fio de ariadne

Transcrição

fio de ariadne
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
V. 1
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS
Copyright 2002, by Universidade da Amazônia
REITOR
Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco
VICE-REITOR
Antonio de Carvalho Vaz Pereira
PR”-REITORA DE ADMINISTRA«√O
Maria das Graças Landeira Gonçalves
PR”-REITOR DE ENSINO E GRADUA«√O
Mário Francisco Guzzo
PR”-REITORA DE PESQUISA, P”S-GRADUA«√O E EXTENS√O
Núbia Maria de Vasconcelos Maciel
DIRETORA DO ìCAMPUSî QUINTINO
Marlene Coeli Viana
DIRETORA DO CENTRO DE CI NCIAS HUMANAS E EDUCA«√O
Ana Célia Bahia Silva
ìCampusî Alcindo Cacela
Av. Alcindo Cacela, 287
66035-190 - Belém-Pará
Fone: (91) 210-3000
Fax: (91) 225-3909
F 517f
ìCampusî Senador Lemos
Av. Senador Lemos, 2809
66120-000 - Belém-Pará
Fone: (91) 213-7100
Fax: (91) 224-3643
ìCampusî Quintino
Trav. Quintino Bocaiúva, 1808
66035-190 - Belém-Pará
Fone: (91) 241-8561
Fax: (91) 230-0622
Fio de Ariadne: orientação e iniciação à pesquisa na Graduação.
Belém: UNAMA, 2002
V.1
ISBN 85-86783-39-0
1. Trabalho de Conclusão de Curso - Letras. 2. Iniciação Científica.
II .Título
CDD: 001.42
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS
V. 1
ISBN: 85-86783-39-0
Belém
UNAMA
2002
COMISSÃO EDITORIAL E EXECUTIVA
COORDENAÇÃO
Maria Célia Jacob
PROJETO EDITORIAL
Lucilinda Teixeira
PARECERISTA CONVIDADO
José Ribamar Ferreira Júnior (UFMA)
NORMALIZAÇÃO TÉCNICA
Lanalúcia Soares
GRAVURA DA CAPA: “Labirinto”
Reprodução de um dos desenhos dos
padrões ornamentais indígenas, do livro
A Arte do TranÁado dos Ìndios do Brasil, de Berta G. Ribeiro, Museu Paraense Emílio Goeldi; CNPq, FUNARTE, p.
84. Belém. Falângola Editora.
O FIO DE ARIADNE
“Na mitologia grega, Ariadne é a bela princesa que ajuda o
herói Teseu a se guiar pelo labirinto, onde ele entra para matar o Minotauro, monstro devorador de gente .
Para isso, Ariadne amarra a ponta de um novelo na entrada
do labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói
penetram na emaranhada construção . Morto o Minotauro,
ambos conseguem sair do labirinto, enrolando o fio de volta .
Ensinar a aprender, então, é não apenas mostrar os caminhos,
mas também guiar, orientar o aluno para reconhecer, em meio
ao labirinto, as trilhas que conduzem às verdadeiras fontes da
informação e do conhecimento.”
Marcos Bagno
Lingüísta, professor e escritor
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APRESENTAÇÃO
O
I Encontro de Formação e Iniciação Científica, promovido
pelo Centro de Ciências Humanas e Educação, no qual está inserido o
Curso de Letras, realizado no período de 19 a 30 de novembro de
2000, teve como objetivo básico a transformação do aluno em um cidadão crítico e a formação de um profissional capaz de produzir um texto
científico, resultante da pesquisa sobre um tema relevante, específico de
sua área de conhecimento.
Para ilustrar esse Encontro, e na impossibilidade - de natureza
espacial - de contemplar todos ou um maior número de graduados,
foram indicados à publicação, em um só volume, cinco pesquisas que,
pela qualidade de conteúdo e pelos temas abordados, pudessem traduzir o esforço da totalidade tanto dos orientandos como dos orientadores
que participaram desse momento de culminância das atividades acadêmicas da graduação em Letras.
Em todas essas monografias escolhidas há os dois eixos marcantes
por onde oscila o pêndulo do conteúdo e da metodologia: o quê e o
como pesquisar. O adequado equilíbrio entre ambos deu-lhes a qualidade que reflete de cada um desses autores, no Curso, e que justifica o
conceito máximo atribuído pela banca examinadora.
Ao colocarmos à disposição de leitores e interessados esses cinco Trabalhos de Graduação — A ConfiguraÁ„o do Gauche em
MacabÈa, Uma leitura SimbÛlica do filme Terra Estrangeira, Um
estudo de TransferÍncia de Intensidade, Dora - Uma Estrela de
quatro pontas, uma ponta de estrela ideal, Uma an·lise Constrativa:
ensino de leitura e pr·tica redacional em dois livros did·ticos de
PortuguÍs (5™ sÈrie) ó apresentados ao final do ano letivo de 2000,
reiteramos e tornamos público nosso reconhecimento às pessoas cujo
apoio tornou possível esta publicação: Profª. Ms. Ana Célia Bahia Silva Diretora do Centro de Ciências Humanas e Educação e Profª. Dr. Luci
Teixeira, professora da disciplina Editoração, no Curso de Letras e autora do projeto gráfico deste número.
Maria Célia Jacob
Coordenação do Encontro de
Formação e Iniciação Científica
SUMÁRIO
1 A CONFIGURAÇÃO DO GAUCHE EM MACABÉA ................................... 11
Aluno Autor: Lívia Edicely dos Santos Silva
Orientador: Dr. Amarílis Tupiassu UNAMA
Banca Examinadora: Ms. Josse Fares UNAMA
Ms. Paulo Nunes UNAMA
2 UMA LEITURA SIMBÓLICA DO FILME TERRA ESTRANGEIRA ..... 51
Aluno Autor: Narciso Freitas de Oliveira
Orientador: Ms. Marisa de Oliveira Mokarzel UNAMA
Banca Examinadora: Dr. Lucilinda Teixeira UNAMA
Dr. Ribamar Ferreira Júnior UFMA
3 UM ESTUDO DE TRANSFERÊNCIA DE INTENSIDADE ........................ 85
Aluno Autor: Apolo Mocoto Hino
Orientador: Ms.Antonio Hilton da Silva Bastos UNAMA
Banca Examinadora: Ms. Raimundo JurandY Waghan UNAMA
Ms. Maria do Socorro Cardoso UNAMA
4 DORA – UMA ESTRELA DE QUATRO PONTAS,
UMA PONTA DA ESTRELA IDEAL ............................................................... 131
Aluno Autor: Luciana de Moraes Rayol
Orientador: Ms. Josse Fares UNAMA
Banca Examinadora: Dr. Amarílis Tupiassu UNAMA
Ms. Paulo Nunes UNAMA
5 UMA ANÁLISE CONTRASTIVA: O ENSINO DE LEITURA
E PRÁTICA REDACIONAL EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS
DE PORTUGUÊS (5ª SÉRIE) ......................................................................... 175
Aluno Autor: Saul Cabral Gomes Júnior
Orientador: Ms. Raimundo Jurandy Wanghan UNAMA
Banca Examinadora: Ms. Maria do Socorro Cardoso UNAMA
Dr. Rosa Maria Coelho de Assis UNAMA
Professores Orientadores da
Graduação em Letras
AMARÕLIS ISABEL TUPIASSU
ANT‘NIO HILTON BASTOS DA SILVA
BENILTON LOBATO CRUZ
CLEUMA MATOS NASCIMENTO
EDILA PORTO DE OLIVEIRA
JORGE HABER RESQUE
JOS… GUILHERME DE OLIVEIRA CASTRO
JOS… LUIS RAMOS FIGUEROA
JOSSECL…A FARES
JÚLIA MAU…S
LUCILINDA TEIXEIRA
MARIA C…LIA JACOB
MARIA DAS GRA«AS ALVES SALIM
MARIA DO PERP…TUO SOCORRO CARDOSO DA SILVA
MARISA DE OLIVEIRA MOKARZEL
NELLY CECÕLIA PAIVA BARRETO DA ROCHA
PAULO MARTINS NUNES
PEDRO DE OLIVEIRA ROCHA
RAIMUNDO JURANDY WANGHAN
ROSA MARIA COELHO DE ASSIS
S…RGIO ANT‘NIO SAPUCAHY DA SILVA
Linhas de Pesquisa
ï ENSINO
LÕNGUA E LITERATURA VERN¡CULA OU ESTRANGEIRA NO
ENSINO FUNDAMENTAL E M…DIO
ï CONTRIBUI«’ES DA LING‹ÕSTICA ¿ CONSTRU«√O DO CONHECIMENTO NA
¡REA DA LINGUAGEM.
