EU, LEONOR TELES - A Esfera dos Livros
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EU, LEONOR TELES - A Esfera dos Livros
EU, LEONOR TELES 3 María Pilar Queralt del Hierro EU, LEONOR TELES A Dama Maldita Tradução de Vernáculo 5 A Esfera dos Livros Rua Garrett, n.º 19 – 2.º A 1200-203 Lisboa – Portugal Tel. 213 404 060 Fax 213 404 069 www.esferadoslivros.pt Distribuição: Sodilivros, SA Praceta Quintinha, lote CC4 – 2.º Piso R/c e C/v 2620-161 Póvoa de Santo Andrião Tel. 213 815 600 Fax 213 876 281 [email protected] Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor © María Pilar Queralt, 2006 © A Esfera dos Livros, 2006 1.ª edição: Outubro de 2006 Capa: António Belchior Imagem da capa: Copyright Reproductiefonds Vlaamse Musea NV Tradução: Vernáculo Revisão: Lídia Freitas Paginação: Júlio de Carvalho Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito legal n.º 248 466/06 ISBN 989-626-035-4 6 ÍNDICE Tabela Genealógica .................................................................. 9 DRAMATIS PERSONÆ: A CORTE DE D. PEDRO I ............ 11 I: A Cavalo, rumo a Castela..................................................... Tordesilhas, Mosteiro de Santa Clara, Janeiro de 1384 ..... 19 21 II: D. Fernando, o rei Formoso de Portugal ............................ Lamento do rei D. Fernando .............................................. 25 27 I: O VOO TRANQUILO DA ROLA .................................. II: AO ACASO DA COROA............................................... III: CARNE DA MINHA CARNE ...................................... IV: A AMANTE DO REI .................................................... 29 39 53 67 III: Maria, minha irmã, minha culpa........................................ Lamento de Maria Teles ..................................................... 81 83 I: COROADA DE FLOR DE LARANJEIRA ...................... 85 II: O FILHO DE INÊS DE CASTRO .................................. 99 III: UMA FLECHA ENVENENADA .................................. 115 IV: João, o discreto Mestre de Avis .......................................... 131 Lamento do Mestre de Avis................................................. 133 I: O BASTARDO DE D. PEDRO I...................................... 135 II: CASTELA NO HORIZONTE........................................ 147 V: João Fernandes, meu amor, minha dor ................................ 159 Lamento do Conde de Andeiro........................................... 161 I: O BRILHO DA COROA................................................. 163 II: LÁGRIMAS DE SANGUE.............................................. 179 Epílogo..................................................................................... 197 Adenda..................................................................................... 203 Cronologia ............................................................................... 205 Bibliografia .............................................................................. 211 Agradecimentos........................................................................ 215 7 TABELA GENEALÓGICA D. Afonso IV de Portugal ♥ Beatriz de Castela (1291-1357) (1293-1359) Constança Manuel ♥ Pedro I de Portugal (1323-1345) (1320-1367) Maria Fernando I (1343-58) ♥ Marquês de Tortosa (1345-1383) ♥ Leonor Teles (+ 1363) (1345-1405) Isabel (1370) (1371) Inês de Castro (1320?