“A paisagem onde a gente brincou a primeira vez não sai mais da

Transcrição

“A paisagem onde a gente brincou a primeira vez não sai mais da
ARTE
Por Ana Paula Freire
Fotos portinari.org.br
Um
cândido
brasileiro
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“A paisagem onde a gente brincou
a primeira vez não sai mais da
gente, e eu quando voltar vou ver
se consigo fazer a minha terra...”
Trecho de carta escrita por Portinari
à família, quando morava em Paris
D
a pequena cidade de Brodowski, interior paulista,
para o mundo. Quem poderia imaginar, àquela
altura, meados do século XX, que aquele menininho nascido em uma fazenda de café, que nem sequer
completou o primário, se tornaria um dos mais importantes pintores da nossa história? Com muita obstinação e
um talento ímpar, Candido Portinari (1903-1962) chegou
lá. Brasileiro na alma, universal nas telas. Como na prosa
poética, há um pedaço dele em toda a sua obra: o Candido
menino nas crianças de sua terra natal, o Portinari sublime
na exuberância de seus traços.
O extraordinário legado do artista possui mais de
cinco mil obras, entre murais, afrescos e painéis, pinturas,
desenhos e gravuras que representam uma ampla síntese
crítica de todos os aspectos da vida brasileira de seu tempo. A mais conhecida delas – os murais Guerra e Paz – está
temporariamente “em casa”, para restauro e exposição, e
é, sem dúvida, a maior expressão da singularidade de Portinari. Afinal, que imaginaria um retrato de guerra representado através do sofrimento do povo e não de soldados em
combate ou corpos mutilados?
A propósito, um olhar minucioso desse mural imponente nos oferece a mais bela e literal tradução do aforismo guevariano “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”. Na versão brasileira, esse outro “camarada”
nos inspira a dizer: “É preciso ser duro, sem jamais deixar
de ser cândido”. Sim, em Guerra, Portinari preferiu uma visão simbólica ao caráter realista que privilegia os combates
do século XX, tão bem retratados em La Guernica (1937),
de Pablo Picasso. Na Guerra do Candido, em vez de sangue, vemos o povo em sofrido, mas inteiro, carregando o
pranto e a solidão mortuária imposta pelos conflitos.
É no mural Paz, contudo, que se revela ainda mais o
cândido Portinari. Todos os figurantes são os meninos de
Brodowski. Nas gangorras, em cambalhotas e piruetas, ou
armando arapuca, eles simbolizam a alegria e o reencontro
maduro do artista com suas raízes. “A paisagem onde a
gente brincou a primeira vez não sai mais da gente, e eu
quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra...”,
escreveu Portinari, de Paris, onde viveu por dois anos. A
distância acabou aproximando-o do Brasil, despertando
um interesse social muito mais profundo.
Na alegria das moças que dançam e cantam, no coral
de meninos de todas as raças, nos camponeses plantando e
colhendo, no espantalho... em todos os elementos de Paz a
brasilidade de Portinari está presente. Junte-o ao mural Guerra e podemos imaginar o impacto que ambos causam na sede
da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York,
para onde foram concebidos. Guerra está à vista de quem
chega. Paz, no caminho para a saída. Era o cândido brasileiro querendo dizer aos chefes de Estado “Olhem bem, vejam
com a alma, mergulhem nessas imagens. E escolham”.
“Exatamente. Meu pai projetou os murais para que,
quando os delegados das nações chegassem ao prédio, deparassem com o painel Guerra e, quando estivessem saindo do prédio, sua última visão fosse o da Paz”, contou João
Candido Portinari, filho único do artista, em entrevista à
Empório Amazônia, por telefone.
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Perguntado qual a lembrança mais forte de sua convivência com o pai, João surpreendeu: “A imagem mais significativa
que eu guardo na memória é ele passando a mão na minha
testa, para ver se eu estava com febre quando eu ficava doente... [pausa]... Essa pergunta me emociona porque ela me
permite falar de um outro Portinari: o pai, o meu pai, não o
artista, porque esse é de domínio público. Eu falo daquele que
me ensinou os princípios da justiça e da solidariedade. O pai
que se orgulhava ao observar o filho pequeno, aprendiz de
pintor, com o pincel em punho diante da tela”.