ï FORMA«√O DO LEITOR
ï PRODU«√O DO TEXTO
ï EDITORA«√O
ï T…CNICAS DE TRADU«√O
ï EXPRESS’ES LITER¡RIAS REGIONAIS
ï LEITURAS SEMIOL”GICAS
DE
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A CONFIGURAÇÃO DO
GAUCHE EM MACABÉA
LÕVIA
EDICELY
DOS
S ANTOS
SILVA
Não é fácil apreender os sentidos circulantes na
ficção de Clarice Lispector. Apesar da espontaneidade,
marca de sua linguagem; apesar do tom despojado,
marca de sua obra, Clarice intimida o analista tal a
profundidade como a escritora mergulha no universo
interior das personagens, paradigmas de todos nós.
Lívia não se intimidou ante à tarefa de compreender
a novela “Hora da Estrela” da qual extraiu pouco (demais)
muito do ouro entranhado nas camadas claras e latentes
do livro. E de tal modo se empenhou Lívia na elaboração
de seu trabalho, que se distinguiu, pelo rigor e seriedade,
pela disposição de penetrar na lógica poética de Clarice.
É sumamente louvável que a Unama se disponha
a oferecer a muitos leitores trabalhos de qualidade
como o de Lívia Edicely dos Santos Silva.
Prof a. Dr. Amarílis Tupiassu
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Lívia Edicely dos Santos Silva
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uando estudamos literatura, em especial o perÌodo
modernista, nos deparamos com uma figura marcante: Clarice
Lispector.
Ao selecionar o assunto para desenvolver meu
trabalho de conclusão de curso, naturalmente, Clarice se
insurgiu como o assunto de eleição. Ou, melhor dizendo, seu
texto, tão belo quanto complexo, impressionou-me pela temática
intimista tão pouco explorada tão a fundo, na literatura
brasileira, quanto por seu estilo inovador de linguagem. Clarice
recorre constantemente, em suas obras, aos processos que
formam a epifania. Este processo se tornou sua marca
registrada, que ela adotou como procedimento básico de sua
escritura.
O objetivo maior deste trabalho é investigar o modo
como Clarice organiza seu texto através da linguagem
metafórica, da identificação do autor-narrador com a
personagem criada pelo doador da narrativa, e, em particular,
investigar o modo como resolve a dificuldade do processo
criativo, que faz vibrar o leitor.
Em A hora da estrela, novela a ser analisada
para o trabalho de conclusão de curso, focalizar-se-ão os eixos
do universo clariciano como uma escritura metafórica inscrita
entre o dilema de existir e escrever, entre razão e sensibilidade.
O livro em pauta trata especificamente da figura
do gauche, que encontrou espaço na literatura brasileira,
principalmente, a partir da publicação do “Poema de Sete,
Faces” de Carlos Drummond de Andrade. O termo gauche
remete à idéia de “inepto”, “torto”, servindo portanto para
qualificar Macabéa. .
A intenção deste estudo é aguçar a vista para o
enquadramento do texto clariciano e, em especial, para o
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A Configuração do Gauche em Macabéa
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realizado em A hora da estrela. Como monografia, mostra
que o texto é uma “epifania [palavra que na seqüência deste
estudo será elucidada] do ato de escrever, uma epifania da
própria escritura, um poema sobre a agonia de escrever”1 .
Sendo que a palavra é o centro maior desse livro, sua
personagem encoberta.
Com isso, enfim, mostrarei de que modo a obra da
autora de origem ucraniana “coloca no mesmo patamar a
questão da criação e o conhecimento de si mesma”2 . Mostrarei
o que tece a excelência de seu texto sempre venturoso e
estimulante, sempre aliciador e valioso.
I – Inserção de A Hora da Estrela na Obra Ficcional de
Clarice Lispector
Em janeiro de 1977, Clarice concede uma
entrevista à TV Cultura, o que lhe era pouco habitual, com o
compromisso de só ser transmitida após sua morte. Nessa
entrevista, dada ao jornalista Júlio Lerner, a escritora afirma
que tinha acabado de escrever uma novela com treze capítulos.
Fazendo um certo mistério, resume um pouco a obra.
… a histÛria de uma moÁa nordestina, de
Alagoas, t„o pobre que sÛ comia cachorro
-quente. A histÛria n„o È sÛ isso, n„o.
A histÛria È de uma inocÍncia pisada,
de uma misÈria anÙnima3 .
1
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. 1979, p.211.
RODRIGUES, Lílian de Oliveira. Clarice através do Espelho. 1997. p.02.
3
LISPECTOR Apud GUIDIN, Márcia Lígia. A hora da estrela – Roteiro de
Leitura. 1994. p.18.
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Júlio pergunta à Clarice qual o estímulo para
escrever o texto, e ela declara abertamente que se trata de
memória autobiográfica e o processo de inspiração em que se
baseou:
Morei no Recife, [....] me criei no Nordeste.
E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira
dos nordestinos no campo de S„o Cristov„o
e uma vez eu fui l·. DaÌ comeÁou a nascer a
idÈia. [....] Depois eu fui a uma cartomante e
imaginei... que seria muito engraÁado se um
t·xi me pegasse, me atropelasse e eu morresse
depois de ter ouvido todas essas coisas boas.4
Ent„o daÌ foi nascendo tambÈm a trama da histÛria.
Essa novela
permite desvendar, por uma sorte
de efeito retroativo, certas articulações
da obra inteira de que faz parte, dentro
do singular processo criador da
ficcionista, centrado na experiência
interior, na sondagem dos estados da
consciência individual.5
4
Idem, p.19.
NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem – uma leitura de Clarice
Lispector. 1989. p.160.
5
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I.1 A Presença da Figura Feminina
Clarice mostra em sua obra, entre outras
preocupaÁões, o retrato do ser humano e, sobretudo, o do ser
feminino.
Considerando-se que o perfil de Macabéa é
construído, fundamentalmente, com base na ironia, pode-se asseverar que, em A hora da estrela, a feminilidade é abordada
através de um jogo intratextual, definido por Affonso Romano de
Sant’ Anna como “paródia”6 . A personalidade de Maca opõe-se
à das demais personagens femininas que protagonizam as narrativas claricianas.
Essa oposição pode ser demonstrada ao compararse Macabéa, por exemplo, com Ângela, a protagonista de Um
sopro de vida. Esta é uma escritora rica e bem-sucedida,
enquanto que aquela é ignorante, feia, desnutrida, virgem e
ingênua. No seguinte trecho, Rodrigo S.M., dotado de visão
onisciente, explicita:
6
Segundo Affonso Romano de Sant’Anna em Paródia, Paráfrase e Cia, o termo
paródia designa o efeito de linguagem que, podendo ser intertextual ou intratextual,
baseia-se na contigüidade, consistindo no trabalho de ajuntar pedaços em diferentes
partes da obra de um ou vários artistas. Citando Shipley, Sant’Anna distingue três
tipos de paródia: a verbal, que ocorre com alteração de uma ou outra palavra do
texto; a formal, em que a zombaria se mostra através do estilo e dos efeitos
técnicos de um escritor; e a temática, em que a forma e o espírito de um autor são
caricaturizados. A nosso ver, em A hora da estrela se patenteiam os dois
últimos tipos parodísticos citados, pois, nessa narrativa, a paródia possui teor
irônico e funciona como um meio de caracterizar o perfil feminino constante nas
demais obras claricianas.
