a dança em portinari: a arte pictórica como instrumento de

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a dança em portinari: a arte pictórica como instrumento de
ENGRUPEdança 2009
ISSN 1982-2863
A dança em Portinari: a arte pictórica como instrumento de intervenção
pedagógica para o ensino da dança
The dance in Portinari: the pictorical art as instrument of pedagogical
intervention for the education of dance
Eliane Regina Crestani Tortola
Larissa Michelle Lara
Sonia Mari Shima Barroco
UEM
Resumo
O presente estudo justifica-se pela necessidade de instrumentos pedagógicos que auxiliem
na atuação do professor de educação física no ensino da dança na escola. Objetivamos
analisar as obras pictóricas de Candido Portinari no intuito de identificar subsídios teóricometodológicos que contribuam com a ação docente para o trato com a dança. A
contribuição das obras de Candido Portinari, como instrumento pedagógico, enriquece o
trabalho do professor, sobretudo quando a arte é potencializada como meio de reflexão
acerca das imposições midiáticas da sociedade capitalista. Visualizando a dança sob essa
perspectiva, baseado na idéia de arte como transformação, é que ressaltamos a importância
da mediação no processo educativo.
Palavras-chave: Candido Portinari, dança, arte.
Abstract
This study is justified by the need for educational tools that assist in the performance of
physical education teacher in dance education at school. We aimed to analyze the pictorial
works of Candido Portinari in order to identify theoretical and methodological contribution to
the teaching for dealing with the dance.The contribution of the works of Candido Portinari,
as an educational tool enriches the teacher's work, especially when art is enhanced as a
means of reflection on the charges of media-capitalist society. Viewing the dance from this
perspective, based on the idea of art as transformation, is that we emphasize the
importance of mediation in the educational process.
Keywords: Candido Portinari, dance, art.
Introdução
A dança nos fornece elementos para a alfabetização do corpo e leva os indivíduos a se
perceberem como sujeitos históricos, a se reconhecerem em sua totalidade, a se
relacionarem com as outras pessoas, a brincarem com a dimensão tempo-espaço, a
perceberem as distintas formas de expressão a partir das mais variadas culturas.
A dança, manifestada pela arte pictórica, apreende, como toda obra de arte (e como outras
produções humanas), “as transformações sociais em curso. Isso pode ser explicitado pelos
recursos materiais e técnicos que emprega pela eleição das temáticas e dos enredos
retratados ou pelas características estilísticas assumidas” (BARROCO, 2007, p. 91).
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No contexto educacional, a dança é uma forma de expressão da vida e do indivíduo como
ser social em contínuo processo de produção e de apropriação de conhecimento. É um tema
que nos instiga e nos remete a reflexões do quanto esse conteúdo, relacionado a outros,
pode contribuir para a intervenção e atuação do professor.
A arte, em especial, a arte pictórica, possuidora de uma função social, conforme assegura
Peixoto (2003, p.56), permite experienciar situações inusitadas “pela fruição de objetos ou
situações criados e apresentados-representados pelo artista. “[...] Os indivíduos podem, no
ato de presenciar o novo, apreender uma nova visão de mundo”.
Assim como a dança, as artes pictóricas se configuram como meio de comunicação não
verbal. Sendo assim, com esse estudo, objetivamos, de modo geral, analisar as obras
pictóricas de Candido Portinari no intuito de identificar subsídios teórico-metodológicos que
contribuam com a ação docente para o trato com a dança. De modo mais específico, fez-se
necessário: investigar as obras pictóricas de Candido Portinari, reconhecendo os aspectos
culturais que as envolvem; compreender como a relação entre arte, educação e corpo
podem se apresentar sob uma perspectiva histórico-dialética na sociedade capitalista;
conhecer o caráter educativo da dança para a humanização dos sujeitos específicos e para a
sociedade em geral.
A análise das obras pictóricas de Candido Portinari que se refiram à dança foi realizada
visando conhecer o artista e sua produção, sua relação com os movimentos populares
estudadas à luz dos conhecimentos teóricos, e sob os seguintes critérios: conhecimento do
acervo de Portinari que apresenta a figura humana; seleção das telas que apresentam
alguma forma de dança, seleção de obras para análise com base em maior evidência do
movimento corporal e da gestualidade, identificação dos dados específicos da obra (datas,
tamanho, título, estilo, tema, etc.), contextualização das telas nas fases produtivas do autor
e no momento histórico em que foram criadas.
