Ed.130 Abr-Mai 2014 - Revista Principios
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Ed.130 Abr-Mai 2014 - Revista Principios
1 130/2014 2 Editorial Tantas vezes bloqueada, a Reforma Urbana emerge como inadiável E ntre os anos 1950 e 1970, quase 40 milhões de brasileiros marcharam da zona rural para as cidades. Desprovidos de tudo, migraram buscando trabalho e uma vida melhor. E esta “diáspora” prosseguiu. Pelos dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,4% dos 190 milhões de brasileiros vivem nas cidades. Em 1940, a população urbana era apenas de 31%. Essa vertiginosa e acelerada urbanização se deu sob a mesma lógica da grande expansão capitalista ocorrida no país: grande crescimento econômico, volumosa produção de riqueza e, simultaneamente, gigantesca concentração de renda e exclusão da imensa maioria do povo dos benefícios do crescimento econômico. As cidades brasileiras de hoje, sobretudo as metrópoles, são um produto e um retrato desta lógica. No espaço geográfico no qual se expandiram as cidades, cada metro quadrado adquiriu, conforme a localização, o valor do ouro. Assim, poderosos grupos capitalistas e sua teia de agentes nas diferentes esferas do Estado mercantilizaram, privatizaram o espaço urbano e concentraram, nas regiões de moradia, lazer e trabalho dos ricos e muito ricos, os investimentos públicos para assegurar-lhes bem-estar e qualidade de vida. Enquanto isto, para os trabalhadores, para os pobres, foi destinada outra “cidade”, ou melhor, uma “não-cidade”, sem saneamento, sem espaços de lazer, sem infraestrutura adequada, sem segurança, sem transporte coletivo que atendesse à demanda com o mínimo de qualidade. Décadas se passaram desde o início daquela grande corrida para as cidades. Hoje, os números escancaram e o grito das ruas denuncia: está instaurada no país uma grave crise urbana. As cidades que antes significavam perspectiva de uma vida melhor estão prisioneiras de graves problemas, como o estrangulamento da mobilidade urbana, violência com estatísticas de guerra civil, a degradação do meio ambiente, falta de moradia para o povo. O entretenimento, a cultura, o esporte ainda são privilégio de poucos. Na cidade de São Paulo, um em cada cinco habitantes vive em favelas – fenômeno comum a ou- tras metrópoles com suas imensas periferias pauperizadas. Do sonho de um paraíso, as cidades se transformaram numa espécie de purgatório. Mesmo as elites, com suas áreas “nobres”, tiveram a qualidade de vida afetada seja pela violência, seja pelo trânsito caótico. A situação só não é pior porque, desde os anos 1960, travou-se uma luta liderada por entidades populares e lideranças progressistas por uma Reforma Urbana que humanizasse as cidades e rompesse com essa lógica que, na prática, nega à maioria do povo o direito às cidades. De lá para cá essa jornada, mesmo com oscilações, obteve vitórias significativas que resultaram no capítulo temático sobre a questão urbana na Constituição de 1988 – êxito que abriu portas para a aprovação, em 2001, do avançado Estatuto da Cidade. Contudo, o conservadorismo freou a aplicação desse Estatuto e bloqueou a realização das reformas necessárias. Nos últimos 11 anos, os dois governos do presidente Lula e o governo da presidenta Dilma Rousseff aprovaram importantes dispositivos legais e conceberam audaciosos programas para dar respostas à pauta da crise urbana. Entre as realizações deste período, destacam-se a criação do Ministério das Cidades, a realização de conferências nacionais sobre o tema, o PAC da Mobilidade Urbana, o Programa Minha Casa Minha Vida – atualmente, já na segunda etapa, que prevê a construção, até o final deste ano, de 2, 7 milhões de moradias, e, para o próximo quadriênio, se estipula como meta a edificação de outras 3 milhões de unidades. Como desafio para o próximo período, destaca-se a necessidade de acelerar a instituição do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) como instrumento indispensável para conjugar as ações das três esferas de governo para que a Reforma Urbana, questão de dimensão nacional tantas vezes postergada, seja finalmente realizada. Adalberto Monteiro Editor 1 130/2014 12 Capa Possibilidades para a construção da Reforma Urbana brasileira Rosana Helena Miranda................................... 4 7º Fórum Urbano Mundial em Medellín Inácio Arruda: Aprendendo com a experiência colombiana Da redação..................................................... 12 26 Reforma Urbana, questão essencialmente política Luciano Siqueira........................................... 20 Prioridade para os interesses coletivos nas cidades Bartiria Lima da Costa................................. 26 30 Quando a única possibilidade é ser coletivo Jilmar Tatto.................................................... 30 Entrevista com Ignacio Cano “A crise das UPPs é parte de uma crise mais ampla” Da redação.................................................. 33 41 Cidades incompletas Ana Paula Bueno........................................... Economia 51 Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo “Concepções que levaram o país à crise predominam porque se originam naqueles que têm o poder real” Adalberto Monteiro, Osvaldo Bertolino e A. Sérgio Barroso....................................... 45 A busca por uma nova governança econômica global pós-crise financeira e o papel do FMI Marcelo Pereira Fernandes.......................... 51 2 Sumário Brasil Atos de 50 anos do golpe clamam por justiça Cezar Xavier................................................... 58 58 Entrevista com Thiago de Mello Um canto que enaltece a luta por um Brasil humano e solidário Da redação .................................................... 63 Neoliberalismo e pós-neoliberalismo no Brasil Emir Sader................................................. 72 Internacional 63 As razões e as consequências do golpe de Estado na Ucrânia Ricardo Alemão Abreu................................ 78 40 ANOS DA REVOLUÇÃO DE ABRIL “Quando o povo acorda é sempre cedo” 82 Pronunciamento de Jerónimo de Sousa........ Cultura 86 O resgate dos valores humanos Mazé Leite ................................................... Entrevista com Sérgio Ricardo “Em 1967, a ditadura já estava de vento em popa, com uma aresta a aparar: a cultura que não se calava” Augusto Buonicore...................................... 91 78 Resenhas A Idade Média e o dinheiro Le Goff, história e teoria A. Sérgio Barroso........................................ 98 Livros Rebeliões da Senzala “O protesto negro que ainda está atual” Kabengele Munanga................................... 99 91 3 130/2014 Possibilidades para a construção da Reforma Urbana brasileira Rosana Helena Miranda* É necessário avançar na Reforma Urbana brasileira em cada perfil de cidade. Essa ideia talvez se baseie em particularidades de cada contexto produzindo diretrizes diferentes. Talvez ainda tenhamos que enfrentar o debate da propriedade privada do solo urbano de maneira mais contundente, com um novo papel do Estado no controle do solo urbano O A organização territorial urbana no Brasil s dados recentes do último censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil possui hoje 190.755.799 habitantes, com uma taxa de crescimento anual de 1,17% na última década. Esse indicador indica que o processo de urbanização do país está se consolidando. Isso abre uma perspectiva de planejamento das questões do território no sentido de formular e viabilizar políticas públicas de longo prazo, tendo em vista que já não teremos maiores fluxos migratórios. A Tabela 3 compara as taxas de crescimento da população no Brasil e em São Paulo. Em três momentos diferentes. Mostra que gradualmente a população urbana se estabiliza apesar da magnitude dos problemas encontrados nestas regiões, os quais estão mais relacionados à concentração de renda do que ao crescimento da população. Tabela 3 TAXAS ANUAIS DE CRESCIMENTO POPULACIONAL Brasil, Estado de São Paulo, Região Metropolitana e Município de São Paulo – 1980-1991, 1991-2000 e 2000-2009 REGIÕES 1980-1991 1991-2000 2000/2009 Brasil 1.93 1.63 1.34 Estado de São Paulo 2.13 1.78 1.31 Região Metropolitana de São Paulo 1.88 1.64 1.21 Município de São Paulo 1.16 0.88 0.59 Fonte: IBGE. Censos Demográficos, Contagem da População 2007 e Projeções de 2007 a 2010 e 2008 a 2010 – Fundação SEADE. Elaboração: Secretaria Municipal de Desenvolvimento urbano/ SMDU – Departamento de Estatística e Produção da Informação – DIPRO. 4 Capa Quinze municípios brasileiros já atingiram mais de um milhão de habitantes A Tabela 4 abaixo mostra uma tendência à estabilização no crescimento da população brasileira que pode ser explicado por vários fatores. No ano 2010, somente a região Norte ainda apresenta índice maior que a média nacional. Tabela 4 TAXA MÉDIA GEOMÉTRICA DE CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO GRANDES REGIÕES Região 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010 (1) Norte 2,29 3,34 3,47 3,7 3,85 2,86 2,09 Nordeste 2,27 2,08 2,4 2,16 1,83 1,31 1,07 Sul 3,25 4,07 3,45 2,48 1,38 1,43 0,87 Sudeste 2,14 3,06 2,67 2 1,77 1,62 1,05 Centro Oeste 3,41 5,36 5,6 4,05 3,01 2,39 1,9 Fonte: IBGE, Censo demográfico 1950/2010. Até 1991 na tabela extraída de: Estatísticas do Século XX, Rio de Janeiro, IBGE, 2007, no Anuário Estatístico do Brasil 1979. Rio de Janeiro: IBGE, vol. 42, 1981. Provavelmente o fator mais importante que reforça esta tendência é a entrada da mulher de maneira significativa no mercado de trabalho, o que de alguma maneira começa a limitar o número de filhos e com isso uma redução de natalidade principalmente nas grandes cidades. A população urbana no Brasil atingiu 143.792.645 habitantes, o que representa uma taxa de 84,4% da população total, sendo que o número de municípios criados, praticamente dobrou desde a década de 1960. Em 1960 eram 2766 contra 5565 municípios em 2010. Segundo o IBGE ainda, quinze municípios brasileiros atingiram mais de um milhão de habitantes, que incluem 13 capitais de estados e o Distrito Federal, as quais somam 23,83% da população do país. Os estados que possuem a maior população urbana são: São Paulo com 39.585.251 habitantes, Minas Gerais com 16.715.212, Rio de Janeiro com 15.464.239, Bahia com 10.102.476 e Rio Grande do Sul com 9.100.291. No entanto, apenas 608 municípios possuem mais de 50 mil habitantes, isto é, a grande maioria em número de 4957 são municípios pequenos em termos populacionais que representam 89% dos municípios brasileiros. O estado de São Paulo abriga a maior metrópole da América Latina e algumas das mais importantes aglomerações urbanas, não só pelas suas escalas, mas, pelo que elas produzem de tecnologia e de sofisticação do mundo da ciência, cultura e economia. Durante todo o século XX, período de formação das maiores metrópoles mundiais, um debate constante no universo dos técnicos de planejamento das cidades e dos gestores públicos colocou a questão sobre se é possível trazer para cidades como São Paulo e outras metrópoles brasileiras, um patamar de qualidade de vida civilizado como nos países desenvolvidos? Discute-se ainda hoje sobre a necessidade de que o espaço público seja respeitado por todos, cuidado pelo poder público como bem coletivo maior da sociedade. Isto remete à reflexão ao problema da 5 130/2014 problema menor, bem como o acesso à água e ao escala das cidades. O tamanho das cidades constimeio ambiente. tui-se como entrave ou como elemento facilitador Todas estas questões precisam ser examinadas à da realização das ações de desenvolvimento para luz de uma avaliação das conquistas do Estatuto da o conjunto da sociedade e principalmente para as Cidade em seus dez anos de existência completados classes sociais que vivem nas periferias urbanas deem 2011. sestruturadas? No caso brasileiro, a rede de cidades se organizou No século XXI este debate perdura. Particulara partir da costa brasileira de onde vieram os conmente no Brasil, neste momento em que se retoma quistadores de nossa terra. Até hoje, a maior parte o rumo de investimentos e financiamentos públicos das cidades metropolitanas está no litoral ou num para as atividades essencialmente de caráter urbano raio médio de 500 quilômetros da costa, como é posde construção habitacional, equipamentos públicos sível observar nos mapas do IBGE. e de infraestrutura, a reflexão deve se aprofundar. O início do processo de colonização teve como No entanto, é preciso cautela, pois a visão que objetivo a posse da terra e uma economia essencialtem prevalecido nas intervenções ou obras públicas mente extrativista com orientação expressa para que ou privadas é a visão econômica de geração de emos colonos não se afastassem da costa para ocupar o prego e renda. interior do território. As atividades ligadas principalmente à construRazões objetivas de sobrevivência e a necessidade ção de infraestrutura, sem dúvida, se caracterizam de tomar posse efetiva do território, apesar da viocomo atividade intensa e motor do desenvolvimenlência contra os povos indígenas, to, mas o espaço urbano é finito os quais ocupavam o Brasil antes e exige planejamento. chegada dos portugueses, fizeA política de organização do O problema energético da ram com que os colonos bandeiterritório deve ter uma abranrantes se embrenhassem por este gência estratégica entre a cidade abastecimento país à procura de ouro e posteriorde e a produção agrícola, e a fidas cidades e de sua mente de diamante, encontrado nitude do espaço e dos recursos nas minas gerais e dessa forma do meio ambiente. economia não é um foram responsáveis pela interioExistem aspectos culturais, problema menor, bem rização da ocupação do país além históricos, ambientais e sociais da costa. que merecem ser tratados a parcomo o acesso à água Esse processo não foi pacífico. tir de uma visão integrada das e ao meio ambiente Gerou diversas lutas pelo territóações de intervenção pública e rio que fixou populações e expulou privadas no espaço urbano. sou outras e assim se formou a As especificidades de cada nossa rede de cidades com suas funções específicas lugar na cidade, e de cada cidade em si e de seu papara atender às ordens da coroa portuguesa. pel no contexto regional ao qual ela pertence, são a A rede de cidades que formam o conjunto dos primeira leitura e diagnóstico a ser feito para a elaestados brasileiros onde se encontram as maioboração de políticas públicas para as áreas urbanas. res densidades populacionais no território reflete a É necessário avançar na Reforma Urbana brasiimportância dos fluxos migratórios em função das leira em cada perfil de cidade. Essa ideia talvez se buscas pelas riquezas minerais em Minas Gerais no baseie em particularidades de cada contexto produséculo XVIII, fato este que se reflete ainda hoje na zindo diretrizes diferentes. Talvez na cidade de São economia acumulada nesta região. Esse padrão de Paulo, a Reforma Urbana seja equipar a periferia, reourbanização reforçou a concentração da riqueza na cupar o centro e resgatar a cultura e a história dos bairros região Sul-Sudeste e consequentemente a maior inoperários do centro ao longo da antiga ferrovia que ligava fraestrutura instalada. Santos a Jundiaí, assim como também recuperar seus rios e Em 1808 com a vinda da família real algumas democratizar a cidade através da expansão da rede de transmedidas foram tomadas em relação ao controle da porte público ligando todas as regiões. terra urbana e a partir daí se tem notícia das priTalvez ainda tenhamos que enfrentar o debate da meiras cobranças de imposto territorial de que se propriedade privada do solo urbano de maneira mais têm registro, conhecidas como “Décima”. Há que se contundente, com um novo papel do Estado no controle destacar o papel da igreja na distribuição da propriedo solo urbano. dade urbana nas cidades brasileiras sendo que inúNos dias atuais, o problema energético de abasmeros núcleos foram formados por colégios jesuítas tecimento das cidades e de sua economia não é um 6 Capa ou pelos aldeamentos para domínio das populações indígenas. Em 1850, com a criação da “lei de terras”, se consolida a existência da propriedade privada no Brasil e a ordenação das cidades passa a se submeter a este novo estatuto jurídico para a ordenação do território. O fim da Escravidão, o processo de industrialização no Brasil no final do século XIX e depois no século XX trarão um contingente grande de trabalhadores imigrantes e trabalhadores do campo que darão uma nova forma aos núcleos urbanos que ganhará contornos com extensos limites na fase de transformação das metrópoles para o novo perfil de predomínio dos serviços, fruto do avanço do capital financeiro e tecnológico sobre a atividade produtiva industrial que marcou a segunda metade do século XX e início do século XXI. Desocupações, como a do terreno da antiga Telerj, no Rio de Janeiro, continuam sendo feitas de forma violenta, sem respeitar direitos básicos Propriedade privada urbana no Brasil com vistas a um Programa Socialista – o Estatuto da Cidade No Brasil, a propriedade urbana e a rural também, desde a Lei da Terra de 1850, não podem ser objeto de intervenção estatal a não ser pelo mecanismo da desapropriação compulsória para finalidades específicas como a declaração de utilidade pública, para a construção de equipamentos ou obras públicas e o decreto de interesse social que visa a prover de habitação de interesse social famílias de menor renda e que não possuam ainda unidade habitacional própria. Assim, o acesso à terra é um processo bastante moroso pois depende de ação judicial cujo tempo de solução é imponderável – o que inúmeras vezes inviabiliza ações e obras públicas, ou de produção de habitação de interesse social devido ao rito jurídico, que permite um longo percurso até a concretização da decisão de escolha de um local adequado para a melhoria das condições urbanas ou para a concretização de obras de infraestrutura, tais como metrô, ou obras aeroportuárias. As obras para grandes eventos, como as Conferências Internacionais da ONU, Copa do Mundo em 2014 ou Olimpíadas de 2016 atuais, que estão movimentando a economia do país, dependem desses ritos jurídicos para sua concretização. O Estatuto da Cidade aprovado em 2001, depois de passados quase 50 anos desde que o primeiro projeto de lei foi enviado ao Congresso Nacional para regulamentar a organização espacial das cidades em 1963, regulamentou finalmente o artigo 182 da Constituição de 1988 e aprovou uma série de instrumentos de regulação do uso da terra que não estivesse cumprindo sua função social conforme estabelece a Constituição Federal. Talvez o principal desses instrumentos tenha sido o reconhecimento da cidade informal, das favelas, das ocupações e dos cortiços que não constavam anteriormente das estatísticas oficiais e não recebiam recursos ou financiamentos públicos para solução de seus problemas de urbanização, regularização e provimento de infraestrutura. Outro aspecto importante inserido no Estatuto da Cidade é a questão democrática, é a garantia de preservar os direitos humanos na relocação de populações de assentamentos precários ou por motivo de realização de outras obras e a participação nos processos de reurbanização e regularização fundiária. No entanto, ainda hoje no Brasil este direito não está sendo respeitado, inúmeros são os casos recentes de violência em desocupação de terras. Mas, apesar dos direitos conquistados pelo Estatuto da Cidade, há muito que se avançar na cidade agora considerada formal. As condições concretas de precariedade do território no caso das favelas demonstram que apesar do crescimento econômico, do emprego e do crédito, a vida nessas comunidades não mudou substancialmente. As famílias ainda vivem em condições muito precárias, não há rede de esgoto e tratamento das águas, as calçadas são estreitas, não há iluminação pública e a violência urbana está longe de ser eliminada. A Reforma Urbana está diretamente vinculada à mudança da situação de concentração da renda no país, que se constitui num grande entrave para o desenvolvimento. 7 130/2014 É necessário superar aspectos jurídicos das competências sobre as questões de infraestrutura. Em São Paulo, por exemplo, a gestão da drenagem urbana é do município, mas, a gestão do saneamento básico é competência do governo do estado, portanto obras que poderiam complementar umas às outras ficam inviabilizadas por razão de competências administrativas e prioridades divergentes. Este caso demonstra que a integração na ação pública é fundamental para a solução dos problemas de infraestrutura e de organização do território. Este é um aspecto da mais alta importância no sentido de integrar as ações dos poderes públicos das diferentes esferas de governo e entre as instâncias inseridas no mesmo nível de governo, é uma necessidade que a realidade impõe para racionalizar todos os tipos de recursos envolvidos e para coordenar obras e ações incidentes sobre o mesmo território. Isto significa reorganizar o desenho institucional do Estado no que diz respeito às questões do território com o objetivo de centralizar e racionalizar os investimentos, bem como descentralizar e democratizar a prestação de serviços sociais nas cidades. A questão da propriedade do solo urbano poderá assumir um enfoque diferente a partir da realidade urbana e suas necessidades. Será necessário devolver à terra o seu status de meio de uso para viabilizar uma condição de vida digna aos habitantes das cidades. A função social da propriedade deve preponderar sobre os interesses econômicos privados. Em determinadas circunstâncias, em áreas estratégicas para o desenvolvimento de infraestrutura e provimento de habitação de interesse social, a Reforma Urbana incluirá perímetros de estatização do solo e requisição de caráter público para promoção da vida nas grandes metrópoles, respaldada por amplos interesses sociais e por decisões democráticas de uma nova reordenação das instâncias de participação e gestão do território. Assim, numa abordagem inicial consideramos que a Reforma Urbana no Brasil deve considerar no mínimo quatro grandes premissas quanto às cidades brasileiras e a gestão dos problemas urbanos: 1. Em regiões diferentes com realidades diferentes o enfrentamento dos problemas deve se dar de forma diferente. 2. Reordenar as ações do território urbano segundo a identificação de tipologias das cidades brasileiras segundo o contexto de inserção e segundo o porte do município, (regiões metropolitanas, pequenos municípios, Região Amazônica, cidades litorâneas, cidades-polo regionais etc.). 3. Eleger os temas de caráter estratégicos de acordo com cada perfil urbano. 4. Construir uma visão estratégica para a ordenação do território nacional buscando caminhos e potenciais para o 8 desenvolvimento econômico e reestruturando o papel das cidades e das intervenções de infraestrutura de caráter inter-regional como alavanca para este desenvolvimento. 5. A propriedade urbana deve cumprir sua função social de maneira qualificada por seu uso residencial, de atividade econômica geradora de empregos em números significativos e proteção ao patrimônio histórico, paisagístico e ambiental. A prática da especulação com a propriedade urbana deverá ser combatida com os instrumentos do Estatuto da Cidade e com o controle de preços para a venda de imóveis com financiamentos públicos. Ou seja, a propriedade imobiliária deve se submeter ao interesse das políticas públicas. Assim, a Reforma Urbana no Brasil não pode seguir um caminho único. No entanto, alguns princípios gerais devem ser considerados como pilar desse grande leque de ações que formam o enfrentamento daquilo que chamamos de questão urbana. Por exemplo, o princípio geral de garantir o acesso às condições dignas de moradia e acesso ao que de melhor as cidades oferecem aos seus cidadãos, bem como a defesa do patrimônio ambiental e cultural devem ser uma diretriz geral para o país. No entanto, as realidades diferentes entre os municípios, as aglomerações urbanas e as regiões metropolitanas colocam desafios de perfil, escala e características diversas. As Regiões Metropolitanas x pequenas cidades – escalas diferentes e problemas de gestão As Regiões Metropolitanas que concentram grande parcela da população brasileira são diferentes entre si, não só pela sua posição geográfica, mas por suas características e potencial econômicos peculiares. Salvador não é igual a São Paulo, nem a Florianópolis, apesar de pertencerem a regiões metropolitanas importantes nos estados em que se localizam. Além disso, há o aspecto interno de cada unidade da federação que apresenta redes de cidades com funções e participação na vida econômica e política do país com inserção no contexto regional e/ou nacional específico. Por isso, é necessário examinar as razões que geram os fluxos entre as cidades e quais os fatores de atração ou potencial que geram interesse para os cidadãos, comerciantes, técnicos, viajantes, empresários, estudantes etc. As Tabelas 5 e 5a anexas mostram as principais regiões brasileiras e os principais municípios e Regiões Metropolitanas e sua participação no PIB do país. As Regiões Metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Florianópolis con- Capa Urbanização da Favela do Jardim São Francisco, São Paulo/SP centram 44,59% do PIB nacional, sendo que apenas oito delas ficam com mais de 1% do PIB individualmente. O estado de São Paulo detém 33,47% do total do PIB nacional e a cidade de São Paulo 9,55%. José Eli da Veiga em seu livro Cidades Imaginárias (2003) destaca outro aspecto importante da realidade urbana brasileira: o fato de inúmeros municípios brasileiros possuírem sua vocação econômica agrícola e com vasta zona rural e com o mesmo papel político de um município predominantemente urbano, onde com certeza a população é maior e assim exerce maior importância política no contexto regional. São Paulo com 11.253.503 habitantes e a cidade do Rio de Janeiro com 6.320.446 habitantes são as maiores cidades brasileiras e juntas representam 12,18% da população. O conjunto das capitais brasileiras representa 23,83% da população com 45.466.045 habitantes, sendo que 13 delas possuem mais de 1 (um) milhão de habitantes, incluindo a população rural. No outro extremo, temos 4516 cidades com menos de 20.000 habitantes na área urbana, que representam 81,05% dos municípios brasileiros, de um total de 5564 cidades, com 28.484.363 habitantes e 19,86% da população. Com o reconhecimento da cidade informal, favelas, ocupações e cortiços passaram a receber recursos públicos para regularização e infraestrutura Essa distribuição levanta algumas questões do ponto de vista da gestão urbana. Será que é possível a municipalização de serviços e de infraestrutura em cidades tão diminutas? Observando a distribuição da população regionalmente verificamos, segundo dados do IBGE, que o estado de Santa Catarina é o que apresenta a existência de vários aglomerados urbanos de grande importância econômica. A hipótese aqui apresentada é de que regiões com melhor distribuição da população refletem uma melhor distribuição de renda e de desenvolvimento econômico, o que talvez possa ser verificado em Santa Catarina. Os estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo também apresentam uma distribuição nesse rumo também de maior equalização da riqueza entre as regiões, mas não necessariamente entre a população que vive nessas cidades. 9 130/2014 As Regiões Metropolitanas, por outro lado, também atraíram população ao longo dos anos, em função da economia, mas cada uma delas exerce um papel diferente em termos regionais e no plano nacional. Em termos futuros por que não visualizar certa especialização do papel que cada região poderá cumprir no plano nacional? Obviamente com uma redistribuição de investimentos como já vem ocorrendo nos últimos anos nas regiões mais pobres do país. Por exemplo, será que Recife não seria o ponto de partida de uma das rotas internacionais de aviões para a Europa e América do Norte? As empresas aéreas europeias fazem escalas obrigatórias em voos internacionais em cidades de interesse nacional como Paris, Roma, Zurique ou Frankfurt, apesar da integração continental da moeda. Ainda quanto à especialização regional, as áreas com grandes reservas ambientais cuja influência ultrapassa o interesse de uma única sede municipal merecem um estudo acurado pelo papel estratégico que representam na questão ambiental. Também as cidades litorâneas apresentam uma nova variável de desenvolvimento com a descoberta das jazidas do pré-sal e seu potencial turístico, vêm assistindo um boom imobiliário sem o devido planejamento estratégico para seu crescimento. Portanto, o planejamento territorial regional e municipal é urgente como instrumento de desenvolvimento. Rosana Helena Miranda é arquiteta e urbanista, professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. http://rosanamirandaarquiteta. blogspot.com.br/ Disparidade social: Paraisópolis e condomínio Paçodos Reis, São Paulo/SP 10 Tabela 5 PRODUTO INTERNO BRUTO * – ESCALA DECRESCENTE DE PARTICIPAÇÃO VARIÁVEL = PRODUTO INTERNO BRUTO A PREÇOS CORRENTES (MIL REAIS) ANO = 2009 Brasil, Grande Região, Unidade da Federação, Mesorregião Geográfica e Município BRASIL Sudeste São Paulo Metropolitana de São Paulo – SP Sul Nordeste São Paulo – SP, cidade Rio de Janeiro Centro-Oeste Minas Gerais Metropolitana do Rio de Janeiro – RJ Rio Grande do Su Paraná Rio de Janeiro – RJ, cidade Norte Bahia Distrito Federal Distrito Federal – DF, cidade Brasília – DF Santa Catarina Metropolitana de Belo Horizonte – MG Metropolitana de Porto Alegre – RS Campinas – SP, cidade Metropolitana de Curitiba – PR Goiás Pernambuco Metropolitana de Salvador – BA Macro Metropolitana Paulista – SP Espírito Santo Ceará Pará Mato Grosso Vale do Paraíba Paulista – SP Metropolitana de Recife – PE Amazonas Central Espírito-santense – ES Ribeirão Preto – SP, cidade Centro Amazonense – AM Curitiba – PR - cidade Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba – MG Centro Goiano – GO Belo Horizonte – MG, cidade Metropolitana de Fortaleza – CE Manaus – AM, cidade Maranhão Porto Alegre – RS, cidade Mato Grosso do Sul Vale do Itajaí – SC Noroeste Rio-grandense – RS Sul/Sudoeste de Minas – MG Salvador – BA, cidade Guarulhos – SP, cidade PIB Participação no PIB Nacional (%) 3.239.404.053 1.792.049.385 1.084.353.490 651.167.336 535.662.084 437.719.730 389.317.167 353.878.136 310.764.898 287.054.748 100 55,32 33,47 20,10 16,54 13,51 12,02 10,92 9,59 8,86 266.275.422 8,22 215.863.879 189.991.949 175.739.349 163.207.956 137.074.671 131.487.268 131.487.268 131.487.268 129.806.256 6,66 5,87 5,42 5,04 4,23 4,05 4,05 4,05 4,00 124.138.623 3,83 106.259.848 102.451.348 87.818.517 85.615.344 78.428.308 72.108.473 68.617.934 66.763.012 65.703.761 58.401.830 57.294.192 55.594.850 51.100.344 49.614.251 48.090.901 46.199.470 46.109.298 45.762.418 3,28 3,16 2,71 2,64 2,42 2,23 2,11 2,06 2,03 1,80 1,77 1,72 1,57 1,53 1,48 1,42 1,42 1,41 45.348.556 1,40 44.776.045 44.595.205 42.097.333 40.486.107 39.854.677 37.787.913 36.368.094 35.868.683 34.395.716 33.205.305 32.824.229 32.473.827 1,38 1,37 1,30 1,25 1,23 1,17 1,12 1,09 1,06 1,02 1,01 1,00 *A preços correntes, impostos, líquidos de subsídios, sobre produtos a preços correntes e valor adicionado bruto a preços correntes totais e por atividade econômica, e respectivas participações. Fonte: IBGE, Censo 2010 Capa Tabela 5a – PRODUTO INTERNO BRUTO * – ESCALA DECRESCENTE DE PARTICIPAÇÃO VARIÁVEL = PRODUTO INTERNO BRUTO A PREÇOS CORRENTES (MIL REAIS) ANO = 2009 Referências bibliográficas ANDRUSZ, Gregory, HARLOE, Michael & SZELENYI, Ivan. Cities after Socialism – Urban and Regional Change and Conflict in Post-Socialism Societies. BLACKWELL PUBLISHERS. Oxford. UK. 1996. ARANTES, Otília. CHAI-NA. EDUSP. São Paulo. 2011. In: http://www.vitruvius.com.br/pesquisa/bookshelf/book/1170 Brasil, Grande Região, Unidade da Federação, Mesorregião Geográfica e Município. PIB BRASIL 3.239.404.053 100 Norte Fluminense – RJ 31.975.443 0,98 Fortaleza – CE, cidade 31.789.186 0,98 Campinas – SP, cidade 31.654.719 0,97 Osasco – SP, cidade 31.616.451 0,97 Norte Central Paranaense – PR 31.456.852 0,97 Piracicaba – SP, cidade 30.659.282 0,95 Sul Fluminense – RJ 30.134.725 0,93 Norte Catarinense – SC 30.130.859 0,93 São Bernardo do Campo – SP 28.935.767 0,89 Paraíba 28.718.598 0,89 Rio Grande do Norte 27.904.989 0,86 Sul Goiano – GO 26.926.821 0,83 Barueri – SP, cidade 26.908.070 0,83 São José do Rio Preto – SP, cidade 26.791.712 0,83 Metropolitana de Belém – PA 25.858.954 0,80 Bauru – SP, cidade 25.838.544 0,80 Duque de Caxias – RJ, cidade 25.747.558 0,79 Nordeste Rio-Grandense – RS 25.740.282 0,79 Betim – MG, cidade 25.183.730 0,78 Oeste Catarinense – SC 24.920.555 0,77 Recife – PE, cidade 24.835.340 0,77 _________. http://rosanamirandaarquiteta.blogspot.com.br/ Oeste Paranaense – PR 22.879.473 0,71 Santos – SP, cidade 22.546.134 0,70 Zona da Mata – MG 22.296.699 0,69 São José dos Campos – SP, cidade 22.018.043 0,68 _________. http://www.teses.usp.br/teses disponiveis/16/16131/tde-17052013-110205/pt-br.php. Mooca: lugar de fazer casa. Tese de Doutorado – FAUUSP, 2002. Norte Mato-Grossense – MT 21.574.162 0,67 Goiânia – GO, cidade 21.386.530 0,66 Alagoas 21.234.951 0,66 Rondônia 20.236.194 0,62 Norte Maranhense – MA 20.206.212 0,62 Vitória – ES, cidade 19.782.628 0,61 Sergipe Campos dos Goytacazes – RJ, cidade Piauí 19.767.111 0,61 19.581.276 0,60 19.032.665 0,59 Sudeste Paraense – PA 18.265.494 0,56 Araraquara – SP, cidade 18.212.929 0,56 Grande Florianópolis – SC 17.738.965 0,55 Participação no PIB Nacional (%) *A preços correntes, impostos, líquidos de subsídios, sobre produtos a preços correntes e valor adicionado bruto a preços correntes totais e por atividade econômica, e respectivas participações. Fonte: IBGE, Censo 2010 _________; VAINER, Carlos & MARICATO, Ermínia. A cidade do Pensamento único, desmanchando consensos. 2a ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2000. In: http://www.ub.edu/escult/doctorat/html/lecturas/a_ciudade_ do_pensamento_unico.pdf AYMONINO, Carlo. 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A cidade colombiana foi escolhida porque é hoje considerada um exemplo mundial de superação, inovação e sucesso em intervenções urbanas. Em texto publicado na revista Fórum logo após visitar a cidade, o urbanista brasileiro Fernando Lara 12 brinca que “assim como os muçulmanos vão a Meca, os comunistas vão a Cuba e a classe media vai a Disneylandia; os urbanistas, principalmente os latinoamericanos, devem ir a Medellín”. E eles foram aos milhares nos dias 5 e 11 de abril deste ano durante a realização do 7º Fórum Urbano Mundial (WUF7, na sigla em inglês). Realizado a cada dois anos, o Fórum convida uma ampla variedade de participantes de todo o mundo para discutir os principais obstáculos enfrentados pelo ambiente urbano contemporâneo. Além da discussão da agen- Capa Fotos: Andrea González, Juan Fernando Gallego Duque e Carlos Vidal Medellín desenvolveu um sistema de transporte urbano com foco na integração; o Metrocable, marca-registrada da cidade, transporta mais de 550 mil pessoas/dia e permite que os moradores de áreas íngremes possam se deslocar com mais rapidez da de desenvolvimento pós-2015, o evento é o último Em conversa com a redação da Princípios, em São antes do Habitat III, que acontece a cada 20 anos. Esta Paulo, Inácio falou sobre os temas debatidos no enconsétima edição reuniu urbanistas, acadêmicos de várias tro, relatou o que viu de positivo na cidade colombiana áreas, autoridades públicas, parlamentares e ativistas e apontou caminhos que podem ajudar a solucionar de 164 países. Entre os brasileiros que acompanharam problemas agudos das cidades brasileiras. as atividades do Fórum estava o senador Inácio ArruO senador relata que no Fórum foram “examinada (PCdoB-CE), a senadora Lídice da Mata (PSB-BA) dos os desafios que o mundo enfrenta em relação à e o deputado Zezéu Ribeiro (PT-BA). ocupação humana, como a rápida Inácio foi relator do Estatuto da urbanização e seu impacto sobre as Cidade (Lei 10.257 de 10 de julho de cidades, comunidades, economias, 2001), que regulamenta os instrumudanças climáticas e políticas, mentos de política urbana que decom foco na sustentabilidade”, Sevem ser aplicados pela União, pelos gundo ele, o encontro privilegiou o estados e municípios. O estatuto esdebate e a apresentação de soluções tabelece normas de ordem pública e inovadoras para o espaço urbano. E, interesse social que regulam o uso da neste, quesito, Medellín se destapropriedade urbana em prol do bem ca, tanto que foi premiada em 2013 coletivo, da segurança e do bem-escomo a cidade mais inovadora do tar dos cidadãos, bem como do equi- Inácio Arruda e Lídice da Mata representaram mundo pelo Urban Land Institute. o Senado brasileiro no WUF7, em Medellín líbrio ambiental. O senador cearense também teve participação destacada em todas as cinco Uma década de transformações edições da Conferência das Cidades realizadas até hoje. Atualmente, Inácio Arruda coordena um ciclo de debaMedellín é capital e maior cidade da província (detes sobre a questão urbana promovido pela Subcomis- partamento) de Antioquia. Com cerca de 2,7 milhões são de Desenvolvimento Urbano do Senado, colegiado de habitantes, é a segunda cidade mais populosa da que ele preside. (veja texto na página 18) Colômbia, atrás somente de Bogotá, e também um dos Foi com toda esta bagagem que Inácio desembar- principais centros industriais do país. cou em Medellín para participar do Fórum Mundial Sua região metropolitana, denominada Área meUrbano e conhecer a experiência colombiana que tan- tropolitana de Medellín, é composta por nove cidades, to tem atraído a atenção de urbanistas e gestores do constituindo a segunda maior aglomeração urbana do mundo todo. país, ficando atrás apenas da Grande Bogotá. 