EU, LEONOR TELES - A Esfera dos Livros

Transcrição

EU, LEONOR TELES - A Esfera dos Livros
EU, LEONOR
TELES
3
María Pilar Queralt del Hierro
EU, LEONOR
TELES
A Dama Maldita
Tradução de
Vernáculo
5
A Esfera dos Livros
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Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor
© María Pilar Queralt, 2006
© A Esfera dos Livros, 2006
1.ª edição: Outubro de 2006
Capa: António Belchior
Imagem da capa: Copyright Reproductiefonds Vlaamse Musea NV
Tradução: Vernáculo
Revisão: Lídia Freitas
Paginação: Júlio de Carvalho
Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
Depósito legal n.º 248 466/06
ISBN 989-626-035-4
6
ÍNDICE
Tabela Genealógica ..................................................................
9
DRAMATIS PERSONÆ: A CORTE DE D. PEDRO I ............
11
I: A Cavalo, rumo a Castela.....................................................
Tordesilhas, Mosteiro de Santa Clara, Janeiro de 1384 .....
19
21
II: D. Fernando, o rei Formoso de Portugal ............................
Lamento do rei D. Fernando ..............................................
25
27
I: O VOO TRANQUILO DA ROLA ..................................
II: AO ACASO DA COROA...............................................
III: CARNE DA MINHA CARNE ......................................
IV: A AMANTE DO REI ....................................................
29
39
53
67
III: Maria, minha irmã, minha culpa........................................
Lamento de Maria Teles .....................................................
81
83
I: COROADA DE FLOR DE LARANJEIRA ...................... 85
II: O FILHO DE INÊS DE CASTRO .................................. 99
III: UMA FLECHA ENVENENADA .................................. 115
IV: João, o discreto Mestre de Avis .......................................... 131
Lamento do Mestre de Avis................................................. 133
I: O BASTARDO DE D. PEDRO I...................................... 135
II: CASTELA NO HORIZONTE........................................ 147
V: João Fernandes, meu amor, minha dor ................................ 159
Lamento do Conde de Andeiro........................................... 161
I: O BRILHO DA COROA................................................. 163
II: LÁGRIMAS DE SANGUE.............................................. 179
Epílogo..................................................................................... 197
Adenda..................................................................................... 203
Cronologia ............................................................................... 205
Bibliografia .............................................................................. 211
Agradecimentos........................................................................ 215
7
TABELA GENEALÓGICA
D. Afonso IV de Portugal ♥ Beatriz de Castela
(1291-1357)
(1293-1359)
Constança Manuel ♥ Pedro I de Portugal
(1323-1345)
(1320-1367)
Maria
Fernando I
(1343-58)
♥
Marquês
de Tortosa
(1345-1383)
♥
Leonor
Teles
(+ 1363)
(1345-1405)
Isabel
(1370)
(1371)
Inês de Castro
(1320?-1355)
João
Dinis
(1347-81) (1349-1397) (1354-1397)
♥
♥
♥
Conde de Maria Joana de
Albuquerque Teles Castela
Beatriz ♥ João I de Castela
(1372-1430)
(1358-1390)
Álvaro da Cunha
(1367-1405)
Teresa
Lourenço
João, Mestre de Avis
(1357-1433)
♥
Filipa de Lencastre
(1360-1415)
(+ 1376) (1337-1378) (1367-1374)
Pedro Afonso
(1364-1410)
Beatriz
♥
♥
João Lourenço da Cunha
(1344-1386)
Pedro I Reis de Portugal
♥ casamento
união extramatrimonial
filho
casamento desfeito
filho ilegítimo
9
Duarte I de Portugal ♥ Leonor de Aragão
(1391-1438)
(1400-1445)
DRAMATIS PERSONÆ
A CORTE DE D. PEDRO I
D. Pedro I, o Justiceiro, rei de Portugal (1320-1367)
Filho de D. Afonso IV de Portugal e de Beatriz de Castela. Depois de um enlace não concretizado com
Branca de Castela, contraiu matrimónio com Constança Manuel em 1339. Desta união nasceu o seu herdeiro, o futuro D. Fernando I. Apaixonou-se por Inês
de Castro, que lhe deu quatro filhos e com quem casou
secretamente. O assassinato de Inês, perpetrado pelo
pai de D. Pedro, levou a que este último o enfrentasse,
submergindo Portugal numa guerra civil. Depois de
assumir a coroa após a morte de seu pai, proclamou
D. Inês como rainha de Portugal a título póstumo,
concedendo assim aos filhos a categoria de príncipes
e levou-os com ele para a corte. Sendo um monarca
legislador e equânime, passou à história com o cognome de O Justiceiro.
