre 2003 e 2013, com a retomada do crescimento econômico e a adoção de políticas sociais
inclusivas, cerca de quarenta milhões de brasileiros
ingressaram na chamada “classe média”, incorporando-se ao sistema de produção de bens e serviços
e ao mercado de consumo – e, como consequência,
ampliando significativamente as demandas por serviços públicos de qualidade.
Nesse contexto, acirra-se a contradição entre as
muitas modalidades de acumulação e reprodução do
capital (o capital imobiliário principalmente) e a necessidade de acesso a bens e serviços, pela maioria
da população, que viabilizem a cidade como direito
de todos e ambiente mais humano de convivência.
Uma luta prolongada e oscilante
À semelhança das demais reformas estruturais,
a Reforma Urbana percorre trajetória prolongada,
que já dura cinco décadas. Tem como ato inaugural
o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, ocorrido em 1963, no Hotel Quitandinha, em
Petrópolis, onde se formulou as bases de um Projeto
de Lei. Perde força na primeira década do regime militar; recrudesce nos anos 1970, com a disseminação
do movimento de associações de bairros por moradia, regularização dos loteamentos clandestinos, pelo acesso aos serviços de educação e saúde e pela implantação de infraestrutura nas áreas de ocupação;
e nos anos 1980, no frigir do processo constituinte,
toma impulso com a criação do Movimento Nacional
pela Reforma Urbana. Acumula expressivas vitórias
com a aprovação, em 1979, da Lei 6.766, que regula o
parcelamento do solo e criminaliza o loteador irregular; com a introdução do capítulo temático específico
na Constituição de 1988 (artigos 182 e 183) (3) e,
21
130/2014
onze anos após, com a promulgação da Lei nº 257, de
conservadora e gradativamente se exime da agenda
10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidaque deveria favorecer a Reforma Urbana – destacade – que, no dizer de Raquel Rolnik (4), é “o marco
damente a instauração, mediante Projeto de Lei, de
regulatório da política urbana no Brasil inserido no
um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano.
âmbito das reformas políticas e juConcomitantemente, no âmrídicas anunciadas pela Constituinbito da sociedade, a bandeira da
te de 1988.”
Reforma, se não foi arriada, pasEssa trajetória
Vale anotar que do Seminário
sou a tremular mais timidamente,
oscilante se insere,
do Quitandinha ao Movimento
inclusive nas mãos de líderes e orNacional pela Reforma Urbana e o
ganizações populares, circunstanem boa medida, na
Fórum Nacional pela Reforma Urcialmente empenhados em viabitradição brasileira
bana (criados nos anos 1980), dá-se
lizar projetos locais de habitação,
uma evolução conceitual importanfinanciados pelo Ministério, tão
de reformas
te – do planejamento territorial e
necessários quanto absorventes e
que sempre
da moradia à inclusão de questões
diversionistas. Fato emblemático é
novas, impostas pelo crescimento
que nas manifestações de junho de
trilharam caminho
desordenado e desigual das cida2013 não se viu uma faixa ou um
cumulativo – e
des, como a crise de financiamento
cartaz sequer pleiteando a Refordo Estado, a expansão das zonas de
ma Urbana – mesmo quando organão de ruptura –,
ocupação ilegal, a expulsão branca
nizações populares e democráticas
sujeito a conquistas
da população de menor renda para
passaram a delas tomar parte –, a
as cidades periféricas, a fragmendespeito de que as reivindicações
e a retrocessos,
tação socioterritorial, a ineficiência
expostas, na ocasião, de modo tosdependente da
das políticas públicas em vigor –
co e dispersivo, fossem parte esacentuando a defesa dos denomisencial do conteúdo da Reforma.
correlação de
nados direitos urbanos, a função
Nessa mesma linha, o tema
forças e do grau de
social da propriedade e a introducomparece pouco ou se faz aução de instrumentos de participasente no discurso de governantes,
mobilização social
ção na gestão pública.
dirigentes do movimento social,
Desse modo, a emenda popular
parlamentares – permanecendo
apresentada à Assembleia Consquase circunscrito aos círculos de
tituinte, que reuniu 131 mil assinaturas (5), trapesquisadores e urbanistas. O Partido Comunista do
duz esse avanço conceitual. Abarca a regularização
Brasil, contrariando a regra, tem sustentado, desde a
fundiária das “ocupações”, a observância da funAssembleia Nacional Constituinte, em 1987-88 e em
ção social da propriedade, programas habitacionais
seu Programa (6), a Reforma Urbana como uma das
prioritariamente para atender à população de baixa
reformas estruturais – ao lado das reformas Agrária,
renda, transporte urbano como direito do cidadão,
Tributária, Educacional, Política, da Mídia e do Judicom tarifas compatíveis com a massa salarial; além
ciário – imprescindíveis ao processo civilizatório brade mecanismos de gestão democrática da cidade –
sileiro, consubstanciando um Novo Projeto Nacional
conselhos democráticos, audiências públicas, plebisde Desenvolvimento.
citos, referendo popular, iniciativa legislativa e veto
Essa trajetória oscilante se insere, em boa mediàs propostas do Legislativo.
da, na tradição brasileira de reformas que, sob viSegue avançando com a assunção de Luiz Inácio
gência da ordem democrática, sempre trilharam caLula da Silva à Presidência da República, quando se
minho cumulativo – e não de ruptura –, prolongado,
cria o Ministério das Cidades, precisamente destinasujeito a conquistas e a retrocessos, dependente da
do a implementar os propósitos essenciais da Reforcorrelação de forças e do grau de mobilização social
ma Urbana, que chegou a esboçar um Plano Nacio– como o próprio processo de superação do modelo
nal de Desenvolvimento Urbano voltado, com ênfase
neoliberal, que transcorre há onze anos, a partir do
na habitação de interesse social, ao saneamento e à
primeiro governo Lula.
regularização fundiária.
Em consequência, têm prevalecido a dispersão e
Já no segundo governo Lula, em decorrência de
a compartimentação de políticas públicas com incialterações na composição da coalizão governista,
dência urbana (habitação, saneamento, mobilidade,
mediada pela correlação de forças no Parlamento, o
sustentabilidade ambiental etc.). Assim tem sido
Ministério das Cidades transfere-se a uma direção
quando, no período Lula-Dilma, muitos investimen-
22
Capa
Estima-se que mais de 3,5 milhões de moradias
de interesse social possam ser consideradas
“não-inclusivas”, em ambientes de “não-cidade”
tos são feitos em infraestrutura urbana e, inclusive,
com as chamadas “medidas anticíclicas” adotadas
com a eclosão da crise global em 2008, especialmente a isenção fiscal parcial à indústria automobilística
e o Programa Minha Casa Minha Vida – privados de
efetivos mecanismos preventivos do caos urbano.
Como bem observa Ermínia Maricato, com o
programa Minha Casa Minha Vida, “o governo federal pela primeira vez na história do Brasil aportou
subsídios para atender a população de baixa renda”,
porém induziu uma explosão no preço dos imóveis,
que acabou drenando o subsídio e desencadeando
absurdo aumento do preço do metro quadrado dos
imóveis, que em três anos chegou a 151% em São
Paulo e 185% no Rio de Janeiro (7).
Nessa linha de desarticulação das políticas urbanas,
estima-se a existência de mais de 3,5 milhões de moradias de interesse social, que podem ser consideradas
“não-inclusivas”, situadas em ambientes de “não-cidade”, porque a política habitacional, no caso, não interagiu adequadamente com as políticas de saneamento, mobilidade e de geração de emprego e renda.
Afetando diretamente a mobilidade urbana, os
automóveis comparecem com 65,9% da atual frota
brasileira de veículos automotores; as motos com
26,2%; enquanto outros tipos de veículos representam 7,9% – um fator de agravamento da mobilidade
urbana nas grandes e médias cidades (8).
Oportunidade para avançar
O agravamento dos problemas urbanos e o incremento da insatisfação popular constituem, junto
com as eleições gerais deste ano, ambiente social e
político propício.
Na frente governamental, se é certo que a Constituição Federal, o Estatuto da Cidade, a Lei de Consórcios Públicos (que possibilita quatro tipos de consórcios: entre municípios; entre os municípios e o
estado; entre o estado e a União; entre os três entes,
União, estado e município para intervenções urbanas), o Plano Nacional de Habitação, a Lei Federal de
Saneamento Básico, a Política Nacional de Resíduos
Sólidos (Lei 12.305/10), a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) constituem um arsenal jurídico-formal avançado; todavia, ainda há um
vácuo institucional a ser preenchido, para superar a
fragmentação e a compartimentação dessas políticas
públicas.
A instituição do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) – pactuado desde a 2ª Conferência Nacional das Cidades, em 2005 (9) – através
de Projeto de Lei a ser encaminhado ao Congresso
Nacional, impõe-se como mecanismo necessário à
concretização da Reforma Urbana.
O SNDU permitirá que a gestão pública opere segundo diretrizes que integrem as políticas setoriais
23
130/2014
de incidência urbana; assegurem a integração vertical entre os entes federados, definindo claramente
níveis de responsabilidade; escoimem o emaranhado
de dispositivos legais (na esfera municipal, sobretudo) de obstáculos à plena aplicação do Estatuto da
Cidade; direcionem recursos
para as políticas urbanas de
modo equilibrado, no espíriNa frente
to do Pacto Federativo, dangovernamental,
do sustentabilidade às ações
e aos projetos no âmbito dos
é certo que a
estados e municípios; e vaConstituição
lorizem as Conferências e os
Conselhos como instrumenFederal, o Estatuto
tos de gestão democrática e
da Cidade, Leis,
participativa.
E como corolário da insPlanos e Políticas
tituição do SNDU, a forconstituem um
matação de um projeto estratégico para as cidades
arsenal jurídicobrasileiras, que considere as
formal avançado;
interfaces das ações de regulação do uso e ocupação do
todavia, ainda
solo, da habitação, do saneahá um vácuo
mento ambiental integrado,
da mobilidade, do transporte
institucional a
público e da segurança do ciser preenchido,
dadão. Ademais, avançar na supepara superar a
ração dos condicionantes mafragmentação e a
croeconômicos herdados da
Era FHC, que persistem, para
compartimentação
financiar o desenvolvimento.
dessas políticas
Reordenar a vida nas cidades,
requalificando os serviços púpúblicas
blicos essenciais, assegurando
oportunidades de trabalho,
acesso à educação pública de qualidade e à atenção
á saúde, implicam pesados investimentos. Assim, no
bojo de “uma nova arrancada por mais democracia,
mais desenvolvimento e progresso social” (10), arrostando a permanente pressão da oposição conservadora, faz-se necessário criar um sistema de intermediação financeira através da rede pública de bancos,
destacadamente o BNDES, para deslocar recursos
para setores-chave como infraestrutura, incluindo
as grandes intervenções urbanísticas. Adotar política macroeconômica indutora de crédito com taxa de
câmbio que permita competitividade internacional e
exploração de todas as potencialidades das Parcerias
Público-Privadas (PPPs), conforme sugere Renato Rabelo (11).
Na frente do movimento social, urge retomar a
bandeira da Reforma Urbana com força, associada
24
às demais reformas estruturais democráticas, fundindo-a às pautas reivindicatórias de associações
e conselhos de moradores, sindicatos, entidades
científicas, acadêmicas, culturais e estudantis e
organizações democráticas e populares em geral,
movimentos de mulheres, negros, ambientalistas,
LGBT, além de partidos políticos de esquerda e progressistas. Sem a pressão popular, nenhuma dessas
reformas se concretizará.
Na frente eleitoral, durante a campanha que se
avizinha, cabe incluir com destaque as reformas
estruturais – a Reforma Urbana em especial – na
plataforma da presidenta Dilma, de candidatos progressistas a governador e ao Parlamento, em nível
federal e estadual, dando conteúdo avançado ao
novo pacto político e social a emergir das urnas.
* Luciano Siqueira é médico, escritor e vice-prefeito
de Recife.
Notas
(1) “Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana já!”
– texto para lançamento da 5ª Conferência Nacional das
Cidades. Conselho Nacional das Cidades, Brasília, 1º de
março de 2013.
(2) NERI, Marcelo. A nova classe média – o lado brilhante de
nossa pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011.
(3) Senado Federal: Constituição da República Federativa do
Brasil. Brasília, 1988.
(4) ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade – das lutas pela Reforma Urbana às cidades da Copa do Mundo.
In: www.raquelrolnik.wordpress.com
(5) Jornal da Constituinte, Brasília, 30 de agosto, 1987.
(6) Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Programa Socialista.
In: www.pcdob.org.br
(5) MARICATO, Ermínia. “Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta”. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz & SANTOS JR. Orlando Alves dos (orgs.).
Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
(7) “Nossas cidades são bombas socioecológicas”. Entrevista
de Ermínia Maricato à revista Teoria e Debate. In: www.teoriaedebate.org.br – edição 115, agosto de 2013.
(8) RODRIGUES, Juciano Martins. Crise da mobilidade urbana: Brasil atinge marca de 50 milhões de automóveis.
Observatório das Metrópoles, Instituto Nacional de Ciência
e Tecnologia. Novembro, 2013.
(9) Resoluções da 2ª Conferência Nacional das Cidades. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Ipea, Brasília,
dezembro de 2005.
(10) Resolução Política do 13º Congresso do PCdoB: Batalhar
pelas reformas estruturais, fortalecer o Partido, assegurar a quarta vitória do povo! Brasília, novembro de 2013.
In: www.pcdob.org.br
(11) RABELO, Renato. Projeto para uma nova etapa de desenvolvimento. Fundação Maurício Grabois, Seminário de
Estudos Avançados da Escola Nacional do PCdoB. São
Paulo, julho de 2013. In: www.fmauriciograbois.org.br
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25
130/2014
Prioridade para os interesses
coletivos nas cidades
Bartiria Lima da Costa*
A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para
melhorar as condições da população e democratizar o acesso aos
espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades.
A gestão democrática é um aspecto importante nesse processo
A
Uma Reforma complexa
política de desenvolvimento urbano
contempla o planejamento e gestão do
território, saneamento, regularização
fundiária, habitação e a mobilidade,
ou seja, alguns dos principais gargalos do desenvolvimento das cidades.
As grandes catástrofes e os problemas urbanos
que têm assolado diversas regiões do nosso país
nos últimos anos estão ligados intrinsecamente
à falta de planejamento na ocupação do solo e à
falta de regularização fundiária, como também o
manejo dos rios. Comunidades construídas em
locais inadequados são reflexos da ineficiência
do poder público no ordenamento da cidade e no
combate à especulação.
O principal instrumento construído para
democratizar o acesso à cidade é o Estatuto da
Cidade, Lei 10.257/2001, que determina a ela-
26
boração de forma democrática dos Planos Diretores e disponibiliza uma série de instrumentos
que, quando utilizados, auxiliam no combate à
especulação imobiliária e fazem com que a terra
urbana e a cidade possam cumprir a sua função
social, como determina a Constituição de 1988.
Na esteira da construção do Estatuto da Cidade estão os marcos regulatórios do saneamento, mobilidade e habitação de interesse social, a
construção do Ministério das Cidades e as Conferências e o Conselho das Cidades. Porém, passados praticamente 13 anos da criação desse avançado instrumento, poucas são as cidades que o
colocam em prática.
A luta pelo desenvolvimento urbano é repleta de contradições, a construção de cidades
mais justas e democráticas é um grande desafio.
E entre os grandes desafios está o de avançar na
construção de uma política de Estado e não somente em políticas de governo.
Arquivo Conam
Capa
A construção do Sistema Nacional de Deção de habitação de interesse social, e inclusive
senvolvimento Urbano é um instrumento funesvaziou os recursos que deveriam ser destinadamental para integrar as políticas setoriais
dos ao Fundo do Sistema Nacional de Habitação
entre as esferas de governo e entre as políticas
de Interesse Social (FSNHIS).
de desenvolvimento urbano, no planejamento,
O fato é que esses recursos, na maior parte
financiamento e execução dessas ações. Este foi
das vezes, têm sido direcionados diretamente aos
o tema central da 5ª Conferência Nacional das
municípios e estados, utilizando-se unicamente
Cidades em que milhares de municípios no Bracritérios políticos sem levar em conta o que tem
sil debateram e deliberaram sobre a política de
sido construído nesta última década. Além de
desenvolvimento urbano que deverá ser a prionão ser educativa essa prática fragiliza a necesridade para o próximo período.
sidade de fortalecer a cultura de
Ficou claro que não basta criar
planejamento e participação.
normas nacionais que não posPor outro lado, o Ministério
Entre os grandes
sam, na prática, ser aplicadas
das Cidades e o Conselho Nacionos estados e municípios.
nal das Cidades têm sido enfradesafios está o
quecidos nas decisões políticas.
de avançar na
Grandes recursos sem
No governo Lula os PACs, o Micontrole social
nha Casa Minha Vida eram deconstrução de uma
finidos na Casa Civil. Na gestão
política de Estado
Recentemente, a presidenda presidenta Dilma, no Minista Dilma Rousseff destacou que
tério de Planejamento esta mee não somente em
estão sendo investidos R$ 343
dida mostra a prioridade dessas
políticas de governo
bilhões em dois grandes prograações, porém indica que – ao
mas: O Minha Casa Minha Vida
contrário do que estamos cons(R$ 200 bilhões) e o Programa de
truindo – temos ainda políticas
Aceleração do Crescimento (PAC) de Mobilidade
de governo e não de Estado. O Conselho NacioUrbana (R$ 143 bilhões). Esses recursos muitas
nal das Cidades na realidade não exerce nesses
vezes são colocados em obras que não foram debaprogramas o controle social.
tidas com as cidades e as comunidades afetadas.
O valor da terra urbana
E, ao invés de se construírem pactos, nelas têm
sido geradas mais especulações e desigualdades,
Neste contexto, o Minha Casa Minha Vida
produzindo-se cidade fora das cidades formais,
acentuou a exploração imobiliária nas cidades.
aos setores de menor renda.
Com a grande demanda de terra para a construSabemos que o programa Minha Casa Mição de moradias – principalmente para famílias
nha Vida era para ser uma medida anticíclica
com renda acima de R$ 1.600,00 –, houve um
para manter a economia aquecida em um mogrande aumento do valor da terra urbana.
mento de crise econômica global, mas na prática
Isto tem gerado um grave problema, pois
ele substituiu todos os outros instrumentos que
como não há terra em preços razoáveis – as moraestavam sendo criados como política de produdias de interesse social, para famílias com renda
abaixo de R$ 1.600,00 –, faz com que se tenha de
construir infraestrutura de cidade fora da cidade.
Essas famílias muitas vezes têm sido colocadas
em locais com precárias condições de mobilidade, saneamento e com falta de equipamentos
públicos de saúde, educação etc. Em outros locais esse tipo de empreendimento não encontra
quem se disponha a construir a moradia, pois
o preço da terra inviabiliza o empreendimento.
Enquanto isto, os vazios urbanos no centro das
cidades, e em áreas nobres, continuam se valorizando, sem que se possa combatê-los, pois os
instrumentos disponíveis no Estatuto da Cidade
não são aplicados nos planos diretores.
Lideranças comunitárias em audiência no Ministério das Cidades
27
130/2014
guimos aprovar neste último período. Ela aponPor outro lado, muitas obras de infraestruta para um trânsito e mobilidade com prioridade
tura urbana têm servido para deslocar comunipara o pedestre, o transporte não-motorizado e o
dades históricas que, apesar das precariedades
transporte coletivo em relação ao transporte indina urbanização, vivem em locais próximos ao
vidual motorizado. Nas últimas décadas, sempre
centro ou de forte valor imobiliário. Com o preas principais obras priorizaram o deslocamento do
texto da realização dessas obras têm-se gerado
automóvel. Hoje é necessário priorizar o transporverdadeiros expurgos para bairros mais periférite coletivo. Mas isto ainda sofre grande resistência
cos e/ou mesmo para fora da cidade, através de
nos gestores que, visando a políticas imediatistas,
diversos instrumentos. O comum nessas ações
preferem construir uma faixa a mais para os carque têm acontecido em todas as regiões do Braros a dedicar uma faixa exclusiva para o ônibus.
sil é que megaeventos e megaprojetos são utiliUm exemplo ímpar é o caso da cidade de São Pauzados como desculpa, e os diálogos com as colo que teve a ousadia de colocar isso em prática e
munidades ou não existem ou são feitos de uma
avançar com essas faixas exclumaneira muito pouco transpasivas em grande parte da cidade.
rente.
Neste sentido, grande parte
Outro grande desafio para o
As cidades
das obras selecionadas no PAC
próximo período está em priorizar
reproduzem a
Mobilidade é de transporte colea regularização fundiária em relativo de massas, principalmente
ção à construção de “novas cidarelação do capital
sobre trilhos: Metrôs e Veículos
des”. Com o Minha Casa Minha
e, assim como o
Leves sobre Trilhos (VLTs). E as
Vida a regularização fundiária
obras rodoviárias são corredores
foi regulamentada, mas não está
rentismo, impedem
para Bus Rapid Transit (BRTs,
sendo priorizada, não há, da parte
o avanço no
Trânsito Rápido de Ônibus, em
dos governos estaduais e municiportuguês), faixas exclusivas e
pais, o menor interesse em regufortalecimento
corredores de ônibus. Mas enlarizá-la, visto os deslocamentos
da produção e do
tendemos que parte desses rede famílias de áreas consolidadas
cursos deveria ir, por exemplo,
em função dos megaprojetos e
desenvolvimento
para qualificar, integrar e raciomegaeventos.
nalizar os sistemas operacionais
Para se avançar na Reforma
e tarifários de transporte coletivo. Mas algo fica
Urbana com firmeza é necessário enfrentar a
claro: se o transporte coletivo não for atrativo as
questão da terra urbana. As cidades reproduzem
pessoas não vão deixar seu carro em casa. Assim
a relação do capital e, assim como o rentismo,
também se o preço não for justo os trabalhadoimpedem o avanço no fortalecimento da prores têm fortes dificuldades para pagar a tarifa.
dução e do desenvolvimento. Por isso, somente
Talvez o maior avanço que podemos ter na
conseguiremos aplicar os instrumentos construíPolítica de Mobilidade Urbana seja a elaboração,
dos nas cidades em que a propriedade e a terra
de forma democrática, dos planos de Mobilidade
possam cumprir sua função social, seja ambienUrbana. Cada cidade terá o dever de articular o
tal para equipamentos públicos ou para a consseu, que é um acordo, com as priorizações, ações
trução de moradias.
e diretrizes de desenvolvimento da mobilidade
O desafio de tornar atrativo o
do município, articuladas com o Plano Diretor.
transporte coletivo
Nele, podem ser debatidos a questão da concessão do transporte coletivo, a qualidade do serviço
Uma das questões na ordem do dia, princie o valor da tarifa.
palmente depois das manifestações de junho e
Planos municipais de saneamento
julho de 2013, é a mobilidade urbana. Há, atualmente, um transporte coletivo de pouca qualidaNa 5ª Conferência Nacional das Cidades,
de com tarifa alta, cidades engarrafadas – fruto
a presidenta Dilma Rousseff assinou o Decreto
de uma política que historicamente incentivou o
nº 8.141, de 20 de novembro de 2013, que insuso do automóvel em detrimento do transporte
titui o Grupo de Trabalho Interinstitucional de
coletivo de massas.
Acompanhamento da Implementação do PlaA Política Nacional de Mobilidade Urbana é
no Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
um dos instrumentos mais avançados que conse-
28
Arquivo Conam
Capa
A necessidade do povo na rua
A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para melhorar as
condições da população, e democratizar
o acesso aos espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades. A
gestão democrática é um aspecto importante nesse processo. A cultura do planejamento urbano somente vai se fortalecer se todos os segmentos das cidades
decidirem se apropriar desse conceito,
participando, colaborando, se sentindo
parte atuante e protagonista dessa construção coletiva.
Movimentos como o Passe Livre e
o Rolezinho não trazem pautas ou banManifestação pela Reforma Urbana, em Brasília
deiras novas para as cidades, mas são
novos atores fortalecendo as bandeiras
históricas dos movimentos orEsse Plano foi publicado no
ganizados pela Reforma Urbana.
Diário Oficial da União, de 6 de
Movimentos como
Porém, esses movimentos jovens
dezembro, com a aprovação de
com suas características e ações
o Passe Livre e
sete ministérios (Cidades, Fadiferenciadas fizeram com que
zenda, Casa Civil, Planejameno Rolezinho não
outros segmentos e a imprensa
to, Saúde, Meio Ambiente e Involtassem sua atenção para essas
trazem pautas ou
tegração Nacional).
bandeiras. E também acordaram
Com o Plansab, estão garanbandeiras novas
o governo para a priorização de
tidos investimentos de R$ 508
tais lemas. Podemos concluir
para as cidades, mas
bilhões no país nos próximos
que só será possível avançar com
20 anos para universalização do
são novos atores
a participação popular, mobilizaacesso aos serviços de abastecição social e muita articulação.
fortalecendo as
mento de água potável, esgotaTodos os avanços construímento sanitário, limpeza urbabandeiras históricas
dos no último período têm de
na, manejo de resíduos sólidos e
ser aplicados. E, principalmente
dos movimentos
drenagem de manejo das águas
nas cidades, são fundamentais
pluviais e urbana.
organizados pela
a pressão e a articulação dos
A Lei nº 11.445/2007 estamovimentos urbanos, para que
Reforma Urbana
belece as diretrizes nacionais e
os gestores e parlamentares coa Política Federal de Saneamenloquem em prática as medidas
to Básico e determina que todos
necessárias para melhorar a quaos municípios brasileiros devem elaborar seus
lidade de vida das pessoas. Isto num cenário em
planos de saneamento. De acordo com a legislaque outros segmentos pressionam para manter e
ção vigente é responsabilidade da administração
ampliar seus privilégios e vantagens. A consolimunicipal organizar e prestar, diretamente ou sob
dação de um novo cenário é uma tarefa árdua e
regime de concessão ou permissão, os serviços de
difícil, ao mesmo tempo em que as comunidades
saneamento básico. A Lei estabelece também que
necessitam de respostas rápidas e eficazes para
os planos elaborados tenham prazos de 20 anos,
suas demandas históricas.
avaliados anualmente e revisados a cada quatro
anos. O Plano Municipal de Saneamento Básico é
*Bartiria Lima da Costa é membro do Comitê
uma oportunidade para toda a sociedade conheCentral do PCdoB, responsável pela Questão Urbana;
cer e entender o que acontece em sua cidade. A
integra os Conselhos Nacionais das Cidades e da
Lei 11.445 estabelece ainda o controle social como
Saúde e é presidenta da Confederação Nacional das
um dos seus princípios fundamentais.
Associações de Moradores (Conam)
29
130/2014
Quando a única
possibilidade é ser coletivo
Jilmar Tatto*
A
Sem uma planificação regional metropolitana que considere
a integração de seu universo, não será possível enfrentar o
problema de transporte de massa por completo. Além do
mais, é preciso que os agentes públicos e privados tenham
a consciência de que não há solução única ou que atenda a
apenas um setor social ou produtivo, a priorização tem de
ser plural, não há outro caminho a seguir
mobilidade urbana é um dos temas mais
importantes da atualidade. Agora é o
momento crucial de os agentes públicos
implementarem medidas urgentes que
atendam à maioria da população. Dentro desse contexto, o transporte público tem papel
fundamental: ou começamos a executar a cultura
da universalidade, ou estaremos presos em nossas
exclusividades.
Ou partimos da realidade, ou sequer imaginaremos boas soluções. Essa primeira e mais emblemática constatação, quando se fala em mobilidade urbana, nos põe diante do fato de que as cidades médias
30
e grandes estão com um “bem” em plena extinção:
os espaços. Tomando como exemplo o município de
São Paulo, essa circunstância ultrapassa o grau da
preocupação.
Àqueles desatentos, nossos 15 mil quilômetros
de vias asfaltadas até seriam suficientes para oferecer condições adequadas para os deslocamentos. De
início, há um dado espantoso: temos 7,4 milhões de
veículos emplacados, com quase 4 milhões deles circulando diariamente na capital paulista.
Aqui, um contraponto: temos carros cada vez
mais velozes, mas, além da exiguidade de locais para
abrir ruas e avenidas, não há poder público dotado
Capa
de rapidez e orçamento que dê conta de uma ação
Também não se pode afirmar que implementar as
baseada na construção de obras viárias, como ocorrifaixas exclusivas é um processo simples. Existe uma
do nos anos 1960 e 1970.
escolha dos locais pelas condições de uso, avaliandoNesse crescimento constante, que acabou
se o fluxo de veículos, particulares e coletivos, e o
criando o constrangedor binômio frota acelerada/
impacto nas imediações.
caminhos lentos, pouquíssimo se previu para as
décadas seguintes. E aquele futuro chegou. E veio
A prática
com força. Tanto é que até poderíamos acreditar
na imagem de que, um dia, não conseguiremos
Do diagnóstico passamos à ação: em fevereiro
sair às ruas por haver um congestionamento inde 2013 começamos a implantação das faixas. Um
transponível.
dado paralelo que contriNão importa o lugar
buiu com o trabalho foi
do planeta: nem as mais
que a população já tinha
inacreditáveis tecnoloaprovado a experiência
gias ou os treinamentos
dos corredores de ônide pessoal mais aprobus, no início tão compriados serão capazes de
batidos. Claro que o uso
nos salvar da iminente
do lado direito, junto da
imobilidade. Com uma
calçada, causou um certo
exceção: embora já veestranhamento. Mas, aos
nha sendo dita há alguns
poucos, a assimilação foi
anos, a única saída tem
notável.
de ser repetida e aplicada
Além de dar preferêndiariamente, como um mantra: vacia ao transporte público, o proPesquisa do
lorização do Transporte Público.
grama chamado “Dá Licença para
Na capital paulista, este conceio Ônibus” também contribuiu paDatafolha (2013)
to vem sendo praticado insistenra organizar o trânsito nas outras
apontou que 88%
temente desde 2 de janeiro do ano
faixas do viário. E esse comparpassado. Sabedores do desafio já
tilhamento provocou, ainda, um
dos passageiros
respeito contínuo e, talvez, inéhavíamos previsto nas propostas de
aprovaram a
dito. Até mesmo fora do horário
governo do prefeito Fernando Hadde funcionamento das faixas, os
dad, entre várias outras, a construcriação das faixas
motoristas continuam respeitanção de 150 quilômetros de corredoexclusivas. Notáveis
do-as. É como se lá fosse um local
res de ônibus à esquerda das vias
especial. Como realmente é.
– que estão em processo de licitação
foram os 77%
Os resultados têm sido anima– e igual extensão de faixas excluside motoristas de
dores. O usuário teve um ganho
vas à direita, em importantes ruas e
de 38 minutos ao dia com as faiavenidas.
carros particulares
xas exclusivas. Isto veio como reTendo como ideia central que
que também se
flexo do aumento médio de 48,1%
a segregação no viário é capaz de
aumentar a velocidade dos ônibus,
posicionaram a favor na velocidade dos coletivos, que
saíram de módicos 13,8 Km/h pauma de nossas primeiras medidas
ra 20,4 Km/h.
foi selecionar os grandes caminhos
Ainda no ano passado, uma pesquisa do Datafoem que poderíamos, e deveríamos, criar as faixas palha apontou que 88% dos passageiros aprovaram a
ra os coletivos.
criação das faixas exclusivas. Notáveis foram os 77%
É um equívoco total defender, por exemplo, que a
de motoristas de carros particulares que também se
frota de coletivos deveria aumentar. Os atuais 14.761
posicionaram a favor.
ônibus já são suficientes para as 1.292 linhas que
As facilidades geradas pelas faixas são responsápercorrem 4.800 quilômetros em todo o território
veis, em grande parte, pela elevação do número de
paulistano. Nosso foco foi, e tem sido, liberar os trapassageiros embarcados. No primeiro trimestre do
jetos. Assim o tráfego fica mais rápido e pode se conano passado, foram transportados 688,3 milhões de
trolar melhor as partidas e os intervalos. Isto para
pessoas. No mesmo período de 2014, este número
conseguirmos atender a 9,8 milhões de embarques
chegou a 702,6 milhões.
diários no sistema sobre pneus.