Por fim, entendemos que, por meio da análise de obras pictóricas, promovendo o
entrelaçamento dos conteúdos arte, dança e educação é possível lançar desafios no ensejo
de contribuir com a atuação do professor, sobretudo no contexto da intervenção.
Portinari E A Dança
Uma biografia extensa e abrangente a respeito de Candido Portinari, com informações sobre
sua vida e obra, pode ser encontrada no site oficial do autor 1. O que segue, neste momento,
é uma síntese de sua biografia, visando conhecer o autor e contextualizar sua produção
artística, tendo como base as informações do próprio site em questão.
1
http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/cronobio.pdf
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Brasileiro, paulista nascido na cidade de Brodósqui, em uma fazenda de café, no dia 30 de
dezembro de 1903, Candido Portinari foi um artista que dedicou sua vida ao registro da
cultura do Brasil e de seu povo. Filho de imigrantes italianos, estudou apenas o ensino
primário, manifestando seu interesse pelas artes desde a infância, indo em busca de
sistematização nos estudos relacionados à arte aos 15 anos de idade, quando vai para o Rio
de Janeiro e matricula-se na Escola Nacional de Belas-Artes. Conquista inúmeros prêmios ao
longo de sua vida e se destaca pela temática social, sendo este o fio condutor de seu
trabalho. As obras de Portinari exaltam a cultura popular brasileira e sua arte retrata o povo
e suas manifestações culturais. Em 1961, sua saúde se agrava e, vítima de intoxicação
pelas tintas, Candido Portinari falece no dia 6 de fevereiro de 1962.
Muitas de suas obras são ricas em termos de movimento. Isso nos despertou grande
interesse em pesquisá-lo como fonte de conhecimento e instrumento de intervenção
pedagógica para o trabalho com a dança na EF.
Nesse momento, portanto, analisaremos algumas de suas obras, procurando identificar
aspectos relacionados à dança e expressão corporal. Embora não exista uma metodologia
consagrada a respeito do trabalho com telas de pintura, exercício teórico-metodológico
semelhante pode ser encontrado em Barroco (2007) e Torres (2000). Nesta investigação, as
telas foram escolhidas e elencadas de acordo com o tema danças folclóricas/populares
(frevo, baile, samba e bumba-meu-boi). Identificamo-las, para melhor localização, por meio
do Quadro 1:
N.
GRUPO
TÍTULOS
01
Dança do Frevo
Dimensões: 145 x 115cm
Natureza: Pintura a óleo/tela
Data da criação: [1958]
Exposta em: União de Bancos Portugueses, Porto,POR
Frevo
Dimensões: 198 x 168cm Natureza: Painel a óleo/tela
Data da criação: [1956]
Exposta em: Banco Central do Brasil, Brasília,DF.
Frevo
Dimensões: 153 x 102cm
Natureza: Pintura a óleo/madeira
Data da criação: [1958]
Exposta em: Coleção desconhecida
Frevo
Dimensões: 290 x 391cm (I). 300 x 401cm (S)
Natureza: Painel a óleo sobre madeira. Data da criação: [1961]
Exposta em: Pampulha Iate Clube, Belo Horizonte,MG
Frevo.
Dimensões: 19.5 x 13.5cm.
Natureza: Pintura a óleo sobre cartão Data da criação: [1957]
Exposta em: Coleção particular, Dallas,TX
02
Baile na Roça
Dimensões: 97X134 cm.
Natureza: Óleo sobre tela
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Data da criação: [1924]
Exposta em: Coleção Particular. Rio de Janeiro.
03
Samba
Dimensões: 198 x 168cm
Natureza: Painel a óleo/tela
Data da criação: [1956]
Exposta em: Banco Central do Brasil, Brasília,D.F.
Sambistas
Dimensões: 23.5 x 22cm
Natureza: Desenho a grafite e nanquim pincel/papel
Data da criação: [1935]
Exposta em: Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ
Morro
Dimensões: Dimensões desconhecidas
Natureza: Painel a têmpera/tela
Data da criação: [1942]
Exposta em: Obra destruída em 12 de março de 1949 em incêndio na sede da
Rádio Tupi do Rio de Janeiro, RJ.