Para quem escuta esse depoimento, é impossível não
se emocionar imaginando a delicadeza da cena. Assim era
o Candido pai, a porção lírica do Portinari artista, que ao
longo de sua vida e obra manteve uma relação especial
com a infância. Há relatos de que o nascimento de João foi
a sua maior emoção. Nem mesmo o intenso ritmo de trabalho comprometia a dedicação ao filho e à esposa, a uruguaia Maria Martinelli, que ele conhecera em Paris. Uma
declaração de José Lins do Rego, gentilmente sugerida por
João Candido para esta reportagem, resume o pintor:
“Tudo em Portinari é feito com o máximo de paixão,
com a sua vida inteira. Está a sua vida no seu João
Candido, como uma imagem da pureza humana, e está
no Jeremias de lágrimas que são como pedaços de uma
alma que se decompõe no pranto. Portinari cada dia
vence mais. Cada dia ele penetra mais nas realidades do
mundo, cada dia é mais homem da terra, é mais senhor
da técnica e cada dia mais poeta. A técnica não lhe seca
o coração como um vampiro. A técnica é sua escrava,
não é sua dona. Ele é que é dono na técnica”
Por uma dessas ironias perversas do destino, o povo,
para quem Portinari dedicava a sua obra, hoje não tem
acesso a ela. Seus mais importantes trabalhos estão dispersos em coleções privadas e museus em todos os cantos do
planeta. Segundo João, isso motivou o questionamento inconformado de Antonio Callado: “Segregado em coleções
particulares, em salas de bancos, Candinho vai se tornando
invisível. Vai continuar desmembrado o nosso maior pintor,
como o Tiradentes que pintou?”
Infelizmente, Callado não está mais entre nós para testemunhar a epopeia de João no desafio de reunir toda a
obra de seu pai. Pesquisador das áreas de engenharia de
telecomunicações e de matemática, ele deixou uma carreira acadêmica de sucesso para se dedicar integralmente
ao Projeto Portinari, que ele mesmo desenho, há mais de
30 anos. O desafio: localizar, digitalizar e catalogar os trabalhos de Portinari. Os primeiros 20 anos foram dedicados
a pesquisas, qualificadas por João como “um verdadeiro
trabalho de detetive”. Hoje, praticamente toda a obra está
disponível em formato digital.
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O ideal de Portinari
Candido Portinari foi o primeiro pintor latino-americano a ter um Catálogo Raisonné, que significa a mais
definitiva e completa fonte de referência sobre a obra de
um artista. Lançado pelo Projeto Portinari em 2004, na
26ª Bienal de São Paulo, com o patrocínio da Petrobrás,
essa preciosidade rendeu a João Candido o Prêmio Jabuti
de Literatura e o Prêmio Sérgio Milliet, ambos em 2005.
Onde quer que esteja, certamente o pai Candido continua
orgulhoso de seu menino.
Poderia ele, afinal, imaginar que aquela criança-aprendiz-de-pintor um dia iria percorrer todo o Brasil, durante
mais de 30 anos, apresentando sua obra e sua mensagem
de paz, justiça e solidariedade a tanta gente: plateias pequenas e grandes, importantes e singelas, citadinas e rurais?
Que aquele menininho um dia iria trazer os painéis Guerra
e Paz para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, para
mostrá-los ao público brasileiro, tão bem representado ali?
Para João, essas conquistas demonstram tudo o que o
ser humano é capaz de realizar, “quando é movido por um
ideal, uma fidelidade, uma paixão”. A angústia de Antonio
Callado não se confirmou graças ao trabalho do filho e dos
colaboradores do Projeto Portinari. Candinho não está invisível. Jamais poderia. Ele está mais presente do que nunca em
nós e para nós. O Brasil, enfim, está tendo a oportunidade de
conhecer aquele que é o mais cândido dos nossos pintores.
O projeto
Idealizado há mais de 30 anos, o Projeto Portinari está
sediado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio
de Janeiro. Trata-se de um acervo primordialmente virtual,
uma vez que não possui nenhuma obra original. “Apenas
reunimos os conteúdos e a pesquisa sobre o meu pai”, explica João Candido. Segundo ele, a ideia era construir o
Museu Portinari com as obras originais do artista, mas seria
praticamente impossível resgatá-las dos museus e de colecionadores particulares. “Então, resolvemos apostar na
digitalização”, acrescentou.