31
130/2014
Aqui cabe uma pergunta: se fosse tão fácil “pinIsto significa que a produção de programas e equipatar” as faixas, por que não se fez antes?
mentos semafóricos terá suas informações públicas, o
Chegamos a este mês de abril com 324 quilôque abrirá a concorrência e irá baratear os custos.
metros de faixas exclusivas implantadas, mais do
Não podemos ficar reféns da simples abordagem
que o dobro do previsto. Algumas das intervenções,
sobre pneus. A questão crucial é que o modal sobre
como em todo processo, chegaram a ser questionatrilhos, trens e metrôs, deveria responder pelo transdas. Nossa postura tem sido de dialogar com esses
porte de massa. Não somente porque em qualquer
interlocutores e, contando com sua colaboração, teparte do mundo é assim, mas porque é tecnicamente
mos aprimorado as modificações, buscado eliminar
mais razoável.
possíveis gargalos no fluxo de veículos e atendido da
Aí nos deparamos com a ínfima realidade de a
melhor maneira às demandas.
cidade de São Paulo possuir 74 quilômetros de meUm aspecto que precisa ser estrô. Nós nos vemos na circunstânclarecido é que não somos contra
cia invertida, onde os ônibus têm
A cidade de São
o carro e seus usuários. Em nossa
de responder por 81% das viagens.
escala de prioridade está o pedestre
Ônibus foi feito para ser transporPaulo possui apenas
à frente, que é o mais frágil nesse
te auxiliar e não o contrário. É fato
74 km de metrô,
contexto, seguido pelo ciclista, paspositivo que estão em andamento
sageiros do transporte coletivo e os
várias obras do Metrô, mas, além
numa circunstância
dos demais veículos.
de atrasadas, são lentas.
invertida, os ônibus
Mas o fato é que, por sua caracÉ questão central nesse debaterística egocêntrica, o automóvel
te
se
considerar a abrangência da
têm de responder
particular precisa ser acomodado
Região Metropolitana de São Paupor 81% das viagens. lo. Refiro-me a 39 municípios e 20
em seu lugar para não prejudicar a
coletividade. Afinal, quem tem um
milhões de habitantes que se moviÔnibus foi feito
veículo próprio ainda pode optar
mentam para além de suas divisas.
para ser transporte
por um caminho, o passageiro do
Sem uma planificação regional que
ônibus não tem outra alternativa.
considere a integração desse pequeauxiliar e não o
no universo, não será possível encontrário. É fato
frentar o problema por completo.
Âncora tecnológica
Um bom exemplo dessa visão
positivo que estão
Um aspecto fundamental nesse
ampliada é a integração do Bilhete
em andamento
processo é a intensa utilização da
Único em suas versões Convenciotecnologia para dar conta da circunal, Mensal e Semanal (futuravárias obras do
lação em todo o município. Tanto
mente teremos o Diário) que está
Metrô, mas, além de sendo utilizado nos dois modais de
para as faixas, quanto para os corredores, estamos investindo em esatrasadas, são lentas transportes (ônibus e trilhos) existudos e na futura adoção de dispotentes em São Paulo. Cabe lemsitivos para o controle das partidas
brar que, em maio, o Bilhete Único
e dos intervalos dos ônibus. Da mesma forma, tendo
completará dez anos de existência.
como base dados obtidos via GPS, será possível estaRetomando a ideia inicial, precisamos, os agentes
belecer dinâmicas de operação remota.
públicos e privados, ter a consciência de que não há
Essa modernidade se estenderá também aos 13
solução única ou que atenda a apenas um setor sonovos terminais, de onde partirão os veículos de
cial ou produtivo.
maior porte para cumprir viagens mais longas. Isto
Ou entendemos que a priorização tem de ser pluestá agregado aos futuros 150 quilômetros de correral, ou nos perderemos por não haver outro caminho
dores de ônibus, à esquerda das grandes vias.
a seguir.
Neste contexto, também estão 4.800 dos 5.690
cruzamentos que possuem semáforo. Eles estão
* Jilmar Tatto é secretário municipal de Transportes
de São Paulo. Pesquisador na Gestão de Automação
passando por completa revitalização, sendo que os
(Gaesi) e TI (Grupo de pesquisa vinculado ao
principais pontos serão controlados para que sejam
Departamento de Energia e Automação Elétricas
criadas as chamadas ondas verdes, facilitando o fluda Escola Politécnica – Poli – da Universidade de
xo onde for necessário.
São Paulo, USP). Mestrando na Poli em Sistemas de
Uma outra novidade é que a Prefeitura está inauguTransportes Inteligentes.
rando o procedimento do protocolo aberto, o gateway.
32
Capa
André Gomes de Melo/SASDH
Cerimônia da instalação de UPP Turano
Entrevista com Ignacio Cano
“A crise das UPPs é parte de
uma crise mais ampla”
N
Cláudio Gonzalez e Caíque Tibiriçá*
o último dia 2 de abril, Princípios
esteve no campus da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),
na capital fluminense, para conversar com o sociólogo espanhol Ignacio
Cano, professor associado e pesquisador daquela universidade e coordenador do Laboratório de Análise
da Violência (LAV). No mesmo dia da entrevista, a
imprensa repercutia a prisão, por associação ao tráfico, de cinco policiais que atuavam na Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) na favela da Rocinha, on-
de, no ano passado, o pedreiro Amarildo foi vítima
de violência policial e está até hoje desaparecido. A
descoberta da relação dos policiais da Rocinha com
traficantes é mais uma de uma série enorme de episódios negativos envolvendo as UPPs. O último caso
de maior repercussão foi a morte do jovem Douglas
Rafael, dançarino de um programa de auditório da
Rede Globo. Ele foi encontrado morto em uma creche na comunidade pacificada Pavão-Pavãozinho,
onde também foi assassinado outro jovem, Edilson
da Silva dos Santos. Semanas antes, já havia ganhado as manchetes a morte da auxiliar de serviços ge-
33
Foto: Cláudio Gonzalez/Princípios
130/2014
rais, Claudia da Silva Ferreira, arrastada por um carro da PM após ser baleada no Morro da Congonha,
em Madureira. A cada dia novos casos de violência
em áreas pacificadas do Rio de Janeiro são noticiados, revelando o quanto a questão da segurança pública é complexa e de difícil solução.
Para o professor Ignacio Cano, essa crise é parte
de uma crise mais ampla da política de segurança do
Rio que fez com que resultados positivos conquistados
nos últimos anos com as UPPs perdessem fôlego. Cano acredita que as UPPs podem continuar desempenhando um papel positivo se o governo corrigir rumos.
Muitas ideias para isso foram apontadas no estudo
que o professor coordenou através do LAV e que em
2012 foi publicado com o título Os Donos do Morro.
Para Cano, o sucesso global do projeto passa pela
transformação das políticas de segurança, saindo da
visão de que estamos em uma “guerra”, para uma
visão da polícia como prestadora de serviços, próxima e simpática à população local. “A UPP ficou no
estágio inicial: ocupou territórios, foram colocados
policiais lá, mas não se avançou suficientemente na
mudança das relações e no diálogo entre a polícia e a
comunidade”, diz o professor.
Leia abaixo a entrevista completa:
Princípios: O projeto das UPPs está em crise?
Ignacio Cano: Sim, definitivamente. Não é o único que
está em crise. Há uma crise da segurança em geral.
Houve uma redução de homicídios bastante pronunciada entre 2009 e 2012. Num primeiro momento, as
UPPs promoveram, de fato, uma situação de menos
violência no Rio de Janeiro. Mas em 2012 já começa a
subir na baixada fluminense e, em 2013, sobe em todo o estado. Os roubos, que também haviam diminuído nos últimos anos, voltaram a crescer. Houve também crescimento nos índices de outros crimes, mas
esses dois que citei – roubos e homicídios – são particularmente graves, não só pelo impacto que geram
na sociedade, mas porque são crimes pelos quais a
polícia é premiada quando diminuem. Ou seja, se eles
não conseguem reduzir nem os crimes pelos quais são
premiados, com certeza estamos numa situação de
crise. E a UPP é uma crise dentro da crise mais ampla.
Princípios: O senhor coordenou uma pesquisa
muito importante sobre as UPPs, que resultou
no relatório Os Donos do Morro. Esse estudo foi
levado em conta pelo governo estadual para
corrigir rumos do projeto?
Ignacio Cano: A gente vem discutindo com eles durante um tempo, inclusive depois do relatório fizemos
uma consultoria para o governo. Produzimos um
34
O nosso estudo mostra que
o impacto da UPP não se dá
apenas dentro da comunidade, mas
no entorno também, de forma que,
quanto mais espalhadas estiverem as
UPPs, maior vai ser o impacto global.
Ignacio Cano
sistema de monitoramento e avaliação para as UPPs,
mas nunca foi implantado. A conjuntura mudou e,
enfim, agora, em ano eleitoral, com certeza nada vai
acontecer. Diante da crise nas UPPs, o que o governo
fez? Chamou de volta o modelo do BOPE [Batalhão
de Operações Policiais Especiais]. Chamou oficiais do
BOPE, incluindo o major Edson, da Rocinha, tristemente conhecido no caso Amarildo. Porque a ideia
que eles ainda têm é: se dá errado, se não funciona,
vamos voltar ao que a gente já fez. Então, a transformação foi muito parcial e a gente avançou menos
justamente em áreas onde era mais importante avançar. Algumas coisas eles implantaram, para sermos
justos, mas muitas outras não. As questões centrais
ficaram de lado.
Princípios: Qual, por exemplo?
Ignacio Cano: Uma coisa que a gente sempre defendeu
foi que a UPP deveria se localizar em função do nível
local de violência. Isso significaria várias coisas. Em
primeiro lugar, o impacto maior na taxa de homicídios. Em segundo lugar, o nosso estudo mostra que o
impacto da UPP não se dá apenas dentro da comunidade, mas no entorno também, de forma que, quanto
mais espalhadas estiverem as UPPs, maior vai ser o
impacto global. Se você concentra todas elas, o impacto vai ser reduzido. Em terceiro lugar, talvez mais
Capa
importante, é que, se você escolhe a UPP de acordo
com o nível local de violência, você está mandando
um sinal para o mundo do crime no sentido de que
quem usar muita violência vai perder o território. E
o território é a base do negócio no crime do Rio de
Janeiro. Domínio territorial para venda de drogas e
etc. Então eu acho que isso poderia induzir as facções criminosas a trabalharem com níveis inferiores
de violência. Mas, enfim, isso, por exemplo, nunca foi
ouvido. O governo preferiu continuar com o planejamento que visa a algumas áreas da cidade. Eu acho
que o que está por trás deste planejamento é uma visão, um projeto mais amplo para a cidade do Rio de
Janeiro, como um centro internacional de turismo e
de negócios. Para esse projeto o que acontece na Zona
Oeste é quase irrelevante e é por isso que as UPPs estão onde elas estão hoje, infelizmente.
as mesmas operações que o BOPE. E é uma polícia de
investigação, civil. Desde quando blindado investiga?
Portanto, o que está militarizado não é apenas a PM,
é o conjunto das políticas de segurança. A UPP seria
uma grande chance para transformar esse cenário e
a gente ficou muito aquém nesse projeto de transformação.
Além disso, a formação policial ainda é muito deficiente e muito ancorada no velho modelo. Formação
policial ainda é muito exercício físico, que sequer é
visto como uma ferramenta de saúde pública, de saúde no trabalho. É simplesmente um critério de entrada para eles serem muito másculos.
Princípios: Existe uma evidente estratégia de colocar soldados novos, supostamente “ainda não
corrompidos”, para atuar nas UPPs. Como o senhor avalia isso?
Princípios: Para priorizar os corIgnacio Cano: Optaram por soldados
redores por onde circulam turecém-formados desde o início, pela
ristas e onde as empresas se
ideia de que seriam menos corrup“Para nós e para
instalam?
tos etc. Mas não no comando. CoIgnacio Cano: Não qualquer empremo disse, cada vez que há crise eles
um setor dentro da
sa. Empresas financeiras. A indúschamam para comandar as UPPs
polícia, as UPPs são
tria, por exemplo, não é tão impessoas com o perfil mais operacioportante. A implantação em áreas
nal, mais tradicional, mais do BOuma grande chance
específicas vai ao encontro de um
PE. Alguns de fato vêm do BOPE.
para transformar
projeto de cidade que esse governo
Durante um tempo, por exemplo,
tem que busca transformar o Rio
o comandante das UPPs, o coronel
o modelo de
de Janeiro em um centro internaPaulo Henrique, era alguém saído
segurança e entrar
cional de turismo e também de nedo BOPE. Enfim, o BOPE tem que
gócios e comércio.
participar na fase inicial, não há
em um outro
dúvida nenhuma. Mas, a ideia de
paradigma, no qual
Princípios: E qual deveria ser o
que quando temos crise chamamos
eixo do projeto?
os caras do BOPE significa que não
o objetivo seja a
Ignacio Cano: Para nós e para um seconseguindo mudar o moproteção das pessoas estamos
tor dentro da polícia, as UPPs são
delo, não é? E que os policiais não
uma grande chance para transforacreditam no projeto UPP. Segundo
e não a guerra ao
mar o modelo de segurança e pamostram várias pesquisas do Centro
crime”
ra reformar a polícia. Para sair da
de Estudos de Segurança e Cidadavelha guerra contra o crime, que
nia (CESeC), a maioria dos policiais
produziu e produz ainda tantas vítimas e que nunca
de UPP, na verdade, preferia trabalhar fora delas. Isso
trouxe nenhum benefício para a cidade, e entrar em
é um problema muito sério para a legitimidade interum outro paradigma de segurança no qual o objetivo
na do projeto.
seja a proteção das pessoas e não a guerra ao crime.
Princípios: Isso dificulta o estabelecimento de
Princípios: Seria uma visão desmilitarizada da
laços com a comunidade, que seria um diferenpolícia...
cial da UPP?
Ignacio Cano: Desmilitarizada, sim. Não só da polícia,
Ignacio Cano: Exatamente. A relação com a comunidamas da Secretaria (de Segurança Pública). Hoje em
de em alguns lugares é razoável; em outros, é tensa;
dia discute-se muito sobre desmilitarização da PM.
e em alguns lugares é catastrófica! O que ocorreu em
Eu sou a favor! Os praças também são a favor. Agora,
Manguinhos, por exemplo, onde houve vários ataa gente vê a Polícia Civil no Rio, por exemplo, com um
ques recentes, teve muita repercussão, mas as pesveículo blindado exatamente igual ao do BOPE, e faz
soas não estão sabendo que há pelo menos um ano
35
130/2014
estamos recebendo denúncias gravíssimas de intervenções policiais, morte de garotos... Então, se a gente não consegue fazer com que a comunidade perceba
essa polícia como própria, como uma polícia que está
lá para protegê-la, não resolve nada.
Os que apoiam a UPP apoiam criticamente. E não
há uma opinião homogênea. Os jovens, por exemplo,
não gostam porque não conseguem fazer funk, porque a polícia continua achando que o funk é criminoso, porque não pode ter barulho depois de um certo horário. Então a juventude não gosta. As pessoas
mais idosas, mais pacatas, gostam mais. Mas é uma
visão crítica.
ferência de renda nessas áreas porque as pessoas com
mais recursos ajudam a financiar serviços públicos dos
quais não usufruem. Já na segurança pública, há uma
dupla concentração porque a polícia é paga por todos,
mas quem mais usufrui dessa polícia são os setores privilegiados. Eles têm acesso à segurança privada, mas
ainda exigem e conseguem que o aparato público de
segurança proteja primordialmente as áreas nobres. Se
fôssemos transportar este exemplo para a educação é
como se a classe alta mandasse os seus filhos para a
escola privada, mas ainda assim exigisse que a escola
pública estivesse localizada na zona sul. É uma lógica
de dupla concentração.
Princípios: Não há nenhuma iniciativa para tentar superar este problema de animosidade entre polícia e comunidade?
Ignacio Cano: As iniciativas são localizadas. Depende
mais do comando da UPP local do que propriamente
de uma orientação geral. O comando da UPP ainda
é central na relação entre a polícia e a comunidade.
Vou citar um exemplo que vivenciamos. Pediram para
mediarmos uma situação na UPP do Fallet, porque a
situação lá era catastrófica entre a comunidade e a polícia. Houve morte de garotos e outros problemas que
acompanhamos de perto. E aí fizemos uma mediação
num contexto muito tenso. Falamos para a comunidade: “essa polícia está aqui pra proteger vocês.” Quase
fomos linchados depois de dizer isso. Porque não correspondia ao que a comunidade sentia. A situação melhorou depois com a mudança do comando da UPP.
Então é um desafio enorme conseguir que a comunidade interiorize que aquela polícia é para eles.
Outro problema que nós temos é o seguinte: não há
um esforço de integração das UPPs com o resto da polícia. E isso precisaria acontecer, pois não dá para manter
a UPP indefinidamente. Pra se ter uma ideia de como
é insustentável a situação, o número de policiais por
habitante no Rio é entre dois e três para cada mil habitantes no conjunto do Estado. Nas UPPs, esse número
vai para dezoito, dezenove. Então, isso em longo prazo
é insustentável. Não vai ter policial suficiente para a
demanda.
Princípios: Como o senhor avalia a ordem de busca coletiva que um juiz concedeu autorizando a
polícia a entrar em qualquer casa, sem motivo
específico, no complexo de favelas da Maré?
Ignacio Cano: Um escândalo. É inadmissível! Não é a
primeira vez que isso acontece e há pressão sobre os
juízes para que eles deem este tipo de autorização. Eu
sei porque os juízes já me contaram. Não é todo dia,
mas não é uma coisa excepcional. Milhares de pessoas moram lá e a polícia pode invadir qualquer uma
dessas casas. Imagine se isso acontecesse no Leblon!
Cairia a República. Pelo menos o governo do Estado
do Rio cairia, porque é inadmissível, é um desmantelamento do Estado democrático.
O mandado de busca, por definição, é um mandado específico. Se não, não seria mandado de busca,
seria livre autorização da polícia para agir onde ela
quiser. Então, o mandado tem que dizer: “neste lugar,
nesta casa, essa pessoa, em função desta investigação”. Se o juiz concede um mandado genérico é como
se ele não tivesse mais mandado, é como se não tivesse mais controle judicial.
O mandado de segurança coletivo é um acinte
contra o princípio básico da presunção de inocência
e da preservação dos direitos individuais em face
da investigação. Esse equilíbrio que tem que haver
entre os direitos individuais e investigação policial.
Aí não tem nenhum equilíbrio, e as pessoas acham
normal. Nós tivemos, pelo Conselho, reuniões muito duras com o comando anterior da Polícia Militar
e eles diziam “professor, o que vocês querem que a
gente faça? Que a gente não cumpra com o nosso
trabalho?”. Nós retrucamos: “o trabalho de vocês
não é violar lei, violar Constituição!”. E eles insistem: “Não, mas tem um monte de arma aí que a
gente tem que procurar.” Mais grave ainda. Não é só
uma coisa ilegal, imoral, mas é uma burrice profunda, porque o trabalho da polícia depende fundamentalmente da confiança das pessoas, das informações
que as pessoas fornecem.
Princípios: E os policiais que não estão nas UPPs
estão concentrados nos bairros de classe média. O resto da periferia fica descoberta.
Ignacio Cano: Exatamente. E, quando a gente pensa a
cidade, uma coisa interessante é a seguinte: pessoas
com maior poder aquisitivo, das classes média e alta
ajudam a pagar com seus impostos a escola pública e o
hospital público, mas, em geral, não os utilizam, preferem colocar os filhos em escola particular e pagar plano
de saúde. Assim, pode-se dizer que há uma certa trans-
36
Fernando Frazão/Agência Brasil
Capa
Casos ruidosos
como o desaparecimento do auxiliar de
pedreiro Amarildo de
Souza desgastaram
a imagem da polícia
pacificadora junto
à população. Mas
para Ignacio Cano,
o fim das UPPs não
resolve o problema.
É preciso corrigir os
rumos de sua implementação
Princípios: O crescente discurso de direita contra os direitos humanos, do tipo que espalha
absurdos como “bandido bom é bandido morto” e defende grupos de justiceiros... de certa
forma acaba referendando este comportamento da polícia, não é mesmo?
Ignacio Cano: Sem dúvida. Tem uma pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, publicada em
2008, que mostra que 32% dos brasileiros concordam
totalmente com a frase “bandido bom é bandido morto” e 11% concordam parcialmente. Ou seja, temos
43% da população apoiando extermínios. Então, caras como (o deputado Jair) Bolsonaro não se elegem
a si mesmos, tem um monte de gente que os escolhe
e isso é um processo de transformação que a gente
precisa encarar. Agora, se eu sou um gestor da segurança e sei que a vida dos meus policiais e a tranquilidade dependem da confiança das pessoas, se eu entro
chutando porta, eu estou atirando no meu próprio pé.
Então, inclusive do ponto de vista da segurança mais
tradicional, fazer isso é uma grande burrice. Mas eles
não conseguem sair disso, porque as elites, e parte da
população, acham que é isso mesmo: segurança pública é guerra, e guerra se faz assim. Tem que chutar
porta, tem que procurar as denúncias seja lá onde for.
Isso é um erro estratégico.
Princípios: Puxando para um exemplo recente,
com isso que está acontecendo no complexo da
Maré você acha que o governo age certo mandando tropas federais para lá?
Ignacio Cano: Eu acho que o Exército não tem uma
função de segurança pública, é um desvio de função.
A doutrina é diferente. Há muitos paradoxos, porque,
provavelmente, o exército brasileiro atua no Haiti respeitando mais os direitos humanos dos haitianos do
que várias polícias militares no Brasil. Então há paradoxos, mas a função do exército não é essa, de atuar
como polícia. Não se deve chamar, a princípio, forças
militares para a função de segurança. Outra coisa é
a força nacional. Por exemplo, a Polícia Federal etc.
Agora, não é segredo para ninguém que a intervenção
na Maré, basicamente, é para garantir segurança na
Copa do Mundo e no deslocamento das pessoas entre
o aeroporto e a cidade. É isso.
Princípios: Mas isso não é necessário?
Ignacio Cano: É, mas a gente não pode acreditar que
foi uma operação para melhorar a segurança do Rio
em geral, porque é algo pra Copa, eleição, enfim.
Vamos ver até quando durará. Não é uma operação
de longo prazo, é uma operação de curto prazo. O
precedente do Morro do Alemão acho que é muito
esclarecedor. Na época, eu me manifestei contra a
operação do Alemão e fui uma voz extremamente
minoritária. Muita gente falou “Estamos tomando o
quartel--general do crime”. Continuamos nessa lógica militar. “Eles são o nosso inimigo é nós temos
que tomar o quartel general.” Entrar no Alemão supôs: trazer forças militares durante muito tempo e
comprometer um contingente militar muito elevado
– o que não vai resolveu a situação porque o Alemão
37
130/2014
hoje continua fora de controle. Portanto, investiram
com isso. Mas o problema é que se a gente aceita que
recursos que poderiam ser usados para criar muitas
melhorias urbanas e sociais estão atreladas à interUPPs em locais muito violentos (não que o Alemão
venção de segurança e a intervenção de segurança é
não seja) e não resolveram o problema. Mas, na épomuito desigual, a gente tá aumentando a desigualca, a opinião pública apoiou porque achava que era
dade. Foi o que eu falei para o Ricardo Henriques
a tomada dos territórios centrais do inimigo. Então,
na ocasião: “Ricardo Henriques, se eu sou um jovem
a gente tem que acabar com essa lógica. A lógica da
da zona oeste, que razão eu teria pra apoiar as UPPs
intervenção tem que ser para onde a gente pode prequando os investimentos sociais vão ser dirigidos,
servar o maior número de vidas. Onde vai conseguir
sobretudo, às áreas pacificadas que nunca vão ser
diminuir o número de homicídios. Caso contrário,
a minha? O risco, inclusive, mais macro das UPPs
vamos apenas procurar o efeito simbólico de golé tornar o modelo de segregação do Rio, que é um
pear. Inclusive nas últimas semanas e meses, com
modelo muito particular, com pequenos territórios,
essa crise das UPPs e da segurança pública do Rio
de alta e baixa renda, convivendo em espaços rede forma mais ampla, muita gente, muitas matérias
lativamente reduzidos. Segue o modelo tradicional
jornalísticas, estão nessa linha de “ah, tem que dar
de centro e periferia, com o centro pacificado com
o troco.” Não existe troco, não estamos combatendo
maiores condições de vida e uma periferia violenpela honra dos exércitos. Estamos
ta e pobre. E em termos das UPPs
combatendo pela segurança da
gera também, sobretudo em áreas
população. Aliás, “combatendo”
nobres, uma revalorização dos ter“Sou crítico dessa
nem é a palavra certa.
renos muito grande, favorecendo a
lógica de que as
especulação imobiliária.
Princípios: Aquela segunda fase
Essa intervenção do Estado faz
UPPs devem ser
das UPPs de levar serviços púcom que o valor do imóvel, o valor
privilegiadas com
blicos para a comunidade não
do território, o preço do solo, subam
está sendo efetivada?
muito e corre o risco, também, de
investimentos
Ignacio Cano: Não. Em algumas comudar as populações. Expulsar as
sociais. Se a gente
munidades houve um investimenpopulações mais pobres e atrair poto razoável; em outras, um pepulações mais ricas. Esse processo
só investe onde está
queno investimento; em muitas,
pode acabar nisso, centro pacificapacificado significa
não houve investimento nenhum.
do e periferia pobre e violenta. Mas,
Agora, eu sou crítico também desagora, até esse centro está em crise.
que estamos
sa lógica. E venho manifestando
A crise atual não é só uma crise ao
condenando as áreas modelo seletivo, é uma crise no coisso há algum tempo. Já conversei sobre isso com o Ricardo Henração, do cerne do projeto que está
não pacificadas,
riques, da UPP Social. Eu acho a
agora sofrendo retrocessos, casos de
que são a maioria,
lógica de “uma vez pacificado vaviolência, mortes de policiais, mormos investir socialmente” é uma
tes de civis.
a continuarem na
lógica equivocada. Primeiro: não
violência e miséria”
é verdade. Toda a vida investiu-se
Princípios: O projeto da UPP teem locais não pacificados. Favela,
ve inspiração em experiências
bairro ou parque, em qualquer luocorridas em outros países.
gar cabia oportunidade de investimento público. E,
Apenas copiaram o modelo ou adaptaram pade fato, as melhores condições de habitabilidade, de
ra a realidade do Rio? Ele poderia ser aplicado
saneamento das comunidades se dão sem pacificatambém em outras cidades brasileiras?
ção nenhuma. Então, não é verdade que é preciso ter
Ignacio Cano: Acho que ele foi concebido, sim, para
UPP paras investir. Dois: se a gente só investe onde
a realidade do Rio. Tanto é que quando as pessoas
está pacificado significa que estamos condenando
perguntam para a gente “será que não daria pra
as áreas não pacificadas, que são a maioria, a conimplantar em tal lugar?” dizemos que só faz sentinuarem na violência e miséria. Então, a lógica de
tido UPP se houver controle territorial por grupos
investimento deveria ser um investimento de acordo
armados e tiroteios constantes. Se você não tiver
com as carências das pessoas e não casada com a
essa situação, a UPP é um investimento muito caro
lógica da pacificação. Sempre dissemos: “olha, tem
e que não necessariamente resolve seus problemas.
que entrar com polícia só no início, mas tem que enAs UPPs são um projeto para combater o tráfico,
trar com escola, com hospital...” Todos concordamos
basicamente para o tráfico.
38
Capa
Outro tipo de dominação que nós temos no Rio:
grupos de extermínio. O grupo de extermínio não
controla a entrada nem a saída do território, mas está
todo dia lá com o fuzil. O grupo de extermínio vai de
noite lá e mata quem acha que tem que matar. Então, colocar UPP, por exemplo, em uma área de extermínio, provavelmente não vai conseguir evitar essas
mortes e vai sair muito caro.
Um outro problema do projeto é que a Polícia Civil
nunca foi incorporada nele. Sempre foi, e ainda é, um
projeto da PM. Claro que a PM tem que ter um papel
central, mas a Polícia Civil, a investigação, tem que ter
um papel no projeto. Sugerimos ao governo a criação
de algumas delegacias especiais de investigação para
UPP, para pegar os casos mais graves e resolver logo.
Eles nem responderam à sugestão. Enfim, acho que
o projeto foi desenhado, sim, para a nossa realidade,
mas continua no piloto automático, sem ajustes, sem
uma melhor focalização. E o que nós estamos vendo
hoje é o desgaste de um projeto que não conseguiu ir
para onde deveria. Mas, certamente, é uma alternativa muito melhor do que a gente tinha antes.
Princípios: A política de segurança pública do
governo do Rio hoje está basicamente focada
nos problemas das comunidades. Vocês, no grupo de estudos daqui da UERJ, têm propostas ou
políticas de segurança específicas para o conjunto da cidade?
Ignacio Cano:: Sim, a gente faz muitas propostas. E,
embora a UPP seja mais visível, tem outras políticas
também muito importantes. A criação de metas para
os policiais para reduzir três indicadores de criminalidade é um dos exemplos. E a introdução das mortes
pela polícia no indicador de homicídio foi essencial
para inibir a violência policial. Em 2007, a polícia
do Rio reconheceu que matou 1300 pessoas. Matou
muito mais, com certeza, mas reconheceu 1300 casos.
No ano passado, foram 400. O número ainda é elevadíssimo, maior do que em qualquer outro Estado,
mas houve uma redução importante. Em comparação
à população e ao contingente policial, a PM do Rio
mata muito mais do que a de São Paulo. A estratégia
aqui é a guerra.
As pessoas não têm muita noção, mas foi essencial
a criação da divisão de homicídios. Tem várias políticas que estavam dando certo, o problema é que ficaram no piloto automático, ninguém avaliou, ninguém
Naldinho Lourenço
Princípios: Várias unidades de UPP foram atacadas. Existe uma lógica comum para estes ataques ou cada local tem uma motivação?
Ignacio Cano:: É uma história complicada. Ataques
à UPP existem há muito tempo, não são de agora.
Agora concentrou, mas a percepção é de que antes
não existia nada e agora estão atacando todas as
UPPs. Existiram ataques sobretudo em determinadas regiões: Alemão, Manguinhos e acho que Lins. O
governo apresentou isso como um ataque contra as
UPPs no seu conjunto, e usou isso como argumento
para discutir sobre ajuda federal e, no final, a ajuda
federal nem sequer foi para essas UPPs atacadas, foi
para a Maré. É preciso olhar para isso com muito cuidado, porque, por exemplo, da outra vez a situação
que deflagrou a intervenção no Alemão, na ocupação
de 2011, foram aqueles incêndios a carros. Estavam
queimando vários carros em vários lugares da cidade. Isso foi apresentado como um ataque às UPPs.
Isso não é uma versão muito sustentável. Primeiro,
porque se tivessem decidido atacar as UPPs, teriam
atacado antes das eleições, para colocar o governo
contra a parede, não depois. E, segundo, porque
aqueles ataques não eram contra PMs da UPP. Não
faz sentido queimar carro em um lugar qualquer da
cidade para atacar a UPP. Mas foi essa a desculpa que
o governo usou.
Vista da sede provisória do BOPE, no alto do Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas, zona norte do Rio
39
130/2014
Princípios: O caso da ajudante Cláudia Silva, arrastada por um carro da PM, se não tivesse sido
filmado a história seria outra, não é mesmo?
Ignacio Cano: Completamente. Não teria dado a repercussão que teve, pois a cobertura da imprensa tende a
ser muito antidemocrática. Ela privilegia crimes contra
pessoas de alta visibilidade, em áreas nobres da cidade.
E sempre foi assim no Rio de Janeiro. Lembro que, na
época do Garotinho, morreu uma menina filha de um
joalheiro. Aquilo pautou a imprensa durante semanas.
E pauta a própria política pública, não só a imprensa.
Em nenhuma outra área eu acho que a imprensa
tem tanto poder para pautar política pública. Esse poder tem que ser usado, mas tem que ser de uma forma
mais criteriosa, privilegiando informações mais democráticas e que abordem a conjuntura da população, e
não só o caso específico. A história tem que servir para
exemplificar um fenômeno e não paPrincípios: A corrupção policial
ra nos concentrarmos apenas nela.
é um problema crônico no Rio?
Outro problema é o discurso
“A mídia tem um
Ignacio Cano:: É um problema não só
mais truculento, da repressão, do
papel central na
da polícia, mas do aparato do Estado
endurecimento penal. Esses prono geral. Eu acho que a corrupção é
gramas especiais de segurança na
divulgação das
endêmica no Brasil, em especial no
TV costumam ser uma tragédia.
denúncias. Mas,
Rio de Janeiro. Tem vários indicaPerpetuam essa guerra ao crime,
dores disso. Os dados da Ouvidoria
essa política falida, estimulam a
por outro lado, tem
de Polícia mostram que a proporção
violação dos direitos humanos, a
um papel negativo
de casos de corrupção mais alta é no
satanização dos criminosos, o desRio de Janeiro. O INSS, por exemprezo pela vida dos outros, desde
nessa cobertura
plo, tinha uma força tarefa contra a
que o outro seja considerado inimiainda muito
corrupção, e a corrupção mais elevago. É preciso combater este tipo de
da era também no Rio.
programa pela via da informação e
sensacionalista e
da educação. Não é possível proimuito pautada para
Princípios: Como você vê o papel
bi-los, então tem que esperar um
da mídia na cobertura desses
dia em que as pessoas não assistam
casos individuais”
temas policiais e de segurança
mais e as televisões percebam que
pública?
outros tipos de programa têm mais
Ignacio Cano: É ambíguo. Por um lado, se não tivésseaudiência do que esses.
mos a mídia, estaríamos muito piores. A mídia tem
um papel central na divulgação das denúncias. Mas,
Princípios: O Laboratório de Análise da Violência
por outro lado, tem um papel negativo nessa coberestá preparando mais alguma pesquisa sobre a
tura ainda muito sensacionalista e muito pautada
situação da segurança pública?
para casos individuais. Para eles, importa mais os
Ignacio Cano: Estamos fazendo uma pesquisa sobre o
casos de grande repercussão do que os índices, por
impacto da violência no acesso à saúde nas favelas.
exemplo. Devia ser o contrário. Porque nossa seguOutra sobre o uso da força pela polícia, entrevistando
rança depende muito mais da estatística dos homicípoliciais. E estamos preparando também uma pesdios do que dos casos de grande repercussão, mas a
quisa sobre programa de prevenção ao homicídio na
mídia procura uma história, uma história dramática,
América Latina. A gente nunca para.
e pauta a cobertura por isso. E o que acontece em
*Cláudio Gonzalez, editor executivo de Princípios, e
geral, com algumas exceções, é que os casos envolCaíque Tibiriçá, coordenador da seção fluminense
vendo pessoas de maior poder aquisitivo, de maior
da Fundação Maurício Grabois, entrevistaram
visibilidade, têm uma cobertura mais ampla. Então,
o professor Ignacio Cano no campus da Uerj, na
um roubo numa área nobre gera muito mais repercidade do Rio de Janeiro, em 2 de abril de 2014
cussão do que numa área pobre.
corrigiu. E eu acho que houve uma certa ingenuidade
em pensar que essas políticas sozinhas iam conseguir
uma diminuição dos índices ad eternum. Por exemplo,
se eu crio premiação policial para diminuir determinado crime, vou conseguir que a polícia focalize sua
atividade nesses indicadores. O que é bom. Agora, depois que a polícia fez isso, é preciso dar passos adiante. Não é porque você continua premiando que os
índices vão continuar diminuindo necessariamente.
