programa lugares da memória - Memorial da Resistência de São

Transcrição

programa lugares da memória - Memorial da Resistência de São
Memorial da Resistência de São Paulo
PROGRAMA
LUGARES DA MEMÓRIA
Cemitério Israelita do Butantã
Endereço: Av. Eng. Heitor Antônio Eiras Garcia, 5530
Jd. Educandário, SP.
Classificação: Cemitério.
Identificação numérica: 055-04.001
O Cemitério Israelita do Butantã foi inaugurado no dia 22 de fevereiro de 1953,
mas devido às obras ainda em andamento, passou a funcionar apenas um ano depois,
em 14 de fevereiro de 1954. Diferentemente do Cemitério Israelita da Vila Mariana, o
primeiro de São Paulo, a concessão para a construção do cemitério do Butantã ocorreu
de forma mais ágil, pois em 06 de setembro de 1951 foi promulgada a Lei Municipal nº
4.1001. A partir desta lei estavam abrandadas as restrições para a abertura de cemitérios
particulares (religiosos) e as instituições gestoras passaram a ter mais liberdade para
estabelecer seus regulamentos, que antes eram rigorosamente definidos pelo governo
municipal ou estadual, sem possibilidades de adequação às especificidades de grupos.
A necessidade de ter um cemitério (campo-santo) próprio é para a comunidade
judaica uma questão muito importante, pois, da mesma forma que existe um “modo de
vida” judaico, ou seja, uma série de preceitos religiosos que devem ser seguidos em
vida por um judeu, existem também uma série de crenças e rituais que precisam ser
praticados para e durante o seu sepultamento2. Em relação ao enterro, o Talmud3
Lei Municipal nº 4100/1951 (Regulamentada pelo Decreto nº 2415/1954). Câmara Municipal
de São Paulo. Disponível em <https://www.leismunicipais.com.br>. Acesso em 29/06/2015.
2 Para uma leitura sobre os rituais judaicos de sepultamento ver: VAINSENCHER, Semira Adler.
Enterro judeu. Fundação Joaquim Nabuco; Biblioteca Central Blanche Knopf. Pesquisa
Escolar Online, Recife/PE.
3 O Talmud é um livro judaico que complementa a Torá. Para os judeus, D'us (Deus) ditou a
Moshê (Moisés) suas leis, ele a reproduziu fielmente como a Torá Escrita. Mas D'us explicou
toda a Torá oralmente a Moshê, que então passou a explica-la oralmente ao povo. A explicação
recebida de D'us foi passada de geração em geração, sendo conhecida como a Torá Oral, que
foi compilada, muito tempo depois pelo sábio Rabi Yehudá Hanassi. A Torá Oral explica a Torá
Escrita, que é sucinta. Já o Talmud é o livro que preenche as lacunas e explica as leis da Torá
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explica que “o homem deve ser enterrado em seu próprio terreno”, sendo que o
cemitério judaico é considerado um patrimônio comum da coletividade israelita,
satisfazendo, portanto, essa especificação do preceito talmúdico4.
O primeiro cemitério da comunidade judaica de São Paulo foi o Cemitério
Israelita da Vila Mariana, fundado em 1919. O pedido de licença para a sua construção
data de 22 de março de 1915 e foi encaminhado à Câmara Municipal de São Paulo
solicitando que a Prefeitura aceitasse a doação de um terreno a ser utilizado como
campo-santo judaico. O terreno de 5 mil m2 estava sendo doado pelo empresário
Maurício F. Klabin e localizava-se ao lado do Cemitério Municipal da Vila Mariana
(inaugurado em 1904). O cemitério israelita estaria vinculado ao Cemitério da Vila
Mariana, conforme determinação da legislação municipal, tanto administrativamente
como pelo portão de acesso, mas cabia-lhe a permissão para praticar rituais próprios.
Reproduzimos abaixo um trecho do abaixo-assinado da comunidade judaica de São
Paulo argumentado sobre as necessidades de terem um cemitério israelita na cidade.
A Colonia Israelita de São Paulo, representada pelos abaixo
assignados vem a presença de V.Ex. requerer a necessária
autorização para tornar realidade uma velha aspiração dos Israelitas
residentes no Estado e que é a installação de um cemiterio com todos
os requesitos necessários. [...] ...quer de Israelita pobre, quer de rico
deve ter a sua sepultura perpétua, deve ter o seu lugar no seio da terra
para toda a vida, não podendo nem o seu corpo nem os seus ossos
serem retirados de lugar onde forem enterrados em tempo algum [...]
[mantida grafia do original]5.
A implantação dos cemitérios particulares (religiosos) estava proibida após a
proclamação da República em 1889, que assumiu a defesa do caráter laico do Estado.
A concessão, que permitiria o funcionamento desses cemitérios, foi, até o fim dos anos
1910, um tema bastante polêmico “que passava por opiniões e posturas muitas vezes
discordantes dentro dos próprios órgãos públicos, que acabavam por gerar longos
Oral, explicando, discutindo e esclarecendo todas as leis e rituais judaicos. Além disso, inclui
histórias e ditos que tanto direta quanto alegoricamente oferecem a filosofia e sabedoria do
Judaísmo. Informações disponíveis em Morasha. Leis e Tradições. O que é o Talmud?. Ed. 43,
dez/2003. Disponível em: <http://www.morasha.com.br/edicoes/ed43/talmud.asp>; e Beit
Chabad.
Ser
judeu.
O
que
é
o
Talmud?.
Em:
<http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/talmud/home.html>. Acessos em 29/06/2015.
4 Portal da Chevra Kadisha do Rio de Janeiro. Como proceder em casos de falecimento.
Regras do Luto. Disponível em <http://www.chevrakadisha.com.br/regras-do-luto/#10>. Acesso
em 29/06/2015.
5 Processo 0127.478/1915 – Colonia Israelita de São Paulo (Abaixo assinado). O documento é
parte do relatório apresentado em 20 de maio de 1915 sobre o pedido de abertura do Cemitério
Israelita da Vila Mariana junto à Prefeitura. Reproduzido por JANOVITCH, Paula Ester. História
da formação do cemitério particular israelita na cidade de São Paulo. Departamento do
Patrimônio Histórico de São Paulo. Material não publicado, s/d, p.28. Disponibilizado no Portal
Ver São Paulo - Cultura e História da Cidade em: <https://goo.gl/v0EjYT>. Acesso em
30/06/2015.
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pareceres apoiando ou desaprovando seu funcionamento”6. Reproduzimos um trecho
do relatório de 20 de maio de 1915 que responde negativamente à solicitação do pedido
de abertura do Cemitério Israelita da Vila Mariana junto à Prefeitura, enviado alguns
meses antes: “Uma das valiosas conquistas do regimen inaugurado em 15 de Novembro
de 1889 foi, por sem duvida, a secularisação dos cemitérios pelo Decreto de 24 de
Setembro de 1890 que assim dispõe no seu artigo 3. É prohibido o estabelecimento de
cemitérios particulares (mantida grafia do original)7.
Na cidade de São Paulo cabia à municipalidade a gestão dos cemitérios, que
seguiam regras gerais de sepultamento. Dentro destas regras, o maior problema para
os judeus era a possibilidade das exumações, pois essa é uma das práticas funerárias
terminantemente proibidas pelas leis religiosas judaicas8 – existindo raras exceções
para a regra, conforme enumera Semira Adler Vainsencher.
[...] quando a comunidade judaica não possuía, ainda, seu próprio
cemitério. Neste caso, assim que seja inaugurado um cemitério judeu,
é permitido desenterrar os ossos e sepultá-los ali, para que o morto
permaneça junto dos demais hebreus. E, segundo, quando a família
deseja enterrar seus restos mortais no solo de Israel. Excetuando-se
esses dois casos, qualquer ação que venha a perturbar o repouso do
falecido recebe a denominação nivúl hamet (representa uma ofensa
ao mesmo)9.
Acrescentamos ainda na listagem a obrigatoriedade das exumações a partir de
mandatos judiciais para averiguação de causa mortis, não cabendo, para este caso,
objeções de nenhuma religião, pois a Constituição brasileira estabelece que o Estado
brasileiro é um Estalo laico.
A Chevra Kadisha10 do Rio de Janeiro destaca como a impossibilidade de ter um
cemitério próprio afeta as práticas judaicas do enterro e do luto:
JANOVITCH, Paula Ester. op. cit. p.29.
Trecho do Relatório reproduzido por JANOVITCH, Paula Ester. Idem.
8 A prática da cremação também é proibida aos judeus. Primeiro, porque a cremação era
originalmente um ritual pagão, um ato associado com a idolatria que o Judaísmo combateu;
segundo, porque a lei judaica proíbe a mutilação do cadáver. A Bíblia afirma: “Porque és pó, e
ao pó tornarás” (Gênesis 3:19). A decomposição do corpo deve ocorrer naturalmente, sem
interferência externa. Apenas em casos de epidemias é que se faz necessário consultar um
rabino para avaliar a questão. Chevra Kadisha do Rio de Janeiro, loc. cit.
9 VAINSENCHER, Semira Adler. Enterro judeu. Fundação Joaquim Nabuco; Biblioteca
Central Blanche Knopf. Pesquisa Escolar Online, Recife/PE. Disponível em:
<http://goo.gl/qXHUdU>. Acesso em 30/06/2015.
10 A Chevra Kadisha é uma das organizações mais antigas do povo judeu, existindo em todas as
comunidades judaicas do mundo. O termo significa “Sociedade Sagrada” e é a responsável por
cuidar dos cemitérios judaicos e de todo o processo de sepultamento: da parte burocrática, logo
após o falecimento, até o final do luto. Para informações sobre a atuação da Chevra Kadisha ver:
HOTZ, Andréia. Acolher e Amparar. Entrevista com Michel Freller. Revista da CIP. Congregação
Israelita Paulista: São Paulo, n.38, abr/mai de 2015. Disponível em: < http://www.cip.org.br/wpcontent/uploads/2015/04/entrevista-chevra_dialogos-abrmai2015.pdf>. Acesso em 01/07/2015.
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No caso de um cemitério não-judaico ou ecumênico, o ritual judaico de
sepultamento só pode ser realizado desde que forem cumpridas as
seguintes exigências: 1) A família deve adquirir um lote inteiro no
cemitério, para que possa ser qualificado como “terreno próprio”. A
sepultura em si não é considerada “propriedade”; 2) O lote deve estar
situado numa parte desocupada do cemitério, para que possa ser
cercado e delimitado como um terreno separado. Assim, dada a
complexidade das condições acima estipuladas, é norma do Rabinato
não celebrar o rito judaico de sepultamento fora de um cemitério
israelita11.