-1355) João Dinis (1347-81) (1349-1397) (1354-1397) ♥ ♥ ♥ Conde de Maria Joana de Albuquerque Teles Castela Beatriz ♥ João I de Castela (1372-1430) (1358-1390) Álvaro da Cunha (1367-1405) Teresa Lourenço João, Mestre de Avis (1357-1433) ♥ Filipa de Lencastre (1360-1415) (+ 1376) (1337-1378) (1367-1374) Pedro Afonso (1364-1410) Beatriz ♥ ♥ João Lourenço da Cunha (1344-1386) Pedro I Reis de Portugal ♥ casamento união extramatrimonial filho casamento desfeito filho ilegítimo 9 Duarte I de Portugal ♥ Leonor de Aragão (1391-1438) (1400-1445) DRAMATIS PERSONÆ A CORTE DE D. PEDRO I D. Pedro I, o Justiceiro, rei de Portugal (1320-1367) Filho de D. Afonso IV de Portugal e de Beatriz de Castela. Depois de um enlace não concretizado com Branca de Castela, contraiu matrimónio com Constança Manuel em 1339. Desta união nasceu o seu herdeiro, o futuro D. Fernando I. Apaixonou-se por Inês de Castro, que lhe deu quatro filhos e com quem casou secretamente. O assassinato de Inês, perpetrado pelo pai de D. Pedro, levou a que este último o enfrentasse, submergindo Portugal numa guerra civil. Depois de assumir a coroa após a morte de seu pai, proclamou D. Inês como rainha de Portugal a título póstumo, concedendo assim aos filhos a categoria de príncipes e levou-os com ele para a corte. Sendo um monarca legislador e equânime, passou à história com o cognome de O Justiceiro. Constança Manuel (1318-1345) Filha de D. João Manuel, o infante poeta, autor do Conde Lucanor, contraiu matrimónio com o herdeiro 11 de Portugal, Pedro, em 1339. Desta união nasceram dois filhos: Maria, que contraiu matrimónio com o marquês de Tortosa, filho do rei de Aragão, e D. Fernando I, o Formoso, rei de Portugal. D. Inês de Castro (1320-1355) Rainha de Portugal. Nasceu em 1320 na comarca galega de A Limia. Em 1339 chegou à corte lusa na qualidade de dama de companhia de Constança Manuel, quando esta se casou com o príncipe Pedro, herdeiro de D. Afonso IV. Pouco tempo depois tornou-se amante do príncipe e deu-lhe quatro filhos, dos quais apenas três chegaram à idade adulta: Beatriz, João e Dinis. Em 1355, D. Afonso IV, procurando preservar o direito ao trono do seu neto Fernando, ordenou a execução de Inês de Castro. Em 1360, sendo já rei, D. Pedro revelou nas Cortes de Cantanhede a existência de um casamento secreto em 1354, e em virtude desta circunstância, proclamou D. Inês rainha de Portugal. A CORTE DE D. FERNANDO I D. Fernando I, o Formoso, rei de Portugal (1345-1383) Filho de Constança Manuel e de D. Pedro I, herdou a coroa de Portugal, por morte do seu pai, em 1367. Apaixonado por Leonor Teles, conseguiu a anulação do primeiro casamento dela, e depois de um primeiro casamento secreto, fê-la sua esposa de forma oficial quando já tinha nascido a infanta Beatriz. As suas divergências com D. Pedro I, o rei castelhano, leva12 ram-no em três ocasiões a defrontar Castela. Tal facto, juntamente com o descontentamento popular pelo seu casamento com Leonor Teles, deram lugar a diversos levantamento populares e levaram a que, quando da sua morte, subisse ao trono seu meio-irmão, o Mestre de Avis. Isabel de Portugal (1364-1410) Filha ilegítima de D. Fernando I, contraiu matrimónio com Afonso, conde de Gijón, filho bastardo de Henrique II de Castela. Quando este morreu, regressou a Portugal, onde acabou os seus dias num mosteiro cisterciense. OS FILHOS DE INÊS DE CASTRO João d’Eça (1349-1397) Senhor d’Eça e 1.º duque de Valência de Campos. Filho de D. Pedro I de Portugal e de D. Inês de Castro, viveu na corte de seu pai onde contraiu matrimónio com Maria Teles, camareira da sua irmã, a infanta Beatriz. Depois de assassinar a sua mulher, a quem acusou de adultério, fugiu para Castela onde foi preso por ordem de João I. Morreu em Salamanca, tendo dedicado os seus últimos anos à penitência e à oração. Beatriz de Portugal (1347-1381) Filha de D. Pedro I de Portugal e de D. Inês de Castro, casou em 1373 com Sancho, conde de Albuquerque, filho ilegítimo de Afonso XI de Castela. Da sua união nasceram