Então, acho que houve esse problema.
Outra questão: falta uma política para a área de
milícia, para recuperar o controle de território da milícia. Falta uma política para transformar a polícia e
esse paradigma que está aí de vez num paradigma de
proteção da comunidade. Então, falta muita coisa.
Mas a gente estava indo num rumo positivo, agora a
gente não tem mais certeza disso.
40
Capa
Cidades
incompletas
Em busca de cidades
inclusivas e integradas
(na contramão da lógica
capitalista) – com um
ordenamento territorial
social e ambientalmente
justo – é preciso resolver pontos
fundamentais como o fato de
que o planejamento deveria ser
uma questão de Estado e não
de governos
A
Ana Paula Bueno*
cidade – palavra originária do latim civitas/
atis – é o locus privilegiado da vida social que
produz um modo de vida que se constrói
em espaços cada vez mais concretados e
desumanizados. Para entendê-la é preciso
estudos multidisciplinares que buscam,
entre outros objetivos, propor cidades
mais solidárias. Devido às constantes transformações
das cidades mudaram-se conceitos, acrescentaramse adjetivos, mas a palavra em si se manteve por todos esses séculos desde a Antiguidade.
Em contraponto ao campo, o urbano – também
do latim ubs/ urbis –, entendido mais como fenômeno e não como objeto, seria a qualidade de um
tipo de cidade, caracterizando-a por sua dimensão,
população, formas e funções.
Em linhas gerais, para se ter uma referência, foi
mediante as revoluções técnicas ocorridas nos séculos passados, que proporcionaram amplo desenvolvimento das cidades e, após a Primeira Revolução Industrial (1760-1840), forte processo de urbanização
no mundo. Entretanto, o processo de urbanização se
deu principalmente a partir dos anos 1940. Daí surge o termo metrópole (do grego mhtro¿-polij “cidademãe”, “capital”) (1), que para os dias atuais se refere
a grandes cidades, algumas sendo relativamente as
mais importantes para seus países, estado ou região.
A gênese das grandes cidades decorre da necessidade de agrupar contingentes de trabalhadores próximos das indústrias, num movimento denominado
por Marx como processo de acumulação primitiva.
Assim, o processo de urbanização está diretamente
41
130/2014
ligado à industrialização ocorrida no mundo. Em
volvidas para a época, servindo de atrativo para a alta
países desenvolvidos, esse processo se deu de modo
industrialização e consequente urbanização, cujo marmais lento por diversos fatores, inclusive teve cresco se deu com relevância a partir da década de 1970.
cimento retardado pela Segunda Guerra Mundial.
Tal processo expansionista causou uma explosão de
Com isso, cidades da Europa tiveram baixo crescicrescimento desordenado da metrópole paulistana,
mento da população urbana. Enquanto na antiga
recebendo migrações do interior do Brasil e de outros
União Soviética, mais especificamente em Leninpaíses. A capital cresceu de tal modo que varia sua cogrado e Moscou, observou-se o inverso, ou seja, alto
locação, mas permanece há décadas entre as primeiras
crescimento da população urbana com taxas próxi10 maiores cidades do mundo em área e população.
mas às de cidades da América Latina, Ásia e África
Milton Santos trata da fragilidade das cidades
– numa média de 4,5% nos anos 1950, 1960 (2).
menos estruturadas em resistir aos novos fatores de
Interessante observar que na
transformação, afirmando que “O
América Latina o alto crescimento
crescimento da população urbana
populacional dos centros urbanos
é muito mais nítido e acelerado
A necessidade
se deu principalmente pelo êxodo
nos países subdesenvolvidos que
de ampliação de
rural, causado por um desequilíbrio
nos países desenvolvidos” (SANna economia, com maiores investiTOS, 2008).
redes de conexão e
mentos na indústria, por um lado,
Tais considerações são imporrápida mobilidade
e, por outro, pela desvalorização da
tantes com o propósito de se conprodução agrícola e má-distribuitextualizar o processo de urbaé uma questão de
ção de terras com concentração e
nização mundial e compreender
primeira ordem;
formação de latifúndios, criando-se
fatores determinantes no acele– como diz Santos (2008) – uma esrado e desordenado processo de
todavia, para se
trutura agrária repulsiva. Ao mescrescimento, principalmente, das
alcançar a fluidez
mo tempo, as cidades se tornaram
grandes cidades brasileiras.
atrativas devido à oferta de empredesejada, é preciso
gos proporcionada pelo desenvolviCidade formal X cidade
mudar a lógica da
mento do meio técnico-científico e
informal
às possibilidades apresentadas nos
exclusão social,
novos espaços em expansão. Tais
O crescimento desordenado das
aproximando
processos acabaram gerando a dicidades é quase sinônimo de urbacotomia campo x cidade: repulsão
nização no Brasil, causou diversos
empregos e
conflitos e disputas pelo uso e prodo campo e atração da cidade.
moradias
priedade dos espaços e, além de
Remetendo a análise para o catudo, é fortalecido pela especulaso brasileiro o resultado demográção imobiliária – que supervaloriza
fico desse processo de urbanização,
áreas e imóveis, inviabilizando o acesso e permanênprincipalmente no século XX, foi o inchaço de alcia, residência, de grande parte dos trabalhadores sem
gumas cidades, principalmente no Sudeste, com
recursos para os altos valores da cidade formal, sendo,
um fluxo migratório tão denso e forte que marca
assim, expulsos para as margens da metrópole em sua
o país, antes predominante rural passa a ser urbamaioria – outra parte de trabalhadores (ou não) acaba
no, gerando inversão nos dados demográficos. O
margeando avenidas ou sob viadutos da metrópole.
movimento migratório foi à época maior que a taFruto do desenvolvimento de uma racionalidade
xa de natalidade nos centros urbanos. Para se ter
econômica e técnico-científica nota-se uma necessiuma ideia a população urbana que era de 31,24%
dade de crescimento urgente numa dinâmica espaçoem 1940 cresceu de 5% a 10% em média/por décatemporal acelerada, característica do período contemda, até os anos 1990. Já nos anos 2000 a taxa de
porâneo (SANTOS, 2008). Assim, a necessidade de
urbanização reduziu a 3% em média/por década.
ampliação de redes de conexão e rápida mobilidade é
Último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e
uma questão de primeira ordem; todavia, para se alEstatística (IBGE) aponta que em 2010 a população
cançar a fluidez desejada, é preciso mudar a lógica da
urbana no Brasil era de 84,36%.
exclusão social, aproximando empregos e moradias.
Em meio a esse processo de urbanização no BraFato é que com a urbanização desenfreada, com
sil, a cidade que mais cresceu foi São Paulo. Desde o
explosão demográfica, são criadas mais e mais deestado de São Paulo à sua capital foram favorecidos
mandas de moradia, infraestrutura, acessibilidade
pela existência de redes de transportes já bem desen-
42
Em muitos casos, o mosaico da região metropolitana é resultante
da ligação da metrópole com suas áreas circunvizinhas
etc., gerando problemas diversos devido ao despreparo dos municípios frente a tais necessidades surgidas. Resultado disso é o desdobramento de um processo em paralelo à urbanização: a favelização – que
se deu fortemente a partir dos anos 1980.
A favelização se dá essencialmente nas áreas periféricas da metrópole, onde se observa um crescimento exponencial da população que constrói informalmente seus espaços, suas moradias, comércio,
ruas etc., e se configuram, assim, na chamada cidade
informal e/ou ilegal, que se desenvolve sem apoio do
Estado, sem infraestrutura, acarretando graves problemas ambientais e de saneamento, entre outros,
proporcionando baixa qualidade de vida à maioria
da população (3). Em muitos casos a expansão das
áreas periféricas é tão extensa que acaba se ligando a
metrópole às cidades vizinhas, formando o mosaico
da própria região metropolitana.
Como ainda não se alcançou – mesmo com muitos esforços legais e práticos – um planejamento
realmente integrado e inclusivo nas grandes metrópoles, o que comumente ocorre é certo padrão no
modo de “fazer cidade”, com uma metropolização
desigual e caótica, consolidando a criação de espaços
duais: centro X periferia.
Nas áreas centrais, na cidade formal e/ou legal, há
uma modernização constante devido à concentração de recursos num espaço já privilegiado por farta infraestrutura, com integral acessibilidade. Essa
modernização também se dá sob outro aspecto, o
da revitalização do centro, demolindo alguns prédios/imóveis, construindo novos ou reestruturando
e dando novos usos a outros. Fato é que se oneram
a cada dia mais a vida e o consumo nesses espaços,
tornando-os inacessíveis à maioria da população.
Outra esfera de problemas ocorridos nas cidades
é a ambiental. As situações mais graves ocorrem nas
áreas periféricas, na cidade informal, onde há uma
precariedade das condições de vida urbana, geran-
Capa
do problemas socioambientais
e situações de risco por ocuparem beira de córregos, encostas
íngremes, por exemplo – o que
afeta tanto o espaço físico quanto a saúde pública. A soma desses
fatores tem como consequência
degradações ambientais e muitas
vezes desastres sociais (e mortes)
causadas por enchentes ou deslizamentos de terra nas encostas.
Ademais, como afirma Santos (2008): “É inegável que o
desenvolvimento
tecnológico
(entre outros) provoca mudanças no ritmo da relação sociedade-natureza. Novas
escalas espaço-temporais e também novas representações são construídas a partir desta aceleração
pela sociedade em seu cotidiano”.
Torna-se, então, questão de ordem a incorporação
da cidade informal à cidade propriamente dita não só
para atender à função social urbana como também
para a requalificação de áreas degradadas da ordem
dos interesses difusos (ambientais) – aqueles que não
são nem públicos nem privados, mas de interesse e
responsabilidade de todos. E aí ocorre um novo conflito: entre a proteção ambiental e o direito social de
acesso a uma moradia. Há necessidade urgente de
programas de reconstrução das periferias, concomitante à proteção ambiental, que compreendam a inclusão econômica e social e atendam às demais necessidades das populações residentes nessas áreas.
Em busca de uma cidade completa
Devido a uma luta de anos – com papel fundamental dos movimentos sociais – em julho de 2001
foi aprovada e sancionada a Lei 10.257, o Estatuto da
Cidade, que estabelece diretrizes gerais da Política
Urbana do país – regulamentada nos capítulos 182
e 183 da Constituição de 1988. Mesmo que tardiamente, de certa forma, visto a urbanização caótica já
estar desenvolvida, o Estatuto tem importante papel
na ordenação do território visando ao cumprimento
das funções sociais da cidade e à garantia de bem-estar de seus habitantes.
O Estatuto dispõe e orienta uma gestão democrática com participação da comunidade no desenvolvimento urbano, além dos estudos multidisciplinares executados por especialistas na questão
urbana. A Lei prevê a ordenação do território, controle no uso do solo e o desfavelamento. Elenca de
modo geral os instrumentos da política de desenvolvimento urbano, dispondo sobre o parcelamen-
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130/2014
to, a edificação e a utilização compulsórias, o direito de preempção, o de superfície e de usucapião
especial coletivo (MUKAI, 2001).
O debate sobre o Plano Diretor
Estratégico de São Paulo
Na ordem do dia está em ampla contenda a ordenação territorial da cidade de São Paulo na revisão
do Plano Diretor do município. Assim, São Paulo
está fazendo o necessário e obrigatório, segundo o
Estatuto da Cidade, enfrentamento no planejamento urbano – intrínseco ao Plano Diretor. Foi encaminhado à Câmara Municipal pela Prefeitura, em
26 de setembro de 2013, o Projeto de Lei de Revisão
do Plano Diretor Estratégico (PDE) – PL 688/13, que
depois segue para o Legislativo para dar continuidade à revisão, conduzindo o processo final de participação coletiva.
A revisão do PDE objetiva o estabelecimento de
um novo modelo de desenvolvimento urbano diretamente ligado ao enfrentamento das expressivas
desigualdades socioterritoriais presentes na cidade
de São Paulo, conforme descrito nos documentos do
site da Prefeitura (4).
Entre as discussões do PDE há propostas de
reorganização do crescimento vertical da cidade,
onde em bairros já verticalizados, como Pompeia e
Moema, por exemplo, e com pouca oferta de transporte público, só serão permitidos edifícios com até
oito andares. Já em áreas onde serão construídos
novos corredores de ônibus – segundo o projeto de
155 quilômetros até 2016 – serão permitidos prédios com até 42 metros de altura às margens das
grandes avenidas.
O projeto para o novo PDE de São Paulo visa ao
aumento em 20% de terrenos destinados às “habitações de interesse social” (voltadas às famílias que
recebem até seis salários). Mas há uma grande polêmica, gerando manifestações de sem-teto, com
relação à construção de moradias populares (Cohab
e Minha Casa Minha Vida) no entorno da Represa
Billings, que é área de proteção permanente e tem
hoje considerável número de invasões. Se a proposta do prefeito Fernando Haddad for aprovada essas
construções serão viabilizadas.
Em busca de cidades realmente inclusivas e com
ordenamento territorial justo, social e ambientalmente, é necessário que o planejamento urbano
vise ao estudo integrado da região metropolitana,
considerando seu entorno e as cidades vizinhas que
contribuem numa relação sob aspectos positivos e
negativos à metrópole. E uma questão fundamental
é a compreensão de que o planejamento deve ser de
44
ordem do Estado e não de planos de governo, pois
necessitam de planos de longo e médio prazo que
independem de uma política dessa ou daquela administração governamental. Também não se pode
esquecer que a desordem no desenvolvimento das
cidades mundiais segue a lógica capitalista do laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai passar) que
não visa ao bem-estar social da maioria da população, mas ao contrário, privilegia uma minoria e exclui a grande parte dos trabalhadores.
*Ana Paula Bueno é urbanista e da redação de
Princípios
Notas
(1) Metrópole, do grego metropolis, refere-se às cidades centrais de áreas urbanas formadas por cidades ligadas entre
si fisicamente (conurbadas). E pólis (cidade-estado) era o
modelo das antigas cidades gregas, importantes no desenvolvimento daquela civilização. Na Grécia Antiga a pólis era
um pequeno território localizado geograficamente no ponto
mais alto da região, com características de uma cidade.
(2) Os dados apresentados foram retirados do livro Manual de
geografia urbana, de Milton Santos, 3ª ed., 2008. Por não
constarem fontes de informação, como instituição ou órgão
de pesquisa, deduz-se com sendo resultados de pesquisas
do autor.
(3) Cidade formal/legal e cidade informal/ilegal são termos
cunhados em Grostein, 2001.
(4) O site da Prefeitura também apresenta um sucinto histórico
dos Planos anteriores e relata: “O Município de São Paulo
possui um Plano Diretor Estratégico aprovado em 2002 (Lei
13.430/02). Ele estava programado para ser revisto em 2006,
mas a proposta de revisão não foi concluída. Por isso os trabalhos foram retomados através da realização de um processo amplo e democrático de discussão que resultou no Projeto
de Lei de revisão do PDE enviado à Câmara”.
Quanto as etapas do PDE: “Essa revisão ocorreu em 4 (quatro) etapas de trabalho: (I) avaliação temática do plano vigente; (II) oficinas públicas para levantamento de propostas, realizadas em todas as subprefeituras; (III) sistematização das
propostas recebidas e (IV) devolutiva e discussões públicas
da minuta do projeto de lei. Acesse as ferramentas digitais
que auxiliaram no processo participativo”.
Referências bibliográficas
GROSTEIN, Marta Dora. Metrópole e expansão urbana: a
persistência de processos “insustentáveis”. São Paulo em
Perspectiva, São Paulo: v. 15, n. 1, p. 13-19, jan./ mar.2001.
LENCIONI, Sandra.Observações sobre o conceito de
cidade e urbano. In GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo,
Nº 24, pp. 109 - 123, 2008.
MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade: anotações à Lei n.
10.257, de 10 de julho de 2001. São Paulo: Saraiva, 2001.
PREFEITURA DE SÃO PAULO, Desenvolvimento Urbano:
http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretorestrategico/
Economia
Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo
“Concepções que levaram o país
à crise predominam porque se
originam naqueles que têm o
poder real”
Por Adalberto Monteiro, Osvaldo Bertolino e A. Sérgio Barroso*
Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o Brasil passa por
um momento importante para se compreender o esquadro da
polêmica sobre a realidade e a perspectiva da economia brasileira.
Com a aproximação das eleições presidenciais, as posições
polarizadas entre governistas e oposição retratam as contradições
da sociedade brasileira, a visão dos que melhoraram de vida e a
dos que criticam o governo da presidenta Dilma Rousseff por uma
questão de classe social. Ao mesmo tempo, alerta, é preciso manter
os olhos bem abertos para problemas estruturais, como a inflação e
a desindustrialização, e os efeitos da crise mundial
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Princípios: Em entrevista ao jornal Folha de S.
Paulo, o senhor disse que o governo da presidenta Dilma Rousseff estava cedendo às pressões do sistema financeiro ao elevar seguidamente a taxa básica de juros. Ocorre que as
“pressões inflacionárias” permanecem, apesar da elevação dos juros. Como resolver essa
equação?
Belluzzo – Quando mencionei que a Dilma estava
sendo pressionada pelo sistema financeiro, estava
falando de uma coisa mais ampla. Estava falando
das restrições que são impostas à política econômica
pela agenda que foi criada faz tempo pelos mercados
financeiros. A crise, ao contrário do que se imaginava, não conseguiu mudar essa agenda, a despeito
de todos os erros de avaliação que foram cometidos
sobre o período anterior à crise — a ideia da grande
moderação, de que havia sido conquistada a batalha
contra a inflação, que as economias tinham pouca
volatilidade, tanto das taxas de juros, quanto das taxas de crescimento. Tudo isso foi por água abaixo
quando ocorreu a crise.
Na verdade, até mesmo se pode dizer que esses
são considerados pontos fortes da agenda, digamos,
dos mercados financeiros e foram exatamente os fatores que levaram à crise. Li agora alguns trechos de
uma espécie de seminário que o Fundo Monetário
Internacional (FMI) fez sobre política monetária em
que, até por conta da presença de algumas pessoas
de lá, está se tentando fazer uma autocrítica e uma
crítica do que foi proposto no período anterior, das
convicções e das verdades que foram afirmadas anteriormente. No entanto, na Europa, nos Estados
Unidos e em quase todos os países — a exceção da
China, que não dá a menor bola para essas coisas —,
inclusive na América Latina, e no Brasil em particular, essas convicções estão muito firmadas. E de uma
maneira pouco crítica.
Aqui no Brasil há um grupo de economistas, sobretudo esses que hoje estão acolitando os candidatos de oposição, com certezas construídas sobre
hipóteses muito frágeis. O que eu disse, é preciso
que se interprete. Não é que a Dilma está cedendo às pressões. Na verdade, é que há um consenso
dentro de certos estamentos e escalões da sociedade
que fazem uma crítica à política econômica partindo
desses pressupostos que foram os fautores da crise.
Então não há nenhuma visão crítica. A visão crítica
fica por conta de poucos, que na verdade estão em
posição minoritária no debate. É uma coisa um pouco mais ampla; uma coisa das relações de poder e da
correlação de forças dentro da sociedade.
Não estou querendo dar uma visão economicista, tecnicista disso. Estou querendo dar uma visão
46
política. Por que essa visão, que levou à crise, continua predominando no Brasil? Porque, na verdade,
quem tem o poder real são eles. Não só através do
controle da finança diretamente, mas indiretamente pela formação de um consenso dentro dessa camada dominante, que pega inclusive os industriais
que não têm muita noção de qual é o interesse deles. Aliás, eles têm noção; o que não sabem é fazer
o que os antigos faziam, como Roberto Simonsen.
Isso foi muito desorganizado a partir do fim do regime militar. Compramos toda a tralha neoliberal,
que foi vendida a preço módico, e Fernando Henrique Cardoso comprou pelo valor de face. E fez o que
fez. Isso sim foi o verdadeiro fracasso das políticas
que eles adotaram.
Conseguimos navegar por entre essas dificuldades e durante o período de 2003 a 2007 e 2008, por
conta até da mudança nas condições internacionais,
da presença de uma demanda forte de commodities,
conseguimos ir ajeitando isso. Mas com custos. Então, o que eu digo é que no momento em que podíamos ter saído da crise de 2008, no momento em que
a economia começou a ter uma taxa de crescimento menor, esse coro, esse consenso começou a ficar
muito mais forte, pedindo que a gente adotasse uma
cartilha mais conservadora, mais ortodoxa.
Vamos chegar à questão da inflação aqui. O Brasil
tem uma taxa de inflação que oscila entre 5,5%, há
um tempão, há uns dez anos. Está em 5,5% e 6%. O
problema da inflação no Brasil é o da persistência, da
resistência. Outro dia eu estava lendo um artigo que
dizia que a política monetária no Brasil tem menos
eficácia do que em outros países. Claro, porque temos a memória inflacionária. Tem aí um conjunto de
preços que estão indexados informalmente e que, a
qualquer choque, eles repercutem de maneira muito
negativa para a taxa de inflação. Vou dar um exemplo muito claro: se o preço do tomate sobe e provoca
uma subida da taxa de inflação em um determinado
momento, digamos, em um trimestre, isso é repercutido pelo sistema de indexação.
Essa herança de um período de inflação alta nos
obriga a ter muito cuidado com a inflação. Se ela ganha força, fica mais difícil para o Banco Central, com
o manejo da taxa de juros, jogá-la para baixo. Outra
questão é a política de metas de inflação. Como estão
se administrando as expectativas, quanto mais rápida for a reação do Banco Central, menor o custo em
termos de emprego e renda. Só que no Brasil, dado
o fato de ter essa rigidez para baixo, é preciso botar
a taxa de juros em um nível que produza um efeito
muito ruim sobre o nível de atividade e emprego.
Esse é um problema que a gente tem de tratar
com muito cuidado. Se observarmos a reação do pes-
Economia
que a política monetária americana tem sobre as economias de moeda não conversível.
À exceção da China, que tem US$ 4 trilhões
de reservas, e, portanto, não sofre um abalo
tão grande quando muda a política americana. Logo que ocorreu o primeiro anúncio de
que ia haver essa mudança, houve reações
por parte da política monetária de outros países, como o Brasil. O importante é o seguinte:
mesmo com a taxa de 7,25%, ainda era muito
bom fazer arbitragem. É um tipo de chantagem, digamos.
Quando os americanos mudaram a taxa
de juros, o que eles começaram a dizer? Vai
diminuir o fluxo de recursos para o Brasil! O
Brasil já estava com déficit em conta corrente,
começaria a ter problema na conta de capital.
Essas assimetrias do sistema monetário internacional são muito graves.
Aqui eu gostaria de introduzir outra questão. Não é à toa que o Brasil está tentando
caminhos alternativos. Criaram o BRICS, que
é uma sigla, mas acabou virando uma prática.
E eles estão montando um fundo de estabilização comum, de US$ 100 bilhões. China,
Brasil, Rússia, Índia e África do Sul. África do
Sul tem uma contribuição mais modesta para
Se o preço do tomate sobe e provoca uma subida momentânea da taxa
esse fundo de contingência. O Brasil tem US$
de inflação, isso é repercutido pelo sistema de indexação
357 bilhões de reservas, a China, US$ 4 trisoal de um a dois salários mínimos com o aumenlhões e a Rússia, US$ 470 milhões.
to da inflação, ela é muito ruim. Eles sentem muito
O Brasil fez um swap de moedas com a China,
mais a inflação do que a ameaça de perder o emprede modo que podemos fazer transações no valor de
go, aparentemente. Como eles têm emprego, agora,
US$ 30 bilhões em moeda nacional sem recorrer a
sentem mais a ameaça de inflação. O governo não
reservas. Eles em yuan, nós em reais. Acho isso muitem força política suficiente a ponto de desconhecer
to importante. Eu vou explicar por quê. Pouca gente
o fato de que a população sente muito a inflação. E
está vendo, mas estamos caminhando na direção da
sente mesmo. Isso tem efeitos eleitorais.
constituição de um espaço anti-hegemônico, constituído por China, Rússia, Brasil e Índia. Essa percepPrincípios: Como o senhor vê a oscilação da taxa
ção ainda não acendeu as luzinhas dos conservadobásica de juros, a Selic?
res. O que estão dizendo: o Brasil não tem relações
Belluzzo – O Banco Central está sendo relativamente
internacionais adequadas, não procura os acordos.
moderado para não dar um choque que desorganize
O Brasil está procurando corretamente o acordo que
as expectativas, em vez de organizar, sobretudo de
lhe convém.
quem quer investir. Eles estão sendo muito cuidadoEu acho que o Brasil tem peso para fazer parte
sos com a subida dos juros e com o câmbio.
desse eixo anti-hegemônico. Não é antiamericano.
É uma questão prática, muito prática. Não tem nada
Princípios: A presidenta Dilma reduziu a taxa
a ver com ideologia antiamericana. Tem a ver com
básica de juros para o seu menor índice históa mudança na configuração da economia e do porico, 7,25%. Essa redução se chocou com a presder internacional. Porque, visivelmente, chineses e
são muito forte ainda reinante, mesmo depois
russos estão aproximando suas economias, que são
da crise, que vem de fora e que se associa às
altamente complementares. Uma é rica em recursos
pressões do mercado financeiro interno...
naturais, outra uma economia manufatureira; que
Belluzzo – O que aconteceu revela um pouco qual é a
não é a economia chinesa, mas ela e sua reverberanatureza da nossa inserção internacional e os efeitos
ção na Ásia.
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130/2014
Princípios: A oposição faz uma crítica contunto importante. Isso foi fundamental para provocar
dente ao governo pelo que ela chama de um
a ascensão dessa classe que estava inscrita entre os
controle artificial de preços, referente à gasomais pobres. Essa turma que vai para o aeroporto
lina, à energia... Como o senhor analisa essa
e o pessoal não gosta, que está no supermercado.
crítica?
Nós fizemos uma análise, na Facamp (Faculdades de
Belluzzo – Eu estava me referindo exatamente a essa
Campinas) mostrando com detalhes, com dados, a
questão dos preços indexados e administrados. Para
mudança. Então, se abriu um boqueirão entre a deser franco, no ano passado, no momento mais favomanda e a capacidade de resposta da oferta. O grárável, perdemos a oportunidade de reajustar o preço
fico é a boca do jacaré, como disse Yoshiaki Nakano.
da gasolina de maneira que o impacto sobre a inflaIsso é o déficit industrial do Brasil, que aumentou
ção seria muito menor. Fizemos uma conta e daria
o déficit em conta corrente, que reduziu muito nesum efeito muito pequeno, de 0,2 pontos percentuais
se último ano nosso déficit comercial, cujo resultado
sobre a inflação. Nesse momento, não. Por isso eles
favorável estava muito garantido pelas exportações
estão insistindo tanto, porque querem que a inflação
de commodities. Qual é o efeito importante disso? A
suba. Estão apostando que a inflação vai subir e isso
indústria está por cima com a pressão do câmbio vapode afetar as expectativas.
lorizado, e por baixo com a pressão dos salários. Esse
Nesse momento, olhando as pesquisas de opinião,
aumento, ganho real de salário, foi acompanhado
a inflação é uma preocupação maior das camadas de
pela queda de preços relativos. O Brasil tem, hoje, de
mais baixa renda, o que é explicável porque eles são
alto a baixo, as residências com 83%, quase 90% de
os que mais perdem. Então, se você
famílias com eletrodomésticos, ou
fosse ordenar as prioridades, já que
um grupo deles.
o mercado de trabalho está bastanConversando outro dia com a
Palocci fez
te pressionado, bastante confortáLuiza Trajano (empresária brasileivel para os trabalhadores, acho que
ra que comanda a rede de lojas de
uma política
o governo tem que prestar muita
varejo Magazine Luiza), ela estava
conservadora,
atenção à inflação. Tem que prestar
me contando que as pessoas não
muita atenção, porque ele não poentendem nada do que está aconde valorização
de entregar essa arma ao inimigo.
tecendo. O que está acontecendo
cambial, de usar
é isso: um ganho de renda real e
Princípios: E a referência que
uma queda importante no preço
o câmbio para
muitos fazem à questão do sarelativo dos duráveis. É isso que,
segurar a inflação,
lário mínimo? Os comentários
em boa medida, está sustentando
dos editoriais falam não só do
esse movimento. Se pegarmos por
e isso criou mais
salário mínimo, mas em geral.
classe social, o apoio ao governo esum período em
E a receita que pregam é de retá muito concentrado lá embaixo.
dução do consumo, dos invesA turma de cima, apesar de ter se
que a indústria
timentos públicos...
saído bem, não apoia. Isso não tem
foi altamente
Belluzzo – Na verdade, o que estão
a ver com resultado econômico. Isdizendo é que só tem um jeito:
so é uma coisa de classe social.
penalizada
tem que aumentar o desemprego e
Ou seja: não é possível dizer
tirar esse poder de negociação dos
que um governo que, em primeiro
trabalhadores. Estamos enfrentando duas queslugar, tem origem em um partido de trabalhadores
tões. Primeiro é impossível explicar o que acontee, em segundo lugar, fez as políticas que há muitos
ceu com o Brasil nos últimos anos sem levar em
anos gostaríamos que fossem feitas, esteja padeconta a mudança na política do salário mínimo.
cendo do esgotamento do “pacto social”. No fundo
Porque a política do salário mínimo funcionou coé uma questão de classe, que tem várias formas de
mo uma espécie de gasto autônomo. Subiu o salário
expressão, inclusive essa da política econômica cormínimo em termos reais e isso deu um forte impacreta ou não, do excesso de intervencionismo.
to na demanda, porque é o pessoal que tem maior
Entre os governos Lula e Dilma, qual foi o expropensão a consumir.
cesso de intervencionismo? Ela mexeu no preço da
Além disso, eles ganharam a oportunidade de
energia elétrica que os empresários, a Federação
acessar o crédito. Isso gerou um movimento de dedas Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), esmanda com impacto sobre o emprego e sobre as rentavam pedindo, porque o preço da energia era abudas dos demais; teve um efeito multiplicador muisivo, fora de propósito; era o mais alto do mundo.
48
Economia
E mexeu na taxa dos juros. É como se você dissesse que há excesso de intervencionismo nos Estados Unidos porque o Banco Central americano está
comprando a tralha podre que estava nos bancos.
Tem excesso de intervencionismo? Isso tudo é uma
retórica, muito vagabunda por sinal, sem nenhuma
qualidade analítica.
partir de 2004, por aí. O Palocci fez uma política conservadora, de valorização cambial, de usar o câmbio
para segurar a inflação, e isso criou mais um período
em que a indústria foi altamente penalizada.
Mesmo depois da crise, o câmbio foi a R$ 2,40.
Mas logo em seguida jogamos o câmbio para baixo,
a R$ 1,60. Na minha avaliação, são vinte anos em
que tivemos alguns momentos nos quais o câmbio
Princípios: O senhor tem falado
ficou desvalorizado para favorecer
sobre a desindustrialização, o
a indústria e fomos perdendo podesarranjo das cadeias produsição relativa. O que significa isso?
O Brasil adotou
tivas...
Que a pretexto de fazermos uma
as políticas mais
Belluzzo – Estamos falando da perintegração à economia internacioda de posição relativa da indústria
nal, fizemos uma desintegração.
equivocadas
brasileira nos últimos trinta anos.
Porque perdemos vários elos das
possíveis, porque
Isso começa com a crise da dívida
cadeias produtivas, que podiam
externa. Tivemos dez anos de criestar integradas às cadeias de genão prestou
se, ameaça de hiperinflação, vários
ração de valor internacional.
atenção na
planos de estabilização frustrados
A China fez essa integração na
etc. Passamos para a década de
economia mundial, na economia
transformação
1990, quando a gente conseguiu
das bolhas, e da globalização finanque ocorreu
estabilizar a economia, porque as
ceira. Fizeram uma integração com
condições mundiais mudaram,
o câmbio ultradesvalorizado e com
na economia
sem que tivesse ocorrido nada de
a atração de investimentos estranmundial. E aí
novo. O governo Itamar, em 1994,
geiros, porque sabiam que junto
ainda acumulou R$ 40 bi de resercom a globalização financeira haperdeu a chance de
vas. Fez-se a estabilização porque
veria um deslocamento das cadeias
desenvolver suas
o país conseguiu superar um esprodutivas. O que eles atraíram?
trangulamento externo muito peOs americanos, os coreanos e japróprias atividades
sado, que obrigava a sempre desponeses, montaram um cluster mamanufatureiras
valorizar o câmbio para se manter
nufatureiro asiático que tem todo
o superávit.
mundo lá dentro. Agora, estão parE aí começou a segunda onda de
tindo para um segundo momento;
perda de posição da indústria, porque valorizamos o
começando a graduar as empresas deles para que
câmbio. Fizemos esta valorização até a crise de 1998
possam se internacionalizar.
e 1999, quando ficou insustentável aquele regime.
