Biografia de Alcipe - Fundação das Casas de Fronteira e Alorna

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Biografia de Alcipe - Fundação das Casas de Fronteira e Alorna
BIOGRAFIA DE ALCIPE
D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre nasceu em Lisboa, em 31 de
Outubro de 1750 e faleceu na mesma cidade a 11 de Outubro de 1839. Era a primeira
filha de D. João de Almeida Portugal, 4º Conde de Assumar e 2º Marquês de Alorna, e
de D. Leonor de Lorena e Távora. Neta dos Marqueses de Távora, supliciados
publicamente em 1759 por suspeitas de envolvimento no atentado ao rei D. José I
ocorrido em 3 de Setembro de 1758, D. Leonor foi encerrada aos oito anos de idade,
juntamente com a mãe e a irmã, D. Maria Rita, então com seis anos, no mosteiro de São
Félix, em Chelas, nos arredores de Lisboa, no dia 14 do mesmo mês. Seu pai havia sido
preso em 13 de Dezembro na torre de Belém tendo sido posteriormente transferido para
o forte da Junqueira. A família permaneceria encerrada e separada durante dezoito anos,
tendo sido libertada apenas em 1777, depois da morte de D. José I e do afastamento do
Marquês de Pombal. Por insistência de D. João de Almeida Portugal, que exigirá a
revisão do seu envolvimento no processo dos Távoras, pouco depois de ter subido ao
trono D. Maria I publicará um decreto (datado de 17 de Maio de 1777) declarando
inocentes os Marqueses de Alorna e restituindo-lhes os privilégios entretanto abolidos.
A circunstância de ter crescido no convento marcou profundamente a
personalidade e a obra de D. Leonor de Almeida, que viveu de forma dramática a
separação do pai e do irmão, D. Pedro, colocado sob tutela directa do Marquês de
Pombal, e se representará a si própria na sua obra poética, como um ser triste, marcado
pelo infortúnio, vítima do despotismo e da tirania. Algum tempo depois da reclusão, em
data difícil de precisar mas que poderá ter sido próxima de 1763, estabeleceu-se uma
correspondência, proibida e secreta, entre D. João e a esposa, depois alargada às filhas e
mais tarde ao filho.
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Estas cartas, que foram parcialmente publicadas em 1941 por Hernâni Cidade e
cuja edição integral se encontra neste momento em preparação com o apoio da
Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, constituem a fonte principal para o
conhecimento dos anos de juventude de D. Leonor e documentam o modo como a
futura Marquesa de Alorna foi construindo a sua personalidade, guiada pelos conselhos
paternos e, sobretudo, por uma sede de conhecimento que a levou a dedicar-se
intensamente à leitura, ao estudo de idiomas (francês, italiano, inglês, latim e árabe) à
aprendizagem da música e da pintura.
Documento vivo do modo como circulavam os livros, mesmo os proibidos, entre
os membros da aristocracia portuguesa, essa correspondência testemunha ainda a grande
difusão que tiveram em Portugal, nos anos 60 e 70 do século XVIII, as obras e as ideias
do Iluminismo francês. Interessando-se, desde muito cedo, pela poesia, D. Leonor
assiste aos outeiros poéticos que se organizavam em Chelas, chegando a participar em
alguns. Ainda durante o tempo em que viveu reclusa, a fama do seu talento poético
corria fora do convento, estimulada por relatos que corriam sobre a poetisa e pela
circulação de textos seus difundidos nos círculos de literatos por autores que a
visitavam. Referimo-nos, por exemplo, a D. Teresa de Mello Breyner, Condessa do
Vimieiro (1739- c. 1793) a qual, para além de visita assídua das encarceradas de Chelas,
manteve um salão literário até cerca dos anos 90 do século (frequentado, entre outros,
por poetas da Nova Arcádia, como Domingos Caldas Barbosa (1738?-1800), Joaquim
Severino Ferraz de Campos (1760?-1813?), Francisco Joaquim Bingre (1763-1856),
etc.). Referimo-nos, ainda a poetas como Francisco Manuel do Nascimento, mais
conhecido pelo pseudónimo de Filinto Elísio (1734-1819), que parece ter sido o
primeiro a atribuir à poetisa o nome literário de Alcipe, a Frei José do Coração de Jesus,
poeta com o nome literário de Almeno e tradutor de Ovídio e amigo de António Ribeiro
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dos Santos (1745-1818), o Elpino Duriense da Arcádia Lusitana. Frequentador de
Chelas era também Frei Alexandre da Silva ou da Sagrada Família (1737-1818), que
Alcipe designa poeticamente por Sílvio, futuro tio de um Garrett então ainda por nascer,
o Dr. Tamagnini, o médico que também era dado à poesia e a quem D. Leonor designa
literariamente por Alceste, o poeta José Ferreira Barroco, designado na obra da autora
por Albano, e muitos outros.
