Lacanoamericana Montevideo 2015 CELIA CALVO Alea jacta est O

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Lacanoamericana Montevideo 2015 CELIA CALVO Alea jacta est O
Lacanoamericana Montevideo 2015
CELIA CALVO
Alea jacta est
O inominável (1953) (fragmento) S. Beckett
… são palavras, é o único que tenho…
... deve-se dizer palavras, enquanto existam, deve-se
dizê-las, até que me encontrem, até que me digam,
estranho castigo, estranha falta,... por acaso isto já foi
feito, talvez já me disseram, talvez me levaram até o
umbral de minha história, ante a porta que dá a minha
história, isto me surpreenderia, se dá,... será o
silêncio, ali onde estou, não sei, não o saberei nunca,
no silêncio não se sabe, deve-se seguir...
Um psicanalista não sabe o que diz, mas deve saber o que faz, propõe
Lacan no Seminário 15.
Falar de ato analítico não somente convida a pensar as diferentes
intervenções do analista, mas também anuda a posição deste e a
produção do inconsciente.
É bom pensá-lo não somente como intervenções (que sempre serão lidas
a posteriori) mas também como aquilo que está desde o início mesmo,
como ato inaugural que marca esta chegada de um sujeito portando seu
sofrimento e que no encontro já está suportado no ato mesmo.
Isto é, é um ato que aposta, desde o começo, no inconsciente, ao
autorizar que fale, que isto fale nele.
Tem a particularidade de constituir um antes e um depois. É assunto do
analista dirigir a cura e de aí seu modo de dizer “algo que importe no real
(Seminário 14),
O ato não é antecipável, sendo a antecipação o tempo do imaginário, que
se produz sem pensar, (como representação, no sentido clássico
cartesiano), e que será nachtraglich, a partir da leitura que volta sob seus
passos e detém-se no efeito, nas consequências do ocorrido. A partir daí,
poder-se-á sancionar como ato ou não.
Caso seja um ato, trata-se de um acontecimento marcado pelo corte que
possibilita a variação irreversível da posição subjetiva na qual se estava
cativado. É necessário ainda lembrar que não há ato psicanalítico fora da
transferência.
Lacan contextua em Freud o tema que o ocupa: na psicopatologia,
investigam-se “bobagens” e lhes outorga o estatuto e a plena hierarquia
de ato. Paradoxo surpreendente que um ato falho adquira a relevância de
um ato bem sucedido.
Lacan mostra nestes erros aos que Freud sempre alude como causados
pela tensão de alguma verdade.
Inicialmente ressaltava a prematuração do vivente que fazia necessária
para este a aparição de uma força exterior sem a qual não poderia viver.
Assim, a ideia de proteção (paterna) extração da situação imaginária, de
salvação das terríveis mandíbulas do crocodilo. Claro que é fundamental,
dado que os crocodilos existem, mas se trata da ideia do simbólico como
morada e proteção.
Se analiticamente chamamos mãe a este estado da língua no qual o amor
pode resultar tão sufocante como necessário, a função paterna é restituir
o furo introduzindo o sujeito em outra lógica.
A partir disso, qualquer dito poderá ser metaforizado ou não ser tomado
em sua literalidade, ou seja, ser lido como perdido. Clivagem entre o que
se diz e o que se quer dizer. Abertura ao mundo simbólico, ao semblante,
à relatividade, às fixões. Torsão que livra o sujeito de ter que responder e
univocamente àquilo que se lhe pede.
Mas também do lado da função paterna implica um excesso, que
chamamos père-version. Apesar de que a partir do pai existe “outra
lógica” já que a totalização foi ferida de morte, algo faz com que o furo
constituído tenda (novamente e uma e outra vez) a ser obturado.
Sua lógica é menos arrasadora, porque se liga mais à castração. Mas
tende a certa absolutização destes objetos que retêm o sujeito em um
modo fixado de gozo.
De todas as formas, o retorno é diferente, dado que a criança já aprendeu
que pode e até deve deixar o Outro sem resposta ou satisfação. Porém,
somente pode fazer isso valer quando faz o luto do pai imaginário. Luto
muito difícil caso não se atravesse a experiência de uma análise.