A situação do cemitério judaico foi alterada apenas em 12 de maio de 1919
quando foi promulgada a Lei Municipal nº 2.191 que autorizou o Prefeito a aceitar a
doação do terreno de Klabin, destinando-o ao enterramento exclusivos de israelitas12.
Inaugurado em 1919, o primeiro sepultamento do Cemitério Israelita da Vila Mariana foi
realizado em 192013 e, a partir desta data, os judeus não mais foram obrigados a
sepultarem seus familiares sem os ritos funerários nos quais acreditam.
O Cemitério Israelita da Vila Mariana completou, em 2014, 95 anos e já se
encontra com a vida útil esgotada, abrigando cerca de 5.700 sepulturas. O local, que é
parte da memória da coletividade judaica, converteu a antiga Casa de Tahara14 em um
Memorial que abriga painéis e fotografias contando a história de fundação do cemitério
em paralelo à formação da comunidade judaica em São Paulo. O cemitério é bastante
visitado tanto pelos judeus (que encontram ali antepassados de sua história) como pela
população em geral de São Paulo devido ao seu estilo arquitetônico diferenciado dos
demais cemitérios israelitas. Os judeus frisam na morte a igualdade de todos os seres
humanos: “rico e pobre se encontram, pois ambos foram criados por Deus (Provérbios
22:2)”. E, por esta razão, seus enterros ocorrem sem ostentação, sem enfeites, sem
flores, ressaltando, assim, o respeito ao falecido através da simplicidade. Além disso, a
tradição judaica recomenda que a Iápide seja simples, portanto, não é comum afixar
fotos nas sepulturas e/ou fazer esculturas sobre elas15. No entanto, no Cemitério da Vila
Chevra Kadisha do Rio de Janeiro, loc. cit.
Lei Municipal nº 2191/1919, que auctoriza o Prefeito a acceitar a doação feita pelo Sr. Mauricio
F. Klabin de um terreno com a área de 5.000 metros quadrados, para a fundação de um cemiterio
destinado a enterramento exclusivo de israelitas (mantida grafia do original). Câmara Municipal
de São Paulo. Disponível em <https://www.leismunicipais.com.br>. Acesso em 29/06/2015
13 Dado disponibilizado pelo Portal da Chevra Kadisha de São Paulo. Campos-Santos. Vila
Mariana. Disponível em < http://chevrakadisha.org.br/campos-santos/vila-mariana/>. Acesso em
30/06/2015.
14 Tahara significa “purificação” em hebraico. Nos cemitérios é onde os corpos são preparados
para o sepultamento, sendo lavados. Informação disponível no Portal da Chevra Kadisha de
São Paulo. loc. cit.
15 Chevra Kadisha do Rio de Janeiro, loc. cit.
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Mariana, podem ser observadas essas diferenciações, pois ali estavam permitidos os
adornos sobre as lápides e até fotos dos sepultados16.
Imagem 01: Vista do Cemitério Israelita da Vila Mariana com lápides adornadas com esculturas e
fotografias e lápides simples, como orienta a tradição judaica. Foto: Autor desconhecido. Fonte:
Chevra Kadisha de São Paulo.
A historiadora Paula Ester Janovitch destaca que nas décadas de 1930 e 1940,
a Chevra Kadisha de São Paulo17, começou a discutir o esgotamento da área do
cemitério da Vila Mariana destinada aos enterramentos. A Chevra estava preocupada
com a necessidade de expansão do cemitério, mas a Vila Mariana, bairro que já havia
sido “distante” da cidade, passava a concentrar hospitais, escolas, novos loteamentos
e linhas de bonde e suas ruas se modernizavam, recebendo paralelepípedos. Mas a
importância que Janovitch destaca dentro deste contexto é que com a expansão da área
central, os novos cemitérios acabaram por buscar pontos mais distantes da cidade, onde
o valor da terra fosse mais acessível. “A aquisição da área na região do Butantã estava
mais relacionada a impossibilidade de se adquirir terras por preços acessíveis no
16 Chevra Kadisha de São Paulo. Vila Mariana completa 95 anos. Chevra Kadisha Informa. Ed.
57, set/2014. Disponível no site da Instituição. Para informações detalhadas sobre a história do
Cemitério da Vila Mariana ver: Faiguenboim, Guilherme e Valadares, Paulo. Os primeiros judeus
de São Paulo: breve história contada através do Cemitério Israelita de Vila Mariana. São Paulo:
Ed. Fraiha, 2009.
17 A Chevra Kadisha de São Paulo foi fundada em 08 de março de 1923, data de seu primeiro
estatuto, e uma das suas primeiras ações foi encaminhar uma carta ao prefeito da cidade, datada
de 28 de abril de 1923, solicitando a revisão e alteração dos regulamentos de 1919 que geriam
o Cemitério Israelita da Vila Mariana. A carta pedia também o reconhecimento dessa nova
entidade que teria como único fim administrar e manter financeiramente o Cemitério Israelita, a
fim de retirá-lo do abandono em que se encontrava desde a época de sua abertura. Nos
pareceres da Prefeitura, que avaliavam o pedido da Chevra, é reforçada a precariedade e o
abandono do Cemitério Israelita assim como destacavam a necessidade, aos olhos dos órgãos
públicos, de existir uma instituição jurídica que assumisse a manutenção e as despesas do local.
Além disso a nova instituição se encarregaria de reconhecer as pessoas que ali seriam
enterradas, ou seja, estabelecer meios de identificar sua origem israelita. JANOVITCH, Paula
Ester. op. cit., p.35-36.
5
perímetro central de São Paulo, do que com os malefícios e preocupações topográficas
das primeiras décadas do século XX”18.
O terreno do Butantã foi adquirido pela Chevra Kadisha em 1949 e o cemitério
passou a funcionar em 1954, tendo capacidade para 25 mil campas, que estão
distribuídas em aproximadamente 500 quadras19. O estilo desse cemitério se diferencia
muito dos padrões observados na Vila Mariana, sendo definido como “cemitériosjardins” por Paula Ester Janovitch. A autora destaca que esses cemitérios estão muito
mais ligados à natureza: “Ao contrário das altas e pesadas escalas dos mausoléus e
das esculturas e fotografias em porcelana [...] Estes novos cemitérios buscavam a
beleza reduzindo suas escalas, se aproximando da terra e do verde [...] da vida
campestre, longe dos grandes centros20. Podemos observar tais características na
imagem abaixo e identificar grandes diferenças com o estilo do Cemitério da Vila
Mariana (imagem 01).
Imagem 02: Vista do
Cemitério Israelita do
Butantã. Foto: Autor
desconhecido. Fonte:
Chevra Kadisha de São
Paulo.
Atualmente o Cemitério Israelita do Butantã é o mais importante espaço de
realização de cerimônias funerárias da comunidade judaica de São Paulo. E é nesse
cemitério onde estão sepultadas duas vítimas da luta contra a ditadura civil-militar
brasileira instaurada no país em 1964: Iara Iavelberg (1944-1971) e Vladimir Herzog
(1937-1975). Ela, psicóloga formada pela USP, foi militante de esquerda da Polop, VAR-
JANOVITCH, Paula Ester. op. cit., p.45.
Chevra Kadisha de São Paulo. Diretoria estuda medidas para reduzir custos com jardinagem.
Chevra Kadisha Informa. Ed. 30, ano 11, dez/2007. Disponível no site da Instituição.
20 JANOVITCH, Paula Ester. op. cit., p.44.
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Palmares, VPR e MR-8 tendo atuado também na luta armada21. Foi morta por agentes
do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna da Bahia (DOI-Codi/BA) durante a invasão do apartamento onde estava
escondida no bairro da Pituba em Salvador. A versão oficial afirma que ela cometeu
suicidou com um tiro no coração ao presumir que seria presa. Foi enterrada em uma
área separada do cemitério, próxima ao muro, e de costas para os demais sepultados.
Isso porque, conforme a tradição judaica, o suicídio é um crime tão grave quanto o
assassinato e, por isso, os suicidas são enterrados na área final do cemitério e como
eles não possuem honra, não têm o direito de “ver” os outros mortos, estando, então,
de costas para os demais.
Vladimir, jornalista, era diretor do Departamento de Telejornalismo da TV Cultura
e integrava, como intelectual, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi morto sob
tortura nas dependências do DOI-Codi/SP, localizado na rua Tutóia nº 921, onde
compareceu voluntariamente para prestar esclarecimentos. A declaração oficial dos
militares sobre a sua morte foi a de suicídio por enforcamento. A falsa versão, no
entanto, não se sustentou e ele foi enterrado conforme os preceitos religiosos do
judaísmo. Seu enterro aconteceu no centro do Cemitério Israelita, demonstrando que a
comunidade judaica, a família e a sociedade civil sabiam que Vladimir Herzog foi
assassinado pelos agentes da repressão.
IARA IAVELBERG: A LUTA DOS FAMILIARES PELO RECONHECIMENTO DE UM
ASSASSINATO
Iara Iavelberg era companheira de Carlos Lamarca (1937-1971) desde 1969 e
quando morreu, em agosto de 1971, era uma das pessoas mais procuradas pelos
órgãos de repressão política no país. A busca de Iara pelos militares se dava tanto por
seu envolvimento em organizações da esquerda armada como por seu relacionamento
amoroso com Lamarca, considerado, pelos militares, um “traidor da Pátria” após o
assalto ao Quartel de Quitaúna/Osasco (SP) em 1969. Por ocasião deste evento, Carlos
Lamarca organizava um roubo ao Quartel juntamente com um grupo de militares (todos
integrantes da organização de esquerda VPR), mas, devido a prisão de seus
companheiros, Lamarca decide efetuar o assalto sozinho. No dia 24 de janeiro de 1969
chega ao quartel em sua Kombi e, sem nenhum tipo de impedimento dos militares de
plantão, leva 63 fuzis, três metralhadoras e muita munição, material que foi utilizado na
Política Operária (POLOP); Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares);
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)
Conferir o glossário “As organizações de esquerda” do livro-relatório Direito à Memória e à
Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Brasília: 2007.