Constança Manuel (1318-1345)
Filha de D. João Manuel, o infante poeta, autor do
Conde Lucanor, contraiu matrimónio com o herdeiro
11
de Portugal, Pedro, em 1339. Desta união nasceram
dois filhos: Maria, que contraiu matrimónio com o
marquês de Tortosa, filho do rei de Aragão, e D. Fernando I, o Formoso, rei de Portugal.
D. Inês de Castro (1320-1355)
Rainha de Portugal. Nasceu em 1320 na comarca galega de A Limia. Em 1339 chegou à corte lusa na qualidade de dama de companhia de Constança Manuel,
quando esta se casou com o príncipe Pedro, herdeiro
de D. Afonso IV. Pouco tempo depois tornou-se
amante do príncipe e deu-lhe quatro filhos, dos quais
apenas três chegaram à idade adulta: Beatriz, João
e Dinis. Em 1355, D. Afonso IV, procurando preservar
o direito ao trono do seu neto Fernando, ordenou
a execução de Inês de Castro. Em 1360, sendo já rei,
D. Pedro revelou nas Cortes de Cantanhede a existência de um casamento secreto em 1354, e em virtude
desta circunstância, proclamou D. Inês rainha de Portugal.
A CORTE DE D. FERNANDO I
D. Fernando I, o Formoso, rei de Portugal (1345-1383)
Filho de Constança Manuel e de D. Pedro I, herdou a
coroa de Portugal, por morte do seu pai, em 1367.
Apaixonado por Leonor Teles, conseguiu a anulação
do primeiro casamento dela, e depois de um primeiro
casamento secreto, fê-la sua esposa de forma oficial
quando já tinha nascido a infanta Beatriz. As suas
divergências com D. Pedro I, o rei castelhano, leva12
ram-no em três ocasiões a defrontar Castela. Tal facto,
juntamente com o descontentamento popular pelo seu
casamento com Leonor Teles, deram lugar a diversos
levantamento populares e levaram a que, quando da
sua morte, subisse ao trono seu meio-irmão, o Mestre
de Avis.
Isabel de Portugal (1364-1410)
Filha ilegítima de D. Fernando I, contraiu matrimónio
com Afonso, conde de Gijón, filho bastardo de Henrique II de Castela. Quando este morreu, regressou a
Portugal, onde acabou os seus dias num mosteiro cisterciense.
OS FILHOS DE INÊS DE CASTRO
João d’Eça (1349-1397)
Senhor d’Eça e 1.º duque de Valência de Campos. Filho
de D. Pedro I de Portugal e de D. Inês de Castro, viveu
na corte de seu pai onde contraiu matrimónio com
Maria Teles, camareira da sua irmã, a infanta Beatriz.
Depois de assassinar a sua mulher, a quem acusou de
adultério, fugiu para Castela onde foi preso por
ordem de João I. Morreu em Salamanca, tendo dedicado os seus últimos anos à penitência e à oração.
Beatriz de Portugal (1347-1381)
Filha de D. Pedro I de Portugal e de D. Inês de Castro,
casou em 1373 com Sancho, conde de Albuquerque,
filho ilegítimo de Afonso XI de Castela. Da sua união
nasceram Fernando de Albuquerque e Leonor, conhe13
cida como Ricahembra [rica-dona/filha de rico-homem]
rainha de Aragão após o compromisso de Caspe pelo
seu casamento com Fernando I.