Libertada, tal como a restante família, em 1777, na sequência do perdão
concedido por D. Maria I aos presos políticos, D. Leonor de Almeida frequentará,
durante algum tempo, os círculos literários de então, mas logo em 1778 decide casar,
contra vontade de seu pai, com o Conde de Oeynhausen (1739-1793), alemão, luterano
e de situação financeira pouco próspera, que abjurará da sua fé numa cerimónia pública
de baptismo realizada em 15 de Fevereiro de 1778, na qual foram padrinhos a rainha D.
Maria I e o rei D. Pedro III.
D. Leonor casará em Fevereiro do ano seguinte, mudando-se para o Porto, onde
o marido desempenhou um cargo militar até 1780. Graças à interferência da poetisa
junto da rainha, Oeynhausen será nomeado Ministro Plenipotenciário em Viena de
Áustria, cidade para onde o casal se mudou ainda nesse ano. Tanto quanto se sabe, D.
Leonor de Almeida Portugal e Oeynhausen foi uma presença notada na corte de Viena,
onde estabeleceu relações de cordialidade com o Imperador Joseph II, que a
condecorou, com o papa Pio VI que visitou a cidade nesse período, com Pietro
Metastasio, com o filósofo Moses Mendelsohn e com o músico português Abade Costa,
que dela fala nas suas cartas com apreço. A correspondência trocada com a Condessa do
Vimieiro por esses anos documenta o seu encontro com a cantora portuguesa Luísa Todi
bem como a frequência dos salões vienenses e a amizade com a Condessa Maria
Wilhelmine de Uhfeld, Condessa Thun-Hohenstein (1744-1800). A sua integração nos
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círculos da alta aristocracia da cidade é confirmada pelo facto de o nome de seu marido
figurar na lista dos subscritores dos concertos aí tocados por Wolfgang A. Mozart em
1784.
Apesar da sua integração na vida social e do interesse que a autora manifestou
pela língua e pela literatura alemãs, a permanência de Alcipe em Viena foi
relativamente curta. Com efeito, D. Leonor sai de Viena nos finais de 1784 para se
estabelecer, em Outubro do mesmo ano, em Avinhão. A família Oeynhausen
permanecerá cerca de seis anos no Sul da França, mas sabe-se que em 1787-88 Alcipe
passou longas temporadas em Lisboa sem o marido, durante as quais, para além de
frequentar os salões da Condessa de Vimieiro, procurará mover influências a favor
daquele. Após o regresso a Portugal, em 1790, foi atribuído ao Conde de Oeynhausen o
cargo de governador militar do Algarve, posição que não chegou a exercer, por ter
falecido em 3 de Março de 1793.
A generalidade dos biógrafos conta que depois da morte do Conde de
Oeynhausen D. Leonor de Almeida se teria retirado para as propriedades da família em
Almeirim e em Almada, onde se teria dedicado á educação dos filhos, à beneficência e à
instrução de moças da região. No entanto, a amizade literária com a D. Catarina Micaela
de Lencastre, 1ª Viscondessa de Balsemão (1749-1824) que as suas obras documentam,
parece estreitar-se nesta época e, entre os anos de 1793 e 1802 manteve relações de
intercâmbio literário com alguns poetas da Academia de Belas Letras (associação que
também ficou conhecida pela designação de Nova Arcádia) como Francisco Joaquim
Bingre e outros. É datável do mesmo período o relacionamento com Manuel Maria
Barbosa du Bocage (1765-1805) comprovado não só pela troca de poemas entre ambos
mas, também, pelo facto de o nome da Condessa de Oeynhausen figurar entre os
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subscritores do II tomo das suas Rimas em 1799 e de Manuel Maria lhe ter dedicado o
tomo III das mesmas, impresso em 1804.