João lamenta a falta de tradição do País em museologia, cujo resultado é a dispersão de obras importantes que
poderiam estar em museus nacionais. Ele defende a criação
de uma legislação específica que incentive os colecionadores
particulares a doarem as peças, não só as de Portinari, mas
de todos os artistas brasileiros, “para que os nossos museus
possam ser enriquecidos”. João não desistiu da construção
do Museu Portinari, porém, com o acervo constituído de
reproduções impressas em alta definição. As informações
sobre o Projeto Portinari estão no site www.portinari.org.br
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“Estou proibido de viver”
Portinari na Amazônia
Guerra e Paz foi uma encomenda feita a Candido
Portinari no final de 1952, pelo governo de Getúlio Vargas. Seria um presente do Brasil às Nações Unidas. Os
painéis decoram o hall de entrada da sede da ONU, em
Nova York. Durante o período de criação dos murais,
ele começou a sentir o efeito do contato diuturno com
as tintas. O médico então lhe disse que estava com uma
dose anormal de chumbo branco no organismo e, para
evitar uma contaminação maior, deveria abandonar por
completo a pintura a óleo ou similares.
Inconformado, Portinari declarou: “Estou proibido
de viver” (Jornal O Globo, 1954). E, contrariando a ordem médica, ele não recuou ao desafio e ao trabalho
maior de toda a sua vida. Para dar conta da tarefa, contou com o auxílio de Enrico Bianco e de Rosalina Leão.
Segundo o relato de Bianco, “não há um centímetro quadrado nos painéis que não tenha a pincelada de Portinari, que usou pincéis pequenos, para quadros de cavalete,
não pincéis maiores…”
“Ele aceitou fazer os murais consciente do risco que
estava correndo. Morreu fazendo aquilo que amava”, afirmou João Candido. E em nove meses, cobriu, pincelada a
pincelada, usando as tintas proibidas, dois monumentais
paredões de 14m de altura e 10m de largura. Em 6 de
setembro de 1957, Guerra e Paz foram finalmente doados
à ONU em cerimônia oficial. Devido ao envolvimento de
Portinari com o Partido Comunista, ele não foi convidado
a comparecer à cerimônia. Os painéis foram entregues ao
público num evento sóbrio, sem a presença do mestre
que os concebeu.
Para a alegria dos brasileiros, uma reforma no edifício
de Manhattan foi a brecha para que os painéis voltassem
ao País. Graças a um acordo entre o Projeto Portinari, o
Governo brasileiro e a ONU, Guerra e Paz ficarão no
Brasil até 2013. Uma ótima oportunidade para quem quiser conhecer a obra que é tida como “uma verdadeira
apoteose da utopia de Portinari”.
Desde 1997, o acervo do Projeto Portinari tem servido como ferramenta para um amplo programa de Arte,
Educação e Inclusão Social, que já atingiu mais de 500 mil
pessoas em todos os estados brasileiros, voltado especialmente para as crianças. De acordo com João Candido, o
verdadeiro trabalho começou depois da catalogação das
obras. “Foi quando passamos a desenvolver uma série de
ações. A mais importante delas é o trabalho com crianças,
realizado nos últimos 13 anos: o Brasil de Portinari”.
No âmbito desse programa, foram realizadas exposições itinerantes com réplicas das obras no Pantanal,
no Amazonas e mais recentemente na Bahia. Segundo a
professora Suely Avellar, a experiência na região do Purus
(AM), realizada em parceria com a Marinha do Brasil, foi
“interessantíssima” porque as crianças ribeirinhas vivem
em condições muito especiais. Devido à carência de infraestrutura de saúde, médicos, dentistas e enfermeiros da
corporação se deslocam para a região uma vez ao ano.
“Fizemos um trabalho integrado com a Marinha. Enquanto as crianças esperavam atendimento médico, nós
realizávamos diversas ações de arte e educação com elas.
Um pouco tímidas a princípio, logo se chegavam a mim
e então começavam a conversar, a ouvir atentamente as
minhas histórias de Candinho e a brincar com os dois
fantoches, Cocó e Mimi, que levei para incentivá-los a
escovar os dentes. Eles também desenhavam – alguns sequer tinham visto hidrocor – enfim, foi uma experiência
única”, disse, por telefone, a coordenadora desse núcleo
no Projeto Portinari.
Suely relata que, a partir de certas obras de Portinari,
as crianças falavam de sua própria experiência. “Quando
mostrei a reprodução do quadro ‘Meninos soltando pipa’,
perguntei se eles gostavam. Eles respondiam que sim, mas
me diziam que aí (Amazonas) no nome é ‘papagaio’. O mais
curioso é que, na falta de papel de seda colorido, eles fazem os seus papagaios com sacolas de plástico e varetas
com a fibra do buriti. Enfim, esse é o Brasil de Portinari”.
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A experiência com as crianças ribeirinhas foi ‘interessantíssima’. Mostrei
o ‘Meninos soltando pipa’, e soube que
pipa, no Amazonas, é papagaio”
Suely Avellar, educadora
do Projeto Portinari
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