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Nascera inteiramente raquÌtica, heranÁa do sert„o. [....]
Com dois anos de idade lhe
haviam morrido os pais de
febres ruins no sert„o de
Alagoas, l· onde o diabo perdera as botas. Muito depois
fora para MaceiÛ com a tia
beata, única parenta sua no
mundo. (HE, 28)
A relação parodística estabelecida entre Macabéa
e as outras protagonistas lispectorianas se evidencia, também,
na estrutura interna de A hora da estrela. Constata-se este
fato ao atentar-se à personagem Glória, que traz no próprio
nome a insígnia do poder e da sublimação. Assinala-se, deste
modo, a supremacia de Glória em relação à nordestina, que,
sendo feia e ignorante, mantém-se em um plano submisso
devido à beleza e ao sucesso de Glória. Entre esta personagem
e outras de Clarice Lispector, permite-se um paralelo. A título
de exemplificação, faça-se uma analogia entre a colega de
trabalho de Macabéa e G.H., protagonista de A paixão
segundo G. H., escultora bem – sucedida e de vida
independente.
No decorrer de quase toda a novela, Rodrigo S. M.
demonstra a falta de saber própria de Macabéa. Para ele, a
lucidez de Macabéa, uma lucidez limitada ao presente imediato,
restringe-se somente ao superficial. No trecho abaixo, ele relata
que:
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.... n„o saber pode parecer ruim
mas n„o È tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguÈm ensina cachorro a abanar
o rabo e nem a pessoa a sentir
fome; nasce-se e fica-se logo sabendo (HE, 29)
Como se vê, Macabéa, nas entrelinhas, vai formar
um paradigma com a animalidade irracional, a que se move só
pelo instinto.
Em suma, o caráter parodístico de M a c a se
patenteia ao observar-se que Clarice Lispector, ao retratar o
ser feminino em suas obras, atribui à mulher inteligência e
cultura. Entretanto, a nordestina de A hora da estrela não
possui esses atributos; é apenas uma mulher que sobrevive
por meio de seu humilde trabalho, sua única fonte de
subsistência: a função de datilógrafa.
Ressalte-se, no entanto, que o efeito parodístico
sucede somente no que diz respeito ao aspecto físico-social de
Macabéa, visto que, assim como as demais protagonistas das
narrativas lispectorianas, a nordestina é essencialmente
solitária. As mulheres representadas nas obras de Clarice são
seres que, mesmo cultas ou ignorantes, intelectuais ou alienadas
vivem frustadas, pois não conseguem conviver a contento com
a sociedade, bem como não possuem um desejável
relacionamento familiar. Destaca Guidin (1994. P.60): “A cultura
urbana, com seus reflexos é um fardo que arrasta a uma
introspecção problemática e agônica”. Isto nos revela que, para
Clarice, não importa tanto o exterior e sim, muito mais, o
introspectivo, ou seja, a análise do “eu”.
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Macabéa mantém um laço indissolúvel com as
demais mulheres da obra clariciana: a busca da resposta à
interrogação “quem sou eu?”. Esta interrogação é respondida
com base na projeção que a mulher faz do homem como
principal ícone do seu objetivo: a inserção no universo cultural
vigente.
I.2 A Busca da Construção de Identidade
Na novela A hora da estrela, bem como em
outras obras lispectorianas, acentua-se a busca de identidade
das personagens principais.
Expõe Nunes (op. cit., p.99):
Autoconhecimento e express„o, existÍncia e liberdade, contemplaÁ„o e
aÁ„o, linguagem e realidade, o eu e o
mundo, conhecimento das coisas e
relaÁões intersubjetivas, humanidade
e animalidade, tais s„o os pontos de
referÍncia do horizonte de pensamento que se descortina na ficÁ„o de Clarice Lispector.
Essa procura de identidade é um indicador da
presença de ecos existencialistas na obra clariciana. Este
aspecto inscreve-se, predominantemente, na presença
constante do espelho no universo ficcional da escritora.
O espelho, recurso metafórico bastante utilizado
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por aquela autora, é o objeto através do qual as personagens
buscam o auto-reconhecimento, a exemplo de Ângela, em Um
sopro de vida, e Macabéa, em A hora da estrela.
Pode-se observar que Macabéa, ao olhar para o
espelho, não encontra neste o reflexo de sua imagem. Por duas
vezes, só conseguiu ver outras imagens, a saber: a do narrador
e a de Marylin Monroe. Em uma outra vez, a nordestina olha
para o espelho e não vê imagem alguma, corroborando-se a
inexistência de sua identidade.
Permite-se, aqui, uma relação com o mito de
Narciso, que, ao venerar sua própria beleza, apaixonou-se por
seu reflexo. Tanto no caso de Narciso quanto no de Macabéa,
estabelece-se uma busca pela projeção da auto-imagem no
espelho, sendo que, enquanto o mito grego almeja a autoafirmação de sua vaidade, a nordestina procura em seu reflexo
o autoconhecimento.
Em A hora da estrela, o espelho funciona como
um elo, uma aderência entre o narrador e a protagonista da
narrativa. Neste caso, é o narrador que se projeta em Maca, já
que esta não tem identidade. Deste o início da novela, Rodrigo
S. M. destaca que sua existência depende inteiramente da
história a ser narrada, sem a qual não há motivo para que ele
viva. Tanto isto é fato, que, ao relatar a morte da protagonista,
ele assume que morreu junto com ela: “Macabéa me matou.”
(HE, 86)
Em A hora da estrela, estabelece-se uma
relação dialética de inter-dependência entre Macabéa e o
narrador. Assim, Rodrigo S. M. existe somente para narrar
a estória, Macabéa não teria sua trajetória relatada se não
fosse o narrador. É este que possibilita que a nordestina –
que não possui passado, presente nem futuro – se constitua
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um ser histórico, no sentido heideggeriano de ser-no-mundo7 .
O fato de a existência de Macabéa estar arraigada ao
narrar de Rodrigo S. M. é o primeiro sinal, em A hora da estrela,
de uma constante no universo ficcional lispectoriano: a busca de
construção da identidade feminina através da projeção no homem.
À procura da resposta à interrogação “quem sou
eu?”, as personagens femininas claricianas projetam-se no
homem, elegendo-o ícone do universo cultural do qual almejam
fazer parte.
Na maioria das obras de Clarice, sublima-se o ser
masculino, colocando-o como referência à mulher. Citem-se
alguns exemplos, extraídos da obra clariciana, de personagens
masculinos cujos nomes aludem a mitos e heróis: Perseu, de A
cidade sitiada; Martim de A maçã no escuro; e Ulisses de
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Nestas
narrativas, a figura do homem confere identidade às
personagens femininas, através da figura do pai, do professor
e do marido.
Guidin (op. cit.) assinala que Macabéa reproduz
ironicamente essa mesma projeção ao relacionar-se com
Olímpico de Jesus, cujo nome, por exemplo, só se lembra de
perguntar depois de vários encontros.
Para Macabéa, Olímpico é o ápice do sucesso
humano. Ela o vê como um ser inabalável, pois a ele estão
atreladas a feminilidade e o anseio por ascensão social da
nordestina. Esta última aspiração de Macabéa é retratada no
seguinte trecho da novela:
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Heidegger define ser-no-mundo como o ser que possui uma história, uma
vivência determinada pelo convívio com os outros indivíduos em sociedade. (cf.