Nestes primeiros anos da sua viuvez, a Condessa de Oeynhausen parece ter
gozado de algum favor junto da Corte, apesar de D. Maria I estar já, nessa data, afastada
do poder. Com feito, em 1801, por Alvará de 9 de Novembro, é nomeada Dama de
Honor de D. Carlota Joaquina. No ano seguinte é formalmente convidada a sugerir os
temas que presidiriam à decoração do palácio da Ajuda. Mas a 6 de Outubro de 1802,
por motivos ainda não esclarecidos, mas que se supõe estarem relacionados com a
criação de uma sociedade secreta denominada Sociedade da Rosa, Alcipe é intimada
pelo Intendente Geral da Polícia a abandonar o país. Passará os anos de 1803 a 1814 no
exílio, primeiro em Espanha (até 1804) e depois em Inglaterra, ao que parece envolvida
em actividades de carácter político. É neste país que se relacionará com Madame de
Staël, bem como com o Duque de Palmela, embaixador de Portugal em Londres, a
quem designará por Holsténio na sua poesia. Regressará a Portugal em 1 de Julho de
1814, depois da morte do irmão (ocorrida a 2 de Janeiro de 1813, em Königsberg) e
dedicar-se-á, durante os dez anos seguintes, à reabilitação da memória deste último, que
havia sido condenado por Inconfidência pelo facto de ter comandado a Legião
Portuguesa, integrada no exército napoleónico. Acabou por conseguir a revisão da
sentença e a recuperação dos títulos de Marquês de Alorna e de Conde de Assumar em
1823. O facto de sua cunhada e seus dois sobrinhos serem já falecidos tornou-a herdeira
destes.
Foi sobretudo depois do seu regresso da Grã-Bretanha que Alcipe ocupou um
lugar central na vida intelectual lisboeta. Apesar de ter lutado com dificuldades
financeiras até à data da sua morte, ocorrida poucos dias antes de completar os 89 anos
(em 11 de Outubro de 1839), a Marquesa de Alorna abrirá as portas das várias
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residências onde viveu na cidade de Lisboa a poetas e literatos que a visitaram também
durante as temporadas que passou em Almada e em casa do Marquês de Fronteira, seu
neto, no Palácio de São Domingos de Benfica. A crer nas referências dos autores
contemporâneos que a conheceram nesta fase, D. Leonor tornara-se uma figura central
nas tertúlias literárias da capital, desempenhando o papel de mediadora entre poetas de
gerações diversas, que viam a frequência do seu círculo de relações como um sinal de
prestígio e de legitimação do talento.
Entre os anos 1816 e 1829 Alcipe frequentou também as assembleias que tinham
lugar em casa de Francisca Possolo da Costa (1783-1838), uma escritora trinta e três
anos mais jovem, em cuja casa se juntavam não só personalidades ligadas ao
liberalismo, com as quais o marido desta mantinha excelentes relações mas, também,
outros poetas de várias idades e diferentes percursos ideológicos. Nas Memórias de
Castilho, são referidos os nomes de Belchior Curvo Semedo (1766-1838), que fora
membro da Academia de Belas Letras e contendor de Bocage nos anos 1790, do Conde
de Sabugal (1778-1839) que havia combatido na Legião Portuguesa sob as ordens do
irmão de Alcipe, de Francisco Freire de Carvalho (1779-1854) que Alcipe designa na
sua poesia por Filinto Júnior, e de Domingos Borges de Barros (1780-1855), que viria a
obter o título de Visconde da Pedra Branca e mais tarde desempenharia o cargo de
embaixador do Brasil em Paris. Pela mesma época, encontramos entre os frequentadores
das reuniões da Marquesa de Alorna poetas então muito jovens, como António
Feliciano de Castilho (1800-1875) ou Alexandre Herculano (1810-1877), que
descrevem Alcipe como uma figura tutelar.