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luta contra a ditadura civil-militar22. Depois dessa ação e da implantação, pelo Capitão,
de um foco guerrilheiro no Vale do Ribeira (SP) em 1970, passou a ser muito perigoso
para Lamarca e Iara Iavelberg manterem-se clandestinos em São Paulo e no Rio de
Janeiro. Assim, em junho de 1971 ambos são enviados para a Bahia pelo MR-8,
organização da qual os dois faziam parte. Lamarca deixou Iara em Salvador, como
orientou a organização, e seguiu para o povoado de Buriti Cristalino, no sertão da Bahia,
chegando em 27 de junho de 197123.
Imagem 03: Cartaz
produzido
pela
ditadura civil-militar
divulgando foto de
Iara e Lamarca como
perigosos terroristas.
Fonte:
Site
do
documentário
“Em
Busca de Iara”.
Em Salvador, a morte de Iara, aos seus 27 anos, ocorreu durante uma operação
coordenada pelo coronel Luiz Arthur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal24,
juntamente com agentes do DOI-Codi/BA organizada para “estourar” um “aparelho”25 de
militantes do MR-8. A descoberta desse aparelho pelos militares ocorreu após a prisão
de José Carlos de Souza, codinome “Rocha”, no dia 06 de agosto de 1971 no centro de
Salvador – conforme menciona o Relatório da Operação Pajussara do Ministério do
Exército26. No amanhecer do dia 20 de agosto os agentes invadiram o apartamento 201
22 Para mais informação sobre Carlos Lamarca ver sua biografia: JOSÉ, Emiliano e MIRANDA,
Oldack de. Lamarca - O Capitão da Guerrilha. São Paulo: Global Editora, 2000. Sobre o Quartel
de Quitaúna ver o documento produzido pelo Memorial da Resistência no site da instituição.
Programa Lugares da Memória. Quartel de Quitaúna. Memorial da Resistência de São Paulo,
São Paulo, 2014. E para detalhes do evento do roubo das armas ao Quartel, ver a entrevista de
Darcy Rodrigues ao Memorial da Resistência de São Paulo: RODRIGUES, Darcy. Entrevista
sobre militância, resistência e repressão durante a ditadura civil-militar. Memorial da
Resistência de São Paulo, entrevista concedida a Ana Paula Brito e Paula Salles em 11/03/2014.
23 SOUZA, Sandra Regina Barbosa da Silva. Ousar lutar, ousar vencer: histórias da luta
armada em Salvador (1969-1971). Salvador: EDUFBA, 2013, p.115.
24 Idem. p.172.
25 Um “Aparelho”, no contexto da ditadura no Brasil, referia-se a um local (apartamento ou casa)
usado como refúgio por uma "célula" (grupo de ativistas) de organização política clandestina e
servindo também para a realização de reuniões, guarda de material de propaganda, dinheiro,
armas, etc. Ver: BARCELOS, Thatiana Amaral de. Santa Teresa: Um lugar de refúgio. VII
Encontro Regional Sudeste de História Oral: Memória e Política. Rio de Janeiro, 2007.
26 A Operação Pajussara foi iniciada em 21 de agosto de 1971 com o objetivo de encontrar e
eliminar Carlos Lamarca. Relatório da Operação Pajussara. Ministério do Exército. 1971. 101 p.
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do Edifício Santa Terezinha em Pituba e prenderam Nilda Carvalho Cunha, de 17 anos,
e seu companheiro Jaileno Sampaio, de 18 anos27. Não encontraram Iara, que havia se
refugiado na área de serviço do apartamento vizinho: “Os militares prenderam todas as
pessoas que moravam com Iara no apartamento 201 [...] às 4h30. Mas ela [Iara],
escondida no banheiro do quarto de empregada do 202, só seria localizada pouco antes
das 7h”28. Flávio Frederico e Mariana Pamplona29 afirmam que esse intervalo de tempo
entre a prisão de Nilda e Jaileno e a morte de Iara ocorreu porque os militares não
sabiam que a guerrilheira se escondia naquele apartamento.
Durante a 16ª audiência pública da Comissão da Verdade “Rubens Paiva” do
Estado de São Paulo, realizada no dia 04 de março de 2013 sobre o caso de Iara
Iavelberg30, Flávio e Mariana reconstruíram os passos do cerco policial que levou à
morte da militante. Condensamos a seguir algumas dessas informações que nos ajudam
a entender um pouco dos últimos momentos de Iara, e nos permite reforçar, juntamente
com seus familiares, a versão de que a morte da jovem não foi por suicídio.
A primeira consideração que Flávio e Mariana destacaram durante a Audiência
é que quase tudo da narrativa oficial era verdadeiro, menos a informação sobre o tiro
que matou Iara ter sido suicida. Essa parte da versão oficial não coincidia nem com as
informações oferecidas pelo relatório interno da Polícia Federal (PF) 31 nem com as
entrevistas, realizadas pelos dois. Tanto as testemunhas como esse relatório da PF
afirmavam que, antes do tiro, Iara gritou: “eu me rendo”32, não sendo coerente que uma
Documento disponibilizado pela Comissão da Verdade “Rubens Paiva” do Estado de São
Paulo em: < http://verdadeaberta.org/mortos-desaparecidos/iara-iavelberg>. Acesso em
03/07/2015.
27 Nilda Carvalho Cunha entrou para o MR-8 em 1970 e era uma das responsáveis pela edição
do jornal Avante. Presa no dia 20 de agosto de 1971 foi levada para o quartel do Barbalho e, em
seguida, para a Base Aérea de Salvador, ficando incomunicável. Foi libertada dois meses depois
muito fragilizada em decorrência das torturas físicas e psicológicas sofridas, além de ter
presenciado os maus-tratos causados pelos militares em seu namorado, Jaileno Sampaio.
Morreu em 14 de novembro de causas ainda não esclarecidas. Seu corpo foi enviado ao IML
Nina Rodrigues de Salvador que não entregou para a família o laudo da necropsia.
28 PINHEIRO. Ana Júlia. As mortes de Iara. Correio Braziliense. Brasília, 18/03/1998, p.10.
29 Mariana Pamplona é sobrinha de Iara Iavelberg e roteirista do documentário “Em Busca de
Iara”, dirigido por Flávio Frederico. Lançado em 2014, o filme é o resultado de uma longa
pesquisa e de um trabalho investigativo realizado pelos dois com o objetivo de desconstruir a
versão oficial de suicídio oferecida pelos militares para justificar a morte de Iara.
30 O vídeo e transcrição da Audiência foram disponibilizados pela Comissão da Verdade
“Rubens Paiva” do Estado de São Paulo em: < http://verdadeaberta.org/mortosdesaparecidos/iara-iavelberg>.
31 Flávio e Mariana tiveram acesso a vários documentos secretos através do Arquivo Nacional
de Brasília, inclusive a um relatório interno da Polícia Federal sobre a operação de “estouro do
aparelho” da Pituba. Mas, curiosamente, entre todos os documentos reunidos sobre Iara faltava
o laudo necroscópico da jovem. Uma cópia foi solicitada para o Instituto Médico Legal (IML) de
Salvador, que afirmou não ter mais as cópias do laudo, entregues à Polícia Federal em 1971.
32 Depoimento de Flávio Frederico e Mariana Pamplona para a 16ª audiência pública da
Comissão da Verdade “Rubens Paiva” do Estado de São Paulo, realizada no dia 04 de março de
2013 em São Paulo. Ver transcrição da audiência disponibilizada pela Comissão da Verdade
“Rubens Paiva” do Estado de São Paulo. loc. cit., p.30.
9
pessoa se renda e logo depois se mate. O Relatório da Operação Pajussara menciona,
entretanto, que a morte de Iara ocorreu nos seguintes termos: “Iara Iavelberg, a fim de
evitar sua prisão, ocultou- se em um banheiro do apartamento vizinho; sentindo-se
cercada e sofrendo a ação dos gases lacrimogêneos, suicidou- se”33. Outra questão
sobre a qual havia grande dúvida era a suposta história de um menino que, ao final da
operação policial, teria delatado aos militares a presença da guerrilheira no apartamento
202. O menino, José Artur Bagatini, foi a última pessoa a ver a Iara com vida.
Depois que já tinha sido evacuado o apartamento 201, já tinham sido
presos os ocupantes, eles não sabiam que a Iara estava lá. Eles
sabiam que era o aparelho, mas eles não sabiam que a Iara estava lá.
E quando o informante da polícia vai para fazer o conserto do
encanamento, a Iara está escondida. Então, ele não vê a Iara. Então,
eles invadem e acham que não tem mais ninguém. Então, [...] acabou
a operação. Eles estão acabando com a operação quando eles
mandam os moradores subirem para abrirem as janelas para sair a
fumaça, porque eles entraram com muita bomba de gás lacrimogêneo.
E aí nesse momento que o menino sobe para o apartamento do vizinho
e quando vai abrir a porta do quarto de empregada que tinha um
basculante, ele dá de cara com a Iara. [...] Ele dá de cara com a Iara
em um dos últimos minutos de vida [dela]. [...] E ela fala assim, para
ele fazer silêncio, e ele fecha a porta. E ainda tem o detalhe de que a
porta estava com a lingueta quebrada e não abria por dentro. Que a
gente também não sabe se isso é verdade ou não. E aí ele desce, fica
nervoso, não sabe o que fazer e avisa a mãe. E a mãe avisa o tio. O
tio avisa a polícia. A polícia volta. Invade o apartamento 202 e aí fala,
e tem uma troca de informações que ela está armada lá dentro. E aí a
polícia tenta atirar uma granada de gás lacrimogêneo pelo basculante.
Isso está escrito no documento oficial. Quebra o basculante, atira, mas
ela não explode lá dentro. Eles tentam de novo e ela diz, “eu me
entrego”. E aí quando ela diz, “eu me entrego”, no relato eles ouvem o
tiro e eles arrombam a porta.
Na verdade a gente tem quase certeza que eles não sabiam mesmo
que era a Iara, porque primeiro lugar, eles queriam pegar ela viva,
porque o Lamarca ainda não estava preso. Então, eles iam torturar ela
ou até a morte ou até ela dizer alguma coisa, o que eu duvido. Então,
eles sabiam que ali era um aparelho subversivo [...], eles fizeram toda
uma investigação policial e chegaram naquele aparelho da Pituba.
Mas eles não sabiam que era Iara Iavelberg que estava lá dentro.
Inclusive algumas pessoas disseram que o Fleury, quando soube que
a Iara tinha morrido, ele ficou furioso porque ele queria ela viva. Isso
foi o que algumas pessoas contaram para a gente34.
Relatório da Operação Pajussara. loc. cit., p.2.