Aguiar e Silva, 1976).
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Quando OlÌmpico lhe dissera
que terminaria deputado pelo
Estado da ParaÌba, ela ficou
boquiaberta e pensou: quando
nos casarmos ent„o serei
uma deputada? (HE, 47)
Na passagem acima, ao entender seu destino a
partir da afirmativa de Olímpico, Macabéa demonstra, além do
anseio por ascender socialmente, toda a sua ignorância, pois
concebe que o matrimônio garante à mulher o mesmo cargo
público que o do marido. Patenteia-se, portanto, que a identidade
da nordestina é configurada a partir do perfil de Olímpico.
I. 3. A linguagem metafórica
A escrita de Clarice Lispector peculiariza-se por ser
composta utilizando-se uma linguagem metafórica.
Em determinadas passagens de A hora da
estrela, evidencia-se um nível de linguagem que se alça da
denotação, ou seja, do sentido puramente informativo,
consensual da língua. Praticando-se este uso, estabelece-se a
conotação, isto é, o sentido figurativo, simbólico da língua. Na
obra
lispectoriana,
a
conotação
manifesta-se,
predominantemente, através da metáfora, de tal modo que esta
figura de linguagem, por meio da qual real e imaginário se
conjugam, acaba por constituir-se no principal recurso estilístico
à arquitetura verbal da autora.
Segundo Jakobson (1988), é a metáfora que
confere poeticidade a um escrito, pois a integração de termos
representativos ao texto, a qual ocorre no plano paradigmático,
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proporciona a expressão do Belo por meio do código lingüístico.
Cite-se um trecho de A hora da estrela em que se patenteia
a utilização metafórica da língua:
.... o que eu vou escrever j· deve
estar na certa de algum modo
escrito em mim. Tenho È que
me copiar com um delicadeza de
borboleta brancaî. (HE, 20)
Devido à presença essencial da metáfora nos textos
de Clarice Lispector, pode-se afirmar que o gênero literário
produzido por essa autora funde prosa e poesia, resultando
em uma espécie prosaica de intensa expressividade poética.
Essa carga poética se faz presente em toda a
produção ficcional lispectoriana. A título de exemplificação,
mencionar-se-ão, respectivamente, um trecho de Perto do
Coração Selvagem e outro de A Cidade Sitiada:
Fechou os olhos, vagarosamente foi descansado. Quando os
abriu recebeu um pequeno choque. E durante longos e profundos segundos soube que aquele
trecho de vida era uma mistura
do que j· vivera com o que ainda
viveria, tudo fundido e eterno. Estranho, Estranho (...) (PCS, 79)
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A praÁa estava nua. T„o
irreconhecÌvel ao luar que a
moÁa n„o se reconhecia. TambÈm Felipe estacara aliviado: malditos! Exclamou empurrando o
quepe para tr·s. S·bado era noite de v·rios mundos: o tenente
tossiu transmitindo-lhes sucessivamente a voz sem palavras.
(CS, 28 )
No universo ficcional de Clarice Lispector, atribuise à linguagem o caráter de uma barreira concreta a ser
ultrapassada a fim de que a mensagem seja de fato transmitida.
O único instrumento de que se dispõe para esse
exercício de sobrepujança é a própria linguagem, já que é por
meio desta que a mensagem se expressa textualmente.
Estabelece-se, portanto, a tentativa incessante de superar o
potencial comunicativo do código lingüístico através da própria
linguagem.
Na ficção de Clarice, como ressalta a própria
autora, as entrelinhas assumem papel muito mais importante
que o das próprias palavras. A estas, resta somente se
manifestarem com o máximo de omissão, possibilitando que o
entredito prevaleça sobre o dito. Isto se faz notar ao
observarem-se, a seguir, as palavras de Rodrigo S. M.:
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... esta histÛria ser· feita de
palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases (HE, 14)
Atente-se, agora, à seguinte passagem de A
paixão segundo G.H.:
A linguagem È o meu esforÁo
humano. Por destino tenho que
ir buscar e por destino volto com
as m„os vazias. Mas ñ volto
com o indizÌvel. O indizÌvel sÛ
me poder· ser dado atravÈs
do fracasso de minha linguagem. SÛ quando falha a construÁ„o È que obtenho o que ela
n„o conseguiu. (PSGH, 50)
Percebe-se, na citação acima, o sentimento de
impotência de G.H. ao utilizar-se de sua linguagem. Esta é concebida
como um recurso inútil ante a densidade da intenção comunicativa.
Entretanto, trata-se do único instrumento que a personagem, em
seu “esforço humano”, possui para tentar, debalde, exprimir o
indizível.
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Dessa forma, na ficção lispectoriana, institui-se um
dualismo entre o verbalizável e o não-verbalizável, assinalado
por Nunes (1995, p.86):
Viver n„o È relat·vel: o momento da vivÍncia, instant‚neo, escapa ‡ palavra que expressa.
Viver n„o È vivÌvel: a narrativa,
enlace discursivo de significaÁões, recria aquilo que se quis
reproduzir. E como reproduzir o
instante do Íxtase, mudo, sem
palavras, que remonta a um
mundo, sem palavras, que remonta a um mundo n„overbaliz·vel?
Essa relação dual confere um cunho metafórico à
linguagem, visto que a esta se impõe um processo de autosuperação, de transcedência de si mesma, que resultará em
seu próprio fracasso (como destaca G. H.), único modo de
satisfazer-se plenamente a necessidade expressiva.
I. 4. A Instauração da Epifania
Nunes (1995 b, p. 80) é quem nos fornece o
conceito de epifania:
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Do grego epiphanei: manifestaÁ„o, apariÁ„o. No sentido religioso, manifestaÁ„o da divindade no mundo sensÌvel para os
olhos espirituais. Termo generalizado poÈtica e esteticamente como iluminaÁ„o súbita, instant‚nea, fora do tempo.
A epifania permeia, de uma maneira global, a obra
de Clarice Lispector. Devido às personagens desta autora
apresentarem a ânsia existencialista de encontrar a si mesmas,
o efeito epifânico funciona como um meio de, ausentando-se por
instantes do mundo ao qual não se integram, alcançarem o
autoconhecimento. Este lhes chega por meio da “revelação”, da
“iluminação súbita”, acontecimento que vem demonstrar o
aspecto mítico inerente à escritura lispectoriana.
No caso de A hora da estrela, o estabelecimento
da epifania ocorre quando se dá a morte de Macabéa:
AÌ MacabÈa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu.
Disse bem pronunciado e claro:
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Quanto ao futuro.
Ter· tido ela saudade do futuro?
OuÁo a música antiga de palavras e palavras, sim, È assim.
Nesta hora exata MacabÈa sente um fundo enjÙo de estÙmago
e quase vomitou, queria vomitar
o que n„o È corpo, vomitar algo
luminoso. Estrela de mil pontas.
(HE, 85)
Somente no instante da morte, a nordestina
consegue alçar-se do tempo cronológico (cf. Nunes, op. cit.),
que a prendia ao suceder dos fatos, ao cotidiano ininterrupto,
restringindo o cômputo de seu viver ao “tic-tac-tic-tac da RádioRelógio”.
