Viemos para dizer não
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Viemos para dizer não
Siamo venuti per dire di No Viemos para dizer Não PERSONAGENS Peppinunu Silvestro Guerrin Mesquinho Orlando Camponês Camponesa Com Bigodes Sem Bigodes Reinaldo Ganelão Gran Lombardo Peppininu-Catanese Concezione Calogero Ezequiel Colombo Porfirio Soldado I. AQUI APRESENTAMOS – Praça – [Pela direita, entra Peppininu] PEPPININU [ajoelhando-se para o público] Gentil e respeitável público, boa noite! Esta noite as marionetas dos irmãos Napoli vão representar uma pequena peça feita por eles a partir da Gente da Sicília do nosso caro Elio Vittorini! E representamo-la com os nossos personagens do teatro de marionetas sicilianas, que estão sentados no meio de vocês. Os meus actores principais são Orlando e Reinaldo, esse belo rapaz Guerrin Mesquinho e o grande vilão do Ganelão. Foram todos convidados pela Menina Céline, para virem ver uma peça sobre o seu futuro. Ela queria saber o que eles pensam sobre estes tempos loucos. Os personagens da tradição de marionetas correspondem alegoricamente (como diz o Professor Napoli) aos personagens do famoso romance da Canção de Rolando. E com razão! Quem, melhor que Guerrin Mesquinho poderia compreender Silvestro, que regressa à Sicília para se encontrar a si mesmo? Quem, melhor do que o meu principal Reinaldo – que se revoltava sempre contra os vilões deste mundo – poderia considerar o teimoso e honrado Calogero um irmão espiritual? E por esta razão a Menina Céline (que talvez seja um pouco inoportuna) sugeriu que os convidássemos, para ver e ouvir o que eles pensam do nosso espectáculo. E eu penso que seja uma boa ideia! Deixem-me explicar melhor: Este romance é uma representação alegórica da condição humana oprimida pelos vilões deste mundo. Hei, Professor, aprendi bem a minha lição? E isto é exactamente o que as nossas marionetas têm feito desde sempre: Têm representado o Bem contra o Mal, contando histórias dos nossos antigos cavaleiros. E, além disso, o autor escreveu: “A Sicília desta história é só Sicília para contar esta história.” E tal como os personagens do romance também são personagens universais, também fizemos com que os nossos personagens do teatro de marionetas se encontrassem aqui, esta noite, em Módica. E se esta é uma boa ou má ideia, respeitável público, a decisão será vossa, e façam-nos saber com palmas ou assobios no final da noite! Dêem-nos a honra! [Faz uma vénia] [Sai Peppininu, pela direita] II. RAIVA – Quarto – [Pela direita, entra Silvestro] SILVESTRO Naquele Inverno eu era presa de furores abstractos. Não vou dizer quais, não é isso que venho aqui contar. Mas é preciso que diga que eram abstractos, não heróicos, não vivos; de certo modo furores para a espécie humana perdida. Duravam já há muito tempo e baixava a cabeça. Via os cabeçalhos que gritavam dos jornais e baixava a cabeça; via os amigos, durante uma hora, duas horas, e estava com eles sem abrir a boca, baixava a cabeça. Entretanto, chovia e os dias, os meses, passavam; tinha buracos nos sapatos, a água entrava-me nos sapatos e não havia mais nada senão isto: chuva, massacres nos jornais, água nos meus sapatos rotos, a vida em mim era como um sonho surdo, sem esperança, calma. Era terrível: a calma na falta de esperança. Acreditar que a humanidade está perdida e não arder para o impedir, vontade de me perder com ela. Era agitado de furores abstractos mas estes não agiam no meu sangue, e estava calmo, não desejava nada. Estava calmo, como se nunca tivesse tido um dia de vida, nem nunca tivesse sabido o que significa ser feliz, como se não tivesse nada a dizer, a afirmar, a negar, nada de meu para arriscar, nada para ouvir, nada para dar e nenhuma vontade de receber; como se nunca, em todos os meus anos de existência, tivesse comido pão, bebido vinho, nunca tivesse tido filhos, andado à luta com alguém e não acreditasse que isso fosse possível; como se nunca tivesse tido uma infância na Sicília, entre os figos-da-índia e o enxofre; mas por dentro sofria de furores abstractos e pensava na condição humana perdida, baixava a cabeça e chovia, não dizia uma palavra aos amigos e a água entrava-me nos sapatos. GUERRIN MESQUINHO [exclama da sala] Valha-me Deus! Este homem parte em busca do desconhecido, presa de um delírio de furor! Assim era eu quando deixei Constantinopla a bordo do Braço de S. Jorge! A arrogante princesa Elisena tinha-me desprezado e eu decidi ir em busca dos meus pais! ORLANDO [da sala, pensativo] E assim deixei eu Paris e a minha esposa Alda para ir à procura de Angélica... [Noite. Ouve-se o rumor do comboio que assobia e corre nos carris] III. E LARANJAS – Figos-da-índia – [A partir do quinto de profundidade a estibordo à quinta à esquerda corre uma balaustrada branca] [A estibordo, Silvestro] [À esquerda, um camponês e uma jovem camponesa, sentada num saco entre a quinta de profundidade e a de combate. Aos seus pés um cesto] SILVESTRO Não há queijo como o nosso. [Pausa: olha à volta] Não há queijo como o nosso. [Pausa: olha de novo à volta] Não há queijo como o nosso. CAMPONÊS Mas sois siciliano? SILVESTRO Porque não? [Pensa] [Sobressalta-se] [O camponês inclina-se sobre a jovem camponesa, acaricia-a na face e aconchegalhe o xaile. Depois tira uma laranja do cesto e oferece-lhe. Ela rejeita abanando a cabeça] Uma flauta soava alto em mim [...] e comecei uma longa viagem nocturna [...]. SILVESTRO [repete, insistente] Não há queijo como o nosso. [Sai Silvestro, da direita] CAMPONÊS Um siciliano nunca come de manhã. Sois americano? de outro... SILVESTRO ... Sim, sou americano. Há quinze anos. CAMPONÊS E à noite? Comem todos à noite na América? CAMPONÊS Tenho primos na América. Um tio e primos... SILVESTRO Penso que sim, melhor ou pior... SILVESTRO Ah bem. Talvez em Nova Iorque. Talvez na Argentina. Na América. De onde sois? SILVESTRO Eu? Nasci em Siracusa... CAMPONÊS Não, de que lugar sois na América? SILVESTRO De... De Nova Iorque. CAMPONÊS Como vão as coisas em Nova Iorque? Vão bem? SILVESTRO Não se enriquece. CAMPONÊS Que importa? Pode-se estar bem sem enriquecer... Pelo contrário, é melhor... SILVESTRO Quem sabe! Lá também há desemprego. CAMPONÊS E o que importa o desemprego? Nem sempre é o desemprego que faz estragos... Não é isso... Eu não sou desempregado. Nenhum de nós o é. Trabalhamos... Nos jardins... Trabalhamos. Regressastes para o desemprego, vós? SILVESTRO Não [...] Regressei por alguns dias. CAMPONÊS Ah! [...] E comeis de manhã... Um siciliano nunca come de manhã. Comem todos de manhã, na América? SILVESTRO Penso que sim, de um modo ou de outro... CAMPONÊS E ao meio-dia? Comem todos ao meio-dia na América? SILVESTRO Penso que sim, de um modo ou CAMPONÊS Pão? Pão e queijo? Pão e verduras? Pão e carne? SILVESTRO Sim, pão e outras coisas. Nunca comeis salada de laranja? CAMPONÊS Sim, às vezes, mas nem sempre temos azeite. SILVESTRO Claro, as colheitas nem sempre são boas e o azeite pode ser caro. CAMPONÊS E nem sempre temos pão. Se não vendemos as nossas laranjas não temos pão. E nesse caso temos de comer laranjas. SILVESTRO Mas porque é tão difícil vender as laranjas? CAMPONÊS Porque não se vendem. Ninguém as quer. Não as querem no estrangeiro, como se as nossas laranjas fossem venenosas. E o patrão paga-nos desta forma, em laranjas. Vimos de Messina, a pé, e ninguém as quer... E vamos a Régio ver se as querem lá, na Villa San Giovanni, e ninguém as quer. Andamos para a frente e para trás, pagamos a nossa viagem para nós e também para eles, não comemos pão e ninguém as quer. Ninguém as quer. Ninguém as quer... Como se fossem venenosas... Malditas laranjas! [Sai o camponês e a jovem camponesa, pela esquerda] [Escuro] IV. COM & SEM BIGODES – Comboio – [Pela esquerda entram Com Bigodes e Sem Bigodes] [Com Bigodes e Sem Bigodes são como dois cúmplices: estão sempre juntos, entendem-se a meias palavras, falam baixo quase sem se fazerem ouvir] SEM BIGODES O que queria aquele tipo? COM BIGODES Parecia que se estava a queixar... COM BIGODES Sem dúvida! SEM BIGODES E propenso à delinquência política, COM BIGODES Independentemente da classe, da estirpe social, SEM BIGODES Sejam ignorantes, sejam educados... COM BIGODES Sejam ricos, sejam pobres... SEM BIGODES Não há distinção. SEM BIGODES Embirrava com alguém. COM BIGODES Comerciantes, COM BIGODES Penso que embirrava com toda a gente... SEM BIGODES Advogados, SEM BIGODES Concordo. Era um pobre miserável... COM BIGODES Sabes, eles não têm respeito. SEM BIGODES Não têm consideração. COM BIGODES Se tivesse sido lá em baixo tinha-o detido. COM BIGODES Em Lodi, o meu barbeiro.... Uma vez detive-o por três dias! SEM BIGODES Só terias feito o teu dever. SEM BIGODES Deter e manter as pessoas em cativeiro. Mas porque é que no final de contas nos olham de lado? COM BIGODES Naturalmente, só teria feito o meu dever. [Pela direita, entra Silvestro: durante o diálogo entre os dois pensa e ouve com atenção] SEM BIGODES Devemos sempre deter este tipo de pessoas. COM BIGODES Claro, nunca se sabe. SEM BIGODES Cada pobre miserável é um homem perigoso. COM BIGODES Claro! Capaz de tudo! SEM BIGODES De roubar, COM BIGODES Nem é preciso dizê-lo! SEM BIGODES De puxar da faca, COM BIGODES É porque somos sicilianos. SEM BIGODES É por isso, porque somos sicilianos. Em casa, na aldeia, na Sicília, é bem