Dinis de Portugal (1354-1397)
Filho de D. Pedro I de Portugal e de Inês de Castro,
fugiu para Castela após negar-se a reconhecer D. Leonor Teles como regente. Aí casa com Joana de Castela
(1367-1374), filha de Henrique II. Os restos mortais
de ambos repousam no mosteiro de Guadalupe.
EM CASTELA
João I, rei de Castela (1358-1390)
Filho de Henrique II e de D. Joana Manuel, subiu ao
trono castelhano em 1379. Em 1375 tinha casado com
Leonor de Aragão, de cujo matrimónio nasceu Henrique III, o seu sucessor, e Fernando de Antequera, que
seria rei de Aragão após o Compromisso de Caspe. Em
1383 casou com Beatriz de Portugal no pressuposto
de que os seus filhos herdariam a coroa de Portugal enquanto o seu primogénito, Henrique, receberia
a de Castela. Apoia a França durante a Guerra dos
Cem Anos. Morre em 1390 devido a ter caído de um
cavalo.
Beatriz de Portugal, rainha de Castela (1372-1430)
Filha de D. Fernando I de Portugal e de Leonor Teles.
Casada com João I de Castela quando tinha apenas
11 anos de idade. Quando o pai morreu, foi proclamada rainha de Portugal. Não obstante, a proclama14
ção do Mestre de Avis como rei, afastou-a do trono.
Morreu em 1406, depois de ter recebido como
legado do seu marido as vilas de Medina do Campo,
Cuéllar, Olmedo, Arévalo e Villareal. Os seus restos
mortais repousam no mosteiro do Espírito Santo de
Toro (Zamora – Espanha).
DINASTIA DE AVIS
D. João I , de «Boa Memória», rei de Portugal
(1357-1433)
Primeiro monarca da dinastia de Avis. Filho natural
de D. Pedro I e de uma dama galega chamada Teresa
Lourenço, cresceu na corte portuguesa. Nomeado
Mestre de Avis pelo seu pai, foi proclamado rei em
1385 pelas cortes de Coimbra, com o apoio da Inglaterra – devido à sua união com D. Filipa de Lencastre
– e da burguesia lisboeta. O seu reinado viu-se pejado
de contínuos confrontos com o reino de Castela, e as
vitórias de Atoleiros e Aljubarrota significaram a consolidação definitiva do reino de Portugal. A conquista
de Ceuta em 1415 proporcionou o arranque da
expansão ultramarina, e assim, Portugal estabeleceu-se em 1419 na Madeira e em 1432 em Cabo Verde.
Durante o seu reinado promoveram-se importantes
reformas sociais.
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EM TORNO DE LEONOR TELES
João Lourenço da Cunha, Morgado de Pombeiro
(1344-1386)
Primeiro marido de Leonor Teles, com quem casou
em 1364. Após a dissolução desta união, fugiu para
Castela por temer represálias, onde morreu anos
depois. Da sua relação com Leonor Teles nasceu um
filho, Álvaro da Cunha, que se casou com Brites de
Melo.
Leonor Teles de Meneses (1350-1386?1405?)
Sobrinha de João Afonso Telo, conde de Barcelos e
filha de Martim Afonso Teles de Meneses e Aldonça
de Vasconcelos, descendia por linha paterna dos reis
de Leão e por parte da mãe, dos reis de Castela.
Casou muito jovem com João Lourenço da Cunha,
herdeiro do senhor de Pombeiro, de quem teve um
filho, Álvaro. O matrimónio dissolveu-se por instâncias do rei Fernando I, apaixonado por Leonor desde
que esta foi à corte, por ocasião de uma visita à sua
irmã, Maria. Esperando a autorização papal, Fernando e Leonor casaram-se em segredo em Leça do
Bailio a 15 de Maio de 1372. No mês de Fevereiro
seguinte, nasceu Beatriz, herdeira do trono. Pouco
depois o casamento foi ratificado de forma pública e
oficial. Por morte do seu marido, Leonor Teles converteu-se em regente de Portugal em nome da sua
filha Beatriz, casada com João I de Castela, mas o
clamor popular acusou-a de adultério pela sua relação com o conde de Andeiro, e após o assassinato
deste último, D. João, Mestre de Avis, foi procla16
mado rei. Leonor refugiou-se em Castela, onde foi
encarcerada pelo seu genro, João I, no Mosteiro de
Santa Clara de Tordesilhas (Valhadolid). Segundo
alguns autores, ali veio a falecer três anos depois.