No momento em que deixa de viver, Macabéa obtém
a resposta à obstinada pergunta que perpassa sua vivência:
“quem sou eu ?”. O instante da morte anula o desconhecimento
que a alagoana tinha de si mesma, o que se deixa expressar
através de suas últimas palavras: “ – Quanto ao futuro”. (HE, 85)
Conforme ressalta Sá (1979, p.211), A hora da
estrela, em si, é “uma epifania do ato de escrever”. O anseio
de atingir a auto-revelação por intermédio da transcedência
que se manifesta ao longo de toda a novela, por meio da ação
do narrador. Assim como Macabéa se conheceu ao morrer,
Rodrigo S. M. desvela a escritura no decorrer da narrativa,
utilizando a poeticidade como um recurso para que a palavra
revele a si mesma:
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Ela estava enfim livre de si e de
nÛs. N„o vos assusteis, morrer È
um instante, passa logo, eu sei
porque acabou de morrer com a
moÁa. Desculpai-me esta morte.
[...] Mas eis que de repente sinto
o meu último esgar de revolta e
vivo: o morticÌnio dos pombos!!!
Viver È luxo. (HE, 86)
Na ficção clariciana, outro momento epifânico
marcante é quando a protagonista de A Paixão Segundo G.H.
está prestes a cometer o assassínio de uma barata:
Como chamar de outro modo
aquilo horrÌvel e cru, matÈria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para
dentro de mim em n·usea seca,
eu caindo sÈculos e sÈculos dentro de uma lama, e nem sequer
lama j· seca mas lama ainda
úmida e ainda viva, era uma
lama onde remexiam com lentid„o insuport·vel as raÌzes de minha identidade. (PSGH, 55)
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Às vésperas de assassinar definitivamente a barata,
G. H. põe na boca a massa branca que transbordava do insento
moribundo. Isto lhe causa um arrebatamento extremo, um
êxtase que a torna alheia, por um prolongado tempo, de si
mesma. Ela se projetara na barata; esta, à beira da morte, a
imbuíra de autoconhecimento. O contato com a excreção do
inseto lhe proporcionara, enfim, a auto-revelação.
A constância da epifania, que assinala o aspecto
mítico da escritura lispectoriana, aproxima Clarice,
estilisticamente, de Lygia Fagundes Telles, outra prosadora
modernista que empreende a sondagem psicológica do
universo humano. Na obra de Lygia Fagundes Telles, o momento
epifânico se manifesta, por exemplo, no conto “Natal na Barca”,
quando a protagonista, em um momento transcendentalmente
iluminado, percebe que sua companhia de viagem acredita
em Deus.
I.5. A Narrativa Monocêntrica
A hora da estrela apresenta o monocentrismo
que peculiariza o estilo narrativo lispectoriano.
Macabéa é a força motriz dessa novela: as
aspirações, as frustrações, a visão de mundo da nordestina
consistem nos fatores que impulsionam a narrativa. É para se
opor às opiniões e crenças da protagonista que outras
personagens surgem, a exemplo de Olímpico, sempre contrário
ao fato de Macabéa não fazer uso do raciocínio lógico para a
compreensão da realidade.
É na alagoana que se encontra o foco da narrativa:
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De uma coisa tenho certeza:
essa narrativa mexera com uma
coisa delicada: a criaÁ„o de uma
pessoa inteira que na certa est·
t„o viva quanto eu. (HE, 19)
A novela trata-se, com efeito, da biografia de
Macabéa. Esta, que não possui identidade, tem sua história
construída a partir da narrativa, que, como diz o próprio
narrador, consiste na “criação de uma pessoa inteira”.
Ao relatar a história da nordestina, o narrador
realiza um empreendimento historicista, focalizando em
Macabéa o seu ofício de narrar a procedência e o
desenvolvimento de um ser em sociedade. Rodrigo S. M. atribui
um caráter exegético à sua narrativa, pois cada relato de
vivência de Macabéa é perpassado pela intenção de explicar
justificar os atos praticados pela alagoana, cuja análise
comportamental acaba por reger a história narrada.
Assim como Macabéa, Joana é uma personagem
à qual se destina uma posição hegemônica na narrativa.
Assinala Nunes (op. cit., p.19):
E na experiÍncia interior da protagonista, Joana, que a aÁ„o romanesca est· centrado. Os episÛdios da primeira parte de Perto do CoraÁ„o Selvagem, sem
traÁo de intriga ou enredo, fundem lembranÁas e percepÁões
moment‚neas, idÈias gerais abstratas e imagens.
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No universo ficcional clariciano, a narrativa
monocêntrica por excelência é Um sopro de vida. Nesta obra,
o aparente diálogo entre Ângela Pralini e o Autor consiste, na
realidade, em um monólogo, já que o Autor é apenas uma
personagem criada pela protagonista para escrever um
romance sobre si mesma. Ângela é, simultaneamente, a
narradora e o motivo da narração. Esta, sendo efetuada de
modo homodiegético8 , circunscreve-se à exposição dos juízos
e valores da protagonista.
II. O Sentido do termo gauche
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche
na vida.
Na estrofe acima, transcrita do “Poema de Sete
Faces” (vide anexo 3), de Carlos Drummond de Andrade,
evidencia-se a presença do termo gauche.
Na estância supramencionada, a palavra “torto” e a
expressão “vivem na sombra” - que exprimem significações
relacionadas à contrariedade, à oposição a uma realidade
instituída – antecedem o sentido expresso por g a u c h e ,
proporcionando a compreensão do significado desse termo, ainda
que este seja um estrangeirismo.
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A narrativa homodiegética é aquela cujo narrador “é a entidade que vincula
informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que,
tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações
de que carece para construir o seu relato”. (Reis & Lopes, 1988, p.124)
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Pode-se traduzir, o vocábulo gauche, originário do
francês, como “esquerdo” em Português. Em sentido conotativo,
o termo pode significar “acanhado”, “inepto”, que designa o
homem às avessas, o “torto”, aquele que está afastado do
mundo real que o cerca, e não consegue estabelecer uma
satisfatória comunicação.
Em A hora da estrela, a personagem
protagonista, de nome Macabéa, apresenta-se ali inserida como
um ser inadaptável ao meio em que vive, ou seja, não possui as
características convencionais para um bom relacionamento em
sociedade.
Sua falta de percepção física acompanha a
psicólogica. Começa com o fato de ela ser vítima da sociedade
consumista e da indústria cultural: gostava de colecionar
anúncios; comer cachorro-quente e tomar coca-cola. Tinha
grande adoração pelo desconhecido, como no caso da palavra
“efemérides”, porém nunca procurava saber, com efeito, o
significado desse termo, bastava apenas aceitar-lhe a existência
e admirá-lo à distância.
Macabéa não conseguia se adaptar à cidade
grande – Rio de Janeiro - , visto que seu comportamento não
se enquadrava nos padrões impostos pelos indivíduos, com
quem se relacionava. A personagem era um ser de difícil
comunicação, sua ingenuidade fazia com que as pessoas se
afastassem dela, não possuía nenhum tipo de atributo
intelectual, suas únicas informações eram obtidas através da
Rádio Relógio, a exemplo do conhecimento do fato de “que o
Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus.”
(HE, 37)
Rodrigo S. M., narrador da novela, aclara o
deslocamento generalizado da personagem no trecho abaixo:
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.... ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. SÛ vagamente tomava conhecimento
da espÈcie de ausÍncia que tinha de si mesma. (HE, 24)
Carregava, desde o seu nascimento, o peso de não
saber que era peça dispensável à sociedade em que vivia.
A nordestina Macabéa tinha aparência física
diferente dos demais personagens citadinos; suas
características corporais não atraíam nenhum homem. A ela,
era negado até mesmo o dom da maternidade. “Macabéa tinha
ovários murchos como um cogumelo cozido.” (HE, 58 e 59)
O caráter anti-estético e Macabéa se manifesta,
com muita propriedade, através das manchas espalhadas pelo
seu rosto.