pior. Em Sciacca, eu... COM BIGODES Em Mussumeli, eu... SEM BIGODES A minha mãe não diz a ninguém o que eu faço, tem vergonha, e em vez disso diz que trabalho no Cadastro. No Cadastro! COM BIGODES São preconceitos. SEM BIGODES Sim, antigos preconceitos.... COM BIGODES É impossível viver na aldeia. Nem sei porque é que regresso. SEM BIGODES Que laranjas! COM BIGODES Que mar! SEM BIGODES E tu pensas que eu o sei? A minha mulher é de Bolonha, os filhos são de Bolonha e mesmo assim... COM BIGODES Assim que tenho férias, sem excepção, todos os anos... SEM BIGODES Sem excepção, especialmente nesta altura do Natal. COM BIGODES Mas para quê? SEM BIGODES Para apodrecer as entranhas! COM BIGODES Envenenar-se o sangue! REINALDO [da sala] Valha-me Nossa Senhora! Pensava que ninguém pudesse ser assim tão pérfido e perigoso como os Mogunceses do Conde Ganelão, mas estava enganado! Vejam bem aqueles dois... E inclusivamente vestidos de preto! GANELÃO [da sala, para Reinaldo] O que é que tens contra os meus honestos mogunceses, tu que és o príncipe dos bandidos? ORLANDO [da sala, para Reinaldo e Ganelão, arrogante] Primo, Conde Ganelão! Silêncio! Quero ouvir! [As luzes deixam na penumbra Com Bigodes e Sem Bigodes. Um foco ilumina Silvestro] [Escuro] V. FEDOR – Carruagem de comboio – [À direita, um assento, no qual está sentado o Gran Lombardo. À esquerda, outro assento, no qual se senta Peppininu–Catanese. Em frente do assento, de pé, Silvestro] GRAN LOMBARDO Não sentieis o fedor? SILVESTRO Fedor? Que fedor? GRAN LOMBARDO Como? Não o sentieis? SILVESTRO Não sei. Não sei de que mau cheiro falais. GRAN LOMBARDO Oh! Ele não percebe de que fedor falo. [vira-se para Peppininu– Catanese] Não percebe de que fedor falo! Incrível! SILVESTRO Oh! A sério que não percebo! Não sinto cheiro nenhum... PEPPININU–CATANESE Ele está a falar do cheiro que vinha do corredor. SILVESTRO Vinha mau cheiro do corredor? GRAN LOMBARDO Mas, é incrível! Não o sentieis? PEPPININU–CATANESE Ele está a falar do fedor daqueles dois... SILVESTRO Aqueles dois? À janela? Cheiravam mal? [de repente, compreendendo, ri] Ah o fedor! [todos riem] É estranho, não há sítio no mundo onde eles sejam mais mal vistos do que na Sicília... Apesar disso, em Itália são quase todos sicilianos a fazer aquele trabalho. GRAN LOMBARDO Todos sicilianos? SILVESTRO A sério! Há quinze anos que viajo por Itália... Vivi em Florença, vivi em Bologna, em Turim, vivo em Milão e onde quer que tenha encontrado um siciliano, este era o seu trabalho... PEPPININU–CATANESE Sim, é o que o meu primo que viaja diz. GRAN LOMBARDO É compreensível, somos um povo triste. SILVESTRO Triste? GRAN LOMBARDO Muito triste. Mesmo lúgubre. Sempre prontos a ver o lado negativo das coisas. Sempre a esperar por algo melhor, sempre a desesperar para o poder ter... Sempre angustiados. Sempre abatidos. E sempre com a tentação de nos matarmos. PEPPININU–CATANESE Sim, isso é verdade. SILVESTRO Talvez seja verdade... Mas o que tem isso a ver com semelhante profissão? GRAN LOMBARDO Penso que ambas as coisas estejam relacionadas. Não sei como explicá-lo, mas penso que sim. O que faz uma pessoa quando desiste? Quando decide que não há nada a fazer? Faz o que mais odeia. Penso que seja isso. Penso que seja compreensível que sejam quase todos sicilianos. Venho de Messina e vou para casa. Sou de Leonforte, lá no alto, no Val Demone, entre Enna e Nicosia. Sou um proprietário rural, com três filhas bonitas. Tenho um cavalo que galopo pelas minhas terras e quando o faço acho que sou um rei, mas não penso que tudo se resuma a isso, em pensar que sou um rei enquanto ando a cavalo. Gostaria de obter maior reconhecimento, de sentir-me diferente, com algo novo na alma. Daria tudo o que tenho, incluindo o cavalo e as terras, para me sentir mais em paz com a humanidade, para me sentir de consciência tranquila. Não é que possa ser acusado de algo, de maneira nenhuma, e nem sequer falo em termos religiosos. Mas não me sinto em paz com os homens. Gostaria de ter uma consciência fresca, que me pedisse para levar a cabo outros deveres, não os habituais, mas outros, novos e mais elevados deveres para com a humanidade, porque não nos sentimos satisfeitos a realizar os deveres normais. [quase profético] Penso que a humanidade esteja pronta para outra coisa, para deveres novos e diversos, para coisas que dariam um novo significado à nossa consciência. PEPPININU–CATANESE Sim senhor, com razão! Desculpe, mas sois professor? GRAN LOMBARDO Eu? Professor? Eu penso que seja exactamente isto, realizar os nossos deveres já não nos satisfaz, não nos interessa, sentimo-nos mal. Porque são deveres velhos, demasiados velhos e