Depoimento de Flávio Frederico e Mariana Pamplona para a 16ª audiência pública da
Comissão da Verdade “Rubens Paiva” do Estado de São Paulo, realizada no dia 04 de março de
33
34
10
Sobre as dúvidas quanto ao suposto tiro suicida, a Comissão Especial de Mortos
e Desaparecidos Políticos (CEMDP) registrou em 23 de setembro de 1997 o depoimento
do jornalista Bernardino Furtado que possuía novas informações sobre a morte de Iara.
Em depoimento Bernardino afirma ter entrevistado o Dr. Lamartine Lima sobre o laudo
cadavérico de Lamarca e que, nessa ocasião, o médico lhe relatou que o Sargento
Rubem Otero, estando bastante doente lhe confidenciou que participou do cerco ao
apartamento da Pituba, onde estava Iara. Dentro do apartamento vazio perceberam que
a porta de um dos cômodos se encontrava fechada. O Sargento teria disparado uma
rajada de metralhadora contra essa porta. Não tendo havido qualquer reação dentro do
referido cômodo o Sargento chutou a porta e ali encontrou uma mulher agonizando35.
Bernardino relatou ainda à CEMDP sobre a conversa que teve com Leonia
Cunha, irmã de Nilda Carvalho Cunha (responsável pelo apartamento 201 que era
utilizado como aparelho pelo MR-8). Leonia informou a Bernardino que conversou com
a zeladora do edifício naquela época, a Sra. Evandir Rocha (também conhecida como
Vanda), que lhe disse que, durante a ação policial ao apartamento 202, ouviu Iara gritar
às forças da repressão que se entregava, tendo em seguida ouvindo os tiros. Já
segundo a proprietária do apartamento, Shirley Freitas Silveira, havia sinais de outros
três tiros no banheiro onde a Iara havia supostamente se suicidado com um único tiro.
Vizinhos do apartamento também afirmaram ter escutado vários disparos e o grito de
rendição de Iara36.
Disponibilizamos aqui uma imagem do croqui da ação policial ao apartamento
em Salvador e a sistematização, produzida pelo Jornal Correio Braziliense, de todo o
cerco policial ocorrida no local naquele dia 20 de agosto de 1971.
2013 em São Paulo. Ver transcrição da audiência disponibilizada pela Comissão da Verdade
“Rubens Paiva” do Estado de São Paulo. loc. cit., p.34-35.
35 Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê Ditadura: Mortos e
Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Instituto de Estudos sobre a
Violência do Estado (IEVE); Imprensa Oficial, 2009, p.270.
36 Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), p.270.
Informações disponíveis também pela 16ª audiência pública da Comissão da Verdade “Rubens
Paiva” do Estado de São Paulo, realizada no dia 04 de março de 2013 em São Paulo.
11
Imagem 04: Croqui da ação executada pelo Doi-Codi e Polícia Federal da Bahia no aparelho
da MR-8 em Pituba. Fonte: Relatório Pajussara. Ministério do Exército.
Imagem 05: Arte gráfica sobre o cerco policial que resultou na morte de Iara. No detalhe do banheiro,
a marcação de três tiros: A, B, C. Arte: Kleber Sales. Fonte: Correio Braziliense, 18/03/1998.
12
Como destaca a repórter Paloma Cortes, a morte da guerrilheira ainda não tinha
sido o suficiente para a ditadura, que utilizou o corpo da jovem como “isca” para tentar
capturar Lamarca. “[O corpo de Iara] Ficou por quase 30 dias numa gaveta do necrotério
de Salvador. Os militares acreditavam que ele [Lamarca] procuraria pela mulher - o que
não aconteceu”37. A morte de Iara só foi comunicada à família após a execução do
guerrilheiro no dia 17 de setembro de 1971 no interior da Bahia. Aproveitamos aqui para
destacar que a morte de Iara ocorreu um dia antes do início da Operação Pajussara,
comandada pelo Exército com o objetivo de capturar Lamarca – a Operação foi iniciada
em 21 de agosto de 1971 e durou até 19 de setembro do mesmo ano.38
O atestado de óbito da Iara, encaminhado à família, foi firmado pelo médico
legista Charles Pitex do IML “Lina Rodrigues” de Salvador e aponta como causa
principal da morte a transfixação do coração e pulmão esquerdo por projétil de arma de
fogo. Essa é a causa oficial da morte acrescentada pela afirmação dos militares que ela
se matou. O caixão veio lacrado da Bahia e não pode ser aberto para que a família
cumprisse os rituais funerários judaicos. Iara foi enterrada no Cemitério Israelita do
Butantã, na ala dos suicidas. Samuel Iavelberg, que estava em exílio no Chile junto com
o irmão Raul quando Iara foi morta, declara que “o Exército não deixou que um rabino
fizesse a lavagem ritual do corpo, a Tahara. Entregou-a em caixão lacrado. Somente a
família foi autorizada a comparecer ao enterro [...]. Isso incomodava muito meus pais,
eles eram muito religiosos”39. Rosa Iavelberg, irmã de Iara, ainda declarou: "Minha mãe
nunca mais se recuperou"40 e “desde o dia em que reconheceu o corpo de Iara, através
do vidro na tampa do caixão, passou a dormir de luz acessa”41.
COTES, Paloma. A dolorosa busca da verdade. Revista Época. São Paulo, 29 de setembro
de 2003.
38 O Exército conseguiu definir o esconderijo de Lamarca logo após a descoberta de seu diário.
Escrito entre 08 e 16 de agosto para ser dado à Iara, o diário foi entregue por Lamarca ao
militante João Lopes Salgado e depois foi repassado a César Queiroz Benjamim. “Em 21 de
agosto, escondido no Rio de Janeiro, Benjamim passou um telegrama para Iara, sem saber que
já estava morta. Minutos depois, foi abordado por uma blitz da PM [...]. Estava num Fusca, com
três outros militantes. Benjamim escapou durante a revista. No Fusca, ficaram os companheiros
e uma maleta com roupas, uma arma e um envelope lacrado. “Eu não sabia que o diário estava
no envelope”, relata Benjamim”. O Exército sabia que Lamarca se escondia na Bahia, mas não
sabia o local exato. Ao apreender o diário puderam analisar as anotações e definiram as
coordenadas prováveis do local. Sobre o diário ver: STUDART, Hugo. O guerrilheiro apaixonado.
IstoÉ. Ed.1948, 28/02/ 2007. Disponível em < http://goo.gl/i8Fwu6>.
39 STUDART, Hugo. O guerrilheiro apaixonado. IstoÉ. Edição 1948, 28 de fevereiro de 2007.
40 COTES, Paloma. op. cit.
41 Idem.
37
13
Imagem 06: Os pais de
Iara reconhecem o corpo
da filha no IML. Com o
caixão
lacrado
eles
foram
impossibilitados
de conduzir vários dos
preceitos
religiosos
judaicos. Foto: Autor
desconhecido.
Fonte:
Relatório
Pajussara.
Ministério do Exército.
A Chevra Kadisha de São Paulo, ao receber a certidão de óbito de Iara com a
declaração oficial de suicídio e a determinação de não poder abrir o caixão para a
realização dos rituais, acatou a ordem da ditadura civil-militar e reafirmou a condição de
Iara como suicida, excluindo-a, portanto, das honras fúnebres que lhe caberiam. À Iara,
todos os rituais religiosos lhe foram negados, e sua família, enquanto família de um
suicida, ficou proibida de praticar o luto. Indicamos abaixo um trecho do artigo de Semira
Adler Vainsencher que indica os rituais fúnebres que Iara deixou de receber.
Quando o carro da funerária chega ao Cemitério Israelita, o caixão é
levado a um quarto reservado que tem um lavatório e uma bancada, e
cujas paredes são forradas com azulejos brancos. Ali, o Comitê
Fúnebre irá preparar o morto para o sepultamento. As mulheres
preparam um corpo feminino e, os homens, um masculino. Em
primeiro lugar, retiram o corpo do caixão e o colocam sobre a bancada,
onde é lavado com álcool. Este ritual representa um tributo valioso
prestado ao falecido, por parte da comunidade judaica, sendo
denominado tahará (purificação). [...] A seguir, o corpo é vestido com
uma mortalha, feita com morim branco [...]. O passo seguinte é colocar
uma pedra sobre cada olho e, outra, na boca. Isto impedirá, de acordo
com o judaísmo, que o falecido venha a questionar a própria morte, ou
que, antes do Dia do Juízo Final, encontre com Deus. [...] Feito isso,
fecha-se a tampa do caixão e, só então, ele é colocado sobre a
bancada do velório. Vale ressaltar que, todas as ações relativas à
preparação do corpo para o enterro, são sagradas [...]42.
VAINSENCHER, Semira Adler. Enterro judeu. Fundação Joaquim Nabuco; Biblioteca
Central Blanche Knopf. Pesquisa Escolar Online, Recife/PE.
42
14
Em 1997, após tomarem conhecimento dos depoimentos prestados à CEMDP
por Bernardino Furtado na qual o depoente declara ter sabido que Iara foi metralhada,
os familiares moveram uma ação cível contra o cemitério israelita através da qual
pretendiam que a instituição desse à Iara os mesmos tratamentos dados aos não
suicidas. O cemitério negou atendê-los alegando obedecer as regras dos rituais
religiosos que determinam quais tratamentos um suicida receberá. Além disso, a Chevra
reforçou que a versão oficial da morte já lhes tinha sido repassada pelos militares e que,
portanto, era a ela que eles obedeceriam43.
Em 2003 o advogado da família, Luiz Eduardo Greenhalgh, requereu a
exumação dos restos mortais para tentar determinar a causa jurídica da morte da Iara,
mais especificamente se ela teria ou não cometido suicídio. O Professor da Faculdade
de Medicina da USP, Daniel Romero Munhoz, foi nomeado perito por um Juiz de Vara
Cível e foi o responsável pela comprovação científica da morte de Iara. Ele acompanhou
a exumação, limpou e identificou todos os ossos e ficou por quase oito meses
montando-os e realizando diversos testes. “Eu me lembro de uma vez que eu fui à
Faculdade de Medicina, ele remontou o esqueleto da Iara e fazia incidir luzes sobre os
orifícios para comprovação do seu homicídio”44. As conclusões de Daniel Munhoz, após
a realização de testes científicos e experimentos para a comprovação da morte, atestam
que o tiro que matou Iara foi um tiro de longa distância, que ocorre quando a vítima se
encontra há aproximadamente 50, 60 centímetros da arma disparada, portanto, não
sendo possível que Iara tivesse disparado contra si mesma45. Em posse do relatório
pericial de Munhoz, a família Iavelberg, apesar das reticências da Chevra Kadisha em
liberar a exumação – tendo eles inclusive movidos ações contra o pedido e realizado
falsas declarações à Justiça46 – conseguiu, finalmente, trasladar Iara da área de suicidas
e enterrá-la próxima de sua família no Cemitério Israelita do Butantã, recebendo as
honras judaicas que lhe eram de direito.