No espelho distraidamente
examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas
chamavam-se panos, diziam
que vinham do fÌgado. DisfarÁava os panos com grossa
camada de pÛ branco e se ficava meio caiada era melhor
que o pardacento. (HE, 27)
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A personagem também não possuía higiene alguma;
seu mau cheiro incomodava até mesmo suas próprias colegas
de quarto. O narrador exprime: “Ela toda era um pouco encardida
pois raramente se lavava” (HE, 27). Fazia de suas vestimentas
instrumentos pelos quais demonstrava ainda mais o seu
desencanto.
De dia usava saia e blusa, de
noite dormia de combinaÁ„o.
[...] Assoava o nariz na barra
da combinaÁ„o. N„o tinha
aquela coisa delicada que se
chama encanto. (HE, 27)
Desse modo, torna-se personagem gauche “torta”
de tanto tentar ajustar-se num mundo que tanto a repele, isto
é, está à esquerda dos acontecimentos, é indivíduo
marginalizado, desajustado como os personagens que
Drummond criou em sua obra.
III. Macabéa: Um Ser Deslocado Ante o
Mundo
A nordestina Macabéa, personagem principal da
novela em questão, carrega no nome o peso de não saber
engajar-se socialmente e não conhecer-se introspectivamente.
A constância da alagoana no mundo ocorre somente por meio
da palavra, visto que o verbo é o intermediário entre Rodrigo
S.M. e o leitor, e entre o leitor e Maca.
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III.1. Interpretação Parodística do nome
“Macabéa”
MacabÈa, sendo uma nordestina desnutrida e sem
identidade prÛpria, opõe-se aos Macabeus, povo citado na BÌblia,
peculiarizado pelo vigor e auto-suficiÍncia. Diante desta oposiÁ„o,
instaura-se um efeito irÙnico, evidenciando-se, portanto, a parÛdia
construÌda a partir da atribuiÁ„o do nome ìMacabÈaî ‡ personagem
lispectoriana. Como exemplo deste fato, cite-se o trecho a seguir:
- E, se me permite, qual È mesmo a sua graÁa?
- MacabÈa.
- Maca, o quÍ ?
- BÈa, foi ela obrigada a completar.
- Me desculpe mas atÈ parece doenÁa, doenÁa de
pele. (HE, 43)
III. 2. Isolamento Social
O isolamento social de Macabéa manifesta-se,
principalmente, através da alegoria. Esta é assim definida por
Moisés (1982, p.15)
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Etmologicamente, a alegria consiste num discurso que faz entender outro, numa Linguagem
que oculta outra (....). Podemos
considerar alegoria toda concretizaÁ„o, por meio de imagens, figuras e pessoas, de idÈias, qualidades ou entidades abstratas.
O narrador da história refere-se, espantado, à
pobreza e à miséria que Macabéa vive no ambiente social:
Como a nordestina, h· milhares de moÁas espalhadas por
cortiÁos, vagas de cama num
quarto, atr·s de balcões trabalhando atÈ a estafa. N„o
notam sequer que s„o facilmente substituÌveis e que tanto existiriam como n„o existiriam. (HE, 14)
O caráter alegórico de Macabéa se evidencia ao
observar-se que, a esta personagem, subjaz a miséria existente
no Nordeste. Por esta razão, essa personagem lispectoriana,
com sua realidade, retrata os seres que habitam aquela região,
pois sua trajetória está atrelada, entrelaçada à vivência dos
nordestinos. Daí porque Portela (apud Guidin, op. cit.) classifica
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a protagonista de A hora da estrela como uma ‘alegoria
regional’.
Ao observar-se que Macabéa é um recurso literário
para camuflar-se, velar-se a denúncia de uma realidade – a
miséria nordestina – nota-se que, em A hora da estrela,
emerge o Dasein. Este termo, que integra a terminologia de
Heidegger, designa o estar-no-mundo atrelado ao senso de
engajamento, de compromisso com a comunidade humana,
acabando por consistir no estar-com-os-outros (cf. Aguiar e Silva,
1976).
O engajamento, apontado por Tavares (1991) como
uma das funções da literatura, está explicitamente presente
nas páginas iniciais da novela, nos quais o narrador evidencia a
origem espacial de Macabéa:
Como È que sei tudo o que vai
se seguir e que ainda o desconheÁo, j· que nunca o vivi? … que
numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdiÁ„o no rosto de uma
moÁa nordestina. Sem falar que
eu em menino me criei no Nordeste. (HE, 12)
Dessa forma, o isolamento social de Macabéa é o
isolamento de uma classe. O hipônimo “nordestina”,
constantemente empregado pelo narrador, denuncia: Macabéa
é uma figura metonímica, pois sua exclusão nos remete ao
alijamento de um todo - os sertanejos do Nordeste.
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O espírito engajado que traspassa A hora da
estrela se patenteia, também, ao perceber-se, nesta novela, a
constância da zoomorfização (cf. Sant’Anna, 1990), processo
através do qual as personagens humanas, tomando atitudes
de bichos, convertem-se em autênticos animais, conforme se
pode constatar na passagem a seguir:
O rapaz [OlÌmpico] e ela
[MacabÈa] se olharam por entre
a chuva e se reconheceram
como dois nordestinos, bichos
da mesma espÈcie que se farejam. (HE, 43)
A colocação das personagens supramencionadas no
mesmo nível que o dos animais – processo presente, também, na
novela Vidas secas, de Graciliano Ramos – revela a intenção de
expor a condição subumana da vivência dos nordestinos.
O alijamento imposto pela sociedade a MacabÈa faz com
que esta adote a R·dio RelÛgio como uma espÈcie de refúgio do meio
que a despreza. O ìtic-tac-tic-tacî da R·dio RelÛgio, adquire, para a
nordestina, aspecto de um microcosmo, um mundo particular no
qual se resguarda do macrocosmo que n„o a aceita.
As afirmações fornecidas pela Rádio Relógio
proporcionam à Macabéa a sensação fenomenológica de
conhecer, que lhe é negada pela sociedade. A aquisição dessa
sensação acarreta que a nordestina sequer questione as
informações recebidas, elegendo a Rádio como fonte inesgotável
e irrefutável de saber.
Essa rádio termina por ser o refúgio que configura
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o isolamento social de Macabéa. Esta, tornando-se alheia ao
meio social em que vive, passa a imbuir-se de alienação 9 ,
definida por Marx como o deslocamento do homem, ser
eminentemente social, do mundo concreto em que os indivíduos
efetivam as transformações históricas
III. 3. Isolamento Introspectivo
Macabéa, a personagem de A hora da estrela,
isola-se da sociedade porque era um ser negado de
pensamento, ou seja, sua vivência refere-se somente ao estar
no mundo. Para a nordestina, sua incompetência reflete-se,
principalmente, na falta de se arrumar, conversar e na
percepção de sua realidade. Por não possuir essas qualidades,
era apenas mais um ser que sobrevive “numa cidade toda feita
contra ela” (HE, 15)
O deslocamento interior de Macabéa é visto a partir
de sua tolice, tal como sua ingenuidade. O narrador da história
aborda: “A pessoa de quem ou falar é tão tola que às vezes
sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso
porque nem ao menos olham”(HE, 15 e 16)
A personagem não conseguia se encontrar “É que
ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um
pouco é um encontro”( HE, 34). A mentira é um recurso utilizado
por Macabéa para manter-se isolada das pessoas que a
rodeiam, cingindo-se a si mesma. Não sabia como falar a seu
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O termo alienação aparece na obra marxista Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos escolhidos (1978).
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chefe que sentia dor nas costas, e queria descansar, por isso
inventou que seus dentes doíam, e assim teria um dia de folga
para usufruir sozinha do quarto onde morava. Isto é explícito
no seguinte trecho:
As vezes sÛ a mentira salva.