Contam as histórias, que Júlio César, desobedecendo à ordem que lhe
chega de Roma, cruza o Rubicão com seu exército vitorioso ao retornar
de Galícia. Ali pronuncia a famosa frase: Alea jacta est. Cruzar este rio
como feito físico era insignificante, menor. Tem um metro ou dois de
largura.
No entanto, ali há um ato. E é o da transgressão, desobedecendo a
ordens, manifestando assim sua decisão de fazer algo novo.
A frase famosa não é de Júlio César, é de Menandro, escritor grego do
século IV a. C., um dos favoritos de César, e parece que César não a
disse em latim, mas sim em grego.
O historiador e biógrafo Plutarco de Querônea, em suas Vidas paralelas,
indica que não pronunciou esta frase em latim, mas sim que o que fez foi
citar Menandro: ἀνερρίφθω κύβος /anerrífzo kübos/, que viria a significar
algo como “que o dado tenha sido tirado”, em clara alusão ao começo de
um jogo de dados, fazendo uma comparação entre lançar os dados e
cruzar o Rubicão.
O fato de que o dissera em grego vem dado pelo costume que havia entre
os romanos nobres e cultos (como Júlio César) de aprender, ler e falar
grego; esta fascinação pela língua grega os levava muitas vezes, em
momentos muito importantes de máxima inspiração, fazer citações de
autores gregos para expressar seus sentimentos, quando o latim não lhes
era suficiente. Cito à escritora australiana Colleen McCullough que, em
sua obra sobre César, diz o seguinte:
“A evidencia favorece a Plutarco mais que a Suetonio em relação ao que
foi o que César disse na verdade quando cruzou o Rubicão. Polião, que
esteva presente, diz que César repetiu textualmente a Menandro, e que
citou em grego, não em latim. „Que voem alto os dados‟ seria o que tinha
dito, e não „A sorte está lançada‟. „A sorte está lançada‟ é uma frase
pessimista e fatalista. „Que voem alto os dados‟‟ é como encogerse de
hombros, uma forma de admitir que pode acontecer qualquer coisa. César
não era fatalista, era uma pessoa que aceitava o risco.”.
Prosseguiu, então, César, a pé, por estreitas trilhas até o Rubicão, que
era o limite de sua província e onde o esperavam seus legionários.
Deteve-se durante breves momentos e, refletindo nas consequências de
sua empresa, exclamou dirigindo-se aos mais próximos:
– Ainda podemos retroceder, mas se cruzarmos esta ponte, tudo será
decidido pelas armas.
Quando permanecia vacilando, um pródigo lhe decidiu. Um homem de
silhueta e beleza notáveis apareceu sentado de repente, a uma pequena
distância dele, tocando a flauta. Além dos pastores, soldados dos pontos
imediatos acudiram a escutá-lo; arrebatando, então, a um a trombeta,
encaminhou-se até o rio e, arrancando vibrantes sons do instrumento,
chegou à outra margem. Então, César disse:
– Encaminhemo-nos aonde nos chamam os signos dos deuses e a
iniquidade dos inimigos. Alea jacta est. Esta aparição é tomada como um
signo dos deuses e fica decidido o cruze por parte de César.
Quando o exército tinha cruzado o rio, fez apresentar-se aos tribunos do
povo, que, expulsos de Roma, tinham acudido a seu acampamento;
predicou aos soldados e, chorando, invocou sua fidelidade, rasgando as
vestes sobre o peito.
Plutarco, na Vida de Pompeu, diz:
Tendo, pois, chegado ao rio Rubicão, que era o limite de sua província,
parou pensativo e ficou por algum tempo meditando o atrevimento de sua
empresa. Depois, como os que de um precipício se jogam a uma grande
profundidade fechou a porta a todo discurso, afastou os olhos do perigo e
sem articular mais palavras que esta expressão em língua grega: O dado
foi lançado, fez com que as tropas passassem o rio. Começava o jogo da
conquista de Roma. Jogo do qual não havia volta nem garantia do
resultado: “Ainda que César tenha passado o Rubicão com o gênio de
César, no fato de cruzar o Rubicão existe algo que supõe lançar-se à
água, porque se trata de um rio.” (LACAN, 1957-1958)
“Sejamos categóricos, não se trata psicanaliticamente da realidade, mas
sim da verdade, porque é o efeito de uma palavra plena reordenar as
contingências passadas dando-lhes sentido das necessidades por vir, tais
como o constitui a pouca liberdade por meio da qual o sujeito as
presentifica.” (Lacan)
O conceito de história é relevante na concepção lacaniana do
inconsciente, duas citações o demonstram, a primeira diz:
“O que ensinamos ao sujeito reconhecer como seu inconsciente é sua
história; isto é, que lhe ajudemos a aperfeiçoar a historicização atual dos
fatos que determinaram já em sua existência certo número de „giros‟
históricos. Mas se tiveram este papel já foi enquanto fatos de história, isto
é, enquanto reconhecidos em certo sentido e censurados em certa
ordem.”