Aqui no Brasil, tem uma discussão completaBotamos a taxa de juros nos píncaros. A taxa Selic
mente equivocada de criar os campeões nacionais.
ficou, em média, em 22% ao ano, em termos reais.
Vamos pegar o exemplo dos países que vieram de
Com o câmbio valorizado e a taxa de juros elevada,
trás. O Japão, no pós-guerra, foi beneficiado, claro,
evidente que não há indústria que resista. Acumupela situação geopolítica, assim como a Coreia. Folamos déficits altíssimos em conta corrente. Saímos
ram muito beneficiados pelo fato de que os Estados
de uma situação de um superávit pequeno, em 1992
Unidos abriram as portas. Eles construíram os seus
e 1993, para um déficit de R$ 30 ou 35 bilhões em
sistemas industriais em cima do modelo exportador,
1996 e 1997. Isso foi revertido com a desvalorização
da construção dos conglomerados zeibatsus japoneses
em 1999.
e dos chaebols coreanos. Os chineses estão, na verdaDe 1999 a 2002, passamos por uma situação de
de, repercutindo esse sucesso e criando as suas emcâmbio desvalorizado, mas com uma economia muipresas internacionais.
to instável em que teve o apagão do Fernando HenriPorque se olhar hoje a estrutura de mercado dos
que Cardoso. E quando pareceu que o Lula ia ganhar
vários setores, são no máximo dez empresas a domia eleição, a taxa de câmbio foi a quase R$ 4. Vejam
nar mais de 80% a 90% do mercado, em alguns casos
que existe uma coisa interessante na argumentação
100%. No caso da aviação são duas, das farmacêutidos conservadores. Eles dizem que a economia brasicas são poucas. Houve uma tremenda centralizada
leira foi bem durante o período Palocci. O crescimenno capital e uma dispersão geoeconômica. O jogo é
to não foi bom. O crescimento começou a ficar bom a
jogado entre esses caras, e os chineses sabem disso.
49
130/2014
Nós temos que nos dar conta de que para fazer essa
anos, não dava para fazer nada. Ao contrário, nós
integração com essas cadeias precisamos ter os marfechamos a economia involuntariamente. As imporcos regulatórios.
tações chegaram a representar 3% do PIB. Isso é uma
Sempre digo que os chineses leram direito O Caanomalia. Nenhuma economia pode viver assim. A
pital e os russos leram tudo errado. Uma brincadeira,
não ser que seja uma economia autárquica, sem nenaturalmente. Porque eles perceberam aquilo que
nhuma capacidade de movimento. Quando estabiliMarx diz, já no Manifesto Comunista, que a burguesia
zamos a economia, caímos na armadilha do câmbio
tem esse impulso em transformar todas as coisas, em
valorizado, que é outra maneira de fazer a inserção
destruir tudo que é velho, e a inovar, a criar coisas
errada. Isso exatamente no momento em que os chinovas. É claro que com custo social etc. Os chineses
neses estavam fazendo o contrário.
perceberam essa história e falaram: muito bem, vaAs pessoas argumentam que o Brasil não é a
mos rearranjar isso aqui e de modo
China. Só que a estratégia chinea capturarmos as vantagens dessa
sa foi a que se adequou melhor ao
globalização. E nós, não!
que estava acontecendo na econoEssa ideia de
Fizemos tudo ao contrário a premia internacional. Hoje eles são
centro/periferia
texto de nos liberalizar. Com ideias
o segundo PIB do mundo. Vejam
velhas. Por exemplo: o pessoal veio
em quanto tempo eles fizeram o
precisa ser
com a Área de Livre Comércio das
segundo PIB! São os maiores exrepensada um
Américas (Alca), que era uma esportadores no mundo de manufapécie de Tratado Norte-Americano
turas. E o país que tem a taxa de
pouco, porque a
de Livre Comércio (Nafta), em increscimento mais elevada. Então,
própria situação
glês North American Free Trade Agreeeles estão errados e nós é que estament, envolvendo Canadá, México
mos certos?
de centro/periferia
e Estados Unidos, ampliado. Não
foi redefinida pela
topamos porque houve resistência
Princípios: Como o senhor vê as
aqui e ali. O Lula está certo quando
perspectivas da crise mundial
presença da China
fala em integração sul-americana.
e seus impactos nas economias
e da Ásia. Temos
Está certíssimo.
dos BRIC?
Belluzzo – Essa ideia de centro/peaspectos periféricos
Princípios: Ha-Joon Chang, proriferia precisa ser repensada um
no centro e
fessor de Cambridge, em artipouco, porque a própria situação
go no jornal Valor Econômico, foi
de centro/periferia foi redefinida
aspectos do centro
enfático: “O Brasil abriu mão
pela presença da China e da Ásia.
na periferia
de desenvolver suas atividades
Temos aspectos periféricos no cenmanufatureiras” O senhor contro e aspectos do centro na perifecorda com ele?
ria. É o que o (Leon) Trotsky chaBelluzzo – O Brasil abriu mão não! O Brasil adotou
mava de desenvolvimento desigual e combinado. É
as políticas mais equivocadas possíveis, porque não
a isso que estamos assistindo. E a direção que isso
prestou atenção na transformação que ocorreu na
tomará vai depender muito das decisões de políticas
economia mundial. E aí perdeu a chance de deseneconômicas nacionais.
volver suas próprias atividades manufatureiras. EsEstamos assistindo a uma mudança muito imtá certo o Chang, está certíssimo. Mas isso é uma
portante, uma mudança de eixo hegemônico, que
coisa histórica. A última tentativa que fizemos de
não se faz assim abruptamente. Mas que está clara,
ter uma política industrial consequente, mas deporque a força material das relações econômicas vai
sastrosa por outras razões, foi com Geisel (Ernesto
obrigar que isso ocorra. Com conflito, com confusão,
Geisel, penúltimo presidente da ditadura militar).
com certo atrito, como estamos vendo agora no caso
Ele tentou fazer com o segundo Plano Nacional de
da Ucrânia, uma óbvia provocação americana e dos
Desenvolvimento (PND) uma política industrial. Só
europeus à Rússia. Que não vai dar certo, porque a
que ele escolheu os setores errados, em minha opiRússia depende menos deles do que eles da Rússia,
nião; os setores velhos. E, além disso, financiou de
em primeiro lugar. Depois porque tem esse movimaneira inadequada. Financiou Itaipu, por exemmento de aproximação e complementaridade entre
plo, com US$ 15 bi de dívida externa.
as economias.
Depois disso, o que fizemos? Primeiro, o períoDa redação
do da crise dívida externa, que durou dez ou doze
50
Economia
A busca por uma nova governança
econômica global pós-crise
financeira e o papel do FMI
Marcelo Pereira Fernandes*
É ponto praticamente comum entre as autoridades econômicas
dos principais países a necessidade de construir uma agenda de
reformas que leve a uma nova arquitetura financeira mundial
Quando o Fundo se consulta com
um país pobre e fraco, o país entra
na linha. Quando se consulta com
um país grande e forte, o Fundo
entra na linha. Quando os grandes países estão
em conflito, o Fundo fica fora da linha de fogo”
Paul Volker
D
esde a eclosão da crise financeira internacional em 2008, a governança
econômica global tornou-se um tema
recorrente nos fóruns internacionais.
É ponto praticamente comum entre as
autoridades econômicas dos principais
países a necessidade de construir uma
agenda de reformas que leve a uma nova arquitetura financeira mundial. Por sua vez, a reforma
passa pela criação de novas regras para o sistema
financeiro e o aperfeiçoamento da cooperação eco-
51
130/2014
nômica. A questão é saber quais regras devem ser
construídas e como equacionar as perdas e os ganhos que normalmente advêm de qualquer mudança empreendida.
Entre os planos para alcançar esses intentos buscou-se revigorar o Fundo Monetário Internacional
(FMI ou Fundo) com a promessa de novos recursos
e a reforma nos seus estatutos. O FMI é a principal
instituição multilateral e a que exerce maior influência entre aquelas responsáveis pela governança econômica. O papel do FMI sofreu uma mudança considerável após o rompimento dos acordos de Bretton
Woods em 1971 e o estabelecimento das taxas de
câmbio flutuante em 1973. A partir da introdução
da “supervisão” nos seus estatutos, aprovada em
abril de 1977, o Fundo passou a exercer tarefas mais
amplas, conferindo um novo perfil à sua atuação
(AGLIETTA, 2004).
Esse novo perfil do FMI foi muito bem utilizado pelo governo norte-americano a partir de meados dos anos 1980. Nos acordos assinados com o
Fundo se tornaram comuns referências sobre a
importância das reformas neoliberais como condição fundamental para liberação dos recursos. A
instituição se posicionou na linha de frente pela
abertura financeira dos países, ainda que o artigo
VI – que respalda a adoção de controles de capitais pelos governos – nunca tenha sido retirado dos
seus estatutos. O FMI também adentrou em atividades que não estavam entre as suas funções, entre
as quais: a reforma das leis trabalhistas, a extinção dos preços subsidiados dos serviços públicos, e
até a criação de um fundo de combate à pobreza.
Além da tradicional reivindicação do equilíbrio fiscal, passou a se preocupar com a qualidade do gasto
público, a corrupção e a democracia, agindo diretamente sobre a soberania legislativa dos países sem
possuir legitimidade e capacidade técnica para isso
(KAPUR & WEBB, 2006; AGLIETTA, 2004). Em um
caso curioso que exemplifica essa nova conduta, em
julho de 1997 o Fundo reteve uma parcela de US$
40 milhões de ajuda ao programa de privatizações
da Croácia não porque identificou algum problema
no programa, mas porque considerou a democracia
na Croácia insatisfatória (FLANDREAU & JAMES,
2003, p.14).
No fim da década de 1990, a autoridade do FMI
estava no seu apogeu. As crises do México (1995),
da Ásia (1997-1998), da Rússia e Venezuela (1998),
do Equador (1999) e do Brasil (1998-1999) deram à
instituição uma importância sem precedentes como
coordenador da economia mundial. Todavia, a crise
asiática foi um divisor de águas para o FMI. A sua
atuação desastrosa nesse episódio sofreu severas crí-
52
ticas tanto à esquerda quanto à direita, colocando
em xeque sua capacidade de enfrentar os desafios
colocados num ambiente de liberalização econômica
que o próprio Fundo lutou para formar.
A crise financeira internacional de
2008-2009
No curto período de 2002 a 2006 a economia
mundial passou por um período de relativa calmaria quando comparada à das três últimas décadas.
A integração financeira cresceu aceleradamente associada à criação de novos instrumentos financeiros
incentivados pelo enfraquecimento da regulação nas
finanças. Somando-se a isso, a péssima reputação
do FMI desde a crise asiática fez com que a supervisão do sistema financeiro se tornasse mais informal,
disperso em organizações do setor público e privado
(MOSCHELLA, 2010).
Por outro lado, parte importante do mundo em
desenvolvimento procurou afastar-se do FMI, antecipando a quitação de empréstimos e realizando
políticas que diminuíram a vulnerabilidade externa
(1). Com a melhora nas condições financeiras dos
países em desenvolvimento, a demanda pelos recursos do FMI ficou historicamente baixa (KAPUR &
WEBB, 2006, p. 2). Assim, a instituição que sempre
teve como uma de suas principais atividades a resolução de problemas no balanço de pagamentos desses países estava com pouco trabalho.
O FMI ainda encarava o ostracismo colocado pelos países centrais em razão da sua contestada ação
na crise asiática. Com isso, nos meses que antecederam a crise de 2008-2009 já existia um consenso
sobre a necessidade de uma reforma que incluísse
governança, mandato e estrutura financeira, com o
intuito de resgatá-lo da irrelevância ou de se tornar
uma instituição dedicada somente aos seus membros
de baixa renda (WOODS, 2009; TRUMAN, 2006).
A eclosão da crise financeira internacional em
2008 é mais um ponto de inflexão na história do
FMI. O fervor com que a instituição aderiu à defesa da desregulamentação financeira – sustentado
pela crença neoliberal da eficiência dos mercados, e
a percepção quase generalizada de que exatamente
essa desregulamentação foi uma das causas da crise – produziu uma situação bastante desconfortável. O então diretor-gerente do Fundo, Dominique
Strauss-Kahn, assumiu que a instituição foi demasiadamente otimista em relação às economias
avançadas, dedicando pouca atenção a fatores como excesso de alavancagem do sistema financeiro,
risco sistêmico, crescimento excessivo do crédito e
dos preços dos ativos (STRAUSS-KAHN, 2009a).
Economia
Stephen Jaffe/IMF
A gravidade da crise, demonstrada pela quantidade monumental de recursos necessários para
impedir o colapso do sistema,
estava muito acima das possibilidades financeiras do FMI. Deste
modo, as operações de salvamento
foram realizadas pelos governos
e bancos centrais das principais
economias desenvolvidas, principalmente o Fed (banco central
dos Estados Unidos) e o Tesouro
norte-americano, sobre os quais
reconhecidamente o FMI tem influência nula. Porém, o que mais
chama a atenção é a forma como
a instituição – tendo como uma
das suas principais atribuições a
supervisão do sistema financeiro
internacional – esteve à margem
das decisões cruciais que mitigaram os efeitos da crise.
O fracasso da nova
agenda global
A divisão de poder
no FMI é derivada
de uma fórmula
matemática, na
qual são calculados
os percentuais
de participação
de cada país. Os
países emergentes
lutam para que
se aumente o
peso do PIB no
cálculo, enquanto
os europeus e os
países menores
querem enfatizar
o grau de abertura
da economia
As políticas executadas sob a liderança do Fed
desde o fim de 2008 conseguiram conter os impactos
mais destrutivos da crise financeira sobre a produção e o emprego. Mas as deficiências da supervisão
do sistema financeiro internacional, trazidas à baila
mais uma vez pela crise, levaram os
líderes mundiais a intensificar os
esforços por uma nova governança
econômica global.
Nos primeiros dias da crise
financeira os líderes mundiais
clamaram por medidas ambiciosas com o objetivo de combater a
turbulência e o poder desproporcional da grande finança sobre as
decisões de política econômica. O
presidente francês Nicolas Sarkozy
chegou a declarar que a crise marcava o fim do segredo bancário e
dos paraísos fiscais.
No entendimento do FMI, a
crise foi causada, sobretudo, pelas
deficiências na supervisão do sistema e a escassa coordenação entre os países (MOSCHELLA, 2010;
STRAUSS-KAHN, 2009b). Segundo o então diretor-gerente do
FMI, Dominique Strauss-Kahn,
“As decisões tomadas pelos países
com base exclusivamente em seu
próprio interesse nacional podem
acabar prejudicando a todos. E – como aconteceu
muitas vezes no passado – quando a crise rompeu os países não estavam inicialmente inclinados a coordenar as políticas” (STRAUSS-KAHN,
2009b).
53
130/2014
A necessidade de aperfeiçoar a cooperação
econômica global passou a ser a tônica dos encontros do G-20. Reunidos em Londres, em abril
de 2009, os líderes se comprometeram a realizar
o que fosse necessário para restaurar a confiança
na economia mundial, fazer o sistema financeiro
funcionar e promover o crescimento sustentável.
Nesse sentido, chegou-se a um consenso de que
se deveria endurecer a regulamentação dos fundos de hedge, dos paraísos fiscais, das agências de
classificação de crédito (rating agencies) e do sistema bancário.
Em relação ao FMI,
Tanto a crise
ao contrário do que ocorreu após a crise asiática,
asiática quanto
optou-se pelo seu fora crise financeira
talecimento: a reforma
da governança deveria
global de 2008
passar pelo aumento da
motivaram
legitimidade e efetividade do FMI. Sobre a efevárias discussões
tividade,
inicialmente
a respeito dos
os países prometeram
um aporte de US$ 750
problemas que o
bilhões, o que significamercado financeiro
ria triplicar a capacidade
de empréstimo do Fundo,
desregulado traz
conforme expressou o direpara os circuitos
tor-gerente Strauss-Kahn
(2009a). Além disso,
de acumulação do
comprometeu-se
em
capital
dobrar a capacidade de
conceder empréstimos
para os países de baixa
renda que então alcançaria US$ 100 bilhões. Com
a promessa de novo aporte de recursos, foram
criadas novas linhas de crédito, como a “Flexible
Credit Line” e a “Precautionary and Liquidity Line”
(IMF, 2013a).
A respeito da legitimidade do FMI, os líderes decidiram rever o sistema de cotas de poder da instituição. O objetivo da reforma é aumentar a presença dos
países emergentes nas decisões do Fundo de forma
a refletir melhor o peso desses países no atual cenário mundial. A revisão foi aprovada no encontro em
Seul do G-20, em novembro de 2010. Pelo acordo –
“14a revisão de cotas dos Estados membros” –, cerca
de 6% do poder de votos deverão ser transferidos dos
países centrais para os emergentes, fazendo com que
cerca de 30 países aumentem suas participações. O
Brasil, que possui 1,72% dos votos totais, terá 2,32%,
transformando-se no décimo maior cotista do Fundo,
e sendo depois da China o país mais beneficiado (PERES, 2013, c1).
54
Reuters
Atualmente a divisão de
poder no FMI é derivada de
uma fórmula matemática,
na qual são calculados os
percentuais de participação
de cada país. A fórmula leva
em conta o Produto Interno
Bruto (PIB), a abertura econômica e um indicador que
mede o potencial da necessidade de um país precisar de
auxílio financeiro do FMI.
Este indicador, conhecido
como “variabilidade”, tem
gerado polêmica, inclusive
entre os diretores executivos da instituição, já que ele
claramente distorce a fórmula em beneficio dos países mais ricos (IMF, 2013b,
p.54). Na prática, os países
emergentes lutam para que
se aumente o peso do PIB
no cálculo, enquanto os europeus e os países menores
querem enfatizar o grau de
abertura da economia.
De qualquer forma, a
efetivação da proposta está paralisada pela falta de
aprovação do Congresso dos
Estados Unidos, e devido às
resistências das economias
europeias em diminuir sua participação no FMI. Ou
seja, todos os países continuam votando com base
na antiga participação de cotas. A tão enfatizada
reforma do FMI, incluindo o aumento dos recursos
financeiros continua uma promessa sem data para
ser cumprida: em janeiro de 2014 o Congresso norte-americano recusou novamente a ratificação da reforma e o aumento do capital do Fundo.
O debate a respeito dos controles de capitais é
outra questão diretamente ligada à governança econômica global, e no qual o FMI sempre aparece no
centro das discussões. Antes tratada como um dogma inquebrantável dentro da instituição, a liberalização dos fluxos de capitais começou a ser debatida
após a crise de 2008. Mas em todas as discussões
os controles de capitais aparecem como uma medida transitória e em condições bastante restritas. Recentemente, o FMI lançou um novo texto sobre o
tema (SABOROWSKI et al, 2014). Os pesquisadores
analisaram a efetividade dos controles de capitais
em 37 países emergentes durante o período de 1995
Economia
A eclosão da
crise financeira
internacional em 2008
é mais um ponto de
inflexão na história
do FMI
a 2010. Os resultados encontrados sugerem que um
aperto nas restrições dos fluxos pode ser realmente
eficaz se apoiado por fortes fundamentos macroeconômicos ou boas instituições (2), ou se as restrições
existentes já são suficientemente abrangentes para
frear a saída de capitais. No entanto, para a média
dos países emergentes um aperto nas restrições aos
fluxos de capitais não é eficiente, já que as retiradas
líquidas de recursos aumentam em decorrência dele
(IDEM, 2014, p.30).
As notícias realmente não são muito animadoras.
Os problemas relacionados aos fluxos de capitais e
ao financiamento e à reforma do FMI demonstram
que foram poucos os efeitos práticos para a governança global desde a crise de 2008. É sintomático
que, apesar das várias promessas, a regulação das
finanças no plano internacional praticamente se
dispersou em propostas de âmbito nacional, sem
exame prévio do FMI ou do G-20, e muito aquém da
estridência dos primeiros meses da crise. De outro
modo, alguns produtos “exóticos” criados durante a
expansão financeira no começo dos anos 2000 voltam a fazer parte da carteira dos investidores (ALLOWAY & MACKENZIE, 2013). Entre eles o CDO
(collateralized debt obligation) sintético, uma das armas financeiras de destruição em massa, como diria
Gabriel Kolko (2009), e considerada uma das principais responsáveis pela crise.
Mas por que a proposta de fortalecer o FMI?
Por que justamente a instituição que no fim dos
anos 1990 quase alcançou a unanimidade sobre
sua incompetência em supervisionar a economia
mundial? O Fundo é amplamente dominado pelos
Estados Unidos que são seu maior cotista e o único país com direito a veto nas decisões. Dentro da
burocracia do FMI, os funcionários de alto escalão
procuram satisfazer seus interesses pessoais; são
burocratas que em regra recebem elevados salários e, sendo assim, tendem a propor políticas que
atraem prestígio pessoal – como, por exemplo, políticas de arrocho fiscal – junto às autoridades dos
países mais poderosos. Ou seja, apesar das dispu-
55
130/2014
tas, é mais fácil controlar o FMI do que seria caso a
Organização das Nações Unidas (ONU) liderasse os
esforços no começo da crise financeira internacional, e se tornasse o principal fórum de discussões,
conforme apontou Wade (2013).
Considerações finais
Há uma ideia muito difundida entre os estudiosos da Política Econômica Internacional de que as
crises abrem oportunidade para grandes transformações estruturais (BROOME et al, 2012). De fato,
tanto a crise asiática quanto a crise financeira global de 2008 motivaram várias discussões a respeito
dos problemas que o mercado financeiro desregulado traz para os circuitos de acumulação do capital.
Ou seja, a noção de que a crise econômica de 2008
poderia levar a uma nova disposição do poder na
economia mundial em que o setor financeiro perderia o status de dirigente (IDEM, p.9) configurava-se
numa situação factível.
Do mesmo modo, o “renascimento” do FMI parecia refletir a ascensão do poder dos países emergentes, particularmente daqueles que compõem
os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul), em uma nova governança econômica global.
Entretanto, decorridos seis anos desde as primeiras
promessas, poucos progressos realmente ocorreram. Após os piores momentos da crise a força do
movimento mudancista se arrefeceu. Os Estados
Unidos e as principais potências ocidentais continuam atuando segundo seus próprios interesses,
deixando as reformas em segundo plano e longe dos
compromissos assumidos. Com isso, o FMI permanece muito mais como um espectador a serviço dos
países ricos do que uma instituição com poder de
contribuir com mudanças mais profundas na arquitetura financeira internacional.
*Marcelo Pereira Fernandes é professor do
Departamento de Economia da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Notas
(1) Entre essas políticas está o aumento do estoque de reservas
internacionais. Isto desagradou profundamente o FMI, pois é
considerado uma das causas dos desequilíbrios econômicos
globais, especialmente entre os Estados Unidos e a China.
(2) É importante salientar que nem sempre é claro o que são
realmente os “bons fundamentos macroeconômicos”, nem
o que define as “boas instituições”. De qualquer forma,
essas são duas questões que os economistas neoliberais
normalmente entendem como falhas nos países emergentes.
56
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external policies of the union, 2009. Disponível em: <http://
www.globaleconomicgovernance.org/> Acesso em: janeiro
de 2011.
57
130/2014
Atos de 50 anos do golpe
clamam por justiça
Foram levantadas por todo o país as fotografias dos mártires presos, torturados, assassinados e desaparecidos
O alto grau de convergência em torno da democracia e do rechaço à
ditadura, que se expressou inclusive na mídia corporativa, criou um
ambiente favorável à revisão da Lei de Anistia. Uma unanimidade
que se reforçou, em especial pelo caráter de homenagem aos que
resistiram e tombaram na luta pela democracia.
O
Cezar Xavier*
s cartazes constrangedores de marchas em defesa do golpe militar de
1964, ocorridas em março, com sua
minoria de patéticos e anacrônicos
personagens caricatos, tiveram uma
resposta ensurdecedora nos dias que se seguiram.
Na semana em que foram lembrados os 50 anos da
tomada de assalto do poder pelos militares, derrubando o presidente João Goulart, ocorreram manifestações as mais diversas de repúdio ao golpe.
Foram homenageados milhares de cidadãos que
resistiram, pagando um preço alto pela coragem,
mas enfraquecendo gradualmente a ditadura nos
58
21 anos em que vigorou. Mais difícil que dormir
com o barulho dessas homenagens, os torturadores
e “viúvas da ditadura” escondidos na obscuridade
viram forças políticas e sociais as mais distintas se
unificarem em torno do grito de “ditadura nunca mais”, por todo o país. Até mesmo a imprensa
corporativa que apoiou o golpe contra Jango, mas
sofreu as duras consequências da censura, levantou-se para pintar com tintas sujas aqueles tempos
sombrios. Foram lembrados episódios da resistência dos trabalhadores, dos estudantes, dos artistas,
de religiosos, das organizações políticas e da luta
armada.
Brasil
Mas, sobretudo, foram levantadas por todo o país
as fotografias dos mártires presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela repressão. Símbolos
mais contundentes dos diversos crimes cometidos
pela polícia política dos generais, os retratos de fichários policiais expressaram a presença perene que
estas pessoas terão na vida da democracia, “agora e
sempre”, como bradavam os manifestantes. A punição aos crimes de sequestro, tortura, assassinato e
ocultação de cadáver foi cobrada nos atos, manifestações, seminários, festivais culturais e homenagens
que se acumularam, desde o dia 31 de março, quando foi urdido e executado o golpe.
deputado federal, de quem foi possível ouvir apenas
a voz durante o evento.
O deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP)
afirma que a manifestação não pode ser vista como
apenas um pedido de transformação do local em um
centro de memória. “Muito mais importante que fazer o memorial é devolver os arquivos do IML. Nunca
recebemos uma foto, um laudo dos legistas”, pediu
o parlamentar que preside a Comissão da Verdade
Rubens Paiva, na Assembleia Legislativa. Ainda que
carregado de emoção, o ato foi uma profunda reflexão sobre a justiça de transição, seus vácuos e seus
avanços.
Volta à escola da tortura
Agitação na Casa das Leis
Logo cedo, numa manhã de segunda-feira, multiNeste 1º de abril, cinquenta anos depois, a data
dões se dirigiam apreensivos ao 36º Distrito Policial,
foi aclamada como Dia da Verdade, por trazer à meuma delegacia comum num bairro nobre, ali pertimória as mentiras que os militares contaram desde o
nho dos Jardins e da Avenida Paulista. Para muitos,
primeiro dia, tentando ocultar suas intenções autoriuma sensação bem desagradável
tárias. Foi a vez de Brasília lembrar
voltar ao lugar por onde passaram
o dia em que tanques do Exército
até 8 mil presos políticos e morrecobriram a Esplanada dos MinistéOs atos
ram mais de 50. Os cadáveres mais
rios, enquanto soldados cercavam
contagiaram as
famosos ficavam em exibição para
os belos edifícios do Congresso Naos funcionários. Pois então, muitos
cional e palácios de Niemeyer.
plateias mais
sobreviventes das torturas voltaRepetiu-se durante as manifesjovens, que
ram ao local, o prédio que abrigou
tações, em todas as capitais, que,
a Operação Bandeirantes (Oban),
embora tenham perseguido e matapouco conheciam
depois o Destacamento de Operado muitos, “olha nós aqui de volta”.
daquele período,
ções de Informações do Centro de
Foi com esse sentimento catártico
Operações de Defesa Interna (DOIque os atos contagiaram as plateias
mostrando que
CODI) do II Exército.
mais jovens, que pouco conheciam
as ideias, os
No local onde se desenvolveu
daquele período, mostrando que as
a “tecnologia da repressão”, um
ideias, os sentimentos e lutas pela
sentimentos e lutas
“centro de referência de extermídemocracia continuam muito vipela democracia
nio”, como diz a advogada Rosa
vos. Essa continuidade da resistênCardoso, da Comissão Nacional da
cia à ditadura em plena democracontinuam muito
Verdade (CNV). É ela que traduz o
cia é uma demonstração da vitória
vivos
sentido deste primeiro ato polítidaquela geração. Os parceiros que
co, ao dizer que a escolha do local
ficaram pelo caminho foram sauexpressou a “ideia de que sofremos, fomos desfigudados, lembrados, homenageados e chorados, mas
rados, fomos traumatizados, mas sobrevivemos”. A
todos os eventos, pequenos e grandes, foram a expresença de muitos ex-presos torturados naquele
pressão de uma emoção e representação de uma dor
local firmou esse sentimento de sobrevivência no loque ainda não se curou. Mas acima de tudo, as macal onde Wladmir Herzog foi torturado até seu cornifestações contra a ditadura foram a expressão sorpo não suportar, ter a causa mortis oficializada como
ridente de uma vitória garantida com muito custo.
suicídio e gerar uma discussão, inclusive, religiosa,
A Câmara dos Deputados teve seu hall de enque representou um enorme golpe contra a ditadura.
trada, no Anexo II, ocupado por parlamentares e
Os depoimentos de esperança na democracia e
militantes, durante todo o dia. Quem entrava por
as homenagens aos mártires que entraram naquele
ali, inevitavelmente, tomava contato com manifeslugar e não mais saíram, inevitavelmente emocionatações políticas, musicais e teatrais, celebrando a
vam a todos, especialmente os parentes de desaparesistência à ditadura. A deputada Alice Portugal
recidos. Foi assim com os filhos de Rubens Paiva, ex(PCdoB-BA) teve a iniciativa de juntar grupos ar-
59
130/2014
tísticos para encenar os absurdos da ditadura. Figuras conhecidas e prestigiadas pelo regime militar
passavam constrangidas por entre a multidão que
se juntou para rir de uma atriz que encenou uma
entrevista da Dona Ditadura. A senhora caduca repetia os raciocínios ridículos que se ouvem, hoje em
dia, de manifestantes da reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Em solenidade realizada horas antes no auditório Nereu Ramos para relembrar as cinco décadas do
Golpe Militar, um tumulto foi causado quando Jair
Bolsonaro (PP-RJ) subiu à tribuna para discursar em
defesa dos militares. Parlamentares viraram de costas
em protesto e o evento foi encerrado sob polêmica. A
cerimônia continuou informalmente no saguão.
Para sempre, presente!
O maior homenageado neste dia foi Rubens Paiva, o único deputado “desaparecido” pelos militares
em 1971. O homem que comandou uma Comissão
de Inquérito que descobriu o financiamento de organizações norte-americanas aos militares agora estará permanentemente ocupando um lugar de honra
naquela casa legislativa de onde foi expulso pelos
militares. Seu busto foi comemorado com festa e
orgulho pela família do ex-deputado, representada
pelas filhas Vera Paiva e Maria Beatriz Paiva.
Vera comparou o sumiço do pai com o caso de
Amarildo de Souza, pedreiro que desapareceu no
ano passado, após uma ação policial na favela da
Rocinha, no Rio de Janeiro, para criticar a continuidade da tradição autoritária e violenta da polícia brasileira. “Rubens Paiva era pai de cinco filhos,
como Amarildo. Nós escutamos a vida inteira que
Rubens Paiva era um bandido, a família de Amarildo foi chamada de bandida. Foi transformada em
traficante”, disse.
A deputada comunista Jandira Feghali (RJ) afirmou que o sentimento era de que a homenagem veio
com atraso, tanto como o fim da ditadura. Ela se perguntou qual teria sido o crime de Rubens Paiva para
sofrer um destino tão terrível nas mãos do governo
militar. E lembrou tantas iniciativas importantes do
ex-deputado em defesa da soberania do Brasil e da
defesa dos mais pobres. Uma biografia de Paiva, escrita por Jason Tércio, foi lançada naquela noite trazendo detalhes sobre o mandato do deputado, além
de documentos sobre sua detenção.
Unidade política
Jandira lembrou outras ocasiões em que o arbítrio fechou o Congresso e cassou tantos mandatos.
60
Recentemente, por iniciativa de parlamentares comunistas, estas cassações têm sido revertidas, ainda
que simbolicamente. Agora, ela está solicitando a
anulação da legitimidade dos presidentes militares
eleitos por colégio eleitoral daquele Congresso, como uma forma de completar esse ciclo de repúdio à
ditadura. Todas essas iniciativas de resgate democrático se unem no propósito de fortalecer o repúdio ao
golpe militar.
Essa foi a tônica do discurso da deputada Jandira,
no ato político que encerrou o dia em Brasília com a
unidade representativa das forças progressistas que
lutaram pela resistência à ditadura e pelo resgate da
memória e da verdade sobre aquele período. Lideranças do PCdoB, do PT e do PDT, além de entidades
como União Nacional dos Estudantes (UNE) e Central Única dos Trabalhadores (CUT), homenagearam
o presidente João Goulart e o estudante Honestino
Guimarães, perseguidos pela ditadura.