Fernando de Albuquerque e Leonor, conhe13 cida como Ricahembra [rica-dona/filha de rico-homem] rainha de Aragão após o compromisso de Caspe pelo seu casamento com Fernando I. Dinis de Portugal (1354-1397) Filho de D. Pedro I de Portugal e de Inês de Castro, fugiu para Castela após negar-se a reconhecer D. Leonor Teles como regente. Aí casa com Joana de Castela (1367-1374), filha de Henrique II. Os restos mortais de ambos repousam no mosteiro de Guadalupe. EM CASTELA João I, rei de Castela (1358-1390) Filho de Henrique II e de D. Joana Manuel, subiu ao trono castelhano em 1379. Em 1375 tinha casado com Leonor de Aragão, de cujo matrimónio nasceu Henrique III, o seu sucessor, e Fernando de Antequera, que seria rei de Aragão após o Compromisso de Caspe. Em 1383 casou com Beatriz de Portugal no pressuposto de que os seus filhos herdariam a coroa de Portugal enquanto o seu primogénito, Henrique, receberia a de Castela. Apoia a França durante a Guerra dos Cem Anos. Morre em 1390 devido a ter caído de um cavalo. Beatriz de Portugal, rainha de Castela (1372-1430) Filha de D. Fernando I de Portugal e de Leonor Teles. Casada com João I de Castela quando tinha apenas 11 anos de idade. Quando o pai morreu, foi proclamada rainha de Portugal. Não obstante, a proclama14 ção do Mestre de Avis como rei, afastou-a do trono. Morreu em 1406, depois de ter recebido como legado do seu marido as vilas de Medina do Campo, Cuéllar, Olmedo, Arévalo e Villareal. Os seus restos mortais repousam no mosteiro do Espírito Santo de Toro (Zamora – Espanha). DINASTIA DE AVIS D. João I , de «Boa Memória», rei de Portugal (1357-1433) Primeiro monarca da dinastia de Avis. Filho natural de D. Pedro I e de uma dama galega chamada Teresa Lourenço, cresceu na corte portuguesa. Nomeado Mestre de Avis pelo seu pai, foi proclamado rei em 1385 pelas cortes de Coimbra, com o apoio da Inglaterra – devido à sua união com D. Filipa de Lencastre – e da burguesia lisboeta. O seu reinado viu-se pejado de contínuos confrontos com o reino de Castela, e as vitórias de Atoleiros e Aljubarrota significaram a consolidação definitiva do reino de Portugal. A conquista de Ceuta em 1415 proporcionou o arranque da expansão ultramarina, e assim, Portugal estabeleceu-se em 1419 na Madeira e em 1432 em Cabo Verde. Durante o seu reinado promoveram-se importantes reformas sociais. 15 EM TORNO DE LEONOR TELES João Lourenço da Cunha, Morgado de Pombeiro (1344-1386) Primeiro marido de Leonor Teles, com quem casou em 1364. Após a dissolução desta união, fugiu para Castela por temer represálias, onde morreu anos depois. Da sua relação com Leonor Teles nasceu um filho, Álvaro da Cunha, que se casou com Brites de Melo. Leonor Teles de Meneses (1350-1386?1405?) Sobrinha de João Afonso Telo, conde de Barcelos e filha de Martim Afonso Teles de Meneses e Aldonça de Vasconcelos, descendia por linha paterna dos reis de Leão e por parte da mãe, dos reis de Castela. Casou muito jovem com João Lourenço da Cunha, herdeiro do senhor de Pombeiro, de quem teve um filho, Álvaro. O matrimónio dissolveu-se por instâncias do rei Fernando I, apaixonado por Leonor desde que esta foi à corte, por ocasião de uma visita à sua irmã, Maria. Esperando a autorização papal, Fernando e Leonor casaram-se em segredo em Leça do Bailio a 15 de Maio de 1372. No mês de Fevereiro seguinte, nasceu Beatriz, herdeira do trono. Pouco depois o casamento foi ratificado de forma pública e oficial. Por morte do seu marido, Leonor Teles converteu-se em regente de Portugal em nome da sua filha Beatriz, casada com João I de Castela, mas o clamor popular acusou-a de adultério pela sua relação com o conde de Andeiro, e após o assassinato deste