Ent„o, no dia seguinte, quando
as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a
mais preciosa: a solid„o. Tinha
um quarto sÛ para ela. Mal
acreditava que usufruÌa o espaÁo. E nem uma palavra era ouvida. Ent„o danÁou num ato de
absoluta coragem, pois a tia n„o
a entenderia. DanÁava e rodopiava porque ao estar sozinha se
tornava: l-i-v-r-e! UsufruÌa de
tudo, da arduamente conseguida
solid„o, do r·dio de pilha tocando o mais alto possÌvel, da vastid„o do quarto sem as Marias
(HE, 41)
Esse isolamento da personagem caracteriza o
comportamento gauche.
Para Macabéa, pensamento é algo que não faz
parte de sua existência. Deste modo, há uma comparação com
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os animais; estes, como Macabéa, agem somente por instinto.
Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa,
traz em suas poesias a proposta eliminatória do ato de pensar.
Para ele, o importante é ver e sentir 10 . A personagem
clariciana analisada não está distante desse conceito do existir.
Vejamos uma reflexão de Caeiro sobre a inutilidade de pensar,
constante na Obra poética do referido poeta português.
“Pensar incomoda, como andar a chuva,
quando o vento cresce e parece que chove mais.”
( .... )
“Pensar é não compreender....
O mundo não se faz para pensamentos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos e estarmos de acordoî.
(......)
“..... a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas”
( .... )
ìPensar em Deus È desobedecer a Deus...î
Macabéa não valoriza a vida; o pensamento é visto
como algo que dificulta sua existência. Vejamos, a seguir, trechos
que retomam a questão acima.
10
Os atos de ver e sentir são para Alberto Caeiro, os únicos meios para
depreender-se a realidade (cf. Moisés, s/d).
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Pensar era t„o difÌcil, ela n„o
sabia de que jeito se pensava.
(HE, 36)
....Quando acordava n„o sabia
mais quem era. SÛ depois È que
pensava com satisfaÁ„o: sou
datilÛgrafa e virgem e gosto de
coca-cola. SÛ ent„o vestia-se de
si mesma, passava o resto do
dia representando com obediÍncia o papel de ser. (HE, 54)
A nordestina é sensual em seus pensamentos, bem
como nos momentos de solidão. Com este fato, observa-se que
o prazer, para Macabéa, é algo que sempre se alia à dor. A
exemplo, ao ver o homem, apesar do prazer que tal visão lhe dá,
existe sofrimento por não possuir e por ter a certeza de que
alguém assim é mesmo só para ser visto.
Glória, sua amiga de trabalho, em uma conversa
com Macabéa, pergunta à moça se ser feia dói. A tolice da
alagoana é confirmada no ato de sua resposta.“ – Nunca pensei
nisso, acho que dói um pouquinho...”(HE, 62). Depois desse
acontecimento, a personagem protagonista faz a seguinte
interrogação:
Mas eu lhe pergunto se vocÍ que È feia sente dor.
Eu n„o sou feia !!!, gritou GlÛria. (HE, 62)
Passado o êxtase, ela voltou ao seu constante vazio:
não pensar em nada. Para parar sua dor, tomava
constantemente aspirinas. Isto é observado mo diálogo com
Glória:
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A Configuração do Gauche em Macabéa
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- Por que È que vocÍ me pede tanta aspirina?
N„o estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
- … para eu n„o me doer.
- Como È que È ? Hein? VocÍ se dÛi?
- Eu me dÙo o tempo todo.
- Aonde?
- Dentro, n„o sei explicar. (HE,62)
Macabéa, mesmo sem existir para as outras pessoas,
possuía uma única vantagem: a de “engolir pílulas sem água, assim
a seco”. (HE, 63). Isto nos mostra que a importância da personagem
aos outros seres era mínima. Somente com esse ato, adquire a
admiração da colega... “Glória , que lhe dava aspirinas, admiravaa muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no
coração”. (HE, 63)
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CONCLUSÃO
Ao término desta monografia, pude constatar que
Clarice Lispector recorre constantemente à prosa intimista,
ou seja, à análise do mundo interior das personagens.
Essa recorrência implica a sujeição das
personagens claricianas a uma profunda sondagem psicológica.
No caso de Macabéa, essa sondagem resultou na comprovação
de que o perfil da protagonista de A hora da estrela é
constituído com base na figura do gauche.
O que mais me impressionou foi o modo como Clarice
tece suas narrativas, especialmente, A hora da estrela. Seus
textos são elaborados a partir de uma linguagem poética, que
se fez única na prosa brasileira. Além disso, ressalte-se o sensível
retrato que a autora faz do ser feminino. A mulher, na obra
lispectoriana, é vista como um ser dotado de sentimentos e
anseios explicitamente rejeitados pela sociedade. Entretanto, esta
rejeição não impede as personagens femininas de buscarem
afirmação no meio social em que vivem, a exemplo de Macabéa.
Existem outros recortes marcantes nessa novela,
que me chamaram a atenção. Cite-se, por exemplo, a denúncia
que a autora faz da vida e da realidade dos nordestinos ao
migrarem para os grandes centros urbanos. Isto se evidencia
quando Rodrigo S.M. define Macabéa como um elemento
metonímico. Vejamos: “O que escrevo é mais do que invenção,
é minha obrigação contar sobre esta moça, entre milhares
delas.”11 Essa citação revela o compromisso que a autora firma
com a sociedade, aliado ao seu estilo intimista.
Com esta monografia, enfim, alcancei o meu objetivo
maior: possuir uma visão mais profunda sobre a ficção clariciana.
11
LISPECTOR , Clarice. A hora da estrela, p. 13
44
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Obras de Clarice Lispector
LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
________. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
________. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
________. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
Obras sobre Clarice Lispector
GUDIN, Márcia Lígia. A hora da estrela – Roteiro de
Leitura. São Paulo: Ática, 1994.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem – uma leitura
de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989.
Sá, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis:
Vozes, 1979.
Teses e Revistas
NUNES, Benedito. ìClarice Lispector: A Paix„o Segundo
G.Hî. In: Rev. Expressão. v.2/ n.1/ p. 77-90. Terezina: UFPI,
1995a.
RODRIGUES, Lílian de Oliveira. Clarice através do Espelho.
São Paulo: PUC (Dissertação de Mestrado). 1997.
Geral
AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura.
Primeira edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
45
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo:
Cultrix, 1988.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros
textos escolhidos. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São
Paulo: Cultrix, 1982.
___________. Fernando Pessoa – O espelho e a esfinge.
São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática,
1995b.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar,
1995.
REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da
Narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
SAN’TANNA, Affonso Romano de . Análise Estrutural de
Romances Brasileiros. 7ª edição. São Paulo: Ática, 1990.
__________. Paródia, Paráfrase e Cia. 7ª edição. São Paulo:
Ática, 2000.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 10ª edição. Belo Horizonte
– Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
46
ANEXOS
BIOGRAFIA
Clarice Lispector nasceu em Tehelchenik, na
Ucrânia, em 1920. Chegou ao Brasil, com os pais e as duas
irmãs, aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. A
infância é envolta em sérias dificuldades financeiras. A mãe
morre quando ela conta nove anos de idade. A família, então,
se transfere para o Rio de Janeiro, onde Clarice começa a
trabalhar como professora particular, de português. A relação
professor / aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes
em toda a sua obra – desde o primeiro romance: Perto do
coração selvagem. Ela estuda Direito, por contingência. Em
seguida, começa a trabalhar na Agência Nacional como
redatora. No jornalismo, conhece e se aproxima de escritores
e jornalistas como Antonio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando
Sabrino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines, Lúcio Cardoso
e Rubem Braga. Os passos seguintes são o jornal. A noite e o
início do livro Perto do coração selvagem.
Em 43, conhece e casa-se com Maury Gurgel Valente,
futuro diplomata. O casamento dura 15 anos. Dele nascem Pedro
e Paulo. No ano seguinte, ela publica Perto do coração
selvagem. Em plena Segunda Guerra Mundial, o casal vai para
a Europa.