13 130/2014 14 Divulgação entre elas a educação, e quem deveriam ser os principais beneficiados pelas iniciativas: a população mais pobre das periferias”, relata Inácio. O processo de transformação da realidade local desabrochou na década de 1990, logo após a aprovação da denominada Lei 9ª, a Lei de Reforma Urbana da Colômbia. Um movimento chamado Compromisso Ciudadano começou a articular acadêmicos, empresários e lideranças comunitárias em torno de um projeto de cidade. Em 2003, o sucesso do movimento elegeu No Distrito 13 de Medellín, escadas rolantes ajudam os moradores a circularem pelas vielas íngremes do bairro o professor universitário Sergio Fajardo, atual governador de Antioquia, para a prefeitura. Seu governo foi marcado por Até os anos 1990, Medellín também era conhecida ousadas políticas de educação e segurança como a cidade mais perigosa do mundo. Dominada e pela proposta de investir em espaços públicos nas por uma rede internacional de narcotráfico, empresáreas mais pobres da cidade, dentro de uma filosotou seu nome para o mais conhecido Cartel de drogas fia que pregava a transformação destas áreas em amda Colômbia, o Cartel de Medellín, chefiado por Pablo bientes “agradáveis, seguros e bonitos”. Escobar. Na década de 80, a região chegou a controlar 80% do tráfico de cocaína nas américas. Iniciativas inovadoras Além da presença dos cartéis, a cidade, como toda a Colômbia, também sofria forte impacto da guerra Desde então, Medellín tem estado na vanguarda civil entre os grupos guerrilheiros de esquerda lidedo pensamento e da prática urbanística, com ideias rados pelas Farcs (Forças Armadas Revolucionárias que vão do uso de teleféricos (Metrocable, que transda Colômbia) e os grupos paramilitares de direita que portam diariamente 553 mil pessoas) à proibição de atuam em conluio com as forças armadas e milícias muros cegos e artefatos de segurança ofensivos como estrangeiras. Eles espalhavam o terror entre a popucacos de vidro e arame farpado. lação, sobretudo nas zonas rurais, obrigando dezenas Grandes e bonitas bibliotecas públicas foram insde milhares de pessoas a migrarem para favelas nas taladas nas regiões mais pobres da cidade, integrando áreas metropolitanas onde tentam reconstruir suas uma rede de 30 bibliotecas que formam verdadeiros vidas. Atualmente, o conflito armado arrefeceu, mas centros culturais. E cuidou-se para que elas fossem ainda é um fator de desestabilização para muitas reefetivamente úteis e servissem como instrumento de giões do país. inclusão social e combate à violência. Para isso, foi Vale lembrar que a Colômbia não é nenhum oásis de prosperidade isolado no continente. Como na maioria das nações da América Latina, o país sofre com uma severa desigualdade social agravada pelas políticas neoliberais praticadas pelos governos que se sucederam no poder nas últimas décadas. Nas grandes cidades, há gigantescas favelas que não deixam nada a dever às favelas brasileiras em termos de miséria, violência e carência de serviços públicos. “Medellín conseguiu superar esta realidade adversa e deu um salto qualitativo numa área crucial, que é a questão urbana. Para isso, foi preciso planejamento, determinação, apoio da população e, sobretudo, cla- Projeto de Unidade de Vida Articuladas (UVA), nova aposta de Medellín para reza sobre quais deveriam ser as prioridades, fomentar a convivência, a cultura e a participação comunitária Capa criado um Plano Municipal que viabilizou mais de aquele espaço como delas, e enxergarem o Estado doze programas para o fomento da leitura. Ao mesmo como adversário, então, o espaço público sempre setempo, a promoção de arte e cultura foi potencializará alvo de destruição”, explica. da pela realização de feiras culturais, como a Festa do Inácio ressalta, porém, que esta nova mentaliLivro e da Cultura, o Festival Internacional de Poesia dade só foi conquistada porque houve, por parte da e a Feira das Flores. administração municipal, a decisão de cuidar com Praças foram revitalizadas e houve forte investiesmero de todos os espaços e instalações públicas, mento em educação. Vale ressaltar que graças a um desde os mais importantes até os menores. “Cheprojeto espacial integrado, as escolas, parques e bigou-se à conclusão de que o espaço público bem bliotecas são construídos em terrenos adjacentes à cuidado, organizado, com jardinagem bem feita, estrutura de transporte público, facria um círculo virtuoso, aflorando cilitando a vida de quem usa estes nos cidadãos o sentimento de que serviços, com a vantagem adicional aquele espaço lhes é útil, agradável de que o sistema de transporte da e precisa ser preservado. É como cidade se baseia no conceito de inse as pessoas encarassem esses estermodalidade, com articulação dos paços como uma extensão de suas sistemas BRT (similar, no Brasil, ao moradias. Então, aquele cuidado de Curitiba), com o metrô de seis que se tem com a sua casa, passa a composições e ônibus pequenos que ser o mesmo com relação à praça”, alimentam todo o sistema. avalia o senador. O desenvolvimento sustentável Também na área de segurança, da cidade também ganhou imporhouve uma mudança importante tância. O conceito de Projeto Urbano na forma de relacionamento com Integral (UPI) utiliza ferramentas a população. Ao invés da política do desenvolvimento social, físico e de guerra ao crime, o setor da sea coordenação interinstitucional pagurança passou a adotar o conceiO cuidado com os ra transformar os setores da cidade to de polícia de ciclo completo. Os espaços públicos, com maiores necessidades. O UPI, patrulheiros trabalham em média juntamente com outros instrumendois anos na mesma localidade e particularmente em tos, como o Plano de Ordenamento se apresentam de casa em casa, áreas de periferia, Territorial (POT) e o Plano Diretor fornecendo seus nomes e telefones de áreas verdes, permitiu progrespara a comunidade. ajudou a criar uma sos na recuperação de bacias hidroÉ difícil mensurar quais as ininova consciência gráficas, áreas em risco ambiental, ciativas foram mais eficazes para a cidadã; os moradores gestão do espaço público, habitação pacificação da cidade. O fato é que social e políticas mais eficientes de os homicídios caíram de 6 mil em começaram a ocupação do solo. 1991 para 871 em 2008 e não cheentendê-los como garam a 500 em 2013. Para efeitos Cuidando bem dos de comparação, em 2013 o Rio de uma extensão de espaços públicos Janeiro registrou quase 4.000 hosuas moradias micídios. Inácio Arruda destaca ainda outra transformação, subjetiva, que Empresas públicas tem feito a diferença no caso de Medellín. Trata-se fazem a diferença do sentimento de compartilhamento que os cidadãos passaram a ter em relação aos espaços públicos. Enquanto no Brasil os interesses privados e as cor“Enquanto na maioria das grandes cidades impera porações de mercado dominam cada vez mais os servia lógica canhestra de que o que é público não é de ços públicos, na Colômbia as empresas estatais ainda ninguém, em Medellín sente-se que as pessoas pasrespondem por boa parte dos projetos urbanísticos e saram a encarar a cidade com a lógica inversa: é púprestação de serviços à população, sobretudo nas maioblico, é de todos, é meu também. Assim, passaram a res cidades. Além disso, através de uma política de inoconceber os espaços e equipamentos públicos como vação científica e tecnológica e apoio ao empreendedobens coletivos que devem ser valorizados e preserrismo, a cidade passou a contar com forte presença de vados. Porque, caso contrário, se não considerarem empresas locais que se converteram em multilatinas. 15 130/2014 Assim como Bogotá, Medellín tem uma autarquia municipal forte (EDU – Empresa de Desenvolvimento Urbano) que garante continuidade dos projetos enquanto prefeitos se alternam no executivo municipal. Entre os investimentos prioritários para o próximo período, está a construção das UVA (Unidades de Vida Articuladas). Serão 20 centros urbanos que integrarão atividades e equipamentos de esporte, recreação e cultura e servirão para o desenvolvimento de atividades comunitárias e iniciativas sociais. Lembram as estruturas do SESC no Brasil, com a diferença fundamental de que serão espaços abertos à toda população, financiados e geridos pelo poder público. Ao lado da EDU, atua outra grande empresa pública de serviços unificada, a EPM. Fundada há 60 anos, é a segunda maior empresa da Colômbia e uma das 70 maiores da América Latina. Emprega 40.000 funcionários e é qualificada como a empresa com melhor reputação na Colômbia em prestação de serviços públicos nas áreas de eletricidade, água, telefonia, gás, esgoto e coleta de lixo. Outra característica que ajuda muito no sucesso das iniciativas tomadas pela prefeitura de Medellín é a constante consulta à população sobre os projetos em desenvolvimento. Desde a definição de um novo Plano de Ordenamento Territorial até a escolha dos lugares públicos onde serão instalados pontos de internet gratuita, para quase todas as ações municipais o povo é convidado a dar sua opinião. E, claro, a cidade dispõe de instâncias democráticas como o Orçamento Participativo, que já foi adotado com sucesso em muitas cidades brasileiras. No Brasil, avançar na Reforma Urbana “Se isso tudo está sendo feito em Medellín, por que não pode ser feito em São Paulo, Salvador, Recife, Fortaleza, Rio de Janeiro etc.?”, questiona Inácio Arruda. Ele mesmo indica algumas respostas. A começar pela necessidade de se avançar na formulação da Reforma Urbana e colocar em prática a legislação brasileira já existente, como o Estatuto da Cidade. “O Brasil está dando passos muito lentos nesta direção. Para se ter uma ideia, somente na Constituição de 1988 é que a palavra urbano passa a ter relevância na legislação do país. Ou seja, é algo ainda muito recente”, afirma. E completa: “apesar de ser uma parte pequena na Constituição (Capítulos 182 e 183) a preocupação com um plano integrado urbano passa a ser desenvolvida e aí é que se insere o Plano Diretor como uma necessidade para as cidades. Mas ainda não se conseguiu transformar as diretrizes legais em uma grande Política Urbana”. 16 Para o senador, esse é um debate urgente diante da explosão demográfica, que atinge mais fortemente as regiões metropolitanas, e é fundamental para orientar as discussões durante as campanhas eleitorais deste ano. O senador Inácio Arruda enfatiza ainda a importância de incluir as cidades da região metropolitana na articulação das políticas urbanas elaboradas para a Capital e na definição dos projetos de transporte público. “É preciso ouvir todas as regiões metropolitanas, ouvir a população, discutir com ela, debater intensamente para poder alcançar as proposições que permitam ajustar a legislação que está em vigor. Nós temos uma série de iniciativas que foram discutidas e votadas no Congresso Nacional que, para pôr em prática, precisam de um amplo debate com a sociedade”, defende. Mobilidade urbana, uma questão essencial O senador tem participado de diversas audiências públicas sobre a questão urbana em diferentes cidades e relata que a busca de soluções para serviços de baixa qualidade como o de transporte público tornouse um clamor nacional. “Participei de audiências recentes em Fortaleza, Natal, Porto Alegre e Curitiba e em todas elas as pessoas reclamam de carências no transporte público, da pouca oferta, baixa qualidade e limitação das linhas dos metrôs e também do excesso de automóveis nas ruas e do tempo gasto no deslocamento para o trabalho e estudo”, relata o senador. “A população está considerando um equívoco o governo incentivar permanentemente a compra do automóvel. Ninguém ficou contra as pessoas terem o seu automóvel. Todo mundo acha que todos têm direito a ter o seu automóvel. O problema é que o incentivo, principalmente pelos instrumentos tributários, deve ser dado ao transporte público massivo”, diz. “Tão importante quanto a execução é ver a expansão de serviços públicos de qualidade, como os de mobilidade, em áreas mais pobres, mais carentes, pois é onde situa-se a população que mais precisa. Muitos ainda pensam que serviços públicos de qualidade devem ser feitos para a classe média e não para os pobres, tanto que quando se fala em Metrô no Brasil, alegam que nas áreas mais pobres deveriam ser implantados os Veículos Leve sobre Trilhos (VLT) ou Metrô de Superfície, e não o subterrâneo que é mais caro”, observa Inácio. O senador lembra ainda que a maioria das cidades tem dificuldades para desenvolver projetos locais. “Há muitos recursos disponibilizados pela União, mas são poucas as cidades que possuem quadros téc- Capa nicos e organismos administrativos capacitados para desenvolver os projetos necessários para obtenção destes recursos. A imensa burocracia envolvida é um fator que inibe ainda mais a capacidade dos municípios em buscar este dinheiro. Esses projetos exigem uma equipe multidisciplinar com engenheiros, arquitetos, geógrafos e outros profissionais que poucas prefeituras têm condições de contratar”, lamenta. Ele defende que os processos sejam simplificados e que o próprio governo federal ofereça soluções práticas com projetos definidos para o uso dos recursos disponíveis. Inácio também defende que o país precisa apostar mais na força do investimento público com estatais que não apenas forneçam serviços à população mas que também participem efetivamente da construção de grandes obras urbanas, deixando de ser reféns de corporações privadas. “O Metrô de São Paulo, por exemplo, é uma empresa ligada ao Estado que contrata serviços e obras, mas não entra na obra em si, não a executa, porque na verdade não há empresas de engenharia do Estado para isso. Dessa forma, o Metrô é uma empresa contratante que apenas administra o empreendimento, quem executa são grandes corporações privadas”, explica o senador. É de conhecimento de todos que esta relação de dependência tem sido fonte de inúmeros problemas pois dá margem para irregularidades como licitações viciadas, superfaturamento, atraso na execução das obras e tantos outros desvios. Para Inácio Arruda, as cidades hoje se transformaram em locais de mega-negócios, onde o direcionamento dos investimentos em desenvolvimento urbano acaba servindo mais para render lucros para segmentos restritos do mercado imobiliário do que para melhorar a cidade para todos os cidadãos. Ele destaca que “o maior desafio hoje é fazer cumprir o item da Constituição Federal que regulamenta a função social da propriedade urbana”. Como se vê, os problemas das cidades brasileiras são vários e exigem dos governos disposição política para enfrentar interesses poderosos e grande mobilização popular para dar suporte aos projetos de maior impacto social. Neste sentido, são inspiradoras as palavras ditas pelo prefeito de Medellín, Aníbal Gaviria, na abertura do WUF7: “Medellín não é uma cidade resolvida, há desigualdades, há injustiças, mas é uma cidade que demonstrou que é possível avançar, que se pode deixar para trás a dor, que se pode derrotar a escuridão; é uma cidade resiliente, uma cidade que inspira”. Ele finalizou o discurso convidando os participantes do Fórum a “construírem cidades justas porque as cidades modernas foram modelos eficientes para construir riqueza, mas menos eficientes para construir igualdade”. Carta de Medellín Sobre o futuro das áreas urbanas Durante o 7.º Fórum Urbano Mundial, o prefeito de Medellín, Aníbal Gaviria Correa, lançou a Carta que representa uma abordagem histórica para pensar sobre o futuro das cidades e o desenvolvimento – assuntos abordados no Fórum. Além de divulgar a Carta, Correa apresentou a decisão de criar a Plataforma Tecnológica de Soluções Urbanas para dar continuidade às discussões do fórum. Estruturado em duas partes, o texto busca posicionar o conceito de “Cidades para a vida com equidade” no centro do debate mundial. A primeira parte do texto discute os motivos, valores e princípios que poderiam contribuir para a sustentação da visão da cidade para a vida. A segunda trata da gestão integral das cidades e seus desafios. O documento enfatiza o respeito à vida, o desenvolvimento humano integral e a equidade como os principais desafios que a cidade deve compartilhar com o resto do mundo. Propõe um novo diálogo internacional em torno das perguntas: Como podemos tornar as cidades em 2050 locais onde imperem a vida digna, a segurança e a paz? e como reduzir o fosso cada vez mais acentuado em cidades que crescem e avançam, mas com grande desigualdade? Assim, propõe uma reflexão pública e permanente sobre a forma como devem ser as cidades do futuro, a partir da experiência da metamorfose de Medellín, uma cidade que deixou de ser uma das mais violentas do mundo para tornar-se um modelo de inovação, resiliência e sustentabilidade. Porém, o documento deixa claro que “não pretende apresentá-la como o modelo a ser seguido nem torná-la eixo da argumentação, fundamentalmente porque não trata de prevalecer no espírito universal das urbes, mas simplesmente ilustrar com Medellín algumas formas de gestão do espaço público, em particular, do urbano.” Este compêndio de ideias e propostas tem como origem o conceito de “Cidades para a Vida” que foi apresentado pela cidade de Medellín no documento Habitat do comitê organizador do Fórum Mundial Urbano. Essa visão que coloca a vida como centro da cidade coincide com a proposta internacional recém-formulada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, que, em seu Informe sobre os progressos na construção da Nova Agenda Mundial de Desenvolvimento (2015) e na atualização dos Objetivos do Milênio, sugere o lema “Vida digna para todos é a obrigatoriedade principal deste século”. O documento foi possível graças à contribuição de um grupo de autores e instituições da Colômbia, França, Marrocos, México e Uruguai, incluindo o sociólogo francês Edgar Morin, considerado o pai da teoria da complexidade. A carta foi traduzida para várias línguas e tem sido replicada em formato digital para diferentes públicos e organizações ao redor do mundo que trabalham pelo desenvolvimento sustentável, pela paz e para reduzir a desigualdade. A versão em português da Carta de Medellín pode ser acessada na íntegra no seguinte endereço eletrônico: www.revistaprincipios.com.br/carta-de-medellin.pdf 17 130/2014 Primeira audiência pública do ciclo de debates sobre a Reforma Urbana foi realizada em Natal (RN) As cidades brasileiras em debate N o mês de março, o senador Inácio Arruda deu início a um clico de debates sobre os desafios da Reforma Urbana. A iniciativa faz parte do Programa de Trabalho da Subcomissão Permanente de Infraestrutura e Desenvolvimento Urbano (CISPID), presidida pelo senador, e prevê onze sessões de debates em várias capitais e suas Regiões Metropolitanas. A subcomissão, ligada à Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado (CI), tem a finalidade de apontar soluções aos entraves para uma melhoria na estrutura e nos serviços públicos nas grandes cidades e regiões metropolitanas. A primeira reunião ocorreu no último dia 13 de março, em Natal. A capital potiguar foi escolhida para iniciar o ciclo por sua experiência exitosa com o Parlamento Comum da Região Metropolitana, entidade criada para integrar as Câmaras Municipais da Grande Natal a fim de planejar a gestão urbana da metrópole. O fórum é presidido pelo vereador George Câmara (PCdoB) e é formado por vereadores dos onze municípios que buscam superar o atraso econômico, com foco nas políticas de desenvolvimento sustentável e nas pessoas: trabalho e renda digna. Os debates são realizados em parceria com entidades e autoridades de cada cidade onde são sediados e contam com a participação de legisladores, gestores municipais, representantes de entidades da sociedade civil, especialistas, lideranças populares e demais interessados. De acordo com o vereador de Natal, George Câmara (PCdoB), que também é membro titular do Conselho das Cidades Nacional representando Frente Nacional de Vereadores pela Reforma Urbana (Frenavru), o debate sobre a questão urbana vem ganhando volume em todo o Brasil. Ele explica que o caos em que se encontram as cidades brasileiras é resultado da ausência de planejamento urbano que ocorreu du- 18 rante décadas e que na última década começou a ser questionado e reivindicado por setores de nossa sociedade. “Tivemos um grande avanço com a criação do Estatuto da Cidade em 2001, pois o mesmo estabeleceu diretrizes gerais da política urbana em nosso país. Estamos em fase de debater e aprovar agora o Estatuto da Metrópole que auxiliará na política de Urbanismo de nossas Regiões Metropolitanas. Nesse sentido, o encontro promovido pela CISPID tem importância fundamental no fortalecimento desse debate”, explicou George. Além do debate ocorrido em Natal, já foram realizadas reuniões também em Porto Alegre, Curitiba e Fortaleza. As próximas estão agendadas para Salvador, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Belém, , São Paulo e Goiânia. Ao final do ciclo de debates nas 11 capitais, a Subcomissão pretende realizar um seminário em Brasília para debater a Reforma Urbana e também o Estatuto da Cidade. “Alguns eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, estão impulsionando a realização de importantes obras de mobilidade urbana nessas regiões. Então, logo, terão grande impacto, os investimentos urbanos que estão sendo realizados naquelas cidades”, afirma o senador Inácio Arruda. Para o parlamentar, as grandes aglomerações nas regiões metropolitanas têm impacto econômico significativo. “As pessoas encontram muitas dificuldades em função do modelo de desenvolvimento estabelecido para as cidades brasileiras”, diz. Segundo Inácio, as iniciativas da subcomissão visam identificar os desafios e romper os gargalos. “Onde é o nó da questão urbana, para que a gente possa desatar? É no problema da função social da propriedade? É no problema do investimento? É no sistema financeiro que cria obstáculos?”, indaga o senador. Ele espera que o ciclo de debates ajude a dar respostas para estas questões. 19 130/2014 Reforma Urbana, questão essencialmente política Luciano Siqueira* Na frente do movimento social, urge retomar a bandeira da Reforma Urbana com força, associada às demais reformas estruturais democráticas. Sem a pressão popular, nenhuma dessas reformas se concretizará. E na frente eleitoral, de partidos políticos de esquerda e progressistas, cabe incluir com destaque as reformas estruturais, em especial a urbana, na plataforma da presidenta Dilma e de candidatos em nível federal e estadual 5ª Conferência Nacional das Cidades, 2013 20 A Capa afirmação que dá título a este artigo parece óbvia, mas é necessária. Em mais de cinco décadas, o movimento social e a comunidade técnica (urbanistas em especial) – por caminho difícil, sinuoso, mas progressivo – produziram conteúdo programático sobre a questão urbana consentâneo com as necessidades objetivas do desenvolvimento do país na atualidade. Entretanto, os poderes Executivo e Legislativo, nos três níveis federativos, têm se mostrado lenientes na viabilização da Reforma – que segue atrasada e claudicante. As manifestações de junho do ano passado, em que mais de um milhão de brasileiros foi às ruas reclamar das condições de vida nas cidades, em particular da má qualidade dos serviços públicos, recolocaram o tema na ordem do dia. A realização da 5ª Conferência Nacional das Cidades, por seu turno, em novembro do ano passado, se propôs retomar a empreitada. Como a própria presidenta Dilma assinalou na ocasião, “foram os movimentos populares que lutaram pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e que por sua vez possibilitou a implantação do Minha Casa Minha Vida. Foi a luta que levou à criação do Ministério das Cidades. Muito foi feito, mas as pessoas têm pressa”. O impasse urbano Na verdade, na sequência da “explosão urbana”, que mudou radicalmente a distribuição espacial da população brasileira (em 1940 residiam nas cidades apenas 31% dos brasileiros; por volta dos anos 1980, nelas já se encontravam mais de 75% da população; e em 2000, 82%, segundo os critérios do IBGE), o crescimento populacional sob a estagnação econômica (as chamadas “décadas perdidas”) impôs às cidades novos desafios. A gama de dinâmicas – demográfica, social, econômica, urbana e ambiental – que impulsiona alterações no perfil da ocupação e do uso do território levou ao agravamento das desigualdades socioespaciais. Como indicam as estatísticas disponíveis, o crescimento das metrópoles perde terreno para as cidades de porte médio (de 100.000 a 500.000 habitantes), tanto do ponto de vista da produção de riquezas como da população. Isto num ambiente crescentemente explosivo, sob rebaixamento de políticas sociais e de primazia de políticas de alta concentração da renda e da riqueza e de exclusão social, que marcou os anos 1980 e 1990 e se estendeu pelos dois governos FHC. Como menciona o texto de referência da 5ª Conferência Nacional das Cidades, verifica-se hoje, “de um lado, o aprofundamento da periferização das grandes metrópoles, com o aumento populacional nos municípios da fronteira metropolitana e expansão das favelas e loteamentos irregulares; de outro, o aparecimento de núcleos de classe média e condomínios fechados na periferia, tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo.” (1). Acresce que, conforme demonstra Marcelo Neri (2), entre 2003 e 2013, com a retomada do crescimento econômico e a adoção de políticas sociais inclusivas, cerca de quarenta milhões de brasileiros ingressaram na chamada “classe média”, incorporando-se ao sistema de produção de bens e serviços e ao mercado de consumo – e, como consequência, ampliando significativamente as demandas por serviços públicos de qualidade. Nesse contexto, acirra-se a contradição entre as muitas modalidades de acumulação e reprodução do capital (o capital imobiliário principalmente) e a necessidade de acesso a bens e serviços, pela maioria da população, que viabilizem a cidade como direito de todos e ambiente mais humano de convivência. Uma luta prolongada e oscilante À semelhança das demais reformas estruturais, a Reforma Urbana percorre trajetória prolongada, que já dura cinco décadas. Tem como ato inaugural o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana, ocorrido em 1963, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis, onde se formulou as bases de um Projeto de Lei. Perde força na primeira década do regime militar; recrudesce nos anos 1970, com a disseminação do movimento de associações de bairros por moradia, regularização dos loteamentos clandestinos, pelo acesso aos serviços de educação e saúde e pela implantação de infraestrutura nas áreas de ocupação; e nos anos 1980, no frigir do processo constituinte, toma impulso com a criação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Acumula expressivas vitórias com a aprovação, em 1979, da Lei 6.766, que regula o parcelamento do solo e criminaliza o loteador irregular; com a introdução do capítulo temático específico na Constituição de 1988 (artigos 182 e 183) (3) e, 21 130/2014 onze anos após, com a promulgação da Lei nº 257, de conservadora e gradativamente se exime da agenda 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidaque deveria favorecer a Reforma Urbana – destacade – que, no dizer de Raquel Rolnik (4), é “o marco damente a instauração, mediante Projeto de Lei, de regulatório da política urbana no Brasil inserido no um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano. âmbito das reformas políticas e juConcomitantemente, no âmrídicas anunciadas pela Constituinbito da sociedade, a bandeira da te de 1988.” Reforma, se não foi arriada, pasEssa trajetória Vale anotar que do Seminário sou a tremular mais timidamente, oscilante se insere, do Quitandinha ao Movimento inclusive nas mãos de líderes e orNacional pela Reforma Urbana e o ganizações populares, circunstanem boa medida, na Fórum Nacional pela Reforma Urcialmente empenhados em viabitradição brasileira bana (criados nos anos 1980), dá-se lizar projetos locais de habitação, uma evolução conceitual importanfinanciados pelo Ministério, tão de reformas te – do planejamento territorial e necessários quanto absorventes e que sempre da moradia à inclusão de questões diversionistas. Fato emblemático é novas, impostas pelo crescimento que nas manifestações de junho de trilharam caminho desordenado e desigual das cida2013 não se viu uma faixa ou um cumulativo – e des, como a crise de financiamento cartaz sequer pleiteando a Refordo Estado, a expansão das zonas de ma Urbana – mesmo quando organão de ruptura –, ocupação ilegal, a expulsão branca nizações populares e democráticas sujeito a conquistas da população de menor renda para passaram a delas tomar parte –, a as cidades periféricas, a fragmendespeito de que as reivindicações e a retrocessos, tação socioterritorial, a ineficiência expostas, na ocasião, de modo tosdependente da das políticas públicas em vigor – co e dispersivo, fossem parte esacentuando a defesa dos denomisencial do conteúdo da Reforma. correlação de nados direitos urbanos, a função Nessa mesma linha, o tema forças e do grau de social da propriedade e a introducomparece pouco ou se faz aução de instrumentos de participasente no discurso de governantes, mobilização social ção na gestão pública. dirigentes do movimento social, Desse modo, a emenda popular parlamentares – permanecendo apresentada à Assembleia Consquase circunscrito aos círculos de tituinte, que reuniu 131 mil assinaturas (5), trapesquisadores e urbanistas. O Partido Comunista do duz esse avanço conceitual. Abarca a regularização Brasil, contrariando a regra, tem sustentado, desde a fundiária das “ocupações”, a observância da funAssembleia Nacional Constituinte, em 1987-88 e em ção social da propriedade, programas habitacionais seu Programa (6), a Reforma Urbana como uma das prioritariamente para atender à população de baixa reformas estruturais – ao lado das reformas Agrária, renda, transporte urbano como direito do cidadão, Tributária, Educacional, Política, da Mídia e do Judicom tarifas compatíveis com a massa salarial; além ciário – imprescindíveis ao processo civilizatório brade mecanismos de gestão democrática da cidade – sileiro, consubstanciando um Novo Projeto Nacional conselhos democráticos, audiências públicas, plebisde Desenvolvimento. citos, referendo popular, iniciativa legislativa e veto Essa trajetória oscilante se insere, em boa mediàs propostas do Legislativo. da, na tradição brasileira de reformas que, sob viSegue avançando com a assunção de Luiz Inácio gência da ordem democrática, sempre trilharam caLula da Silva à Presidência da República, quando se minho cumulativo – e não de ruptura –, prolongado, cria o Ministério das Cidades, precisamente destinasujeito a conquistas e a retrocessos, dependente da do a implementar os propósitos essenciais da Reforcorrelação de forças e do grau de mobilização social ma Urbana, que chegou a esboçar um Plano Nacio– como o próprio processo de superação do modelo nal de Desenvolvimento Urbano voltado, com ênfase neoliberal, que transcorre há onze anos, a partir do na habitação de interesse social, ao saneamento e à primeiro governo Lula. regularização fundiária. Em consequência, têm prevalecido a dispersão e Já no segundo governo Lula, em decorrência de a compartimentação de políticas públicas com incialterações na composição da coalizão governista, dência urbana (habitação, saneamento, mobilidade, mediada pela correlação de forças no Parlamento, o sustentabilidade ambiental etc.). Assim tem sido Ministério das Cidades transfere-se a uma direção quando, no período Lula-Dilma, muitos investimen- 22 Capa Estima-se que mais de 3,5 milhões de moradias de interesse social possam ser consideradas “não-inclusivas”, em ambientes de “não-cidade” tos são feitos em infraestrutura urbana e, inclusive, com as chamadas “medidas anticíclicas” adotadas com a eclosão da crise global em 2008, especialmente a isenção fiscal parcial à indústria automobilística e o Programa Minha Casa Minha Vida – privados de efetivos mecanismos preventivos do caos urbano. Como bem observa Ermínia Maricato, com o programa Minha Casa Minha Vida, “o governo federal pela primeira vez na história do Brasil aportou subsídios para atender a população de baixa renda”, porém induziu uma explosão no preço dos imóveis, que acabou drenando o subsídio e desencadeando absurdo aumento do preço do metro quadrado dos imóveis, que em três anos chegou a 151% em São Paulo e 185% no Rio de Janeiro (7). Nessa linha de desarticulação das políticas urbanas, estima-se a existência de mais de 3,5 milhões de moradias de interesse social, que podem ser consideradas “não-inclusivas”, situadas em ambientes de “não-cidade”, porque a política habitacional, no caso, não interagiu adequadamente com as políticas de saneamento, mobilidade e de geração de emprego e renda. Afetando diretamente a mobilidade urbana, os automóveis comparecem com 65,9% da atual frota brasileira de veículos automotores; as motos com 26,2%; enquanto outros tipos de veículos representam 7,9% – um fator de agravamento da mobilidade urbana nas grandes e médias cidades (8). Oportunidade para avançar O agravamento dos problemas urbanos e o incremento da insatisfação popular constituem, junto com as eleições gerais deste ano, ambiente social e político propício. Na frente governamental, se é certo que a Constituição Federal, o Estatuto da Cidade, a Lei de Consórcios Públicos (que possibilita quatro tipos de consórcios: entre municípios; entre os municípios e o estado; entre o estado e a União; entre os três entes, União, estado e município para intervenções urbanas), o Plano Nacional de Habitação, a Lei Federal de Saneamento Básico, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) constituem um arsenal jurídico-formal avançado; todavia, ainda há um vácuo institucional a ser preenchido, para superar a fragmentação e a compartimentação dessas políticas públicas. A instituição do Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano (SNDU) – pactuado desde a 2ª Conferência Nacional das Cidades, em 2005 (9) – através de Projeto de Lei a ser encaminhado ao Congresso Nacional, impõe-se como mecanismo necessário à concretização da Reforma Urbana. O SNDU permitirá que a gestão pública opere segundo diretrizes que integrem as políticas setoriais 23 130/2014 de incidência urbana; assegurem a integração vertical entre os entes federados, definindo claramente níveis de responsabilidade; escoimem o emaranhado de dispositivos legais (na esfera municipal, sobretudo) de obstáculos à plena aplicação do Estatuto da Cidade; direcionem recursos para as políticas urbanas de modo equilibrado, no espíriNa frente to do Pacto Federativo, dangovernamental, do sustentabilidade às ações e aos projetos no âmbito dos é certo que a estados e municípios; e vaConstituição lorizem as Conferências e os Conselhos como instrumenFederal, o Estatuto tos de gestão democrática e da Cidade, Leis, participativa. E como corolário da insPlanos e Políticas tituição do SNDU, a forconstituem um matação de um projeto estratégico para as cidades arsenal jurídicobrasileiras, que considere as formal avançado; interfaces das ações de regulação do uso e ocupação do todavia, ainda solo, da habitação, do saneahá um vácuo mento ambiental integrado, da mobilidade, do transporte institucional a público e da segurança do ciser preenchido, dadão. Ademais, avançar na supepara superar a ração dos condicionantes mafragmentação e a croeconômicos herdados da Era FHC, que persistem, para compartimentação financiar o desenvolvimento. dessas políticas Reordenar a vida nas cidades, requalificando os serviços púpúblicas blicos essenciais, assegurando oportunidades de trabalho, acesso à educação pública de qualidade e à atenção á saúde, implicam pesados investimentos. Assim, no bojo de “uma nova arrancada por mais democracia, mais desenvolvimento e progresso social” (10), arrostando a permanente pressão da oposição conservadora, faz-se necessário criar um sistema de intermediação financeira através da rede pública de bancos, destacadamente o BNDES, para deslocar recursos para setores-chave como infraestrutura, incluindo as grandes intervenções urbanísticas. Adotar política macroeconômica indutora de crédito com taxa de câmbio que permita competitividade internacional e exploração de todas as potencialidades das Parcerias Público-Privadas (PPPs), conforme sugere Renato Rabelo (11). Na frente do movimento social, urge retomar a bandeira da Reforma Urbana com força, associada 24 às demais reformas estruturais democráticas, fundindo-a às pautas reivindicatórias de associações e conselhos de moradores, sindicatos, entidades científicas, acadêmicas, culturais e estudantis e organizações democráticas e populares em geral, movimentos de mulheres, negros, ambientalistas, LGBT, além de partidos políticos de esquerda e progressistas. Sem a pressão popular, nenhuma dessas reformas se concretizará. Na frente eleitoral, durante a campanha que se avizinha, cabe incluir com destaque as reformas estruturais – a Reforma Urbana em especial – na plataforma da presidenta Dilma, de candidatos progressistas a governador e ao Parlamento, em nível federal e estadual, dando conteúdo avançado ao novo pacto político e social a emergir das urnas. * Luciano Siqueira é médico, escritor e vice-prefeito de Recife. Notas (1) “Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana já!” – texto para lançamento da 5ª Conferência Nacional das Cidades. Conselho Nacional das Cidades, Brasília, 1º de março de 2013. (2) NERI, Marcelo. A nova classe média – o lado brilhante de nossa pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011. (3) Senado Federal: Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. (4) ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade – das lutas pela Reforma Urbana às cidades da Copa do Mundo. In: www.raquelrolnik.wordpress.com (5) Jornal da Constituinte, Brasília, 30 de agosto, 1987. (6) Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Programa Socialista. In: www.pcdob.org.br (5) MARICATO, Ermínia. “Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta”. In: RIBEIRO, Luiz César de Queiroz & SANTOS JR. Orlando Alves dos (orgs.). Globalização, Fragmentação e Reforma Urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. (7) “Nossas cidades são bombas socioecológicas”. Entrevista de Ermínia Maricato à revista Teoria e Debate. In: www.teoriaedebate.org.br – edição 115, agosto de 2013. (8) RODRIGUES, Juciano Martins. Crise da mobilidade urbana: Brasil atinge marca de 50 milhões de automóveis. Observatório das Metrópoles, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia. Novembro, 2013. (9) Resoluções da 2ª Conferência Nacional das Cidades. Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Ipea, Brasília, dezembro de 2005. (10) Resolução Política do 13º Congresso do PCdoB: Batalhar pelas reformas estruturais, fortalecer o Partido, assegurar a quarta vitória do povo! Brasília, novembro de 2013. In: www.pcdob.org.br (11) RABELO, Renato. Projeto para uma nova etapa de desenvolvimento. Fundação Maurício Grabois, Seminário de Estudos Avançados da Escola Nacional do PCdoB. São Paulo, julho de 2013. In: www.fmauriciograbois.org.br PROGRAMA ATLETA NA ESCOLA. UMA ÓTIMA OPORTUNIDADE DOS ALUNOS APRENDEREM COM OS VALORES DO ESPORTE. Queremos sempre o melhor para os nossos filhos. E, para que eles aprendam a se superar e a vibrar com novas conquistas, o Governo Federal, com o Programa Atleta na Escola, está apoiando competições nas escolas com a participação de estudantes do Brasil inteiro. Diretores, inscrevam suas escolas. E você, aluno, participe. Acesse www.atletanaescola.mec.gov.br e saiba mais. Ministério do Esporte, Formando um Brasil Vencedor. 