último, D. João, Mestre de Avis, foi procla16 mado rei. Leonor refugiou-se em Castela, onde foi encarcerada pelo seu genro, João I, no Mosteiro de Santa Clara de Tordesilhas (Valhadolid). Segundo alguns autores, ali veio a falecer três anos depois. Não obstante, Manuel Marques Duarte – e juntamente com ele outros estudiosos desta personagem – defende a tese de que a data efectiva da morte da regente portuguesa foi 1405. Esta possibilidade baseia-se fundamentalmente na Historia de Valhadolid, escrita em 1640 por Juan Antolínez de Burgos, que assinala que Leonor Teles permaneceu na sua prisão de Valhadolid até 1390, o mesmo ano em que morreu João I. Henrique III liberta-a da prisão e permite que esta se instale em Valhadolid, onde chegou a receber o embaixador da coroa de Aragão, D. Guerau de Queralt, que havia previamente solicitado ao jovem rei castelhano que «acatasse e honrasse a rainha D. Beatriz e a rainha D. Leonor de Portugal». Pouco depois, e ainda segundo Antolínez, da sua união com um cavalheiro chamado Zoilo Iñiguez nasceram dois filhos: um varão que morreu na infância, e uma filha, de nome Maria. No seu testamento, Leonor deixou expresso que a sua mansão deveria ser ocupada pelas religiosas de Merced Calzada, hoje desaparecida. Foi sepultada na sua capela, onde havia uma lápide que dizia: «Aqui jaz sepultada a Rainha D. Leonor, mulher do Rei D. Fernando de Portugal: está um infante a seus pés. Mandou rezar duas missas cada semana por si e pela sua filha Beatriz, Rainha de Castela, mulher do Rei Don Juan I e foi fundadora deste convento.» O convento, a igreja e com esta os restos mortais de D. Leonor Teles desa17 pareceram no século XIX para dar lugar às ruas de La Merced e Cervantes, da capital castelhana. Maria Teles de Meneses (1347-1378) Filha de Martim Afonso Teles de Menezes e de Aldonça de Vasconcelos, e como tal, irmã de Leonor Teles. Ao enviuvar de Álvaro Dias de Sousa, residiu na corte portuguesa como camareira da infanta Beatriz, filha de D. Pedro I e de Inês de Castro. Aí conhece o príncipe João de Eça, filho de Inês de Castro, com quem casou em 1374 e de cuja união nasceu Fernando de Eça. Morreu assassinada pelo seu marido em 1378. João Fernandes de Andeiro (1340-1383) João Fernandes de Andeiro nasceu na Galiza e foi conselheiro de Fernando I, que o nomeou conde de Ourém e o destacou como embaixador na corte do duque de Lencastre. Em 1383, actuou como intermediário na concertação do casamento de Beatriz de Portugal com João I de Castela. Casado com D. Mayor de Melo, desta união nasceram duas filhas, Teresa e Sancha. No entanto, estando apaixonado por Leonor Teles, deixou a sua casa e instalou-se na sua residência lisboeta da cadeia do Limoeiro, e por ocasião da morte do rei, no palácio onde coabitou maritalmente com a rainha regente. Morreu assassinado pelo Mestre de Avis em 1383. 18 I A cavalo, rumo a Castela Despois de procelosa tempestade, Nocturna sombra e sibilante vento, Traz a manhã serena claridade, Esperança de porto e salvamento; Aparta o Sol a negra escuridade, Removendo o temor ao pensamento: Assi no Reino forte aconteceu, Despois que o Rei Fernando faleceu. Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV, 1 19 Tordesilhas, Mosteiro de Santa Clara, Janeiro de 1384 Nunca pensei que o destino me levaria a apodrecer nesta cela malcheirosa com pretensões de aposento. Quando a cavalo parti de Portugal fugindo das tropas do Mestre de Avis, fi-lo na esperança de que o rei de Castela, meu genro, me desse refúgio. Como pude enganar-me tanto? Acaso, João I, te basta chamares-te Senhor e rei de Castela e Leão? Terás porventura esquecido o teu interesse em casares com a minha filha Beatriz para que, a meio do