04
Bumba-Meu-Boi
Dimensões: 32.5 x 32.5cm
Natureza: Pintura a óleo/madeira
Data da criação: [1959]
Exposta em: Coleção particular, São Paulo,SP
Bumba-Meu-Boi
Dimensões: 198 x 168cm
Natureza: Painel a óleo/tela
Data da criação: [1956]
Exposta em: Banco Central do Brasil, Brasília,D.F
05
Carnaval
Dimensões: 20 x 23.5cm
Natureza: Pintura a óleo/cartão
Data da criação: [1960]
Exposta em: Coleção particular, Washington, D.C.,USA
Carnaval
Dimensões: 27.9 x 48.3cm
Natureza: Pintura a aquarela e grafite/papel
Data da criação: [1957]
Exposta em: Coleção particular, São Paulo,SP
Quadro 1 – Relação das figuras analisadas.
Fonte: www.portinari.org.br
As telas analisadas podem ser encontradas no site www.portinari.org.br, pois não são
divulgadas neste trabalho, por necessitar de autorização prévia dos detentores dos direitos
autorais das obras do autor.
No grupo de telas (Portinari, Dança do Frevo, 1958; Frevo, 1956; Frevo, 1958; Frevo,
1957), analisando expressões e posicionamento do corpo dos personagens, observamos que
Portinari revela nitidamente os movimentos contidos no frevo, dança popular do nordeste
brasileiro, especificamente do estado de Pernambuco. Os passos dessa dança são
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facilmente identificados ao observar pernas e pés, sendo uma perna flexionada e a outra
estendida formando um ângulo de 90° e mãos e braços voltados para cima.
Estas telas revelam que as pessoas possuem grande domínio da dança em questão e o
fazem com desenvoltura. As características físicas dos indivíduos são de corpos magros,
mas com pés e mãos grandes, caracterizando a opção do autor em pintar o homem em
condição de imperfeição. A vestimenta é retratada em tons de azul e branco, cores frias
contrastando com a cor de terra que representa o chão. Lourenço e Froner (2008, p 13)
relatam que nas obras de Portinari “Há ainda a presença dos grandes volumes, compostos
pelo jogo do claro-escuro, mostrando dinamismo e ritmo”. É interessante observar que,
além de utilizar poucas cores, o autor também faz uso de linhas retas e formas
geométricas, com figuras sobrepostas, representando por meio de cubículos, as moradias
que existem em muitas cidades brasileiras.
A expressão facial dos indivíduos mostra concentração e seriedade; não existe sorriso ou
manifestação de alegria. Isso contrasta com a expressividade comumente utilizada no frevo.
Geralmente as pessoas executam essa dança com expressão de grande alegria, conforme
assegura Bregolato (2000, p. 102): “A música e dança são tão contagiantes que os que
passam se empolgam e tomam parte da dança”. Essa característica é comum neste ritmo
que pode ser proposto aos alunos em um trabalho de composição coreográfica, tendo como
base tal obra, visando a representação expressiva da dança e seus aspectos gestuais.
Ainda encontramos, retratados pelo autor, os personagens dançantes desta obra com a
cabeça voltada para cima, o que nos dá uma sensação de frenesi e espontaneidade, ao
mesmo tempo em que nos faz direcionar o olhar para o instrumento musical e o adereço,
chamando-nos atenção para os mesmos. Estes são importantes na descrição da obra, por
fazerem parte da dinâmica da dança.
Reconhecida como a primeira obra de arte de Portinari, a tela Baile na Roça, de 1924,
segundo Rosa (1999), foi a primeira tela vendida por ele. Retrata um baile com pessoas
trajadas em vestes típicas de uma região rural, mulheres de vestidos longos e homens de
terno e chapéu. Trata-se de uma pintura acadêmica, formal, se comparada com suas
produções posteriores.
Podemos analisar, nesta tela, tendo como critério a própria manifestação dançante que ela
inspira, bem como a expressividade dos personagens a cores e luminosidade empregada,
que o local do baile é simples e rústico. Os cavalheiros dançam mantendo certa distância
das damas; não existe troca de olhares. O que prevalece, aparentemente, é a timidez e o
respeito entre os pares.