25 130/2014 Prioridade para os interesses coletivos nas cidades Bartiria Lima da Costa* A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para melhorar as condições da população e democratizar o acesso aos espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades. A gestão democrática é um aspecto importante nesse processo A Uma Reforma complexa política de desenvolvimento urbano contempla o planejamento e gestão do território, saneamento, regularização fundiária, habitação e a mobilidade, ou seja, alguns dos principais gargalos do desenvolvimento das cidades. As grandes catástrofes e os problemas urbanos que têm assolado diversas regiões do nosso país nos últimos anos estão ligados intrinsecamente à falta de planejamento na ocupação do solo e à falta de regularização fundiária, como também o manejo dos rios. Comunidades construídas em locais inadequados são reflexos da ineficiência do poder público no ordenamento da cidade e no combate à especulação. O principal instrumento construído para democratizar o acesso à cidade é o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, que determina a ela- 26 boração de forma democrática dos Planos Diretores e disponibiliza uma série de instrumentos que, quando utilizados, auxiliam no combate à especulação imobiliária e fazem com que a terra urbana e a cidade possam cumprir a sua função social, como determina a Constituição de 1988. Na esteira da construção do Estatuto da Cidade estão os marcos regulatórios do saneamento, mobilidade e habitação de interesse social, a construção do Ministério das Cidades e as Conferências e o Conselho das Cidades. Porém, passados praticamente 13 anos da criação desse avançado instrumento, poucas são as cidades que o colocam em prática. A luta pelo desenvolvimento urbano é repleta de contradições, a construção de cidades mais justas e democráticas é um grande desafio. E entre os grandes desafios está o de avançar na construção de uma política de Estado e não somente em políticas de governo. Arquivo Conam Capa A construção do Sistema Nacional de Deção de habitação de interesse social, e inclusive senvolvimento Urbano é um instrumento funesvaziou os recursos que deveriam ser destinadamental para integrar as políticas setoriais dos ao Fundo do Sistema Nacional de Habitação entre as esferas de governo e entre as políticas de Interesse Social (FSNHIS). de desenvolvimento urbano, no planejamento, O fato é que esses recursos, na maior parte financiamento e execução dessas ações. Este foi das vezes, têm sido direcionados diretamente aos o tema central da 5ª Conferência Nacional das municípios e estados, utilizando-se unicamente Cidades em que milhares de municípios no Bracritérios políticos sem levar em conta o que tem sil debateram e deliberaram sobre a política de sido construído nesta última década. Além de desenvolvimento urbano que deverá ser a prionão ser educativa essa prática fragiliza a necesridade para o próximo período. sidade de fortalecer a cultura de Ficou claro que não basta criar planejamento e participação. normas nacionais que não posPor outro lado, o Ministério Entre os grandes sam, na prática, ser aplicadas das Cidades e o Conselho Nacionos estados e municípios. nal das Cidades têm sido enfradesafios está o quecidos nas decisões políticas. de avançar na Grandes recursos sem No governo Lula os PACs, o Micontrole social nha Casa Minha Vida eram deconstrução de uma finidos na Casa Civil. Na gestão política de Estado Recentemente, a presidenda presidenta Dilma, no Minista Dilma Rousseff destacou que tério de Planejamento esta mee não somente em estão sendo investidos R$ 343 dida mostra a prioridade dessas políticas de governo bilhões em dois grandes prograações, porém indica que – ao mas: O Minha Casa Minha Vida contrário do que estamos cons(R$ 200 bilhões) e o Programa de truindo – temos ainda políticas Aceleração do Crescimento (PAC) de Mobilidade de governo e não de Estado. O Conselho NacioUrbana (R$ 143 bilhões). Esses recursos muitas nal das Cidades na realidade não exerce nesses vezes são colocados em obras que não foram debaprogramas o controle social. tidas com as cidades e as comunidades afetadas. O valor da terra urbana E, ao invés de se construírem pactos, nelas têm sido geradas mais especulações e desigualdades, Neste contexto, o Minha Casa Minha Vida produzindo-se cidade fora das cidades formais, acentuou a exploração imobiliária nas cidades. aos setores de menor renda. Com a grande demanda de terra para a construSabemos que o programa Minha Casa Mição de moradias – principalmente para famílias nha Vida era para ser uma medida anticíclica com renda acima de R$ 1.600,00 –, houve um para manter a economia aquecida em um mogrande aumento do valor da terra urbana. mento de crise econômica global, mas na prática Isto tem gerado um grave problema, pois ele substituiu todos os outros instrumentos que como não há terra em preços razoáveis – as moraestavam sendo criados como política de produdias de interesse social, para famílias com renda abaixo de R$ 1.600,00 –, faz com que se tenha de construir infraestrutura de cidade fora da cidade. Essas famílias muitas vezes têm sido colocadas em locais com precárias condições de mobilidade, saneamento e com falta de equipamentos públicos de saúde, educação etc. Em outros locais esse tipo de empreendimento não encontra quem se disponha a construir a moradia, pois o preço da terra inviabiliza o empreendimento. Enquanto isto, os vazios urbanos no centro das cidades, e em áreas nobres, continuam se valorizando, sem que se possa combatê-los, pois os instrumentos disponíveis no Estatuto da Cidade não são aplicados nos planos diretores. Lideranças comunitárias em audiência no Ministério das Cidades 27 130/2014 guimos aprovar neste último período. Ela aponPor outro lado, muitas obras de infraestruta para um trânsito e mobilidade com prioridade tura urbana têm servido para deslocar comunipara o pedestre, o transporte não-motorizado e o dades históricas que, apesar das precariedades transporte coletivo em relação ao transporte indina urbanização, vivem em locais próximos ao vidual motorizado. Nas últimas décadas, sempre centro ou de forte valor imobiliário. Com o preas principais obras priorizaram o deslocamento do texto da realização dessas obras têm-se gerado automóvel. Hoje é necessário priorizar o transporverdadeiros expurgos para bairros mais periférite coletivo. Mas isto ainda sofre grande resistência cos e/ou mesmo para fora da cidade, através de nos gestores que, visando a políticas imediatistas, diversos instrumentos. O comum nessas ações preferem construir uma faixa a mais para os carque têm acontecido em todas as regiões do Braros a dedicar uma faixa exclusiva para o ônibus. sil é que megaeventos e megaprojetos são utiliUm exemplo ímpar é o caso da cidade de São Pauzados como desculpa, e os diálogos com as colo que teve a ousadia de colocar isso em prática e munidades ou não existem ou são feitos de uma avançar com essas faixas exclumaneira muito pouco transpasivas em grande parte da cidade. rente. Neste sentido, grande parte Outro grande desafio para o As cidades das obras selecionadas no PAC próximo período está em priorizar reproduzem a Mobilidade é de transporte colea regularização fundiária em relativo de massas, principalmente ção à construção de “novas cidarelação do capital sobre trilhos: Metrôs e Veículos des”. Com o Minha Casa Minha e, assim como o Leves sobre Trilhos (VLTs). E as Vida a regularização fundiária obras rodoviárias são corredores foi regulamentada, mas não está rentismo, impedem para Bus Rapid Transit (BRTs, sendo priorizada, não há, da parte o avanço no Trânsito Rápido de Ônibus, em dos governos estaduais e municiportuguês), faixas exclusivas e pais, o menor interesse em regufortalecimento corredores de ônibus. Mas enlarizá-la, visto os deslocamentos da produção e do tendemos que parte desses rede famílias de áreas consolidadas cursos deveria ir, por exemplo, em função dos megaprojetos e desenvolvimento para qualificar, integrar e raciomegaeventos. nalizar os sistemas operacionais Para se avançar na Reforma e tarifários de transporte coletivo. Mas algo fica Urbana com firmeza é necessário enfrentar a claro: se o transporte coletivo não for atrativo as questão da terra urbana. As cidades reproduzem pessoas não vão deixar seu carro em casa. Assim a relação do capital e, assim como o rentismo, também se o preço não for justo os trabalhadoimpedem o avanço no fortalecimento da prores têm fortes dificuldades para pagar a tarifa. dução e do desenvolvimento. Por isso, somente Talvez o maior avanço que podemos ter na conseguiremos aplicar os instrumentos construíPolítica de Mobilidade Urbana seja a elaboração, dos nas cidades em que a propriedade e a terra de forma democrática, dos planos de Mobilidade possam cumprir sua função social, seja ambienUrbana. Cada cidade terá o dever de articular o tal para equipamentos públicos ou para a consseu, que é um acordo, com as priorizações, ações trução de moradias. e diretrizes de desenvolvimento da mobilidade O desafio de tornar atrativo o do município, articuladas com o Plano Diretor. transporte coletivo Nele, podem ser debatidos a questão da concessão do transporte coletivo, a qualidade do serviço Uma das questões na ordem do dia, princie o valor da tarifa. palmente depois das manifestações de junho e Planos municipais de saneamento julho de 2013, é a mobilidade urbana. Há, atualmente, um transporte coletivo de pouca qualidaNa 5ª Conferência Nacional das Cidades, de com tarifa alta, cidades engarrafadas – fruto a presidenta Dilma Rousseff assinou o Decreto de uma política que historicamente incentivou o nº 8.141, de 20 de novembro de 2013, que insuso do automóvel em detrimento do transporte titui o Grupo de Trabalho Interinstitucional de coletivo de massas. Acompanhamento da Implementação do PlaA Política Nacional de Mobilidade Urbana é no Nacional de Saneamento Básico (Plansab). um dos instrumentos mais avançados que conse- 28 Arquivo Conam Capa A necessidade do povo na rua A Reforma Urbana tem de ser vista como instrumento para melhorar as condições da população, e democratizar o acesso aos espaços públicos, priorizando os interesses coletivos nas cidades. A gestão democrática é um aspecto importante nesse processo. A cultura do planejamento urbano somente vai se fortalecer se todos os segmentos das cidades decidirem se apropriar desse conceito, participando, colaborando, se sentindo parte atuante e protagonista dessa construção coletiva. Movimentos como o Passe Livre e o Rolezinho não trazem pautas ou banManifestação pela Reforma Urbana, em Brasília deiras novas para as cidades, mas são novos atores fortalecendo as bandeiras históricas dos movimentos orEsse Plano foi publicado no ganizados pela Reforma Urbana. Diário Oficial da União, de 6 de Movimentos como Porém, esses movimentos jovens dezembro, com a aprovação de com suas características e ações o Passe Livre e sete ministérios (Cidades, Fadiferenciadas fizeram com que zenda, Casa Civil, Planejameno Rolezinho não outros segmentos e a imprensa to, Saúde, Meio Ambiente e Involtassem sua atenção para essas trazem pautas ou tegração Nacional). bandeiras. E também acordaram Com o Plansab, estão garanbandeiras novas o governo para a priorização de tidos investimentos de R$ 508 tais lemas. Podemos concluir para as cidades, mas bilhões no país nos próximos que só será possível avançar com 20 anos para universalização do são novos atores a participação popular, mobilizaacesso aos serviços de abastecição social e muita articulação. fortalecendo as mento de água potável, esgotaTodos os avanços construímento sanitário, limpeza urbabandeiras históricas dos no último período têm de na, manejo de resíduos sólidos e ser aplicados. E, principalmente dos movimentos drenagem de manejo das águas nas cidades, são fundamentais pluviais e urbana. organizados pela a pressão e a articulação dos A Lei nº 11.445/2007 estamovimentos urbanos, para que Reforma Urbana belece as diretrizes nacionais e os gestores e parlamentares coa Política Federal de Saneamenloquem em prática as medidas to Básico e determina que todos necessárias para melhorar a quaos municípios brasileiros devem elaborar seus lidade de vida das pessoas. Isto num cenário em planos de saneamento. De acordo com a legislaque outros segmentos pressionam para manter e ção vigente é responsabilidade da administração ampliar seus privilégios e vantagens. A consolimunicipal organizar e prestar, diretamente ou sob dação de um novo cenário é uma tarefa árdua e regime de concessão ou permissão, os serviços de difícil, ao mesmo tempo em que as comunidades saneamento básico. A Lei estabelece também que necessitam de respostas rápidas e eficazes para os planos elaborados tenham prazos de 20 anos, suas demandas históricas. avaliados anualmente e revisados a cada quatro anos. O Plano Municipal de Saneamento Básico é *Bartiria Lima da Costa é membro do Comitê uma oportunidade para toda a sociedade conheCentral do PCdoB, responsável pela Questão Urbana; cer e entender o que acontece em sua cidade. A integra os Conselhos Nacionais das Cidades e da Lei 11.445 estabelece ainda o controle social como Saúde e é presidenta da Confederação Nacional das um dos seus princípios fundamentais. Associações de Moradores (Conam) 29 130/2014 Quando a única possibilidade é ser coletivo Jilmar Tatto* A Sem uma planificação regional metropolitana que considere a integração de seu universo, não será possível enfrentar o problema de transporte de massa por completo. Além do mais, é preciso que os agentes públicos e privados tenham a consciência de que não há solução única ou que atenda a apenas um setor social ou produtivo, a priorização tem de ser plural, não há outro caminho a seguir mobilidade urbana é um dos temas mais importantes da atualidade. Agora é o momento crucial de os agentes públicos implementarem medidas urgentes que atendam à maioria da população. Dentro desse contexto, o transporte público tem papel fundamental: ou começamos a executar a cultura da universalidade, ou estaremos presos em nossas exclusividades. Ou partimos da realidade, ou sequer imaginaremos boas soluções. Essa primeira e mais emblemática constatação, quando se fala em mobilidade urbana, nos põe diante do fato de que as cidades médias 30 e grandes estão com um “bem” em plena extinção: os espaços. Tomando como exemplo o município de São Paulo, essa circunstância ultrapassa o grau da preocupação. Àqueles desatentos, nossos 15 mil quilômetros de vias asfaltadas até seriam suficientes para oferecer condições adequadas para os deslocamentos. De início, há um dado espantoso: temos 7,4 milhões de veículos emplacados, com quase 4 milhões deles circulando diariamente na capital paulista. Aqui, um contraponto: temos carros cada vez mais velozes, mas, além da exiguidade de locais para abrir ruas e avenidas, não há poder público dotado Capa de rapidez e orçamento que dê conta de uma ação Também não se pode afirmar que implementar as baseada na construção de obras viárias, como ocorrifaixas exclusivas é um processo simples. Existe uma do nos anos 1960 e 1970. escolha dos locais pelas condições de uso, avaliandoNesse crescimento constante, que acabou se o fluxo de veículos, particulares e coletivos, e o criando o constrangedor binômio frota acelerada/ impacto nas imediações. caminhos lentos, pouquíssimo se previu para as décadas seguintes. E aquele futuro chegou. E veio A prática com força. Tanto é que até poderíamos acreditar na imagem de que, um dia, não conseguiremos Do diagnóstico passamos à ação: em fevereiro sair às ruas por haver um congestionamento inde 2013 começamos a implantação das faixas. Um transponível. dado paralelo que contriNão importa o lugar buiu com o trabalho foi do planeta: nem as mais que a população já tinha inacreditáveis tecnoloaprovado a experiência gias ou os treinamentos dos corredores de ônide pessoal mais aprobus, no início tão compriados serão capazes de batidos. Claro que o uso nos salvar da iminente do lado direito, junto da imobilidade. Com uma calçada, causou um certo exceção: embora já veestranhamento. Mas, aos nha sendo dita há alguns poucos, a assimilação foi anos, a única saída tem notável. de ser repetida e aplicada Além de dar preferêndiariamente, como um mantra: vacia ao transporte público, o proPesquisa do lorização do Transporte Público. grama chamado “Dá Licença para Na capital paulista, este conceio Ônibus” também contribuiu paDatafolha (2013) to vem sendo praticado insistenra organizar o trânsito nas outras apontou que 88% temente desde 2 de janeiro do ano faixas do viário. E esse comparpassado. Sabedores do desafio já tilhamento provocou, ainda, um dos passageiros respeito contínuo e, talvez, inéhavíamos previsto nas propostas de aprovaram a dito. Até mesmo fora do horário governo do prefeito Fernando Hadde funcionamento das faixas, os dad, entre várias outras, a construcriação das faixas motoristas continuam respeitanção de 150 quilômetros de corredoexclusivas. Notáveis do-as. É como se lá fosse um local res de ônibus à esquerda das vias especial. Como realmente é. – que estão em processo de licitação foram os 77% Os resultados têm sido anima– e igual extensão de faixas excluside motoristas de dores. O usuário teve um ganho vas à direita, em importantes ruas e de 38 minutos ao dia com as faiavenidas. carros particulares xas exclusivas. Isto veio como reTendo como ideia central que que também se flexo do aumento médio de 48,1% a segregação no viário é capaz de aumentar a velocidade dos ônibus, posicionaram a favor na velocidade dos coletivos, que saíram de módicos 13,8 Km/h pauma de nossas primeiras medidas ra 20,4 Km/h. foi selecionar os grandes caminhos Ainda no ano passado, uma pesquisa do Datafoem que poderíamos, e deveríamos, criar as faixas palha apontou que 88% dos passageiros aprovaram a ra os coletivos. criação das faixas exclusivas. Notáveis foram os 77% É um equívoco total defender, por exemplo, que a de motoristas de carros particulares que também se frota de coletivos deveria aumentar. Os atuais 14.761 posicionaram a favor. ônibus já são suficientes para as 1.292 linhas que As facilidades geradas pelas faixas são responsápercorrem 4.800 quilômetros em todo o território veis, em grande parte, pela elevação do número de paulistano. Nosso foco foi, e tem sido, liberar os trapassageiros embarcados. No primeiro trimestre do jetos. Assim o tráfego fica mais rápido e pode se conano passado, foram transportados 688,3 milhões de trolar melhor as partidas e os intervalos. Isto para pessoas. No mesmo período de 2014, este número conseguirmos atender a 9,8 milhões de embarques chegou a 702,6 milhões. diários no sistema sobre pneus. 31 130/2014 Aqui cabe uma pergunta: se fosse tão fácil “pinIsto significa que a produção de programas e equipatar” as faixas, por que não se fez antes? mentos semafóricos terá suas informações públicas, o Chegamos a este mês de abril com 324 quilôque abrirá a concorrência e irá baratear os custos. metros de faixas exclusivas implantadas, mais do Não podemos ficar reféns da simples abordagem que o dobro do previsto. Algumas das intervenções, sobre pneus. A questão crucial é que o modal sobre como em todo processo, chegaram a ser questionatrilhos, trens e metrôs, deveria responder pelo transdas. Nossa postura tem sido de dialogar com esses porte de massa. Não somente porque em qualquer interlocutores e, contando com sua colaboração, teparte do mundo é assim, mas porque é tecnicamente mos aprimorado as modificações, buscado eliminar mais razoável. possíveis gargalos no fluxo de veículos e atendido da Aí nos deparamos com a ínfima realidade de a melhor maneira às demandas. cidade de São Paulo possuir 74 quilômetros de meUm aspecto que precisa ser estrô. Nós nos vemos na circunstânclarecido é que não somos contra cia invertida, onde os ônibus têm A cidade de São o carro e seus usuários. Em nossa de responder por 81% das viagens. escala de prioridade está o pedestre Ônibus foi feito para ser transporPaulo possui apenas à frente, que é o mais frágil nesse te auxiliar e não o contrário. É fato 74 km de metrô, contexto, seguido pelo ciclista, paspositivo que estão em andamento sageiros do transporte coletivo e os várias obras do Metrô, mas, além numa circunstância dos demais veículos. de atrasadas, são lentas. invertida, os ônibus Mas o fato é que, por sua caracÉ questão central nesse debaterística egocêntrica, o automóvel te se considerar a abrangência da têm de responder particular precisa ser acomodado Região Metropolitana de São Paupor 81% das viagens. lo. Refiro-me a 39 municípios e 20 em seu lugar para não prejudicar a coletividade. Afinal, quem tem um milhões de habitantes que se moviÔnibus foi feito veículo próprio ainda pode optar mentam para além de suas divisas. para ser transporte por um caminho, o passageiro do Sem uma planificação regional que ônibus não tem outra alternativa. considere a integração desse pequeauxiliar e não o no universo, não será possível encontrário. É fato frentar o problema por completo. Âncora tecnológica Um bom exemplo dessa visão positivo que estão Um aspecto fundamental nesse ampliada é a integração do Bilhete em andamento processo é a intensa utilização da Único em suas versões Convenciotecnologia para dar conta da circunal, Mensal e Semanal (futuravárias obras do lação em todo o município. Tanto mente teremos o Diário) que está Metrô, mas, além de sendo utilizado nos dois modais de para as faixas, quanto para os corredores, estamos investindo em esatrasadas, são lentas transportes (ônibus e trilhos) existudos e na futura adoção de dispotentes em São Paulo. Cabe lemsitivos para o controle das partidas brar que, em maio, o Bilhete Único e dos intervalos dos ônibus. Da mesma forma, tendo completará dez anos de existência. como base dados obtidos via GPS, será possível estaRetomando a ideia inicial, precisamos, os agentes belecer dinâmicas de operação remota. públicos e privados, ter a consciência de que não há Essa modernidade se estenderá também aos 13 solução única ou que atenda a apenas um setor sonovos terminais, de onde partirão os veículos de cial ou produtivo. maior porte para cumprir viagens mais longas. Isto Ou entendemos que a priorização tem de ser pluestá agregado aos futuros 150 quilômetros de correral, ou nos perderemos por não haver outro caminho dores de ônibus, à esquerda das grandes vias. a seguir. Neste contexto, também estão 4.800 dos 5.690 cruzamentos que possuem semáforo. Eles estão * Jilmar Tatto é secretário municipal de Transportes de São Paulo. Pesquisador na Gestão de Automação passando por completa revitalização, sendo que os (Gaesi) e TI (Grupo de pesquisa vinculado ao principais pontos serão controlados para que sejam Departamento de Energia e Automação Elétricas criadas as chamadas ondas verdes, facilitando o fluda Escola Politécnica – Poli – da Universidade de xo onde for necessário. São Paulo, USP). Mestrando na Poli em Sistemas de Uma outra novidade é que a Prefeitura está inauguTransportes Inteligentes. rando o procedimento do protocolo aberto, o gateway. 32 Capa André Gomes de Melo/SASDH Cerimônia da instalação de UPP Turano Entrevista com Ignacio Cano “A crise das UPPs é parte de uma crise mais ampla” N Cláudio Gonzalez e Caíque Tibiriçá* o último dia 2 de abril, Princípios esteve no campus da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), na capital fluminense, para conversar com o sociólogo espanhol Ignacio Cano, professor associado e pesquisador daquela universidade e coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV). No mesmo dia da entrevista, a imprensa repercutia a prisão, por associação ao tráfico, de cinco policiais que atuavam na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela da Rocinha, on- de, no ano passado, o pedreiro Amarildo foi vítima de violência policial e está até hoje desaparecido. A descoberta da relação dos policiais da Rocinha com traficantes é mais uma de uma série enorme de episódios negativos envolvendo as UPPs. O último caso de maior repercussão foi a morte do jovem Douglas Rafael, dançarino de um programa de auditório da Rede Globo. Ele foi encontrado morto em uma creche na comunidade pacificada Pavão-Pavãozinho, onde também foi assassinado outro jovem, Edilson da Silva dos Santos. Semanas antes, já havia ganhado as manchetes a morte da auxiliar de serviços ge- 33 Foto: Cláudio Gonzalez/Princípios 130/2014 rais, Claudia da Silva Ferreira, arrastada por um carro da PM após ser baleada no Morro da Congonha, em Madureira. A cada dia novos casos de violência em áreas pacificadas do Rio de Janeiro são noticiados, revelando o quanto a questão da segurança pública é complexa e de difícil solução. Para o professor Ignacio Cano, essa crise é parte de uma crise mais ampla da política de segurança do Rio que fez com que resultados positivos conquistados nos últimos anos com as UPPs perdessem fôlego. Cano acredita que as UPPs podem continuar desempenhando um papel positivo se o governo corrigir rumos. Muitas ideias para isso foram apontadas no estudo que o professor coordenou através do LAV e que em 2012 foi publicado com o título Os Donos do Morro. Para Cano, o sucesso global do projeto passa pela transformação das políticas de segurança, saindo da visão de que estamos em uma “guerra”, para uma visão da polícia como prestadora de serviços, próxima e simpática à população local. “A UPP ficou no estágio inicial: ocupou territórios, foram colocados policiais lá, mas não se avançou suficientemente na mudança das relações e no diálogo entre a polícia e a comunidade”, diz o professor. Leia abaixo a entrevista completa: Princípios: O projeto das UPPs está em crise? Ignacio Cano: Sim, definitivamente. Não é o único que está em crise. Há uma crise da segurança em geral. Houve uma redução de homicídios bastante pronunciada entre 2009 e 2012. Num primeiro momento, as UPPs promoveram, de fato, uma situação de menos violência no Rio de Janeiro. Mas em 2012 já começa a subir na baixada fluminense e, em 2013, sobe em todo o estado. Os roubos, que também haviam diminuído nos últimos anos, voltaram a crescer. Houve também crescimento nos índices de outros crimes, mas esses dois que citei – roubos e homicídios – são particularmente graves, não só pelo impacto que geram na sociedade, mas porque são crimes pelos quais a polícia é premiada quando diminuem. Ou seja, se eles não conseguem reduzir nem os crimes pelos quais são premiados, com certeza estamos numa situação de crise. E a UPP é uma crise dentro da crise mais ampla. Princípios: O senhor coordenou uma pesquisa muito importante sobre as UPPs, que resultou no relatório Os Donos do Morro. Esse estudo foi levado em conta pelo governo estadual para corrigir rumos do projeto? Ignacio Cano: A gente vem discutindo com eles durante um tempo, inclusive depois do relatório fizemos uma consultoria para o governo. Produzimos um 34 O nosso estudo mostra que o impacto da UPP não se dá apenas dentro da comunidade, mas no entorno também, de forma que, quanto mais espalhadas estiverem as UPPs, maior vai ser o impacto global. Ignacio Cano sistema de monitoramento e avaliação para as UPPs, mas nunca foi implantado. A conjuntura mudou e, enfim, agora, em ano eleitoral, com certeza nada vai acontecer. Diante da crise nas UPPs, o que o governo fez? Chamou de volta o modelo do BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais]. Chamou oficiais do BOPE, incluindo o major Edson, da Rocinha, tristemente conhecido no caso Amarildo. Porque a ideia que eles ainda têm é: se dá errado, se não funciona, vamos voltar ao que a gente já fez. Então, a transformação foi muito parcial e a gente avançou menos justamente em áreas onde era mais importante avançar. Algumas coisas eles implantaram, para sermos justos, mas muitas outras não. As questões centrais ficaram de lado. Princípios: Qual, por exemplo? Ignacio Cano: Uma coisa que a gente sempre defendeu foi que a UPP deveria se localizar em função do nível local de violência. Isso significaria várias coisas. Em primeiro lugar, o impacto maior na taxa de homicídios. Em segundo lugar, o nosso estudo mostra que o impacto da UPP não se dá apenas dentro da comunidade, mas no entorno também, de forma que, quanto mais espalhadas estiverem as UPPs, maior vai ser o impacto global. Se você concentra todas elas, o impacto vai ser reduzido. Em terceiro lugar, talvez mais Capa importante, é que, se você escolhe a UPP de acordo com o nível local de violência, você está mandando um sinal para o mundo do crime no sentido de que quem usar muita violência vai perder o território. E o território é a base do negócio no crime do Rio de Janeiro. Domínio territorial para venda de drogas e etc. Então eu acho que isso poderia induzir as facções criminosas a trabalharem com níveis inferiores de violência. Mas, enfim, isso, por exemplo, nunca foi ouvido. O governo preferiu continuar com o planejamento que visa a algumas áreas da cidade. Eu acho que o que está por trás deste planejamento é uma visão, um projeto mais amplo para a cidade do Rio de Janeiro, como um centro internacional de turismo e de negócios. Para esse projeto o que acontece na Zona Oeste é quase irrelevante e é por isso que as UPPs estão onde elas estão hoje, infelizmente. as mesmas operações que o BOPE. E é uma polícia de investigação, civil. Desde quando blindado investiga? Portanto, o que está militarizado não é apenas a PM, é o conjunto das políticas de segurança. A UPP seria uma grande chance para transformar esse cenário e a gente ficou muito aquém nesse projeto de transformação. Além disso, a formação policial ainda é muito deficiente e muito ancorada no velho modelo. Formação policial ainda é muito exercício físico, que sequer é visto como uma ferramenta de saúde pública, de saúde no trabalho. É simplesmente um critério de entrada para eles serem muito másculos. Princípios: Existe uma evidente estratégia de colocar soldados novos, supostamente “ainda não corrompidos”, para atuar nas UPPs. Como o senhor avalia isso? Princípios: Para priorizar os corIgnacio Cano: Optaram por soldados redores por onde circulam turecém-formados desde o início, pela ristas e onde as empresas se ideia de que seriam menos corrup“Para nós e para instalam? tos etc. Mas não no comando. CoIgnacio Cano: Não qualquer empremo disse, cada vez que há crise eles um setor dentro da sa. Empresas financeiras. A indúschamam para comandar as UPPs polícia, as UPPs são tria, por exemplo, não é tão impessoas com o perfil mais operacioportante. A implantação em áreas nal, mais tradicional, mais do BOuma grande chance específicas vai ao encontro de um PE. Alguns de fato vêm do BOPE. para transformar projeto de cidade que esse governo Durante um tempo, por exemplo, tem que busca transformar o Rio o comandante das UPPs, o coronel o modelo de de Janeiro em um centro internaPaulo Henrique, era alguém saído segurança e entrar cional de turismo e também de nedo BOPE. Enfim, o BOPE tem que gócios e comércio. participar na fase inicial, não há em um outro dúvida nenhuma. Mas, a ideia de paradigma, no qual Princípios: E qual deveria ser o que quando temos crise chamamos eixo do projeto? os caras do BOPE significa que não o objetivo seja a Ignacio Cano: Para nós e para um seconseguindo mudar o moproteção das pessoas estamos tor dentro da polícia, as UPPs são delo, não é? E que os policiais não uma grande chance para transforacreditam no projeto UPP. Segundo e não a guerra ao mar o modelo de segurança e pamostram várias pesquisas do Centro crime” ra reformar a polícia. Para sair da de Estudos de Segurança e Cidadavelha guerra contra o crime, que nia (CESeC), a maioria dos policiais produziu e produz ainda tantas vítimas e que nunca de UPP, na verdade, preferia trabalhar fora delas. Isso trouxe nenhum benefício para a cidade, e entrar em é um problema muito sério para a legitimidade interum outro paradigma de segurança no qual o objetivo na do projeto. seja a proteção das pessoas e não a guerra ao crime. Princípios: Isso dificulta o estabelecimento de Princípios: Seria uma visão desmilitarizada da laços com a comunidade, que seria um diferenpolícia... cial da UPP? Ignacio Cano: Desmilitarizada, sim. Não só da polícia, Ignacio Cano: Exatamente. A relação com a comunidamas da Secretaria (de Segurança Pública). Hoje em de em alguns lugares é razoável; em outros, é tensa; dia discute-se muito sobre desmilitarização da PM. e em alguns lugares é catastrófica! O que ocorreu em Eu sou a favor! Os praças também são a favor. Agora, Manguinhos, por exemplo, onde houve vários ataa gente vê a Polícia Civil no Rio, por exemplo, com um ques recentes, teve muita repercussão, mas as pesveículo blindado exatamente igual ao do BOPE, e faz soas não estão sabendo que há pelo menos um ano 35 130/2014 estamos recebendo denúncias gravíssimas de intervenções policiais, morte de garotos... Então, se a gente não consegue fazer com que a comunidade perceba essa polícia como própria, como uma polícia que está lá para protegê-la, não resolve nada. Os que apoiam a UPP apoiam criticamente. E não há uma opinião homogênea. Os jovens, por exemplo, não gostam porque não conseguem fazer funk, porque a polícia continua achando que o funk é criminoso, porque não pode ter barulho depois de um certo horário. Então a juventude não gosta. As pessoas mais idosas, mais pacatas, gostam mais. Mas é uma visão crítica. ferência de renda nessas áreas porque as pessoas com mais recursos ajudam a financiar serviços públicos dos quais não usufruem. Já na segurança pública, há uma dupla concentração porque a polícia é paga por todos, mas quem mais usufrui dessa polícia são os setores privilegiados. Eles têm acesso à segurança privada, mas ainda exigem e conseguem que o aparato público de segurança proteja primordialmente as áreas nobres. Se fôssemos transportar este exemplo para a educação é como se a classe alta mandasse os seus filhos para a escola privada, mas ainda assim exigisse que a escola pública estivesse localizada na zona sul. É uma lógica de dupla concentração. Princípios: Não há nenhuma iniciativa para tentar superar este problema de animosidade entre polícia e comunidade? Ignacio Cano: As iniciativas são localizadas. Depende mais do comando da UPP local do que propriamente de uma orientação geral. O comando da UPP ainda é central na relação entre a polícia e a comunidade. Vou citar um exemplo que vivenciamos. Pediram para mediarmos uma situação na UPP do Fallet, porque a situação lá era catastrófica entre a comunidade e a polícia. Houve morte de garotos e outros problemas que acompanhamos de perto. E aí fizemos uma mediação num contexto muito tenso. Falamos para a comunidade: “essa polícia está aqui pra proteger vocês.” Quase fomos linchados depois de dizer isso. Porque não correspondia ao que a comunidade sentia. A situação melhorou depois com a mudança do comando da UPP. Então é um desafio enorme conseguir que a comunidade interiorize que aquela polícia é para eles. Outro problema que nós temos é o seguinte: não há um esforço de integração das UPPs com o resto da polícia. E isso precisaria acontecer, pois não dá para manter a UPP indefinidamente. Pra se ter uma ideia de como é insustentável a situação, o número de policiais por habitante no Rio é entre dois e três para cada mil habitantes no conjunto do Estado. Nas UPPs, esse número vai para dezoito, dezenove. Então, isso em longo prazo é insustentável. Não vai ter policial suficiente para a demanda. Princípios: Como o senhor avalia a ordem de busca coletiva que um juiz concedeu autorizando a polícia a entrar em qualquer casa, sem motivo específico, no complexo de favelas da Maré? Ignacio Cano: Um escândalo. É inadmissível! Não é a primeira vez que isso acontece e há pressão sobre os juízes para que eles deem este tipo de autorização. Eu sei porque os juízes já me contaram. Não é todo dia, mas não é uma coisa excepcional. Milhares de pessoas moram lá e a polícia pode invadir qualquer uma dessas casas. Imagine se isso acontecesse no Leblon! Cairia a República. Pelo menos o governo do Estado do Rio cairia, porque é inadmissível, é um desmantelamento do Estado democrático. O mandado de busca, por definição, é um mandado específico. Se não, não seria mandado de busca, seria livre autorização da polícia para agir onde ela quiser. Então, o mandado tem que dizer: “neste lugar, nesta casa, essa pessoa, em função desta investigação”. Se o juiz concede um mandado genérico é como se ele não tivesse mais mandado, é como se não tivesse mais controle judicial. O mandado de segurança coletivo é um acinte contra o princípio básico da presunção de inocência e da preservação dos direitos individuais em face da investigação. Esse equilíbrio que tem que haver entre os direitos individuais e investigação policial. Aí não tem nenhum equilíbrio, e as pessoas acham normal. Nós tivemos, pelo Conselho, reuniões muito duras com o comando anterior da Polícia Militar e eles diziam “professor, o que vocês querem que a gente faça? Que a gente não cumpra com o nosso trabalho?”. Nós retrucamos: “o trabalho de vocês não é violar lei, violar Constituição!”. E eles insistem: “Não, mas tem um monte de arma aí que a gente tem que procurar.” Mais grave ainda. Não é só uma coisa ilegal, imoral, mas é uma burrice profunda, porque o trabalho da polícia depende fundamentalmente da confiança das pessoas, das informações que as pessoas fornecem. Princípios: E os policiais que não estão nas UPPs estão concentrados nos bairros de classe média. O resto da periferia fica descoberta. Ignacio Cano: Exatamente. E, quando a gente pensa a cidade, uma coisa interessante é a seguinte: pessoas com maior poder aquisitivo, das classes média e alta ajudam a pagar com seus impostos a escola pública e o hospital público, mas, em geral, não os utilizam, preferem colocar os filhos em escola particular e pagar plano de saúde. Assim, pode-se dizer que há uma certa trans- 36 Fernando Frazão/Agência Brasil Capa Casos ruidosos como o desaparecimento do auxiliar de pedreiro Amarildo de Souza desgastaram a imagem da polícia pacificadora junto à população. Mas para Ignacio Cano, o fim das UPPs não resolve o problema. É preciso corrigir os rumos de sua implementação Princípios: O crescente discurso de direita contra os direitos humanos, do tipo que espalha absurdos como “bandido bom é bandido morto” e defende grupos de justiceiros... de certa forma acaba referendando este comportamento da polícia, não é mesmo? Ignacio Cano: Sem dúvida. Tem uma pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, publicada em 2008, que mostra que 32% dos brasileiros concordam totalmente com a frase “bandido bom é bandido morto” e 11% concordam parcialmente. Ou seja, temos 43% da população apoiando extermínios. Então, caras como (o deputado Jair) Bolsonaro não se elegem a si mesmos, tem um monte de gente que os escolhe e isso é um processo de transformação que a gente precisa encarar. Agora, se eu sou um gestor da segurança e sei que a vida dos meus policiais e a tranquilidade dependem da confiança das pessoas, se eu entro chutando porta, eu estou atirando no meu próprio pé. Então, inclusive do ponto de vista da segurança mais tradicional, fazer isso é uma grande burrice. Mas eles não conseguem sair disso, porque as elites, e parte da população, acham que é isso mesmo: segurança pública é guerra, e guerra se faz assim. Tem que chutar porta, tem que procurar as denúncias seja lá onde for. Isso é um erro estratégico. Princípios: Puxando para um exemplo recente, com isso que está acontecendo no complexo da Maré você acha que o governo age certo mandando tropas federais para lá? Ignacio Cano: Eu acho que o Exército não tem uma função de segurança pública, é um desvio de função. A doutrina é diferente. Há muitos paradoxos, porque, provavelmente, o exército brasileiro atua no Haiti respeitando mais os direitos humanos dos haitianos do que várias polícias militares no Brasil. Então há paradoxos, mas a função do exército não é essa, de atuar como polícia. Não se deve chamar, a princípio, forças militares para a função de segurança. Outra coisa é a força nacional. Por exemplo, a Polícia Federal etc. Agora, não é segredo para ninguém que a intervenção na Maré, basicamente, é para garantir segurança na Copa do Mundo e no deslocamento das pessoas entre o aeroporto e a cidade. É isso. Princípios: Mas isso não é necessário? Ignacio Cano: É, mas a gente não pode acreditar que foi uma operação para melhorar a segurança do Rio em geral, porque é algo pra Copa, eleição, enfim. Vamos ver até quando durará. Não é uma operação de longo prazo, é uma operação de curto prazo. O precedente do Morro do Alemão acho que é muito esclarecedor. Na época, eu me manifestei contra a operação do Alemão e fui uma voz extremamente minoritária. Muita gente falou “Estamos tomando o quartel--general do crime”. Continuamos nessa lógica militar. “Eles são o nosso inimigo é nós temos que tomar o quartel general.” Entrar no Alemão supôs: trazer forças militares durante muito tempo e comprometer um contingente militar muito elevado – o que não vai resolveu a situação porque o Alemão 37 130/2014 hoje continua fora de controle. Portanto, investiram com isso. Mas o problema é que se a gente aceita que recursos que poderiam ser usados para criar muitas melhorias urbanas e sociais estão atreladas à interUPPs em locais muito violentos (não que o Alemão venção de segurança e a intervenção de segurança é não seja) e não resolveram o problema. Mas, na épomuito desigual, a gente tá aumentando a desigualca, a opinião pública apoiou porque achava que era dade. Foi o que eu falei para o Ricardo Henriques a tomada dos territórios centrais do inimigo. Então, na ocasião: “Ricardo Henriques, se eu sou um jovem a gente tem que acabar com essa lógica. A lógica da da zona oeste, que razão eu teria pra apoiar as UPPs intervenção tem que ser para onde a gente pode prequando os investimentos sociais vão ser dirigidos, servar o maior número de vidas. Onde vai conseguir sobretudo, às áreas pacificadas que nunca vão ser diminuir o número de homicídios. Caso contrário, a minha? O risco, inclusive, mais macro das UPPs vamos apenas procurar o efeito simbólico de golé tornar o modelo de segregação do Rio, que é um pear. Inclusive nas últimas semanas e meses, com modelo muito particular, com pequenos territórios, essa crise das UPPs e da segurança pública do Rio de alta e baixa renda, convivendo em espaços rede forma mais ampla, muita gente, muitas matérias lativamente reduzidos. Segue o modelo tradicional jornalísticas, estão nessa linha de “ah, tem que dar de centro e periferia, com o centro pacificado com o troco.” Não existe troco, não estamos combatendo maiores condições de vida e uma periferia violenpela honra dos exércitos. Estamos ta e pobre. E em termos das UPPs combatendo pela segurança da gera também, sobretudo em áreas população. Aliás, “combatendo” nobres, uma revalorização dos ter“Sou crítico dessa nem é a palavra certa. renos muito grande, favorecendo a lógica de que as especulação imobiliária. Princípios: Aquela segunda fase Essa intervenção do Estado faz UPPs devem ser das UPPs de levar serviços púcom que o valor do imóvel, o valor privilegiadas com blicos para a comunidade não do território, o preço do solo, subam está sendo efetivada? muito e corre o risco, também, de investimentos Ignacio Cano: Não. Em algumas comudar as populações. Expulsar as sociais. Se a gente munidades houve um investimenpopulações mais pobres e atrair poto razoável; em outras, um pepulações mais ricas. Esse processo só investe onde está queno investimento; em muitas, pode acabar nisso, centro pacificapacificado significa não houve investimento nenhum. do e periferia pobre e violenta. Mas, Agora, eu sou crítico também desagora, até esse centro está em crise. que estamos sa lógica. E venho manifestando A crise atual não é só uma crise ao condenando as áreas modelo seletivo, é uma crise no coisso há algum tempo. Já conversei sobre isso com o Ricardo Henração, do cerne do projeto que está não pacificadas, riques, da UPP Social. Eu acho a agora sofrendo retrocessos, casos de que são a maioria, lógica de “uma vez pacificado vaviolência, mortes de policiais, mormos investir socialmente” é uma tes de civis. a continuarem na lógica equivocada. Primeiro: não violência e miséria” é verdade. Toda a vida investiu-se Princípios: O projeto da UPP teem locais não pacificados. Favela, ve inspiração em experiências bairro ou parque, em qualquer luocorridas em outros países. gar cabia oportunidade de investimento público. E, Apenas copiaram o modelo ou adaptaram pade fato, as melhores condições de habitabilidade, de ra a realidade do Rio? Ele poderia ser aplicado saneamento das comunidades se dão sem pacificatambém em outras cidades brasileiras? ção nenhuma. Então, não é verdade que é preciso ter Ignacio Cano: Acho que ele foi concebido, sim, para UPP paras investir. Dois: se a gente só investe onde a realidade do Rio. Tanto é que quando as pessoas está pacificado significa que estamos condenando perguntam para a gente “será que não daria pra as áreas não pacificadas, que são a maioria, a conimplantar em tal lugar?” dizemos que só faz sentinuarem na violência e miséria. Então, a lógica de tido UPP se houver controle territorial por grupos investimento deveria ser um investimento de acordo armados e tiroteios constantes. Se você não tiver com as carências das pessoas e não casada com a essa situação, a UPP é um investimento muito caro lógica da pacificação. Sempre dissemos: “olha, tem e que não necessariamente resolve seus problemas. que entrar com polícia só no início, mas tem que enAs UPPs são um projeto para combater o tráfico, trar com escola, com hospital...” Todos concordamos basicamente para o tráfico. 