Em referência ao deputado que defende a ditadura militar, e interrompeu a solenidade da manhã,
Jandira afirmou que a unidade política em torno do
repúdio à ditadura mostra que a Câmara consegue
dizer aos provocadores, que o lugar do seu discurso é
“no lixo da história, e é nesse lugar que deve ficar”.
Ela citou Millôr Fernandes ao pedir para “nunca amplificar a voz dos idiotas”.
Assim como a vice-presidenta do PCdoB, deputada Luciana Santos (PE), fez uma análise do Golpe
de 1964 e suas consequências, a partir da leitura que
o Partido Comunista do Brasil tem sobre o assunto, o presidente Renato Rabelo também reafirmou
o protagonismo comunista no ato ocorrido em São
Paulo, no dia seguinte. Desde o contexto de guerra
fria, em que a contenção do comunismo era o álibi
para o golpe – num governo que realizava profundas
reformas de base, passando pela contribuição dos
comunistas à resistência ao golpe, inclusive armada –, ambos os dirigentes comunistas desenharam
o cenário em que os anos 1980 chegaram isolando e
enfraquecendo os militares com a campanha pelas
eleições diretas. A Guerrilha do Araguaia e a violência contra os dirigentes comunistas na Chacina da
Lapa são capítulos especiais dessa luta que fragilizou
a ditadura frente a seus apoiadores e teve os comunistas como protagonistas.
Desde a eleição em 2002, do operário metalúrgico
e da mulher ex-presa política, começa o processo de
estabelecimento das Comissões da Verdade. Mais uma
vez, o PCdoB reafirma que esses espaços de resgate da
memória e da verdade só serão plenos com a punição
daqueles que cometeram crimes e atos sumários.
A Fundação Maurício Grabois e a Fundação Perseu Abramo foram realizadoras aliadas em alguns
Brasil
eventos com este caráter, revelando uma
unidade importante das forças progressistas em torno
deste tema. O presidente da Fundação
Maurício Grabois,
Adalberto Monteiro, avalia como uma
vitória muito clara o
modo como os eventos se espraiaram
por todo o país, unificando forças progressistas dos mais
diversos
matizes,
impelindo a própria
imprensa a publicar
O Monumento ao
conteúdo com a linha de condenação
Nunca Mais em
da ditadura e enaltefrente ao Teatro
Monumentos à democracia
cimento da democracia. “Há praticamente uma unanimidade em
Tuca da PUC-SP
Esse clima de convergência que
torno do festejo da democracia
definiu mais um
cresceu com as manifestações se fore da luta para ampliá-la no pretaleceu em cada um dos eventos. Assente. E apenas algumas poucas
ponto da geografia
sim como o busto de Rubens Paiva
vozes que saem das catacumbas
da resistência à
antecipou o ato político na Câmara,
e dos esgotos que aparecem para
o Monumento ao Nunca Mais em
defender o regime do arbítrio”.
ditadura
frente ao Teatro Tuca da PUC-SP deMonteiro acredita que o
finiu mais um ponto da geografia da
transcurso decidido para o regisresistência à ditadura. O presidente da Comissão de
tro dos 50 anos do golpe reforça o trabalho da ComisAnistia, Paulo Abrão, que inaugura os totens do prosão da Anistia e da Comissão Nacional da Verdade,
jeto Marcas da Memória em pontos estratégicos do
que caminha para pedir a revisão da Lei da Anistia.
país, demarcou os valores e posições em torno de uma
Bandeiras que já deveriam ter sido levantadas em
batalha que tem sido difícil, demorada, mas vitorio1975, no nascedouro da lei, como o paradeiro dos
sa. Não só porque algumas conquistas democráticas
desaparecidos, a punição aos torturadores, o esclareestão sendo implementadas, mas fundamentalmente
cimento das circunstâncias em que se deram a morporque os atos em torno da verdade, da memória e da
te de mais de 400 brasileiros, não se concretizaram
justiça sobre os crimes do passado em todo o Brasil
pela correlação de forças com a qual se deu o fim da
têm reunido amplos segmentos da juventude.
ditadura.
Para Paulo Abrão, é preciso dizer com voz ativa
“Ao se homenagear aqueles que resistiram e tomque a sociedade brasileira não aceita, em nenhuma
baram pela democracia que hoje nós respiramos, tuhipótese, a tomada do poder com uso da força das
do isso ajuda no sentido da revisão da Lei de Anistia.
armas, a ruptura institucional. Segundo ele, o Brasil
O alto grau de convergência em torno da democracia
está vencendo o negocianismo, o medo de discutir o
e o rechaço da ditadura criaram, sim, um ambiente
passado, porque hoje é muito mais difícil sustentar
favorável para que largos setores do povo compreenteses de que a torturas não existiram e negar que o
dam que, quando se defende a punição aos agentes
Estado criou deliberadamente um aparato sistemádo Estado que praticaram o crime de tortura, não se
tico de destruição de vidas.
trata de cultivar o ódio, ou de vingança, mas de fazer
O Tuca foi então invadido pelos acordes nostálgijustiça, sobretudo no sentido de que tais crimes não
cos de canções dos anos mais tristes das décadas de
se repitam no presente e no futuro do país”, afirmou
1960 e 1970, como Viola Enluarada, de Marcos Valle,
Monteiro.
61
130/2014
jogaram uma pá de cal sobre a ditadura e a luta
cantada pelo Coro Luther King, também criado em
pela Verdade e Memória, representada pelas Co1970 por Martinho Lutero. Encontros inusitados e
missões da Verdade.
históricos encantaram os presentes como o arranjo do
coro para Calabouço, cantada pelo próprio compositor
Pequenas testemunhas
Sérgio Ricardo, homenageado como
do horror
um dos artistas que enfrentaram a
ditadura com sua música. Também
Nos dias que se seguiram, a
compositor da trilha sonora do clásFundação Maurício Grabois e o
sico cinemanovista Deus e o Diabo na
PCdoB estiveram envolvidos na
Terra do Sol (Glauber Rocha), Sérgio
realização de atos semelhantes em
acompanhou com o piano a récita
capitais como o Rio de Janeiro, em
do poeta Thiago de Mello, reeditanFlorianópolis e Porto Alegre, onde
do a parceria do show Faz Escuro Mas
houve o lançamento da “edição
Eu Canto.
anistiada” do Livro Negro da DitaEm uma aparição rara, o poeta
dura. Uma publicação clandestina
de 88 anos deixou a cidade-natal
que provocou rebuliço no início
de Barreirinha, na Amazônia, para
dos anos 1970 e, agora, volta numa
ocupar o palco da PUC com a moreedição fac-similar daquela que
numentalidade de seus versos que
circulou entre a resistência.
marcaram a geração dos anos de
A semana do golpe se encerrou
chumbo: Fica proibido o uso da paEntre os vários
com a realização da 81ª Caravana
lavra liberdade,/ a qual será suprida Anistia, em que foram julgamida dos dicionários/ e do pântano
eventos ocorridos,
dos os casos de filhos e filhas de
enganoso das bocas./ A partir deste
houve o lançamento ex-presos políticos. Conforme o
instante/ a liberdade será algo vivo e
Estado brasileiro pedia desculpas
transparente/ como um fogo ou um
da “edição
pelo sofrimento daquelas pessoas
rio,/ e a sua morada será sempre/ o
anistiada”do Livro
– entre as quais, muitos filhos de
coração do homem. Com a lucidez e
comunistas perseguidos, presos,
dignidade de quem enfrentou ditaNegro da Ditadura.
torturados ou exilados –, ouviamduras ao lado de Pablo Neruda, no
Uma publicação
se os testemunhos dolorosos da inexílio, Thiago contou como gostaria
fância roubada pela ditadura.
que o poeta chileno tivesse visto
clandestina que
Crianças que lembram a infânos milhões de brasileiros nas ruas
provocou rebuliço
cia como um mistério, cercada de
durante as manifestações pelas Dimentiras e omissões que sequer
retas. Conforme os golpes cobriam
no início dos anos
entendiam, devido à necessidade
o continente de trovoadas, Thiago
1970 e, agora, volta
de se proteger ou aos pais. Outras
ficou chateado ao ouvir de Neruda
que foram efetivamente presas ou
que os brasileiros não eram como
numa reedição
presenciaram a violência brutal
os chilenos que resistiriam a Pinofac-similar daquela
contra os pais. A vida sem uma fachet nas ruas, desde as donas de
casas com seus panelaços.
que circulou entre a mília ou vivendo na penúria não
foi suficiente para destruí-los, ainJoão Alexandre Goulart tamresistência
da que carreguem cicatrizes que
bém recebeu flores em homenaevitam tocar.
gem ao avô, que morreu no exílio
Cada testemunho foi também
argentino. O ato foi aberto com
uma homenagem aos pais, pelo orgulho que legaimagens do discurso de Jango no comício da Cenram aos filhos pela luta em defesa da democracia, ou
tral do Brasil, quando é eternizada sua vontade de
simplesmente por terem sido capazes de torná-los
efetivar as reformas de base que, até hoje, não se
homens e mulheres melhores. Como declararam de
concretizaram no Brasil. Outras homenagens fomãos dadas André e Priscila Cunha Arantes, se puram feitas à resistência estudantil, na pessoa da
dessem voltar no tempo e escolher os pais, escolhepresidenta da UNE, Virgínia Barros, e à solidarieriam os mesmos Aldo e Dodora Arantes.
dade e coragem de dom Paulo Evaristo Arns e outros líderes religiosos, na pessoa de Paulo Pedrini.
Foram lembradas as lutas dos trabalhadores que
Cezar Xavier é editor executivo do Portal Grabois.
62
Brasil
Princípios entrevista Thiago de Mello
Um canto que enaltece a luta por
um Brasil humano e solidário
Amaro Fotografia/Fundação Maurício Grabois
Nesta entrevista exclusiva à Princípios, o poeta Thiago de
Mello, um dos maiores nomes da cena literária em nosso
país, fala sobre sua vida, suas convicções e sua poesia. Ao
falar de seu novo livro de poesias, Ajuste de Contas, afirma
que se trata de uma “prestação de contas”. “Eu presto contas
a mim mesmo, à minha vida. Acontece que a minha vida
são os outros. Por isso é que o livro que sai depois, em prosa,
chama-se Eu e os outros comigo. Eu estou pensando nos
outros, em vocês que estão aqui. Eu não vivo sem vocês. Eu
não vivo sem o povo, sem gente, sem os outros...”
Thiago de Mello fala durante ato político-cultural alusivo aos cinquenta anos do golpe militar de 1964, no TUCA, em São Paulo
63
E
130/2014
m 1950 um jovem decidiu levar seus poeCarlos Heitor Cony, Antonio Callado, Márcio Moreimas a Carlos Drummond de Andrade.
ra Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de AndraDisse que estava pensando em abandonar
de, Mario Carneiro, Flávio Rangel e do embaixador
a medicina para se dedicar exclusivamenJayme Azevedo Rodrigues, ficou conhecido como os
te às letras. Drummond desaconselhou o
“oito da Glória”. Thiago conseguiu escapar da prisão
iniciante a fazer tal loucura, pois dificilnaquele momento, mas apresentou-se às autoridamente conseguiria viver da poesia. O condes em seguida.
selho não surtiu efeito. Decidido, o jovem
O poeta também se envolveu na organização do
poeta abandonou a carreira médica e, no ano seMovimento Nacionalista Revolucionário (MNR),
guinte, publicou Silêncio e Palavra, livro que teria boa
composto por ex-militares cassados ligados ao líreceptividade da crítica. Nascia assim a trajetória de
der trabalhista Leonel Brizola, que organizou entre
Thiago de Mello, um dos maiores
1966 e 1967 a chamada Guerrilha
nomes da cena literária em nosso
do Caparaó. Entre setembro e outupaís.
bro de 1969, Thiago foi obrigado a
Não pode haver
Nascido em 1926 na pequena
entrar para a clandestinidade e sair
divórcio entre o
Barreirinha, no estado do Amazodo país. Seguiu para Montevidéu e
nas, o poeta mudou-se ainda criande lá se deslocou para o Chile, onde
homem e o poeta.
ça para Manaus, cidade na qual
retomou os contatos com a intelecNão pode haver
iniciou seus estudos. Seguiu mais
tualidade daquele país. Usou sua
tarde para o Rio de Janeiro, onde
influência para denunciar as priseparação, tem
ingressou na Faculdade Nacional
sões e torturas e para apoiar a resisde haver uma
de Medicina. Trabalhou como ajutência no Brasil. Com o golpe lidedante de cozinheiro para custear
rado por Pinochet em setembro de
coerência entre a
estudos, alimentação e moradia.
1973, exilou-se na Europa até 1978,
pessoa e o escritor
Em 1957 foi convidado a diriquando enfim retornou ao Brasil e
gir o Departamento Cultural da
se fixou em Barreirinha, sua cidade
Prefeitura do Rio de Janeiro. Entre
natal.
1959 e 1960 foi adido cultural na Bolívia e no PeDe volta ao Brasil montou – ao lado do composiru. De 1961 a 1964 desempenhou a mesma missão
tor Sérgio Ricardo – o show Faz escuro mas eu canto,
em Santiago (Chile). Entre 1963 e 1964 trabalhou
dirigido por Flávio Rangel, que percorreu diversos
na tradução da primeira antologia poética de Pablo
estados brasileiros. Ainda no período ditatorial puNeruda publicada no Brasil. Nos anos seguintes,
blicou, entre outros, Faz escuro mas eu canto (1965),
convicto da necessidade de integrar culturalmente
A canção do amor armado (1966) e Poesia comprometida
a América Latina, traduziu diversos outros poetas e
com a minha e a tua vida (1975). Thiago é autor de
escritores hispano-americanos, a exemplo de Mario
uma obra reconhecida e respeitada que conta com
Benedetti e Jorge Luis Borges.
cerca de trinta títulos, nos quais três temáticas se
No Chile conviveu não apenas com Neruda, mas
entrelaçam: os oprimidos e a luta por uma sociedade
com Salvador Allende, que pessoalmente lhe transsolidária, um extraordinário lirismo – amoroso e fimitiu a notícia do golpe militar ocorrido no Brasil
losófico – e a defesa do meio ambiente.
em 31 de março de 1964. Thiago de Mello decidiu reNo último dia 2 de março Thiago participou, em
nunciar ao cargo de adido cultural, apesar dos pediSão Paulo, do ato político-cultural alusivo aos cindos do embaixador e do chanceler brasileiro. Indigquenta anos do golpe militar de 1964, evento ocorrinado, naquele mesmo momento começou a redigir o
do no Tuca, teatro da Pontifícia Universidade Católipoema Estatutos do Homem, que seria prefaciado por
ca de São Paulo (PUC-SP), repleto de simbolismo no
Neruda. Nele, eternizou sua posição contra o autorique respeita à resistência contra a ditadura. Antes
tarismo e a favor da liberdade.
do evento ele esteve na sede da Fundação Maurício
Em 1965 o poeta resolveu voltar ao Brasil paGrabois, onde falou de sua vida, de suas convicções
ra combater a ditadura. Foi preso logo na saída do
e de sua poesia. Princípios transcreve, abaixo, os prinavião, e libertado pouco após. Em novembro de 1965
cipais trechos da entrevista concedida a diretores e
envolveu-se na manifestação realizada por um grucolaboradores da Fundação.
po de intelectuais em frente ao hotel Glória, no Rio
de Janeiro, durante a abertura da II Conferência Extraordinária da Organização dos Estados AmericaPrincípios – Você nos disse, lá atrás: “Faz escunos (OEA). O episódio, que resultaria nas prisões de
ro mas eu canto”. O escuro, de alguma forma,
64
Brasil
Thiago de Mello em entrevista
com integrantes da Fundação
Maurício Grabois
obra a serviço dessas duas causas. Eu devo muito
se foi. Sobreveio alguma luz, e você continua
ao instante em que fui chamado por Mario Benecantando. O que te move a cantar sempre? De
detti, lindo companheiro uruguaio, poeta uruguaio
onde vem a persistência do teu canto?
maravilhoso... Houve a celebração do centenário de
Thiago de Mello – Eu dou a resposta que merecem toRuben Dario em 1967, em Havana, Cuba. O Mario
dos vocês, e que merece esta casa de Maurício [Grame chamou e falou: “Vamos fazer
bois], ela que é banhada pela luz
uma coisa: vamos escrever um texda esperança. Esse canto nasce do
to. Nós dois assinamos e depois vasonho escuro das crianças que dorA nossa América
mos ver quem assina também. Tem
mem com fome, e da minha certeza
muito escritor aqui, muito poeta,
muito pessoal de que ainda é possíé um pedaço do
muito romancista, muito crítico”.
vel, sim, a construção de uma sociemundo que se
E fez oito linhas só para dizer que
dade humana e solidária no Brasil.
não pode haver divórcio entre o
E eu acho que devo fazer a minha
comunica pouco,
homem e o poeta. Não pode haver
parte. É só isso... É só isso, mas é
que ainda se
separação, tem de haver uma coedanado de difícil...
desconhece bastante rência entre a pessoa e o escritor.
Ele tem que assumir o que diz na
Princípios – Temos lido declarações
sua vida. Não pode haver esse musuas nas quais você fala de ouro entre o dizer e o fazer. Foi muito
tras motivações, ao lado desta
importante para mim esse momento. Muitos se reque você acaba de sublinhar – que é tua coecusaram a assinar porque disseram que é impossível,
rência, desde sempre, teu engajamento na luta
na sociedade em que a gente vive, ser coerente. Você
por uma sociedade humana, solidária. Temos
tem que viver de acordo com as leis da sociedade.
lido palavras referentes a outras causas conecNuma sociedade capitalista, você tem de ceder e
tadas a esta. Uma é a integração cultural da
conceder a cada instante. E eu decidi não ceder nem
América Latina, que você apregoa, para a qual
conceder em favor do grande inimigo da justiça, inivocê busca dar sua contribuição escrevendo e
migo da redenção de um povo que sofre.
traduzindo obras. Outra questão importante é
Você falou da integração latino-americana. A
o teu engajamento, desde sempre, na presernossa América é um pedaço do mundo que se covação da floresta.
munica pouco, que ainda se desconhece bastante.
T.M. – Quero aproveitar para dizer que, quando canÉ preciso afirmar isso com esperança, mas dizer a
to, quando escrevo coloco a minha vida, a minha
65
130/2014
verdade. A Venezuela sabe muito pouco do Uruguai,
nossos irmãos da América Latina, também descoo México não sabe quase nada da Bolívia – o que sanhece o maior manancial de vida que tem o planebe são aquelas coisas que ficaram vulgares e viraram
ta, a floresta amazônica. O Painel Internacional de
clichês. Nós próprios, que somos companheiros de
Mudanças Climáticas das Nações Unidas afirmou no
luta, sabemos pouco sobre o que acontece [na Améseu quinto relatório que, na segunda metade deste
rica Latina], mesmo na Revolução Cubana, [sabeséculo, a vida na floresta amazônica começaria a ser
mos pouco] os motivos dos golpes...
afetada pelo aquecimento do planeta. Esse relatório
Gostaria de resumir essa questão da integração
foi divulgado no dia do maior fracasso da esperança
da América Latina com um presente que vou dar a
humana, que foi a reunião de Copenhagen, em 10
vocês hoje [entrega o livro Poetas da América de cande dezembro de 2010, quando 193 chefes de Estado,
to castelhano, antologia editada em
presidentes da república e primei2011 pela editora Global com seros-ministros reuniram-se para fiEstamos em 2014,
leção, tradução e notas de Thiago
xar o nível máximo para a emissão
de Mello]. É um trabalho de doze
dos gases malignos com as quais
50 anos depois.
anos. Na contracapa tem um vernós queimamos o planeta, a nossa
É preciso contar
so do Neruda, em que ele diz que
morada, e eles não chegaram a um
não conhecia essa virtude minha,
acordo. Como não chegaram a um
esta história para as
a da perseverança, quando eu puacordo, não quiseram ler, em voz
novas gerações, mas alta no plenário, e discutir a afirbliquei a primeira antologia dele.
Ele elogiou o trabalho. Na verdade,
mação dos 283 cientistas do Painel
seguir construindo
estávamos numa mesa; ele traduInternacional.
algo em seu lugar.
zia meus poemas e eu traduzia os
Eu busquei contribuir para o codele... Ele traduzia meio brincando,
nhecimento da floresta com meus
Reforçar a luta
e eu levava a sério. Para traduzir o
livros. São seis ou sete livros só
contra a repressão
poema Alturas de Machu Picchu eu
sobre a vida na floresta: suas lenlevei 43 dias. Mas ele traduziu os
das, seus mitos, seus milagres, suas
e em favor das
Estatutos [do Homem] de uma vez
grandezas, suas misérias também...
reformas irá acelerar Afirmei com veemência que, densó.
Então trabalhei doze anos para
tre os bilhões de vegetais que ali
a transição ainda
colocar a poesia a serviço da inteexistem, não chegam a cinco por
inconclusa rumo
gração cultural da América Latina.
cento aqueles cujos princípios quíEscolhi meus poetas queridos. Não
micos ativos foram estudados no
a uma sociedade
sei se são grandes, ninguém tem fiBrasil. Os naturalistas, os biólogos
verdadeiramente
ta métrica para medir poeta. Quem
e os cientistas europeus estudaram
é grande? Eu sei que a poesia não
a floresta. Nós, infelizmente, não
democrática
dorme com quem é pequeno, a
estudamos.
poesia não gosta. Então eu escolhi
Quando os portugueses chega148, 150 poetas e selecionei cinco,
ram lá na Amazônia – tem uma
seis, oito poemas de cada um. Acontece que um editerceira carta do Caminha que conta essa história,
tor brasileiro que é dono de doze editoras recusou o
para falar que as índias eram fogosas, atraentes etc.
livro, que já estava quase pronto para a impressão.
–, um alferes encostou-se num galho e uma índia
Fizeram um ibope e julgaram que o livro não venchegou com uma copaíba. A copaíba e a andiroba já
deria. Eu disse “não faz mal” e pedi para que me
existiam quando os portugueses chegaram, como já
devolvessem [os originais]. Disse: minha preocupahavia uma cultura brasileira, indígena, que perdura
ção era mostrar ao leitor brasileiro como é a vida do
até hoje dentro da nossa vida. Aliás, recentemente,
povo. Escolhi poetas latino-americanos que cantam
há menos de dez anos, os EUA queriam patentear a
a vida de seu povo. O povo ama, mas há também o
copaíba, porque estudaram que essa planta não tem
problema da resistência, da luta, da esperança. São
só virtudes cicatrizantes, não. Ela tem outras propoemas conscientizadores.
priedades, inclusive capazes de agir sobre os neurônios cerebrais. O Philip Lovejoy, um desses biólogos
Princípios – E quanto à sua, à nossa floresta, que
norte-americanos, que há dezessete anos trabalhou
é também a de todo o povo brasileiro e, noutra
no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Indimensão, de toda a humanidade?
pa), lá em Manaus – ele foi muito ligado à floresta
T.M. – Assim como o Brasil desconhece a vida de
amazônica –, leu sobre isso e foi mais além. Ele disse:
66
Brasil
“Se o Brasil montasse laboratórios dentro da floresta
mesmo, com microscópios poderosos para estudar os
princípios químicos ativos de vegetais, seja de um
galho, de uma folha, de uma casca de árvore, de uma
raiz, o Brasil seria o país mais poderoso”. Chegamos
hoje à condição de sexta potência mundial. Mas se o
Brasil fizesse isso seria ainda mais poderoso porque
mudaria a própria cultura brasileira. Ele seria um
país rico porque acabaria com a miséria e a pobreza
de seu povo. No entanto, a unha de gato, um cipó
grosso, está sendo estudada em Estocolmo. Sei disso
porque estive na Suécia, recentemente.
Princípios – Enquanto isso, aqui no Brasil os
cientistas chegam a ser criminalizados quando
tentam estudar nossa biodiversidade, por conta da burocracia e de leis inadequadas, avessas às necessidades colocadas pelo desenvolvimento do país...
T.M. – Gostei muito de vocês falarem isso. A unha
de gato, descobriu-se em Estocolmo, tem o poder de
impedir o desenvolvimento de células cancerosas,
quando o câncer é diagnosticado precocemente. Isso
pode ser obtido apenas com a ingestão diária do chá.
Princípios – É uma planta tipicamente brasileira?
T.M. – Tipicamente brasileira, só existe na floresta
amazônica. Dizem que existe também no Congo. Dizem, porque não há uma afirmação científica. Mas a
unha de gato é tipicamente brasileira.
Princípios – Poeta, o ardor com que você defende
a floresta, a justiça social e outras causas importantes é o mesmo com que você se lançou à
luta contra a ditadura...
T.M. – A beleza de um povo que derruba uma ditadura, você sabe como é. Tenho muito respeito por São
Paulo porque foi aqui que mais de dois milhões de
brasileiros foram para a Praça da Sé, enquanto nos
porões do Planalto se conspirava para que a máquina
de reproduzir ditadores do Congresso elegesse mais
um deles. E depois de São Paulo foi a Guanabara,
com outros dois milhões. Foi o povo quem derrubou
a ditadura. O povo não ficou entregue: “Eleições Diretas Já!” – e o Brasil inteiro começou o movimento
das diretas. Quando parcela de um povo se conscientiza, sabe as razões por que esse povo está sendo
oprimido, a primeira coisa que faz é querer organizar-se, organizar-se para lutar. Esse povo conscientizado vai crescer e vai ser invencível.
Então esta é a questão da participação popular...
Eu estava em Lisboa quando aquele poeta negro lindo, o Agostinho Neto, tomou posse [na Presidência
de Angola]. Da mesma forma que Maurício [Gra-
Faz escuro mas
eu canto
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.
bois], ele comandou a guerrilha... E triunfou! Agostinho pensou que eu estava na Alemanha, mas eu
estava indo para Portugal. Ele mandou me buscar.
Quando foi depois da posse dele, fizeram um abrigo
lá no quintal. Ele me chamou e falou, e com aquele acento de português africano: “Óh, Thiago! Óh,
Thiago!”. Ele disse uma frase que eu nunca esqueço:
“Muito quando eu posso, eu falo com os moços...”.
Princípios – Você chegou a ser preso na época da
ditadura?
T.M. – Eu fui preso, mas não me gastaram, não. Fiquei um mês e meio só, interrogatório, tal isso, tal
aquilo. E quando eu saí organizaram uma entrevista
coletiva na qual eu disse que não iria aceitar o oferecimento de Harvard para estudar a história da floresta amazônica. Em Portugal queriam que eu ficasse...
Disse: “Não, eu vou estudar na floresta com o povo
que vive nela e vive dela. O povo é quem sabe como
é que são [as coisas]...”.
Princípios – Seus poemas fizeram tão mal assim
à ditadura?
T.M. – Dizem que sim. Quando eu recebi a notícia
de que havia a ditadura, eu estremeci, meu corpo
estremeceu. “Ditadura no Brasil?! Não é da índole
de nosso povo!”. Dezesseis dias depois do golpe veio
a mala diplomática. Toda semana, toda embaixada
recebe. Vinha o Correio da Manhã, jornal do querido
Carlos Heitor Cony, que foi o primeiro intelectual, o
primeiro escritor brasileiro que ergueu sua voz, com
a crônica A revolução dos caranguejos e, depois, com O
ato e o fato. Quando eu vi a fotografia do Gregório Bezerra, esse líder camponês que era do Partido, sendo
67
130/2014
puxado por uma corda amarrada no pescoço, só de
calção, descalço, o peito todo lanhado, pelas ruas do
Recife – puxado pelo coronel cujo nome eu não revelo porque ele tem netos –, eu disse: “Não...”.
Isso coincidiu com a publicação, a divulgação
nacional do Ato Institucional nº 1. Disse: “Este país
não é o meu, não. Meu povo não é assim. A índole
do meu povo não é autoritária”. Então eu vi, já em
meados de maio, a fotografia, também no Correio da
Manhã, de Astrojildo Pereira num catre, algemado
por trás, sereno, e a biblioteca dele toda queimada...
Nesse dia eu escrevi minha renúncia ao meu posto
diplomático, e escrevi os Estatutos do
Homem de noite, respondendo a todos os decretos...
Quando
Princípios – Os Estatutos significaram um momento importante
na luta de ideias contra a ditadura...
T.M. – Esse poema desgarrou-se de
mim, foi traduzido para mais de
trinta idiomas. Hoje ele faz o que
quer. Eu não sou mais responsável
por ele. Ele está por aí... Outro dia
a Folha de S.Paulo foi lá me entrevistar e revelou para mim que [risos]
os cinquenta anos da ditadura são
os cinquenta anos dos Estatutos também. Eu perguntei: “Está tudo registrado? Não é possível...” [risos].
Mas foi no mesmo dia, sim.
Princípios – Quando você decide demitir-se do
Itamaraty, várias pessoas próximas lhe pediram para não renunciar. Fale-nos um pouco
sobre aquele episódio.
T.M. – Eu não quis servir de exemplo para ninguém.
Foi uma questão absolutamente pessoal, de consciência minha.
Sinto-me muito dignificado, não
parcela
sei se pela infância que eu tive, pede um povo se
la formação que eu tive, de criança
pobre, convivendo com camponeconscientiza, sabe
ses, com cultivadores como meu
as razões por que
pai... Foi absolutamente pessoal.
Mas foi um exemplo luminoso,
esse povo está
não? Repercutiu. Porque a renúnsendo oprimido,
cia foi acompanhada dos Estatutos
do Homem, poema que eu digo não
a primeira coisa
ser mais meu. E não é o meu meque faz é querer
lhor poema coisa nenhuma. Pode
ser o mais famoso, mas eu tenho
organizar-se,
outros...
organizar-se para
lutar. Esse povo
conscientizado vai
crescer e vai ser
invencível
Princípios – E quanto à manifestação na reunião da OEA, aquela que ficou conhecida como os
“oito da Glória”?
T.M. – Eu lembro que, quando tempos depois voltei
ao Brasil, fizemos aquela manifestação no hotel Glória, que ficou famosa. Fomos todos presos... Era uma
reunião da OEA. De noite tínhamos pintado faixas
etc. com os dizeres “Abaixo a Ditadura, Viva a Liberdade!”. Quando o secretário de Estado norte-americano, o Foster Dulles, entrou junto com o Castelo
[general Castelo Branco], eu não me contive e disse
que ele era um filho daquilo, daquilo e daquilo outro.
Eu sei que correram para cima de mim, deram-me
uma chave de braço (como se dizia antigamente). E
eu dizia: “Tira a mão!”. Ele disse: “Tira esse homem
daqui!”. Tanto que eu fui preso em separado.
Foi a primeira vez que se manifestaram os escritores, os artistas e os chamados intelectuais – palavra de que não gosto porque acho que um operário
que sabe a causa pela qual ele é explorado, ou um
68
camponês que sabe etc., é também um intelectual:
ele sabe inteligir a razão, as causas, e assim ele é um
intelectual também. Mas, retomando, pela primeira
vez os escritores, os artistas tomaram a frente. Eu
lembro que consegui a assinatura de Pixinguinha,
de Lúcio Costa e de outros para essa causa...
Princípios – Quer dizer que, enquanto a ditadura baixava o
Ato Institucional no 1, você decretou...
T.M. – “Fica decretado que agora
vale a verdade.” Por falar nisso –
faço questão de contar a vocês –,
ano passado o João Paulo dos Reis
Veloso me chamou para o Fórum Nacional, aquele
que ele organiza anualmente. Era o 15º Fórum Nacional. Ele me telefonou lá para a floresta, perguntando se eu não podia assistir o Fórum etc. Talvez ele
não saiba que o verbo assistir tem várias designações
semânticas: assistir ao filme, o médico assiste o paciente etc. Eu disse: “Olha, eu assisti ao 10º Fórum.
Estava no Rio, aprendi muito etc.”. Eles escolhem
350 brasileiros (cientistas, ministros, artistas, gente
da favela etc.).