Observando o músico, concluímos que os dançarinos podem estar sendo embalados por
valsas, vanerão, chotes ou guaranias, por notar a presença do acordeom como instrumento
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musical. Porém isso faz parte da imaginação que aflora o pensamento ao observarmos a
tela que nos remete a uma época em que a vida social nas vilas rurais se resumiam aos
bailes nos salões das fazendas de café, como um momento de lazer vivido na época.
Nas telas Samba (1956), Sambistas (1935) e Morro (1942)] Portinari apresenta o negro em
sua mais típica manifestação cultural. O que vemos aqui é uma roda de samba. Apesar de
não estar muito claros os movimentos dançantes do samba, podemos identificar esta
manifestação cultural, em especial, pelo bater palmas da personagem que está ao lado do
músico e da criança. Nota-se, na, mulher, movimentos de braços ao manipular o
instrumento que acompanha o músico e um movimento gracioso de quadris. Não notamos
expressividade nos personagens, nem alegria, nem tristeza. Aparentemente, um momento
de descontração – a representação do lazer do trabalhador.
Os músicos, juntamente com os passistas, dançam enquanto tocam seus instrumentos.
Podemos observar a vestimenta dos músicos, trajados tipicamente como sambistas (camisa
listrada e chapeu).
A alegria do samba está presente nestas obras. É possível perceber a euforia na fisionomia
deles. O que prevalece no samba, retratado pelo autor, é a presença dos instrumentos
musicais que ditam o ritmo para que as mulheres executem movimentos pernas e quadris.
Sobre o samba, Bregolato (2000, p. 108) explica que “a sensualidade dos rebolados e
umbigadas, a criatividade dos saltos e passos rápidos, o misticismo dos giros, gingados,
passos arrastados e ondulações dos movimentos corporais, eleva o espírito para um estado
de êxtase do executante”.
No grupo de telas Bumba-Meu-Boi (1959) e Bumba-Meu-Boi (1956), Portinari procura
representar uma das manifestações da cultura popular brasileira, o Bumba-Meu-Boi.
Segundo Bregolato (2000, p. 98-99), trata-se de uma dança teatral que faz parte das festas
jesuínas, simbolizando a morte e a ressurreição, “em uma sátira do negro em opressão do
branco”.
Esta tela, além de representar uma cultura tipicamente brasileira, mostra o povo, assim
como o artista o vê, em momento de descontração e alegria em uma festa popular, muito
comum no norte e nordeste. Vemos também a presença do músico, assim como a maioria
de suas obras que retratam a dança e as festas populares.
No grupo de telas Carnaval (Carnaval, 1960; Carnaval, 1957), podemos observar o
multiculturalismo na presença dos mais variados personagens que compõem essas obras.
Estamos diante do burrinho, da Porta-Estandarte, dos sambistas, das baianas e músicos.
Todos estão reunidos em uma festa popular. O negro é presente na obra como maioria. Ao
fundo, notamos um emaranhado de rostos, quase todos de fisionomia indecifrável.
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Percebemos que há união entre os personagens. Muita luz e grande variedade de tons
substituem os traços fortes que denotam a intenção de chocar e tocar as pessoas.
A presença no negro, nestas obras, denota a intenção do autor em demonstrar sua arte
social. Fabris (2005) explica que,
O negro, nesse contexto, não é apenas um protagonista histórico da
constituição da nação brasileira. É, antes de tudo, uma figura ideológica, por
cujo intermédio Portinari questiona a política populista proposta pelo
governo Vargas, alicerçada no pacto entre capital e trabalho. A iconografia
portinariana é bem significativa nesse sentido: a presença dominante do
negro, que permite criar de imediato uma associação com o regime
escravocrata, coloca em xeque a “mística do trabalho” propugnada por
Vargas e a idéia interclassista a ela inerente, na medida em que apresenta
uma única figura de trabalhador, empenhado desde cedo na construção da
riqueza nacional (FABRIS, 2005. p. 97).
No que diz respeito à gestualidade, vemos em destaque a Porta-Estandarte como presença
marcante. Parece balançar a bandeira de um lado para o outro. As baianas seguem atrás do
Boi em gestos e, porque não dizer, em giros. Se deixarmos a imaginação fruir, faremos com
que esse quadro ganhe vida e movimento, ritmo e som, nos passos do Boi, nos
instrumentos dos músicos e nos giros das baianas.