38 Capa Outro tipo de dominação que nós temos no Rio: grupos de extermínio. O grupo de extermínio não controla a entrada nem a saída do território, mas está todo dia lá com o fuzil. O grupo de extermínio vai de noite lá e mata quem acha que tem que matar. Então, colocar UPP, por exemplo, em uma área de extermínio, provavelmente não vai conseguir evitar essas mortes e vai sair muito caro. Um outro problema do projeto é que a Polícia Civil nunca foi incorporada nele. Sempre foi, e ainda é, um projeto da PM. Claro que a PM tem que ter um papel central, mas a Polícia Civil, a investigação, tem que ter um papel no projeto. Sugerimos ao governo a criação de algumas delegacias especiais de investigação para UPP, para pegar os casos mais graves e resolver logo. Eles nem responderam à sugestão. Enfim, acho que o projeto foi desenhado, sim, para a nossa realidade, mas continua no piloto automático, sem ajustes, sem uma melhor focalização. E o que nós estamos vendo hoje é o desgaste de um projeto que não conseguiu ir para onde deveria. Mas, certamente, é uma alternativa muito melhor do que a gente tinha antes. Princípios: A política de segurança pública do governo do Rio hoje está basicamente focada nos problemas das comunidades. Vocês, no grupo de estudos daqui da UERJ, têm propostas ou políticas de segurança específicas para o conjunto da cidade? Ignacio Cano:: Sim, a gente faz muitas propostas. E, embora a UPP seja mais visível, tem outras políticas também muito importantes. A criação de metas para os policiais para reduzir três indicadores de criminalidade é um dos exemplos. E a introdução das mortes pela polícia no indicador de homicídio foi essencial para inibir a violência policial. Em 2007, a polícia do Rio reconheceu que matou 1300 pessoas. Matou muito mais, com certeza, mas reconheceu 1300 casos. No ano passado, foram 400. O número ainda é elevadíssimo, maior do que em qualquer outro Estado, mas houve uma redução importante. Em comparação à população e ao contingente policial, a PM do Rio mata muito mais do que a de São Paulo. A estratégia aqui é a guerra. As pessoas não têm muita noção, mas foi essencial a criação da divisão de homicídios. Tem várias políticas que estavam dando certo, o problema é que ficaram no piloto automático, ninguém avaliou, ninguém Naldinho Lourenço Princípios: Várias unidades de UPP foram atacadas. Existe uma lógica comum para estes ataques ou cada local tem uma motivação? Ignacio Cano:: É uma história complicada. Ataques à UPP existem há muito tempo, não são de agora. Agora concentrou, mas a percepção é de que antes não existia nada e agora estão atacando todas as UPPs. Existiram ataques sobretudo em determinadas regiões: Alemão, Manguinhos e acho que Lins. O governo apresentou isso como um ataque contra as UPPs no seu conjunto, e usou isso como argumento para discutir sobre ajuda federal e, no final, a ajuda federal nem sequer foi para essas UPPs atacadas, foi para a Maré. É preciso olhar para isso com muito cuidado, porque, por exemplo, da outra vez a situação que deflagrou a intervenção no Alemão, na ocupação de 2011, foram aqueles incêndios a carros. Estavam queimando vários carros em vários lugares da cidade. Isso foi apresentado como um ataque às UPPs. Isso não é uma versão muito sustentável. Primeiro, porque se tivessem decidido atacar as UPPs, teriam atacado antes das eleições, para colocar o governo contra a parede, não depois. E, segundo, porque aqueles ataques não eram contra PMs da UPP. Não faz sentido queimar carro em um lugar qualquer da cidade para atacar a UPP. Mas foi essa a desculpa que o governo usou. Vista da sede provisória do BOPE, no alto do Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas, zona norte do Rio 39 130/2014 Princípios: O caso da ajudante Cláudia Silva, arrastada por um carro da PM, se não tivesse sido filmado a história seria outra, não é mesmo? Ignacio Cano: Completamente. Não teria dado a repercussão que teve, pois a cobertura da imprensa tende a ser muito antidemocrática. Ela privilegia crimes contra pessoas de alta visibilidade, em áreas nobres da cidade. E sempre foi assim no Rio de Janeiro. Lembro que, na época do Garotinho, morreu uma menina filha de um joalheiro. Aquilo pautou a imprensa durante semanas. E pauta a própria política pública, não só a imprensa. Em nenhuma outra área eu acho que a imprensa tem tanto poder para pautar política pública. Esse poder tem que ser usado, mas tem que ser de uma forma mais criteriosa, privilegiando informações mais democráticas e que abordem a conjuntura da população, e não só o caso específico. A história tem que servir para exemplificar um fenômeno e não paPrincípios: A corrupção policial ra nos concentrarmos apenas nela. é um problema crônico no Rio? Outro problema é o discurso “A mídia tem um Ignacio Cano:: É um problema não só mais truculento, da repressão, do papel central na da polícia, mas do aparato do Estado endurecimento penal. Esses prono geral. Eu acho que a corrupção é gramas especiais de segurança na divulgação das endêmica no Brasil, em especial no TV costumam ser uma tragédia. denúncias. Mas, Rio de Janeiro. Tem vários indicaPerpetuam essa guerra ao crime, dores disso. Os dados da Ouvidoria essa política falida, estimulam a por outro lado, tem de Polícia mostram que a proporção violação dos direitos humanos, a um papel negativo de casos de corrupção mais alta é no satanização dos criminosos, o desRio de Janeiro. O INSS, por exemprezo pela vida dos outros, desde nessa cobertura plo, tinha uma força tarefa contra a que o outro seja considerado inimiainda muito corrupção, e a corrupção mais elevago. É preciso combater este tipo de da era também no Rio. programa pela via da informação e sensacionalista e da educação. Não é possível proimuito pautada para Princípios: Como você vê o papel bi-los, então tem que esperar um da mídia na cobertura desses dia em que as pessoas não assistam casos individuais” temas policiais e de segurança mais e as televisões percebam que pública? outros tipos de programa têm mais Ignacio Cano: É ambíguo. Por um lado, se não tivésseaudiência do que esses. mos a mídia, estaríamos muito piores. A mídia tem um papel central na divulgação das denúncias. Mas, Princípios: O Laboratório de Análise da Violência por outro lado, tem um papel negativo nessa coberestá preparando mais alguma pesquisa sobre a tura ainda muito sensacionalista e muito pautada situação da segurança pública? para casos individuais. Para eles, importa mais os Ignacio Cano: Estamos fazendo uma pesquisa sobre o casos de grande repercussão do que os índices, por impacto da violência no acesso à saúde nas favelas. exemplo. Devia ser o contrário. Porque nossa seguOutra sobre o uso da força pela polícia, entrevistando rança depende muito mais da estatística dos homicípoliciais. E estamos preparando também uma pesdios do que dos casos de grande repercussão, mas a quisa sobre programa de prevenção ao homicídio na mídia procura uma história, uma história dramática, América Latina. A gente nunca para. e pauta a cobertura por isso. E o que acontece em *Cláudio Gonzalez, editor executivo de Princípios, e geral, com algumas exceções, é que os casos envolCaíque Tibiriçá, coordenador da seção fluminense vendo pessoas de maior poder aquisitivo, de maior da Fundação Maurício Grabois, entrevistaram visibilidade, têm uma cobertura mais ampla. Então, o professor Ignacio Cano no campus da Uerj, na um roubo numa área nobre gera muito mais repercidade do Rio de Janeiro, em 2 de abril de 2014 cussão do que numa área pobre. corrigiu. E eu acho que houve uma certa ingenuidade em pensar que essas políticas sozinhas iam conseguir uma diminuição dos índices ad eternum. Por exemplo, se eu crio premiação policial para diminuir determinado crime, vou conseguir que a polícia focalize sua atividade nesses indicadores. O que é bom. Agora, depois que a polícia fez isso, é preciso dar passos adiante. Não é porque você continua premiando que os índices vão continuar diminuindo necessariamente. Então, acho que houve esse problema. Outra questão: falta uma política para a área de milícia, para recuperar o controle de território da milícia. Falta uma política para transformar a polícia e esse paradigma que está aí de vez num paradigma de proteção da comunidade. Então, falta muita coisa. Mas a gente estava indo num rumo positivo, agora a gente não tem mais certeza disso. 40 Capa Cidades incompletas Em busca de cidades inclusivas e integradas (na contramão da lógica capitalista) – com um ordenamento territorial social e ambientalmente justo – é preciso resolver pontos fundamentais como o fato de que o planejamento deveria ser uma questão de Estado e não de governos A Ana Paula Bueno* cidade – palavra originária do latim civitas/ atis – é o locus privilegiado da vida social que produz um modo de vida que se constrói em espaços cada vez mais concretados e desumanizados. Para entendê-la é preciso estudos multidisciplinares que buscam, entre outros objetivos, propor cidades mais solidárias. Devido às constantes transformações das cidades mudaram-se conceitos, acrescentaramse adjetivos, mas a palavra em si se manteve por todos esses séculos desde a Antiguidade. Em contraponto ao campo, o urbano – também do latim ubs/ urbis –, entendido mais como fenômeno e não como objeto, seria a qualidade de um tipo de cidade, caracterizando-a por sua dimensão, população, formas e funções. Em linhas gerais, para se ter uma referência, foi mediante as revoluções técnicas ocorridas nos séculos passados, que proporcionaram amplo desenvolvimento das cidades e, após a Primeira Revolução Industrial (1760-1840), forte processo de urbanização no mundo. Entretanto, o processo de urbanização se deu principalmente a partir dos anos 1940. Daí surge o termo metrópole (do grego mhtro¿-polij “cidademãe”, “capital”) (1), que para os dias atuais se refere a grandes cidades, algumas sendo relativamente as mais importantes para seus países, estado ou região. A gênese das grandes cidades decorre da necessidade de agrupar contingentes de trabalhadores próximos das indústrias, num movimento denominado por Marx como processo de acumulação primitiva. Assim, o processo de urbanização está diretamente 41 130/2014 ligado à industrialização ocorrida no mundo. Em volvidas para a época, servindo de atrativo para a alta países desenvolvidos, esse processo se deu de modo industrialização e consequente urbanização, cujo marmais lento por diversos fatores, inclusive teve cresco se deu com relevância a partir da década de 1970. cimento retardado pela Segunda Guerra Mundial. Tal processo expansionista causou uma explosão de Com isso, cidades da Europa tiveram baixo crescicrescimento desordenado da metrópole paulistana, mento da população urbana. Enquanto na antiga recebendo migrações do interior do Brasil e de outros União Soviética, mais especificamente em Leninpaíses. A capital cresceu de tal modo que varia sua cogrado e Moscou, observou-se o inverso, ou seja, alto locação, mas permanece há décadas entre as primeiras crescimento da população urbana com taxas próxi10 maiores cidades do mundo em área e população. mas às de cidades da América Latina, Ásia e África Milton Santos trata da fragilidade das cidades – numa média de 4,5% nos anos 1950, 1960 (2). menos estruturadas em resistir aos novos fatores de Interessante observar que na transformação, afirmando que “O América Latina o alto crescimento crescimento da população urbana populacional dos centros urbanos é muito mais nítido e acelerado A necessidade se deu principalmente pelo êxodo nos países subdesenvolvidos que de ampliação de rural, causado por um desequilíbrio nos países desenvolvidos” (SANna economia, com maiores investiTOS, 2008). redes de conexão e mentos na indústria, por um lado, Tais considerações são imporrápida mobilidade e, por outro, pela desvalorização da tantes com o propósito de se conprodução agrícola e má-distribuitextualizar o processo de urbaé uma questão de ção de terras com concentração e nização mundial e compreender primeira ordem; formação de latifúndios, criando-se fatores determinantes no acele– como diz Santos (2008) – uma esrado e desordenado processo de todavia, para se trutura agrária repulsiva. Ao mescrescimento, principalmente, das alcançar a fluidez mo tempo, as cidades se tornaram grandes cidades brasileiras. atrativas devido à oferta de empredesejada, é preciso gos proporcionada pelo desenvolviCidade formal X cidade mudar a lógica da mento do meio técnico-científico e informal às possibilidades apresentadas nos exclusão social, novos espaços em expansão. Tais O crescimento desordenado das aproximando processos acabaram gerando a dicidades é quase sinônimo de urbacotomia campo x cidade: repulsão nização no Brasil, causou diversos empregos e conflitos e disputas pelo uso e prodo campo e atração da cidade. moradias priedade dos espaços e, além de Remetendo a análise para o catudo, é fortalecido pela especulaso brasileiro o resultado demográção imobiliária – que supervaloriza fico desse processo de urbanização, áreas e imóveis, inviabilizando o acesso e permanênprincipalmente no século XX, foi o inchaço de alcia, residência, de grande parte dos trabalhadores sem gumas cidades, principalmente no Sudeste, com recursos para os altos valores da cidade formal, sendo, um fluxo migratório tão denso e forte que marca assim, expulsos para as margens da metrópole em sua o país, antes predominante rural passa a ser urbamaioria – outra parte de trabalhadores (ou não) acaba no, gerando inversão nos dados demográficos. O margeando avenidas ou sob viadutos da metrópole. movimento migratório foi à época maior que a taFruto do desenvolvimento de uma racionalidade xa de natalidade nos centros urbanos. Para se ter econômica e técnico-científica nota-se uma necessiuma ideia a população urbana que era de 31,24% dade de crescimento urgente numa dinâmica espaçoem 1940 cresceu de 5% a 10% em média/por décatemporal acelerada, característica do período contemda, até os anos 1990. Já nos anos 2000 a taxa de porâneo (SANTOS, 2008). Assim, a necessidade de urbanização reduziu a 3% em média/por década. ampliação de redes de conexão e rápida mobilidade é Último senso do Instituto Brasileiro de Geografia e uma questão de primeira ordem; todavia, para se alEstatística (IBGE) aponta que em 2010 a população cançar a fluidez desejada, é preciso mudar a lógica da urbana no Brasil era de 84,36%. exclusão social, aproximando empregos e moradias. Em meio a esse processo de urbanização no BraFato é que com a urbanização desenfreada, com sil, a cidade que mais cresceu foi São Paulo. Desde o explosão demográfica, são criadas mais e mais deestado de São Paulo à sua capital foram favorecidos mandas de moradia, infraestrutura, acessibilidade pela existência de redes de transportes já bem desen- 42 Em muitos casos, o mosaico da região metropolitana é resultante da ligação da metrópole com suas áreas circunvizinhas etc., gerando problemas diversos devido ao despreparo dos municípios frente a tais necessidades surgidas. Resultado disso é o desdobramento de um processo em paralelo à urbanização: a favelização – que se deu fortemente a partir dos anos 1980. A favelização se dá essencialmente nas áreas periféricas da metrópole, onde se observa um crescimento exponencial da população que constrói informalmente seus espaços, suas moradias, comércio, ruas etc., e se configuram, assim, na chamada cidade informal e/ou ilegal, que se desenvolve sem apoio do Estado, sem infraestrutura, acarretando graves problemas ambientais e de saneamento, entre outros, proporcionando baixa qualidade de vida à maioria da população (3). Em muitos casos a expansão das áreas periféricas é tão extensa que acaba se ligando a metrópole às cidades vizinhas, formando o mosaico da própria região metropolitana. Como ainda não se alcançou – mesmo com muitos esforços legais e práticos – um planejamento realmente integrado e inclusivo nas grandes metrópoles, o que comumente ocorre é certo padrão no modo de “fazer cidade”, com uma metropolização desigual e caótica, consolidando a criação de espaços duais: centro X periferia. Nas áreas centrais, na cidade formal e/ou legal, há uma modernização constante devido à concentração de recursos num espaço já privilegiado por farta infraestrutura, com integral acessibilidade. Essa modernização também se dá sob outro aspecto, o da revitalização do centro, demolindo alguns prédios/imóveis, construindo novos ou reestruturando e dando novos usos a outros. Fato é que se oneram a cada dia mais a vida e o consumo nesses espaços, tornando-os inacessíveis à maioria da população. Outra esfera de problemas ocorridos nas cidades é a ambiental. As situações mais graves ocorrem nas áreas periféricas, na cidade informal, onde há uma precariedade das condições de vida urbana, geran- Capa do problemas socioambientais e situações de risco por ocuparem beira de córregos, encostas íngremes, por exemplo – o que afeta tanto o espaço físico quanto a saúde pública. A soma desses fatores tem como consequência degradações ambientais e muitas vezes desastres sociais (e mortes) causadas por enchentes ou deslizamentos de terra nas encostas. Ademais, como afirma Santos (2008): “É inegável que o desenvolvimento tecnológico (entre outros) provoca mudanças no ritmo da relação sociedade-natureza. Novas escalas espaço-temporais e também novas representações são construídas a partir desta aceleração pela sociedade em seu cotidiano”. Torna-se, então, questão de ordem a incorporação da cidade informal à cidade propriamente dita não só para atender à função social urbana como também para a requalificação de áreas degradadas da ordem dos interesses difusos (ambientais) – aqueles que não são nem públicos nem privados, mas de interesse e responsabilidade de todos. E aí ocorre um novo conflito: entre a proteção ambiental e o direito social de acesso a uma moradia. Há necessidade urgente de programas de reconstrução das periferias, concomitante à proteção ambiental, que compreendam a inclusão econômica e social e atendam às demais necessidades das populações residentes nessas áreas. Em busca de uma cidade completa Devido a uma luta de anos – com papel fundamental dos movimentos sociais – em julho de 2001 foi aprovada e sancionada a Lei 10.257, o Estatuto da Cidade, que estabelece diretrizes gerais da Política Urbana do país – regulamentada nos capítulos 182 e 183 da Constituição de 1988. Mesmo que tardiamente, de certa forma, visto a urbanização caótica já estar desenvolvida, o Estatuto tem importante papel na ordenação do território visando ao cumprimento das funções sociais da cidade e à garantia de bem-estar de seus habitantes. O Estatuto dispõe e orienta uma gestão democrática com participação da comunidade no desenvolvimento urbano, além dos estudos multidisciplinares executados por especialistas na questão urbana. A Lei prevê a ordenação do território, controle no uso do solo e o desfavelamento. Elenca de modo geral os instrumentos da política de desenvolvimento urbano, dispondo sobre o parcelamen- 43 130/2014 to, a edificação e a utilização compulsórias, o direito de preempção, o de superfície e de usucapião especial coletivo (MUKAI, 2001). O debate sobre o Plano Diretor Estratégico de São Paulo Na ordem do dia está em ampla contenda a ordenação territorial da cidade de São Paulo na revisão do Plano Diretor do município. Assim, São Paulo está fazendo o necessário e obrigatório, segundo o Estatuto da Cidade, enfrentamento no planejamento urbano – intrínseco ao Plano Diretor. Foi encaminhado à Câmara Municipal pela Prefeitura, em 26 de setembro de 2013, o Projeto de Lei de Revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) – PL 688/13, que depois segue para o Legislativo para dar continuidade à revisão, conduzindo o processo final de participação coletiva. A revisão do PDE objetiva o estabelecimento de um novo modelo de desenvolvimento urbano diretamente ligado ao enfrentamento das expressivas desigualdades socioterritoriais presentes na cidade de São Paulo, conforme descrito nos documentos do site da Prefeitura (4). Entre as discussões do PDE há propostas de reorganização do crescimento vertical da cidade, onde em bairros já verticalizados, como Pompeia e Moema, por exemplo, e com pouca oferta de transporte público, só serão permitidos edifícios com até oito andares. Já em áreas onde serão construídos novos corredores de ônibus – segundo o projeto de 155 quilômetros até 2016 – serão permitidos prédios com até 42 metros de altura às margens das grandes avenidas. O projeto para o novo PDE de São Paulo visa ao aumento em 20% de terrenos destinados às “habitações de interesse social” (voltadas às famílias que recebem até seis salários). Mas há uma grande polêmica, gerando manifestações de sem-teto, com relação à construção de moradias populares (Cohab e Minha Casa Minha Vida) no entorno da Represa Billings, que é área de proteção permanente e tem hoje considerável número de invasões. Se a proposta do prefeito Fernando Haddad for aprovada essas construções serão viabilizadas. Em busca de cidades realmente inclusivas e com ordenamento territorial justo, social e ambientalmente, é necessário que o planejamento urbano vise ao estudo integrado da região metropolitana, considerando seu entorno e as cidades vizinhas que contribuem numa relação sob aspectos positivos e negativos à metrópole. E uma questão fundamental é a compreensão de que o planejamento deve ser de 44 ordem do Estado e não de planos de governo, pois necessitam de planos de longo e médio prazo que independem de uma política dessa ou daquela administração governamental. Também não se pode esquecer que a desordem no desenvolvimento das cidades mundiais segue a lógica capitalista do laissez faire, laissez passer (deixai fazer, deixai passar) que não visa ao bem-estar social da maioria da população, mas ao contrário, privilegia uma minoria e exclui a grande parte dos trabalhadores. *Ana Paula Bueno é urbanista e da redação de Princípios Notas (1) Metrópole, do grego metropolis, refere-se às cidades centrais de áreas urbanas formadas por cidades ligadas entre si fisicamente (conurbadas). E pólis (cidade-estado) era o modelo das antigas cidades gregas, importantes no desenvolvimento daquela civilização. Na Grécia Antiga a pólis era um pequeno território localizado geograficamente no ponto mais alto da região, com características de uma cidade. (2) Os dados apresentados foram retirados do livro Manual de geografia urbana, de Milton Santos, 3ª ed., 2008. Por não constarem fontes de informação, como instituição ou órgão de pesquisa, deduz-se com sendo resultados de pesquisas do autor. (3) Cidade formal/legal e cidade informal/ilegal são termos cunhados em Grostein, 2001. (4) O site da Prefeitura também apresenta um sucinto histórico dos Planos anteriores e relata: “O Município de São Paulo possui um Plano Diretor Estratégico aprovado em 2002 (Lei 13.430/02). Ele estava programado para ser revisto em 2006, mas a proposta de revisão não foi concluída. Por isso os trabalhos foram retomados através da realização de um processo amplo e democrático de discussão que resultou no Projeto de Lei de revisão do PDE enviado à Câmara”. Quanto as etapas do PDE: “Essa revisão ocorreu em 4 (quatro) etapas de trabalho: (I) avaliação temática do plano vigente; (II) oficinas públicas para levantamento de propostas, realizadas em todas as subprefeituras; (III) sistematização das propostas recebidas e (IV) devolutiva e discussões públicas da minuta do projeto de lei. Acesse as ferramentas digitais que auxiliaram no processo participativo”. Referências bibliográficas GROSTEIN, Marta Dora. Metrópole e expansão urbana: a persistência de processos “insustentáveis”. São Paulo em Perspectiva, São Paulo: v. 15, n. 1, p. 13-19, jan./ mar.2001. LENCIONI, Sandra.Observações sobre o conceito de cidade e urbano. In GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, pp. 109 - 123, 2008. MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade: anotações à Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. São Paulo: Saraiva, 2001. PREFEITURA DE SÃO PAULO, Desenvolvimento Urbano: http://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/novo-plano-diretorestrategico/ Economia Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo “Concepções que levaram o país à crise predominam porque se originam naqueles que têm o poder real” Por Adalberto Monteiro, Osvaldo Bertolino e A. Sérgio Barroso* Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o Brasil passa por um momento importante para se compreender o esquadro da polêmica sobre a realidade e a perspectiva da economia brasileira. Com a aproximação das eleições presidenciais, as posições polarizadas entre governistas e oposição retratam as contradições da sociedade brasileira, a visão dos que melhoraram de vida e a dos que criticam o governo da presidenta Dilma Rousseff por uma questão de classe social. Ao mesmo tempo, alerta, é preciso manter os olhos bem abertos para problemas estruturais, como a inflação e a desindustrialização, e os efeitos da crise mundial 45 130/2014 Princípios: Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o senhor disse que o governo da presidenta Dilma Rousseff estava cedendo às pressões do sistema financeiro ao elevar seguidamente a taxa básica de juros. Ocorre que as “pressões inflacionárias” permanecem, apesar da elevação dos juros. Como resolver essa equação? Belluzzo – Quando mencionei que a Dilma estava sendo pressionada pelo sistema financeiro, estava falando de uma coisa mais ampla. Estava falando das restrições que são impostas à política econômica pela agenda que foi criada faz tempo pelos mercados financeiros. A crise, ao contrário do que se imaginava, não conseguiu mudar essa agenda, a despeito de todos os erros de avaliação que foram cometidos sobre o período anterior à crise — a ideia da grande moderação, de que havia sido conquistada a batalha contra a inflação, que as economias tinham pouca volatilidade, tanto das taxas de juros, quanto das taxas de crescimento. Tudo isso foi por água abaixo quando ocorreu a crise. Na verdade, até mesmo se pode dizer que esses são considerados pontos fortes da agenda, digamos, dos mercados financeiros e foram exatamente os fatores que levaram à crise. Li agora alguns trechos de uma espécie de seminário que o Fundo Monetário Internacional (FMI) fez sobre política monetária em que, até por conta da presença de algumas pessoas de lá, está se tentando fazer uma autocrítica e uma crítica do que foi proposto no período anterior, das convicções e das verdades que foram afirmadas anteriormente. No entanto, na Europa, nos Estados Unidos e em quase todos os países — a exceção da China, que não dá a menor bola para essas coisas —, inclusive na América Latina, e no Brasil em particular, essas convicções estão muito firmadas. E de uma maneira pouco crítica. Aqui no Brasil há um grupo de economistas, sobretudo esses que hoje estão acolitando os candidatos de oposição, com certezas construídas sobre hipóteses muito frágeis. O que eu disse, é preciso que se interprete. Não é que a Dilma está cedendo às pressões. Na verdade, é que há um consenso dentro de certos estamentos e escalões da sociedade que fazem uma crítica à política econômica partindo desses pressupostos que foram os fautores da crise. Então não há nenhuma visão crítica. A visão crítica fica por conta de poucos, que na verdade estão em posição minoritária no debate. É uma coisa um pouco mais ampla; uma coisa das relações de poder e da correlação de forças dentro da sociedade. Não estou querendo dar uma visão economicista, tecnicista disso. Estou querendo dar uma visão 46 política. Por que essa visão, que levou à crise, continua predominando no Brasil? Porque, na verdade, quem tem o poder real são eles. Não só através do controle da finança diretamente, mas indiretamente pela formação de um consenso dentro dessa camada dominante, que pega inclusive os industriais que não têm muita noção de qual é o interesse deles. Aliás, eles têm noção; o que não sabem é fazer o que os antigos faziam, como Roberto Simonsen. Isso foi muito desorganizado a partir do fim do regime militar. Compramos toda a tralha neoliberal, que foi vendida a preço módico, e Fernando Henrique Cardoso comprou pelo valor de face. E fez o que fez. Isso sim foi o verdadeiro fracasso das políticas que eles adotaram. Conseguimos navegar por entre essas dificuldades e durante o período de 2003 a 2007 e 2008, por conta até da mudança nas condições internacionais, da presença de uma demanda forte de commodities, conseguimos ir ajeitando isso. Mas com custos. Então, o que eu digo é que no momento em que podíamos ter saído da crise de 2008, no momento em que a economia começou a ter uma taxa de crescimento menor, esse coro, esse consenso começou a ficar muito mais forte, pedindo que a gente adotasse uma cartilha mais conservadora, mais ortodoxa. Vamos chegar à questão da inflação aqui. O Brasil tem uma taxa de inflação que oscila entre 5,5%, há um tempão, há uns dez anos. Está em 5,5% e 6%. O problema da inflação no Brasil é o da persistência, da resistência. Outro dia eu estava lendo um artigo que dizia que a política monetária no Brasil tem menos eficácia do que em outros países. Claro, porque temos a memória inflacionária. Tem aí um conjunto de preços que estão indexados informalmente e que, a qualquer choque, eles repercutem de maneira muito negativa para a taxa de inflação. Vou dar um exemplo muito claro: se o preço do tomate sobe e provoca uma subida da taxa de inflação em um determinado momento, digamos, em um trimestre, isso é repercutido pelo sistema de indexação. Essa herança de um período de inflação alta nos obriga a ter muito cuidado com a inflação. Se ela ganha força, fica mais difícil para o Banco Central, com o manejo da taxa de juros, jogá-la para baixo. Outra questão é a política de metas de inflação. Como estão se administrando as expectativas, quanto mais rápida for a reação do Banco Central, menor o custo em termos de emprego e renda. Só que no Brasil, dado o fato de ter essa rigidez para baixo, é preciso botar a taxa de juros em um nível que produza um efeito muito ruim sobre o nível de atividade e emprego. Esse é um problema que a gente tem de tratar com muito cuidado. Se observarmos a reação do pes- Economia que a política monetária americana tem sobre as economias de moeda não conversível. À exceção da China, que tem US$ 4 trilhões de reservas, e, portanto, não sofre um abalo tão grande quando muda a política americana. Logo que ocorreu o primeiro anúncio de que ia haver essa mudança, houve reações por parte da política monetária de outros países, como o Brasil. O importante é o seguinte: mesmo com a taxa de 7,25%, ainda era muito bom fazer arbitragem. É um tipo de chantagem, digamos. Quando os americanos mudaram a taxa de juros, o que eles começaram a dizer? Vai diminuir o fluxo de recursos para o Brasil! O Brasil já estava com déficit em conta corrente, começaria a ter problema na conta de capital. Essas assimetrias do sistema monetário internacional são muito graves. Aqui eu gostaria de introduzir outra questão. Não é à toa que o Brasil está tentando caminhos alternativos. Criaram o BRICS, que é uma sigla, mas acabou virando uma prática. E eles estão montando um fundo de estabilização comum, de US$ 100 bilhões. China, Brasil, Rússia, Índia e África do Sul. África do Sul tem uma contribuição mais modesta para Se o preço do tomate sobe e provoca uma subida momentânea da taxa esse fundo de contingência. O Brasil tem US$ de inflação, isso é repercutido pelo sistema de indexação 357 bilhões de reservas, a China, US$ 4 trisoal de um a dois salários mínimos com o aumenlhões e a Rússia, US$ 470 milhões. to da inflação, ela é muito ruim. Eles sentem muito O Brasil fez um swap de moedas com a China, mais a inflação do que a ameaça de perder o emprede modo que podemos fazer transações no valor de go, aparentemente. Como eles têm emprego, agora, US$ 30 bilhões em moeda nacional sem recorrer a sentem mais a ameaça de inflação. O governo não reservas. Eles em yuan, nós em reais. Acho isso muitem força política suficiente a ponto de desconhecer to importante. Eu vou explicar por quê. Pouca gente o fato de que a população sente muito a inflação. E está vendo, mas estamos caminhando na direção da sente mesmo. Isso tem efeitos eleitorais. constituição de um espaço anti-hegemônico, constituído por China, Rússia, Brasil e Índia. Essa percepPrincípios: Como o senhor vê a oscilação da taxa ção ainda não acendeu as luzinhas dos conservadobásica de juros, a Selic? res. O que estão dizendo: o Brasil não tem relações Belluzzo – O Banco Central está sendo relativamente internacionais adequadas, não procura os acordos. moderado para não dar um choque que desorganize O Brasil está procurando corretamente o acordo que as expectativas, em vez de organizar, sobretudo de lhe convém. quem quer investir. Eles estão sendo muito cuidadoEu acho que o Brasil tem peso para fazer parte sos com a subida dos juros e com o câmbio. desse eixo anti-hegemônico. Não é antiamericano. É uma questão prática, muito prática. Não tem nada Princípios: A presidenta Dilma reduziu a taxa a ver com ideologia antiamericana. Tem a ver com básica de juros para o seu menor índice históa mudança na configuração da economia e do porico, 7,25%. Essa redução se chocou com a presder internacional. Porque, visivelmente, chineses e são muito forte ainda reinante, mesmo depois russos estão aproximando suas economias, que são da crise, que vem de fora e que se associa às altamente complementares. Uma é rica em recursos pressões do mercado financeiro interno... naturais, outra uma economia manufatureira; que Belluzzo – O que aconteceu revela um pouco qual é a não é a economia chinesa, mas ela e sua reverberanatureza da nossa inserção internacional e os efeitos ção na Ásia. 47 130/2014 Princípios: A oposição faz uma crítica contunto importante. Isso foi fundamental para provocar dente ao governo pelo que ela chama de um a ascensão dessa classe que estava inscrita entre os controle artificial de preços, referente à gasomais pobres. Essa turma que vai para o aeroporto lina, à energia... Como o senhor analisa essa e o pessoal não gosta, que está no supermercado. crítica? Nós fizemos uma análise, na Facamp (Faculdades de Belluzzo – Eu estava me referindo exatamente a essa Campinas) mostrando com detalhes, com dados, a questão dos preços indexados e administrados. Para mudança. Então, se abriu um boqueirão entre a deser franco, no ano passado, no momento mais favomanda e a capacidade de resposta da oferta. O grárável, perdemos a oportunidade de reajustar o preço fico é a boca do jacaré, como disse Yoshiaki Nakano. da gasolina de maneira que o impacto sobre a inflaIsso é o déficit industrial do Brasil, que aumentou ção seria muito menor. Fizemos uma conta e daria o déficit em conta corrente, que reduziu muito nesum efeito muito pequeno, de 0,2 pontos percentuais se último ano nosso déficit comercial, cujo resultado sobre a inflação. Nesse momento, não. Por isso eles favorável estava muito garantido pelas exportações estão insistindo tanto, porque querem que a inflação de commodities. Qual é o efeito importante disso? A suba. Estão apostando que a inflação vai subir e isso indústria está por cima com a pressão do câmbio vapode afetar as expectativas. lorizado, e por baixo com a pressão dos salários. Esse Nesse momento, olhando as pesquisas de opinião, aumento, ganho real de salário, foi acompanhado a inflação é uma preocupação maior das camadas de pela queda de preços relativos. O Brasil tem, hoje, de mais baixa renda, o que é explicável porque eles são alto a baixo, as residências com 83%, quase 90% de os que mais perdem. Então, se você famílias com eletrodomésticos, ou fosse ordenar as prioridades, já que um grupo deles. o mercado de trabalho está bastanConversando outro dia com a Palocci fez te pressionado, bastante confortáLuiza Trajano (empresária brasileivel para os trabalhadores, acho que ra que comanda a rede de lojas de uma política o governo tem que prestar muita varejo Magazine Luiza), ela estava conservadora, atenção à inflação. Tem que prestar me contando que as pessoas não muita atenção, porque ele não poentendem nada do que está aconde valorização de entregar essa arma ao inimigo. tecendo. O que está acontecendo cambial, de usar é isso: um ganho de renda real e Princípios: E a referência que uma queda importante no preço o câmbio para muitos fazem à questão do sarelativo dos duráveis. É isso que, segurar a inflação, lário mínimo? Os comentários em boa medida, está sustentando dos editoriais falam não só do esse movimento. Se pegarmos por e isso criou mais salário mínimo, mas em geral. classe social, o apoio ao governo esum período em E a receita que pregam é de retá muito concentrado lá embaixo. dução do consumo, dos invesA turma de cima, apesar de ter se que a indústria timentos públicos... saído bem, não apoia. Isso não tem foi altamente Belluzzo – Na verdade, o que estão a ver com resultado econômico. Isdizendo é que só tem um jeito: so é uma coisa de classe social. penalizada tem que aumentar o desemprego e Ou seja: não é possível dizer tirar esse poder de negociação dos que um governo que, em primeiro trabalhadores. Estamos enfrentando duas queslugar, tem origem em um partido de trabalhadores tões. Primeiro é impossível explicar o que acontee, em segundo lugar, fez as políticas que há muitos ceu com o Brasil nos últimos anos sem levar em anos gostaríamos que fossem feitas, esteja padeconta a mudança na política do salário mínimo. cendo do esgotamento do “pacto social”. No fundo Porque a política do salário mínimo funcionou coé uma questão de classe, que tem várias formas de mo uma espécie de gasto autônomo. Subiu o salário expressão, inclusive essa da política econômica cormínimo em termos reais e isso deu um forte impacreta ou não, do excesso de intervencionismo. to na demanda, porque é o pessoal que tem maior Entre os governos Lula e Dilma, qual foi o expropensão a consumir. cesso de intervencionismo? Ela mexeu no preço da Além disso, eles ganharam a oportunidade de energia elétrica que os empresários, a Federação acessar o crédito. Isso gerou um movimento de dedas Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), esmanda com impacto sobre o emprego e sobre as rentavam pedindo, porque o preço da energia era abudas dos demais; teve um efeito multiplicador muisivo, fora de propósito; era o mais alto do mundo. 48 Economia E mexeu na taxa dos juros. É como se você dissesse que há excesso de intervencionismo nos Estados Unidos porque o Banco Central americano está comprando a tralha podre que estava nos bancos. Tem excesso de intervencionismo? Isso tudo é uma retórica, muito vagabunda por sinal, sem nenhuma qualidade analítica. partir de 2004, por aí. O Palocci fez uma política conservadora, de valorização cambial, de usar o câmbio para segurar a inflação, e isso criou mais um período em que a indústria foi altamente penalizada. Mesmo depois da crise, o câmbio foi a R$ 2,40. Mas logo em seguida jogamos o câmbio para baixo, a R$ 1,60. Na minha avaliação, são vinte anos em que tivemos alguns momentos nos quais o câmbio Princípios: O senhor tem falado ficou desvalorizado para favorecer sobre a desindustrialização, o a indústria e fomos perdendo podesarranjo das cadeias produsição relativa. O que significa isso? O Brasil adotou tivas... Que a pretexto de fazermos uma as políticas mais Belluzzo – Estamos falando da perintegração à economia internacioda de posição relativa da indústria nal, fizemos uma desintegração. equivocadas brasileira nos últimos trinta anos. Porque perdemos vários elos das possíveis, porque Isso começa com a crise da dívida cadeias produtivas, que podiam externa. Tivemos dez anos de criestar integradas às cadeias de genão prestou se, ameaça de hiperinflação, vários ração de valor internacional. atenção na planos de estabilização frustrados A China fez essa integração na etc. Passamos para a década de economia mundial, na economia transformação 1990, quando a gente conseguiu das bolhas, e da globalização finanque ocorreu estabilizar a economia, porque as ceira. Fizeram uma integração com condições mundiais mudaram, o câmbio ultradesvalorizado e com na economia sem que tivesse ocorrido nada de a atração de investimentos estranmundial. E aí novo. O governo Itamar, em 1994, geiros, porque sabiam que junto ainda acumulou R$ 40 bi de resercom a globalização financeira haperdeu a chance de vas. Fez-se a estabilização porque veria um deslocamento das cadeias desenvolver suas o país conseguiu superar um esprodutivas. O que eles atraíram? trangulamento externo muito peOs americanos, os coreanos e japróprias atividades sado, que obrigava a sempre desponeses, montaram um cluster mamanufatureiras valorizar o câmbio para se manter nufatureiro asiático que tem todo o superávit. mundo lá dentro. Agora, estão parE aí começou a segunda onda de tindo para um segundo momento; perda de posição da indústria, porque valorizamos o começando a graduar as empresas deles para que câmbio. Fizemos esta valorização até a crise de 1998 possam se internacionalizar. e 1999, quando ficou insustentável aquele regime. Aqui no Brasil, tem uma discussão completaBotamos a taxa de juros nos píncaros. A taxa Selic mente equivocada de criar os campeões nacionais. ficou, em média, em 22% ao ano, em termos reais. Vamos pegar o exemplo dos países que vieram de Com o câmbio valorizado e a taxa de juros elevada, trás. O Japão, no pós-guerra, foi beneficiado, claro, evidente que não há indústria que resista. Acumupela situação geopolítica, assim como a Coreia. Folamos déficits altíssimos em conta corrente. Saímos ram muito beneficiados pelo fato de que os Estados de uma situação de um superávit pequeno, em 1992 Unidos abriram as portas. Eles construíram os seus e 1993, para um déficit de R$ 30 ou 35 bilhões em sistemas industriais em cima do modelo exportador, 1996 e 1997. Isso foi revertido com a desvalorização da construção dos conglomerados zeibatsus japoneses em 1999. e dos chaebols coreanos. Os chineses estão, na verdaDe 1999 a 2002, passamos por uma situação de de, repercutindo esse sucesso e criando as suas emcâmbio desvalorizado, mas com uma economia muipresas internacionais. to instável em que teve o apagão do Fernando HenriPorque se olhar hoje a estrutura de mercado dos que Cardoso. E quando pareceu que o Lula ia ganhar vários setores, são no máximo dez empresas a domia eleição, a taxa de câmbio foi a quase R$ 4. Vejam nar mais de 80% a 90% do mercado, em alguns casos que existe uma coisa interessante na argumentação 100%. No caso da aviação são duas, das farmacêutidos conservadores. Eles dizem que a economia brasicas são poucas. Houve uma tremenda centralizada leira foi bem durante o período Palocci. O crescimenno capital e uma dispersão geoeconômica. O jogo é to não foi bom. O crescimento começou a ficar bom a jogado entre esses caras, e os chineses sabem disso. 