A ação da família Iavelberg, que apesar de sofrer com a perda inestimável de
Iara, representa a vontade e a necessidade de se comprovar a verdade sobre a morte
Declaração de Daniel Romero Munhoz, perito nomeado por um Juiz de Vara Cível e
responsável pela exumação de Iara em 2003, para a 16ª audiência pública da Comissão da
Verdade “Rubens Paiva” do Estado de São Paulo, realizada no dia 04 de março de 2013 em
São Paulo, p. 18.
44 Declaração do advogado da família Iavelberg, Eduardo Greenhalgh, para a 16ª audiência
pública da Comissão da Verdade “Rubens Paiva” do Estado de São Paulo, realizada no dia
04 de março de 2013, p.18.
45 Para leitura de todos os detalhes sobre o processo de análise do tiro ver a declaração do perito
durante a 16ª audiência pública da Comissão da Verdade “Rubens Paiva”. loc. cit.
46 Samuel Iavelberg declara que a Chevra Kadisha atuou o tempo todo contra a exumação,
defendendo a tese religiosa que judeus não podem ser exumados. Além disso, durante a
exumação, a Chevra teria mentido à Justiça informando que aquele era um feriado religioso
(quando não pode haver atividades nos cemitérios), e omitiram na Justiça o tempo todo que a
Iara tinha sido enterrada na área dos suicidas. Declaração durante a 16ª audiência pública da
Comissão da Verdade “Rubens Paiva. op. cit. p.8-9.
43
15
da militante, desvendando as mentiras da ditadura civil-militar e enfrentando as
burocracias que ainda corroboram com a repressão dos agentes policiais de outrora.
Imagem 07: Exumação
de Iara no Cemitério
Israelita do Butantã após
mandato
judicial
conseguido pela família
em 2003.
Foto: Samuel Iavelberg.
Fonte: Revista Adusp.
VLADIMIR HERZOG: A FALSA VERSÃO DE MORTE E O CONFRONTO PELA
VERDADE
Vladimir Herzog, também conhecido como Vlado, iniciou sua carreira jornalística
em O Estado de São Paulo em 1959. Foi chamado para trabalhar no serviço brasileiro
da BBC, em 1965, colaborando com o Departamento de Cinema e TV do Central Office
of Information na produção e apresentação de programas sobre a Inglaterra voltados
para a televisão brasileira. Casado com Clarice Herzog, em Londres nasceram seus
dois filhos, André e Ivo. Retornam ao Brasil em 1968, logo após o AI-547. Em 1970
tornou-se editor cultural da revista Visão48, tendo publicado em 1971 uma extensa
reportagem de capa sobre TV´s educativas e em 1974 participou da produção de uma
reportagem que realizava um grande balanço sobre os 10 anos de ditadura no Brasil.
Em 1972, ainda na revista Visão, começou a trabalhar como secretário do jornal Hora
da Manhã, produzido pela TV Cultura de São Paulo, chegando, poucos anos depois, ao
cargo de Diretor do Departamento de Telejornalismo dessa empresa estatal49.
O Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968 vigorou até 1978. Concedia poder ao
Presidente da República para fechar a Câmara dos Deputados, as Assembleias Legislativas e
Câmara de Vereadores; intervir nos estados e municípios; suspender direitos políticos de
qualquer cidadão brasileiro pelo período de 10 anos; cassar mandatos de deputados federais,
estaduais e vereadores; proibia manifestações populares de caráter político; suspendia o direito
de habeas corpus (em casos de crime político, crimes contra ordem econômica, segurança
nacional) e impunha a censura prévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas.
48 A revista Visão foi uma publicação brasileira com edições semanais que circulou entre 1952 e
1993, sendo que nos anos 1960 e 1970 era um veículo informativo de grande importância devido
a suas coberturas sobre econômica e política, investindo em grandes reportagens.
49 Herzog foi escolhido pelo Secretário de Cultura, José Mindlin, após consulta ao Serviço
Nacional de Informações (SNI) e aprovação do governador de São Paulo, Paulo Egydio.
47
16
Herzog acreditava que a imprensa deveria cumprir um papel de responsabilidade
social e por isso, “sua postura política e seu compromisso com uma prática jornalística
voltada para a divulgação das notícias do Brasil real produziram reações e denúncias
por parte de acólitos da ditadura”50. Essa posição pode ser verificada através do
discurso proferido na Assembleia Legislativa do Estado pelo deputado da Arena (partido
de apoio aos militares), Wadih Helu, no dia 06 de outubro de 1975. Na oportunidade, o
então deputado discursa sobre a inauguração, pela Sabesp, do serviço de água e
esgoto na cidade de Capão Bonito (SP). Helu destaca que no evento compareceram
grandes autoridades políticas e equipes de reportagem para prestigiar ações do
governo, denunciando que a ausência do “órgão de divulgação do Estado” – a TV
Cultura (Canal 2) – evidenciava a posição comunista da direção da estatal.
Apresentamos um trecho desse discurso que dias depois resultou na prisão e morte de
Vladimir:
E essa ausência não nos surpreendeu. Não nos surpreendeu porque
nós temos lido semanalmente em Coluna 1, de Claudio Marques51, a
denúncia da comunização do Canal 2, da infiltração dos elementos
subversivos, dos elementos de esquerda no Canal 2, com a
complacência do Sr. Secretário de Cultura, Dr. José Mindlin, e com a
complacência do próprio governo. E nós, da Arena, desta Tribuna,
queremos externar o nosso protesto. Não temos condições de
lutarmos por um país democrático, por um regime democrático,
quando uma própria instituição governamental fica solapando essa
democracia não só com a sua ausência deliberada, mas, muito mais
do que isso, com a sua presença comunizante no vídeo diariamente,
com a sua presença que enaltece e procura dar foros de
grandiosidade à líderes de esquerda de outros países que vêm
desgraçando outros povos, procurando encucar no espírito do povo
brasileiro que este país é só miséria, que este país é só pobreza.
Porque na televisão, Cultura Canal 2, nós só assistimos jornais
mostrando a miséria, mostrando a pobreza, mostrando a desgraça. E
num país como o nosso que está em pleno desenvolvimento, num país
como o nosso que constitui realmente um oásis no mundo de hoje, são
esses elementos pagos pelo governo de São Paulo, na emissora de
televisão do governo de São Paulo, que pregam a desagregação da
nossa cidade, do nosso povo. Nós da Arena temos que comunicarmos
com o povo paulista e mostrar as realizações do nosso governo [...]. E
o Canal 2 tudo omite e, ao contrário, faz o proselitismo do comunismo,
da subserviência. É como diz o colunista Claudio Marques: A
Biografia de Vladimir Herzog disponibilizada pelo Portal Instituto Vladimir Herzog em <
http://vladimirherzog.org/biografia/>. Acesso em 06/07/2015.
51 Para saber mais sobre Claudio Marques, ver a declaração de Alberto Dines no documentário
Vlado – 30 anos depois, de João Batista de Andrade, 2005 (30:25 – 31:27). Para uma leitura
sobre o clima provocado por suas denúncias dentro da TV Cultura ver a reportagem especial
sobre Vladimir Herzog no Jornal dos Jornalistas. MARKUN, Paulo. Jornal Unidade. São Paulo,
n.333, novembro de 2010. Disponível em < http://goo.gl/CxbAuz>. Acesso em 06/07/2015.
50
17
Televisão TV Vietnã Cultura de São Paulo, pago pelo dinheiro do povo,
por homens escolhidos pelo nosso governo52.
Os deputados, após o discurso de Helu, pedem atenção ao caso por parte do
Secretário de Cultura e do governador do Estado, Paulo Egydio Martins, e solicitam
providências aos órgãos competentes na verificação das denúncias proferidas. Quinze
dias após esse discurso na Assembleia Legislativa, quando deputados acusaram a TV
Cultura de estar sob influência de comunistas com a ciência do governo estadual,
agentes do DOI-Codi/SP53 tentam prender Herzog.
Na noite de 24 de outubro de 1975 dois policiais se dirigiram até a casa do
jornalista para levá-lo à sede do DOI-Codi, mas ele se encontrava na TV Cultura. Foram
então até a emissora e após tensas negociações entre os agentes e os jornalistas da
redação, que argumentavam que Herzog estava fechando o jornal da noite e que, caso
o levassem naquele momento, o programa não iria ao ar, o próprio Vladimir teria
afirmado que no dia seguinte, às 8 horas da manhã, compareceria à rua Tutóia, nº 921,
bairro Paraíso. Ele estava sendo acusado de ter ligações com o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) e deveria prestar esclarecimentos.
Conforme destaca Clarice Herzog, seu marido teria sim ingressado no quadro
do PCB no início dos anos 1970, quando trabalhava na revista Visão, mas ela afirma
que esse sempre foi um tema tratado com muita delicadeza por todos os amigos do
casal, principalmente após a morte do jornalista: “Pode-se entender que, logo depois de
seu assassinato, seria controverso expor sua militância ou não nas fileiras do PC porque
isso turvaria a questão principal: a morte de um cidadão sob custódia policial em
sessões de tortura conduzidas por agentes do Estado”54. Mas, poucos meses antes de
sua morte ele teria confessado a ela ser membro do PCB, concordando com a linha de
atuação do Partido naquele momento da história brasileira55.
Wadih Helu. Ementa de discurso: Considerações sobre a TV Cultura Canal 2. Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo. Data do pronunciamento: 6/10/1975. Publicação:
9/10/1975. Áudio disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Zlx1cdq50dU>. Acesso em
06/07/2015.
53 O DOI-Codi era considerado um dos piores destinos para os presos políticos. Em sua sede na
rua Tutóia, nº 921, muitos militantes foram torturados, mortos e alguns seguem desaparecidos.
Ver o documento produzido pelo Memorial da Resistência: Programa Lugares da Memória.
OBAN/DOI-Codi. Memorial da Resistência de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível no site
da instituição.