fáceis, sem nenhum valor para a nossa consciência. PEPPININU–CATANESE De certeza que não sois professor? GRAN LOMBARDO Eu professor? Tenho ar de professor? Não sou um ignorante, posso ler um livro se quiser, mas não sou professor. Andei nos Salesianos em criança, mas não sou professor. [Escuro] SILVESTRO [avançando no proscénio, um foco apontado sobre ele] Assim chegámos à última estação antes de Catânia, já nos subúrbios da grande cidade de pedra preta; e depois chegámos a Catânia, fazia sol nas estradas de pedra preta que atravessávamos, estradas e casas, a pique sobre o comboio, e chegámos à estação de Catânia e o Catanês desceu [sai Peppininu-Catanese, pela esquerda] e também o Gran Lombardo [sai Gran Lombardo, pela direita] e também vi Com Bigodes e Sem Bigodes descerem. Todos desceram do comboio e eu segui viagem com as restantes carruagens vazias ao sol e perguntei a mim mesmo por que razão não desci também. Estava só e o campo transformou-se em rochas no caminho para Siracusa, junto ao mar. ORLANDO [da sala, para Reinaldo] Reinaldo, meu primo, pelo aspecto, majestade e autoridade, aquele sábio que falava de deveres elevados parecia ter vindo do sangue do duque Namo da Baviera! Até o imperador Carlos Magno baixava a cabeça às repreensões e conselhos de Namo! momento mais intenso da viagem na quarta dimensão. Surpreendente, estou em casa da minha mãe! CONCEZIONE [de dentro] Quem é? SILVESTRO [cumprimentando] Senhora Concezione! REINALDO [da sala, para Orlando] Namo da Baviera, como tu bem sabes, era também meu avô e, dadas as suas lições e o seu elevado sentido de responsabilidade, eu não tolero injustiças! [Da esquerda, entra Concezione] GANELÃO [da sala, murmurando sozinho] Não tolera injustiças... E todo o ouro de Mogúncia que me roubaste, maldito ladrão? E o tesouro de Mambrino que levaste para a Gasconha? SILVESTRO Como é que me reconheceste? [Desce o pano] SILVESTRO E assim tinha chegado a Siracusa. E prossegui viagem até casa da minha mãe nas montanhas. VI. TERRA – Casa rústica – [Ao centro da cena, uma pequena mesa com um banco e uma cadeira. Pela direita, entra Silvestro. Este diálogo é familiar mas estranho, com Concezione que fala como se todas as coisas fossem as mais naturais do mundo ao mesmo tempo que Silvestro parece redescobrir tudo, não se lembra, surpreende-se das respostas da mãe, tornou-se outro homem. Recordar não é fácil e é doloroso. Ele quase que tem medo de recordar, esqueceu-se “da fome”] SILVESTRO Estar ali era a coisa mais importante de estar ali, não era o final da viagem, pelo contrário, talvez fosse o seu início. E estava em casa da minha mãe. Reconhecia a porta de casa e não me era indiferente. Era o CONCEZIONE Oh! É o Silvestro! [aproxima-se dele, Silvestro beija-a na cara, ela faz o mesmo]. Mas o que te traz a estas partes? CONCEZIONE [ri] Pergunto-me o mesmo. Vamos para a cozinha, tenho o arenque ao lume! Vais ver como é saboroso! SILVESTRO Sim, imagino que não haja nada melhor. Era o que comíamos quando eu era pequeno? CONCEZIONE Claro, arenque no Inverno e pimentos no Verão. Comíamos sempre assim. Não te lembras? SILVESTRO E favas com cardos? CONCEZIONE Sim, favas com cardos. Tu adoravas favas com cardos. SILVESTRO A sério? Gostava muito? CONCEZIONE Sim, querias sempre repetir. E também lentilhas com cebola, tomates secos e toucinho... SILVESTRO Com um raminho de alecrim, não? CONCEZIONE Sim, com alecrim. SILVESTRO E também queria repetir esses pratos? CONCEZIONE Sem dúvida! Terias dado o teu primeiro filho para repetir as lentilhas. Ainda te vejo a regressar da escola, às quatro da tarde, com o comboio... SILVESTRO É verdade, com o comboio de mercadorias, com as bagagens... No início sozinho, depois com o Felice, depois com o Felice e o Liborio... CONCEZIONE Todos os passarinhos, com as cabeças cheias de cabelo, as caras e as mãos sempre negras... E assim que chegavam perguntavam: “há lentilhas hoje, mãe?” SILVESTRO Na época vivíamos nas casas dos cantoneiros, descíamos do comboio na estação, em San Cataldo, em Serradifalco, em Acquaviva, em todos os lugares onde vivemos, e tínhamos de caminhar um quilómetro ou dois até chegar a casa. CONCEZIONE Às vezes até três! Quando passava o comboio sabia que estavam a caminho e punha as lentilhas ao lume, o arenque no forno e depois ouvia-vos a gritar: “Terra... Terra...” SILVESTRO Porquê terra? CONCEZIONE Era uma brincadeira vossa. Uma vez, em Racalmuto, a casa ficava numa subida, o comboio abrandava e vocês aprenderam a descer em andamento e saíam em frente à casa. Eu tinha um medo que me pelava que fossem atropelados, por isso esperava-os com um bastão! SILVESTRO E batias-nos? CONCEZIONE Oh