49 130/2014 Nós temos que nos dar conta de que para fazer essa anos, não dava para fazer nada. Ao contrário, nós integração com essas cadeias precisamos ter os marfechamos a economia involuntariamente. As imporcos regulatórios. tações chegaram a representar 3% do PIB. Isso é uma Sempre digo que os chineses leram direito O Caanomalia. Nenhuma economia pode viver assim. A pital e os russos leram tudo errado. Uma brincadeira, não ser que seja uma economia autárquica, sem nenaturalmente. Porque eles perceberam aquilo que nhuma capacidade de movimento. Quando estabiliMarx diz, já no Manifesto Comunista, que a burguesia zamos a economia, caímos na armadilha do câmbio tem esse impulso em transformar todas as coisas, em valorizado, que é outra maneira de fazer a inserção destruir tudo que é velho, e a inovar, a criar coisas errada. Isso exatamente no momento em que os chinovas. É claro que com custo social etc. Os chineses neses estavam fazendo o contrário. perceberam essa história e falaram: muito bem, vaAs pessoas argumentam que o Brasil não é a mos rearranjar isso aqui e de modo China. Só que a estratégia chinea capturarmos as vantagens dessa sa foi a que se adequou melhor ao globalização. E nós, não! que estava acontecendo na econoEssa ideia de Fizemos tudo ao contrário a premia internacional. Hoje eles são centro/periferia texto de nos liberalizar. Com ideias o segundo PIB do mundo. Vejam velhas. Por exemplo: o pessoal veio em quanto tempo eles fizeram o precisa ser com a Área de Livre Comércio das segundo PIB! São os maiores exrepensada um Américas (Alca), que era uma esportadores no mundo de manufapécie de Tratado Norte-Americano turas. E o país que tem a taxa de pouco, porque a de Livre Comércio (Nafta), em increscimento mais elevada. Então, própria situação glês North American Free Trade Agreeeles estão errados e nós é que estament, envolvendo Canadá, México mos certos? de centro/periferia e Estados Unidos, ampliado. Não foi redefinida pela topamos porque houve resistência Princípios: Como o senhor vê as aqui e ali. O Lula está certo quando perspectivas da crise mundial presença da China fala em integração sul-americana. e seus impactos nas economias e da Ásia. Temos Está certíssimo. dos BRIC? Belluzzo – Essa ideia de centro/peaspectos periféricos Princípios: Ha-Joon Chang, proriferia precisa ser repensada um no centro e fessor de Cambridge, em artipouco, porque a própria situação go no jornal Valor Econômico, foi de centro/periferia foi redefinida aspectos do centro enfático: “O Brasil abriu mão pela presença da China e da Ásia. na periferia de desenvolver suas atividades Temos aspectos periféricos no cenmanufatureiras” O senhor contro e aspectos do centro na perifecorda com ele? ria. É o que o (Leon) Trotsky chaBelluzzo – O Brasil abriu mão não! O Brasil adotou mava de desenvolvimento desigual e combinado. É as políticas mais equivocadas possíveis, porque não a isso que estamos assistindo. E a direção que isso prestou atenção na transformação que ocorreu na tomará vai depender muito das decisões de políticas economia mundial. E aí perdeu a chance de deseneconômicas nacionais. volver suas próprias atividades manufatureiras. EsEstamos assistindo a uma mudança muito imtá certo o Chang, está certíssimo. Mas isso é uma portante, uma mudança de eixo hegemônico, que coisa histórica. A última tentativa que fizemos de não se faz assim abruptamente. Mas que está clara, ter uma política industrial consequente, mas deporque a força material das relações econômicas vai sastrosa por outras razões, foi com Geisel (Ernesto obrigar que isso ocorra. Com conflito, com confusão, Geisel, penúltimo presidente da ditadura militar). com certo atrito, como estamos vendo agora no caso Ele tentou fazer com o segundo Plano Nacional de da Ucrânia, uma óbvia provocação americana e dos Desenvolvimento (PND) uma política industrial. Só europeus à Rússia. Que não vai dar certo, porque a que ele escolheu os setores errados, em minha opiRússia depende menos deles do que eles da Rússia, nião; os setores velhos. E, além disso, financiou de em primeiro lugar. Depois porque tem esse movimaneira inadequada. Financiou Itaipu, por exemmento de aproximação e complementaridade entre plo, com US$ 15 bi de dívida externa. as economias. Depois disso, o que fizemos? Primeiro, o períoDa redação do da crise dívida externa, que durou dez ou doze 50 Economia A busca por uma nova governança econômica global pós-crise financeira e o papel do FMI Marcelo Pereira Fernandes* É ponto praticamente comum entre as autoridades econômicas dos principais países a necessidade de construir uma agenda de reformas que leve a uma nova arquitetura financeira mundial Quando o Fundo se consulta com um país pobre e fraco, o país entra na linha. Quando se consulta com um país grande e forte, o Fundo entra na linha. Quando os grandes países estão em conflito, o Fundo fica fora da linha de fogo” Paul Volker D esde a eclosão da crise financeira internacional em 2008, a governança econômica global tornou-se um tema recorrente nos fóruns internacionais. É ponto praticamente comum entre as autoridades econômicas dos principais países a necessidade de construir uma agenda de reformas que leve a uma nova arquitetura financeira mundial. Por sua vez, a reforma passa pela criação de novas regras para o sistema financeiro e o aperfeiçoamento da cooperação eco- 51 130/2014 nômica. A questão é saber quais regras devem ser construídas e como equacionar as perdas e os ganhos que normalmente advêm de qualquer mudança empreendida. Entre os planos para alcançar esses intentos buscou-se revigorar o Fundo Monetário Internacional (FMI ou Fundo) com a promessa de novos recursos e a reforma nos seus estatutos. O FMI é a principal instituição multilateral e a que exerce maior influência entre aquelas responsáveis pela governança econômica. O papel do FMI sofreu uma mudança considerável após o rompimento dos acordos de Bretton Woods em 1971 e o estabelecimento das taxas de câmbio flutuante em 1973. A partir da introdução da “supervisão” nos seus estatutos, aprovada em abril de 1977, o Fundo passou a exercer tarefas mais amplas, conferindo um novo perfil à sua atuação (AGLIETTA, 2004). Esse novo perfil do FMI foi muito bem utilizado pelo governo norte-americano a partir de meados dos anos 1980. Nos acordos assinados com o Fundo se tornaram comuns referências sobre a importância das reformas neoliberais como condição fundamental para liberação dos recursos. A instituição se posicionou na linha de frente pela abertura financeira dos países, ainda que o artigo VI – que respalda a adoção de controles de capitais pelos governos – nunca tenha sido retirado dos seus estatutos. O FMI também adentrou em atividades que não estavam entre as suas funções, entre as quais: a reforma das leis trabalhistas, a extinção dos preços subsidiados dos serviços públicos, e até a criação de um fundo de combate à pobreza. Além da tradicional reivindicação do equilíbrio fiscal, passou a se preocupar com a qualidade do gasto público, a corrupção e a democracia, agindo diretamente sobre a soberania legislativa dos países sem possuir legitimidade e capacidade técnica para isso (KAPUR & WEBB, 2006; AGLIETTA, 2004). Em um caso curioso que exemplifica essa nova conduta, em julho de 1997 o Fundo reteve uma parcela de US$ 40 milhões de ajuda ao programa de privatizações da Croácia não porque identificou algum problema no programa, mas porque considerou a democracia na Croácia insatisfatória (FLANDREAU & JAMES, 2003, p.14). No fim da década de 1990, a autoridade do FMI estava no seu apogeu. As crises do México (1995), da Ásia (1997-1998), da Rússia e Venezuela (1998), do Equador (1999) e do Brasil (1998-1999) deram à instituição uma importância sem precedentes como coordenador da economia mundial. Todavia, a crise asiática foi um divisor de águas para o FMI. A sua atuação desastrosa nesse episódio sofreu severas crí- 52 ticas tanto à esquerda quanto à direita, colocando em xeque sua capacidade de enfrentar os desafios colocados num ambiente de liberalização econômica que o próprio Fundo lutou para formar. A crise financeira internacional de 2008-2009 No curto período de 2002 a 2006 a economia mundial passou por um período de relativa calmaria quando comparada à das três últimas décadas. A integração financeira cresceu aceleradamente associada à criação de novos instrumentos financeiros incentivados pelo enfraquecimento da regulação nas finanças. Somando-se a isso, a péssima reputação do FMI desde a crise asiática fez com que a supervisão do sistema financeiro se tornasse mais informal, disperso em organizações do setor público e privado (MOSCHELLA, 2010). Por outro lado, parte importante do mundo em desenvolvimento procurou afastar-se do FMI, antecipando a quitação de empréstimos e realizando políticas que diminuíram a vulnerabilidade externa (1). Com a melhora nas condições financeiras dos países em desenvolvimento, a demanda pelos recursos do FMI ficou historicamente baixa (KAPUR & WEBB, 2006, p. 2). Assim, a instituição que sempre teve como uma de suas principais atividades a resolução de problemas no balanço de pagamentos desses países estava com pouco trabalho. O FMI ainda encarava o ostracismo colocado pelos países centrais em razão da sua contestada ação na crise asiática. Com isso, nos meses que antecederam a crise de 2008-2009 já existia um consenso sobre a necessidade de uma reforma que incluísse governança, mandato e estrutura financeira, com o intuito de resgatá-lo da irrelevância ou de se tornar uma instituição dedicada somente aos seus membros de baixa renda (WOODS, 2009; TRUMAN, 2006). A eclosão da crise financeira internacional em 2008 é mais um ponto de inflexão na história do FMI. O fervor com que a instituição aderiu à defesa da desregulamentação financeira – sustentado pela crença neoliberal da eficiência dos mercados, e a percepção quase generalizada de que exatamente essa desregulamentação foi uma das causas da crise – produziu uma situação bastante desconfortável. O então diretor-gerente do Fundo, Dominique Strauss-Kahn, assumiu que a instituição foi demasiadamente otimista em relação às economias avançadas, dedicando pouca atenção a fatores como excesso de alavancagem do sistema financeiro, risco sistêmico, crescimento excessivo do crédito e dos preços dos ativos (STRAUSS-KAHN, 2009a). Economia Stephen Jaffe/IMF A gravidade da crise, demonstrada pela quantidade monumental de recursos necessários para impedir o colapso do sistema, estava muito acima das possibilidades financeiras do FMI. Deste modo, as operações de salvamento foram realizadas pelos governos e bancos centrais das principais economias desenvolvidas, principalmente o Fed (banco central dos Estados Unidos) e o Tesouro norte-americano, sobre os quais reconhecidamente o FMI tem influência nula. Porém, o que mais chama a atenção é a forma como a instituição – tendo como uma das suas principais atribuições a supervisão do sistema financeiro internacional – esteve à margem das decisões cruciais que mitigaram os efeitos da crise. O fracasso da nova agenda global A divisão de poder no FMI é derivada de uma fórmula matemática, na qual são calculados os percentuais de participação de cada país. Os países emergentes lutam para que se aumente o peso do PIB no cálculo, enquanto os europeus e os países menores querem enfatizar o grau de abertura da economia As políticas executadas sob a liderança do Fed desde o fim de 2008 conseguiram conter os impactos mais destrutivos da crise financeira sobre a produção e o emprego. Mas as deficiências da supervisão do sistema financeiro internacional, trazidas à baila mais uma vez pela crise, levaram os líderes mundiais a intensificar os esforços por uma nova governança econômica global. Nos primeiros dias da crise financeira os líderes mundiais clamaram por medidas ambiciosas com o objetivo de combater a turbulência e o poder desproporcional da grande finança sobre as decisões de política econômica. O presidente francês Nicolas Sarkozy chegou a declarar que a crise marcava o fim do segredo bancário e dos paraísos fiscais. No entendimento do FMI, a crise foi causada, sobretudo, pelas deficiências na supervisão do sistema e a escassa coordenação entre os países (MOSCHELLA, 2010; STRAUSS-KAHN, 2009b). Segundo o então diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, “As decisões tomadas pelos países com base exclusivamente em seu próprio interesse nacional podem acabar prejudicando a todos. E – como aconteceu muitas vezes no passado – quando a crise rompeu os países não estavam inicialmente inclinados a coordenar as políticas” (STRAUSS-KAHN, 2009b). 53 130/2014 A necessidade de aperfeiçoar a cooperação econômica global passou a ser a tônica dos encontros do G-20. Reunidos em Londres, em abril de 2009, os líderes se comprometeram a realizar o que fosse necessário para restaurar a confiança na economia mundial, fazer o sistema financeiro funcionar e promover o crescimento sustentável. Nesse sentido, chegou-se a um consenso de que se deveria endurecer a regulamentação dos fundos de hedge, dos paraísos fiscais, das agências de classificação de crédito (rating agencies) e do sistema bancário. Em relação ao FMI, Tanto a crise ao contrário do que ocorreu após a crise asiática, asiática quanto optou-se pelo seu fora crise financeira talecimento: a reforma da governança deveria global de 2008 passar pelo aumento da motivaram legitimidade e efetividade do FMI. Sobre a efevárias discussões tividade, inicialmente a respeito dos os países prometeram um aporte de US$ 750 problemas que o bilhões, o que significamercado financeiro ria triplicar a capacidade de empréstimo do Fundo, desregulado traz conforme expressou o direpara os circuitos tor-gerente Strauss-Kahn (2009a). Além disso, de acumulação do comprometeu-se em capital dobrar a capacidade de conceder empréstimos para os países de baixa renda que então alcançaria US$ 100 bilhões. Com a promessa de novo aporte de recursos, foram criadas novas linhas de crédito, como a “Flexible Credit Line” e a “Precautionary and Liquidity Line” (IMF, 2013a). A respeito da legitimidade do FMI, os líderes decidiram rever o sistema de cotas de poder da instituição. O objetivo da reforma é aumentar a presença dos países emergentes nas decisões do Fundo de forma a refletir melhor o peso desses países no atual cenário mundial. A revisão foi aprovada no encontro em Seul do G-20, em novembro de 2010. Pelo acordo – “14a revisão de cotas dos Estados membros” –, cerca de 6% do poder de votos deverão ser transferidos dos países centrais para os emergentes, fazendo com que cerca de 30 países aumentem suas participações. O Brasil, que possui 1,72% dos votos totais, terá 2,32%, transformando-se no décimo maior cotista do Fundo, e sendo depois da China o país mais beneficiado (PERES, 2013, c1). 54 Reuters Atualmente a divisão de poder no FMI é derivada de uma fórmula matemática, na qual são calculados os percentuais de participação de cada país. A fórmula leva em conta o Produto Interno Bruto (PIB), a abertura econômica e um indicador que mede o potencial da necessidade de um país precisar de auxílio financeiro do FMI. Este indicador, conhecido como “variabilidade”, tem gerado polêmica, inclusive entre os diretores executivos da instituição, já que ele claramente distorce a fórmula em beneficio dos países mais ricos (IMF, 2013b, p.54). Na prática, os países emergentes lutam para que se aumente o peso do PIB no cálculo, enquanto os europeus e os países menores querem enfatizar o grau de abertura da economia. De qualquer forma, a efetivação da proposta está paralisada pela falta de aprovação do Congresso dos Estados Unidos, e devido às resistências das economias europeias em diminuir sua participação no FMI. Ou seja, todos os países continuam votando com base na antiga participação de cotas. A tão enfatizada reforma do FMI, incluindo o aumento dos recursos financeiros continua uma promessa sem data para ser cumprida: em janeiro de 2014 o Congresso norte-americano recusou novamente a ratificação da reforma e o aumento do capital do Fundo. O debate a respeito dos controles de capitais é outra questão diretamente ligada à governança econômica global, e no qual o FMI sempre aparece no centro das discussões. Antes tratada como um dogma inquebrantável dentro da instituição, a liberalização dos fluxos de capitais começou a ser debatida após a crise de 2008. Mas em todas as discussões os controles de capitais aparecem como uma medida transitória e em condições bastante restritas. Recentemente, o FMI lançou um novo texto sobre o tema (SABOROWSKI et al, 2014). Os pesquisadores analisaram a efetividade dos controles de capitais em 37 países emergentes durante o período de 1995 Economia A eclosão da crise financeira internacional em 2008 é mais um ponto de inflexão na história do FMI a 2010. Os resultados encontrados sugerem que um aperto nas restrições dos fluxos pode ser realmente eficaz se apoiado por fortes fundamentos macroeconômicos ou boas instituições (2), ou se as restrições existentes já são suficientemente abrangentes para frear a saída de capitais. No entanto, para a média dos países emergentes um aperto nas restrições aos fluxos de capitais não é eficiente, já que as retiradas líquidas de recursos aumentam em decorrência dele (IDEM, 2014, p.30). As notícias realmente não são muito animadoras. Os problemas relacionados aos fluxos de capitais e ao financiamento e à reforma do FMI demonstram que foram poucos os efeitos práticos para a governança global desde a crise de 2008. É sintomático que, apesar das várias promessas, a regulação das finanças no plano internacional praticamente se dispersou em propostas de âmbito nacional, sem exame prévio do FMI ou do G-20, e muito aquém da estridência dos primeiros meses da crise. De outro modo, alguns produtos “exóticos” criados durante a expansão financeira no começo dos anos 2000 voltam a fazer parte da carteira dos investidores (ALLOWAY & MACKENZIE, 2013). Entre eles o CDO (collateralized debt obligation) sintético, uma das armas financeiras de destruição em massa, como diria Gabriel Kolko (2009), e considerada uma das principais responsáveis pela crise. Mas por que a proposta de fortalecer o FMI? Por que justamente a instituição que no fim dos anos 1990 quase alcançou a unanimidade sobre sua incompetência em supervisionar a economia mundial? O Fundo é amplamente dominado pelos Estados Unidos que são seu maior cotista e o único país com direito a veto nas decisões. Dentro da burocracia do FMI, os funcionários de alto escalão procuram satisfazer seus interesses pessoais; são burocratas que em regra recebem elevados salários e, sendo assim, tendem a propor políticas que atraem prestígio pessoal – como, por exemplo, políticas de arrocho fiscal – junto às autoridades dos países mais poderosos. Ou seja, apesar das dispu- 55 130/2014 tas, é mais fácil controlar o FMI do que seria caso a Organização das Nações Unidas (ONU) liderasse os esforços no começo da crise financeira internacional, e se tornasse o principal fórum de discussões, conforme apontou Wade (2013). Considerações finais Há uma ideia muito difundida entre os estudiosos da Política Econômica Internacional de que as crises abrem oportunidade para grandes transformações estruturais (BROOME et al, 2012). De fato, tanto a crise asiática quanto a crise financeira global de 2008 motivaram várias discussões a respeito dos problemas que o mercado financeiro desregulado traz para os circuitos de acumulação do capital. Ou seja, a noção de que a crise econômica de 2008 poderia levar a uma nova disposição do poder na economia mundial em que o setor financeiro perderia o status de dirigente (IDEM, p.9) configurava-se numa situação factível. Do mesmo modo, o “renascimento” do FMI parecia refletir a ascensão do poder dos países emergentes, particularmente daqueles que compõem os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em uma nova governança econômica global. Entretanto, decorridos seis anos desde as primeiras promessas, poucos progressos realmente ocorreram. Após os piores momentos da crise a força do movimento mudancista se arrefeceu. Os Estados Unidos e as principais potências ocidentais continuam atuando segundo seus próprios interesses, deixando as reformas em segundo plano e longe dos compromissos assumidos. Com isso, o FMI permanece muito mais como um espectador a serviço dos países ricos do que uma instituição com poder de contribuir com mudanças mais profundas na arquitetura financeira internacional. *Marcelo Pereira Fernandes é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Notas (1) Entre essas políticas está o aumento do estoque de reservas internacionais. Isto desagradou profundamente o FMI, pois é considerado uma das causas dos desequilíbrios econômicos globais, especialmente entre os Estados Unidos e a China. (2) É importante salientar que nem sempre é claro o que são realmente os “bons fundamentos macroeconômicos”, nem o que define as “boas instituições”. De qualquer forma, essas são duas questões que os economistas neoliberais normalmente entendem como falhas nos países emergentes. 56 Referências bibliográficas AGLIETTA, Michel. “O FMI e a arquitetura financeira internacional”. In: FILHO, Fernando Ferrari & DE PAULA, Luiz Fernando (orgs). Globalização Financeira: Ensaios de Macroeconomia Aberta. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004. ALLOWAY, Tracy & MACKENZIE, Michael. “Produtos ‘exóticos’ ensaiam retorno”. In: Valor, 9 de dezembro, 2013. BROOME, André et al. “Global Governance and the Politics of Crisis”. Global Society, vol. 26, nº 1, janeiro de 2012. FLANDREAU, Marc & JAMES, Harold. “Introduction”. In: FLANDREAU et al (org). International Financial History in the Twentieth Century: System and Anarchy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. IMF. Factsheet: IMF Lending, 2013a. Disponível em: <http:// www.imf.org/external/np/exr/facts/howlend.htm> Acesso em abril de 2013. _______. 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Na semana em que foram lembrados os 50 anos da tomada de assalto do poder pelos militares, derrubando o presidente João Goulart, ocorreram manifestações as mais diversas de repúdio ao golpe. Foram homenageados milhares de cidadãos que resistiram, pagando um preço alto pela coragem, mas enfraquecendo gradualmente a ditadura nos 58 21 anos em que vigorou. Mais difícil que dormir com o barulho dessas homenagens, os torturadores e “viúvas da ditadura” escondidos na obscuridade viram forças políticas e sociais as mais distintas se unificarem em torno do grito de “ditadura nunca mais”, por todo o país. Até mesmo a imprensa corporativa que apoiou o golpe contra Jango, mas sofreu as duras consequências da censura, levantou-se para pintar com tintas sujas aqueles tempos sombrios. Foram lembrados episódios da resistência dos trabalhadores, dos estudantes, dos artistas, de religiosos, das organizações políticas e da luta armada. Brasil Mas, sobretudo, foram levantadas por todo o país as fotografias dos mártires presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela repressão. Símbolos mais contundentes dos diversos crimes cometidos pela polícia política dos generais, os retratos de fichários policiais expressaram a presença perene que estas pessoas terão na vida da democracia, “agora e sempre”, como bradavam os manifestantes. A punição aos crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver foi cobrada nos atos, manifestações, seminários, festivais culturais e homenagens que se acumularam, desde o dia 31 de março, quando foi urdido e executado o golpe. deputado federal, de quem foi possível ouvir apenas a voz durante o evento. O deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP) afirma que a manifestação não pode ser vista como apenas um pedido de transformação do local em um centro de memória. “Muito mais importante que fazer o memorial é devolver os arquivos do IML. Nunca recebemos uma foto, um laudo dos legistas”, pediu o parlamentar que preside a Comissão da Verdade Rubens Paiva, na Assembleia Legislativa. Ainda que carregado de emoção, o ato foi uma profunda reflexão sobre a justiça de transição, seus vácuos e seus avanços. Volta à escola da tortura Agitação na Casa das Leis Logo cedo, numa manhã de segunda-feira, multiNeste 1º de abril, cinquenta anos depois, a data dões se dirigiam apreensivos ao 36º Distrito Policial, foi aclamada como Dia da Verdade, por trazer à meuma delegacia comum num bairro nobre, ali pertimória as mentiras que os militares contaram desde o nho dos Jardins e da Avenida Paulista. Para muitos, primeiro dia, tentando ocultar suas intenções autoriuma sensação bem desagradável tárias. Foi a vez de Brasília lembrar voltar ao lugar por onde passaram o dia em que tanques do Exército até 8 mil presos políticos e morrecobriram a Esplanada dos MinistéOs atos ram mais de 50. Os cadáveres mais rios, enquanto soldados cercavam contagiaram as famosos ficavam em exibição para os belos edifícios do Congresso Naos funcionários. Pois então, muitos cional e palácios de Niemeyer. plateias mais sobreviventes das torturas voltaRepetiu-se durante as manifesjovens, que ram ao local, o prédio que abrigou tações, em todas as capitais, que, a Operação Bandeirantes (Oban), embora tenham perseguido e matapouco conheciam depois o Destacamento de Operado muitos, “olha nós aqui de volta”. daquele período, ções de Informações do Centro de Foi com esse sentimento catártico Operações de Defesa Interna (DOIque os atos contagiaram as plateias mostrando que CODI) do II Exército. mais jovens, que pouco conheciam as ideias, os No local onde se desenvolveu daquele período, mostrando que as a “tecnologia da repressão”, um ideias, os sentimentos e lutas pela sentimentos e lutas “centro de referência de extermídemocracia continuam muito vipela democracia nio”, como diz a advogada Rosa vos. Essa continuidade da resistênCardoso, da Comissão Nacional da cia à ditadura em plena democracontinuam muito Verdade (CNV). É ela que traduz o cia é uma demonstração da vitória vivos sentido deste primeiro ato polítidaquela geração. Os parceiros que co, ao dizer que a escolha do local ficaram pelo caminho foram sauexpressou a “ideia de que sofremos, fomos desfigudados, lembrados, homenageados e chorados, mas rados, fomos traumatizados, mas sobrevivemos”. A todos os eventos, pequenos e grandes, foram a expresença de muitos ex-presos torturados naquele pressão de uma emoção e representação de uma dor local firmou esse sentimento de sobrevivência no loque ainda não se curou. Mas acima de tudo, as macal onde Wladmir Herzog foi torturado até seu cornifestações contra a ditadura foram a expressão sorpo não suportar, ter a causa mortis oficializada como ridente de uma vitória garantida com muito custo. suicídio e gerar uma discussão, inclusive, religiosa, A Câmara dos Deputados teve seu hall de enque representou um enorme golpe contra a ditadura. trada, no Anexo II, ocupado por parlamentares e Os depoimentos de esperança na democracia e militantes, durante todo o dia. Quem entrava por as homenagens aos mártires que entraram naquele ali, inevitavelmente, tomava contato com manifeslugar e não mais saíram, inevitavelmente emocionatações políticas, musicais e teatrais, celebrando a vam a todos, especialmente os parentes de desaparesistência à ditadura. A deputada Alice Portugal recidos. Foi assim com os filhos de Rubens Paiva, ex(PCdoB-BA) teve a iniciativa de juntar grupos ar- 59 130/2014 tísticos para encenar os absurdos da ditadura. Figuras conhecidas e prestigiadas pelo regime militar passavam constrangidas por entre a multidão que se juntou para rir de uma atriz que encenou uma entrevista da Dona Ditadura. A senhora caduca repetia os raciocínios ridículos que se ouvem, hoje em dia, de manifestantes da reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Em solenidade realizada horas antes no auditório Nereu Ramos para relembrar as cinco décadas do Golpe Militar, um tumulto foi causado quando Jair Bolsonaro (PP-RJ) subiu à tribuna para discursar em defesa dos militares. Parlamentares viraram de costas em protesto e o evento foi encerrado sob polêmica. A cerimônia continuou informalmente no saguão. Para sempre, presente! O maior homenageado neste dia foi Rubens Paiva, o único deputado “desaparecido” pelos militares em 1971. O homem que comandou uma Comissão de Inquérito que descobriu o financiamento de organizações norte-americanas aos militares agora estará permanentemente ocupando um lugar de honra naquela casa legislativa de onde foi expulso pelos militares. Seu busto foi comemorado com festa e orgulho pela família do ex-deputado, representada pelas filhas Vera Paiva e Maria Beatriz Paiva. Vera comparou o sumiço do pai com o caso de Amarildo de Souza, pedreiro que desapareceu no ano passado, após uma ação policial na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, para criticar a continuidade da tradição autoritária e violenta da polícia brasileira. “Rubens Paiva era pai de cinco filhos, como Amarildo. Nós escutamos a vida inteira que Rubens Paiva era um bandido, a família de Amarildo foi chamada de bandida. Foi transformada em traficante”, disse. A deputada comunista Jandira Feghali (RJ) afirmou que o sentimento era de que a homenagem veio com atraso, tanto como o fim da ditadura. Ela se perguntou qual teria sido o crime de Rubens Paiva para sofrer um destino tão terrível nas mãos do governo militar. E lembrou tantas iniciativas importantes do ex-deputado em defesa da soberania do Brasil e da defesa dos mais pobres. Uma biografia de Paiva, escrita por Jason Tércio, foi lançada naquela noite trazendo detalhes sobre o mandato do deputado, além de documentos sobre sua detenção. Unidade política Jandira lembrou outras ocasiões em que o arbítrio fechou o Congresso e cassou tantos mandatos. 60 Recentemente, por iniciativa de parlamentares comunistas, estas cassações têm sido revertidas, ainda que simbolicamente. Agora, ela está solicitando a anulação da legitimidade dos presidentes militares eleitos por colégio eleitoral daquele Congresso, como uma forma de completar esse ciclo de repúdio à ditadura. Todas essas iniciativas de resgate democrático se unem no propósito de fortalecer o repúdio ao golpe militar. Essa foi a tônica do discurso da deputada Jandira, no ato político que encerrou o dia em Brasília com a unidade representativa das forças progressistas que lutaram pela resistência à ditadura e pelo resgate da memória e da verdade sobre aquele período. Lideranças do PCdoB, do PT e do PDT, além de entidades como União Nacional dos Estudantes (UNE) e Central Única dos Trabalhadores (CUT), homenagearam o presidente João Goulart e o estudante Honestino Guimarães, perseguidos pela ditadura. Em referência ao deputado que defende a ditadura militar, e interrompeu a solenidade da manhã, Jandira afirmou que a unidade política em torno do repúdio à ditadura mostra que a Câmara consegue dizer aos provocadores, que o lugar do seu discurso é “no lixo da história, e é nesse lugar que deve ficar”. Ela citou Millôr Fernandes ao pedir para “nunca amplificar a voz dos idiotas”. Assim como a vice-presidenta do PCdoB, deputada Luciana Santos (PE), fez uma análise do Golpe de 1964 e suas consequências, a partir da leitura que o Partido Comunista do Brasil tem sobre o assunto, o presidente Renato Rabelo também reafirmou o protagonismo comunista no ato ocorrido em São Paulo, no dia seguinte. Desde o contexto de guerra fria, em que a contenção do comunismo era o álibi para o golpe – num governo que realizava profundas reformas de base, passando pela contribuição dos comunistas à resistência ao golpe, inclusive armada –, ambos os dirigentes comunistas desenharam o cenário em que os anos 1980 chegaram isolando e enfraquecendo os militares com a campanha pelas eleições diretas. A Guerrilha do Araguaia e a violência contra os dirigentes comunistas na Chacina da Lapa são capítulos especiais dessa luta que fragilizou a ditadura frente a seus apoiadores e teve os comunistas como protagonistas. Desde a eleição em 2002, do operário metalúrgico e da mulher ex-presa política, começa o processo de estabelecimento das Comissões da Verdade. Mais uma vez, o PCdoB reafirma que esses espaços de resgate da memória e da verdade só serão plenos com a punição daqueles que cometeram crimes e atos sumários. A Fundação Maurício Grabois e a Fundação Perseu Abramo foram realizadoras aliadas em alguns Brasil eventos com este caráter, revelando uma unidade importante das forças progressistas em torno deste tema. O presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, avalia como uma vitória muito clara o modo como os eventos se espraiaram por todo o país, unificando forças progressistas dos mais diversos matizes, impelindo a própria imprensa a publicar O Monumento ao conteúdo com a linha de condenação Nunca Mais em da ditadura e enaltefrente ao Teatro Monumentos à democracia cimento da democracia. “Há praticamente uma unanimidade em Tuca da PUC-SP Esse clima de convergência que torno do festejo da democracia definiu mais um cresceu com as manifestações se fore da luta para ampliá-la no pretaleceu em cada um dos eventos. Assente. E apenas algumas poucas ponto da geografia sim como o busto de Rubens Paiva vozes que saem das catacumbas da resistência à antecipou o ato político na Câmara, e dos esgotos que aparecem para o Monumento ao Nunca Mais em defender o regime do arbítrio”. ditadura frente ao Teatro Tuca da PUC-SP deMonteiro acredita que o finiu mais um ponto da geografia da transcurso decidido para o regisresistência à ditadura. O presidente da Comissão de tro dos 50 anos do golpe reforça o trabalho da ComisAnistia, Paulo Abrão, que inaugura os totens do prosão da Anistia e da Comissão Nacional da Verdade, jeto Marcas da Memória em pontos estratégicos do que caminha para pedir a revisão da Lei da Anistia. país, demarcou os valores e posições em torno de uma Bandeiras que já deveriam ter sido levantadas em batalha que tem sido difícil, demorada, mas vitorio1975, no nascedouro da lei, como o paradeiro dos sa. Não só porque algumas conquistas democráticas desaparecidos, a punição aos torturadores, o esclareestão sendo implementadas, mas fundamentalmente cimento das circunstâncias em que se deram a morporque os atos em torno da verdade, da memória e da te de mais de 400 brasileiros, não se concretizaram justiça sobre os crimes do passado em todo o Brasil pela correlação de forças com a qual se deu o fim da têm reunido amplos segmentos da juventude. ditadura. Para Paulo Abrão, é preciso dizer com voz ativa “Ao se homenagear aqueles que resistiram e tomque a sociedade brasileira não aceita, em nenhuma baram pela democracia que hoje nós respiramos, tuhipótese, a tomada do poder com uso da força das do isso ajuda no sentido da revisão da Lei de Anistia. armas, a ruptura institucional. Segundo ele, o Brasil O alto grau de convergência em torno da democracia está vencendo o negocianismo, o medo de discutir o e o rechaço da ditadura criaram, sim, um ambiente passado, porque hoje é muito mais difícil sustentar favorável para que largos setores do povo compreenteses de que a torturas não existiram e negar que o dam que, quando se defende a punição aos agentes Estado criou deliberadamente um aparato sistemádo Estado que praticaram o crime de tortura, não se tico de destruição de vidas. trata de cultivar o ódio, ou de vingança, mas de fazer O Tuca foi então invadido pelos acordes nostálgijustiça, sobretudo no sentido de que tais crimes não cos de canções dos anos mais tristes das décadas de se repitam no presente e no futuro do país”, afirmou 1960 e 1970, como Viola Enluarada, de Marcos Valle, Monteiro. 61 130/2014 jogaram uma pá de cal sobre a ditadura e a luta cantada pelo Coro Luther King, também criado em pela Verdade e Memória, representada pelas Co1970 por Martinho Lutero. Encontros inusitados e missões da Verdade. históricos encantaram os presentes como o arranjo do coro para Calabouço, cantada pelo próprio compositor Pequenas testemunhas Sérgio Ricardo, homenageado como do horror um dos artistas que enfrentaram a ditadura com sua música. Também Nos dias que se seguiram, a compositor da trilha sonora do clásFundação Maurício Grabois e o sico cinemanovista Deus e o Diabo na PCdoB estiveram envolvidos na Terra do Sol (Glauber Rocha), Sérgio realização de atos semelhantes em acompanhou com o piano a récita capitais como o Rio de Janeiro, em do poeta Thiago de Mello, reeditanFlorianópolis e Porto Alegre, onde do a parceria do show Faz Escuro Mas houve o lançamento da “edição Eu Canto. anistiada” do Livro Negro da DitaEm uma aparição rara, o poeta dura. Uma publicação clandestina de 88 anos deixou a cidade-natal que provocou rebuliço no início de Barreirinha, na Amazônia, para dos anos 1970 e, agora, volta numa ocupar o palco da PUC com a moreedição fac-similar daquela que numentalidade de seus versos que circulou entre a resistência. marcaram a geração dos anos de A semana do golpe se encerrou chumbo: Fica proibido o uso da paEntre os vários com a realização da 81ª Caravana lavra liberdade,/ a qual será suprida Anistia, em que foram julgamida dos dicionários/ e do pântano eventos ocorridos, dos os casos de filhos e filhas de enganoso das bocas./ A partir deste houve o lançamento ex-presos políticos. Conforme o instante/ a liberdade será algo vivo e Estado brasileiro pedia desculpas transparente/ como um fogo ou um da edição pelo sofrimento daquelas pessoas rio,/ e a sua morada será sempre/ o anistiadado Livro – entre as quais, muitos filhos de coração do homem. Com a lucidez e comunistas perseguidos, presos, dignidade de quem enfrentou ditaNegro da Ditadura. torturados ou exilados –, ouviamduras ao lado de Pablo Neruda, no Uma publicação se os testemunhos dolorosos da inexílio, Thiago contou como gostaria fância roubada pela ditadura. que o poeta chileno tivesse visto clandestina que Crianças que lembram a infânos milhões de brasileiros nas ruas provocou rebuliço cia como um mistério, cercada de durante as manifestações pelas Dimentiras e omissões que sequer retas. Conforme os golpes cobriam no início dos anos entendiam, devido à necessidade o continente de trovoadas, Thiago 1970 e, agora, volta de se proteger ou aos pais. Outras ficou chateado ao ouvir de Neruda que foram efetivamente presas ou que os brasileiros não eram como numa reedição presenciaram a violência brutal os chilenos que resistiriam a Pinofac-similar daquela contra os pais. A vida sem uma fachet nas ruas, desde as donas de casas com seus panelaços. que circulou entre a mília ou vivendo na penúria não foi suficiente para destruí-los, ainJoão Alexandre Goulart tamresistência da que carreguem cicatrizes que bém recebeu flores em homenaevitam tocar. gem ao avô, que morreu no exílio Cada testemunho foi também argentino. O ato foi aberto com uma homenagem aos pais, pelo orgulho que legaimagens do discurso de Jango no comício da Cenram aos filhos pela luta em defesa da democracia, ou tral do Brasil, quando é eternizada sua vontade de simplesmente por terem sido capazes de torná-los efetivar as reformas de base que, até hoje, não se homens e mulheres melhores. Como declararam de concretizaram no Brasil. Outras homenagens fomãos dadas André e Priscila Cunha Arantes, se puram feitas à resistência estudantil, na pessoa da dessem voltar no tempo e escolher os pais, escolhepresidenta da UNE, Virgínia Barros, e à solidarieriam os mesmos Aldo e Dodora Arantes. dade e coragem de dom Paulo Evaristo Arns e outros líderes religiosos, na pessoa de Paulo Pedrini. Foram lembradas as lutas dos trabalhadores que Cezar Xavier é editor executivo do Portal Grabois. 