54 Biografia de Vladimir Herzog disponibilizada pelo Portal Instituto Vladimir Herzog.
55 O Partido Comunista Brasileiro foi fundado em Niterói (RJ) em março de 1922 e até o fim da
ditadura civil-militar só vivenciou três períodos de legalidade: de março até agosto de 1922, em
janeiro de 1927 até agosto do mesmo ano e depois a partir de outubro de 1945 até abril de 1947,
quando retornou à ilegalidade. Em 1962, o PCB vivenciou o seu primeiro rompimento após a
criação do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Em 1967 o Partidão ainda seria dividido em
muitas outras organizações dissidentes devido ao entendimento do PCB de que a luta armada
não seria o caminho da vitória para a esquerda no Brasil, defendendo a necessidade de manter
uma atividade defensiva. Ver: Direito à memória e à verdade, op.cit. As Organizações de
Esquerda. O Partido Comunista Brasileiro.
52
18
“Fiquei espantada quando ele me contou sobre essa decisão, meses
antes de morrer”, diz Clarice, recordando que estavam no carro da
família, na Avenida Sumaré, em São Paulo, no momento em que Vlado
contou-lhe sobre a filiação. “Mas você sempre foi crítico de regimes
que não praticam a democracia”, ela ponderou. Ao que o marido
respondeu: “É uma questão de momento. A situação política no Brasil
é grave. Só há dois movimentos organizados que podem se articular
para combater a ditadura – a Igreja e o Partido Comunista. Eu sou
judeu. Só tenho uma opção56.
No país já estava em andamento, desde 1973, a Operação Radar, comandada
pelo chefe do DOI do II Exército, o tenente Audir dos Santos Maciel, em colaboração
com oficiais do Centro de Informações do Exército (CIE), como os majores Paulo
Malhães e José Brant Teixeira. A operação foi uma grande ofensiva do Exército criada
para dizimar a direção do PCB e a prisão de Herzog estava inserida na Operação
Jacarta que era parte dessa operação maior. A Operação Jacarta atingia principalmente
entidades influentes da opinião pública, como a Arquidiocese de São Paulo, o Sindicato
dos Jornalistas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o movimento estudantil etc57.
O Relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) afirma que Operação
Radar prendeu 679 militantes, torturando muitos deles, sendo que alguns foram mortos
ou se encontram desaparecidos até os dias de hoje58.
No dia 25 de outubro, conforme combinado, às 8 da manhã Vladimir compareceu
à sede do DOI-Codi e se apresentou aos policiais. Vinha para prestar esclarecimentos
sobre o seu possível envolvimento com o PCB. Na tarde do mesmo dia, por volta das
15h ou 16h, estava morto. A versão oficial afirma que os policiais encontraram o
jornalista enforcado – ainda que seus pés estivessem apoiados no chão – com o cinto
do macacão de presidiário (roupa dada a todos os reclusos do DOI-Codi/SP). No
entanto, testemunhos de dois outros jornalistas que foram acareados com Herzog
(Rodolfo Konder e George Benigno Jatahy Duque Estrada) garantem que ouviam com
nitidez os gritos de Vladimir, o barulho de pancadas e as ordens do torturador para a
aplicação de choques59. Além disso, declaram que o macacão obrigatório para todos
eles não possuía cinto60. Reproduzimos trecho do depoimento de Rodolfo Konder que,
em diversas passagens, assegura que Herzog foi torturado e narra o anúncio feito pelos
militares do “suicídio” de Herzog, acusando-o de ser espião.
Biografia de Vladimir Herzog disponibilizada pelo Portal Instituto Vladimir Herzog.
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê Ditadura: Mortos e
Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), p.562.
58 Relatório Comissão Nacional da Verdade. Volume III – Mortos e Desaparecidos Políticos.
Brasília, dezembro de 2014.
59 Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê Ditadura: Mortos e
Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). 2009, p.626.
60 Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade.
2007, p.408.
56
57
19
No sábado pela manhã, percebi que Vladimir Herzog tinha chegado
[...]. Wladimir Herzog era muito meu amigo e nós comprávamos
sapatos juntos, e eu o reconheci pelos sapatos. Algum tempo depois,
Vladimir foi retirado da sala. Nós continuávamos sentados lá no banco,
até que veio um dos interrogadores e levou a mim e ao Duque Estrada
a uma sala de interrogatório no andar térreo, junto à sala em que nós
nos encontrávamos. Vladimir estava lá, sentado numa cadeira com o
capuz enfiado, e já de macacão. Assim que entramos na sala, o
interrogador mandou que tirássemos os capuzes, por isso nós vimos
que era Vladimir, e vimos também o interrogador, que era um homem
de 33 a 35 anos, com mais ou menos 1,75m de altura, uns 65 quilos,
magro mas musculoso, cabelo castanho claro, olhos castanhos
apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna do
antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço. Ele nos
pediu que disséssemos ao Vladimir “que não adiantava sonegar
informações”. Tanto eu, como o Duque Estrada de fato aconselhamos
Vladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as informações que os
interrogadores desejavam ver confirmadas, já tinham sido dadas por
pessoas presas antes de nós. Vladimir disse que não sabia de nada e
nós dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de
madeira onde antes nos encontrávamos, na sala contigua. De lá,
podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e,
depois, de Vladimir, e ouvimos quando o interrogador pediu que
trouxessem a “pimentinha”61 e solicitou ajuda de uma equipe de
torturadores. Alguém ligou o rádio e os gritos de Vladimir confundiamse com o som do rádio [...]. A partir de um determinado momento, o
som da voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido
coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto
uma mordaça; Mas tarde os ruídos cessaram. [...] O interrogador saiu
novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar elo braço e
me levar até à sala onde se encontrava Vladimir, permitindo mais uma
vez que eu tirasse o capuz. Vladimir estava sentado na mesma
cadeira, com o capuz enfiado na cabeça, mas agora parecia
particularmente nervoso, as mãos tremiam muito e a voz era débil [...].
Na manhã seguinte, domingo, fomos chamados [...] para ouvirmos
uma preleção sobre a penetração russa no Brasil, feita por um homem
que me pareceu o principal responsável pela análise das informações
colhidas no DOI. [...] Ele primeiro se estendeu sobre a questão da
espionagem russa no Brasil, e depois nos comunicou que Vladimir
Herzog se suicidara na véspera, para concluir que Vladimir devia ser
O livro-denúncia Brasil: Nunca Mais apresenta os principais métodos de tortura utilizados pela
ditadura civil-militar brasileira e dentre eles a “pimentinha” é assim descrita: Trata-se de uma
caixa de madeira, que em seu interior possui um ímã permanente, no campo do qual gira um
rotor combinado, de cujos terminais uma escova recolhe corrente elétrica que é conduzida
através dos fios para os terminais. A máquina dá uma voltagem de 100V com grande corrente,
cerca de 10 amperes. E é perigosa na medida em que a corrente elétrica aumenta em função da
velocidade do rotor, movido a manivela. E por estar condicionada em uma caixa vermelha recebia
o nome de pimentinha. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis/RJ:
Editora Vozes, 1985, p.35.
61
20
um agente da KGB, sendo, ao mesmo tempo o “braço direito do
governador Paulo Egydio” [...]62.
A imagem do suposto suicídio de Herzog viria a ser amplamente conhecida63, e
a partir dela é possível indagar sobre a veracidade das informações oficiais: Vladimir
Herzog teria se suicidado com os pés basicamente apoiados no chão?
Em 1980 o jornalista do Jornal do Brasil, José Nêumanne Pinto, conversou com
Harry Shibata, um dos médicos legistas que assina o laudo necroscópico de Herzog.
Sua reportagem assegura que “a pedido do Capitão Ubirajara, do DOI-Codi, o perito
criminal Motubo Chioto escreveu o laudo nº 13.967, garantindo que o cadáver fora
encontrado, com a língua de fora, pendurado a um nó simples feito a uma altura de
1,63m”64, caracterizando um “quadro típico de suicídio por enforcamento”65. No entanto,
peritos da Comissão Nacional da Verdade declararam que a sensação de asfixia é
extremamente dolorosa, “levando o indivíduo a uma reação instintiva de defesa, ou
mesmo a um arrependimento, ocorrendo então uma redução da força necessária ao
êxito do estrangulamento”66. Por isso os suicídas procuram mecanismos que evitem
suas ações ações involuntárias, e até mesmo intencionais, no caso de arrependimento.
Imagem 08: O corpo de Herzog
foi utilizado pelo DOI-Codi para a
montagem da versão de suicídio
com o objetivo de encobrir a
verdadeira causa da morte: a
tortura. Foto: Silvaldo Leung
Vieira. Fonte: Folha de São
Paulo.
Idem, p.258-259.
Recentemente o fotógrafo dessas imagens, Silvaldo Leung Vieira, deu diversas entrevistas
nas quais conta o contexto em que fotografou o corpo de Herzog. Ver: MAGALHÃES, Vagner.
Fotógrafo que registrou Herzog morto retorna ao DOI-Codi: “mudou tudo”. Portal Terra. São
Paulo, 27 de maio de 2013; Portal Uol. Filho de Herzog acusa fotógrafo de ser “cúmplice” da
ditadura. São Paulo, 28 de maio de 2013.
64 PINTO, José Nêumanne. Em menos de três meses, duas mortes idênticas no DOI-Codi.
Especial Dossiê Shibata. Jornal do Brasil. São Paulo, 09 de novembro de 1980.
65 Idem.
66 Relatório da CNV. Volume I. Parte III – Métodos e práticas nas graves violações de direitos
humanos e suas vítimas. Capítulo 11 – Execuções e mortes decorrentes de tortura, p.476.
62
63
21
Uma das estratégias dos militares em relação aos presos políticos mortos sob
tortura era apresentar versões distintas para a causa mortis, amenizando ou eximindo
os agentes policiais de qualquer responsabilidade. O repertório de versões para essas
mortes não era muito extenso, como destaca a historiadora Mariana Joffily, que em sua
pesquisa relaciona as versões mais comuns oferecidas pelos agentes para as mortes
ocorridas dentro das dependências do DOI-Codi. As explicações mais utilizadas eram:
suicídio, tentativa de fuga – às vezes seguida de atropelamento –, resistência à prisão
e morte em tiroteio com os agentes da ordem. Sob o “sucesso” dessa última versão,
Joffily destaca que “em caso de tiroteio, os agentes do DOI não eram obrigados a manter
intacta a cena do crime para a investigação da perícia, o que lhes permitia forjar tiroteios
sem grandes preocupações de verossimilhança”67.