Quando eu cheguei a Manaus tinha um folder
enorme. Eu pensava que iria realmente só assistir ao
Fórum. Aí eu chego a Manaus e tem um folder com
toda a programação. A abertura ia ser com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e no final do folder
tinha assim: “Encerramento do Fórum: poeta Thiago
de Mello, com os ‘Estatutos do Homem – antes e ago-
Thiago de Mello
Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente) A Carlos Heitor Cony
Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
69
130/2014
ra’”. Estavam imprimindo cinco mil exemplares do
meu primeiro poema lá. São três versos, que eu não
livro para distribuir. Eu telefonei para o Reis Veloso
sabia que eram versos...
imediatamente: “Escuta, você pediu autorização da
Aconteceu quando um companheiro meu, caboeditora? Porque se não o departamento jurídico vai
clo que não sabia nadar, empinava pipa (papagaio,
em cima do fórum... Agora, tem outra coisa: eu não
como a gente chama no Norte). Era numa serralhevou poder aceitar isso aí, porque antes eu sei porque
ria na frente do rio Negro. Eu sei que ele conseguiu
eu escrevi o poema, mas agora...”. Ele insistiu muito.
cortar outra pipa e ela veio embolada com os outros
Sabe o que eu fiz? Disse o seguinte: eu fui ajudado.
papagaios. E a gente correu: “Vai, vai...”. Aí ele caiu
Pelo Cony, pelo Marcelo Cerqueira, pelo negro linna água. Eu vi quando um caboclo forte se jogou –
do da vida, Joel Rufino dos Santos,
eu cheguei atrasado, já não se via
um de meus escritores prediletos...
mais ele. De repente eu vi os olhos
Eu falei tudo de antes, e sobre o
Por que a economia, dele, o resto dele... Era meu cole“agora” eu decidi fazer perguntas.
ga de verdade. Fui pra casa, trepei
que está em sexto
O Reis Veloso concordou, e a secrenum abieiro, numa forquilha, astária preparou. Fiz cinco perguntas,
sim sentado e, de repente, eu falei
lugar, não desce
ele projetava na parede as perguntas
em voz alta, sozinho: “Vi meu amia escala mundial
e ele mesmo lia. A primeira pergungo morrer / Afundando no peral /
ta nem era minha, era de Rimbaud:
O que vai acontecer?”. Essa indae vai buscar a
“Por que adiar tanto o que é inadiágação, de natureza transcendente,
educação, que está
vel, o que é ardentemente inadiámarcou muito minha poesia, anvel?”. Aí veio outra pergunta, depois
tes de qualquer coisa. E quando o
em 63º? Sabe o
outra etc. Quando chegou a quinta
[Manuel] Bandeira soube disso,
que a educação vai
pergunta, eu disse: “Olha, eu preciele disse: “Você fez um terceto, e
so demais das respostas, quaisquer
cada verso tem sete sílabas”. Quer
dizer? Olha, dona
que sejam, a esta pergunta: por que
dizer que nasceu pronto, já. Eu não
economia, eu só
a economia, que está em sexto luesperava contar isso.
gar, não desce a escala mundial e vai
vou se você descer
buscar a educação, que está em 63º?
Princípios – Como foi sua relação
comigo até o 86º
Sabe o que a educação vai dizer?
com os concretistas?
Olha, dona economia, eu só vou se
T.M. – Os concretistas de São Paulugar, onde está
você descer comigo até o 86º lugar,
lo fizeram um grande dano que
a saúde do povo
onde está a saúde do povo brasileiperdura até hoje, e que vai se
ro. Aí nós podemos acompanhá-la
prolongando, porque eles eram
brasileiro
de volta ao sexto lugar e estará tudo
professores de universidades. O
certo.” Lembro que foi uma pausa,
concretismo tinha como bandeio Mantega fazia assim com a cabeça [risos]... Quer
ra eliminar a poesia, o sentimento e o verso. Como
dizer, era a minha inquietação social...
é que pode? Então disseram: “Que pena, o Thiago
agora faz poesia política”. Não! Eu faço poesia da viPrincípios – Houve um momento específico em
da. Eu posso cantar o joelho da moça que está ali, a
que você descobriu que foi pego pela poesia e
constelação, mas eu posso cantar também a injustidisse “tô ferrado”? Ou ela foi acontecendo de
ça, a dor, a mulher que está tendo filho na calçada...
maneira natural? Nasceu da floresta, houve
Já é a quinta mulher que tem filho na calçada em
um lugar específico de onde ela veio?
Manaus, porque não tem vaga no hospital. Eu fiz um
T.M. – Tenho a convicção de que a poesia é um dom.
poema para o menino: “Na calçada porque não tinha
Ninguém se faz poeta. Lembro que eu era meio melugar”. Na verdade, faz tempo que os pobres estão
nino quando fui viver lá no sul da França, no atecom falta de lugar para ir...
liê do Picasso. Ele dizia que, quando deu por si, já
estava desenhando, ainda menino. O artista nasce.
Princípios – Você nos falou de uma boa nova. ConVocê pode aprender a desenhar, você pode aprentou-nos de um lote – permita-nos dizer, compader a teoria da cor, o escultor pode ter um método.
rando com um lote de boas garrafas de vinho
Agora, o poeta... Eu posso dizer que no livro que
– de cem poemas inéditos. Fale-nos um pouco
publicarei em breve, que se chama Ajuste de Contas,
mais desse livro, desse filho novo que vem vineu pretendo... Bem, com ele eu acho que eu encerdo, da temática desses poemas que você vai puro. São cerca de cem poemas inéditos, e eu coloco
blicar. São de temática única ou variada? Você
70
Brasil
nos diz que os Estatutos não são seu melhor poePrincípios – O verso literalmente bateu na parema. Estes que vêm agora seriam os melhores?
de e voltou para você...
T.M. – Acho que sim... Porque arte é trabalho, não é
T.M. – É... Mas eu falava do leitor – ele é meu provemesmo? Quando me perguntam do que eu gosto na
dor. Eu, sem meu leitor, não sou nada. E sem vocês...
literatura brasileira, eu cito logo Machado de Assis,
Conversando com vocês eu também estou conversou machadiano, amo Machado. Eu vou voltar ao
sando comigo, sabendo da minha vida... O olhar de
que falei ainda há pouco: ele não era poeta, mas tivocês me ajuda muito.
nha tal domínio do idioma, esse mulato maravilhoso
Agora, a leitora, quando o poema é de amor, en– que nem terminou o curso primário –, tal domínio
xerga coisas que só ela vê. Ela descobre na metáfora.
do idioma que conheceu os segredos mais íntimos
A mulher sabe mais do que o homem, mas no final,
da palavra e foi capaz de fazer o soneto da Carolina e
quando ela gosta da gente, ela enxerga, ela recolhe o
o Círculo Vicioso. Um ficcionista extraordinário... Mas
que viu e entrega.
nenhuma arte dá mais trabalho do
Certa vez eu estava vendo a
que a poesia. Então com o tempo
exposição da Ana Letícia e então,
a gente adquire... Não digo nem
na galeria, eu ouço no meu ouDisseram: “Que
capacidade autocrítica, não, mas o
vido assim: “Na fogueira do que
domínio do fazer poético. A gente
pena, o Thiago agora faço por amor me queimo inteisabe que acertou mais no dizer, que
ro”. Acho que esse verso está em
faz poesia política”.
a gente escolheu bem as palavras e
Mormaço na Floresta. Aí eu me virei
o lugar certo onde elas devem ficar.
e vi um homem. Achei bonito, ele
Não! Eu faço poesia
Meu livro novo chama-se Ajuste
era bonito. Olha, eu também acho
da vida. Eu posso
de Contas. Eu presto contas a quem?
homem bonito, viu? Eu não sou...
Eu presto contas a mim mesmo, à
Não! Mas... Só mulher é bonita?
cantar o joelho da
minha vida. Acontece que a minha
Não tem homem bonito? Mas,
moça que está ali,
vida são os outros. Por isso é que
voltando ao assunto, aquele hoo livro que sai depois, em prosa,
mem falou para mim: “Você me
a constelação, mas
chama-se Eu e os outros comigo. Eu
salvou!”. Então eu lembrei que
eu posso cantar
estou pensando nos outros, em voos versos eram meus. “Por quê?”,
cês que estão aqui. Eu não vivo sem
perguntei. Ele disse: “Minha fatambém a injustiça,
vocês. Eu não vivo sem o povo, sem
mília era contra eu me casar com
a dor
gente, sem os outros... Ninguém viuma mulata. Pois, olha, estou feve sozinho, não é? Então eu estou
liz, já tenho quatro filhos. Eu me
prestando contas a meus leitores.
queimei com a minha família, me
Aliás, o primeiro poema, que também se chama Ajusjoguei, me queimei todo!”.
te de contas, tem quase quatro páginas, e eu tinha me
Princípios – Você foi culpado de várias coisas,
esquecido de falar dos meus leitores. Aí veio então
então...
uma estrofe de quatro versos...
T.M. – De várias felicidades. Eu vou dizer para
Consegui chegar a uma linguagem que, sem perder
o valor estético exigido pela arte poética, é acessível ao
vocês um poema, e vou-me embora. Não vou dileitor comum. Ganhei essa preocupação quando houzer nenhum inédito, não. Tem uma coisa que eu
ve a Passeata dos Cem Mil. O [Vladimir] Palmeira codescobri, e que vale para cada companheiro. É
um poema muito trabalhado que se chama O ser
meçou a gritar “Faz escuro mas eu canto”, e eles foram
em soneto. Ele termina assim: “Eu descobri que o
na minha casa com um guarda, às quatro da manhã,
para me prender. Não sei por que, só sei que me jogaser, o meu ser, o meu ser no mundo, esse ser é a
minha própria gravidade. Se ela desmaia, eu me
ram lá depois... Era um quarto com ratos lá na Polícia
desmereço”.
do Exército. De madrugada foi entrando uma luz, e
eu vi na parede da cela estreita – estava escrito assim:
Entrevista realizada em 2 de abril de 2014 com a
“Faz escuro mas eu canto”. Assim, na parede. Alguém
participação de Adalberto Monteiro (presidente da
que ali estivera, antes de mim, valeu-se do meu verso.
Fundação Maurício Grabois), Augusto Buonicore
E esse verso passou a me dar força. Deixou de ser meu.
e Fábio Palácio (diretores da mesma Fundação),
Eu estava meio caído, eles me deram um empurrão, eu
Osvaldo Bertolino (editor do portal Grabois) e do
caí de costas. Eu estava meio... Achando que o negócio
escritor Jeosafá Fernandes Gonçalves. Transcrição de
era ruim. E eu ganhei uma força danada! Meu próprio
Adriana Quedas. Edição de Fábio Palácio.
verso falou comigo: “Coragem, rapaz!”.
71
130/2014
Neoliberalismo e
pós-neoliberalismo no Brasil
Emir Sader*
O Brasil não escapou da onda neoliberal na América
Latina, mas foi dos mais tardios em aderir e dos primeiros
a eleger um governo pós-neoliberal. O país ainda hoje
sofre as profundas transformações que o neoliberalismo
introduziu no Estado e na sociedade brasileiros
O
Governo FHC retomou com força a aplicação do neoliberalismo que havia sido iniciada com Collor
modelo neoliberal foi hegemônico na
América Latina nas últimas décadas
do século passado, tornando o nosso
continente aquele em que se deram
mais governos neoliberais e em modalidades mais radicais.
O Brasil não escapou da onda neoliberal na América Latina, mas foi dos mais tardios em aderir e dos
72
primeiros a eleger um governo pós-neoliberal. O país
não escapou das profundas transformações que o
neoliberalismo introduziu no Estado e na sociedade
brasileiros.
Mas foi um neoliberalismo diferenciado por uma
temporalidade histórica distinta em relação aos outros países da região. Um neoliberalismo atrasado
seja porque na transição à democracia o país con-
Brasil
seguiu elaborar uma nova Constituição – que afirmou direitos excluídos pela ditadura, na contramão
da tendência a cancelar direitos do neoliberalismo –,
seja pelo fracasso do governo Collor, o que fez com
que o plano neoliberal tivesse que ser retomado por
FHC um pouco mais tarde.
Mas essa temporalidade diferenciada vem de antes e explica outros aspectos da nossa história, como
o golpe relativamente precoce em relação aos outros
países da região, o crescimento econômico que a ditadura brasileira conseguiu, ao contrário das congêneres do Cone Sul, assim como a força popular da
esquerda na transição da ditadura à democracia.
É preciso retroceder um pouco na nossa história para darmos conta dessas diferenças e da forma
que assumiu o neoliberalismo e, posteriormente, o
pós-neoliberalismo no Brasil.
dos portos às nações amigas”, sem o que a própria
coroa ficaria isolada do mundo no Brasil.
Mais significativa ainda foi a proclamação da
Independência, feita não com a expulsão dos colonizadores portugueses – como nos outros países do
continente em relação aos espanhóis –, mas com a
passagem da coroa da cabeça do monarca português
para seu filho, no primeiro grande pacto de elites
que marca a história brasileira. Mudava-se a forma
de dominação, mas se mantinha o essencial – o vínculo político com a metrópole.
O preço a ser pago foi duro para os mais pobres. Ao
passar de colônia para monarquia e não para República, o Brasil não cortou seus vínculos umbilicais com a
metrópole colonial, mas sobretudo manteve a escravidão – abolida nos países que fizeram guerras de independência e instalaram repúblicas. O Brasil tornou-se
o país que mais tarde terminou com a escravidão em
toda a América.
A independência como
Nesse intervalo de várias décapacto de elite
das, foi promulgada a Lei de Terras,
A consolidação do
em 1850, que legalizou – mediante
O Brasil sempre teve uma tempoder do latifúndio
a conhecida operação de grilagem –
poralidade particular em relação
toda a apropriação de terras, fazenaos outros países da região e do
no campo é
do com que, quando terminou forcontinente, mesmo estando subresponsável, em
malmente a escravidão, já quase no
metido às mesmas tendências e
fim do século XIX, os escravos não
condicionamentos. Incorporado ao
grande medida,
tivessem acesso à terra e fossem
mercado mundial pela exportação
pelo Brasil ser o
perpetuados como pobres e desposprimária, ao não se constatar a possuídos. Assim, a questão colonial se
sibilidade de exploração de metais
país mais desigual
desdobrou na questão latifundiária
preciosos, restou a exportação de
do continente mais
e na questão racial no Brasil.
pau-brasil, artigo intranscendente
Outra consequência que marcapara as metrópoles, até que entradesigual do mundo
rá a estrutura social brasileira e nosmos no mesmo mecanismo dos ousa história foi a consolidação do potros países com os ciclos do açúcar,
der do latifúndio no campo, sendo
da borracha, do ouro, do café.
responsável, em grande medida, pelo Brasil ser o país
A colonização portuguesa não nos diferencia nos
mais desigual do continente mais desigual do mundo.
aspectos essenciais do processo de colonização espaEsse fenômeno permitiu que o poder dos latifunnhola, até que chegamos à Independência, que introdiários no campo resistisse e sobrevivesse até mesmo
duziria descompassos temporais que condicionariam
ao governo do Getúlio, cujos avanços sociais se limitoda nossa história posterior. Enquanto a Espanha retaram ao campo. Foi somente ao longo da década
sistia à invasão napoleônica, sendo derrotada e, com
isso, debilitava sua dominação colonial e favorecia a
de 1950 que os direitos sociais no campo brasileiro
começaram a conquistar espaço, quando os procesvitória das guerras de independência nos países de fasos de industrialização e de urbanização já haviam
la hispânica, no Brasil aconteceu o inverso. A coroa
avançado muito.
portuguesa renunciou ao combate, entregou o país à
dominação francesa e fugiu para o Brasil.
Sua vinda, embora louvada por obras recentes de
A construção tardia do Estado
duvidoso rigor histórico, representou, ao contrário
nacional
dos outros países da região, um estreitamento e não
um distanciamento dos laços de dominação colonial.
A Revolução de 1930 foi o momento político mais
As medidas tomadas na chegada da família real corimportante, mais significativo da nossa história, que
respondiam a mecanismos de defesa da própria corepresentou a imposição de um novo ritmo, muito
roa, exilada do seu país, a primeira delas a “abertura
mais acelerado, com o resgate, pela intervenção di-
73
130/2014
reta do Estado, de questões até ali postergadas. Renovo impulso, mas, ao mesmo tempo, impondo a
presentou, antes de tudo, a ruptura com a lógica do
hegemonia do capital industrial internacional.
modelo primário exportador e da subordinação do
A chegada da indústria automobilística – de forpaís aos interesses das metrópoles colonizadoras.
ma similar ao que ocorria na Argentina – mudou o
Até ali a periodização histórica do país era dada
eixo do processo de acumulação, deslocando-o para
pelo produto que interessava às metrópoles: pau-braesse novo setor. No Brasil, ele chegou a responder,
sil, açúcar, ouro, borracha, café. A própria ocupação
entre a produção e suas projeções em outros setores,
territorial de um país tão extenso como o nosso repor 25% do PIB. Mudava o setor predominante do
fletia essa dinâmica de um país voltada para fora:
ponto de vista da produção, com as consequências
ocupação da faixa costeira, em particular das regiões
no estilo de vida das pessoas.
próximas aos portos e das regiões de produção para
O ritmo acelerado de crescimento a partir daí teexportação.
ve um caráter distinto, não apeIniciou-se em 1930, com o movinas na estrutura produtiva, mas
mento liderado por Getúlio e a polítambém nas formas de consumo
No seu conjunto, a
tica de reação à crise de 1929, o ciclo
que esse tipo de produção privileditadura militar, a
mais intenso e longo de crescimento
gia. Essa primeira transformação,
da economia do país, um verdadeiro
promovendo a centralidade da
crise da dívida e os
ciclo longo expansivo, que se prolonautomobilística e dos
governos neoliberais produção
garia pelas cinco décadas seguintes.
capitais externos, foi sucedida por
Ao mesmo tempo, o Estado assumiaquelas introduzidas pela ditadupromoveram um
ria funções inéditas até ali de indura militar.
retrocesso forte no
ção do crescimento econômico e de
O golpe militar se deu no Bragarantia de direitos sociais, até ali
sil ainda durante o ciclo longo
país, acentuando
desconsiderados pelo Estado.
expansivo do capitalismo interas desigualdades
O presidente anterior a Getúlio,
nacional, o que ajudou a recupeWashington Luís, representante diração econômica do país. Mas o
sociais,
reto dos interesses dos produtores de
aspecto fundamental foi a políenfraquecendo o
café, se notabilizou pela afirmação:
tica de arrocho salarial, que pro“A questão social é questão de políEstado e a economia moveu a intervenção militar em
cia”. Poucos anos depois o governo
todos os sindicatos e impôs o bloe impondo uma
de Getúlio não apenas fez com que o
queio a campanhas salariais e a
Estado assumisse responsabilidades
todo e qualquer reajuste salarial.
prolongada
sobre os direitos sociais dos trabalhaAs transformações resultanrecessão, que só
dores, como começou seu discurso
tes na estrutura produtiva encom a interpelação dos brasileiros cocontraram seus mercados priviterminaria na
mo “Trabalhadores do Brasil”.
legiados – diante do bloqueio do
primeira década do
Junto com a construção do Estaconsumo popular pela política de
do nacional foi se dando a elaboraarrocho salarial – nas altas esnovo século
ção de um projeto nacional e de uma
feras do consumo interno e na
ideologia de nação, juntamente com
exportação. Acentuaram-se as
os processos de industrialização, de
desigualdades sociais, enquanto
urbanização, de formação e desenvolvimento de
se fortaleceram os grandes monopólios privados, naclasses populares, vinculadas ao mercado interno de
cionais e estrangeiros.
consumo e à sindicalização.
O novo ciclo expansivo se baseou em investimenEsse Estado presidiu o desenvolvimento econôtos externos – os chamados eurodólares, naquele
mico brasileiro durante as cinco décadas seguintes,
momento –, que permitiram diversificar a dependêncom adaptações que mudaram seu caráter em alcia do capitalismo brasileiro, na direção de investiguns aspectos essenciais. Até 1955, no espaço aberto
mentos europeus e japoneses. Com a passagem do
pela recessão de 1930, pela Segunda Guerra Mundial
ciclo longo expansivo do capitalismo, do segundo
e pela guerra da Coreia, um processo de industrialipós-guerra, ao ciclo longo recessivo atual, não foi mais
zação nacional se desenvolveu de forma acelerada.
possível contar com investimentos externos, apenas
O final desse período, com o retorno com força dos
com empréstimos externos e a juros flutuantes.
capitais norte-americanos ao país, alterou a natureO ritmo de crescimento da economia brasileira
za do desenvolvimento industrial, imprimindo-lhe
baixou de dois dígitos para em torno de 5 a 7%, mui-
74
Brasil
Agência Brasil
A América Latina passou, bruscamente, de região mais afetada por governos neoliberais a única região do mundo com maioria de
governos pós-neoliberais; na foto, presidentes de países que integram o Mercosul
to altos para o ciclo longo recessivo, mas dependendo dos empréstimos a juros flutuantes, para obras
como a Transamazônica, os estádios de futebol nos
vários estados etc. etc.
Bastou que chegasse a crise da dívida, em 1979,
para que terminasse o mais longo ciclo de expansão
da economia brasileira, iniciado em 1930, que cruzou cinco décadas praticamente ininterrompida. A
esse término do ciclo de desenvolvimento econômico se somou a busca de recursos para pagar a dívida
externa e, posteriormente, os governos neoliberais
da década de 1990.
A ascensão do consenso neoliberal e
sua crise
No seu conjunto, a ditadura militar, a crise da dívida e os governos neoliberais promoveram um retrocesso forte no país, acentuando as desigualdades
sociais, enfraquecendo o Estado e a economia e impondo uma prolongada recessão, que só terminaria
entrada a primeira década do novo século.
A crise da dívida e o descontrole inflacionário
favoreceram a criminalização do Estado, como suposta fonte do endividamento e dos desequilíbrios
monetários. Esse processo teve, no entanto, que enfrentar-se ao consenso de saída da ditadura, materializado na nova Constituição que, na direção oposta da onda neoliberal, reafirmou direitos, a ponto
de seu presidente, Ulysses Guimarães, chamá-la de
Constituição Cidadã.
Mas o esgotamento dos planos heterodoxos de
controle da inflação e do próprio governo Sarney
abriu caminho para a ascensão do consenso neoliberal, com a candidatura de Fernando Collor de Mello.
Pela primeira vez o Estado foi a vítima privilegiada
de um governo, desde os anos 1930. Culpado pelo
atraso econômico, pela inflação, pela alta tributação,
por tudo, o Estado foi criminalizado nos seus aspectos de regulação da atividade econômica, de garantia
das políticas sociais.
Com razão e consciência, Fernando Henrique Cardoso disse que ia “virar a página do getulismo”, o que
significava desarticular o Estado nacional, regulador,
para dar lugar ao Estado mínimo. Um trabalho iniciado por Fernando Collor e continuado por FHC ao
longo da década de 1950, promovendo a centralidade
do mercado como “melhor alocador de recursos”.
Os governos neoliberais – Collor, Itamar Franco e
FHC – promoveram um profundo e extenso processo
de desregulamentação, expressado na acelerada abertura ao mercado externo, na privatização de empresas
estatais, no enfraquecimento do Estado em favor do
mercado, na precarização das relações de trabalho,
entre outras medidas. O resultado, em seus aspectos
mais determinantes foi promover a financeirização da
economia – a hegemonia do capital especulativo – e a
precarização da maior parte dos trabalhadores.
75
130/2014
Esse processo teve – como nos outros países do
continente – um auge rápido e uma rápida débâcle. De
imediato conseguiu, com o controle inflacionário, uma
recuperação do poder aquisitivo dos salários, mas esses
efeitos duraram pouco, porque não foram acompanhados
de políticas sociais específicas, na ilusão de que aquele
mecanismo, por si só, operaria como mecanismo de distribuição de renda.
O impulso desse consenso foi suficiente – também
como em outros países da região – para eleger e reeleger
o presidente que o personificou, mas levou – também como nos outros países – à derrota política do projeto e à
sua incapacidade para dar continuidade a seu programa.
O pós-neoliberalismo
Iniciou-se assim um novo período histórico, que fez
com que a América Latina passasse, bruscamente, de
região mais afetada por governos neoliberais – em suas
formas mais radicais – a única região do mundo com
maioria de governos pós-neoliberais e única com projetos de integração regional relativamente autônomos em
relação aos Estados Unidos.
A partir do meu livro anterior, A nova toupeira – Os
caminhos da esquerda latino-americana –, buscarei desenvolver o mesmo esquema analítico para uma análise
sistemática sobre a forma como o Brasil viveu e vive esse processo. O livro, publicado no Brasil pela Boitempo
Editorial em 2008, teve efeitos significativos, com novas
edições em português e edições na Argentina (Editora
Siglo XXI, de Buenos Aires, 2009), na Espanha (EdicionesViejo Topo, Barcelona, 2010) e uma edição atualizada na Inglaterra (Editora Verso, Londres, 2011).
Pretendo incorporar uma análise atualizada dos governos pós-neoliberais na América Latina, tanto no seu estado em geral, como com análises particulares sobre alguns
países – Argentina, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Equador
–, mas o centro da pesquisa é o Brasil, pela importância
que tem o país no cenário regional e internacional, assim
como pelas particularidades do fenômeno no nosso país.
O capítulo do meu livro anterior – O enigma Lula – serve como esquema inicial para tentar decifrar a natureza
– complexa e contraditória – do pós-neoliberalismo no
Brasil, que deve ser publicado como livro, da mesma forma que minhas obras anteriores, pela Boitempo Editorial.
*Emir Sader é sociólogo e cientista político. Graduado
em Filosofia pela Universidade de São Paulo, mestre
em filosofia política e doutor em ciência política por
essa mesma instituição. Atualmente, é professor
aposentado da Universidade de São Paulo e dirige
o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde é
professor de sociologia.
76
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TELES, Edson & SAFATLE, Vladimir (organizadores). O que
resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
GÁS NATURAL
A ENERGIA QUE AJUDA
A BAHIA A CRESCER
A Bahia, um dos Estados que mais crescem no País, tem a força do
Gás Natural. Porque a indústria quer força para produzir.
Nosso comércio avança, se fortalece. Os veículos circulam com mais
economia. E nas residências temos o conforto
e a praticidade do Gás Natural. Por tudo isso, a Bahiagás
avançou de 3.300 para 52 mil clientes contratados.
BAHIAGÁS. CRESCENDO JUNTO COM A BAHIA.
Filipe Lima e Eliete Bandeira,
colaboradores da Bahiagás.
77
130/2014
As razões e as consequências do
golpe de Estado na Ucrânia
Ricardo Alemão Abreu*
O desfecho do conflito na Ucrânia, e da Síria, será
importante para definir o que virá pela frente neste século
21. Estão atuais as bandeiras da paz, da luta contra o
(neo)fascismo, pela autodeterminação e desenvolvimento,
pela soberania e a independência nacional. Está atual a
bandeira da transição ao socialismo
O
atual conflito na Ucrânia somente
pode ser compreendido a partir de
uma visão global dos conflitos geopolíticos e econômicos, pois não é um
fenômeno estritamente nacional.
Com o prolongamento da atual crise do capitalismo, aumentam a polarização e a radicalização política
– particularmente nos EUA e na Europa, onde em vários países ressurgem e crescem as forças de ultradireita, neofascistas, anticomunistas, racistas, xenófobas
e obscurantistas. Esses são os casos, entre outros, de
França, Áustria, Holanda, Grécia e também da Ucrâ-
78
População da Crimeia aprova a união com a Rússia
nia e dos países do Mar Báltico, como Lituânia, Letônia e Estônia, que fizeram parte da União Soviética.
Em termos geopolíticos, econômicos e militares,
acelera-se a transição em curso nas relações de poder
no mundo. Os Estados Unidos e a União Europeia ampliam a ofensiva econômica e militar para tentar reverter a tendência ao declínio relativo de sua hegemonia.
Em uma escalada de conflitos e guerras, adensa-se a
disputa entre os países da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan), por um lado, e a China, a Rússia, os demais BRICS e países em desenvolvimento,
com destaque para a América Latina, por outro.
Internacional
Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, há uma
“nova guerra fria” em curso, e a “Síria converteu-se Major Theater War [maior teatro de guerra]
(MTW) da segunda guerra fria, evidenciando mais
nitidamente a confrontação de dois blocos, conformados, de um lado, por Estados Unidos, União
Europeia, petromonarquias do Golfo Pérsico, Turquia e Israel e, de outro, por Rússia, China e Irã,
não obstante a diversidade e as contradições de
interesses” (1).
Há um novo papel da Rússia, que recupera parte da autonomia nacional e regional que tinha no
período da União Soviética, e isto ficou muito evidente na resistência à agressão imperialista contra
a Síria. Moniz Bandeira diz que “os Estados Unidos
jamais se conformaram com a presença soviética
e a continuação da Rússia no Mediterrâneo”, por
isso “o objetivo dos EUA sempre foi a derrubada
do regime de Bashar al-Asssad, de modo a eliminar
A reedição da “revolução laranja”
a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando
na Ucrânia
suas bases navais – Tartus e Latakia – instaladas na
Síria”, ademais de conter a China e o Irã no Oriente
Como (re)começaram os conflitos na Ucrânia? As
Médio e no Magreb, no norte da África.
manifestações da direita na Ucrânia (re)começaram
Por isso, para Moniz Bandeira, “a guerra na Síem 21 de novembro em 2013, quando o governo eleiria, desde o início, configurou uma batalha pelo
to anunciou que não iria aderir à União Europeia.
controle do Mediterrâneo, região de vital importânA esta altura, por exemplo, o Partido Comunista da
cia geopolítica e estratégica dentro do contexto de
Ucrânia, com 32 parlamentares em um total de 442,
um conflito global, não declarado”
já havia se reunido com o presi(2). A região sul da Ucrânia, pardente Viktor Yanukovich e proposticularmente a Crimeia, dá a Mosto uma série de medidas, sendo
Há um novo papel
cou o acesso ao Mar Mediterrâneo
uma das principais uma consulta
da Rússia, que
através da base militar de Sebastopopular ao povo da Ucrânia sobre
pol, no Mar Negro.
a adesão à União Eurasiana ou à
recupera parte da
O conflito na Síria, seguido peUnião Europeia.
autonomia nacional
las disputas político-militares na
Mesmo com a insensibilidade
Ucrânia, marca uma nova etapa,
para
as demandas populares e a
e regional do
na qual os Estados Unidos, a União
corrupção, e dirigido por uma oliperíodo da URSS, e
Europeia e a Otan podem muito,
garquia formada através das primas não podem tudo. De 1989, ano
vatizações das estatais do período
isto ficou evidente
da “queda do Muro de Berlim”, a
soviético, o governo da Ucrânia foi
na resistência
2013-14 foram quase 25 anos de
democraticamente eleito, com resupremacia completa do chamado
lações normais com as potências
à agressão
Ocidente. Agora essa situação está
imperialistas ocidentais e boas reimperialista contra
se alterando.
lações com a Federação Russa.
Recentemente a Rússia fez a
Retomando a cartilha de “mua Síria
proposta de uma união alfandedança de regime” da CIA, já apligária regional, a União Econômica
cada anteriormente na Ucrânia
Eurasiana, que abrange a Ucrânia,
com a chamada “revolução laranpaís importante com mais de 45 milhões de habija” em 2005, desencadeou-se uma campanha dos
tantes e que é berço cultural e histórico da nação
Estados Unidos, da União Europeia e da mídia morussa. De outra parte, ocorrem os planos de expannopolista internacional, em aliança com a direita e
são da União Europeia e da Otan, sendo que esta
com a extrema-direita neofascista ucraniana. Maniúltima já incorporou 12 novos países membros no
festantes, comandados pelas forças de direita e por
Leste Europeu.
neofascistas, enquanto eram apresentados pela mí-
79
130/2014
dia monopolista como lutadores pela “liberdade e a
no antecipada. Mesmo assim, a diplomacia estadunidemocracia”, e vandalizavam prédios públicos e as
dense, representada pela ultraconservadora Victoria
sedes do Partido Comunista, agrediam e matavam
Nuland, orientou unilateralmente a continuidade
civis, policiais e militares.
das ações das forças de ultradireita e da CIA, que
Na Ucrânia a partir do final de 2013 foram usadeflagraram um golpe de Estado no dia seguinte, 22
das novamente as chamadas “estratégias de mudande fevereiro. Uma gravação telefônica de Nuland ao
ça de regime” – em outras palavras uma cartilha de
embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia ficou facomo realizar um golpe de Estado –, nas quais a CIA
mosa pela expressão “Foda-se a União Europeia!”.
tem larga experiência.
Durante as primeiras horas do golpe, os grupos
Durante as movimentações para o golpe de Estado
neofascistas apoiaram alguns parlamentares que
e até esse momento vem sendo atacados símbolos da
montaram uma farsa, rasgaram o acordo assinaex-URSS, como estátuas de Lenin, e da resistência ao
do pelo presidente constitucional, e nomearam um
nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, em uma
governo provisório nacional e outros para todas as
furiosa campanha anticomunista,
províncias, inclusive as do leste e
com múltiplas agressões e perseguido sul do país. Depois ainda imNo atual período
ções aos militantes e às sedes do PC
puseram o retorno da Constituição
da Ucrânia. Atualmente a principal
anterior, e numa ação nacionalista
pode estar se
sede do PC em Kiev está ocupada e
de direita, revogaram o russo como
configurando não
foi transformada em “escritório” de
idioma oficial.
grupos neofascistas.
A posição da Rússia foi de deuma 2ª etapa da
Segundo o embaixador brasinúncia do golpe da direita no país
mesma Guerra Fria
leiro Samuel Pinheiro Guimarães,
vizinho e de não-reconhecimento
as ações de “mudança de regime”
do “governo interino”, classifica– que acabou com
começam “com a formação de
do como ilegal e ilegítimo. A China
o fim da URSS –,
forças especiais para intervenção
apoiou discretamente a Rússia, e
encoberta, com o treinamento de
tem mantido essa posição, apesar de
mas uma segunda
agentes provocadores infiltrados
forte pressão dos Estados Unidos.