62 Brasil Princípios entrevista Thiago de Mello Um canto que enaltece a luta por um Brasil humano e solidário Amaro Fotografia/Fundação Maurício Grabois Nesta entrevista exclusiva à Princípios, o poeta Thiago de Mello, um dos maiores nomes da cena literária em nosso país, fala sobre sua vida, suas convicções e sua poesia. Ao falar de seu novo livro de poesias, Ajuste de Contas, afirma que se trata de uma “prestação de contas”. “Eu presto contas a mim mesmo, à minha vida. Acontece que a minha vida são os outros. Por isso é que o livro que sai depois, em prosa, chama-se Eu e os outros comigo. Eu estou pensando nos outros, em vocês que estão aqui. Eu não vivo sem vocês. Eu não vivo sem o povo, sem gente, sem os outros...” Thiago de Mello fala durante ato político-cultural alusivo aos cinquenta anos do golpe militar de 1964, no TUCA, em São Paulo 63 E 130/2014 m 1950 um jovem decidiu levar seus poeCarlos Heitor Cony, Antonio Callado, Márcio Moreimas a Carlos Drummond de Andrade. ra Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de AndraDisse que estava pensando em abandonar de, Mario Carneiro, Flávio Rangel e do embaixador a medicina para se dedicar exclusivamenJayme Azevedo Rodrigues, ficou conhecido como os te às letras. Drummond desaconselhou o “oito da Glória”. Thiago conseguiu escapar da prisão iniciante a fazer tal loucura, pois dificilnaquele momento, mas apresentou-se às autoridamente conseguiria viver da poesia. O condes em seguida. selho não surtiu efeito. Decidido, o jovem O poeta também se envolveu na organização do poeta abandonou a carreira médica e, no ano seMovimento Nacionalista Revolucionário (MNR), guinte, publicou Silêncio e Palavra, livro que teria boa composto por ex-militares cassados ligados ao líreceptividade da crítica. Nascia assim a trajetória de der trabalhista Leonel Brizola, que organizou entre Thiago de Mello, um dos maiores 1966 e 1967 a chamada Guerrilha nomes da cena literária em nosso do Caparaó. Entre setembro e outupaís. bro de 1969, Thiago foi obrigado a Não pode haver Nascido em 1926 na pequena entrar para a clandestinidade e sair divórcio entre o Barreirinha, no estado do Amazodo país. Seguiu para Montevidéu e nas, o poeta mudou-se ainda criande lá se deslocou para o Chile, onde homem e o poeta. ça para Manaus, cidade na qual retomou os contatos com a intelecNão pode haver iniciou seus estudos. Seguiu mais tualidade daquele país. Usou sua tarde para o Rio de Janeiro, onde influência para denunciar as priseparação, tem ingressou na Faculdade Nacional sões e torturas e para apoiar a resisde haver uma de Medicina. Trabalhou como ajutência no Brasil. Com o golpe lidedante de cozinheiro para custear rado por Pinochet em setembro de coerência entre a estudos, alimentação e moradia. 1973, exilou-se na Europa até 1978, pessoa e o escritor Em 1957 foi convidado a diriquando enfim retornou ao Brasil e gir o Departamento Cultural da se fixou em Barreirinha, sua cidade Prefeitura do Rio de Janeiro. Entre natal. 1959 e 1960 foi adido cultural na Bolívia e no PeDe volta ao Brasil montou – ao lado do composiru. De 1961 a 1964 desempenhou a mesma missão tor Sérgio Ricardo – o show Faz escuro mas eu canto, em Santiago (Chile). Entre 1963 e 1964 trabalhou dirigido por Flávio Rangel, que percorreu diversos na tradução da primeira antologia poética de Pablo estados brasileiros. Ainda no período ditatorial puNeruda publicada no Brasil. Nos anos seguintes, blicou, entre outros, Faz escuro mas eu canto (1965), convicto da necessidade de integrar culturalmente A canção do amor armado (1966) e Poesia comprometida a América Latina, traduziu diversos outros poetas e com a minha e a tua vida (1975). Thiago é autor de escritores hispano-americanos, a exemplo de Mario uma obra reconhecida e respeitada que conta com Benedetti e Jorge Luis Borges. cerca de trinta títulos, nos quais três temáticas se No Chile conviveu não apenas com Neruda, mas entrelaçam: os oprimidos e a luta por uma sociedade com Salvador Allende, que pessoalmente lhe transsolidária, um extraordinário lirismo – amoroso e fimitiu a notícia do golpe militar ocorrido no Brasil losófico – e a defesa do meio ambiente. em 31 de março de 1964. Thiago de Mello decidiu reNo último dia 2 de março Thiago participou, em nunciar ao cargo de adido cultural, apesar dos pediSão Paulo, do ato político-cultural alusivo aos cindos do embaixador e do chanceler brasileiro. Indigquenta anos do golpe militar de 1964, evento ocorrinado, naquele mesmo momento começou a redigir o do no Tuca, teatro da Pontifícia Universidade Católipoema Estatutos do Homem, que seria prefaciado por ca de São Paulo (PUC-SP), repleto de simbolismo no Neruda. Nele, eternizou sua posição contra o autorique respeita à resistência contra a ditadura. Antes tarismo e a favor da liberdade. do evento ele esteve na sede da Fundação Maurício Em 1965 o poeta resolveu voltar ao Brasil paGrabois, onde falou de sua vida, de suas convicções ra combater a ditadura. Foi preso logo na saída do e de sua poesia. Princípios transcreve, abaixo, os prinavião, e libertado pouco após. Em novembro de 1965 cipais trechos da entrevista concedida a diretores e envolveu-se na manifestação realizada por um grucolaboradores da Fundação. po de intelectuais em frente ao hotel Glória, no Rio de Janeiro, durante a abertura da II Conferência Extraordinária da Organização dos Estados AmericaPrincípios – Você nos disse, lá atrás: “Faz escunos (OEA). O episódio, que resultaria nas prisões de ro mas eu canto”. O escuro, de alguma forma, 64 Brasil Thiago de Mello em entrevista com integrantes da Fundação Maurício Grabois obra a serviço dessas duas causas. Eu devo muito se foi. Sobreveio alguma luz, e você continua ao instante em que fui chamado por Mario Benecantando. O que te move a cantar sempre? De detti, lindo companheiro uruguaio, poeta uruguaio onde vem a persistência do teu canto? maravilhoso... Houve a celebração do centenário de Thiago de Mello – Eu dou a resposta que merecem toRuben Dario em 1967, em Havana, Cuba. O Mario dos vocês, e que merece esta casa de Maurício [Grame chamou e falou: “Vamos fazer bois], ela que é banhada pela luz uma coisa: vamos escrever um texda esperança. Esse canto nasce do to. Nós dois assinamos e depois vasonho escuro das crianças que dorA nossa América mos ver quem assina também. Tem mem com fome, e da minha certeza muito escritor aqui, muito poeta, muito pessoal de que ainda é possíé um pedaço do muito romancista, muito crítico”. vel, sim, a construção de uma sociemundo que se E fez oito linhas só para dizer que dade humana e solidária no Brasil. não pode haver divórcio entre o E eu acho que devo fazer a minha comunica pouco, homem e o poeta. Não pode haver parte. É só isso... É só isso, mas é que ainda se separação, tem de haver uma coedanado de difícil... desconhece bastante rência entre a pessoa e o escritor. Ele tem que assumir o que diz na Princípios – Temos lido declarações sua vida. Não pode haver esse musuas nas quais você fala de ouro entre o dizer e o fazer. Foi muito tras motivações, ao lado desta importante para mim esse momento. Muitos se reque você acaba de sublinhar – que é tua coecusaram a assinar porque disseram que é impossível, rência, desde sempre, teu engajamento na luta na sociedade em que a gente vive, ser coerente. Você por uma sociedade humana, solidária. Temos tem que viver de acordo com as leis da sociedade. lido palavras referentes a outras causas conecNuma sociedade capitalista, você tem de ceder e tadas a esta. Uma é a integração cultural da conceder a cada instante. E eu decidi não ceder nem América Latina, que você apregoa, para a qual conceder em favor do grande inimigo da justiça, inivocê busca dar sua contribuição escrevendo e migo da redenção de um povo que sofre. traduzindo obras. Outra questão importante é Você falou da integração latino-americana. A o teu engajamento, desde sempre, na presernossa América é um pedaço do mundo que se covação da floresta. munica pouco, que ainda se desconhece bastante. T.M. – Quero aproveitar para dizer que, quando canÉ preciso afirmar isso com esperança, mas dizer a to, quando escrevo coloco a minha vida, a minha 65 130/2014 verdade. A Venezuela sabe muito pouco do Uruguai, nossos irmãos da América Latina, também descoo México não sabe quase nada da Bolívia – o que sanhece o maior manancial de vida que tem o planebe são aquelas coisas que ficaram vulgares e viraram ta, a floresta amazônica. O Painel Internacional de clichês. Nós próprios, que somos companheiros de Mudanças Climáticas das Nações Unidas afirmou no luta, sabemos pouco sobre o que acontece [na Améseu quinto relatório que, na segunda metade deste rica Latina], mesmo na Revolução Cubana, [sabeséculo, a vida na floresta amazônica começaria a ser mos pouco] os motivos dos golpes... afetada pelo aquecimento do planeta. Esse relatório Gostaria de resumir essa questão da integração foi divulgado no dia do maior fracasso da esperança da América Latina com um presente que vou dar a humana, que foi a reunião de Copenhagen, em 10 vocês hoje [entrega o livro Poetas da América de cande dezembro de 2010, quando 193 chefes de Estado, to castelhano, antologia editada em presidentes da república e primei2011 pela editora Global com seros-ministros reuniram-se para fiEstamos em 2014, leção, tradução e notas de Thiago xar o nível máximo para a emissão de Mello]. É um trabalho de doze dos gases malignos com as quais 50 anos depois. anos. Na contracapa tem um vernós queimamos o planeta, a nossa É preciso contar so do Neruda, em que ele diz que morada, e eles não chegaram a um não conhecia essa virtude minha, acordo. Como não chegaram a um esta história para as a da perseverança, quando eu puacordo, não quiseram ler, em voz novas gerações, mas alta no plenário, e discutir a afirbliquei a primeira antologia dele. Ele elogiou o trabalho. Na verdade, mação dos 283 cientistas do Painel seguir construindo estávamos numa mesa; ele traduInternacional. algo em seu lugar. zia meus poemas e eu traduzia os Eu busquei contribuir para o codele... Ele traduzia meio brincando, nhecimento da floresta com meus Reforçar a luta e eu levava a sério. Para traduzir o livros. São seis ou sete livros só contra a repressão poema Alturas de Machu Picchu eu sobre a vida na floresta: suas lenlevei 43 dias. Mas ele traduziu os das, seus mitos, seus milagres, suas e em favor das Estatutos [do Homem] de uma vez grandezas, suas misérias também... reformas irá acelerar Afirmei com veemência que, densó. Então trabalhei doze anos para tre os bilhões de vegetais que ali a transição ainda colocar a poesia a serviço da inteexistem, não chegam a cinco por inconclusa rumo gração cultural da América Latina. cento aqueles cujos princípios quíEscolhi meus poetas queridos. Não micos ativos foram estudados no a uma sociedade sei se são grandes, ninguém tem fiBrasil. Os naturalistas, os biólogos verdadeiramente ta métrica para medir poeta. Quem e os cientistas europeus estudaram é grande? Eu sei que a poesia não a floresta. Nós, infelizmente, não democrática dorme com quem é pequeno, a estudamos. poesia não gosta. Então eu escolhi Quando os portugueses chega148, 150 poetas e selecionei cinco, ram lá na Amazônia – tem uma seis, oito poemas de cada um. Acontece que um editerceira carta do Caminha que conta essa história, tor brasileiro que é dono de doze editoras recusou o para falar que as índias eram fogosas, atraentes etc. livro, que já estava quase pronto para a impressão. –, um alferes encostou-se num galho e uma índia Fizeram um ibope e julgaram que o livro não venchegou com uma copaíba. A copaíba e a andiroba já deria. Eu disse “não faz mal” e pedi para que me existiam quando os portugueses chegaram, como já devolvessem [os originais]. Disse: minha preocupahavia uma cultura brasileira, indígena, que perdura ção era mostrar ao leitor brasileiro como é a vida do até hoje dentro da nossa vida. Aliás, recentemente, povo. Escolhi poetas latino-americanos que cantam há menos de dez anos, os EUA queriam patentear a a vida de seu povo. O povo ama, mas há também o copaíba, porque estudaram que essa planta não tem problema da resistência, da luta, da esperança. São só virtudes cicatrizantes, não. Ela tem outras propoemas conscientizadores. priedades, inclusive capazes de agir sobre os neurônios cerebrais. O Philip Lovejoy, um desses biólogos Princípios – E quanto à sua, à nossa floresta, que norte-americanos, que há dezessete anos trabalhou é também a de todo o povo brasileiro e, noutra no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Indimensão, de toda a humanidade? pa), lá em Manaus – ele foi muito ligado à floresta T.M. – Assim como o Brasil desconhece a vida de amazônica –, leu sobre isso e foi mais além. Ele disse: 66 Brasil “Se o Brasil montasse laboratórios dentro da floresta mesmo, com microscópios poderosos para estudar os princípios químicos ativos de vegetais, seja de um galho, de uma folha, de uma casca de árvore, de uma raiz, o Brasil seria o país mais poderoso”. Chegamos hoje à condição de sexta potência mundial. Mas se o Brasil fizesse isso seria ainda mais poderoso porque mudaria a própria cultura brasileira. Ele seria um país rico porque acabaria com a miséria e a pobreza de seu povo. No entanto, a unha de gato, um cipó grosso, está sendo estudada em Estocolmo. Sei disso porque estive na Suécia, recentemente. Princípios – Enquanto isso, aqui no Brasil os cientistas chegam a ser criminalizados quando tentam estudar nossa biodiversidade, por conta da burocracia e de leis inadequadas, avessas às necessidades colocadas pelo desenvolvimento do país... T.M. – Gostei muito de vocês falarem isso. A unha de gato, descobriu-se em Estocolmo, tem o poder de impedir o desenvolvimento de células cancerosas, quando o câncer é diagnosticado precocemente. Isso pode ser obtido apenas com a ingestão diária do chá. Princípios – É uma planta tipicamente brasileira? T.M. – Tipicamente brasileira, só existe na floresta amazônica. Dizem que existe também no Congo. Dizem, porque não há uma afirmação científica. Mas a unha de gato é tipicamente brasileira. Princípios – Poeta, o ardor com que você defende a floresta, a justiça social e outras causas importantes é o mesmo com que você se lançou à luta contra a ditadura... T.M. – A beleza de um povo que derruba uma ditadura, você sabe como é. Tenho muito respeito por São Paulo porque foi aqui que mais de dois milhões de brasileiros foram para a Praça da Sé, enquanto nos porões do Planalto se conspirava para que a máquina de reproduzir ditadores do Congresso elegesse mais um deles. E depois de São Paulo foi a Guanabara, com outros dois milhões. Foi o povo quem derrubou a ditadura. O povo não ficou entregue: “Eleições Diretas Já!” – e o Brasil inteiro começou o movimento das diretas. Quando parcela de um povo se conscientiza, sabe as razões por que esse povo está sendo oprimido, a primeira coisa que faz é querer organizar-se, organizar-se para lutar. Esse povo conscientizado vai crescer e vai ser invencível. Então esta é a questão da participação popular... Eu estava em Lisboa quando aquele poeta negro lindo, o Agostinho Neto, tomou posse [na Presidência de Angola]. Da mesma forma que Maurício [Gra- Faz escuro mas eu canto Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia. bois], ele comandou a guerrilha... E triunfou! Agostinho pensou que eu estava na Alemanha, mas eu estava indo para Portugal. Ele mandou me buscar. Quando foi depois da posse dele, fizeram um abrigo lá no quintal. Ele me chamou e falou, e com aquele acento de português africano: “Óh, Thiago! Óh, Thiago!”. Ele disse uma frase que eu nunca esqueço: “Muito quando eu posso, eu falo com os moços...”. Princípios – Você chegou a ser preso na época da ditadura? T.M. – Eu fui preso, mas não me gastaram, não. Fiquei um mês e meio só, interrogatório, tal isso, tal aquilo. E quando eu saí organizaram uma entrevista coletiva na qual eu disse que não iria aceitar o oferecimento de Harvard para estudar a história da floresta amazônica. Em Portugal queriam que eu ficasse... Disse: “Não, eu vou estudar na floresta com o povo que vive nela e vive dela. O povo é quem sabe como é que são [as coisas]...”. Princípios – Seus poemas fizeram tão mal assim à ditadura? T.M. – Dizem que sim. Quando eu recebi a notícia de que havia a ditadura, eu estremeci, meu corpo estremeceu. “Ditadura no Brasil?! Não é da índole de nosso povo!”. Dezesseis dias depois do golpe veio a mala diplomática. Toda semana, toda embaixada recebe. Vinha o Correio da Manhã, jornal do querido Carlos Heitor Cony, que foi o primeiro intelectual, o primeiro escritor brasileiro que ergueu sua voz, com a crônica A revolução dos caranguejos e, depois, com O ato e o fato. Quando eu vi a fotografia do Gregório Bezerra, esse líder camponês que era do Partido, sendo 67 130/2014 puxado por uma corda amarrada no pescoço, só de calção, descalço, o peito todo lanhado, pelas ruas do Recife – puxado pelo coronel cujo nome eu não revelo porque ele tem netos –, eu disse: “Não...”. Isso coincidiu com a publicação, a divulgação nacional do Ato Institucional nº 1. Disse: “Este país não é o meu, não. Meu povo não é assim. A índole do meu povo não é autoritária”. Então eu vi, já em meados de maio, a fotografia, também no Correio da Manhã, de Astrojildo Pereira num catre, algemado por trás, sereno, e a biblioteca dele toda queimada... Nesse dia eu escrevi minha renúncia ao meu posto diplomático, e escrevi os Estatutos do Homem de noite, respondendo a todos os decretos... Quando Princípios – Os Estatutos significaram um momento importante na luta de ideias contra a ditadura... T.M. – Esse poema desgarrou-se de mim, foi traduzido para mais de trinta idiomas. Hoje ele faz o que quer. Eu não sou mais responsável por ele. Ele está por aí... Outro dia a Folha de S.Paulo foi lá me entrevistar e revelou para mim que [risos] os cinquenta anos da ditadura são os cinquenta anos dos Estatutos também. Eu perguntei: “Está tudo registrado? Não é possível...” [risos]. Mas foi no mesmo dia, sim. Princípios – Quando você decide demitir-se do Itamaraty, várias pessoas próximas lhe pediram para não renunciar. Fale-nos um pouco sobre aquele episódio. T.M. – Eu não quis servir de exemplo para ninguém. Foi uma questão absolutamente pessoal, de consciência minha. Sinto-me muito dignificado, não parcela sei se pela infância que eu tive, pede um povo se la formação que eu tive, de criança pobre, convivendo com camponeconscientiza, sabe ses, com cultivadores como meu as razões por que pai... Foi absolutamente pessoal. Mas foi um exemplo luminoso, esse povo está não? Repercutiu. Porque a renúnsendo oprimido, cia foi acompanhada dos Estatutos do Homem, poema que eu digo não a primeira coisa ser mais meu. E não é o meu meque faz é querer lhor poema coisa nenhuma. Pode ser o mais famoso, mas eu tenho organizar-se, outros... organizar-se para lutar. Esse povo conscientizado vai crescer e vai ser invencível Princípios – E quanto à manifestação na reunião da OEA, aquela que ficou conhecida como os “oito da Glória”? T.M. – Eu lembro que, quando tempos depois voltei ao Brasil, fizemos aquela manifestação no hotel Glória, que ficou famosa. Fomos todos presos... Era uma reunião da OEA. De noite tínhamos pintado faixas etc. com os dizeres “Abaixo a Ditadura, Viva a Liberdade!”. Quando o secretário de Estado norte-americano, o Foster Dulles, entrou junto com o Castelo [general Castelo Branco], eu não me contive e disse que ele era um filho daquilo, daquilo e daquilo outro. Eu sei que correram para cima de mim, deram-me uma chave de braço (como se dizia antigamente). E eu dizia: “Tira a mão!”. Ele disse: “Tira esse homem daqui!”. Tanto que eu fui preso em separado. Foi a primeira vez que se manifestaram os escritores, os artistas e os chamados intelectuais – palavra de que não gosto porque acho que um operário que sabe a causa pela qual ele é explorado, ou um 68 camponês que sabe etc., é também um intelectual: ele sabe inteligir a razão, as causas, e assim ele é um intelectual também. Mas, retomando, pela primeira vez os escritores, os artistas tomaram a frente. Eu lembro que consegui a assinatura de Pixinguinha, de Lúcio Costa e de outros para essa causa... Princípios – Quer dizer que, enquanto a ditadura baixava o Ato Institucional no 1, você decretou... T.M. – “Fica decretado que agora vale a verdade.” Por falar nisso – faço questão de contar a vocês –, ano passado o João Paulo dos Reis Veloso me chamou para o Fórum Nacional, aquele que ele organiza anualmente. Era o 15º Fórum Nacional. Ele me telefonou lá para a floresta, perguntando se eu não podia assistir o Fórum etc. Talvez ele não saiba que o verbo assistir tem várias designações semânticas: assistir ao filme, o médico assiste o paciente etc. Eu disse: “Olha, eu assisti ao 10º Fórum. Estava no Rio, aprendi muito etc.”. Eles escolhem 350 brasileiros (cientistas, ministros, artistas, gente da favela etc.). Quando eu cheguei a Manaus tinha um folder enorme. Eu pensava que iria realmente só assistir ao Fórum. Aí eu chego a Manaus e tem um folder com toda a programação. A abertura ia ser com o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e no final do folder tinha assim: “Encerramento do Fórum: poeta Thiago de Mello, com os ‘Estatutos do Homem – antes e ago- Thiago de Mello Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) A Carlos Heitor Cony Artigo I. Fica decretado que agora vale a verdade. que agora vale a vida, e que de mãos dadas, trabalharemos todos pela vida verdadeira. Artigo II. Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. Artigo III. Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança. Artigo IV. Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. Parágrafo Único: O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino. Artigo V. Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. Artigo VI. Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. Artigo VII. Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. Artigo VIII. Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor. Artigo IX. Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura. Artigo X. Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco. Artigo XI. Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo. muito mais belo que a estrela da manhã. Artigo XII. Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor. Artigo XIII. Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade. a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem. Santiago do Chile, abril de 1964 Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965). 69 130/2014 ra’”. Estavam imprimindo cinco mil exemplares do meu primeiro poema lá. São três versos, que eu não livro para distribuir. Eu telefonei para o Reis Veloso sabia que eram versos... imediatamente: “Escuta, você pediu autorização da Aconteceu quando um companheiro meu, caboeditora? Porque se não o departamento jurídico vai clo que não sabia nadar, empinava pipa (papagaio, em cima do fórum... Agora, tem outra coisa: eu não como a gente chama no Norte). Era numa serralhevou poder aceitar isso aí, porque antes eu sei porque ria na frente do rio Negro. Eu sei que ele conseguiu eu escrevi o poema, mas agora...”. Ele insistiu muito. cortar outra pipa e ela veio embolada com os outros Sabe o que eu fiz? Disse o seguinte: eu fui ajudado. papagaios. E a gente correu: “Vai, vai...”. Aí ele caiu Pelo Cony, pelo Marcelo Cerqueira, pelo negro linna água. Eu vi quando um caboclo forte se jogou – do da vida, Joel Rufino dos Santos, eu cheguei atrasado, já não se via um de meus escritores prediletos... mais ele. De repente eu vi os olhos Eu falei tudo de antes, e sobre o Por que a economia, dele, o resto dele... Era meu cole“agora” eu decidi fazer perguntas. ga de verdade. Fui pra casa, trepei que está em sexto O Reis Veloso concordou, e a secrenum abieiro, numa forquilha, astária preparou. Fiz cinco perguntas, sim sentado e, de repente, eu falei lugar, não desce ele projetava na parede as perguntas em voz alta, sozinho: “Vi meu amia escala mundial e ele mesmo lia. A primeira pergungo morrer / Afundando no peral / ta nem era minha, era de Rimbaud: O que vai acontecer?”. Essa indae vai buscar a “Por que adiar tanto o que é inadiágação, de natureza transcendente, educação, que está vel, o que é ardentemente inadiámarcou muito minha poesia, anvel?”. Aí veio outra pergunta, depois tes de qualquer coisa. E quando o em 63º? Sabe o outra etc. Quando chegou a quinta [Manuel] Bandeira soube disso, que a educação vai pergunta, eu disse: “Olha, eu preciele disse: “Você fez um terceto, e so demais das respostas, quaisquer cada verso tem sete sílabas”. Quer dizer? Olha, dona que sejam, a esta pergunta: por que dizer que nasceu pronto, já. Eu não economia, eu só a economia, que está em sexto luesperava contar isso. gar, não desce a escala mundial e vai vou se você descer buscar a educação, que está em 63º? Princípios – Como foi sua relação comigo até o 86º Sabe o que a educação vai dizer? com os concretistas? Olha, dona economia, eu só vou se T.M. – Os concretistas de São Paulugar, onde está você descer comigo até o 86º lugar, lo fizeram um grande dano que a saúde do povo onde está a saúde do povo brasileiperdura até hoje, e que vai se ro. Aí nós podemos acompanhá-la prolongando, porque eles eram brasileiro de volta ao sexto lugar e estará tudo professores de universidades. O certo.” Lembro que foi uma pausa, concretismo tinha como bandeio Mantega fazia assim com a cabeça [risos]... Quer ra eliminar a poesia, o sentimento e o verso. Como dizer, era a minha inquietação social... é que pode? Então disseram: “Que pena, o Thiago agora faz poesia política”. Não! Eu faço poesia da viPrincípios – Houve um momento específico em da. Eu posso cantar o joelho da moça que está ali, a que você descobriu que foi pego pela poesia e constelação, mas eu posso cantar também a injustidisse “tô ferrado”? Ou ela foi acontecendo de ça, a dor, a mulher que está tendo filho na calçada... maneira natural? Nasceu da floresta, houve Já é a quinta mulher que tem filho na calçada em um lugar específico de onde ela veio? Manaus, porque não tem vaga no hospital. Eu fiz um T.M. – Tenho a convicção de que a poesia é um dom. poema para o menino: “Na calçada porque não tinha Ninguém se faz poeta. Lembro que eu era meio melugar”. Na verdade, faz tempo que os pobres estão nino quando fui viver lá no sul da França, no atecom falta de lugar para ir... liê do Picasso. Ele dizia que, quando deu por si, já estava desenhando, ainda menino. O artista nasce. Princípios – Você nos falou de uma boa nova. ConVocê pode aprender a desenhar, você pode aprentou-nos de um lote – permita-nos dizer, compader a teoria da cor, o escultor pode ter um método. rando com um lote de boas garrafas de vinho Agora, o poeta... Eu posso dizer que no livro que – de cem poemas inéditos. Fale-nos um pouco publicarei em breve, que se chama Ajuste de Contas, mais desse livro, desse filho novo que vem vineu pretendo... Bem, com ele eu acho que eu encerdo, da temática desses poemas que você vai puro. São cerca de cem poemas inéditos, e eu coloco blicar. São de temática única ou variada? Você 70 Brasil nos diz que os Estatutos não são seu melhor poePrincípios – O verso literalmente bateu na parema. Estes que vêm agora seriam os melhores? de e voltou para você... T.M. – Acho que sim... Porque arte é trabalho, não é T.M. – É... Mas eu falava do leitor – ele é meu provemesmo? Quando me perguntam do que eu gosto na dor. Eu, sem meu leitor, não sou nada. E sem vocês... literatura brasileira, eu cito logo Machado de Assis, Conversando com vocês eu também estou conversou machadiano, amo Machado. Eu vou voltar ao sando comigo, sabendo da minha vida... O olhar de que falei ainda há pouco: ele não era poeta, mas tivocês me ajuda muito. nha tal domínio do idioma, esse mulato maravilhoso Agora, a leitora, quando o poema é de amor, en– que nem terminou o curso primário –, tal domínio xerga coisas que só ela vê. Ela descobre na metáfora. do idioma que conheceu os segredos mais íntimos A mulher sabe mais do que o homem, mas no final, da palavra e foi capaz de fazer o soneto da Carolina e quando ela gosta da gente, ela enxerga, ela recolhe o o Círculo Vicioso. Um ficcionista extraordinário... Mas que viu e entrega. nenhuma arte dá mais trabalho do Certa vez eu estava vendo a que a poesia. Então com o tempo exposição da Ana Letícia e então, a gente adquire... Não digo nem na galeria, eu ouço no meu ouDisseram: “Que capacidade autocrítica, não, mas o vido assim: “Na fogueira do que domínio do fazer poético. A gente pena, o Thiago agora faço por amor me queimo inteisabe que acertou mais no dizer, que ro”. Acho que esse verso está em faz poesia política”. a gente escolheu bem as palavras e Mormaço na Floresta. Aí eu me virei o lugar certo onde elas devem ficar. e vi um homem. Achei bonito, ele Não! Eu faço poesia Meu livro novo chama-se Ajuste era bonito. Olha, eu também acho da vida. Eu posso de Contas. Eu presto contas a quem? homem bonito, viu? Eu não sou... Eu presto contas a mim mesmo, à Não! Mas... Só mulher é bonita? cantar o joelho da minha vida. Acontece que a minha Não tem homem bonito? Mas, moça que está ali, vida são os outros. Por isso é que voltando ao assunto, aquele hoo livro que sai depois, em prosa, mem falou para mim: “Você me a constelação, mas chama-se Eu e os outros comigo. Eu salvou!”. Então eu lembrei que eu posso cantar estou pensando nos outros, em voos versos eram meus. “Por quê?”, cês que estão aqui. Eu não vivo sem perguntei. Ele disse: “Minha fatambém a injustiça, vocês. Eu não vivo sem o povo, sem mília era contra eu me casar com a dor gente, sem os outros... Ninguém viuma mulata. Pois, olha, estou feve sozinho, não é? Então eu estou liz, já tenho quatro filhos. Eu me prestando contas a meus leitores. queimei com a minha família, me Aliás, o primeiro poema, que também se chama Ajusjoguei, me queimei todo!”. te de contas, tem quase quatro páginas, e eu tinha me Princípios – Você foi culpado de várias coisas, esquecido de falar dos meus leitores. Aí veio então então... uma estrofe de quatro versos... T.M. – De várias felicidades. Eu vou dizer para Consegui chegar a uma linguagem que, sem perder o valor estético exigido pela arte poética, é acessível ao vocês um poema, e vou-me embora. Não vou dileitor comum. Ganhei essa preocupação quando houzer nenhum inédito, não. Tem uma coisa que eu ve a Passeata dos Cem Mil. O [Vladimir] Palmeira codescobri, e que vale para cada companheiro. É um poema muito trabalhado que se chama O ser meçou a gritar “Faz escuro mas eu canto”, e eles foram em soneto. Ele termina assim: “Eu descobri que o na minha casa com um guarda, às quatro da manhã, para me prender. Não sei por que, só sei que me jogaser, o meu ser, o meu ser no mundo, esse ser é a minha própria gravidade. Se ela desmaia, eu me ram lá depois... Era um quarto com ratos lá na Polícia desmereço”. do Exército. De madrugada foi entrando uma luz, e eu vi na parede da cela estreita – estava escrito assim: Entrevista realizada em 2 de abril de 2014 com a “Faz escuro mas eu canto”. Assim, na parede. Alguém participação de Adalberto Monteiro (presidente da que ali estivera, antes de mim, valeu-se do meu verso. Fundação Maurício Grabois), Augusto Buonicore E esse verso passou a me dar força. Deixou de ser meu. e Fábio Palácio (diretores da mesma Fundação), Eu estava meio caído, eles me deram um empurrão, eu Osvaldo Bertolino (editor do portal Grabois) e do caí de costas. Eu estava meio... Achando que o negócio escritor Jeosafá Fernandes Gonçalves. Transcrição de era ruim. E eu ganhei uma força danada! Meu próprio Adriana Quedas. Edição de Fábio Palácio. verso falou comigo: “Coragem, rapaz!”. 71 130/2014 Neoliberalismo e pós-neoliberalismo no Brasil Emir Sader* O Brasil não escapou da onda neoliberal na América Latina, mas foi dos mais tardios em aderir e dos primeiros a eleger um governo pós-neoliberal. O país ainda hoje sofre as profundas transformações que o neoliberalismo introduziu no Estado e na sociedade brasileiros O Governo FHC retomou com força a aplicação do neoliberalismo que havia sido iniciada com Collor modelo neoliberal foi hegemônico na América Latina nas últimas décadas do século passado, tornando o nosso continente aquele em que se deram mais governos neoliberais e em modalidades mais radicais. O Brasil não escapou da onda neoliberal na América Latina, mas foi dos mais tardios em aderir e dos 72 primeiros a eleger um governo pós-neoliberal. O país não escapou das profundas transformações que o neoliberalismo introduziu no Estado e na sociedade brasileiros. Mas foi um neoliberalismo diferenciado por uma temporalidade histórica distinta em relação aos outros países da região. Um neoliberalismo atrasado seja porque na transição à democracia o país con- Brasil seguiu elaborar uma nova Constituição – que afirmou direitos excluídos pela ditadura, na contramão da tendência a cancelar direitos do neoliberalismo –, seja pelo fracasso do governo Collor, o que fez com que o plano neoliberal tivesse que ser retomado por FHC um pouco mais tarde. Mas essa temporalidade diferenciada vem de antes e explica outros aspectos da nossa história, como o golpe relativamente precoce em relação aos outros países da região, o crescimento econômico que a ditadura brasileira conseguiu, ao contrário das congêneres do Cone Sul, assim como a força popular da esquerda na transição da ditadura à democracia. É preciso retroceder um pouco na nossa história para darmos conta dessas diferenças e da forma que assumiu o neoliberalismo e, posteriormente, o pós-neoliberalismo no Brasil. dos portos às nações amigas”, sem o que a própria coroa ficaria isolada do mundo no Brasil. Mais significativa ainda foi a proclamação da Independência, feita não com a expulsão dos colonizadores portugueses – como nos outros países do continente em relação aos espanhóis –, mas com a passagem da coroa da cabeça do monarca português para seu filho, no primeiro grande pacto de elites que marca a história brasileira. Mudava-se a forma de dominação, mas se mantinha o essencial – o vínculo político com a metrópole. O preço a ser pago foi duro para os mais pobres. Ao passar de colônia para monarquia e não para República, o Brasil não cortou seus vínculos umbilicais com a metrópole colonial, mas sobretudo manteve a escravidão – abolida nos países que fizeram guerras de independência e instalaram repúblicas. O Brasil tornou-se o país que mais tarde terminou com a escravidão em toda a América. A independência como Nesse intervalo de várias décapacto de elite das, foi promulgada a Lei de Terras, A consolidação do em 1850, que legalizou – mediante O Brasil sempre teve uma tempoder do latifúndio a conhecida operação de grilagem – poralidade particular em relação toda a apropriação de terras, fazenaos outros países da região e do no campo é do com que, quando terminou forcontinente, mesmo estando subresponsável, em malmente a escravidão, já quase no metido às mesmas tendências e fim do século XIX, os escravos não condicionamentos. Incorporado ao grande medida, tivessem acesso à terra e fossem mercado mundial pela exportação pelo Brasil ser o perpetuados como pobres e desposprimária, ao não se constatar a possuídos. Assim, a questão colonial se sibilidade de exploração de metais país mais desigual desdobrou na questão latifundiária preciosos, restou a exportação de do continente mais e na questão racial no Brasil. pau-brasil, artigo intranscendente Outra consequência que marcapara as metrópoles, até que entradesigual do mundo rá a estrutura social brasileira e nosmos no mesmo mecanismo dos ousa história foi a consolidação do potros países com os ciclos do açúcar, der do latifúndio no campo, sendo da borracha, do ouro, do café. responsável, em grande medida, pelo Brasil ser o país A colonização portuguesa não nos diferencia nos mais desigual do continente mais desigual do mundo. aspectos essenciais do processo de colonização espaEsse fenômeno permitiu que o poder dos latifunnhola, até que chegamos à Independência, que introdiários no campo resistisse e sobrevivesse até mesmo duziria descompassos temporais que condicionariam ao governo do Getúlio, cujos avanços sociais se limitoda nossa história posterior. Enquanto a Espanha retaram ao campo. Foi somente ao longo da década sistia à invasão napoleônica, sendo derrotada e, com isso, debilitava sua dominação colonial e favorecia a de 1950 que os direitos sociais no campo brasileiro começaram a conquistar espaço, quando os procesvitória das guerras de independência nos países de fasos de industrialização e de urbanização já haviam la hispânica, no Brasil aconteceu o inverso. A coroa avançado muito. portuguesa renunciou ao combate, entregou o país à dominação francesa e fugiu para o Brasil. Sua vinda, embora louvada por obras recentes de A construção tardia do Estado duvidoso rigor histórico, representou, ao contrário nacional dos outros países da região, um estreitamento e não um distanciamento dos laços de dominação colonial. A Revolução de 1930 foi o momento político mais As medidas tomadas na chegada da família real corimportante, mais significativo da nossa história, que respondiam a mecanismos de defesa da própria corepresentou a imposição de um novo ritmo, muito roa, exilada do seu país, a primeira delas a “abertura mais acelerado, com o resgate, pela intervenção di- 73 130/2014 reta do Estado, de questões até ali postergadas. Renovo impulso, mas, ao mesmo tempo, impondo a presentou, antes de tudo, a ruptura com a lógica do hegemonia do capital industrial internacional. modelo primário exportador e da subordinação do A chegada da indústria automobilística – de forpaís aos interesses das metrópoles colonizadoras. ma similar ao que ocorria na Argentina – mudou o Até ali a periodização histórica do país era dada eixo do processo de acumulação, deslocando-o para pelo produto que interessava às metrópoles: pau-braesse novo setor. No Brasil, ele chegou a responder, sil, açúcar, ouro, borracha, café. A própria ocupação entre a produção e suas projeções em outros setores, territorial de um país tão extenso como o nosso repor 25% do PIB. Mudava o setor predominante do fletia essa dinâmica de um país voltada para fora: ponto de vista da produção, com as consequências ocupação da faixa costeira, em particular das regiões no estilo de vida das pessoas. próximas aos portos e das regiões de produção para O ritmo acelerado de crescimento a partir daí teexportação. ve um caráter distinto, não apeIniciou-se em 1930, com o movinas na estrutura produtiva, mas mento liderado por Getúlio e a polítambém nas formas de consumo No seu conjunto, a tica de reação à crise de 1929, o ciclo que esse tipo de produção privileditadura militar, a mais intenso e longo de crescimento gia. Essa primeira transformação, da economia do país, um verdadeiro promovendo a centralidade da crise da dívida e os ciclo longo expansivo, que se prolonautomobilística e dos governos neoliberais produção garia pelas cinco décadas seguintes. capitais externos, foi sucedida por Ao mesmo tempo, o Estado assumiaquelas introduzidas pela ditadupromoveram um ria funções inéditas até ali de indura militar. retrocesso forte no ção do crescimento econômico e de O golpe militar se deu no Bragarantia de direitos sociais, até ali sil ainda durante o ciclo longo país, acentuando desconsiderados pelo Estado. expansivo do capitalismo interas desigualdades O presidente anterior a Getúlio, nacional, o que ajudou a recupeWashington Luís, representante diração econômica do país. Mas o sociais, reto dos interesses dos produtores de aspecto fundamental foi a políenfraquecendo o café, se notabilizou pela afirmação: tica de arrocho salarial, que pro“A questão social é questão de políEstado e a economia moveu a intervenção militar em cia”. Poucos anos depois o governo todos os sindicatos e impôs o bloe impondo uma de Getúlio não apenas fez com que o queio a campanhas salariais e a Estado assumisse responsabilidades todo e qualquer reajuste salarial. prolongada sobre os direitos sociais dos trabalhaAs transformações resultanrecessão, que só dores, como começou seu discurso tes na estrutura produtiva encom a interpelação dos brasileiros cocontraram seus mercados priviterminaria na mo “Trabalhadores do Brasil”. legiados – diante do bloqueio do primeira década do Junto com a construção do Estaconsumo popular pela política de do nacional foi se dando a elaboraarrocho salarial – nas altas esnovo século ção de um projeto nacional e de uma feras do consumo interno e na ideologia de nação, juntamente com exportação. Acentuaram-se as os processos de industrialização, de desigualdades sociais, enquanto urbanização, de formação e desenvolvimento de se fortaleceram os grandes monopólios privados, naclasses populares, vinculadas ao mercado interno de cionais e estrangeiros. consumo e à sindicalização. O novo ciclo expansivo se baseou em investimenEsse Estado presidiu o desenvolvimento econôtos externos – os chamados eurodólares, naquele mico brasileiro durante as cinco décadas seguintes, momento –, que permitiram diversificar a dependêncom adaptações que mudaram seu caráter em alcia do capitalismo brasileiro, na direção de investiguns aspectos essenciais. Até 1955, no espaço aberto mentos europeus e japoneses. Com a passagem do pela recessão de 1930, pela Segunda Guerra Mundial ciclo longo expansivo do capitalismo, do segundo e pela guerra da Coreia, um processo de industrialipós-guerra, ao ciclo longo recessivo atual, não foi mais zação nacional se desenvolveu de forma acelerada. possível contar com investimentos externos, apenas O final desse período, com o retorno com força dos com empréstimos externos e a juros flutuantes. capitais norte-americanos ao país, alterou a natureO ritmo de crescimento da economia brasileira za do desenvolvimento industrial, imprimindo-lhe baixou de dois dígitos para em torno de 5 a 7%, mui- 74 Brasil Agência Brasil A América Latina passou, bruscamente, de região mais afetada por governos neoliberais a única região do mundo com maioria de governos pós-neoliberais; na foto, presidentes de países que integram o Mercosul to altos para o ciclo longo recessivo, mas dependendo dos empréstimos a juros flutuantes, para obras como a Transamazônica, os estádios de futebol nos vários estados etc. etc. Bastou que chegasse a crise da dívida, em 1979, para que terminasse o mais longo ciclo de expansão da economia brasileira, iniciado em 1930, que cruzou cinco décadas praticamente ininterrompida. A esse término do ciclo de desenvolvimento econômico se somou a busca de recursos para pagar a dívida externa e, posteriormente, os governos neoliberais da década de 1990. A ascensão do consenso neoliberal e sua crise No seu conjunto, a ditadura militar, a crise da dívida e os governos neoliberais promoveram um retrocesso forte no país, acentuando as desigualdades sociais, enfraquecendo o Estado e a economia e impondo uma prolongada recessão, que só terminaria entrada a primeira década do novo século. A crise da dívida e o descontrole inflacionário favoreceram a criminalização do Estado, como suposta fonte do endividamento e dos desequilíbrios monetários. Esse processo teve, no entanto, que enfrentar-se ao consenso de saída da ditadura, materializado na nova Constituição que, na direção oposta da onda neoliberal, reafirmou direitos, a ponto de seu presidente, Ulysses Guimarães, chamá-la de Constituição Cidadã. Mas o esgotamento dos planos heterodoxos de controle da inflação e do próprio governo Sarney abriu caminho para a ascensão do consenso neoliberal, com a candidatura de Fernando Collor de Mello. Pela primeira vez o Estado foi a vítima privilegiada de um governo, desde os anos 1930. Culpado pelo atraso econômico, pela inflação, pela alta tributação, por tudo, o Estado foi criminalizado nos seus aspectos de regulação da atividade econômica, de garantia das políticas sociais. Com razão e consciência, Fernando Henrique Cardoso disse que ia “virar a página do getulismo”, o que significava desarticular o Estado nacional, regulador, para dar lugar ao Estado mínimo. Um trabalho iniciado por Fernando Collor e continuado por FHC ao longo da década de 1950, promovendo a centralidade do mercado como “melhor alocador de recursos”. Os governos neoliberais – Collor, Itamar Franco e FHC – promoveram um profundo e extenso processo de desregulamentação, expressado na acelerada abertura ao mercado externo, na privatização de empresas estatais, no enfraquecimento do Estado em favor do mercado, na precarização das relações de trabalho, entre outras medidas. O resultado, em seus aspectos mais determinantes foi promover a financeirização da economia – a hegemonia do capital especulativo – e a precarização da maior parte dos trabalhadores. 