Associada a esta possibilidade de forjar causas de morte, os agentes da
repressão contavam ainda com o aval técnico de médicos-legistas que reproduziam as
informações oferecidas pelos militares e produziam laudos e atestados de óbito falsos.
A atuação desses legistas era importante também junto ao IML, principalmente para os
casos de desaparecimento de corpos, quando eles faziam os necessários
encaminhamentos para o sepultamento de presos políticos como indigente, impedindo
a identificação das vítimas pelos familiares68. O laudo de exame de corpo de delito de
Vladimir Herzog, assinado pelos médicos-legistas Arildo de Toledo Viana e Harry
Shibata, por exemplo, confirma a versão oficial de suicídio. Os dois médicos são,
constantemente, referenciados pelo Relatório da Comissão Nacional da Verdade como
autores de graves violações de direitos humanos por emissão de laudos fraudulentos.
A família de Herzog foi comunicada na noite do próprio dia 25 e Clarice afirma
que em nenhum momento teve dúvidas de que os militares mataram o seu marido69,
para ela, o suicídio era uma farsa. Vladimir pertencia a uma família judia, perseguida
por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e, como orienta a tradição judaica, seu
corpo foi encaminhado para a Chevra Kadisha, que daria seguimento aos rituais
funerários. No Cemitério Israelita do Butantã, durante o ritual da Tahara, quando se lava
o corpo do morto, purificando-o, foram observados pelo Comitê Fúnebre evidências da
tortura no corpo de Herzog. Por essa razão, o jornalista não foi enterrado na área
Mariana Joffily. No centro da engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirantes e
no DOI de São Paulo (1969-1975). Tese (Doutorado em História Social). FFLCH. Universidade
de São Paulo: São Paulo, 2008, p.272. Outra importante leitura sobre o assunto é o relatório da
CNV. Volume 1. Parte III. Capítulo 11. Execuções e mortes decorrentes de tortura, 2014.
Disponível em < http://www.cnv.gov.br/>. Acesso em 07/07/2015.
68 Relatório da CNV. Volume 1. Parte III. Capítulo 9. Tortura. 2014, p.294.
69 Declarações de Clarice Herzog para o documentário Vlado – 30 anos depois, de João Batista
de Andrade, 2005 (1:01:42 – 1:02:07) e para a Reportagem Especial de Cláudio Renato para a
GloboNews em 2013 Vladimir Herzog - História Da Sentença Que Virou Um Marco Na
Democratização (12-48 - 13:00). Em: < https://www.youtube.com/watch?v=7TlwnamgBR4>
Acesso em 07/07/2015.
67
22
destinada aos suicidas. Seu enterro, no centro do cemitério, foi uma denúncia de que a
sociedade sabia que ele havia sido torturado e morto em recorrência de maus-tratos70.
Conforme a reportagem do jornal O Globo, a Congregação Israelita foi
pressionada para enterrar Herzog o mais rápido possível, evitando maiores comoções
e aglomerações no Cemitério. “A pressa foi tanta que quando Dona Zora, mãe do
jornalista, chegou ao cemitério o caixão já estava sendo coberto por terra. Um ritual de
enterro judaico costuma durar 2 horas em média. O de Herzog não durou 15 minutos.
Clarice ficou revoltada”71. A única jornalista que até o momento se sabe ter fotografado
o enterro de Vladimir Herzog foi Elvira Alegre, do “Jornal Ex-”. Ela conta em entrevista
para o Portal Uol, que o clima no cemitério era bem tenso e que, embora tivessem
algumas pessoas fotografando, não era possível identificar se eram jornalistas ou
agentes da ditadura.
Na segunda-feira bem cedo fomos para o velório no hospital Albert
Einstein. Quando chegamos, o corpo estava lá, no caixão fechado. O
clima era pesadíssimo [...] Fotografar aquilo não era prudente, tanto
que ninguém mais o fez. [...] Tudo era muito tenso. No cemitério havia
mais gente filmando. Não era possível saber quem era jornalista ou
agente da ditadura72.
Imagem 10: A morte
de Herzog gerou
grande indignação na
população. O enterro
e as homenagens do
sepultamento
do
jornalista
foram
acompanhados
por
muita gente. Foto:
Elvira Alegre. Fonte:
O Globo.
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê Ditadura: Mortos e
Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). 2009, p.626.
71 Blog do Noblat. Vladimir Herzog – 30 anos. Portal O Globo, São Paulo, 25 de outubro de
2005. Disponível em < http://noblat.oglobo.globo.com/noticias/noticia/2009/03/vladimir-herzog30-anos-167943.html>. Acesso em 07/07/2015.
72 SANTIN. Wilhan. Repórter-fotográfica foi a única a registrar, sob clima tenso, velório de
Herzog. Depoimento de Elvira Alegre. Portal Uol. Londrina/PR, 05 de outubro de 2014.
70
23
Imagem
09:
Clarice Herzog (ao
centro de cabelo
curto) depois que
foi jogada a última
pá de terra sobre o
caixão com o
corpo do marido.
Foto:
Elvira
Alegre. Fonte: O
Globo.
No dia 31 de outubro de 1975 foi realizado na Catedral da Sé um importante ato
de denúncia contra a morte de Herzog, encoberta pela falsa versão de suicídio por
enforcamento, e contra a violência da repressão militar73. O Ato Ecumênico foi celebrado
por três referências religiosas na luta contra a ditadura civil-militar no país: o arcebispo
de São Paulo, Dom Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel, e o reverendo Jaime Wright
(irmão do desaparecido político Paulo Stuart Wright). Apesar das pressões para que
não conduzissem o evento, os três reuniram naquele dia, dentro da Catedral e na Praça
da Sé, mais de 8 mil pessoas em uma missa ecumênica que também apresentou caráter
de denúncia contra as mortes e desaparecimentos efetuados pelos agentes da
repressão. O assassinato do jornalista foi uma dos mais divulgados e documentados
do período da ditadura, sendo considerado um marco na luta da resistência. Diversos
setores promoveram manifestações em sua memória, como a paralisação de redações
pelos jornalistas, a vigília permanente do Sindicato dos Jornalistas e uma greve de
estudantes da USP e outras universidades do Estado.
Com a comoção geral e a influência da morte de Herzog na opinião pública, a
Secretaria de Segurança Púbica do Estado de São Paulo iniciou no dia 30 de outubro
de 1975 um Inquérito Policial Militar (IPM) com o objetivo de averiguar as causas da
morte do jornalista, sendo o encarregado de conduzi-lo, o general de Brigada Fernando
Guimarães de Cerqueira Lima. Após recolher uma série de fotografias do corpo da
vítima – inclusive a polêmica imagem de Vladimir enforcado com os pés no chão –,
avaliar laudos e exames necroscópico e recolher depoimentos, como dos médicos
Para mais informações sobre a Catedral da Sé como um lugar da memória na luta contra a
repressão ver documento produzido pelo Memorial da Resistência em: Programa Lugares da
Memória. Catedral da Sé. Memorial da Resistência de São Paulo, São Paulo, 2014. Par a as
declarações das autoridades religiosas sobre o Ato na Sé, ver o documentário Vlado – 30 anos
depois, de João Batista de Andrade, 2005.
73
24
legistas (que apontaram divergências entre si), o IPM, pautado em evidências
selecionadas minuciosamente, concluiu em dezembro de 1975 que a versão de suicídio
apresentada pelo Comando do II Exército era verdadeira. No ano seguinte, Clarice
entrou com uma ação requerendo a condenação da União pela reponsabilidade na
morte de Vladimir e em 1979, por decisão do juiz Márcio José de Morais, a Justiça
brasileira condenou a União pelo assassinato de Herzog. Em novembro de 2012, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) admitiu petição sobre o caso Vladimir Herzog, e no ano de 2013,
uma nova certidão de óbito foi entregue à família. O novo documento estabelece que a
morte do jornalista se deu em função de “lesões e maus-tratos sofridos durante os
interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-Codi)”74.
Essa vitória da família Herzog representa a esperança na luta de muitos outros
familiares que ainda travam importantes batalhas judiciais para que o Estado reconheça
sua responsabilidade nas mortes e/ou desaparecimentos de seus entes. Na luta por
memória, verdade e justiça, as conquistas de uns se somam e atribuem forças às lutas
dos demais familiares.
Imagem 11: Atestado de óbito
alterado de Vladimir Herzog,
indicando morte por lesões e
maus-tratos sofridos durante os
interrogatórios em dependência do
II Exército (DOI-Codi). Foto: Autor
desconhecido. Fonte: Instituto
Vladimir Herzog.
74 Relatório Comissão Nacional da Verdade. Volume III – Mortos e Desaparecidos Políticos.
Brasília, dezembro de 2014, p.1795-1796.
25
O CEMITÉRIO ISRAELITA DO BUTANTÃ COMO LUGAR DE MEMÓRIA
A história do Cemitério Israelita do Butantã é bem recente em comparação com
a história da comunidade judaica na cidade, que possuía mais ligação com o camposanto da Vila Mariana. A própria Chevra Kadisha de São Paulo destaca que, num
primeiro momento a distância do cemitério em relação ao centro da cidade, suas
instalações precárias e a dificuldade de acesso fizeram com que as famílias preferissem
sepultar seus parentes na Vila Mariana. Mas com o passar do tempo, a comunidade se
acostumou ao Butantã, que se tornou um importante centro de homenagens e
cerimônias judaicas, principalmente após a inauguração do Monumento em Memória às
Vítimas do Nazismo, em 197475.
Imagem 12: Inspirado em
um monumento similar
existente em
Buenos
Aires, na Argentina, o
monumento do Cemitério
do Butantã homenageia os
6 milhões de judeus
mortos na Europa durante
a 2ª Guerra Mundial. Em
seu interior estão as
cinzas
de
judeus
assassinados no campo
de
concentração
de
Maidanek, Polônia. Foto:
Autor
desconhecido.
Fonte: Chevra Kadisha de
São Paulo.
No Monumento celebra-se, anualmente, o Iom Hashoá (Dia da Catástrofe, em
hebraico), reconhecido pela comunidade israelita como o dia de recordação das vítimas
do Holocausto. Neste dia, centenas de estudantes das escolas judaicas acendem velas
no local em memória às vítimas do nazismo. A Marcha da Vida, caminhada anual que
precede a marcha mundial pelos antigos campos de concentração da Polônia e termina
em Israel, também culmina no Monumento, reunindo milhares de jovens todos os anos.