São muitas as obras de Candido Portinari; as que estão presentes neste estudo foram
escolhidas por se tratarem de composições que retratam movimentos referentes a danças
populares e danças do folclore brasileiro. Mais adiante, abordaremos a questão dessas obras
sendo utilizadas nas aulas de EF como meio de intervenção pedagógica para a alfabetização
do corpo e conhecimento das manifestações da cultura brasileira, de modo que ao
gestualidade seja tratada considerando o processo histórico do homem que vive em
sociedade.
Portinari na educação pela dança: um exercício propositivo
Após conhecermos a obra de Candido Portinari que retratam a dança, bem como sua
relação com a cultura popular, vamos analisar de que maneira tais obras podem contribuir
no processo de formação e intervenção educacional.
Trazendo ao educando uma tela de Portinari para análise, estamos propondo não uma
reflexão acerca da técnica de pintura empregada pelo autor, e sim, qual a ideia apresentada
por ele, que tipo de manifestação artística está representada na obra, quais movimentos
corporais podem ser destacados nesta composição e executados pelo próprio aluno, enfim,
uma análise no sentido de descobrir a gestualidade impressa na obra de arte em questão,
bem como uma contextualização histórica que permita ao educando conhecer culturas
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diferenciadas. Barroco (2007), ao explicar a importância da arte para a educação dos
indivíduos, afirma que,
Esses indivíduos podem, por exemplo, encontrar as diferentes idéias e
concepções de homens de outras épocas, explicitadas de modo mais
instigante e motivador. Isso permite o confronto de conteúdos, bem como
das formas de abordá-los e expressá-los, com as suas próprias idéias e
concepções. Desse enfrentamento, ou contraposição, encaminha-se a
possibilidade de tomá-las (as suas idéias e concepções, e as estampadas nas
telas) atreladas a contextos que envolvem, dentre outros pontos, espaço
geográfico e temporal. A Arte, desse modo, ao permitir que os indivíduos
“saltem” de uma época para outra ou de uma situação para outra, fornece
elementos para compor um repertório mais amplo de alternativas para se
comportarem, assim como lhes aumenta a chance de se verem também
datados com sua historicidade (BARROCO, 2007, p. 197).
No caso da dança, tendo a obra de arte como instrumento de intervenção pedagógica, o
educando poderá projetar suas percepções sobre a tela exposta por meio de composições
coreográficas ou até mesmo improvisando movimentos de maneira livre e desprendida,
externalizando sensações e emoções provocadas pela análise da obra. Isso dependerá da
mediação do professor que utilizar esse instrumento.
Na educação, essa cisão, arte pictórica e dança, pode trazer, tanto ao professor que utiliza
tal intervenção como ao educando que vai experienciar essa prática, não só a vivência da
representação do movimento estático apresentado na obra, como também do contexto
histórico em que a obra foi retratada. Para Sborquia e Gallardo (2006),
O ser humano é uma expressão da cultura, portanto cada cultura tem a
possibilidade de se expressar por meio de diferentes pessoas. Ao observar
como cada sociedade manifesta sua dança, percebemos as diferenças entre
cada uma delas pelos gestos, movimentos ritmados, formação do grupo,
rigidez ou da liberdade de movimentos. O conjunto de posturas e
movimentos corporais representa valores e princípios culturais. É por isso
que a Educação Física deve pensar o homem e a mulher inseridos na vida
social. (SBORQUIA E GALLARDO, 2006, p. 47).
Portinari, em sua dedicação ao retratar a cultura popular brasileira, preocupou-se, também,
em apresentar os homens em suas manifestações dançantes, de modo que as danças
retratadas em suas composições são produto das manifestações artístico-culturais do povo
que o autor fazia questão de inquirir e representar.
Por isso, acreditamos na importância de uma relação entre a arte de Portinari e a dança. No
contexto escolar, a dança ainda é tratada à margem do currículo, ou seja, deixando essa
manifestação, ou para o período extra-curricular, ou para as apresentações festivas que
ocorrem no decorrer do ano letivo, limitando-se às apresentações nas festas juninas, dia
das mães/pais/professores, etc.
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Ao analisar uma obra pictórica cujo tema representa uma manifestação dançante, o
educando deve ser orientado a levar em consideração qual modalidade de dança aparece na
obra, o contexto histórico e geográfico, os aspectos culturais da dança, a relação desta com
a região geográfica, além da própria gestualidade, técnica e movimentos representados na
tela. Não se trata de abordar esta ou aquela dança e sim ser capaz de reconhecer a
modalidade de dança impressa na obra e com ela os elementos culturais e sociais que a
integram.