Guerra Fria, nova e
que organizam manifestações paA consequência do golpe de dicíficas, com base nas instruções do
reita
na Ucrânia é a provável dividiferente
manual do professor Gene Sharp,
são do país, que já ocorreu no caso
Da Ditadura à Democracia, que foi
da Crimeia. Assim como outras retraduzido para 24 idiomas e distribuído pela CIA
giões do leste e do sul da Ucrânia, a Crimeia é região
e pelas fundações e ONGs, que levam à reação dos
de grande presença étnica russa. Até 1954 a Crimeia
governos, que são acusados de excessos na represfazia parte da Federação Russa. Além disso, é imsão dessas manifestações e de violação dos direitos
pensável para a Rússia perder as suas bases militares
humanos de sua população, o que passa a justificar
navais na Crimeia, pelo que expusemos acima.
a rebelião armada, financiada e equipada do exteO governo constitucional e o parlamento da Cririor e, eventualmente, a intervenção humanitária”
meia aprovaram e realizaram um referendo sobre
(3). Esse é roteiro dos chamados golpes de Estado
uma união com a Federação Russa, independência ou
“suaves”.
maior autonomia dentro da Ucrânia, dia 16 de março.
A população que votou aprovou com 98% a adesão da
Golpe de Estado na Ucrânia foi
Crimeia à Federação Russa. Outras regiões da Ucrânia
apoiado e articulado pelos EUA
levantaram a bandeira do referendo para unirem-se
à Federação Russa, e constituíram repúblicas populaEm meio ao conflito na parte oeste da Ucrânia,
res, como Donetsk, Lugansk e a Carcóvia.
principalmente na capital Kiev, ocorreu uma divisão
na base parlamentar e inclusive no partido do goA resistência popular ao golpe de
verno, o Partido das Regiões, e o presidente constiEstado no sul e no leste da Ucrânia
tucional Viktor Yanikovich foi forçado a um acordo,
negociado na presença de chanceleres da Rússia e da
Surpresos com a resistência popular no leste e
União Europeia, esta mais interessada em manter o
sul da Ucrânia, apoiada pela Rússia, agora os Esfornecimento de gás natural russo, do qual depende.
tados Unidos e a União Europeia exigiram respeito
O acordo feito em 21 de fevereiro previa a convoao novo governo “legítimo” – dizem – e criticaram
cação de eleições, e uma transição política de goveras tentativas de desestabilização (que hipocrisia!)
80
Internacional
e o não-reconhecimento
dos golpistas; sancionaram
a Rússia com retaliações
econômicas e políticas; expulsaram a Rússia do G-7;
e mobilizaram tropas da
Otan em defesa da “soberania e da integridade territorial” da Ucrânia (sic). Alguns analistas “ocidentais”
dizem que essa situação é a
mais grave na Europa desde a guerra que dividiu a
Iugoslávia, há 15 anos.
Além da adesão da Crimeia à Rússia, os movimentos populares que resistem nas regiões de maioria etnicamente russa, defendem a adesão à Rússia
ou um novo pacto federativo, com mais autonomia
para essas províncias, e a garantia do não-alinhamento da Ucrânia em relação à União Europeia e à
Otan, no que contam com o pleno apoio da Rússia.
O governo golpista da Ucrânia disse que não
aceitará ceder território, e anuncia a intenção de
aderir à União Europeia e de fazer parcerias com a
Otan, o que agrava o conflito. A partir do início de
abril iniciou-se uma fase mais perigosa, com uma
visita de John Brennan, diretor da CIA, a Kiev, na
qual ele se reuniu com os golpistas e suas forças
de segurança e deflagrou operações especiais, envolvendo as forças armadas ucranianas, contra os
manifestantes partidários da autonomia ou da integração à Federação Russa.
Foi muito revelador o discurso de Vitali Churkin,
Embaixador da Federação Russa no Conselho de
Segurança da ONU, no dia 14 de abril. Disse ele, ao
seu colega golpista ucraniano, que queria processar a
Rússia por terrorismo: “Por que nunca pensaram em
processar os que aterrorizaram o seu próprio governo [da Ucrânia] durante vários meses, até o dia 21
de fevereiro? Quem fez guerra contra a Polícia, quem
queimou vivos oficiais de Polícia da Ucrânia, quem
matou a tiros policiais e pessoas que protestavam
contra o governo e que parecem ser aliados do hoje
governo de Kiev? O senhor jamais antes os chamou
de terroristas, e isso por alguma razão. E até os eximiu
de qualquer responsabilidade por suas ações criminosas, que se repetiram por vários meses. (...) Agora os
EUA aprovarão aquela ordem criminosa, para usar o
exército contra civis? Por que, quando o povo estava
indo assaltar a residência do presidente ucraniano os
EUA pediram que não usassem a força e, agora, na
situação atual, mudam completamente de posição,
adotam o ponto de vista oposto e apoiam a ordem de
Turchinov [atual “presidente” da Ucrânia]?”
Uma “segunda
guerra fria” ameaça
a paz mundial
O atual período pode
ser caracterizado como
pós-Guerra Fria ou como
período entre guerras frias?
Pode estar se configurando
não uma segunda etapa da
mesma Guerra Fria – que
acabou com o fim da URSS,
ou até mesmo antes, em
meados dos anos 1980 –,
mas uma nova e diferente Guerra Fria, uma segunda
Guerra Fria, como diz Luis Alberto Moniz Bandeira,
mais geoestratégica e geoeconômica que ideológica.
Esse é um tema crucial que merece reflexão e a realidade mundial falará mais alto, ao final.
Como diz o pensador marxista Domenico Losurdo,
a questão central na atualidade é a luta entre o neocolonialismo, um punhado de países imperialistas organizados militarmente na Otan, de um lado, e os povos
e nações que resistem, o campo anti-imperialista e da
luta antineocolonial, a ampla frente contra as guerras
e as intervenções políticas imperialistas, de outro.
O ano de 2014 simbolicamente é marcado pelos
100 anos da Primeira Guerra Mundial, e os 75 anos
do início da Segunda Guerra Mundial. O desfecho
do conflito na Ucrânia, assim como o da Síria, será
importante para definir o que virá pela frente neste
século 21. Estão atuais as bandeiras da paz, da luta contra o (neo)fascismo, da luta pela autodeterminação e pelo desenvolvimento, pela soberania e
a independência nacional. Está atual a bandeira da
transição ao socialismo, para sepultar a era do capitalismo-imperialismo e de suas guerras.
* Ricardo Alemão Abreu é economista, pósgraduando em Integração da América Latina na
USP, e secretário de Relações Internacionais do
PCdoB.
Notas
(1) Luiz Alberto Moniz Bandeira lançou o livro A segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos: das rebeliões na Eurásia à África do Norte e
ao Oriente Médio, no final de 2013, pela Editora Civilização
Brasileira, do Rio de Janeiro.
(2) Páginas 596 a 597 do novo livro de Moniz Bandeira citado
acima.
(3) Texto escrito por Samuel Pinheiro Guimarães para a
Apresentação do livro de Moniz Bandeira citado acima.
81
130/2014
40 ANOS DA REVOLUÇÃO DE ABRIL
“Quando o povo acorda é
sempre cedo”
Intervenção de Jerónimo de Sousa, presidente do Partido
Comunista Português (PCP), na Assembleia da República
Na sessão solene na Assembleia da República
de Portugal, comemorativa do 40º aniversário
do 25 de Abril, o Secretário-Geral do PCP,
Jerónimo de Sousa, afirmou que aos que
contemplam hoje a destruição e fazem
planos para muitas décadas de austeridade e
sofrimento, nós dizemos: “O projeto de Abril
inscreve-se ainda na Lei Fundamental. Os seus
valores continuam a ter validade e atualidade”.
Veja, a seguir, a íntegra do pronunciamento
82
Internacional
Senhor Presidente da República,
Senhora Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de
Justiça e do Tribunal Constitucional
Senhores Deputados
Senhoras e senhores convidados
40 anos, sendo um tempo curto na história de um
povo é um tempo largo nas nossas vidas que permite
extrair lições e ensinamentos sobre o ato e o processo mais moderno e avançado da nossa história contemporânea, a Revolução de Abril de 1974.
Acto de libertação e processo de transformação,
realização, conquista e participação, não esquecendo
nunca que país tínhamos resultante do regime fascista de quase meio século de opressão, que usava a
violência contra o povo não por sadismo mas antes
como instrumento repressivo de proteção e sustentação da ditadura terrorista dos monopólios e latifúndios.
Guerra, isolamento internacional, atraso económico, social, cultural e civilizacional, analfabetismo, emigração em massa, liberdades
individuais e coletivas juguladas, desigualdade entre homens e mulheres, com um povo sofrido mas de onde emergiam os lutadores, comunistas, democratas, patriotas, que
com muitos anos de prisão, perseguição e
repressão, apesar das feridas e cicatrizes, sabiam que resistir era já vencer, mesmo sem
saber em que data seria essa vitória.
Aconteceu naquela madrugada de Abril
de 1974.
Corajosamente um sector das Forças
Armadas determinado pelos capitães para
quem o povo e as instituições democráticas
têm uma dívida de gratidão, inicia um levantamento militar de desfecho imprevisível imediatamente apoiado e secundado por
um levantamento popular.
Esta fusão operacional e original do povo e das forças armadas foi decisiva porque
sem iniciativa popular o movimento militar
não venceria tal como o movimento popular
sozinho não teria êxito, movimento popular
que quis afirmar de forma inequívoca o seu
apoio à revolução logo nas primeiras horas,
mas particularmente naquele primeiro 1º de
Maio em liberdade convocado pela Intersindical Nacional e que encheu as ruas e praças
das vilas e cidades.
A consigna Povo-MFA não foi uma consigna imaginada em gabinetes por estrate-
gistas militares, ou por políticos imaginativos, mas
o reconhecimento, aprovação e definição de um desenvolvimento real e concreto do processo de conquista da liberdade e da democracia e sua instauração e institucionalização com a Revolução de Abril.
Em todo o processo que se seguiu nenhuma das
suas realizações foi oferecida ao povo português.
Nem por salvadores, nem pelo poder político, nem
pelos militares.
Foram por ele conquistadas! Reconhecidas pelo
MFA e consignadas pelos deputados constituintes.
As liberdades de imprensa, de associação, de reunião, de manifestação.
Uma nova estrutura econômica liberta do poder
dos monopólios travando a sabotagem econômica e
conduzindo as nacionalizações de setores básicos e
estratégicos, valorizando o papel das pequenas e médias empresas.
Conquistando a Reforma Agrária, combatendo a ação dos latifundiários, desbravando terras
incultas e desenvolvendo a produção agrícola e
pecuária nas terras do sul, criando emprego, con-
83
130/2014
quistando mais a norte o direito ao uso e a gestão
Sim, é verdade que muitas das principais condos baldios pelos povos.
quistas de Abril foram destruídas, que se assiste à
Conquistando direitos laborais, sociais e culturecuperação pelos novos e velhos senhores do capirais, liberdade sindical, direito à greve, a não ser destal, das parcelas de domínio perdido com Abril, volpedido sem justa causa, proteção na infância e na
tando a amassar fortunas nuns poucos, agravando
velhice, direito ao ensino, à saúde, à proteção social,
as injustiças, o aumento da exploração e do empodireito à igualdade das mulheres no trabalho, na fabrecimento, a dependência do estrangeiro.
mília, na sociedade, direitos da juventude.
Sobre o povo que se atreveu a resgatar a sua digConquistando o direito de denidade e o poder e a soberania que
cidir sobre os problemas das suas
nele deve residir volta a classe domiterras e o seu desenvolvimento,
nante e seus executantes a decretar
Foi uma
concretizado no reconhecimento do
a resignação e a submissão não supoder local democrático,
portando a luta nem os lutadores.
revolução onde os
Conquistas que acabaram por
Aos que contemplam hoje a sua
trabalhadores e
ser consagradas na Constituição
obra de destruição e fazem planos
aprovada por uma Assembleia
para muitas décadas de austeridao povo decidiram
Constituinte ela em si mesmo exde e sofrimento, nós dizemos: O
assumir o seu
pressão da conquista do direito de
projeto de Abril inscreve-se ainda
votar, eleger e ser eleito.
na Lei Fundamental. Os seus vapapel de obreiros,
Não, não foi uma revolução perlores continuam a ter validade e
construtores e
feita ou produto de uma experiência
atualidade.
laboratorial. Mas muito menos foi
Do desenvolvimento econômidonos do seu
um ato e um processo em que fosse
co tendo como objetivo a melhoria
devir coletivo,
preciso mudar alguma coisa para fida qualidade de vida das populacar tudo na mesma. Não se esperava
ções e o pleno emprego, emanam
materializando
que os poderosos, a classe dominanos valores da justa e equilibrada
sonhos, aspirações
te desapossada do poder, assistisse
distribuição da riqueza, da ecopassivamente ao processo de transnomia ao serviço das pessoas e da
e reivindicações,
formação que punha em causa os
justiça social.
abrindo as portas de
seus interesses e privilégios.
Da reforma agrária e dos balFoi uma revolução onde os tradios
emana o valor da terra a
um país encarcerado
balhadores e o povo decidiram
quem a trabalha e o ancestral valor
ao mundo
assumir o seu papel de obreiros,
comunitário da terra.
construtores e donos do seu devir
Das nacionalizações emana o
coletivo, materializando sonhos, asvalor, a necessidade e possibilidapirações e reivindicações, abrindo as portas de um
de de pôr fim ao poder dos monopólios.
país encarcerado ao mundo, libertando outros povos
Dos direitos laborais emana o valor do trabalho e
que também lutavam para se libertarem do jugo do
dos trabalhadores.
colonialismo, pondo fim à guerra e propondo a paz
Do Estado para responder às necessidades do
e a cooperação entre os povos. E aos que querem
país em oposição ao Estado que temos como instrureescrever a história lembramos que foi a Revolução
mento de uns poucos, emana o valor do Estado ao
de Abril e não outro processo que abriu as portas de
serviço do povo.
Portugal à Europa e ao Mundo.
Da independência e soberania nacionais emana
Comemorando continuamos e continuaremos a
o valor do povo português decidir do seu futuro e da
dar combate à reescrita da história, à negação da
sua pátria.
existência do fascismo, às falsas atribuições do paTais valores estão presentes na sociedade e na
pel de cada um na revolução e na contrarrevolução
consciência, hoje abalada mas latente, que a revoluque se seguiu.
ção deu aos portugueses e nos direitos que resistem.
Durante décadas, sucessivos Governos, exercendo
Consciência que a liberdade vale, consciência
o poder, executando a política direita que dura há 37
dos direitos do ser humano ancorados no coração de
anos, recuperaram e restauraram de novo o poder do
quem viveu e participou no acto e no processo da
grande capital, submetendo o poder político ao poder
Revolução.
econômico, rasgando ou engavetando compromissos
Dir-nos-ão que mais de metade da população não
assumidos com o povo e com a Constituição, com Abril.
tinha nascido ou era criança quando se deu Abril.
84
Internacional
Mas na consciência das novas gerações – quando hoje lutam pelo direito ao trabalho com direitos,
contra as injustiças, a precariedade e o desemprego,
quando lutam contra as propinas ou os cortes das
bolsas, em defesa da escola pública, quando vêm à
rua gritar a sua indignação contra a Troika e a submissão ao estrangeiro, quando entendem a liberdade como algo tão natural e insubstituível como o ar
que respiram, então mesmo que eles não lhe deem
esse nome, na sua consciência fermentam e alicerçam-se os valores de Abril, que se hão de projetar no
futuro de Portugal.
Uma política e um Governo que estão a dar cabo
do presente da juventude é que estão condenados à
derrota e a não ter futuro.
Para o PCP, partido da resistência e da luta antifascista, partido de Abril, se há coisas que aprendemos é que mesmo quando tudo parece ameaçado ou perdido, é pela luta, pela força do nosso
ideal, com uma política de verdade pela confiança
É possível uma
vida melhor
num Portugal de
progresso, livre
e democrático,
com uma política
patriótica e de
esquerda, uma
democracia
avançada
inseparável
dos valores que
emanam desse
acontecimento
extraordinário que
foi a Revolução
de Abril que hoje
celebramos
no povo português,
com a convergência dos democratas e
patriotas, que temos
convicção inabalável
que nada está perdido para todo o sempre. Que é
possível uma vida melhor num Portugal de progresso, livre e democrático, com uma política patriótica e de esquerda, uma democracia avançada
inseparável dos valores que emanam desse acontecimento extraordinário que foi a Revolução de
Abril que hoje celebramos.
Lutaremos por isso, com aquela esperança que
não fica à espera, com aquela confiança que Ary dos
Santos, poeta de Abril, expressou no seu poema de
que “quando o povo acorda é sempre cedo”.
E se Abril e os seus valores continuam a ser e a
ter mais projeto que memória, então valeu e vale a
pena!
Disse.
85
130/2014
O resgate dos valores humanos
Mazé Leite*
Inauguração do Ateliê Contraponto, em 19 de março de 2014, e seus artistas (esq. p/ dir.:
Alexandre Greghi, Luiz Vilarinho, Mazé Leite e Marcia Agostini) ao lado de Maurício Takiguthi
Maurício Takiguthi inaugurou o Ateliê e Galeria
Contraponto em São Paulo com uma exposição
de seus trabalhos de pintura mais recentes.
Extremamente dedicado a seu ofício, Takiguthi
impressiona não só pela qualidade de sua
obra, mas também pela profundidade de seu
pensamento. Conversar com ele é um exercício que
sempre desafia os mais desatentos a um esforço de
concentração um pouco maior do que se precisa
para desencadear um diálogo comum. Porque ele
“pensa” seu trabalho
86
M
Cultura
ais uma vez entrevistei
esse pintor que tem
uma escola aqui em
São Paulo, o Ateliê de
Arte Realista. Há dez
anos, Maurício Takiguthi estava quase sozinho em sua
teimosia de ensinar as técnicas da
arte figurativa. Dez anos depois já
podemos contar com pelo menos
meia dúzia de ateliês figurativos
em São Paulo, com dezenas de praticantes, entre estudantes e artistas. O mais recente destes ateliês
que por aqui surgiram é o Ateliê
Contraponto, do qual faço parte
com mais três colegas.
Todos os grandes
Mas voltemos à nossa conversa
artistas, desde os da
com Takiguthi, que tanto insiste
(1775-1854), que em seu texto A reno resgate do conhecimento e da
pintura, literatura,
lação das artes plásticas com a natureza
tradição, na busca do autoaperfeiteatro e música,
mostra como o olhar do artista, peçoamento do artista como um canetrando no Real, enxerga o munminho solitário, mas comprometialcançaram o
do através da sua essência, que é
do com o que há de mais profundo
cerne, a essência
acessível ao nosso espírito (menno conhecimento do próprio ofício.
te). E Schelling adverte que aqueTudo isto – diz ele – para resgatar
do mundo, criando
le que apenas enxerga do mundo
valores mais humanistas.
obras seminais
a sua casca, a sua superfície, a ele
Segundo afirma Maurício, des“jamais será facultado atingir o
de que começou sua formação e
que se sobrepõem
processo profundo”. Enquanto o
seu trabalho como pintor, há uns
à nossa concepção
artista que tem consciência de si e
28 anos, ele ainda se mantém bade seu papel sabe o caminho para
sicamente como a mesma pessoa
de tempo; obras
desvendar as aparências que muique se coloca diante do mundo
que emocionam
tas vezes a realidade toma.
como aprendiz: vivendo “cheio de
Diz Schelling: “Antes de mais nadúvidas, questões, e instigado pela
pessoas por séculos,
da, a natureza vem ao nosso encontro de
curiosidade de querer entender o
inspirando
modo hermético e sob uma forma mais
que os mestres viam”. Mas acresou menos rígida. Assemelha-se à beleza
centa que não há como medir a
sóbria e serena que não chama a atenção
plausibilidade desse tipo de desejo,
por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como
dessa ambição. Nunca podemos saber aonde nossos
podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela
desejos nos levam, mas serve como um motor que
forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamonos move e que move o pintor Maurício Takiguthi
rosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito,
até hoje “depois de 28 anos de estrada”.
transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a
“Continuo insistindo em obter respostas”, acresforma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vícenta ele. “Porque continuo frustrado boa parte do
vido e verdadeiramente sentido” (grifo meu).
tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’
Todos os grandes artistas, desde os da pintura,
e, mais importante, porque continuo sentindo tesão
passando pela literatura, pelo teatro e pela música,
pelo realismo que me instiga na esperança de um dia
alcançaram o cerne, a essência do mundo, criando
ter acesso”.
obras seminais que se sobrepõem à nossa concepção
de tempo; obras que emocionam pessoas – que estão
Ter acesso a quê?
separadas de seus criadores por séculos de distância
– e que permanecem encantando, gerando pensaAqui podemos buscar apoio no pensamento do
mentos, inspirando.
filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling
87
130/2014
E intrigando. Qual é o processo profundo, qual
e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos;
é o caminho que nos leva a este mergulho do qual
figuras que parecem nos apontar nossos próprios
retornamos como criadores?
medos, nos defrontando incomodamente. Ao mesNão é uma resposta fácil. Mas um caminho possímo tempo, os traços são fluidos, gestuais, gerando
vel é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs
movimentos em ondas que parecem todo o tempo
e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus
nos levar para dentro dos abismos dessas figuras.
alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta mui“Diferentemente do que se associa a um realista,
tas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem
eu procuro não ficar na mera imitação da natureque “a prática é que é expressiva”.
za ou atingir qualidades ‘fotográ“Desse ponto de vista”, diz ele,
ficas’. Não sou adepto da ideia de
“somos algo a partir do que fazeque o melhor propósito de uma
Este também é
mos e não do que dizemos ou acrepintura é de parecer com uma foditamos”. Por isso fica difícil criar
tografia. Quero registrar na tela a
o papel da arte:
qualquer adjetivo que qualifique o
minha percepção interna da natuproduzir essa
sujeito, pois no momento em que
reza humana ou, mais relevante
uma pessoa se dá uma denominapara mim, conseguir visualizar miconexão entre o
ção, por exemplo se chama a si prónha realidade interior. Muito disReal e o artista
prio de “artista”, isso cria, segundo
so se passa pelo diálogo silencioso
Maurício, uma predisposição a que
com o que faço: a partir da imersão
que traduz
“as palavras comecem a substituir
no processo que nem sempre é fápictoricamente
ilusoriamente o que fazemos, obscil, dadas as grandes distrações da
curecendo a realidade dos fatos e a
vida numa metrópole, procuro me
o que vivenciou,
visão sobre nós mesmos”.
debruçar sobre questões intrínsealcançando um
Ou seja: a ideia é fazer ao contrácas da pintura e do desenho.”
rio do que se faz atualmente, onde
Os fundamentos conceituais,
timbre possível de
o poder do discurso é imenso, mas
os instrumentos técnicos, a prática
ser compreendido
a prática é subestimada. Nas artes
e a estrutura mental se fundem e
contemporâneas, antes da obra há
se combinam num todo complepor outro ser
uma retórica altamente hermética
xo e se tornam elementos com os
humano
sobre ela, o discurso substituindo a
quais ele trabalha para recriar o
coisa concreta. Sobrepõe-se o munque ele chama de “etéreo”, que
do do idealismo mental contra o
evidencie um certo estado de espícontato direto com a realidade. O ofício do artista
rito, ou sensação. “Talvez este seja o resumo do tema
acontecendo prioritariamente no mundo da mente,
da minha vida como pintor: ter a ambição impossígerando nebulosidades que – como bem diz o poeta
vel de traduzir essa qualidade invisível por meio de
Affonso Romano de Sant’Anna – fazem com que as
asserções visuais no campo do indizível”.
artes visuais atuais possam melhor ser interpretadas
Ou seja, Takiguthi parece buscar expressar aquele
do ponto de vista da psicanálise.
lugar onde o reino das palavras não existe. Restam a
Mas a prática concreta é mais enfática do que
sensação, a contemplação, a absorção da alma do arqualquer discurso. “Faz sentido”, acrescenta Mautista em contato com a alma do observador, criando
rício, pois “se somos honestos é porque praticamos
um uníssono impossível de se traduzir em palavras,
atos honestos e não simplesmente porque dizemos
porque faz parte daquele espaço onde navega toda a
aos outros ou temos essa ideia sobre nós mesmos.
subjetividade humana. Este também é o papel da ar(...) E em geral a pessoa que se preocupa demais em
te: produzir essa conexão entre o Real e o artista que
se autodefinir ou falar de suas qualidades pessoais é
traduz pictoricamente o que vivenciou, alcançando
que provavelmente está mais ocupada em convenum timbre possível de ser compreendido por outro
cer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não
ser humano.
por atos concretos. Pode servir como marketing pes– Que relação há entre o que você pinta hoje e o
soal, mas não como autoaperfeiçoamento”.
tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto-lhe.
Por isso a “leitura da ação” diz mais do que a de“Se está falando do tempo contemporâneo enfinição verbal.
quanto relação entre a postura tradicional e o status
Neste ponto, pergunto a Takiguthi a respeito da
quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte cotemática de sua pintura atual. As figuras que ele pinmo entretenimento, barulho, escândalo ou transgresta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida
são, nenhuma!”, diz ele. Maurício Takiguthi insiste
88
Cultura
em se voltar para a arte
tradicional que para ele
é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca
da construção, do sentido
dos valores permanentes
do ser humano, do resgate da contemplação da
arte, da observação seletiva baseada em critérios.
Daí sua crítica de que
hoje não há espaço para
isso, em especial aqui no
Brasil.
Takiguthi explica que
o tempo contemporâneo
impõe um fluxo interminável de informações, de
imediatismo pragmático
Maurício Takiguthi e suas obras de Realismo Contemporâneo
que força as pessoas a
produzirem “num ritmo
ansioso e alucinado” do
qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimisive por artistas ditos modernos e contemporâneos
zar seus efeitos pela consciência dessa forte influênnão estariam nos distanciando cada vez mais de nós
cia quase arrasadora, dada a impossibilidade de o
mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de
indivíduo simplesmente descolar-se social e cultucriadores do mundo?
ralmente dessas imposições”, acrescenta.
Talvez isso dependa da busca novamente do que é
Mas diz também que a pintura pode desemessencial, do que não é óbvio atualmente, “das quapenhar esse papel que ele chama de “campo de
lidades perenes, universais, que demandam tempo e
respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e
maturidade para poder visualizar e compreender”,
barulhento que exige aceitação acéfala das regras,
complementa Maurício.
mas um ar onde o tempo transcorre de maneira
Neste ponto da conversa, relembro um diálogo
diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés
que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábade ser estritamente racional, calculista, mecânico,
do à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício
previsível, vinculado fortemente às demandas da
disse que está abdicando da possibilidade de ser chautilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva,
mado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis
voltada para a introspecção e contemplação das
saber o motivo. Takiguthi respondeu:
coisas visíveis e invisíveis”.
– “Já faz um tempo que venho constatando a exisEle afirma que essa mudança de perspectiva na
tência de um patrulhamento ideológico, forte, mas
relação com o tempo e “o deslocamento para estados
implícito, em torno das exigências para que uma pesmentais mais sensoriais” apazigua o espírito, amplia
soa seja considerada um artista: que deva estar ‘ana sensibilidade. É uma proposta a uma resistência
tenada’ na busca pela próxima tendência (como na
ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que
moda) – perdendo, assim, a conexão com sua busca
exige do ser humano coisas além da sua capacidade,
interna; que deva ignorar as habilidades do seu camfísica e mental. Pergunto-me se não seria por isso
po de atuação (que significa conhecimento prático e
que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto retécnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de
médio para depressão e se faz uso de tantos narcóconvencer o outro de que o que faz é arte, em deticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores
trimento do conhecimento em profundidade que lhe
humanos em prol da produção e do consumo não
permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre
está criando uma sociedade doente, com indivíduos
outras. Este patrulhamento serve fundamentalmenmassacrados diariamente em busca da sobrevivênte para tornar oficial o monopólio da verdade e mancia? O esvaziamento de símbolos universais, o corte
ter a posse da ‘aura’ artística, tão importante numa
radical com a tradição histórica perpetrado inclusociedade sufocadamente racional”.
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Hoje qualquer um pode, ou quer, se dizer “artistodo custo a autoimagem que cria de si como artista”. Mas raríssimos são aqueles que preferem pratita/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrocar seu ofício, no suor do dia a dia sobre a mesa de
gante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a
desenho, frente ao cavalete, questionando, buscanreputação e os interesses mercadológicos. O seu foco
do aprender cada vez mais, se aperfeiçoando como o
concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática
Demiurgo de Platão, o Grande Artesão, cujo próprio
e, certamente, quer ser maior do que faz”.
significado está naquele que trabalha, no artífice, no
Foi num dia em que refletia sobre isso que Mauoperário manual. Demiurgo, palavra grega que vem
rício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado
de duas outras: demios, significando
de coisas. Ao ver como a palavra
“o povo” e ourgos, “trabalhador”,
“Arte” se encontra atualmente tão
aquele que trabalha para que outros
contaminada – assim como ouaproveitem do produto do seu tratras palavras – é que ele recorreu a
Hoje qualquer um
balho em muitas formas.
uma frase de uma música de Raul
pode, ou quer, se
Fernanda Montenegro, a conheSeixas e decretou para si mesmo:
cida atriz brasileira, numa entrevis“Para este mundo que eu quero
dizer “artista”.
ta recente a um canal de televisão
descer!”.
Mas raríssimos
ilustrou bem o que o Maurício fala
Com isto, ele disse que prefere
sobre a prática do “ofício”. Disse ela
simplesmente seguir outro camisão aqueles que
que as pessoas “confundem teatro
nho onde possa se manter fiel ao
preferem praticar
com liberdades, até com licenciosiofício do pintor e desenhista realisdades, com realização de sua opção
ta. Isto como reação contra a busca
seu ofício, no suor
sexual, com glórias, paetês, retrato
do reconhecimento, da autorização
do dia a dia sobre a
no jornal, riqueza”. Hoje em dia a
“do outro” para o que faz; “autorideformação já surge, diz ela, nas fazação” dada hoje somente por insmesa de desenho,
mosas “celebridades”. E completa:
tituições artísticas, legitimadores
frente ao cavalete,
“Todo mundo vira artista hoje em
da arte como críticos, curadores e
dia, todo mundo pode ser artista.
senhores do mercado de arte. Ele
questionando,
(...) Mas ator não é todo mundo que
prefere exercer seu ofício solitário
buscando aprender
pode ser!” Ela sugere aos que dese“com simplicidade, leveza, serenijam a glória de ser ator que desisdade e liberdade, sem idealizações
cada vez mais, se
tam, vão fazer outra coisa da vida.
ou ideologias descartáveis”.
aperfeiçoando
A não ser que, se “ficar em tal deEssa busca, esse retorno à ideia
sassossego que não tem nem como
de “ofício”, para Maurício Takigudormir se ficar sem aquilo” então
thi, é a reafirmação do compromisdeve tentar. Mas se não houver esse
so harmonioso e silencioso com o
distanciamento em relação ao deslumbramento que
processo do trabalho. E complementa:
hoje a palavra “artista” causa em qualquer um, ela
– “É materializar uma inversão radical nos vasimplesmente solta: “Não é do ramo!”
lores: no lugar da ‘aura’, a realidade concreta do
Pois os que são do “ramo” conhecem a delícia e a
cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo;
dor da prática diária, silenciosa, profunda do ofício.
no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibiliOs que são do “ramo” não projetam nada no futudade para algo existente. Enfim, é só isso que eu
ro, se dispõem unicamente ao aperfeiçoamento de si
desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar
mesmos como artesãos, seja no teatro, na literatura,
meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a
na música… e na pintura.
atenção e energia aos seus elementos intrínsecos
Mas o problema é que o artista de hoje aceita,
para compreender a sua essência, sob o rigor da
acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente
excelência”.
pregar a transgressão como estilo de vida, está mais
Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê
desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo
melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma intesistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/
ração sensível com um mundo complexo e infinito,
entreter o espectador para poder existir artisticaonde pequenas revelações e insights cotidianos fazem
mente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre
muito sentido”, finaliza ele.
mão do comprometimento sincero com a obra, para
transformá-la numa extensão do próprio umbigo e
* Mazé Leite é artista plástica, designer gráfica e
vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a
pesquisadora de História da Arte.
90
Cultura
Entrevista com Sérgio Ricardo
“Em 1967 a ditadura já estava
de vento em popa, com uma
aresta a aparar: a cultura que
não se calava”
Por Augusto Buonicore*
Sérgio Ricardo é um artista de
múltiplas dimensões: escritor,
compositor, cantor, cineasta,
artista plástico. Contudo
o que mais o marcou foi o
compromisso com a luta do
nosso povo em defesa da cultura
nacional-popular e da liberdade
N
ascido em Marília, interior de São Paulo, em 18 de junho de 1932 com o nome
de batismo João Lutfi, o multifacetado
artista que adotou o nome de Sérgio
Ricardo foi, simplesmente, um dos
criadores da Bossa Nova. Depois, foi
responsável pela politização e engajamento social do
movimento musical, rompendo com o paradigma do
“o amor, sorriso e a flor”. O salto participativo viria
através de músicas como Zelão e se consagraria na
magistral trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha. Ainda na década de 1960
ligou-se ao Centro Popular de Cultura da UNE. No
cinema, produziu Esse Mundo é Meu, Menino da Calça
Branca e Noite do Espantalho”, entre outros.