sim! Não te lembras? Partia-vos as pernas com o bastão. E às vezes ficavam sem comer. SILVESTRO Porque é que não há sopa? CONCEZIONE Como poderia saber que vinhas? SILVESTRO Mas eu digo para ti. Não fazes sopa para ti? CONCEZIONE Eu quase nunca comi sopa na vida. Cozinhava-a para vocês e para o vosso pai, mas eu comia arenque de Inverno, pimentos no forno no Verão, muito azeite, muito pão... SILVESTRO Sempre a mesma coisa? CONCEZIONE Sempre. Porque não? Azeitonas também, claro, e às vezes muita carne de porco, salsichas, quando tínhamos um porco... SILVESTRO Tínhamos um porco? CONCEZIONE Sim, não te lembras? Havia anos em que tínhamos um porco, nas casas dos cantoneiros, criávamo-lo com figos-da-índia e depois matávamo-lo... Fazíamos todo o tipo de coisas, tomates secos ao sol... SILVESTRO Como estávamos bem! Tínhamos redes metálicas! CONCEZIONE Ainda por cima eram zonas de malária. SILVESTRO Aquela grande malária! CONCEZIONE Muito grande! SILVESTRO Com as cigarras!... Eu pensava que a malária fossem as cigarras! CONCEZIONE Talvez por isso tenhas apanhado tantas? SILVESTRO Apanhava-as? Mas era o seu canto que eu pensava que fosse a malária! Apanhava muitas? CONCEZIONE Imensas! Vinte ou trinta de cada vez. SILVESTRO Talvez pensasse que fossem grilos... O que fazia com elas? CONCEZIONE Penso que as comias. SILVESTRO Comia-as? CONCEZIONE Sim, tu e os teus irmãos. SILVESTRO Mas como é possível? CONCEZIONE Passam-se horas a chupar... CONCEZIONE Talvez tivessem fome. GUERRIN MESQUINHO [da sala] Santo Deus, a minha alma está parva! Voltou a abraçar sua mãe num lugar tão pobre, como eu voltei a abraçar depois de longos anos os meus pais Milone e Fenisia. Eu também andava em busca de algo... Vagará ele de Oriente a Ocidente, de Sudeste a Noroeste até ao fim do mundo –como me impôs o destino –, antes de poder saber quem é? SILVESTRO Tínhamos fome? CONCEZIONE É provável. SILVESTRO Mas vivíamos bem em casa! CONCEZIONE Sim, o teu pai recebia no final do mês e então durante dez dias vivíamos bem, éramos a inveja de todos os camponeses e mineiros, mas após os primeiros dez dias éramos pobres, como eles. Comíamos caracóis. SILVESTRO Caracóis? CONCEZIONE Sim e chicória selvagem. SILVESTRO E eles só comiam caracóis? CONCEZIONE Sim, em geral os pobres só comem caracóis. E nós éramos pobres nos últimos vinte dias do mês. SILVESTRO E comíamos caracóis durante vinte dias? CONCEZIONE Caracóis e chicória selvagem. SILVESTRO [hesitando] Imagino que no final de contas fossem bons. CONCEZIONE Óptimos. Podem-se preparar de muitas maneiras. SILVESTRO Como de muitas maneiras? CONCEZIONE Só cozidos, por exemplo. Ou com alho e tomate. Ou panados e fritos. SILVESTRO Que estranho! Panados e fritos? Com a casca? CONCEZIONE Claro. Comem-se chupandoos da casca... Não te lembras? SILVESTRO [hesitando] Lembro-me sim. O melhor é chupá-los da casca, acho. VII. O AMOLADOR – Estrada ensolarada – [Ouvem-se gaitas de foles, badalos de cabras e vozes. Na plateia, uma criança conduz um papagaio de papel em voo. Da direita entra Silvestro. Da direita entra Calogero, empurrando a sua bicicleta de amolador. Calogero e Silvestro fazem uma autêntica coreografia, dançam e riem de modo exagerado, ritmado, absurdo] CALOGERO [gritando] É o amolador! Afia facas e tesouras! [Silvestro dirige-se a Calogero] CALOGERO [para Silvestro] Estou a falar com vós, estrangeiro. [falando mais baixo] Não trouxestes nada para amolar nesta cidade? Não tendes uma espada para amolar? Um canhão? [Silvestro passa-lhe um canivete] SILVESTRO Não tendes muito para amolar nesta terra? CALOGERO Pouco que valha a pena. Pouco que satisfaça. SILVESTRO Amolais bem facas. Amolais bem tesouras. CALOGERO Facas? Tesouras? Pensais que ainda existam facas e tesouras neste mundo? SILVESTRO Pensava que sim. Não existem facas e tesouras nesta terra? CALOGERO [vira-se para Silvestro, rindo com amargura] Nem nesta terra nem nas outras. Passo por muitas terras e amolo para quinze ou vinte mil almas e mesmo assim nunca vejo facas nem tesouras. SILVESTRO Mas o que vos dão para amolar que não sejam facas e tesouras? CALOGERO É o que eu lhes pergunto sempre. Que me dais para amolar? Não me dais uma espada? Não me dais um canhão? E olho-os cara a cara, nos olhos, vejo que o que me dão nem sequer se pode chamar [insistindo] prego. [dobra-se sobre a bicicleta e concentrase durante um minuto] Oh, como gostaria de amolar uma boa lâmina! Se a lançais é um dardo, se a agarrais é um punhal. Ah, se todos tivessem uma boa lâmina! SILVESTRO Porquê? Pensais que sucederia qualquer coisa? CALOGERO [olhando para Silvestro] Oh, eu gostaria de amolar sempre uma verdadeira lâmina! [em voz baixa, cúmplice] Por