Ao observar e analisar a obra de um determinado autor, percebemos sua sensibilidade
artística, ideias, e valores, pois, conforme assegura Peixoto (2003, p. 60), “[...] ao se
conceber a arte como produto do trabalho humano, como criação humana, torna-se uma
certa manifesta que o objeto de arte esteja comprometido com a realidade histórica e que
contenha ou transpareça posições do seu criador”. A arte, portanto, tem historicidade. É
datada, e expressa o “[...] concreto social e histórico ou o ser social e histórico que a cria
[...]”. Trazendo as telas de Portinari aos educandos, estamos trazendo o próprio autor ao
conhecimento deles, suas relações com a cultura popular, seu entendimento sobre dança.
Para isso, a aula deve trazer, num primeiro momento, a contextualização do conteúdo. No
caso das obras de Portinari, vale abordar a temática de maneira abrangente, despertando
no aluno o interesse pelo autor e o conteúdo, inclusive propondo a pesquisa prévia feita por
eles, facilitando as possíveis relações.
Por meio da observação e análise do conteúdo proposto, o educando poderá transcrever
impressões e sentimentos suscitados pela obra observada. O professor poderá mediar as
observações por meio de questões norteadoras, como por exemplo: a) Qual modalidade de
dança podemos destacar na observação da obra?; b) Descreva os movimentos que estão
representados na obra; c) Que tipo de vestimenta está sendo utilizada pelos personagens.
Tem alguma relação com a dança em questão? Quais aspectos culturais desta dança podem
ser observados? Em seguida, uma pesquisa das modalidades de dança encontrada na obra
também pode tornar o aprendizado mais rico e denso.
Após a contextualização, observação e análise das obras de Portinari, a vivência prática das
danças encontradas faz-se necessário, por meio de um espaço livre de organização, onde os
educandos se organizem em grupos de comum interesse a fim de experienciar e criar novos
movimentos a partir dos já observados e analisados, para a vivência e criação. Este é um
momento de integrar o já pesquisado, descoberto e analisado com a prática e a
experimentação.
O exposto acima é uma maneira de se desenvolver um trabalho que relacione arte e dança.
O importante, no entanto, é ressaltar que, no processo educativo, a mediação é o que mais
determina o sucesso deste trabalho. Cabe ao professor, mediador desse processo,
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direcionar as ideias e encaminhar as discussões. Desse modo, entendemos que as obras de
Portinari podem favorecer valorosamente o sucesso desta construção educativa.
Considerações Finais
Pensar em um trabalho envolvendo obras de arte no contexto educacional é um desafio
prazeroso e inovador, tendo em vista as nuanças pedagógicas que norteiam este estudo. A
arte contém fendas e espaços que contribuem para a leitura do real, ultrapassando a
realidade, o que determina uma possibilidade de ir além no trabalho educativo. Abordar as
telas de Portinari, então, ultrapassa a simples lógica pedagógica do professor que ensina e o
aluno que aprende. Suas composições, carregadas dos aspectos da cultura popular
brasileira, transcendem o imaginário casual do aprendizado básico. Reacomoda estruturas
internas do indivíduo, pois, estando diante de uma obra de arte, o mundo fala em si. E, no
caso de Portinari, o Brasil se apresenta e se manifesta em nós.
A arte como expressão faz o sujeito endereçar-se ao outro, seja essa outridade a própria
obra de arte, o gesto, o movimento ou o outro como ser humano. Pesquisamos, discutimos
e ingressamos no universo cultural de Candido Portinari, buscando entender sua
compreensão de mundo e homem expressa em telas, bem como os aspectos gestuais e
expressivos das danças representadas e a cultura popular brasileira manifestada.
Portinari nos deixou grandes ensinamentos por meio deste estudo, dentre eles o que mais
nos tocou foi a sua angústia frente às necessidades sociais, sondando os anseios e desejos
do povo. Entendendo a maneira como o autor desenvolveu seu trabalho foi possível
compreender que a educação não pode desviar-se dos aspectos sociais que a envolvem.
Uma vez que o ser humano sofre as consequências do aligeiramento promovido pelo
sistema capitalista que prega o individualismo e a competitividade, é preciso olhar para as
questões sociais em todos os níveis educacionais, seja no trato com a arte, corpo,
pensamento ou linguagem.