91
130/2014
Amaro Fotografia/Fundação Maurício Grabois
naram mais tarde a fonte de meu trabalho na composição. Ao surgir a Bossa Nova eu já estava escolado
com o romantismo de nossos compositores vanguardistas, como Radamés Gnattali, Garoto, Johnny Alf,
João Donato e alguns outros, além do incrível Tom
Jobim com seu parceiro Nilton Mendonça, que me
orientava para o modernismo das harmonias e canções que foram fazendo minha cabeça. Com a chegada da Bossa Nova, eu já virara compositor e cantor, aos estilos de Dick Farney e Lúcio Alves, muito
requisitado pelos inferninhos, até ser chamado por
Aluisio de Oliveira para gravar meu primeiro disco
na Odeon.
Durante a ditadura militar participou de festivais de
Música Popular Brasileira e dos circuitos universitários.
Autor de músicas como Perseguição, Esse mundo é meu,
Calabouço, Tocaia, Ponto de Partida. Seu nome virou um
dos símbolos da resistência cultural contra o arbítrio.
Aproveitando o aniversário dos 50 anos do Golpe Militar e a vinda do artista para um evento promovido pelas
Fundações Maurício Grabois, Perseu Abramo e Alberto
Parqualini-Leonel Brizola, a revista Princípios realizou
uma entrevista com Sérgio Ricardo tratando se sua carreira e militância cultural. Veja, abaixo, a íntegra da entrevista:
Princípios – Na década de 1950, você tocou na
maioria das boates da cidade do Rio de Janeiro e com as principais figuras da noite carioca,
inclusive muitas daquelas que em seguida criariam a chamada Bossa Nova. Como era o clima
cultural no Rio de Janeiro nesse período? Quando e como você se inseriu naquele “movimento”
musical?
Sérgio Ricardo – Nem se sonhava com a Bossa Nova
em 1952 quando comecei na noite como pianista aos
20 anos de idade. Estudei piano desde os oito anos e
adquiri uma técnica pouco encontrada entre os músicos da noite, o que me permitiu o luxo de fazer de
cara uma carreira solo, imitando Carmen Cavalaro,
podendo trabalhar com tranquilidade, raramente
com conjunto, ou revezando com orquestra a tocar
os sucessos da época, de blues e boleros, tangos etc.
E até em orquestra típica de tangos cheguei a atuar.
Claro que passando pela nossa música na rica variedade de estilos, sambas, sambas canção, choros,
baiões, serestas etc. que me permitiram absorver os
estilos nobres de nossa música popular, que se tor-
92
Princípios – A partir do governo JK, e especialmente durante o governo Jango, ocorreu um
rápido processo de politização e polarização da
sociedade brasileira, se estabeleceu um choque
político-ideológico entre nacionalistas e entreguistas, entre esquerda e direita. Isso impactou
fortemente o mundo cultural. O nacional-popular emergiu com força na música, no cinema,
no teatro e nas artes plásticas. A própria Bossa Nova cindiu-se. Ao lado dos que persistiam
no mote “amor, sorriso e a flor”, surgiu uma
corrente mais politizada encabeçada por você,
Carlos Lyra e Geraldo Vandré – e que logo recebeu o importante reforço de Nara Leão. Um dos
marcos dessa sua opção foi a música Zelão que
já compunha seu disco de 1960. Como e quando
surgiu a inspiração para compor Zelão? Que papel ela jogo no seu processo de transição para
o que se chamou música engajada ou de protesto?
SR – Nunca abandonei o essencial da Bossa Nova, que
era a riqueza harmônica e melódica. A letra das novas
canções seguiu a pisada de Zelão, arrancado do povo
do qual havia nascido desde minha vivência no interior, recusando-me à temática pequeno-burguesa de
prestar-se apenas às canções de amor. Aprendera desde cedo que arte verdadeira era aquela que contivesse
um conteúdo abrangente, uma mensagem destinada
à participação da transformação dos males dos seres,
e fiz de minha música e meu cinema, posteriormente, uma ponte deste propósito. Zelão, segundo Carlos
Lyra, foi o abre porta para esse caminho e nele vários
talentos se engajaram, e colocamos nossa música a
serviço daquele ideal perseguido pelos que quiseram
salvar o país.
Princípios – A temática do morro – justamente
uma das marcas desse tipo de música – já estava presente também no seu primeiro filme O
menino da calça branca, lançado em 1961. Ele che-
Cultura
À esquerda, capa de disco que fez Sérgio Ricardo ser chamado a dar explicações à turma da censura; ao centro e à direita, disco
com a trilha sonora sonora do filme Deus e o Diado na Terra do Sol, um dos trabalhos mais importantes do artista
gou aos cinemas um ano antes de Cinco vezes favela, produzido pelo Centro Popular de Cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE),
e de Barravento, dirigido por Glauber Rocha. Como surgiu a ideia do filme e qual a repercussão
dele no Brasil e no exterior? Fale também sobre
a participação de Nelson Pereira dos Santos.
SR – Por essas coincidências trágicas, meu filme Esse
mundo é meu estreou no dia 1º de abril de 1964, no dia
do Golpe. Foi um fracasso de público, pois ninguém
saía de casa, muito menos para ir ao cinema. A ideia
do filme era entrelaçar duas realidades da mesma pobreza de uma favela, onde, por um lado, um operário
se vê obrigado, após um aborto forçado pela companheira, a recusar botar mais um sofredor no mundo, a
conscientizar-se a lutar pelos direitos dos companheiros e, por outro, um engraxate, impossibilitado de
conquistar sua namorada que impunha a condição de
ele ter pelo menos uma bicicleta, ao tomar de um padre a sua bicicleta, como se fosse uma doação de Deus
se apiedando dele, já que não conseguia juntar o dinheiro suficiente para consegui-la. O filme teve uma
participação fundamental de Ruy Guerra na montagem, encarando minha ideia de entrelaçamento das
duas histórias. Assim como Nelson Pereira que pediu
para montar o Menino da Calça Branca, ao assisti-lo no
copião, sem nenhum honorário. Ambos os filmes tiveram uma repercussão internacional destacando-se
a participação do Menino da Calça Branca. No festival
de São Francisco, que só não obteve o primeiro lugar
na categoria de curtas-metragens por ter sido dado,
ao longa-metragem Pagador de Promessas o primeiro
prêmio. O meu longa Esse mundo é meu foi considerado pelo crítico do Cahiers du Cinema como um dos 15
filmes mais importantes do ano. Já estava de muito
bom tamanho para quem começava no cinema.
Qual recordação você traz da relação com aqueles jovens artistas?
SR – Fui levado por meu amigo Chico de Assis, um dos
líderes e criadores do teatro do CPC da UNE no Rio. A
efervescência do movimento motivou o aparecimento de artistas jovens, alguns dos quais desenvolveram
uma carreira equilibrada e outros, mais panfletários,
seguiram no mesmo barco, ambos com a mesma intenção de conquistar a emancipação e as transformações propostas pela luta. Era impossível separar o joio
do trigo, uma vez que o propósito não exigia seleções.
Tive para o meu filme Menino da Calça Branca recusada
a participação no Cinco Vezes Favela, por ter um lirismo
que contrariava seus objetivos radicais.
Princípios – Como você se encontrou com o pessoal do Centro Popular de Cultura da UNE?
Princípios – O ano de 1963 parece ter sido uma espécie de ano mágico na sua carreira. Além do
Princípios – A partir da década de 1970 essa rica
experiência foi criticada duramente por intelectuais da nova esquerda, que a acusavam de
ser autoritária e populista. Esse ataque atingiu
toda a cultura nacional-popular do período anterior a 1964. Qual sua opinião sobre isso?
SR – Teria tudo para concordar com a retaliação, a partir do boicote do meu filme. Mas acho que, embora
houvesse um cunho sectário, o movimento prestou
um grande serviço à luta, conscientizando a população camponesa e operária a aderir a ela. Convenhamos
que se fosse exigida dos estudantes uma postura mais
branda, não se conseguiria a adesão que se conseguiu.
Alguns artistas, como eu, deixamos de atuar no CPC –
mais por termos uma postura culturalista, que esbarrava com a linearidade de expressão, por vezes sem arte,
usada para a comunicação mais beligerante, onde nossa contribuição seria menor. Não os condenamos por
isso. Foi quando tive a ideia do circuito universitário,
e fizemos nossa participação à nossa maneira, o que
resultou num sucesso nacional entre os universitários.
93
130/2014
magnífico Sr. Talento, você começou a produzir o
do em mim, para meu espanto – sem me permitir ver
filme Esse mundo é meu – seu primeiro longa-meo filme. Quando o vi fiquei estarrecido de verificar a
tragem, e foi chamado por Glauber Rocha para
correspondência com a ação. Era um gênio de verdade.
musicar uma das obras primas do cinema munNunca poderia imaginar que fosse dar certo.
dial: Deus e o diabo na terra do sol que, por sinal,
tem uma das mais belas e impactantes trilhas
Princípios – Chegamos então ao trágico ano de
sonoras.
1964. Onde você estava no dia do golpe militar?
SR – Sem dúvida. Como foi para toda a cultura braO que você viu naqueles primeiros dias da imsileira, no teatro, música, poesia, cinema, artes plásplantação da ditadura?
tica etc. Os expoentes de cada área,
SR – Estava no Rio de Janeiro deidentificados pelo mesmo espírito
gustando uma dupla amargura. O
Os expoentes
de emancipar o país, direcionavam
país entregue às baratas e meu filme
suas criações levantando o potencial
entregue às moscas. Dias antes, no
de cada área,
herdado de nossa história e valores
teatro de arena da UNE, presenciaidentificados pelo
lúdicos e criativos de nosso povo a
va a cena cruel da realidade do fradesenvolver uma arte una e comunicasso de nosso propósito. Nenhum
mesmo espírito de
cativa como nunca vi em nosso prodaqueles estudantes presentes na
emancipar o país,
cesso cultural.
plateia do teatro tinha a resposta a
um cidadão que subiu ao palco para
direcionavam suas
Princípios – Vamos por partes. Codizer que falava em nome de Jango
criações levantando
mo surgiu a ideia de produzir
para nos conduzir a um determiEsse mundo é meu e qual a sua renado local onde estariam à nossa
o potencial herdado
percussão? A música veio antes
disposição as armas para enfrentarde nossa história
ou foi criada especialmente para
mos a revolução que contava com
o filme?
nossa participação, já que o exércie valores lúdicos e
SR – Ruy Guerra, meu amigo desde
to estava às portas do golpe. Após
criativos de nosso
os tempos dos inferninhos, e com
longo silêncio, Vianinha subiu ao
quem aprendi os segredos do cinepalco para explicar que ninguém ali
povo a desenvolver
ma, ouviu uma canção sem letra que
estava preparado para isso e sequer
uma arte una e
lhe mostrei. Eu só tinha o refrão:
sabia atirar. Desabava dentro de ca“Esse mundo é Meu”. O resto era só
da um de nós um prédio de sonhos.
comunicativa como
uma melodia com um balanço afro.
Dias depois do golpe, assistíamos ao
nunca vi em nosso
E ele fez o resto da letra que ficou
incêndio do teatro da UNE impoperfeita. Gravei a música e logo após
tentes, e derrotados sumariamente.
processo cultural
Elis Regina gravava com grande sucesso. Ao partir para o filme usei o
Princípios – Logo você foi para o
mesmo título e o autor da letra veio
exterior, aproveitando a parmontá-lo. A sopa no mel.
ticipação do seu filme em festivais internacionais. O que o fez voltar ao Brasil quando podia
Princípios – Como você conheceu Glauber Rocha e
ter seguido uma carreira no exterior, longe da
o que o levou a chamá-lo para compor a música,
ditadura?
e cantar em Deus e o diabo na terra do sol? Como
SR – Foi um disco exibindo a Nara Leão na capa com
foi o processo de produção? Ele remeteu-lhe a
a mão levantada em cujo punho se lia: Opinião. Achei
letra e você musicou? Como foi trabalhar com
que algo estava sendo retomado, e cheio de esperanGlauber?
ças desfiz os contratos que assinara em Roma e voltei
SR – Eu e Ruy estávamos na Moviola montando o filme,
para o Brasil. Ficara por lá a chance que tive de me
quando o Glauber, que já me havia passado o cordel
lançar como cantor e compositor, já com algumas faitodo do filme para eu musicar, me colocou na parede:
xas gravadas, além de uma cópia do meu filme em
“Ou você bota a música até o fim da semana ou darei a
mãos de um agente que ficou de distribuí-lo por lá.
outro para musicar, porque o Deus e o Diabo está pronto,
Bateu um banzo danado e voltei correndo.
esperando a música”. No dia seguinte, entreguei-lhe
um esboço da música, que ele aprovou e partimos para
Princípios – Em meados dos anos 1960 teve início
gravar. O danado conseguiu arrancar de um cantor de
a chamada era dos festivais, que teve como ponBossa Nova um cantador de feira que estava esconditos altos os festivais da Record. Infelizmente, o
94
Cultura
que a mídia procurou marcar da sua presença
nesses importantes eventos culturais foi a estrondosa vaia recebida pela bela e incompreendida música Beto bom de bola no festival de 1967
e a sua inusitada atitude de jogar seu violão na
plateia. Fale um pouco do clima de guerra desses festivais, especialmente desse.
SR – Em 1967 a ditadura já estava de vento em popa,
com uma aresta a aparar: a cultura que não se calava. As peças, os filmes, as canções etc. continuavam
a resistir e algo tinha que ser feito, embora o novo
paradigma já estivesse dando as cartas. Era preciso
que os meios de comunicação fossem radicalizando a
repressão a desfazer os valores que insistiam em vigorar. Coincidentemente, a quebra do violão funcionou
como um último protesto a marcar a mudança do paradigma. Os trabalhos dos vencedores dos festivais do
período de transição galgaram posições de idolatria
por parte de um público que permanece fiel até hoje,
e que não podia ser calado pela repressão sob pena
de um desgaste popular desaconselhável. Dentre eles,
Chico [Buarque], Edu [Lobo], Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, Torquato [Neto], [José Carlos] Capinam,
Sidney Miller, e poucos outros, identificados com a
transformação do país, continuaram na resistência e
quanto mais a mídia os engrandecia mais permaneciam, sem que a censura os pudesse calar, e quanto
mais tentassem proibir mais sucesso faziam. Porém,
caminhando paralelamente, a autocensura, ou negociação com o sistema, levou os meios de comunicação
a baixarem o nível de informação, importando filosofias e modismos externos a tal ponto que conseguiu
descaracterizar o sentido deixado pela cultura musical no processo cultural, ao ponto de não só nosso o
pensamento como a nossa estética esfacelarem-se.
Avançaram como um novo processo até os dias de hoje, em que o lixo cultural já está sendo reclamado pelo mais ignorante dos brasileiros. Tanto que os ídolos
permanecem os mesmos. Não envelheceram. Não se
lhes suplantou nada de novo.
Princípios – O certo é que a sua participação não
foi marcada somente por vaias. Nos festivais
do ano seguinte na rede Globo e na própria
TV Record suas músicas foram bem recebidas pelos jovens, que começavam a ganhar as
ruas em grandes manifestações contra o regime. Refiro-me às músicas Luandaluar, Canto do
amor armado e, especialmente, Dia de Graça onde você satiriza a situação do país após o golpe
de 1964. Como foi a reação do público? O que
havia mudado desde 1967?
SR – Apesar do sucesso alcançado, eu fazia parte da
geração anterior. Junto àqueles que faziam parte dos
Sérgio Ricardo revela talento também nas artes plásticas
que podiam e deviam ser calados sem prejuízo para
a ditadura, pois bastava ordenar o nosso silêncio que
não seríamos notados – os mais atuantes principalmente. Aquela plateia que foi vaiar Beto bom de bola
não era a mesma dos estudantes que cantavam comigo pelos shows que realizava por todo o Brasil, onde
era ovacionado, tinha meus shows censurados, ou povoados de fiscais do DOPS [Departamento de Ordem
Política e Social]. Era sim uma plateia manipulada
por uma mídia que já se debruçava nos desígnios da
ditadura, interessada em criar novos ídolos para fazer a vontade do patrão. Cortaram o doze para fazer
passar os artistas mencionados, até que se instituiu o
AI-5 [Ato Institucional nº 5], em 1968 e dali para cá
pintou a decadência.
Princípios – No mesmo ano – às vésperas do AI-5
– saiu Aleluia Che Guevara não morreu num compacto. Qual foi a reação do governo diante dessa
música?
SR – O Compacto Simples não durou uma semana nas
lojas. Toda a produção distribuída pelas lojas e bancas
de jornal foi recolhida pela censura, enchendo suas
salas com o disco. Nem sequer me chamaram para
interrogatórios costumeiros. Foi sumariamente recolhido e fim de papo.
Princípios – Depois do AI-5 você passou a ser um
dos compositores mais perseguidos pela dita-
95
130/2014
dura – e também pela mídia que, praticamenPrincípios – O seu LP de 1973, além de Calabouço,
te, parou de divulgar sua obra. Quais os meios
trazia Tocaia, nitidamente uma homenagem ao
encontrados por você naqueles anos de chumguerrilheiro Carlos Lamarca, assassinado rebo para manter viva a chama da música popucentemente. Pior, na capa havia uma foto sua
lar brasileira?
com uma espécie de tarja na boca. Pergunto:
SR – A censura estava presente em invariavelmente
esse disco não lhe causou dor de cabeça com a
todos os espetáculos. Gonzaguinha
censura federal?
e eu uma vez fomos a Niterói paSR – Fomos chamados, eu e o Caura um show, convidados pelo DCE
los, para explicações. Ele aquela
Na área cultural, a
[Diretório Central dos Estudantes].
boca arrancada da foto, e eu com
Uma multidão esperava do lado de
o que queria dizer com o refrão de
estrada esburacada
fora do teatro. Não puderam entrar
“Cala boca moço”. Instruí Caulos a
que a ditadura
por proibição da censura. Não tive
dizer que foi uma jogada de transdúvidas, espalhamos um boato paferir a boca para a contracapa, no
nos deixou pela
ra que fossem a uma praça a uns
interior do disco com um balão
frente vai levar
duzentos metros dali e lá fizemos
com as letras. Apenas uma jogada
o show ao ar livre para todo aquele
gráfica. Eles engoliram, com aqueum bom tempo
público que foi conferir nosso arrola risadinha de ignorantes e acapara ser reparada.
jo. Muitos shows foram proibidos,
baram convencidos de que o meu
ou policiados com mil exigências
“Cala boca moço” do refrão era
Será preciso que
dessa ou aquela proibição e a gente
destinado às imposições da mídia
as prefeituras que
ia levando como podia.
televisiva que impunha suas regras
para as criações dos artistas. Eu já
recebem as verbas
Princípios – Uma das passagens
havia me acostumado com aquelas
para pavimentámais significativas da sua carvisitinhas e já chegava com resposreira, que se tornou um dos símtas na ponta da língua para conla, antes de tudo,
bolos maiores do engajamento
vencer aquelas inteligências, que
não se percam
do artista nas lutas antiditatonem sempre davam certo, como no
riais, foi a participação na miscaso de Aleluia e Dia da Graça.
nas aventuras das
sa de sétimo dia do estudante
gavetas
Alexandre Vannucchi Leme, na
Princípios – No ano seguinte você
qual cantou Calabouço. Era
lançou o filme musical Noi1973 e precisava ter muita
te do Espantalho. Num estilo
coragem para fazer aquilo.
realista fantástico – baseaFale um pouco sobre a músido numa estória de cordel –,
ca e o que se lembra daquevocê fez uma contundente
le evento na Catedral da Sé
crítica ao domínio econômicelebrado por dom Evaristo
co e político do latifúndio e
Arns em 1973.
do imperialismo. Como surSR – O curioso é que quando
giu a ideia do filme – inclucomecei a cantar, acostumado
sive a mescla de elementos
com a voz do público nas resmodernos e tradicionais – e
postas do refrão, senti um vazio.
sua repercussão nacional e
Ninguém cantou nem aplaudiu.
internacional?
Tive de entender que não seria o
SR – Foi meu trabalho mais
caso. Na saída muita gente veio
arrojado até o momento. Enme dizer que ficou frustrada por
carei uma linguagem cinemanão poder cantar. Barra pesada
tográfica baseada na estética
foi passar pelo pelotão armado e
do cordel como prova de uma
pronto para atirar caso houvesse
linguagem ainda não exploqualquer tipo de manifestação.
rada, dada à fantástica imaParecia uma cena de guerra.
ginação dos nossos cordelisMas conseguimos deixar registas a usarem uma linguagem
Cena da peça Ponto de Partida
trado um ato de coragem.
fantástica ao mesmo tempo
96
Cultura
social, humana e lírica. No Brasil é um filme que
ainda poderá ser apreciado. No exterior fez uma
bela figura, sendo convidado a passar em inúmeros festivais, principalmente Canes e Nova Iorque.
Está praticamente inédito no Brasil. Mas ele está
para sair em DVD, junto com meu filme anterior,
Juliana do amor perdido, rodado em Guarujá e Piracicaba.
trutivo como o que deixou. Supunha que na abertura
voltasse a reconstruir o estrago. Mas a estrada esburacada que a ditadura nos deixou pela frente vai levar
um bom tempo para ser reparada. Será preciso que
as prefeituras que recebem as verbas para pavimentá-la, antes de tudo, não se percam nas aventuras das
gavetas.
Princípios – Acabada a ditadura militar em 1985,
Princípios – Fale da sua parceria com Gianfrancesparece que continua a ditadura do mercado foco Guarnieri na peça Ponto de Partida, que tinha
nográfico e da mídia monopolizada. Ela conticomo mote o assassinato de Herzog.
nua firme no seu projeto de reconstruir a hisSR – Foi a glória trabalhar com Guarnieri. Ele havia
tória da cultura brasileira, e ao fazê-lo silencia
me convidado para juntos escrevermos uma peça. Cesobre autores e momentos. Como você vê o
deu seu sítio para eu passar uns dias
quadro da cultura brasileira na
a elucubrarmos juntos o tema que
atualidade e quais os caminhos
nunca passou de uma comédia. Ríapara romper o cerco da medioPreferi ser um
mos muito com as ideias gaiatas que
cridade que nos impuseram?
revolucionário ao
iam surgindo, não fosse sua mulher
SR – Só com o povo nas ruas, nas
nos advertir de que Guarnieri tinha
questões sociais e nas reformas de
meu jeito, usando
já uma ideia sobre o Herzog. Aprobase. E com os artistas unidos para
minha arte como
vei no ato e aconselhei que ele viesse
neutralizar os mesquinhos sistemas
com um primeiro tratamento para
arma para participar de captação, que estão propiciando
trabalharmos. Ao ler, no dia seguinuma decadência cultural sem preda transformação,
te, fiquei deslumbrado com o texto
cedentes na nossa história.
e não vi nada que pudesse ser acrese seguir minha
centado, e nasceu o Ponto de Partida,
Princípios – Você sempre foi caprópria consciência
título que levou de minha canção, e
racterizado como uma artista
que acabou virando o tema principal
envolvido com as causas caras
da peça. Combinamos que eu faria o
à esquerda. Nesses anos chegou
papel do ferreiro e a trilha sonora da peça e sacramena militar em alguma organização política sociatamos nossa parceria.
lista?
SR – Talvez pela rebeldia de minha índole, não me
Princípios – No final da década de 1970, para esengajei em nenhum partido de esquerda, embora
panto de muitos, você resolveu comprar um
tivesse por todos eles uma grande simpatia, atenbarraco no morro do Vidigal e acabou se endendo aos chamados para participar de todos os
volvendo na luta da comunidade contra o deseventos ou passeatas etc., para os quais era conspejo.
tantemente convidado. Preferi ser um revolucioSR – Comprei um barraco no Vidigal, que logo foi
nário ao meu jeito, usando minha arte como arma
marcado para ser derrubado com centena de oupara participar da transformação, e seguir minha
tros. Enfrentamos a remoção com uma organização
própria consciência. E sinceramente não me ardos favelados, liderados por seus próprios habitanrependo. Talvez por ter uma visão um tanto partes, e com nossa ajuda. Alguns assistentes sociais,
ticular sobre os partidos de esquerda. Talvez pela
o Cardeal e Sobral Pinto que, convidado por minha
intensidade de apego a pontos de vista, acho que
amiga Eni Moreira, venceu a causa na justiça conse desentendem e se pulverizam com muita faciliseguindo a reintegração de posse. Fiz uma peça,
dade, criando exatamente o que o sistema quer. Se
Bandeira de Retalhos, que está sendo encenada com
houvesse um único partido, com flexibilidade para
grande sucesso nas periferias há mais de um ano.
encarar e vencer as contradições, sem precisar partir para os rachas, acho que se poderia acreditar na
Princípios – Qual foi o impacto da ditadura misua capacidade de transformação.
litar para a cultura brasileira?
* Augusto Buonicore é historiador e secretário geral
SR – Trágico. Conseguiram levá-la ao mais rasteiro pada Fundação Maurício Grabois. Realizou a entrevista
tamar. Todas as artes estão em crise no país. Nunca
com Sérgio Ricardo por e-mail em março de 2014
poderia imaginar que ela deixasse um lastro tão des-
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130/2014
Resenha
Le Goff, história e teoria
A. Sérgio Barroso
“A história é uma sequência de continuidades e mutações. E, raramente,
de rupturas” (J. Le Goff, O Globo, 05-04-2014 [março de 2014]).
E
A Idade Média e o dinheiro:
Ensaio de uma antropologia
histórica
Autor: Jacques Le Goff
Tradutor: Marcos de Castro
Págs: 272
EAN: 9788520011713
Gênero: História
Formato: 14 x 21 cm
Editora: Civilização Brasileira
Preço: R$ 35,00
ssa ideia nervosa perseguiu décadas a fio concepções do
grande medievalista francês Jaques Le Goff, falecido aos
90 anos em 1º de abril. Sim, um vaticínio tenso e decisivo,
a meu juízo. Mas não há aqui flerte com as leis dialéticas
reconhecidas pelo marxismo.
Le Goff permaneceu na diferenciação numa das ideias centrais
da geração braudeliana da Escola dos Annales (1929) – la longue durée (a longa duração): ele nunca aceitou a tese obsessiva de Fernand
Braudel descrita e sintetizada em “história quase imóvel”: uma “expressão perigosa”, escreveu Le Goff. Ou a metafísica indisfarçável
(“história imóvel”, ou “história sem movimento”) do destacado
militante da “Nova História”, Le Roy Ladurie. Nada disso: “Não,
a história se mexe. A história nova deve, ao contrário, apreender a
mudança”, disparou Le Goff no notável ensaio A história nova [1].
Onde reverencia o materialismo histórico de Marx! (IDEM, p. 165).
Incluído na chamada “terceira geração” da Escola criada por
Lucien Febvre e M. Bloch, pós-1968, e considerando-se “discípulo
póstumo de Bloch” [2], Le Goff iniciara aos 33 anos com o erudito
Os intelectuais na Idade Média (Brasiliense, 1993, 3ª edição).
Dialética do dinheiro
A Idade Média e o dinheiro (2010) chegou ao Brasil coincidentemente à morte de Le Goff. A leitura do vigoroso e polêmico estudo
deve mirar dos seguintes pontos cardeais.
1) Na Idade Média o dinheiro (moeda de prata ou ouro, depois cunhado) processa regressão do século IV ao fim do século XII
(Constantino a São Francisco de Assis), e conhece recesso para depois recomeçar um lento retorno – “potentes e humildes” quer dizer
então “poderosos e fracos”, dada representação social; entretanto,
quando da passagem do século XIII ao fim do século XV a distinção
“ricos e pobres” reconfigura o simbolismo do poder. 2) À Revolução
Comercial do século XIII seguiu-se o dinheiro à usura modificando
“profundamente concepção e prática do tempo na Idade Média”.
Para Le Goff, renovação econômica engendrando desenvolvimento
urbano, combinado ao crescimento dos poderes do rei, e “sobretudo” as ordens mendicantes conferem novo impulso ao dinheiro,
sendo que ainda “sem atingir o limiar do capitalismo”. Ademais,
agir contra a caridade (caritas) “é agir contra Deus” é cometer “pecados dos mais graves” (p. 246). 3) O desenvolvimento da moeda
acompanhou o conjunto da evolução social da Idade Média, e diferentemente do que teorizou Braudel, “o capitalismo não nasceu
na Idade Média”; e ela não foi “sequer pré-capitalista”: a penúria
dos metais preciosos e a fragmentação dos mercados “impediam as
condições para isso”, concluiu Le Goff.
NOTAS
[1] Ver: LE GOFF, J. “A história Nova”. In: NOVAIS, F. & SILVA, R. F. da (orgs.). Nova história em
perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 156.
[2] Ver: “Um gigante modesto”, do ex-aluno de Le Goff, Hilário Franco Júnior. In: Ilustríssima,
Folha de S.Paulo, 06-04-2014, p. 6.
98
LIVROSLivros
“O protesto negro que
ainda está atual”
C
Kabengele Munanga
lóvis Steiger de Assis Moura, simplesmente
chamado Clóvis Moura, surgiu no universo dos
pensadores do Brasil social por volta de 1955.
Em nosso conhecimento, desde seu primeiro
texto publicado, intitulado Euclides da Cunha e a Realidade
Nacional (1955), ele escreveu ininterruptamente sobre as
questões sociais do Brasil até a sua morte, em dezembro
de 2003. Isto é, quarenta e oito anos de reflexão crítica
como intelectual engajado, durante os quais ele conseguiu manter a distância entre suas responsabilidades de
estudioso e pesquisador e sua posição ideológica como
membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do
Movimento Negro Brasileiro.
Sem abrir mão da reflexão sobre o Brasil social de
modo geral, como aparece em alguns de seus textos –
como, por exemplo, A situação atual do Brasil como nação
soberana (1956) e de seus ensaios, A Sociologia posta em
questão (1978), Gama Rosa: Percursos da Sociologia no Brasil
(1972) e Uma abordagem sociológica do conceito de História
(1975) –, foi sem dúvida sobre o negro brasileiro que ele
consagrou a parte mais importante de sua obra. Sobre
um total de vinte e sete títulos em nosso levantamento,
vinte deles tratam exclusivamente da história, dos problemas e da situação do negro brasileiro. Neste sentido,
ele foi um dos maiores estudiosos, pensadores e intelectuais da questão negra em seu país. Sem fugir da visão
gramsciana, ele foi realmente um intelectual orgânico
do seu povo negro.
De sua grandiosa obra, me parece que o Rebeliões da
Senzala, publicado pela primeira vez em 1959, constitui a
âncora a partir da qual ele começou a analisar e aprofundar seu pensamento em torno do fenômeno da resistência negra em defesa da liberdade e dignidade humanas.
Foi a primeira obra na historiografia brasileira a tratar
da questão das rebeliões negras de maneira sistemática,
mostrando com fatos históricos o alastramento desse fenômeno em todo o território brasileiro. Na esteira desta
obra nascerão mais tarde outros estudos como o Palmares
– A guerra dos escravos, de Décio Freitas (1971) e o Rebelião
Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835,
de João José Reis (1986). Ele foi sem dúvida o pioneiro e
o primeiro a desmistificar a ideia do negro submisso que
não se importava com sua situação de cativo, e a colocar
em pauta a questão de sua participação no processo abolicionista e libertário, habilitando-o como sujeito de sua
história e da história do Brasil e tirando-o da posição de
mero objeto de pesquisa acadêmica.
Rebeliões da Senzala figura entre os livros de Clóvis
Moura como o único a receber quatro edições (1959,
1972, 1981 e 1988), não somente porque foi através dele
Rebeliões da Senzala – 5ª edição
Autor: Clóvis Moura
Págs: 456
ISBN: 978-85-7277-147-4
Editora Anita Garibaldi
Onde comprar:
www.anitagaribaldi.com.br
Preço: R$ 49,00
que Clóvis se lançou como historiador negro, mas também pelas revelações e análises profundas nele esboçadas pela primeira vez a respeito do protesto negro. Seu
pensamento vai se aprofundando e se lapidando através
de outros livros que virão na esteira do Rebeliões da Senzala, como Brasil: As raízes do protesto negro (1983) e Quilombos: Resistência e escravismo (1987).
Por que reeditar hoje o Rebeliões da Senzala, depois de
dez anos da morte do seu autor? Além de ser uma bela
homenagem ao grande intelectual negro Clóvis Steiger
de Assis Moura, esse livro já se esgotou há anos e está ficando cada vez mais difícil e raro encontrar algum
exemplar em muitas bibliotecas públicas do Brasil. No
entanto, ele não pode desaparecer no processo de formação da presente e das futuras gerações de pensadores e
pensadoras da questão negra no Brasil. O protesto negro
que perpassa em filigrana nas páginas dessa obra ainda
está atual em termos diferentes no contexto pós-Abolição. Não é por acaso que alguns falam da segunda e
verdadeira abolição da escravatura no Brasil. Se Clóvis
Moura estivesse vivo, no âmago das polêmicas maniqueístas do “Bem” e do “Mal” sobre cotas ditas raciais
no Brasil, ele teria sem dúvida retomado o seu Dialética
Radical do Brasil Negro (1994) e manifestado sua posição
de acordo com a riqueza do seu pensamento. Ficamos
órfãos de sua opinião naqueles momentos cruciais, mas
podemos reencontrá-la através de sua obra, a começar
pelo Rebeliões da Senzala, agora reeditado.
99
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