75 130/2014 Esse processo teve – como nos outros países do continente – um auge rápido e uma rápida débâcle. De imediato conseguiu, com o controle inflacionário, uma recuperação do poder aquisitivo dos salários, mas esses efeitos duraram pouco, porque não foram acompanhados de políticas sociais específicas, na ilusão de que aquele mecanismo, por si só, operaria como mecanismo de distribuição de renda. O impulso desse consenso foi suficiente – também como em outros países da região – para eleger e reeleger o presidente que o personificou, mas levou – também como nos outros países – à derrota política do projeto e à sua incapacidade para dar continuidade a seu programa. O pós-neoliberalismo Iniciou-se assim um novo período histórico, que fez com que a América Latina passasse, bruscamente, de região mais afetada por governos neoliberais – em suas formas mais radicais – a única região do mundo com maioria de governos pós-neoliberais e única com projetos de integração regional relativamente autônomos em relação aos Estados Unidos. A partir do meu livro anterior, A nova toupeira – Os caminhos da esquerda latino-americana –, buscarei desenvolver o mesmo esquema analítico para uma análise sistemática sobre a forma como o Brasil viveu e vive esse processo. O livro, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial em 2008, teve efeitos significativos, com novas edições em português e edições na Argentina (Editora Siglo XXI, de Buenos Aires, 2009), na Espanha (EdicionesViejo Topo, Barcelona, 2010) e uma edição atualizada na Inglaterra (Editora Verso, Londres, 2011). Pretendo incorporar uma análise atualizada dos governos pós-neoliberais na América Latina, tanto no seu estado em geral, como com análises particulares sobre alguns países – Argentina, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Equador –, mas o centro da pesquisa é o Brasil, pela importância que tem o país no cenário regional e internacional, assim como pelas particularidades do fenômeno no nosso país. O capítulo do meu livro anterior – O enigma Lula – serve como esquema inicial para tentar decifrar a natureza – complexa e contraditória – do pós-neoliberalismo no Brasil, que deve ser publicado como livro, da mesma forma que minhas obras anteriores, pela Boitempo Editorial. *Emir Sader é sociólogo e cientista político. Graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, mestre em filosofia política e doutor em ciência política por essa mesma instituição. Atualmente, é professor aposentado da Universidade de São Paulo e dirige o Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde é professor de sociologia. 76 Referências bibliográficas AMARAL, Roberto (coordenador). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge Editorial, 1995. ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo”. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.). Pósneoliberalismo. Petrópolis: Vozes, –1994. ARAÚJO, José. Um retrato do Brasil – Balanço do governo Lula. 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Filipe Lima e Eliete Bandeira, colaboradores da Bahiagás. 77 130/2014 As razões e as consequências do golpe de Estado na Ucrânia Ricardo Alemão Abreu* O desfecho do conflito na Ucrânia, e da Síria, será importante para definir o que virá pela frente neste século 21. Estão atuais as bandeiras da paz, da luta contra o (neo)fascismo, pela autodeterminação e desenvolvimento, pela soberania e a independência nacional. Está atual a bandeira da transição ao socialismo O atual conflito na Ucrânia somente pode ser compreendido a partir de uma visão global dos conflitos geopolíticos e econômicos, pois não é um fenômeno estritamente nacional. Com o prolongamento da atual crise do capitalismo, aumentam a polarização e a radicalização política – particularmente nos EUA e na Europa, onde em vários países ressurgem e crescem as forças de ultradireita, neofascistas, anticomunistas, racistas, xenófobas e obscurantistas. Esses são os casos, entre outros, de França, Áustria, Holanda, Grécia e também da Ucrâ- 78 População da Crimeia aprova a união com a Rússia nia e dos países do Mar Báltico, como Lituânia, Letônia e Estônia, que fizeram parte da União Soviética. Em termos geopolíticos, econômicos e militares, acelera-se a transição em curso nas relações de poder no mundo. Os Estados Unidos e a União Europeia ampliam a ofensiva econômica e militar para tentar reverter a tendência ao declínio relativo de sua hegemonia. Em uma escalada de conflitos e guerras, adensa-se a disputa entre os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), por um lado, e a China, a Rússia, os demais BRICS e países em desenvolvimento, com destaque para a América Latina, por outro. Internacional Para Luiz Alberto Moniz Bandeira, há uma “nova guerra fria” em curso, e a “Síria converteu-se Major Theater War [maior teatro de guerra] (MTW) da segunda guerra fria, evidenciando mais nitidamente a confrontação de dois blocos, conformados, de um lado, por Estados Unidos, União Europeia, petromonarquias do Golfo Pérsico, Turquia e Israel e, de outro, por Rússia, China e Irã, não obstante a diversidade e as contradições de interesses” (1). Há um novo papel da Rússia, que recupera parte da autonomia nacional e regional que tinha no período da União Soviética, e isto ficou muito evidente na resistência à agressão imperialista contra a Síria. Moniz Bandeira diz que “os Estados Unidos jamais se conformaram com a presença soviética e a continuação da Rússia no Mediterrâneo”, por isso “o objetivo dos EUA sempre foi a derrubada do regime de Bashar al-Asssad, de modo a eliminar A reedição da “revolução laranja” a presença da Rússia no Mediterrâneo, fechando na Ucrânia suas bases navais – Tartus e Latakia – instaladas na Síria”, ademais de conter a China e o Irã no Oriente Como (re)começaram os conflitos na Ucrânia? As Médio e no Magreb, no norte da África. manifestações da direita na Ucrânia (re)começaram Por isso, para Moniz Bandeira, “a guerra na Síem 21 de novembro em 2013, quando o governo eleiria, desde o início, configurou uma batalha pelo to anunciou que não iria aderir à União Europeia. controle do Mediterrâneo, região de vital importânA esta altura, por exemplo, o Partido Comunista da cia geopolítica e estratégica dentro do contexto de Ucrânia, com 32 parlamentares em um total de 442, um conflito global, não declarado” já havia se reunido com o presi(2). A região sul da Ucrânia, pardente Viktor Yanukovich e proposticularmente a Crimeia, dá a Mosto uma série de medidas, sendo Há um novo papel cou o acesso ao Mar Mediterrâneo uma das principais uma consulta da Rússia, que através da base militar de Sebastopopular ao povo da Ucrânia sobre pol, no Mar Negro. a adesão à União Eurasiana ou à recupera parte da O conflito na Síria, seguido peUnião Europeia. autonomia nacional las disputas político-militares na Mesmo com a insensibilidade Ucrânia, marca uma nova etapa, para as demandas populares e a e regional do na qual os Estados Unidos, a União corrupção, e dirigido por uma oliperíodo da URSS, e Europeia e a Otan podem muito, garquia formada através das primas não podem tudo. De 1989, ano vatizações das estatais do período isto ficou evidente da “queda do Muro de Berlim”, a soviético, o governo da Ucrânia foi na resistência 2013-14 foram quase 25 anos de democraticamente eleito, com resupremacia completa do chamado lações normais com as potências à agressão Ocidente. Agora essa situação está imperialistas ocidentais e boas reimperialista contra se alterando. lações com a Federação Russa. Recentemente a Rússia fez a Retomando a cartilha de “mua Síria proposta de uma união alfandedança de regime” da CIA, já apligária regional, a União Econômica cada anteriormente na Ucrânia Eurasiana, que abrange a Ucrânia, com a chamada “revolução laranpaís importante com mais de 45 milhões de habija” em 2005, desencadeou-se uma campanha dos tantes e que é berço cultural e histórico da nação Estados Unidos, da União Europeia e da mídia morussa. De outra parte, ocorrem os planos de expannopolista internacional, em aliança com a direita e são da União Europeia e da Otan, sendo que esta com a extrema-direita neofascista ucraniana. Maniúltima já incorporou 12 novos países membros no festantes, comandados pelas forças de direita e por Leste Europeu. neofascistas, enquanto eram apresentados pela mí- 79 130/2014 dia monopolista como lutadores pela “liberdade e a no antecipada. Mesmo assim, a diplomacia estadunidemocracia”, e vandalizavam prédios públicos e as dense, representada pela ultraconservadora Victoria sedes do Partido Comunista, agrediam e matavam Nuland, orientou unilateralmente a continuidade civis, policiais e militares. das ações das forças de ultradireita e da CIA, que Na Ucrânia a partir do final de 2013 foram usadeflagraram um golpe de Estado no dia seguinte, 22 das novamente as chamadas “estratégias de mudande fevereiro. Uma gravação telefônica de Nuland ao ça de regime” – em outras palavras uma cartilha de embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia ficou facomo realizar um golpe de Estado –, nas quais a CIA mosa pela expressão “Foda-se a União Europeia!”. tem larga experiência. Durante as primeiras horas do golpe, os grupos Durante as movimentações para o golpe de Estado neofascistas apoiaram alguns parlamentares que e até esse momento vem sendo atacados símbolos da montaram uma farsa, rasgaram o acordo assinaex-URSS, como estátuas de Lenin, e da resistência ao do pelo presidente constitucional, e nomearam um nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, em uma governo provisório nacional e outros para todas as furiosa campanha anticomunista, províncias, inclusive as do leste e com múltiplas agressões e perseguido sul do país. Depois ainda imNo atual período ções aos militantes e às sedes do PC puseram o retorno da Constituição da Ucrânia. Atualmente a principal anterior, e numa ação nacionalista pode estar se sede do PC em Kiev está ocupada e de direita, revogaram o russo como configurando não foi transformada em “escritório” de idioma oficial. grupos neofascistas. A posição da Rússia foi de deuma 2ª etapa da Segundo o embaixador brasinúncia do golpe da direita no país mesma Guerra Fria leiro Samuel Pinheiro Guimarães, vizinho e de não-reconhecimento as ações de “mudança de regime” do “governo interino”, classifica– que acabou com começam “com a formação de do como ilegal e ilegítimo. A China o fim da URSS –, forças especiais para intervenção apoiou discretamente a Rússia, e encoberta, com o treinamento de tem mantido essa posição, apesar de mas uma segunda agentes provocadores infiltrados forte pressão dos Estados Unidos. Guerra Fria, nova e que organizam manifestações paA consequência do golpe de dicíficas, com base nas instruções do reita na Ucrânia é a provável dividiferente manual do professor Gene Sharp, são do país, que já ocorreu no caso Da Ditadura à Democracia, que foi da Crimeia. Assim como outras retraduzido para 24 idiomas e distribuído pela CIA giões do leste e do sul da Ucrânia, a Crimeia é região e pelas fundações e ONGs, que levam à reação dos de grande presença étnica russa. Até 1954 a Crimeia governos, que são acusados de excessos na represfazia parte da Federação Russa. Além disso, é imsão dessas manifestações e de violação dos direitos pensável para a Rússia perder as suas bases militares humanos de sua população, o que passa a justificar navais na Crimeia, pelo que expusemos acima. a rebelião armada, financiada e equipada do exteO governo constitucional e o parlamento da Cririor e, eventualmente, a intervenção humanitária” meia aprovaram e realizaram um referendo sobre (3). Esse é roteiro dos chamados golpes de Estado uma união com a Federação Russa, independência ou “suaves”. maior autonomia dentro da Ucrânia, dia 16 de março. A população que votou aprovou com 98% a adesão da Golpe de Estado na Ucrânia foi Crimeia à Federação Russa. Outras regiões da Ucrânia apoiado e articulado pelos EUA levantaram a bandeira do referendo para unirem-se à Federação Russa, e constituíram repúblicas populaEm meio ao conflito na parte oeste da Ucrânia, res, como Donetsk, Lugansk e a Carcóvia. principalmente na capital Kiev, ocorreu uma divisão na base parlamentar e inclusive no partido do goA resistência popular ao golpe de verno, o Partido das Regiões, e o presidente constiEstado no sul e no leste da Ucrânia tucional Viktor Yanikovich foi forçado a um acordo, negociado na presença de chanceleres da Rússia e da Surpresos com a resistência popular no leste e União Europeia, esta mais interessada em manter o sul da Ucrânia, apoiada pela Rússia, agora os Esfornecimento de gás natural russo, do qual depende. tados Unidos e a União Europeia exigiram respeito O acordo feito em 21 de fevereiro previa a convoao novo governo “legítimo” – dizem – e criticaram cação de eleições, e uma transição política de goveras tentativas de desestabilização (que hipocrisia!) 80 Internacional e o não-reconhecimento dos golpistas; sancionaram a Rússia com retaliações econômicas e políticas; expulsaram a Rússia do G-7; e mobilizaram tropas da Otan em defesa da “soberania e da integridade territorial” da Ucrânia (sic). Alguns analistas “ocidentais” dizem que essa situação é a mais grave na Europa desde a guerra que dividiu a Iugoslávia, há 15 anos. Além da adesão da Crimeia à Rússia, os movimentos populares que resistem nas regiões de maioria etnicamente russa, defendem a adesão à Rússia ou um novo pacto federativo, com mais autonomia para essas províncias, e a garantia do não-alinhamento da Ucrânia em relação à União Europeia e à Otan, no que contam com o pleno apoio da Rússia. O governo golpista da Ucrânia disse que não aceitará ceder território, e anuncia a intenção de aderir à União Europeia e de fazer parcerias com a Otan, o que agrava o conflito. A partir do início de abril iniciou-se uma fase mais perigosa, com uma visita de John Brennan, diretor da CIA, a Kiev, na qual ele se reuniu com os golpistas e suas forças de segurança e deflagrou operações especiais, envolvendo as forças armadas ucranianas, contra os manifestantes partidários da autonomia ou da integração à Federação Russa. Foi muito revelador o discurso de Vitali Churkin, Embaixador da Federação Russa no Conselho de Segurança da ONU, no dia 14 de abril. Disse ele, ao seu colega golpista ucraniano, que queria processar a Rússia por terrorismo: “Por que nunca pensaram em processar os que aterrorizaram o seu próprio governo [da Ucrânia] durante vários meses, até o dia 21 de fevereiro? Quem fez guerra contra a Polícia, quem queimou vivos oficiais de Polícia da Ucrânia, quem matou a tiros policiais e pessoas que protestavam contra o governo e que parecem ser aliados do hoje governo de Kiev? O senhor jamais antes os chamou de terroristas, e isso por alguma razão. E até os eximiu de qualquer responsabilidade por suas ações criminosas, que se repetiram por vários meses. (...) Agora os EUA aprovarão aquela ordem criminosa, para usar o exército contra civis? Por que, quando o povo estava indo assaltar a residência do presidente ucraniano os EUA pediram que não usassem a força e, agora, na situação atual, mudam completamente de posição, adotam o ponto de vista oposto e apoiam a ordem de Turchinov [atual “presidente” da Ucrânia]?” Uma “segunda guerra fria” ameaça a paz mundial O atual período pode ser caracterizado como pós-Guerra Fria ou como período entre guerras frias? Pode estar se configurando não uma segunda etapa da mesma Guerra Fria – que acabou com o fim da URSS, ou até mesmo antes, em meados dos anos 1980 –, mas uma nova e diferente Guerra Fria, uma segunda Guerra Fria, como diz Luis Alberto Moniz Bandeira, mais geoestratégica e geoeconômica que ideológica. Esse é um tema crucial que merece reflexão e a realidade mundial falará mais alto, ao final. Como diz o pensador marxista Domenico Losurdo, a questão central na atualidade é a luta entre o neocolonialismo, um punhado de países imperialistas organizados militarmente na Otan, de um lado, e os povos e nações que resistem, o campo anti-imperialista e da luta antineocolonial, a ampla frente contra as guerras e as intervenções políticas imperialistas, de outro. O ano de 2014 simbolicamente é marcado pelos 100 anos da Primeira Guerra Mundial, e os 75 anos do início da Segunda Guerra Mundial. O desfecho do conflito na Ucrânia, assim como o da Síria, será importante para definir o que virá pela frente neste século 21. Estão atuais as bandeiras da paz, da luta contra o (neo)fascismo, da luta pela autodeterminação e pelo desenvolvimento, pela soberania e a independência nacional. Está atual a bandeira da transição ao socialismo, para sepultar a era do capitalismo-imperialismo e de suas guerras. * Ricardo Alemão Abreu é economista, pósgraduando em Integração da América Latina na USP, e secretário de Relações Internacionais do PCdoB. Notas (1) Luiz Alberto Moniz Bandeira lançou o livro A segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos: das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio, no final de 2013, pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro. (2) Páginas 596 a 597 do novo livro de Moniz Bandeira citado acima. (3) Texto escrito por Samuel Pinheiro Guimarães para a Apresentação do livro de Moniz Bandeira citado acima. 81 130/2014 40 ANOS DA REVOLUÇÃO DE ABRIL “Quando o povo acorda é sempre cedo” Intervenção de Jerónimo de Sousa, presidente do Partido Comunista Português (PCP), na Assembleia da República Na sessão solene na Assembleia da República de Portugal, comemorativa do 40º aniversário do 25 de Abril, o Secretário-Geral do PCP, Jerónimo de Sousa, afirmou que aos que contemplam hoje a destruição e fazem planos para muitas décadas de austeridade e sofrimento, nós dizemos: “O projeto de Abril inscreve-se ainda na Lei Fundamental. Os seus valores continuam a ter validade e atualidade”. Veja, a seguir, a íntegra do pronunciamento 82 Internacional Senhor Presidente da República, Senhora Presidente da Assembleia da República Senhor Primeiro-Ministro Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional Senhores Deputados Senhoras e senhores convidados 40 anos, sendo um tempo curto na história de um povo é um tempo largo nas nossas vidas que permite extrair lições e ensinamentos sobre o ato e o processo mais moderno e avançado da nossa história contemporânea, a Revolução de Abril de 1974. Acto de libertação e processo de transformação, realização, conquista e participação, não esquecendo nunca que país tínhamos resultante do regime fascista de quase meio século de opressão, que usava a violência contra o povo não por sadismo mas antes como instrumento repressivo de proteção e sustentação da ditadura terrorista dos monopólios e latifúndios. Guerra, isolamento internacional, atraso económico, social, cultural e civilizacional, analfabetismo, emigração em massa, liberdades individuais e coletivas juguladas, desigualdade entre homens e mulheres, com um povo sofrido mas de onde emergiam os lutadores, comunistas, democratas, patriotas, que com muitos anos de prisão, perseguição e repressão, apesar das feridas e cicatrizes, sabiam que resistir era já vencer, mesmo sem saber em que data seria essa vitória. Aconteceu naquela madrugada de Abril de 1974. Corajosamente um sector das Forças Armadas determinado pelos capitães para quem o povo e as instituições democráticas têm uma dívida de gratidão, inicia um levantamento militar de desfecho imprevisível imediatamente apoiado e secundado por um levantamento popular. Esta fusão operacional e original do povo e das forças armadas foi decisiva porque sem iniciativa popular o movimento militar não venceria tal como o movimento popular sozinho não teria êxito, movimento popular que quis afirmar de forma inequívoca o seu apoio à revolução logo nas primeiras horas, mas particularmente naquele primeiro 1º de Maio em liberdade convocado pela Intersindical Nacional e que encheu as ruas e praças das vilas e cidades. A consigna Povo-MFA não foi uma consigna imaginada em gabinetes por estrate- gistas militares, ou por políticos imaginativos, mas o reconhecimento, aprovação e definição de um desenvolvimento real e concreto do processo de conquista da liberdade e da democracia e sua instauração e institucionalização com a Revolução de Abril. Em todo o processo que se seguiu nenhuma das suas realizações foi oferecida ao povo português. Nem por salvadores, nem pelo poder político, nem pelos militares. Foram por ele conquistadas! Reconhecidas pelo MFA e consignadas pelos deputados constituintes. As liberdades de imprensa, de associação, de reunião, de manifestação. Uma nova estrutura econômica liberta do poder dos monopólios travando a sabotagem econômica e conduzindo as nacionalizações de setores básicos e estratégicos, valorizando o papel das pequenas e médias empresas. Conquistando a Reforma Agrária, combatendo a ação dos latifundiários, desbravando terras incultas e desenvolvendo a produção agrícola e pecuária nas terras do sul, criando emprego, con- 83 130/2014 quistando mais a norte o direito ao uso e a gestão Sim, é verdade que muitas das principais condos baldios pelos povos. quistas de Abril foram destruídas, que se assiste à Conquistando direitos laborais, sociais e culturecuperação pelos novos e velhos senhores do capirais, liberdade sindical, direito à greve, a não ser destal, das parcelas de domínio perdido com Abril, volpedido sem justa causa, proteção na infância e na tando a amassar fortunas nuns poucos, agravando velhice, direito ao ensino, à saúde, à proteção social, as injustiças, o aumento da exploração e do empodireito à igualdade das mulheres no trabalho, na fabrecimento, a dependência do estrangeiro. mília, na sociedade, direitos da juventude. Sobre o povo que se atreveu a resgatar a sua digConquistando o direito de denidade e o poder e a soberania que cidir sobre os problemas das suas nele deve residir volta a classe domiterras e o seu desenvolvimento, nante e seus executantes a decretar Foi uma concretizado no reconhecimento do a resignação e a submissão não supoder local democrático, portando a luta nem os lutadores. revolução onde os Conquistas que acabaram por Aos que contemplam hoje a sua trabalhadores e ser consagradas na Constituição obra de destruição e fazem planos aprovada por uma Assembleia para muitas décadas de austeridao povo decidiram Constituinte ela em si mesmo exde e sofrimento, nós dizemos: O assumir o seu pressão da conquista do direito de projeto de Abril inscreve-se ainda votar, eleger e ser eleito. na Lei Fundamental. Os seus vapapel de obreiros, Não, não foi uma revolução perlores continuam a ter validade e construtores e feita ou produto de uma experiência atualidade. laboratorial. Mas muito menos foi Do desenvolvimento econômidonos do seu um ato e um processo em que fosse co tendo como objetivo a melhoria devir coletivo, preciso mudar alguma coisa para fida qualidade de vida das populacar tudo na mesma. Não se esperava ções e o pleno emprego, emanam materializando que os poderosos, a classe dominanos valores da justa e equilibrada sonhos, aspirações te desapossada do poder, assistisse distribuição da riqueza, da ecopassivamente ao processo de transnomia ao serviço das pessoas e da e reivindicações, formação que punha em causa os justiça social. abrindo as portas de seus interesses e privilégios. Da reforma agrária e dos balFoi uma revolução onde os tradios emana o valor da terra a um país encarcerado balhadores e o povo decidiram quem a trabalha e o ancestral valor ao mundo assumir o seu papel de obreiros, comunitário da terra. construtores e donos do seu devir Das nacionalizações emana o coletivo, materializando sonhos, asvalor, a necessidade e possibilidapirações e reivindicações, abrindo as portas de um de de pôr fim ao poder dos monopólios. país encarcerado ao mundo, libertando outros povos Dos direitos laborais emana o valor do trabalho e que também lutavam para se libertarem do jugo do dos trabalhadores. colonialismo, pondo fim à guerra e propondo a paz Do Estado para responder às necessidades do e a cooperação entre os povos. E aos que querem país em oposição ao Estado que temos como instrureescrever a história lembramos que foi a Revolução mento de uns poucos, emana o valor do Estado ao de Abril e não outro processo que abriu as portas de serviço do povo. Portugal à Europa e ao Mundo. Da independência e soberania nacionais emana Comemorando continuamos e continuaremos a o valor do povo português decidir do seu futuro e da dar combate à reescrita da história, à negação da sua pátria. existência do fascismo, às falsas atribuições do paTais valores estão presentes na sociedade e na pel de cada um na revolução e na contrarrevolução consciência, hoje abalada mas latente, que a revoluque se seguiu. ção deu aos portugueses e nos direitos que resistem. Durante décadas, sucessivos Governos, exercendo Consciência que a liberdade vale, consciência o poder, executando a política direita que dura há 37 dos direitos do ser humano ancorados no coração de anos, recuperaram e restauraram de novo o poder do quem viveu e participou no acto e no processo da grande capital, submetendo o poder político ao poder Revolução. econômico, rasgando ou engavetando compromissos Dir-nos-ão que mais de metade da população não assumidos com o povo e com a Constituição, com Abril. tinha nascido ou era criança quando se deu Abril. 84 Internacional Mas na consciência das novas gerações – quando hoje lutam pelo direito ao trabalho com direitos, contra as injustiças, a precariedade e o desemprego, quando lutam contra as propinas ou os cortes das bolsas, em defesa da escola pública, quando vêm à rua gritar a sua indignação contra a Troika e a submissão ao estrangeiro, quando entendem a liberdade como algo tão natural e insubstituível como o ar que respiram, então mesmo que eles não lhe deem esse nome, na sua consciência fermentam e alicerçam-se os valores de Abril, que se hão de projetar no futuro de Portugal. Uma política e um Governo que estão a dar cabo do presente da juventude é que estão condenados à derrota e a não ter futuro. Para o PCP, partido da resistência e da luta antifascista, partido de Abril, se há coisas que aprendemos é que mesmo quando tudo parece ameaçado ou perdido, é pela luta, pela força do nosso ideal, com uma política de verdade pela confiança É possível uma vida melhor num Portugal de progresso, livre e democrático, com uma política patriótica e de esquerda, uma democracia avançada inseparável dos valores que emanam desse acontecimento extraordinário que foi a Revolução de Abril que hoje celebramos no povo português, com a convergência dos democratas e patriotas, que temos convicção inabalável que nada está perdido para todo o sempre. Que é possível uma vida melhor num Portugal de progresso, livre e democrático, com uma política patriótica e de esquerda, uma democracia avançada inseparável dos valores que emanam desse acontecimento extraordinário que foi a Revolução de Abril que hoje celebramos. Lutaremos por isso, com aquela esperança que não fica à espera, com aquela confiança que Ary dos Santos, poeta de Abril, expressou no seu poema de que “quando o povo acorda é sempre cedo”. E se Abril e os seus valores continuam a ser e a ter mais projeto que memória, então valeu e vale a pena! Disse. 85 130/2014 O resgate dos valores humanos Mazé Leite* Inauguração do Ateliê Contraponto, em 19 de março de 2014, e seus artistas (esq. p/ dir.: Alexandre Greghi, Luiz Vilarinho, Mazé Leite e Marcia Agostini) ao lado de Maurício Takiguthi Maurício Takiguthi inaugurou o Ateliê e Galeria Contraponto em São Paulo com uma exposição de seus trabalhos de pintura mais recentes. Extremamente dedicado a seu ofício, Takiguthi impressiona não só pela qualidade de sua obra, mas também pela profundidade de seu pensamento. Conversar com ele é um exercício que sempre desafia os mais desatentos a um esforço de concentração um pouco maior do que se precisa para desencadear um diálogo comum. Porque ele “pensa” seu trabalho 86 M Cultura ais uma vez entrevistei esse pintor que tem uma escola aqui em São Paulo, o Ateliê de Arte Realista. Há dez anos, Maurício Takiguthi estava quase sozinho em sua teimosia de ensinar as técnicas da arte figurativa. Dez anos depois já podemos contar com pelo menos meia dúzia de ateliês figurativos em São Paulo, com dezenas de praticantes, entre estudantes e artistas. O mais recente destes ateliês que por aqui surgiram é o Ateliê Contraponto, do qual faço parte com mais três colegas. Todos os grandes Mas voltemos à nossa conversa artistas, desde os da com Takiguthi, que tanto insiste (1775-1854), que em seu texto A reno resgate do conhecimento e da pintura, literatura, lação das artes plásticas com a natureza tradição, na busca do autoaperfeiteatro e música, mostra como o olhar do artista, peçoamento do artista como um canetrando no Real, enxerga o munminho solitário, mas comprometialcançaram o do através da sua essência, que é do com o que há de mais profundo cerne, a essência acessível ao nosso espírito (menno conhecimento do próprio ofício. te). E Schelling adverte que aqueTudo isto – diz ele – para resgatar do mundo, criando le que apenas enxerga do mundo valores mais humanistas. obras seminais a sua casca, a sua superfície, a ele Segundo afirma Maurício, des“jamais será facultado atingir o de que começou sua formação e que se sobrepõem processo profundo”. Enquanto o seu trabalho como pintor, há uns à nossa concepção artista que tem consciência de si e 28 anos, ele ainda se mantém bade seu papel sabe o caminho para sicamente como a mesma pessoa de tempo; obras desvendar as aparências que muique se coloca diante do mundo que emocionam tas vezes a realidade toma. como aprendiz: vivendo “cheio de Diz Schelling: “Antes de mais nadúvidas, questões, e instigado pela pessoas por séculos, da, a natureza vem ao nosso encontro de curiosidade de querer entender o inspirando modo hermético e sob uma forma mais que os mestres viam”. Mas acresou menos rígida. Assemelha-se à beleza centa que não há como medir a sóbria e serena que não chama a atenção plausibilidade desse tipo de desejo, por meio de sinais gritantes e nem atrai o olhar vulgar. Como dessa ambição. Nunca podemos saber aonde nossos podemos fundir, digamos, do ponto de vista espiritual, aquela desejos nos levam, mas serve como um motor que forma aparentemente rígida a fim de que a força mais clamonos move e que move o pintor Maurício Takiguthi rosa das coisas flua juntamente com a força de nosso espírito, até hoje “depois de 28 anos de estrada”. transformando-as num só molde? Temos que ultrapassar a “Continuo insistindo em obter respostas”, acresforma, para, aí então, readquiri-la como algo inteligível, vícenta ele. “Porque continuo frustrado boa parte do vido e verdadeiramente sentido” (grifo meu). tempo por não tê-las. Porque continuo ‘apanhando’ Todos os grandes artistas, desde os da pintura, e, mais importante, porque continuo sentindo tesão passando pela literatura, pelo teatro e pela música, pelo realismo que me instiga na esperança de um dia alcançaram o cerne, a essência do mundo, criando ter acesso”. obras seminais que se sobrepõem à nossa concepção de tempo; obras que emocionam pessoas – que estão Ter acesso a quê? separadas de seus criadores por séculos de distância – e que permanecem encantando, gerando pensaAqui podemos buscar apoio no pensamento do mentos, inspirando. filósofo alemão Friedrich Wilhelm von Schelling 87 130/2014 E intrigando. Qual é o processo profundo, qual e a morte, com gestos dramáticos, olhares densos; é o caminho que nos leva a este mergulho do qual figuras que parecem nos apontar nossos próprios retornamos como criadores? medos, nos defrontando incomodamente. Ao mesNão é uma resposta fácil. Mas um caminho possímo tempo, os traços são fluidos, gestuais, gerando vel é o exercício do ofício ao qual cada um se propôs movimentos em ondas que parecem todo o tempo e é isso o que diariamente Takiguthi ensina a seus nos levar para dentro dos abismos dessas figuras. alunos. Por sua origem japonesa, ele se reporta mui“Diferentemente do que se associa a um realista, tas vezes aos ensinamentos zen-budistas que dizem eu procuro não ficar na mera imitação da natureque “a prática é que é expressiva”. za ou atingir qualidades ‘fotográ“Desse ponto de vista”, diz ele, ficas’. Não sou adepto da ideia de “somos algo a partir do que fazeque o melhor propósito de uma Este também é mos e não do que dizemos ou acrepintura é de parecer com uma foditamos”. Por isso fica difícil criar tografia. Quero registrar na tela a o papel da arte: qualquer adjetivo que qualifique o minha percepção interna da natuproduzir essa sujeito, pois no momento em que reza humana ou, mais relevante uma pessoa se dá uma denominapara mim, conseguir visualizar miconexão entre o ção, por exemplo se chama a si prónha realidade interior. Muito disReal e o artista prio de “artista”, isso cria, segundo so se passa pelo diálogo silencioso Maurício, uma predisposição a que com o que faço: a partir da imersão que traduz “as palavras comecem a substituir no processo que nem sempre é fápictoricamente ilusoriamente o que fazemos, obscil, dadas as grandes distrações da curecendo a realidade dos fatos e a vida numa metrópole, procuro me o que vivenciou, visão sobre nós mesmos”. debruçar sobre questões intrínsealcançando um Ou seja: a ideia é fazer ao contrácas da pintura e do desenho.” rio do que se faz atualmente, onde Os fundamentos conceituais, timbre possível de o poder do discurso é imenso, mas os instrumentos técnicos, a prática ser compreendido a prática é subestimada. Nas artes e a estrutura mental se fundem e contemporâneas, antes da obra há se combinam num todo complepor outro ser uma retórica altamente hermética xo e se tornam elementos com os humano sobre ela, o discurso substituindo a quais ele trabalha para recriar o coisa concreta. Sobrepõe-se o munque ele chama de “etéreo”, que do do idealismo mental contra o evidencie um certo estado de espícontato direto com a realidade. O ofício do artista rito, ou sensação. “Talvez este seja o resumo do tema acontecendo prioritariamente no mundo da mente, da minha vida como pintor: ter a ambição impossígerando nebulosidades que – como bem diz o poeta vel de traduzir essa qualidade invisível por meio de Affonso Romano de Sant’Anna – fazem com que as asserções visuais no campo do indizível”. artes visuais atuais possam melhor ser interpretadas Ou seja, Takiguthi parece buscar expressar aquele do ponto de vista da psicanálise. lugar onde o reino das palavras não existe. Restam a Mas a prática concreta é mais enfática do que sensação, a contemplação, a absorção da alma do arqualquer discurso. “Faz sentido”, acrescenta Mautista em contato com a alma do observador, criando rício, pois “se somos honestos é porque praticamos um uníssono impossível de se traduzir em palavras, atos honestos e não simplesmente porque dizemos porque faz parte daquele espaço onde navega toda a aos outros ou temos essa ideia sobre nós mesmos. subjetividade humana. Este também é o papel da ar(...) E em geral a pessoa que se preocupa demais em te: produzir essa conexão entre o Real e o artista que se autodefinir ou falar de suas qualidades pessoais é traduz pictoricamente o que vivenciou, alcançando que provavelmente está mais ocupada em convenum timbre possível de ser compreendido por outro cer-se ou convencer ao outro – pela retórica, e não ser humano. por atos concretos. Pode servir como marketing pes– Que relação há entre o que você pinta hoje e o soal, mas não como autoaperfeiçoamento”. tempo contemporâneo, Maurício? Pergunto-lhe. Por isso a “leitura da ação” diz mais do que a de“Se está falando do tempo contemporâneo enfinição verbal. quanto relação entre a postura tradicional e o status Neste ponto, pergunto a Takiguthi a respeito da quo com sua lógica pós-moderna, que tem a arte cotemática de sua pintura atual. As figuras que ele pinmo entretenimento, barulho, escândalo ou transgresta são fortes, parecem habitar um lugar entre a vida são, nenhuma!”, diz ele. Maurício Takiguthi insiste 88 Cultura em se voltar para a arte tradicional que para ele é sinônimo de conhecimento, do caminho solitário do mestre em busca da construção, do sentido dos valores permanentes do ser humano, do resgate da contemplação da arte, da observação seletiva baseada em critérios. Daí sua crítica de que hoje não há espaço para isso, em especial aqui no Brasil. Takiguthi explica que o tempo contemporâneo impõe um fluxo interminável de informações, de imediatismo pragmático Maurício Takiguthi e suas obras de Realismo Contemporâneo que força as pessoas a produzirem “num ritmo ansioso e alucinado” do qual é difícil escapar. “O que pode ser feito é minimisive por artistas ditos modernos e contemporâneos zar seus efeitos pela consciência dessa forte influênnão estariam nos distanciando cada vez mais de nós cia quase arrasadora, dada a impossibilidade de o mesmos, dos nossos sonhos, da nossa capacidade de indivíduo simplesmente descolar-se social e cultucriadores do mundo? ralmente dessas imposições”, acrescenta. Talvez isso dependa da busca novamente do que é Mas diz também que a pintura pode desemessencial, do que não é óbvio atualmente, “das quapenhar esse papel que ele chama de “campo de lidades perenes, universais, que demandam tempo e respiro” em outro tipo de ar. “Não o ar viciado e maturidade para poder visualizar e compreender”, barulhento que exige aceitação acéfala das regras, complementa Maurício. mas um ar onde o tempo transcorre de maneira Neste ponto da conversa, relembro um diálogo diferente, mais desacelerada. Onde o ar, ao invés que aconteceu entre nós e outros amigos, num sábade ser estritamente racional, calculista, mecânico, do à noite no Ateliê Contraponto, quando Maurício previsível, vinculado fortemente às demandas da disse que está abdicando da possibilidade de ser chautilidade, pode assumir uma dimensão intuitiva, mado de “artista”. Aquilo me interessou e logo quis voltada para a introspecção e contemplação das saber o motivo. Takiguthi respondeu: coisas visíveis e invisíveis”. – “Já faz um tempo que venho constatando a exisEle afirma que essa mudança de perspectiva na tência de um patrulhamento ideológico, forte, mas relação com o tempo e “o deslocamento para estados implícito, em torno das exigências para que uma pesmentais mais sensoriais” apazigua o espírito, amplia soa seja considerada um artista: que deva estar ‘ana sensibilidade. É uma proposta a uma resistência tenada’ na busca pela próxima tendência (como na ao modus operandi exigido pela sociedade atual, que moda) – perdendo, assim, a conexão com sua busca exige do ser humano coisas além da sua capacidade, interna; que deva ignorar as habilidades do seu camfísica e mental. Pergunto-me se não seria por isso po de atuação (que significa conhecimento prático e que hoje temos uma sociedade onde se usa tanto retécnico); que faça prevalecer a habilidade retórica de médio para depressão e se faz uso de tantos narcóconvencer o outro de que o que faz é arte, em deticos? Esse deslocamento da prioridade aos valores trimento do conhecimento em profundidade que lhe humanos em prol da produção e do consumo não permita pensar o que faz ou fazer o que pensa; entre está criando uma sociedade doente, com indivíduos outras. Este patrulhamento serve fundamentalmenmassacrados diariamente em busca da sobrevivênte para tornar oficial o monopólio da verdade e mancia? O esvaziamento de símbolos universais, o corte ter a posse da ‘aura’ artística, tão importante numa radical com a tradição histórica perpetrado inclusociedade sufocadamente racional”. 