Este autor nos despertou para o entendimento do caráter social da arte, sendo esta um
instrumento valioso a ser utilizado no contexto educacional. Sentimo-nos instigados em
despertar no educando a sensibilidade artística. Porém, compreendemos que esta
sensibilidade deve ser também despertada, antes de mais nada, em nós mesmos, como
educadores, a fim de auscultarmos nossos educandos, percebendo suas necessidades,
anseios e desejos.
Não nos cabe, para esta oportunidade, impor propostas ou ações, mas deixar registrada a
dinâmica que põe em relação áreas supostamente distantes, permitindo que arte e
educação se relacionem e provoquem inquietações, discussões e reflexões. Que a dança
vislumbrada nas obras de arte se projete em movimento real e gestualidade expressiva e
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que o corpo seja visto como instrumento humano de expressão e manifestação, por meio da
linguagem não verbal, provocando, revolucionando, ensinando, e, acima de tudo,
aprendendo.
Referências Bibliográficas
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_________. Morro. Tela de pintura. Disponível em www.portinari.org.br. Acessado em
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_________. Samba. Tela de pintura. Disponível em www.portinari.org.br. Acessado em
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_________. Sambistas. Desenho a grafite e nanquim pincel/papel. Disponível em
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ENGRUPEdança 2009
ISSN 1982-2863
PROJETO Portinari. Síntese biográfica de Candido
Portinari. Disponível
<http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/biografi.htm> acesso em: 22/01/2009.
em:
SBORQUIA, Silvia Pavesi e GALLARDO, Jorge Sérgio Perez. A dança no contexto da
Educação Física. Ijui: Unijuí, 2006.
TORRES, Maria do Rocio Virmond. A pintura nos séculos XIII a XV: uma leitura da sociedade
e da educação. Dissertação de mestrado. 97f. Dissertação. (Mestrado em Educação –
Universidade Estadual de Maringá), 2000.
Eliane Regina Crestani Tortola - Mestranda em Educação física UEM/UEL. Especialista em
Teoria Histórico-Cultural DPI/UEM. Graduada em E.F. pela UEM. Integrante do grupo Corpo,
Cultura e Ludicidade DEF/UEM. Experiência na área de E.F., com ênfase em dança.
Eliane Regina Crestani Tortola - MS in Physical Education UEM/UEL. Expert in CulturalHistorical Theory DPI/UEM. Graduated in E.F. by UEM. Member Group Body, cultural and
leisure DEF/UEM. Experience in the area of EF, with emphasis on dance.
Larissa Michelle Lara – Doutora em Educação UNICAMP (2004), mestre em E.F. UNICAMP
(1999), especialista em E.F. Infantil UEM (1997) e graduada em E.F. UEM (1995).
Professora Adjunto-tide C do DEF/UEM, líder do Grupo de Pesquisa Corpo, Cultura e
Ludicidade - DEF/UEM/CNPq - Membro do Grupo de Estudos em Filosofia, Modernidade e
Educação - GEFIME/UNICAMP. Coordenadora local do Programa de Pós-Graduação
Associado em Educação Física UEM-UEL.
Larissa Michelle Lara - PhD in Education UNICAMP (2004), Master in Physical Education
UNICAMP (1999), an expert in EF Childish UEM (1997) and graduated in UEM EF (1995).
Adjunct-tide C DEF / UEM, leader of the Research Body, cultural and leisure DEF/UEM/CNPq - Member of the Research Group in Philosophy, Modernity and Education GEFIME/UNICAMP. Local coordinator of the Post-Graduate Associate in Physical Education
UEM-UEL.
Sonia Mari Shima Barroco - Graduada em Psicologia (UEM), PhD. em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano (Instituto de Psicologia - USP). Doutora em Educação Escolar
(UNESP/Araraquara), mestre e especialista em Educação UEM. Docente do Departamento
de Psicologia UEM, vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UEM.
Sonia Mari Shima Barroco - Gradueted in Psychology (UEM), PhD in Educational
Psychology and Human Development (Institute of Psychology - USP). Doctor in School
Education (UNESP/Araraquara), Master and expert in education UEM. Teacher in
Department of Psychology UEM, vice-coordinator of the Post-Graduate in Psychology-UEM.
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