Não obstante, Manuel Marques Duarte – e juntamente com ele outros estudiosos desta personagem –
defende a tese de que a data efectiva da morte da
regente portuguesa foi 1405. Esta possibilidade
baseia-se fundamentalmente na Historia de Valhadolid, escrita em 1640 por Juan Antolínez de Burgos,
que assinala que Leonor Teles permaneceu na sua
prisão de Valhadolid até 1390, o mesmo ano em que
morreu João I. Henrique III liberta-a da prisão e permite que esta se instale em Valhadolid, onde chegou
a receber o embaixador da coroa de Aragão, D. Guerau de Queralt, que havia previamente solicitado ao
jovem rei castelhano que «acatasse e honrasse a rainha D. Beatriz e a rainha D. Leonor de Portugal».
Pouco depois, e ainda segundo Antolínez, da sua
união com um cavalheiro chamado Zoilo Iñiguez
nasceram dois filhos: um varão que morreu na infância, e uma filha, de nome Maria. No seu testamento,
Leonor deixou expresso que a sua mansão deveria
ser ocupada pelas religiosas de Merced Calzada, hoje
desaparecida. Foi sepultada na sua capela, onde
havia uma lápide que dizia: «Aqui jaz sepultada a
Rainha D. Leonor, mulher do Rei D. Fernando de
Portugal: está um infante a seus pés. Mandou rezar
duas missas cada semana por si e pela sua filha Beatriz, Rainha de Castela, mulher do Rei Don Juan I e
foi fundadora deste convento.» O convento, a igreja
e com esta os restos mortais de D. Leonor Teles desa17
pareceram no século XIX para dar lugar às ruas de La
Merced e Cervantes, da capital castelhana.
Maria Teles de Meneses (1347-1378)
Filha de Martim Afonso Teles de Menezes e de
Aldonça de Vasconcelos, e como tal, irmã de Leonor
Teles. Ao enviuvar de Álvaro Dias de Sousa, residiu na
corte portuguesa como camareira da infanta Beatriz,
filha de D. Pedro I e de Inês de Castro. Aí conhece o
príncipe João de Eça, filho de Inês de Castro, com
quem casou em 1374 e de cuja união nasceu Fernando
de Eça. Morreu assassinada pelo seu marido em 1378.
João Fernandes de Andeiro (1340-1383)
João Fernandes de Andeiro nasceu na Galiza e foi
conselheiro de Fernando I, que o nomeou conde de
Ourém e o destacou como embaixador na corte do
duque de Lencastre. Em 1383, actuou como intermediário na concertação do casamento de Beatriz de
Portugal com João I de Castela. Casado com D. Mayor
de Melo, desta união nasceram duas filhas, Teresa e
Sancha. No entanto, estando apaixonado por Leonor
Teles, deixou a sua casa e instalou-se na sua residência lisboeta da cadeia do Limoeiro, e por ocasião da
morte do rei, no palácio onde coabitou maritalmente
com a rainha regente. Morreu assassinado pelo Mestre de Avis em 1383.
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I
A cavalo,
rumo a Castela
Despois de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o Sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento:
Assi no Reino forte aconteceu,
Despois que o Rei Fernando faleceu.
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, 1
19
Tordesilhas, Mosteiro de Santa Clara, Janeiro de 1384
Nunca pensei que o destino me levaria a apodrecer
nesta cela malcheirosa com pretensões de aposento.
Quando a cavalo parti de Portugal fugindo das tropas
do Mestre de Avis, fi-lo na esperança de que o rei de Castela, meu genro, me desse refúgio. Como pude enganar-me tanto?