vezes seria suficiente que toda a gente tivesse dentes e unhas para amolar. [andando à sua volta, quase dançando] Amolá-los-ia com dentes de víbora, com garras de leopardo... [aproximase com passos de dança à volta de Silvestro, brincando] Ah! Ah! CALOGERO Quarenta cêntimos [ocupado, parece meter as moedinhas de parte e inicia a contar, murmurando]. Quatro de pão, quatro de vinho... E o homem com os bigodes? Quatro de bigodes. Quatro de pão... E o vinho? Quatro de vinho. Quatro de bigodes... E o pão? SILVESTRO Mas porque é que não juntais tudo e dividis mais tarde? CALOGERO É demasiado arriscado, por vezes comeria tudo, outras beberia tudo... [coça a cabeça e devolve dez cêntimos a Silvestro, olhando para o céu] Aqui está. Queria ficarvos com dois dinheiros a mais mas Deus não o quer. Eram estes dois dinheiros que faziam a confusão. Peço desculpa, pensava que o pudesse fazer porque sois estrangeiro. SILVESTRO Oh, não é nada, dois dinheiros a mais, dois dinheiros a menos... CALOGERO A questão é que não nos sabemos comportar com os estrangeiros. Talvez existam amoladores que cobrem oito dinheiros, noutros países, e arriscamo-nos a prejudicá-los ao cobrar seis, não vos parece? [Olham-se durante muito tempo e começam a caminhar juntos] CALOGERO O mundo é belo. SILVESTRO Imagino. CALOGERO Luz, sombra, frio, calor, alegria, tristeza... SILVESTRO Esperança, caridade... CALOGERO Infância, juventude, velhice... SILVESTRO [começa a dançar] Ah! Ah! SILVESTRO Homens, crianças, mulheres... [Riem e falam ao ouvido, juntos, em passos de dança, batem as mãos sobre os ombros] CALOGERO Mulheres belas, mulheres feias, graças de Deus, astúcia e honestidade... CALOGERO Ah! Ah! SILVESTRO Memória, fantasia. SILVESTRO Quanto custa? CALOGERO O que significa? SILVESTO Oh, nada. Pão e vinho. CALOGERO Salsichas, leite, cabras, porcos e vacas, ratos... SILVESTRO Ursos, lobos, CALOGERO Pássaros. Árvores e fumo, neve... SILVESTRO Doença, cura. Eu sei, eu sei. Morte, imortalidade ressurreição. CALOGERO É uma pena ofender o mundo. Perdão, se tendes muito prazer em conhecer alguém, e lhe cobrais dois dinheiros ou duas liras a mais por um serviço que deveríeis ter feito de graça, dado o prazer de tê-lo conhecido, o que é este homem? Um cidadão do mundo, ou alguém que ofende o mundo? [Silvestro ri. Calogero ri, cumprimenta Silvestro com uma vénia e ri novamente] Por vezes confundimos as ninharias do mundo com as ofensas ao mundo. [Aproxima-se ao ouvido de Silvestro] Se existissem facas e tesouras... [afasta-se do ouvido de Silvestro] Quereis conhecer um homem que tem uma sovela? SILVESTRO Porque não? CALOGERO Vinde comigo. [Saem pela direita] REINALDO [da sala] Virgem Santíssima, gosto deste homem que afia as lâminas! Forte, franco e corajoso como os cavaleiros do campo do meu Exército dos Setecentos! GANELÃO [da sala, para Reinaldo] Queres dizer ratoneiros, príncipe dos salteadores, ladrões e bandidos! REINALDO [da sala, para Ganelão, estremecendo] Cuidado com a língua, conde Ganelão... [Escuro] VIII. AMIGOS COM ARMAS – Interior de oficina de seleiro – [Pendurados por todas as partes e suspensos do tecto, vêem-se cordas, couros, penachos coloridos com laços e adornos, rédeas, chicotes, selas e selins. À esquerda, uma mesa de sapateiro iluminada com uma luz ténue. Sobre a mesa um caderno, um tinteiro e uma caneta. Ao lado da mesa, quase invisível na abertura de cena, Ezequiel que “pensa”] CALOGERO [chamando de dentro] Ezequiel! [Da direita, entram Calogero e Silvestro. Continua a chamar entrando] [A ténue luz da mesa de sapateiro torna-se mais forte até revelar, seja ao público que a Calogero e Silvestro, a presença de Ezequiel] CALOGERO Ezequiel! EZEQUIEL Queres a sovela, Calogero? [Ezequiel vê Silvestro e observa-o preocupado] CALOGERO Não preciso dela hoje, Ezequiel. Encontrei este amigo que tem uma lâmina. EZEQUIEL A sério? O mundo foi ofendido, mas ainda não aqui dentro. [Ezequiel move-se à volta da sala, como quem procura algo, ouve-se o barulho de materiais, mas não encontra nada] [Para Calogero, indicando Guerrin Mesquinho, Silvestro] Diz-lhe que tenho muito prazer. Disseste-lhe como sofremos? Diz-lhe que não sofremos por nós próprios. CALOGERO Ele sabe disso. EZEQUIEL Diz-lhe que não há nada que nos faça sofrer a nós mesmos. Não sofremos o peso da doença, da fome E mesmo assim sofremos tanto, tanto! CALOGERO [para Silvestro] Verdade que o sabeis? EZEQUIEL Não são estas as ofensas do mundo pelas quais sofremos. [indicando Silvestro] este vosso amigo sofre. Sofre pela dor do mundo ofendido! E agora vou levá-los a beber um copo de vinho ao Colombo. Vamos. [Silvestro acena com a cabeça] [Escuro] EZEQUIEL