89 130/2014 Hoje qualquer um pode, ou quer, se dizer “artistodo custo a autoimagem que cria de si como artista”. Mas raríssimos são aqueles que preferem pratita/celebridade, por uma via afetada, ególatra e arrocar seu ofício, no suor do dia a dia sobre a mesa de gante. Caça desesperada e exclusivamente a fama, a desenho, frente ao cavalete, questionando, buscanreputação e os interesses mercadológicos. O seu foco do aprender cada vez mais, se aperfeiçoando como o concentra-se nos aspectos extrínsecos à sua prática Demiurgo de Platão, o Grande Artesão, cujo próprio e, certamente, quer ser maior do que faz”. significado está naquele que trabalha, no artífice, no Foi num dia em que refletia sobre isso que Mauoperário manual. Demiurgo, palavra grega que vem rício Takiguthi se viu “esgotado” com esse estado de duas outras: demios, significando de coisas. Ao ver como a palavra “o povo” e ourgos, “trabalhador”, “Arte” se encontra atualmente tão aquele que trabalha para que outros contaminada – assim como ouaproveitem do produto do seu tratras palavras – é que ele recorreu a Hoje qualquer um balho em muitas formas. uma frase de uma música de Raul pode, ou quer, se Fernanda Montenegro, a conheSeixas e decretou para si mesmo: cida atriz brasileira, numa entrevis“Para este mundo que eu quero dizer “artista”. ta recente a um canal de televisão descer!”. Mas raríssimos ilustrou bem o que o Maurício fala Com isto, ele disse que prefere sobre a prática do “ofício”. Disse ela simplesmente seguir outro camisão aqueles que que as pessoas “confundem teatro nho onde possa se manter fiel ao preferem praticar com liberdades, até com licenciosiofício do pintor e desenhista realisdades, com realização de sua opção ta. Isto como reação contra a busca seu ofício, no suor sexual, com glórias, paetês, retrato do reconhecimento, da autorização do dia a dia sobre a no jornal, riqueza”. Hoje em dia a “do outro” para o que faz; “autorideformação já surge, diz ela, nas fazação” dada hoje somente por insmesa de desenho, mosas “celebridades”. E completa: tituições artísticas, legitimadores frente ao cavalete, “Todo mundo vira artista hoje em da arte como críticos, curadores e dia, todo mundo pode ser artista. senhores do mercado de arte. Ele questionando, (...) Mas ator não é todo mundo que prefere exercer seu ofício solitário buscando aprender pode ser!” Ela sugere aos que dese“com simplicidade, leveza, serenijam a glória de ser ator que desisdade e liberdade, sem idealizações cada vez mais, se tam, vão fazer outra coisa da vida. ou ideologias descartáveis”. aperfeiçoando A não ser que, se “ficar em tal deEssa busca, esse retorno à ideia sassossego que não tem nem como de “ofício”, para Maurício Takigudormir se ficar sem aquilo” então thi, é a reafirmação do compromisdeve tentar. Mas se não houver esse so harmonioso e silencioso com o distanciamento em relação ao deslumbramento que processo do trabalho. E complementa: hoje a palavra “artista” causa em qualquer um, ela – “É materializar uma inversão radical nos vasimplesmente solta: “Não é do ramo!” lores: no lugar da ‘aura’, a realidade concreta do Pois os que são do “ramo” conhecem a delícia e a cotidiano; no lugar do glamour, o trabalho árduo; dor da prática diária, silenciosa, profunda do ofício. no lugar da retórica, a sinceridade e a sensibiliOs que são do “ramo” não projetam nada no futudade para algo existente. Enfim, é só isso que eu ro, se dispõem unicamente ao aperfeiçoamento de si desejo ardentemente hoje em dia: quero respeitar mesmos como artesãos, seja no teatro, na literatura, meu ofício, reverenciar a prática, dedicar toda a na música… e na pintura. atenção e energia aos seus elementos intrínsecos Mas o problema é que o artista de hoje aceita, para compreender a sua essência, sob o rigor da acrescenta Takiguthi. “Apesar de aparentemente excelência”. pregar a transgressão como estilo de vida, está mais Voltando-se para seu ofício, o artesão escuta, vê desesperado em se enquadrar e ser cooptado pelo melhor o que faz e o que vê. Estabelece “uma intesistema. Sob a lógica atual, faz de tudo para chocar/ ração sensível com um mundo complexo e infinito, entreter o espectador para poder existir artisticaonde pequenas revelações e insights cotidianos fazem mente. Cultua o ego ao tentar virar celebridade, abre muito sentido”, finaliza ele. mão do comprometimento sincero com a obra, para transformá-la numa extensão do próprio umbigo e * Mazé Leite é artista plástica, designer gráfica e vitrine de si mesmo. Defende verborragicamente a pesquisadora de História da Arte. 90 Cultura Entrevista com Sérgio Ricardo “Em 1967 a ditadura já estava de vento em popa, com uma aresta a aparar: a cultura que não se calava” Por Augusto Buonicore* Sérgio Ricardo é um artista de múltiplas dimensões: escritor, compositor, cantor, cineasta, artista plástico. Contudo o que mais o marcou foi o compromisso com a luta do nosso povo em defesa da cultura nacional-popular e da liberdade N ascido em Marília, interior de São Paulo, em 18 de junho de 1932 com o nome de batismo João Lutfi, o multifacetado artista que adotou o nome de Sérgio Ricardo foi, simplesmente, um dos criadores da Bossa Nova. Depois, foi responsável pela politização e engajamento social do movimento musical, rompendo com o paradigma do “o amor, sorriso e a flor”. O salto participativo viria através de músicas como Zelão e se consagraria na magistral trilha sonora do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha. Ainda na década de 1960 ligou-se ao Centro Popular de Cultura da UNE. No cinema, produziu Esse Mundo é Meu, Menino da Calça Branca e Noite do Espantalho”, entre outros. 91 130/2014 Amaro Fotografia/Fundação Maurício Grabois naram mais tarde a fonte de meu trabalho na composição. Ao surgir a Bossa Nova eu já estava escolado com o romantismo de nossos compositores vanguardistas, como Radamés Gnattali, Garoto, Johnny Alf, João Donato e alguns outros, além do incrível Tom Jobim com seu parceiro Nilton Mendonça, que me orientava para o modernismo das harmonias e canções que foram fazendo minha cabeça. Com a chegada da Bossa Nova, eu já virara compositor e cantor, aos estilos de Dick Farney e Lúcio Alves, muito requisitado pelos inferninhos, até ser chamado por Aluisio de Oliveira para gravar meu primeiro disco na Odeon. Durante a ditadura militar participou de festivais de Música Popular Brasileira e dos circuitos universitários. Autor de músicas como Perseguição, Esse mundo é meu, Calabouço, Tocaia, Ponto de Partida. Seu nome virou um dos símbolos da resistência cultural contra o arbítrio. Aproveitando o aniversário dos 50 anos do Golpe Militar e a vinda do artista para um evento promovido pelas Fundações Maurício Grabois, Perseu Abramo e Alberto Parqualini-Leonel Brizola, a revista Princípios realizou uma entrevista com Sérgio Ricardo tratando se sua carreira e militância cultural. Veja, abaixo, a íntegra da entrevista: Princípios – Na década de 1950, você tocou na maioria das boates da cidade do Rio de Janeiro e com as principais figuras da noite carioca, inclusive muitas daquelas que em seguida criariam a chamada Bossa Nova. Como era o clima cultural no Rio de Janeiro nesse período? Quando e como você se inseriu naquele “movimento” musical? Sérgio Ricardo – Nem se sonhava com a Bossa Nova em 1952 quando comecei na noite como pianista aos 20 anos de idade. Estudei piano desde os oito anos e adquiri uma técnica pouco encontrada entre os músicos da noite, o que me permitiu o luxo de fazer de cara uma carreira solo, imitando Carmen Cavalaro, podendo trabalhar com tranquilidade, raramente com conjunto, ou revezando com orquestra a tocar os sucessos da época, de blues e boleros, tangos etc. E até em orquestra típica de tangos cheguei a atuar. Claro que passando pela nossa música na rica variedade de estilos, sambas, sambas canção, choros, baiões, serestas etc. que me permitiram absorver os estilos nobres de nossa música popular, que se tor- 92 Princípios – A partir do governo JK, e especialmente durante o governo Jango, ocorreu um rápido processo de politização e polarização da sociedade brasileira, se estabeleceu um choque político-ideológico entre nacionalistas e entreguistas, entre esquerda e direita. Isso impactou fortemente o mundo cultural. O nacional-popular emergiu com força na música, no cinema, no teatro e nas artes plásticas. A própria Bossa Nova cindiu-se. Ao lado dos que persistiam no mote “amor, sorriso e a flor”, surgiu uma corrente mais politizada encabeçada por você, Carlos Lyra e Geraldo Vandré – e que logo recebeu o importante reforço de Nara Leão. Um dos marcos dessa sua opção foi a música Zelão que já compunha seu disco de 1960. Como e quando surgiu a inspiração para compor Zelão? Que papel ela jogo no seu processo de transição para o que se chamou música engajada ou de protesto? SR – Nunca abandonei o essencial da Bossa Nova, que era a riqueza harmônica e melódica. A letra das novas canções seguiu a pisada de Zelão, arrancado do povo do qual havia nascido desde minha vivência no interior, recusando-me à temática pequeno-burguesa de prestar-se apenas às canções de amor. Aprendera desde cedo que arte verdadeira era aquela que contivesse um conteúdo abrangente, uma mensagem destinada à participação da transformação dos males dos seres, e fiz de minha música e meu cinema, posteriormente, uma ponte deste propósito. Zelão, segundo Carlos Lyra, foi o abre porta para esse caminho e nele vários talentos se engajaram, e colocamos nossa música a serviço daquele ideal perseguido pelos que quiseram salvar o país. Princípios – A temática do morro – justamente uma das marcas desse tipo de música – já estava presente também no seu primeiro filme O menino da calça branca, lançado em 1961. Ele che- Cultura À esquerda, capa de disco que fez Sérgio Ricardo ser chamado a dar explicações à turma da censura; ao centro e à direita, disco com a trilha sonora sonora do filme Deus e o Diado na Terra do Sol, um dos trabalhos mais importantes do artista gou aos cinemas um ano antes de Cinco vezes favela, produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), e de Barravento, dirigido por Glauber Rocha. Como surgiu a ideia do filme e qual a repercussão dele no Brasil e no exterior? Fale também sobre a participação de Nelson Pereira dos Santos. SR – Por essas coincidências trágicas, meu filme Esse mundo é meu estreou no dia 1º de abril de 1964, no dia do Golpe. Foi um fracasso de público, pois ninguém saía de casa, muito menos para ir ao cinema. A ideia do filme era entrelaçar duas realidades da mesma pobreza de uma favela, onde, por um lado, um operário se vê obrigado, após um aborto forçado pela companheira, a recusar botar mais um sofredor no mundo, a conscientizar-se a lutar pelos direitos dos companheiros e, por outro, um engraxate, impossibilitado de conquistar sua namorada que impunha a condição de ele ter pelo menos uma bicicleta, ao tomar de um padre a sua bicicleta, como se fosse uma doação de Deus se apiedando dele, já que não conseguia juntar o dinheiro suficiente para consegui-la. O filme teve uma participação fundamental de Ruy Guerra na montagem, encarando minha ideia de entrelaçamento das duas histórias. Assim como Nelson Pereira que pediu para montar o Menino da Calça Branca, ao assisti-lo no copião, sem nenhum honorário. Ambos os filmes tiveram uma repercussão internacional destacando-se a participação do Menino da Calça Branca. No festival de São Francisco, que só não obteve o primeiro lugar na categoria de curtas-metragens por ter sido dado, ao longa-metragem Pagador de Promessas o primeiro prêmio. O meu longa Esse mundo é meu foi considerado pelo crítico do Cahiers du Cinema como um dos 15 filmes mais importantes do ano. Já estava de muito bom tamanho para quem começava no cinema. Qual recordação você traz da relação com aqueles jovens artistas? SR – Fui levado por meu amigo Chico de Assis, um dos líderes e criadores do teatro do CPC da UNE no Rio. A efervescência do movimento motivou o aparecimento de artistas jovens, alguns dos quais desenvolveram uma carreira equilibrada e outros, mais panfletários, seguiram no mesmo barco, ambos com a mesma intenção de conquistar a emancipação e as transformações propostas pela luta. Era impossível separar o joio do trigo, uma vez que o propósito não exigia seleções. Tive para o meu filme Menino da Calça Branca recusada a participação no Cinco Vezes Favela, por ter um lirismo que contrariava seus objetivos radicais. Princípios – Como você se encontrou com o pessoal do Centro Popular de Cultura da UNE? Princípios – O ano de 1963 parece ter sido uma espécie de ano mágico na sua carreira. Além do Princípios – A partir da década de 1970 essa rica experiência foi criticada duramente por intelectuais da nova esquerda, que a acusavam de ser autoritária e populista. Esse ataque atingiu toda a cultura nacional-popular do período anterior a 1964. Qual sua opinião sobre isso? SR – Teria tudo para concordar com a retaliação, a partir do boicote do meu filme. Mas acho que, embora houvesse um cunho sectário, o movimento prestou um grande serviço à luta, conscientizando a população camponesa e operária a aderir a ela. Convenhamos que se fosse exigida dos estudantes uma postura mais branda, não se conseguiria a adesão que se conseguiu. Alguns artistas, como eu, deixamos de atuar no CPC – mais por termos uma postura culturalista, que esbarrava com a linearidade de expressão, por vezes sem arte, usada para a comunicação mais beligerante, onde nossa contribuição seria menor. Não os condenamos por isso. Foi quando tive a ideia do circuito universitário, e fizemos nossa participação à nossa maneira, o que resultou num sucesso nacional entre os universitários. 93 130/2014 magnífico Sr. Talento, você começou a produzir o do em mim, para meu espanto – sem me permitir ver filme Esse mundo é meu – seu primeiro longa-meo filme. Quando o vi fiquei estarrecido de verificar a tragem, e foi chamado por Glauber Rocha para correspondência com a ação. Era um gênio de verdade. musicar uma das obras primas do cinema munNunca poderia imaginar que fosse dar certo. dial: Deus e o diabo na terra do sol que, por sinal, tem uma das mais belas e impactantes trilhas Princípios – Chegamos então ao trágico ano de sonoras. 1964. Onde você estava no dia do golpe militar? SR – Sem dúvida. Como foi para toda a cultura braO que você viu naqueles primeiros dias da imsileira, no teatro, música, poesia, cinema, artes plásplantação da ditadura? tica etc. Os expoentes de cada área, SR – Estava no Rio de Janeiro deidentificados pelo mesmo espírito gustando uma dupla amargura. O Os expoentes de emancipar o país, direcionavam país entregue às baratas e meu filme suas criações levantando o potencial entregue às moscas. Dias antes, no de cada área, herdado de nossa história e valores teatro de arena da UNE, presenciaidentificados pelo lúdicos e criativos de nosso povo a va a cena cruel da realidade do fradesenvolver uma arte una e comunicasso de nosso propósito. Nenhum mesmo espírito de cativa como nunca vi em nosso prodaqueles estudantes presentes na emancipar o país, cesso cultural. plateia do teatro tinha a resposta a um cidadão que subiu ao palco para direcionavam suas Princípios – Vamos por partes. Codizer que falava em nome de Jango criações levantando mo surgiu a ideia de produzir para nos conduzir a um determiEsse mundo é meu e qual a sua renado local onde estariam à nossa o potencial herdado percussão? A música veio antes disposição as armas para enfrentarde nossa história ou foi criada especialmente para mos a revolução que contava com o filme? nossa participação, já que o exércie valores lúdicos e SR – Ruy Guerra, meu amigo desde to estava às portas do golpe. Após criativos de nosso os tempos dos inferninhos, e com longo silêncio, Vianinha subiu ao quem aprendi os segredos do cinepalco para explicar que ninguém ali povo a desenvolver ma, ouviu uma canção sem letra que estava preparado para isso e sequer uma arte una e lhe mostrei. Eu só tinha o refrão: sabia atirar. Desabava dentro de ca“Esse mundo é Meu”. O resto era só da um de nós um prédio de sonhos. comunicativa como uma melodia com um balanço afro. Dias depois do golpe, assistíamos ao nunca vi em nosso E ele fez o resto da letra que ficou incêndio do teatro da UNE impoperfeita. Gravei a música e logo após tentes, e derrotados sumariamente. processo cultural Elis Regina gravava com grande sucesso. Ao partir para o filme usei o Princípios – Logo você foi para o mesmo título e o autor da letra veio exterior, aproveitando a parmontá-lo. A sopa no mel. ticipação do seu filme em festivais internacionais. O que o fez voltar ao Brasil quando podia Princípios – Como você conheceu Glauber Rocha e ter seguido uma carreira no exterior, longe da o que o levou a chamá-lo para compor a música, ditadura? e cantar em Deus e o diabo na terra do sol? Como SR – Foi um disco exibindo a Nara Leão na capa com foi o processo de produção? Ele remeteu-lhe a a mão levantada em cujo punho se lia: Opinião. Achei letra e você musicou? Como foi trabalhar com que algo estava sendo retomado, e cheio de esperanGlauber? ças desfiz os contratos que assinara em Roma e voltei SR – Eu e Ruy estávamos na Moviola montando o filme, para o Brasil. Ficara por lá a chance que tive de me quando o Glauber, que já me havia passado o cordel lançar como cantor e compositor, já com algumas faitodo do filme para eu musicar, me colocou na parede: xas gravadas, além de uma cópia do meu filme em “Ou você bota a música até o fim da semana ou darei a mãos de um agente que ficou de distribuí-lo por lá. outro para musicar, porque o Deus e o Diabo está pronto, Bateu um banzo danado e voltei correndo. esperando a música”. No dia seguinte, entreguei-lhe um esboço da música, que ele aprovou e partimos para Princípios – Em meados dos anos 1960 teve início gravar. O danado conseguiu arrancar de um cantor de a chamada era dos festivais, que teve como ponBossa Nova um cantador de feira que estava esconditos altos os festivais da Record. Infelizmente, o 94 Cultura que a mídia procurou marcar da sua presença nesses importantes eventos culturais foi a estrondosa vaia recebida pela bela e incompreendida música Beto bom de bola no festival de 1967 e a sua inusitada atitude de jogar seu violão na plateia. Fale um pouco do clima de guerra desses festivais, especialmente desse. SR – Em 1967 a ditadura já estava de vento em popa, com uma aresta a aparar: a cultura que não se calava. As peças, os filmes, as canções etc. continuavam a resistir e algo tinha que ser feito, embora o novo paradigma já estivesse dando as cartas. Era preciso que os meios de comunicação fossem radicalizando a repressão a desfazer os valores que insistiam em vigorar. Coincidentemente, a quebra do violão funcionou como um último protesto a marcar a mudança do paradigma. Os trabalhos dos vencedores dos festivais do período de transição galgaram posições de idolatria por parte de um público que permanece fiel até hoje, e que não podia ser calado pela repressão sob pena de um desgaste popular desaconselhável. Dentre eles, Chico [Buarque], Edu [Lobo], Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, Torquato [Neto], [José Carlos] Capinam, Sidney Miller, e poucos outros, identificados com a transformação do país, continuaram na resistência e quanto mais a mídia os engrandecia mais permaneciam, sem que a censura os pudesse calar, e quanto mais tentassem proibir mais sucesso faziam. Porém, caminhando paralelamente, a autocensura, ou negociação com o sistema, levou os meios de comunicação a baixarem o nível de informação, importando filosofias e modismos externos a tal ponto que conseguiu descaracterizar o sentido deixado pela cultura musical no processo cultural, ao ponto de não só nosso o pensamento como a nossa estética esfacelarem-se. Avançaram como um novo processo até os dias de hoje, em que o lixo cultural já está sendo reclamado pelo mais ignorante dos brasileiros. Tanto que os ídolos permanecem os mesmos. Não envelheceram. Não se lhes suplantou nada de novo. Princípios – O certo é que a sua participação não foi marcada somente por vaias. Nos festivais do ano seguinte na rede Globo e na própria TV Record suas músicas foram bem recebidas pelos jovens, que começavam a ganhar as ruas em grandes manifestações contra o regime. Refiro-me às músicas Luandaluar, Canto do amor armado e, especialmente, Dia de Graça onde você satiriza a situação do país após o golpe de 1964. Como foi a reação do público? O que havia mudado desde 1967? SR – Apesar do sucesso alcançado, eu fazia parte da geração anterior. Junto àqueles que faziam parte dos Sérgio Ricardo revela talento também nas artes plásticas que podiam e deviam ser calados sem prejuízo para a ditadura, pois bastava ordenar o nosso silêncio que não seríamos notados – os mais atuantes principalmente. Aquela plateia que foi vaiar Beto bom de bola não era a mesma dos estudantes que cantavam comigo pelos shows que realizava por todo o Brasil, onde era ovacionado, tinha meus shows censurados, ou povoados de fiscais do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Era sim uma plateia manipulada por uma mídia que já se debruçava nos desígnios da ditadura, interessada em criar novos ídolos para fazer a vontade do patrão. Cortaram o doze para fazer passar os artistas mencionados, até que se instituiu o AI-5 [Ato Institucional nº 5], em 1968 e dali para cá pintou a decadência. Princípios – No mesmo ano – às vésperas do AI-5 – saiu Aleluia Che Guevara não morreu num compacto. Qual foi a reação do governo diante dessa música? SR – O Compacto Simples não durou uma semana nas lojas. Toda a produção distribuída pelas lojas e bancas de jornal foi recolhida pela censura, enchendo suas salas com o disco. Nem sequer me chamaram para interrogatórios costumeiros. Foi sumariamente recolhido e fim de papo. Princípios – Depois do AI-5 você passou a ser um dos compositores mais perseguidos pela dita- 95 130/2014 dura – e também pela mídia que, praticamenPrincípios – O seu LP de 1973, além de Calabouço, te, parou de divulgar sua obra. Quais os meios trazia Tocaia, nitidamente uma homenagem ao encontrados por você naqueles anos de chumguerrilheiro Carlos Lamarca, assassinado rebo para manter viva a chama da música popucentemente. Pior, na capa havia uma foto sua lar brasileira? com uma espécie de tarja na boca. Pergunto: SR – A censura estava presente em invariavelmente esse disco não lhe causou dor de cabeça com a todos os espetáculos. Gonzaguinha censura federal? e eu uma vez fomos a Niterói paSR – Fomos chamados, eu e o Caura um show, convidados pelo DCE los, para explicações. Ele aquela Na área cultural, a [Diretório Central dos Estudantes]. boca arrancada da foto, e eu com Uma multidão esperava do lado de o que queria dizer com o refrão de estrada esburacada fora do teatro. Não puderam entrar “Cala boca moço”. Instruí Caulos a que a ditadura por proibição da censura. Não tive dizer que foi uma jogada de transdúvidas, espalhamos um boato paferir a boca para a contracapa, no nos deixou pela ra que fossem a uma praça a uns interior do disco com um balão frente vai levar duzentos metros dali e lá fizemos com as letras. Apenas uma jogada o show ao ar livre para todo aquele gráfica. Eles engoliram, com aqueum bom tempo público que foi conferir nosso arrola risadinha de ignorantes e acapara ser reparada. jo. Muitos shows foram proibidos, baram convencidos de que o meu ou policiados com mil exigências “Cala boca moço” do refrão era Será preciso que dessa ou aquela proibição e a gente destinado às imposições da mídia as prefeituras que ia levando como podia. televisiva que impunha suas regras para as criações dos artistas. Eu já recebem as verbas Princípios – Uma das passagens havia me acostumado com aquelas para pavimentámais significativas da sua carvisitinhas e já chegava com resposreira, que se tornou um dos símtas na ponta da língua para conla, antes de tudo, bolos maiores do engajamento vencer aquelas inteligências, que não se percam do artista nas lutas antiditatonem sempre davam certo, como no riais, foi a participação na miscaso de Aleluia e Dia da Graça. nas aventuras das sa de sétimo dia do estudante gavetas Alexandre Vannucchi Leme, na Princípios – No ano seguinte você qual cantou Calabouço. Era lançou o filme musical Noi1973 e precisava ter muita te do Espantalho. Num estilo coragem para fazer aquilo. realista fantástico – baseaFale um pouco sobre a músido numa estória de cordel –, ca e o que se lembra daquevocê fez uma contundente le evento na Catedral da Sé crítica ao domínio econômicelebrado por dom Evaristo co e político do latifúndio e Arns em 1973. do imperialismo. Como surSR – O curioso é que quando giu a ideia do filme – inclucomecei a cantar, acostumado sive a mescla de elementos com a voz do público nas resmodernos e tradicionais – e postas do refrão, senti um vazio. sua repercussão nacional e Ninguém cantou nem aplaudiu. internacional? Tive de entender que não seria o SR – Foi meu trabalho mais caso. Na saída muita gente veio arrojado até o momento. Enme dizer que ficou frustrada por carei uma linguagem cinemanão poder cantar. Barra pesada tográfica baseada na estética foi passar pelo pelotão armado e do cordel como prova de uma pronto para atirar caso houvesse linguagem ainda não exploqualquer tipo de manifestação. rada, dada à fantástica imaParecia uma cena de guerra. ginação dos nossos cordelisMas conseguimos deixar registas a usarem uma linguagem Cena da peça Ponto de Partida trado um ato de coragem. fantástica ao mesmo tempo 96 Cultura social, humana e lírica. No Brasil é um filme que ainda poderá ser apreciado. No exterior fez uma bela figura, sendo convidado a passar em inúmeros festivais, principalmente Canes e Nova Iorque. Está praticamente inédito no Brasil. Mas ele está para sair em DVD, junto com meu filme anterior, Juliana do amor perdido, rodado em Guarujá e Piracicaba. trutivo como o que deixou. Supunha que na abertura voltasse a reconstruir o estrago. Mas a estrada esburacada que a ditadura nos deixou pela frente vai levar um bom tempo para ser reparada. Será preciso que as prefeituras que recebem as verbas para pavimentá-la, antes de tudo, não se percam nas aventuras das gavetas. Princípios – Acabada a ditadura militar em 1985, Princípios – Fale da sua parceria com Gianfrancesparece que continua a ditadura do mercado foco Guarnieri na peça Ponto de Partida, que tinha nográfico e da mídia monopolizada. Ela conticomo mote o assassinato de Herzog. nua firme no seu projeto de reconstruir a hisSR – Foi a glória trabalhar com Guarnieri. Ele havia tória da cultura brasileira, e ao fazê-lo silencia me convidado para juntos escrevermos uma peça. Cesobre autores e momentos. Como você vê o deu seu sítio para eu passar uns dias quadro da cultura brasileira na a elucubrarmos juntos o tema que atualidade e quais os caminhos nunca passou de uma comédia. Ríapara romper o cerco da medioPreferi ser um mos muito com as ideias gaiatas que cridade que nos impuseram? revolucionário ao iam surgindo, não fosse sua mulher SR – Só com o povo nas ruas, nas nos advertir de que Guarnieri tinha questões sociais e nas reformas de meu jeito, usando já uma ideia sobre o Herzog. Aprobase. E com os artistas unidos para minha arte como vei no ato e aconselhei que ele viesse neutralizar os mesquinhos sistemas com um primeiro tratamento para arma para participar de captação, que estão propiciando trabalharmos. Ao ler, no dia seguinuma decadência cultural sem preda transformação, te, fiquei deslumbrado com o texto cedentes na nossa história. e não vi nada que pudesse ser acrese seguir minha centado, e nasceu o Ponto de Partida, Princípios – Você sempre foi caprópria consciência título que levou de minha canção, e racterizado como uma artista que acabou virando o tema principal envolvido com as causas caras da peça. Combinamos que eu faria o à esquerda. Nesses anos chegou papel do ferreiro e a trilha sonora da peça e sacramena militar em alguma organização política sociatamos nossa parceria. lista? SR – Talvez pela rebeldia de minha índole, não me Princípios – No final da década de 1970, para esengajei em nenhum partido de esquerda, embora panto de muitos, você resolveu comprar um tivesse por todos eles uma grande simpatia, atenbarraco no morro do Vidigal e acabou se endendo aos chamados para participar de todos os volvendo na luta da comunidade contra o deseventos ou passeatas etc., para os quais era conspejo. tantemente convidado. Preferi ser um revolucioSR – Comprei um barraco no Vidigal, que logo foi nário ao meu jeito, usando minha arte como arma marcado para ser derrubado com centena de oupara participar da transformação, e seguir minha tros. Enfrentamos a remoção com uma organização própria consciência. E sinceramente não me ardos favelados, liderados por seus próprios habitanrependo. Talvez por ter uma visão um tanto partes, e com nossa ajuda. Alguns assistentes sociais, ticular sobre os partidos de esquerda. Talvez pela o Cardeal e Sobral Pinto que, convidado por minha intensidade de apego a pontos de vista, acho que amiga Eni Moreira, venceu a causa na justiça conse desentendem e se pulverizam com muita faciliseguindo a reintegração de posse. Fiz uma peça, dade, criando exatamente o que o sistema quer. Se Bandeira de Retalhos, que está sendo encenada com houvesse um único partido, com flexibilidade para grande sucesso nas periferias há mais de um ano. encarar e vencer as contradições, sem precisar partir para os rachas, acho que se poderia acreditar na Princípios – Qual foi o impacto da ditadura misua capacidade de transformação. litar para a cultura brasileira? * Augusto Buonicore é historiador e secretário geral SR – Trágico. Conseguiram levá-la ao mais rasteiro pada Fundação Maurício Grabois. Realizou a entrevista tamar. Todas as artes estão em crise no país. Nunca com Sérgio Ricardo por e-mail em março de 2014 poderia imaginar que ela deixasse um lastro tão des- 97 130/2014 Resenha Le Goff, história e teoria A. Sérgio Barroso “A história é uma sequência de continuidades e mutações. E, raramente, de rupturas” (J. Le Goff, O Globo, 05-04-2014 [março de 2014]). E A Idade Média e o dinheiro: Ensaio de uma antropologia histórica Autor: Jacques Le Goff Tradutor: Marcos de Castro Págs: 272 EAN: 9788520011713 Gênero: História Formato: 14 x 21 cm Editora: Civilização Brasileira Preço: R$ 35,00 ssa ideia nervosa perseguiu décadas a fio concepções do grande medievalista francês Jaques Le Goff, falecido aos 90 anos em 1º de abril. Sim, um vaticínio tenso e decisivo, a meu juízo. Mas não há aqui flerte com as leis dialéticas reconhecidas pelo marxismo. Le Goff permaneceu na diferenciação numa das ideias centrais da geração braudeliana da Escola dos Annales (1929) – la longue durée (a longa duração): ele nunca aceitou a tese obsessiva de Fernand Braudel descrita e sintetizada em “história quase imóvel”: uma “expressão perigosa”, escreveu Le Goff. Ou a metafísica indisfarçável (“história imóvel”, ou “história sem movimento”) do destacado militante da “Nova História”, Le Roy Ladurie. Nada disso: “Não, a história se mexe. A história nova deve, ao contrário, apreender a mudança”, disparou Le Goff no notável ensaio A história nova [1]. Onde reverencia o materialismo histórico de Marx! (IDEM, p. 165). Incluído na chamada “terceira geração” da Escola criada por Lucien Febvre e M. Bloch, pós-1968, e considerando-se “discípulo póstumo de Bloch” [2], Le Goff iniciara aos 33 anos com o erudito Os intelectuais na Idade Média (Brasiliense, 1993, 3ª edição). Dialética do dinheiro A Idade Média e o dinheiro (2010) chegou ao Brasil coincidentemente à morte de Le Goff. A leitura do vigoroso e polêmico estudo deve mirar dos seguintes pontos cardeais. 1) Na Idade Média o dinheiro (moeda de prata ou ouro, depois cunhado) processa regressão do século IV ao fim do século XII (Constantino a São Francisco de Assis), e conhece recesso para depois recomeçar um lento retorno – “potentes e humildes” quer dizer então “poderosos e fracos”, dada representação social; entretanto, quando da passagem do século XIII ao fim do século XV a distinção “ricos e pobres” reconfigura o simbolismo do poder. 2) À Revolução Comercial do século XIII seguiu-se o dinheiro à usura modificando “profundamente concepção e prática do tempo na Idade Média”. Para Le Goff, renovação econômica engendrando desenvolvimento urbano, combinado ao crescimento dos poderes do rei, e “sobretudo” as ordens mendicantes conferem novo impulso ao dinheiro, sendo que ainda “sem atingir o limiar do capitalismo”. Ademais, agir contra a caridade (caritas) “é agir contra Deus” é cometer “pecados dos mais graves” (p. 246). 3) O desenvolvimento da moeda acompanhou o conjunto da evolução social da Idade Média, e diferentemente do que teorizou Braudel, “o capitalismo não nasceu na Idade Média”; e ela não foi “sequer pré-capitalista”: a penúria dos metais preciosos e a fragmentação dos mercados “impediam as condições para isso”, concluiu Le Goff. NOTAS [1] Ver: LE GOFF, J. “A história Nova”. In: NOVAIS, F. & SILVA, R. F. da (orgs.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 156. [2] Ver: “Um gigante modesto”, do ex-aluno de Le Goff, Hilário Franco Júnior. In: Ilustríssima, Folha de S.Paulo, 06-04-2014, p. 6. 98 LIVROSLivros “O protesto negro que ainda está atual” C Kabengele Munanga lóvis Steiger de Assis Moura, simplesmente chamado Clóvis Moura, surgiu no universo dos pensadores do Brasil social por volta de 1955. Em nosso conhecimento, desde seu primeiro texto publicado, intitulado Euclides da Cunha e a Realidade Nacional (1955), ele escreveu ininterruptamente sobre as questões sociais do Brasil até a sua morte, em dezembro de 2003. Isto é, quarenta e oito anos de reflexão crítica como intelectual engajado, durante os quais ele conseguiu manter a distância entre suas responsabilidades de estudioso e pesquisador e sua posição ideológica como membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e do Movimento Negro Brasileiro. Sem abrir mão da reflexão sobre o Brasil social de modo geral, como aparece em alguns de seus textos – como, por exemplo, A situação atual do Brasil como nação soberana (1956) e de seus ensaios, A Sociologia posta em questão (1978), Gama Rosa: Percursos da Sociologia no Brasil (1972) e Uma abordagem sociológica do conceito de História (1975) –, foi sem dúvida sobre o negro brasileiro que ele consagrou a parte mais importante de sua obra. Sobre um total de vinte e sete títulos em nosso levantamento, vinte deles tratam exclusivamente da história, dos problemas e da situação do negro brasileiro. Neste sentido, ele foi um dos maiores estudiosos, pensadores e intelectuais da questão negra em seu país. Sem fugir da visão gramsciana, ele foi realmente um intelectual orgânico do seu povo negro. De sua grandiosa obra, me parece que o Rebeliões da Senzala, publicado pela primeira vez em 1959, constitui a âncora a partir da qual ele começou a analisar e aprofundar seu pensamento em torno do fenômeno da resistência negra em defesa da liberdade e dignidade humanas. Foi a primeira obra na historiografia brasileira a tratar da questão das rebeliões negras de maneira sistemática, mostrando com fatos históricos o alastramento desse fenômeno em todo o território brasileiro. Na esteira desta obra nascerão mais tarde outros estudos como o Palmares – A guerra dos escravos, de Décio Freitas (1971) e o Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835, de João José Reis (1986). Ele foi sem dúvida o pioneiro e o primeiro a desmistificar a ideia do negro submisso que não se importava com sua situação de cativo, e a colocar em pauta a questão de sua participação no processo abolicionista e libertário, habilitando-o como sujeito de sua história e da história do Brasil e tirando-o da posição de mero objeto de pesquisa acadêmica. Rebeliões da Senzala figura entre os livros de Clóvis Moura como o único a receber quatro edições (1959, 1972, 1981 e 1988), não somente porque foi através dele Rebeliões da Senzala – 5ª edição Autor: Clóvis Moura Págs: 456 ISBN: 978-85-7277-147-4 Editora Anita Garibaldi Onde comprar: www.anitagaribaldi.com.br Preço: R$ 49,00 que Clóvis se lançou como historiador negro, mas também pelas revelações e análises profundas nele esboçadas pela primeira vez a respeito do protesto negro. Seu pensamento vai se aprofundando e se lapidando através de outros livros que virão na esteira do Rebeliões da Senzala, como Brasil: As raízes do protesto negro (1983) e Quilombos: Resistência e escravismo (1987). Por que reeditar hoje o Rebeliões da Senzala, depois de dez anos da morte do seu autor? Além de ser uma bela homenagem ao grande intelectual negro Clóvis Steiger de Assis Moura, esse livro já se esgotou há anos e está ficando cada vez mais difícil e raro encontrar algum exemplar em muitas bibliotecas públicas do Brasil. No entanto, ele não pode desaparecer no processo de formação da presente e das futuras gerações de pensadores e pensadoras da questão negra no Brasil. O protesto negro que perpassa em filigrana nas páginas dessa obra ainda está atual em termos diferentes no contexto pós-Abolição. Não é por acaso que alguns falam da segunda e verdadeira abolição da escravatura no Brasil. Se Clóvis Moura estivesse vivo, no âmago das polêmicas maniqueístas do “Bem” e do “Mal” sobre cotas ditas raciais no Brasil, ele teria sem dúvida retomado o seu Dialética Radical do Brasil Negro (1994) e manifestado sua posição de acordo com a riqueza do seu pensamento. Ficamos órfãos de sua opinião naqueles momentos cruciais, mas podemos reencontrá-la através de sua obra, a começar pelo Rebeliões da Senzala, agora reeditado. 99 www.revistaprincipios.com.br Princípios é uma publicação bimestral da Editora e Livraria Anita Ltda. CNPJ: 96.337.019/0001-05 Registrada no ISSN sob o nº 1415788-8 Fundador: João Amazonas (1912–2002) Editor: Adalberto Monteiro Editor executivo: Cláudio Gonzalez (MTb 28961/SP) Comissão Editorial: Adalberto Monteiro, Aloísio Sérgio Barroso, Augusto César Buonicore, Cláudio Gonzalez, Fábio Palácio de Azevedo, José Carlos Ruy, Osvaldo Bertolino e Pedro de Oliveira. Assine Princípios, uma revista que pensa a realidade brasileira CUPOM DE ASSINATURA - REVISTA PRINCÍPIOS Nome completo: _________________________________________________ _______________________________ Data nascto.: ______ / ______ / ______ CPF: ___________________________ RG:___________________________ Conselho Editorial: Adalberto Monteiro, Aldo Arantes, Aldo Rebelo, Altamiro Borges, Ana Maria Rocha, Bernardo Joffily, Carlos Pompe, Carolina Maria Ruy, Carolus Wimmer, Elias Jabbour, Haroldo Lima, Jô Morais, José Carlos Ruy, José Reinaldo Carvalho, Domenico Losurdo, Luis Fernandes, Luiz Manfredini, Madalena Guasco, Nereide Saviani, Nguyen Viet Thao, Olival Freire Jr., Olívia Rangel, Pedro de Oliveira, Raul Carrion, Sílvio Costa, Umberto Martins e Walter Sorrentino Secretária de redação: Ana Paula Bueno correio eletrônico: [email protected] Jornalista responsável: Pedro de Oliveira (MTb 9813/30/69/SP) Capas: Cláudio Gonzalez Ilustração de capa desta edição: Amy Casey Diagramação: Laércio D’ Angelo Ribeiro Endereço: _______________________________________________________ Revisão: Maria Lucília Ruy Bairro: _____________________________ Cidade: _____________________ Colaboraram nesta edição: Osvaldo Bertolino e Cezar Xavier UF: _____CEP: ___________-_____ Telefone: ( ____) ___________________ Profissão: ______________ E-mail: __________________________________ ( ( ( ) Assinatura anual (6 edições) – R$ 70,00* ) Assinatura bianual (12 edições) – R$ 120,00** ) Assinatura trianual (18 edições) – R$ 170,00** *pagamento à vista ** duas vezes no cartão de crédito Formas de pagamento: ( ) Depósito em C/C - Banco Itaú, Agência 0251, Conta nº 48.678-3 (enviar cópia do comprovante) ( Diretora comercial: Zandra de Fátima Baptista Diretor: Divo Guisoni CONTATOS PARA ASSINATURA: Editora Anita Garibaldi Rua Amaral Gurgel, 447 - 3º andar - Cj. 31 - Vila Buarque CEP 01221-001 São Paulo - SP Tel./Fax: (11) 3129 5026 - 3129 3438 www.anitagaribaldi.com.br [email protected] PONTOS DE VENDA: ) Cartão de crédito: [ ] MASTERCARD, [ ] DINERS ou [ ] VISA. 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