Quando foi inaugurado, em 1974, foram depositadas em seu interior uma urna com as
cinzas dos judeus mortos no campo de concentração de Maidanek, na Polônia. Essas
cinzas estavam enterradas, desde 1950, no Cemitério Israelita da Vila Mariana.
O lema que move o Iom Hashoá foi muito bem definido por Elie Wiesel,
conhecido escritor de livros de memória sobre os campos de concentração nazista
Portal da Chevra Kadisha de São Paulo. Campos-Santos. Butantã. Disponível em <
http://chevrakadisha.org.br/campos-santos/butanta/>. Acesso em 08/07/2015.
75
26
durante a Guerra e ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1986: “não relembrar o
Holocausto significa assassinar as vítimas pela segunda vez; tornar-se cúmplice do
inimigo. Por outro lado, relembrar significa sentir compaixão pelas vítimas de todas as
perseguições”76. As palavras de Wiesel, que tão bem definem o sentimento da
comunidade judaica neste dia tão significativo e simbólico do Iom Hashoá, também
podem ser uma importante referência para o propósito da luta pela memória, verdade e
justiça no Brasil: lembrar para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.
Conforme dados oficiais apurados pela Comissão Nacional da Verdade o regime
civil-militar instaurado no Brasil em 1964 levou à morte de 434 pessoas. Destas, 210
ainda seguem desaparecidas, o que significa que os corpos jamais foram entregues às
famílias, e 33 tiveram seu paradeiro posteriormente localizado. Como considera a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), “os desaparecimentos forçados se
constituem como uma forma múltipla e continuada de violação de direitos humanos”77,
pois a família de um desaparecido nunca deixa de buscar informações sobre o ente na
tentativa de encontrar o corpo. “O empenho das famílias no sentido de localizá-los e
dar-lhes um túmulo é a tentativa de materializar um lugar para a ausência, é o combate
contra o esquecimento e pela possibilidade de, enfim, elaborar o luto”78.
Retornando aos dados oficiais de mortos e desaparecidos no país é importante
destacar que esses números não esgota o total de mortos e desaparecidos da ditadura
civil-militar, assim como não abarca a enorme quantidade de exilados e banidos que
tiveram que abandonar o país sob o risco de vida, somando-se ainda uma incalculável
cifra de torturados. E, como não se pode deixar de dizer, esses números tampouco
abarcam as graves violações perpetradas contra camponeses e povos indígenas, o que
resulta, portanto, em um quadro de violência generalizado no Brasil durante os 21 anos
de governo militar, que produziu um expressivo número de vítimas79.
A família de Iara é um dos muitos casos de familiares que precisaram, mesmo
após o fim do regime militar, enfrentar a repressão policial que escondeu a verdade
sobre as causas da morte de seus entes. Iara Iavelberg passou 32 anos enterrada como
Citado pelo Portal da Congregação Israelita Paulista (CIP) em artigo sobre o Iom Hashoá.
Em <http://www.cip.org.br/judaismo/festividades/iom-hashoa/>. Acesso em 08/07/2015.
77 Para mais informações ver: RODRÍGUEZ-PINZÓN, Diego e MARTIN, Claudia. A Proibição
de Tortura e Maus-tratos pelo Sistema Interamericano. Um Manual para vítimas e seus
defensores. Trad. Regina Vargas. Genebra/Suiça: World Organization Against Torture (OMCT),
2006.
Disponível
em
<
http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/a_pdf/manual_omct_tortura_oea.pdf>;
Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)
vs.
Brasil.
Sentença
de
24
de
novembro
de
2010.
Disponível
em
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acessos em 08/07/2015.
78 REIS, Daniel Aarão e ROLLEMBERG, Denise. Desaparecidos Políticos. Portal Memórias
Reveladas. Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil. Arquivo Nacional. Brasília. Em:
< http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/campanha/desaparecidos/>. Acesso
em 08/07/2015.
79 Sugerimos a leitura do Relatório final da CNV disponível em < http://www.cnv.gov.br/>.
76
27
suicida, de costa para os demais e em uma ala separada do Cemitério Israelita, e sua
família enfrentou, dentro desta circunstância, uma dupla repressão: a omissão pelos
militares do assassinato de Iara e a relutância da Chevra Kadisha em aceitar que a
versão oficial da morte era falsa. Toda essa situação privou a família, principalmente os
pais religiosos, de realizar o sepultamento de Iara conforme as crenças e os rituais
judaicos. A família, conduzindo suas próprias investigações para comprovar a morte por
assassinato da jovem, tentou por duas vezes exumá-la, e só em 2003 teve êxito e, ainda
nesta ocasião a Chevra Kadisha de São Paulo corroborou com a falsa versão dos
militares, defendendo-a como oficial.
A família de Herzog, apesar de viver a dor da perda de seu ente, passou por um
processo distinto de luto. O sepultamento de Herzog, morto sob tortura mas declarado
suicida pelos militares, ocorreu no centro do Cemitério Israelita em denúncia à violência
da ditadura civil-militar. A Chevra Kadisha, neste caso, identificou as marcar da tortura
durante o ritual da Tahara, a lavagem de purificação do corpo, e se recusou a
encaminhar Vladimir Herzog para a ala dos suicidas. Esta ação, identificada aqui como
de enfrentamento à ditadura, marcou o Cemitério Israelita nesse momento como um
lugar de resistência política, visto que a morte do jornalista causou uma grande comoção
na sociedade e seu enterro foi acompanhado por muitas pessoas. Pela falsa versão da
morte e pelo laudo necroscópico fraudulento a União foi condenada, ainda durante o
regime militar, a indenizar a família de Herzog pela responsabilidade em sua morte.
Por esses dois casos emblemáticos de repressão e resistência políticas, o
Cemitério Israelita do Butantã se configura como um Lugar de Memória à ditadura civilmilitar. No entanto, consideramos importante destacar que a pesquisa aqui
desenvolvida segue aberta a novas informações e descobertas. Até o momento se sabe
da história de luta dessas duas pessoas vinculadas à resistência política sepultadas no
Butantã, mas sempre caberá, a este documento, a inclusão de novas histórias.
O Cemitério também se destaca por seu estilo arquitetônico caracterizado como
“cemitério jardim”, sendo bem distinto do seu antecessor, o Cemitério Israelita da Vila
Mariana. Valorizando o contato com a natureza, o Butantã mantém critérios mais rígidos
quanto a padronização de túmulos e as inscrições em hebraico nas pedras tumulares,
mas possui arruamentos largos e arborizados que acompanham a topografia do terreno,
facilitando o acesso e o deslocamento dentro do cemitério. Como destaca Paula Ester
Janovitch, o Cemitério Israelita do Butantã buscou “um certo frescor dos parques e da
vida campestre, longe dos grandes centros”80 e hoje se configura como o mais
importante centro de homenagens e cerimônias judaicas do Estado de São Paulo.
80
JANOVITCH, Paula Ester. op. cit., p.44.
28
ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES:
O Cemitério Israelita do Butantã continua sendo um importante espaço de rituais
funerários da comunidade judaica de São Paulo. Atualmente possui muitas campas
disponíveis e segue sob a administração da Chevra Kadisha.
ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA
O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a registrar, por
meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos políticos, familiares de
mortos e desaparecidos e de outros cidadãos que trabalharam/frequentaram o antigo
Deops/SP. O Programa Coleta Regular de Testemunhos tem a finalidade de formar um
acervo, cujo objetivo principal é ampliar o conhecimento sobre o Deops/SP e outros
lugares de memória do Estado de São Paulo, divulgando, desta forma, o tema da
resistência e repressão política no período da ditadura civil-militar.
- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da
Resistência
ROSSI, Waldemar; JOSAPHA, Frei Carlos; CUNHA, Magali do Nascimento; KLEINAS,
Alberto. Coleta Pública de Testemunhos: O Papel das Igrejas na Ditadura. Memorial
da Resistência de São Paulo, entrevista concedida a Anivaldo Padilha, em 25/10/2014.
Outras entrevistas
RENATO, Cláudio. Reportagem Especial Vladimir Herzog - História da Sentença que
virou um marco na democratização. GloboNews. 2013. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=7TlwnamgBR4> Acesso em 07/07/2015.
FILMES E/OU DOCUMENTÁRIOS
Documentário: Vlado – 30 anos depois. Direção de João Batista de Andrade, 2005.
Sinopse: O filme revela a trajetória de Herzog, desde a infância na Iugoslávia até sua
posse como diretor de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo. A reação de Clarice, dos
amigos e da sociedade, recusando a farsa montada para justificar a morte do jornalista,
tornou o fato um marco na luta pela redemocratização do país.
Documentário: Em Busca de Iara. Direção de Flávio Frederico, 2014. Sinopse: Através
de uma investigação pessoal de sua sobrinha, Mariana Pamplona, o filme resgata a vida
da guerrilheira Iara Iavelberg. Uma mulher culta e bela, que deixou para trás uma
confortável vida familiar, optando por engajar-se na luta armada contra a ditadura militar.
29
Vivendo na clandestinidade, na esteira de uma rotina de sequestros e ações armadas,
tornou-se a companheira do ex-capitão do exército Carlos Lamarca, compartilhando
com ele o posto de um dos alvos mais cobiçados da repressão. O filme desmonta a
versão oficial do regime, que atribui sua morte, em 1971 a um suicídio.
REMISSIVAS: Praça da Sé; Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Assunção de
São Paulo - Catedral da Sé; Departamento de Operações Internas do Centro de
Operações para a Defesa Interna (DOI-Codi); Instituto Médico Legal (IML/SP).
PLANTAS E MAPAS
Fonte: Chevra Kadisha de São Paulo
REFERÊNCIAS
BRASIL. Direito à Memória e à Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Brasília: 2007.
30
BRASIL. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985).
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. São Paulo: Instituto de
Estudos sobre a Violência do Estado (IEVE); Imprensa Oficial, 2009.
BRASIL. Relatório. Volume III – Mortos e Desaparecidos Políticos. Comissão
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Rio
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CHEVRA KADISHA. Campos-Santos. Butantã. Chevra Kadisha de São Paulo. São
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04
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2013.
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<
http://verdadeaberta.org/mortos-
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<https://goo.gl/v0EjYT>. Acesso em 30/06/2015.
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31
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Central Blanche Knopf. Pesquisa Escolar Online, Recife/PE. Disponível em:
<http://goo.gl/qXHUdU>. Acesso em 30/06/2015.
COMO CITAR ESTE DOCUMENTO: Programa Lugares da Memória. Cemitério
Israelita do Butantã. Memorial da Resistência de São Paulo, São Paulo, 2015.
32