Então o vosso amigo sabe que sofremos pela dor do mundo ofendido. ORLANDO [da sala, para Reinaldo] Prezado primo, Ezequiel estima Calogero, mas é travado pela ira e pelo ardor da revolta. Lembras-te quantas vezes, em plena corte, fiz o mesmo contigo, quanto te revoltavas contra Carlos Magno, que te tinha expulso, instigado por Ganelão? CALOGERO Ele sabe! Ele sabe! EZEQUIEL Pergunta-lhe se o sabe de verdade. CALOGERO Sim. EZEQUIEL O mundo é grande e belo, mas muito ofendido. Todos sofrem, cada um por si próprio, mas não sofrem pelo mundo que é ofendido e assim o mundo continua a estar ofendido. CALOGERO [gritando, em delírio de raiva] Facas, tesouras, mosquetes, morteiros, martelos e foices, canhões, canhões! EZEQUIEL [ergue a mão direita, para impedir o delito de Calogero, que pára imediatamente] Meu amigo! REINALDO [da sala, para Orlando] Tens razão, caro primo! Esta bonita senhora fez bem em nos ter convidado a vir cá! A história torna-se cada vez mais interessante... Parece-me mesmo que nos revemos nestes personagens! [Ganelão afasta-se furtivamente da sala, dirigindo-se aos bastidores] CALOGERO Sim, amigo. EZEQUIEL Porque é que sofremos? CALOGERO Para quê? Pela dor da humanidade ofendida? EZEQUIEL Lembra-te que não sofremos por nós mesmos mas pela dor do mundo ofendido! CALOGERO [balbuciando] Eu lembro-me. [agitando-se, irritado e sarcástico] Sim. E a minha cabeça é coberta pelo reverendo chapéu do meu avô, os ombros são protegidos pelo bendito casaco do meu pai, as vergonhas são escondidas pelas calças do padre Horácio... Há muita bondade nos homens, muita bondade, E tenho abrigo na casa aquecida pelas vacas do Gonzales. Porque é que temos três trabalhos? Para viver de caridade, como prescreveu o Nazareno? IX. NO FUNDO DO COPO – Gruta – [À esquerda, um balcão para servir vinho, com um jarrinho e quatro copos de metal. Atrás do balcão, Colombo. Luz ténue de candeeiro a petróleo. Na sala, um banco no qual se sentam operários e uma braseira ao lado da qual se aquecem, de cócoras, dois jovens camponeses] SILVESTRO [entre o delírio da embriaguez e uma extraordinária lucidez da mente] Procurava algo e bebi um trago entre os lábios e o vinho parecia-me bom, mas mesmo assim não podia bebê-lo. Pois todo o passado da humanidade dizia-me tratar-se não de coisa viva, espremida do Verão e da terra, mas de uma coisa triste, uma triste coisa fantasma das cavernas dos séculos. E o que poderia ser num mundo sempre ofendido? Gerações e gerações beberam, versaram a sua dor no vinho, procuraram a nudez no vinho, e uma geração bebeu da outra, da nudez do vinho esquálido, vinho de gerações passadas, de toda a dor derramada. CORO DE OPERÁRIOS [Na sala, infelizes, cantando com uma triste cadência e abanando a cabeça e o tronco com um movimento simultâneo] «E sangue de Santa Bumbila» [A pouco e pouco o cantar torna-se rouca lamentação] [Calogero baixa a cabeça, com raiva. Ezequiel olha ao seu redor quase assustado. Porfírio observa todos, excepto Colombo. Depois isola-se a confabular com ele] REINALDO [da sala] Deus Santíssimo, Colombo atordoou-os com o vinho! Colombo fez com Porfírio o que Ganelão fez com Carlos Magno: tornou-o cego e obtuso! Ele, com as suas calúnias e os seus discursos; Colombo com o seu vinho! [Olhando à volta] Ganelão... Onde está o Ganelão? de uma história antiga! Somos símbolos de um conflito eterno que extirpa o mundo e revive nas épocas e nos corações dos homens! Tu e eu nunca morreremos! E o que vimos esta noite é a prova disso! REINALDO [enquanto o marionetista o conduz da sala ao palco] Por todas as vezes que te bati e te cortei a face, também desta vez te farei pagar! [À direita, Reinaldo sobe ao palco e dá repetidos bofetões a Ganelão, que ri trocista, até o fazer sair de cena, enquanto na sala marionetas e pessoas insultam Colombo e o traidor, por vezes cantando: “Viemos para dizer Não!”] [Escuro] X. COM AMADOS E MORTOS – Cemitério – SILVESTRO [recuperando uma consciência lúcida e delirante] Não era isto em que queria acreditar, nisto não há mundo. Vou-me embora! [Sai Silvestro, pela direita] [Avistam-se lumes avermelhados. Da esquerda, entra Silvestro, em delírio] REINALDO [da sala, procurando desesperadamente Ganelão] Onde estás, pérfido traidor moguncês? Não quererás tu transformar esta festa numa tempestade furiosa... SOLDADO Não, não, sou um soldado. [Da esquerda, de repente, entra Ganelão] GANELÃO [para Reinaldo, em tom provocador] Estou aqui, ladrão de Montalbano! Estou com o meu querido Colombo! Aliás, eu sou o Colombo! O que queres fazer-me? Queres matar-me novamente, depois de teres atacado os cavalos que me esquartejaram? Não podes! Mas tu não percebes... Onde