Acaso, João I, te basta chamares-te Senhor e rei de
Castela e Leão? Terás porventura esquecido o teu
interesse em casares com a minha filha Beatriz para
que, a meio do teu reinado, conseguisses a coroa portuguesa? A mesma coroa que, se agora me desses o teu
apoio, se me acolhesses como mãe da tua esposa e
regente de Portugal, seria tua. No entanto, invocando
a justiça e a paz dos teus reinos, esqueces o nosso
pacto e confinas-me a estas paredes junto à minha fiel
Brianda, sem me proporcionar o trato que me pertence de direito como rainha e que me deves como
mãe da tua esposa.
Já lá vão dez dias desde que aqui cheguei, dez dias
enclausurada entre quatro paredes do que julguei ser
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castelo e é afinal convento, julguei ser residência e é
afinal prisão. Mosteiro de Santa Clara. Esqueces que
os seus muros foram erguidos para comemorar a
Batalha do Salado, aquela em que portugueses e castelhanos unidos combateram ombro a ombro?
Quando, hirta de frio e cansada da viagem, atravessei o teu pátio, pareceu-me que os teus edifícios mudéjares me proporcionariam a hospedagem adequada à
minha alma fatigada. Mas não foi assim, e as tuas
abóbadas, enriquecidas com gessos ornamentais,
nada mais são do que as grades que encerram este
meu sepulcro em vida.
Horas e horas em solidão, ou ainda pior, recolhida
entre memórias e na companhia dessas sombras bárbaras e sinistras que invariavelmente me assaltam
desde o amanhecer. Silhuetas difusas que surgem da
bruma do rio e tomam os corpos dos que acompanharam os meus dias. Num cortejo macabro penetram
nos meus aposentos e, uma vez na minha presença,
acusam-me, entoando cânticos de reprovação ao som
da trágica dança dos mortos.
Que quereis, sombras ingratas? Que vos diga que
me arrependo? Que vos implore a vossa compaixão?
Nunca o farei... fui traidora, menti, intriguei e até
incentivei punhaladas alheias... é verdade. Mas tal é o
negócio das cortes. Essa é a força que move uma coroa.
A ti, meu rei e esposo, D. Fernando, faltava-te ambição e iniciativa, precisamente o que a ti, João Andeiro
– meu amor e minha dor –, te sobrava.
Apenas tu, Maria, minha doce irmã, provocas arrependimento na minha alma, mas hás-de compreender-me... Nunca quis a tua morte, apenas pretendi afastar
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o teu marido da coroa, que por lei pertencia à minha
filha... foi o destino que assim o decidiu. Procurei apenas o bem para o meu reino, aquele que te pertenceu,
Fernando, e que haveria de ser para ti, Beatriz, minha
filha... Portugal, por que me pagas assim os meus desvelos? Por que me arrastaste até esta clausura da qual
apenas encontro consolo no calmo percurso do rio que
avisto da minha janela? O Douro levará até ti, povo
ingrato, o eco da minha amargura e talvez então atendas o meu clamor.
Ao entardecer, quando as águas do rio, iluminadas
pelos raios do sol poente, ganham um trágico reflexo
encarniçado, as sombras calam-se... mas então a minha
memória tinge-se de sangue. Aquele sangue tépido e
viscoso que brotava do peito de João, meu amor, meu
deus, meu dono... Por que teve ele de pagar os meus
pecados, se o punhal se dirigia apenas à minha coroa?
Por que é que a sua sombra não aparece nítida como
as outras, mas desfocada pelo véu cruel da morte?
– Brianda, traz-me já a escrivaninha para escrever...
Hei-de contar à minha filha, a rainha de Castela, que
esta minha prisão está povoada de sombras que me
acossam... Ou serão soldados embuçados que me cercam? Pouco importa. Beatriz, a minha filha, saberá
como há-de socorrer-me...
Está frio, muito frio. A tarde cai e a escuridão apossa-se do meu aposento. Os cânticos das freiras na capela
chegam até mim e confundem-se com essas vozes ásperas e cruéis que me falam da minha vida. Não quero
lembrar-me agora, não. Afastai-vos, fantasmas do passado. Deixai-me só com a minha dor e o meu fracasso.
Tudo o que tive, perdi. Que castigo maior mereço?
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