A segunda sinaliza que:
“O inconsciente é esse capítulo de minha história que está marcado por
uma cobaia ou ocupado por um engano: é o capítulo censurado. Mas a
verdade, pode-se voltar a encontrar; o mais muitas vezes já está escrito
em outra arte.”
A noção de história se relaciona com o tempo, mas com o tempo lógico
que Lacan dá conta, com essa articulação extensa que transpassa o
tempo do relógio. É o lugar simbólico onde os acontecimentos valem pelo
seu sentido, pela sua significação e não na crônica, mera acumulação das
lembranças carente em si de sentido.
Lacan, desde os seus primeiros Seminários, faz referência ao ato de
César. O rio Rubicão, nos tempos da República Romana, era um limite
simbólico que separava duas províncias. Os generais romanos não
podiam cruzar dito limite sem que o senado os autorizasse, por tanto
cruzar esta linha não era sem consequências.
César, no entanto, cruza o limite sem autorização: “Precisamente o que
dá caráter de ato ao cruze do Rubicão é sua não consulta ao Outro que
neste caso era o senado.”.
Lacan refere que “a dúvida, os esforços que investe, tudo isto não é
senão para combater a angústia, e precisamente mediante enganos. É
que se trata de evitar o que, na angústia, é certeza horrível.” (LACAN,
1962-63). Por outro lado, “atuar é arrancar da angústia sua certeza”.
A diferença radica em que podemos localizar a voz como causa de desejo
na trombeta que decide a César a atuar, assim como sua não
dependência à demanda. César não era alguém completamente alheio às
demandas, particularmente lhe chegavam de todo tipo, de parte do
Senado de Roma, concretamente. Mas prestava mais atenção a outro tipo
de signos, a estes que na antiguidade eram chamados dos deuses,
“signos de um desejo que surge de não se sabe de onde.”. Estes signos
que hoje poderíamos localizar como ecos de seu próprio desejo.
Em relação a este desejo que surge de algum lugar, podemos localizar
também o sonho incestuoso que tem na noite anterior à realização do ato:
sonhou algo “abominável pois lhe pareceu que se aproximava à sua mãe
com uma mistura que sem horror não pode pronunciar-se” (Plutarco).
Dormia com sua mãe. O referido sonho foi interpretado pelos advinhas
como significando que a mãe representava a Terra e que seria
conquistada por César. Lacan diz “… o sentido indicado pelo sonho que
precede à travessia do Rubicão... não é outro que o sentido do incesto”.
No entanto, no sonho não era o incesto o oculto mas sim seu desejo de
conquista, a qual poderia ou não ser realizada no terreno da realidade,
sem garantias. Fantasia edípica que fica velada para o ato.
Proponho uma leitura possível: algo de um incesto mortífero com a língua
materna retorna, seja como rivalidade com o pai seja como submetimento
ao mesmo. Talvez era necessária outra língua que materna. Por isso o diz
em grego.
Encontramo-nos, por tanto, com que no ato há um desejo em jogo, e algo
fica decidido ainda que não possamos dizer que é o sujeito do
inconsciente quem o decide. Fica decidido, neste caso, por um sonho e
por algo da ordem do invocante, da voz que passa a ocupar o lugar de
causa de desejo. Diz Lacan: “... trata-se de saber em cada um destes
níveis qual é o efeito deste ato. É o labirinto próprio no reconhecimento
destes efeitos por um sujeito que não pode reconhecê-lo, dado que está
inteiramente como sujeito transformado pelo ato; são esses efeitos que
designa por todos os lados, onde o idioma esteja bem empregado, a
rubrica da Verleugnung” (LACAN, 1967).