é que está a astúcia de Reinaldo? És cego! Não já não somos simplesmente personagens SILVESTRO Oh, estou no cemitério? Mas quem sois vós? O cangalheiro? SILVESTRO Que estranho! Estais de guarda? [A pouco e pouco o soldado emerge da escuridão] SOLDADO Não, estou a descansar. SILVESTRO [surpreendido] Entre as campas? SOLDADO São campas agradáveis e confortáveis. SILVESTRO Talvez tenhais vindo para pensar nos vossos mortos? SOLDADO Quando muito, penso nos meus amados vivos. SILVESTRO A sério? Eu não vejo ninguém... SOLDADO Talvez seja por causa da escuridão. SILVESTRO Ah! Na namorada, imagino? SILVESTRO Mas então porque é que fazem a peça? SOLDADO Um pouco em todos. Na minha mãe, nos meus irmãos, nos meus amigos e nos amigos dos amigos e no meu pai, em Macbeth. Ele costuma fazer o papel do rei, pobre homem. Eles pensam que os deuses toleram nos reis o que desprezam na gente comum. SILVESTRO [exclamando surpreendido] Mas como é possível? O meu pai é exactamente assim! SOLDADO Bom, todos os pais são assim. E o meu irmão Silvestro... SILVESTRO [quase gritando] O vosso irmão Silvestro? Mas eu chamo-me Silvestro! SOLDADO E então? Os nomes são poucos e os homens são tantos. SOLDADO Têm que a fazer. Pertencem à história. SILVESTRO E o que representam? SOLDADO As acções pelas quais foram glorificados. SILVESTRO O quê? Todas as noites? SOLDADO Sempre, senhor. Até que alguém o escreva em verso e vingue os vencidos e perdoe os vencedores. SILVESTRO O quê? SOLDADO Acabei de o dizer. SILVESTRO Mas isso é terrível. SOLDADO É aterrador. XI. ÀS ESCURAS – Cemitério – SILVESTRO Imagino que sofram muito, Césares não escritos. SILVESTRO [respira satisfeito, estendendo de novo a mão] Onde estais? SOLDADO E os seus seguidores, os combatentes, os soldados... Sofremos, senhor. SOLDADO Aqui. SILVESTRO E vós também? SILVESTRO Está demasiado escuro. SOLDADO Melhor assim, sobretudo porque temos a peça. SILVESTRO A peça? Que peça? SOLDADO Sentai-vos e verás. Aqui estão eles a chegar. SILVESTRO Quem é que está a chegar? SOLDADO Todos eles, reis e os seus rivais, vencedores e vencidos... XII. REALMENTE – Cemitério – SOLDADO Infelizmente sim. Amarrado como um escravo, ferido cada vez mais, dia após dia, naquele campo de neve e sangue. SILVESTRO É isso que representais? SOLDADO Infelizmente sim. Pertenço a essa glória. SILVESTRO E sofreis muito? SOLDADO Por cada palavra impressa, cada palavra enunciada, cada milímetro de bronze erguido. SILVESTRO Faz-vos chorar? SOLDADO Faz-nos chorar. SILVESTRO Mas representais com o vosso irmão. Não é uma consolação? SOLDADO Não sei. SILVESTRO Não é suficiente? [com voz humilde] Posso fazer algo para vos consolar? Onde estais? SOLDADO Estou aqui. SILVESTRO Onde? [Sai o soldado, da esquerda, quase desmaiando] SILVESTRO [estendendo as mãos e gritando] Onde estais? [O soldado não responde] XIII. E ASSIM É – Praça – [Da direita, entra Silvestro, cambaleando, quase num sonho delirante] SILVESTRO E comecei a ter medo. E entretanto começava também a lembrar-me. [Silvestro continua a chorar] [Longa pausa] [Da direita, entra Peppininu] PEPPININU [ao centro da cena, falando ao público, erguendo a mão direita ao céu] E agora toca-me a mim. Senhoras e Senhores. E foi esta a conversa de Silvestro na Sicília, que durou três dias e três noites, e que acabou como começou. Mas agora, para evitar equívocos ou malentendidos, aviso-vos que tal como o protagonista desta conversa não é um personagem autobiográfico [sempre estas palavras difíceis!], da mesma forma a Sicília que a enquadra é uma Sicília a fingir. Simplesmente porque o nome Sicília soa melhor do que Pérsia ou Venezuela. Seja como for, como escreveu o velho Elio, imagino que todos os manuscritos sejam redigidos para serem encontrados numa garrafa. Céline Condorelli Siamo venuti per dire di No Viemos para dizer Não Instalação vídeo com dois canais HD cor, som 55’ (2013) Marionetas: Fratelli Napoli di Catania Montagem: Pierrick Mouton Elaboração e adaptação do texto original para marionetas: Céline Condorelli e Alessandro Napoli Tradução para português: Filipa Ramos Revisão: Paulo Ramos Inspirado no romance Gente da Sicília, de Elio Vittorini Viemos para dizer Não é uma instalação vídeo realizada para a exposição A Revolution is a Spinning Force, comissariada por Filipa Ramos, Appleton Square, Lisboa, Setembro/Outubro 2013. Obra realizada a partir da performance homónima que decorreu em Módica, Sicília, na noite de 24 para 25 de Agosto de 2012, parte de I Vespri Siciliani – uma reencenação contemporânea da ópera de Verdi sobre a revolta siciliana de 1282 – um projecto comissariado por Marco Scotini e organizado pela Galeria Laveronica.