Tal como aconteceu com a grande maioria dos poetas seus contemporâneos, D.
Leonor de Almeida não publicou em vida a sua poesia, que foi dada à estampa, em 6
volumes, por suas filhas Henriqueta e Frederica, em 1844, cinco anos depois da sua
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morte. Com o título Obras Poéticas de D. Leonor d’Almeida Portugal Lorena e
Lencastre, Marqueza d’Alorna, Condessa d’Assumar e d’Oeynhausen, conhecida entre
os poetas portuguezes pello nome de Alcipe, esta publicação inclui, para além das obras
poéticas originais da poetisa, as suas traduções de Claudiano, Gray, Goethe, Bürger,
Cronek, Metastasio, Milton, Thompson, Goldsmith, Lamartine, Klopstock, Wieland e
pseudo-Ossian.
A obra de Alcipe é extensa e multifacetada e constitui uma preciosa fonte de
informações sobre os parâmetros estéticos que orientaram a poesia portuguesa na
segunda metade do século XVIII e inícios do século XIX. Nela confluem, a nível
estilístico, práticas herdadas da visão reformadora dos poetas da Arcádia Lusitana
(1756), com outras opções formais mais antigas, que seriam retomadas pelos poetas da
Academia de Belas Letras (1789), como a glosa, o improviso em estrofes de redondilha
e as quadras de rima abcb, idênticas ás utilizadas nas modinhas e lunduns popularizados
por Domingos Caldas Barbosa. Filha do Iluminismo, a Marquesa de Alorna entenderá a
prática poética como uma actividade de utilidade moral e pedagógica, tal como
acontecerá, aliás, com os escritores portugueses das gerações seguintes, que repetirão os
mesmos pontos de vista até meados do século XIX (referimo-nos a Almeida Garrett, a
Herculano e a António Feliciano de Castilho, por exemplo). É nesta linha que
poderemos enquadrar as múltiplas referências aos progressos das ciências disseminadas
na sua obra, as exposições em que procura demonstrar a compatibilidade entre a fé
católica e as leis da Natureza (de que é exemplo cabal a Epístola a Godofredo), bem
como a composição do poema Recreações Botânicas, as traduções da Arte Poética de
Horácio, do Essay on Criticism de Pope, a paráfrases em verso de todo o Saltério e, até,
as traduções de alcance político e teológico, como De Bonaparte e dos Bourbons de
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Chateaubriand e o Ensaio sobre a Indiferença em Matéria de Religião de Lamenais
dados à estampa em 1814 e em 1820, respectivamente.
Com estes temas de reflexão convive, como aliás sucede com a generalidade dos
poetas portugueses que escreveram na viragem do século XVIII para o XIX, a expressão
da sensibilidade característica do século XVIII europeu, ou seja, o gosto particular pela
descrição e encenação dos afectos que escapam ou resistem ao controle regulador da
razão. É nesta linha de pensamento que devem ser situados, segundo cremos, os autoretratos pungentes em que o sujeito de escrita se representa como um ser perseguido
pela desgraça, as descrições da natureza em termos melancólicos ou tenebrosos, o
comprazimento na celebração ou encenação da morte, da noite, da doença, da dor e das
lágrimas, tão frequentes na obra poética de Alcipe que lhe valeram o ser classificada
como poetisa pré-romântica nos anos 60 do século XX. Contudo, uma visão global da
sua produção literária que tenha em conta, simultaneamente, a prática dos poetas seus
contemporâneos e daqueles que se lhe seguiram, parece indicar que tanto o gosto pelas
regras, temas e motivos clássicos, como as manifestações da sensibilidade estão
subordinados, nos seus textos, a uma visão do mundo orientada pelos parâmetros
civilizacionais do Iluminismo, que encaram a razão e a virtude como entidades
reguladoras dos afectos e a poesia como uma actividade ao serviço do ideal pedagógico
de educação para a cidadania.
Vanda Anastácio
Uma versão anterior deste texto foi publicada em Dicionário no Feminino, Lisboa, Livros Horizonte,
2005, pp. 503-506.
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