teu reinado, conseguisses a coroa portuguesa? A mesma coroa que, se agora me desses o teu apoio, se me acolhesses como mãe da tua esposa e regente de Portugal, seria tua. No entanto, invocando a justiça e a paz dos teus reinos, esqueces o nosso pacto e confinas-me a estas paredes junto à minha fiel Brianda, sem me proporcionar o trato que me pertence de direito como rainha e que me deves como mãe da tua esposa. Já lá vão dez dias desde que aqui cheguei, dez dias enclausurada entre quatro paredes do que julguei ser 21 castelo e é afinal convento, julguei ser residência e é afinal prisão. Mosteiro de Santa Clara. Esqueces que os seus muros foram erguidos para comemorar a Batalha do Salado, aquela em que portugueses e castelhanos unidos combateram ombro a ombro? Quando, hirta de frio e cansada da viagem, atravessei o teu pátio, pareceu-me que os teus edifícios mudéjares me proporcionariam a hospedagem adequada à minha alma fatigada. Mas não foi assim, e as tuas abóbadas, enriquecidas com gessos ornamentais, nada mais são do que as grades que encerram este meu sepulcro em vida. Horas e horas em solidão, ou ainda pior, recolhida entre memórias e na companhia dessas sombras bárbaras e sinistras que invariavelmente me assaltam desde o amanhecer. Silhuetas difusas que surgem da bruma do rio e tomam os corpos dos que acompanharam os meus dias. Num cortejo macabro penetram nos meus aposentos e, uma vez na minha presença, acusam-me, entoando cânticos de reprovação ao som da trágica dança dos mortos. Que quereis, sombras ingratas? Que vos diga que me arrependo? Que vos implore a vossa compaixão? Nunca o farei... fui traidora, menti, intriguei e até incentivei punhaladas alheias... é verdade. Mas tal é o negócio das cortes. Essa é a força que move uma coroa. A ti, meu rei e esposo, D. Fernando, faltava-te ambição e iniciativa, precisamente o que a ti, João Andeiro – meu amor e minha dor –, te sobrava. Apenas tu, Maria, minha doce irmã, provocas arrependimento na minha alma, mas hás-de compreender-me... Nunca quis a tua morte, apenas pretendi afastar 22 o teu marido da coroa, que por lei pertencia à minha filha... foi o destino que assim o decidiu. Procurei apenas o bem para o meu reino, aquele que te pertenceu, Fernando, e que haveria de ser para ti, Beatriz, minha filha... Portugal, por que me pagas assim os meus desvelos? Por que me arrastaste até esta clausura da qual apenas encontro consolo no calmo percurso do rio que avisto da minha janela? O Douro levará até ti, povo ingrato, o eco da minha amargura e talvez então atendas o meu clamor. Ao entardecer, quando as águas do rio, iluminadas pelos raios do sol poente, ganham um trágico reflexo encarniçado, as sombras calam-se... mas então a minha memória tinge-se de sangue. Aquele sangue tépido e viscoso que brotava do peito de João, meu amor, meu deus, meu dono... Por que teve ele de pagar os meus pecados, se o punhal se dirigia apenas à minha coroa? Por que é que a sua sombra não aparece nítida como as outras, mas desfocada pelo véu cruel da morte? – Brianda, traz-me já a escrivaninha para escrever... Hei-de contar à minha filha, a rainha de Castela, que esta minha prisão está povoada de sombras que me acossam... Ou serão soldados embuçados que me cercam? Pouco importa. Beatriz, a minha filha, saberá como há-de socorrer-me... Está frio, muito frio. A tarde cai e a escuridão apossa-se do meu aposento. Os cânticos das freiras na capela chegam até mim e confundem-se com essas vozes ásperas e cruéis que me falam da minha vida. Não quero lembrar-me agora, não. Afastai-vos, fantasmas do passado. Deixai-me só com a minha dor e o meu fracasso. Tudo o que tive, perdi. Que castigo maior mereço? 23