A Verleugnung, a denegação está dada pela impossibilidade de
reconhecer-se, por parte do sujeito, em seu ato, já que com o que nos
encontramos é com um sujeito transformado por este ato. “Inclusive o
estatuto de César mesmo, o que ele era como sujeito, ia ser
completamente diferente depois de atravessar essa ponte.”.
A dimensão do ato possibilita uma modificação do sujeito no nível de sua
realidade, de sua modalidade de gozo e de seu desejo. Daí a
necessidade de Lacan de incluir ao par inibição e desejo a referência ao
ato: “Quando se trata de definir o que é o ato, único correlato polar no
lugar da angústia, o único que podemos fazer é situá-lo ali onde se
encontra nesta matriz, no lugar da inibição.”.
Para Lacan, somente podemos falar de ato “quando uma ação tem o
caráter de uma manifestação significante na qual se inscreve o que se
poderia chamar o estado do desejo. Um ato é uma ação na medida em
que nele se manifesta do desejo mesmo que haveria estado destinado a
inibi-lo.”.
“E se me fosse permitido dar a isso uma imagem, a tomaria facilmente do
que, na natureza, parece aproximar-se mais ao que faz com que o escrito
exija, de alguma maneira, essa redução às dimensões da superfície, e
que, de uma certa maneira, se encontra suportado, diria, na natureza, por
algo do que já se maravilhava Spinoza, a saber, o trabalho de texto que
sai do ventre da aranha. A teia da aranha, função verdadeiramente...
milagrosa, ao ver de alguma maneira suportar-se já dela, e já neste ponto
opaco deste estranho ser, as aparências da superfície mesma, aquela
que para nós permite o desenho da trança destes escritos que são, enfim,
o único ponto onde encontramos apreensível estes limites, estes pontos
de impasse, de sem-saída que, ao real, fazem entender como acedendo
pelo simbólico a seu ponto mais extremo.”. Há ato de mudança de
posição consistente em misturar novamente as perguntas e retificar, sem
garantia de encontrar ou descobrir.
Se o ato é um lugar do dizer, um dizer de compromisso e implicação e de
abertura à tarefa subjetivante, diz, no entanto, dele mesmo por pouco que
diga.
O ato parece, então, poder tomar valor de formação metafórica dizendo a
verdade do inconsciente. No sentido em que sabemos que na metáfora é
a elisão de um significante pela chegada substitutiva de outro que se
opera com a criação de um sentido novo. Uma sorte de franqueamento da
barreira do recalque e a partir daí um efeito sujeito.
Ou seja, uma passagem do inconsciente posto em ato à borda do que faz
furo “troumatisme” na compreensão plena do saber, rompendo e
colocando o seu, isto é, causado pela tarefa.
Assim, o ato em seu valor simbólico de passagem implica o sujeito em
uma enunciação sem enunciado que se manifesta mais próxima à
verdade, uma certeza antecipada e anunciadora de um compromisso com
a assunção de algo que o aproxime a um real.
O sujeito está em pura divisão. Ele é corte em ato mais próximo do real e
“equivalente a seu significante”. É assim que muitos dos atos simbólicos
efeitos do desejo, marcam a desalienação de um certo franqueamento
inaugural.
Muitos atos são eles mesmo ditos. Já que “o ato é ele mesmo em sua
própria dimensão um dizer” e “isto que caracteriza o ato é sua ponta
significante”, diz Lacan.
Então o ato propriamente analítico. Aceitar este lugar de suporte da
transferência e de causa de trabalho de criação poética do analisante em
sua relação com o furo do real põe o analista numa sorte de porta em
falso pela qual tem que pretender esquecer isto a que pode reduzir-se do
des-ser para ele, em sua própria experiência de analisante, a função do
SsS.
“O analista põe o analisante na tarefa de um pensamento que implica a
destituição do sujeito SsS e que conduz à castração” e “é no lugar de
queda de SsS que surge o objeto a.”. (Seminário 15)
“A história que narrei ainda que fingida
Bem pode figurar o malefício
De quantos exercemos o ofício
De mudar em palavras nossas vidas“
Jorge Luis Borges
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