Os últimos anos de vida são de intensa produção:
A imitação da rosa (contas) e Água viva (ficção), em 1973.
A via crucis do corpo (contos) e Onde estiveres de noite,
também contos, em 1974. Visão do esplendor (crônicas), em
1975. Nesse ano, é convidada a participar, em Bogotá, do
Congresso Mundial de Bruxaria. Sua participação limita-se à
leitura do conto “O ovo e a galinha”. No ano seguinte, Clarice
47
Lispector recebe o 1º prêmio do X Congresso Literário Nacional,
pelo conjunto da obra.
Em 1977, concede entrevista à Tv Cultura, com o
compromisso de só ser transmitida após sua morte. Ela antecipa
a publicação de um novo livro, que viria a se chamar A hora
da estrela, adaptado para o cinema nos anos 80 por Suzana
Amaral.
Clarice morre, no Rio, no dia nove de dezembro de
1977, um dia antes do seu 57º aniversário. Queria ser
enterrada no cemitério São João Batista, mas era judia. O
enterro aconteceu no cemitério Israelita do Caju.
Postumamente, foram publicados Um sopro de
vida, Para não esquecer e A bela e a fera.
48
POEMA DE SETE FACES
Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
Que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
Não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
Pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
Não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
É sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
O homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
Se sabias que eu não era Deus,
Se sabia que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
Mas essa lua
Mas esse conhaque
Botam a gente comovido como o diabo.
(Carlos Drummond de Andrade)
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50
Uma leitura simbólica do
filme Terra Estrangeira
N ARCISO
FREITAS
DE
OLIVEIRA
O trabalho de conclusão de curso “Uma leitura
simbólica do filme Terra Estrangeira”, de Narciso Freitas
de Oliveira, extrapola, em muitos aspectos, o que é
pedido para mongrafias neste nível acadêmico, pela
profundidade da análise e, principalmente, pela
sensibilidade com que analisa a obra de Walter Salles, o
filme Terra Estrangeira.
Por esses aspectos, o trabalho merece ser
publicado e conta com o meu parecer inteiramente
favorável.
Prof. Dr. Ribamar Ferreira Júnior
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1- Avant-Premiere
“
T
erra Estrangeira” é um filme que retrata a
contemporaneidade da juventude abordando uma das maiores
problemáticas mundiais: a crise da identidade. O enfoque maior
se faz na crise identitária brasileira, pois a narrativa tem como
protagonistas personagens brasileiros em desajuste consigo
próprios e com seu contexto social.
Elegi o filme como objeto de estudo por pensá – lo
como um harmonioso conjunto de linguagens poéticas: texto e
imagens; além de evidenciar o sentimento de estrangeirismo
pessoal no qual estou pessoalmente inserido.
Meu objetivo foi à interpretação de alguns recursos
visuais metafóricos encontrados no filme relativos à narrativa.
Procurei ainda observar a estética e o conteúdo presentes
nas seqüências. Para isso, recolhi dados e sobre o contexto
histórico referente à realidade em questão, e em seguida utilizei
– me da técnica de decupagem fílmica, isolando seqüências
que evidenciassem mais substancialmente os momentos mais
significantes referentes à questão da identidade . A partir deste
momento, desenvolvi uma leitura simbólica de três seqüências
eleitas como relevantes, desmembrando seus respectivos
conteúdos e nomeando—as de seqüências A, B e C.
A seqüência “A” tem em seu texto, o recurso
principal para levantar o fator identidade em crise. Baseei minha
análise no autor Stuart Hall, responsável por um pensamento
bastante elucidativo a respeito da definição do homem e seus
papéis dentro de uma sociedade em transformação.
Em relação às técnicas cinematográficas, elegi as
seqüências “B” e “C” por possuírem registros de imagens
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metafóricas indeléveis. Para melhor compreensão de tais
recursos e suas finalidades, vários estudiosos da área foram
essenciais, entre eles: Terence Marner, André Bazin, Christian
Mertz, Francis Vanoye e Anne Goliote – Leté.
Sobre a seqüência “C”, além de abordar os
recursos técnicos, teci comentários sobre seu conteúdo, tendo
como referência a Psico – Sociologia, a fim de melhor
compreender e esclarecer certas questões abordadas no filme.
Para tanto, utilizei – me de textos de François Flahault.
2 - Na Poética de “Terra Estrangeira”:
O Percurso da Identidade
Ao analisar o universo semântico de uma produção fílmica devemos saber que estamos diante de uma complexa pluralidade de símbolos e vários níveis de leitura.
A análise de um filme consiste em mergulhar em
um processo de conhecimento do material estudado,
examinando – o técnica e emocionalmente, a partir de, uma
recepção sistemática e intuitiva, desmembrando – o em
fragmentos individuais e significativos para posteriormente
tecer uma teia reconstrutora, considerando a própria
compreensão e interpretação.
O filme é uma janela capaz de nos transportar para
dentro ou para fora de nossa realidade, nos permitindo, como
espectadores no limiar dessa janela, desenvolver uma visão
intuitiva ou emotiva, levando em conta a identificação, que pode
ou não ocorrer, ou ainda aguçar um olhar estruturado e
racional, buscando no distanciamento, o recurso mais técnico
para a análise.
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É inevitável a comparação dessas duas táticas
distintas, com duas forças emocionais inerentes ao ser humano:
a intuitiva e a sistemática. Quando levados pela primeira, pouco
usamos a racionalidade, justificamos um sentimento intuitivo
puramente por sua “não – explicação”, às vezes encontrando
justificativa em uma estética que nos toca profundamente. Já
quando a razão prevalece, estamos diante de estudo,
descobrimento e adaptação metodológica.
A primeira vez que vi “Terra Estrangeira”, fui
conquistado por sua beleza e riqueza estética. Cada seqüência
era uma obra de arte digna de inegável admiração. Porém,
senti necessidade de entrar em um processo de pesquisa,
desmembrando seu rico conteúdo a fim de mostrar o que existe
por detrás de tão belas seqüências de imagens, quase sempre
poéticas.
A interpretação crítica de um conteúdo busca o
sentido e a formação técnica deste sentido, estudando os
recursos que o autor utilizou para tornar perceptível, mais ou
menos explicitamente, suas idéias e intenções. O principal
recurso usado para a produção da poética de “Terra
Estrangeira” é a simples apresentação da vida e frustração
cotidiana do povo brasileiro. Sem uma linguagem
demasiadamente rebuscada ou fora de nossa realidade, o filme
retrata de modo histórico cultural, um fator inerente ao povo
brasileiro, principalmente os que tiveram sua juventude vivida
no final dos anos 80 e em toda a década de 90: a crise de
identidade.
De acordo com a concepção interativa da identidade
e do eu, elaborada por GH Mead e CH Colley (1997), a identidade
é formada na interação entre o eu e a sociedade.
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ìO fato de que projetamos a
ìnÛs prÛpriosî nossas identidades culturais, ao mesmo
tempo que interalisamos seus
significados e valores, tornando ñ os ìparte de nÛsî, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos como os lugares objetivos que ocupamos
no mundo social e cultural. A
identidade ent„o, costura (ou
para usar uma met·fora mÈdica), ìsuturaî, o sujeito ‡ estruturaî (HALL, 1997:14).
O sujeito tem uma essência interior (eu real) que é
formada e modificada a partir do contato contínuo com os
mundos culturais, exteriores e as identidades que estes mundos
oferecem. A identidade preenche o espaço entre o interior
(mundo pessoal) e o exterior (mundo público), concatenando o
sujeito ao meio – social. Entretanto, considerando um contexto
mais atual, destaca – se a figura do indivíduo pós – moderno,
não possuidor de uma identidade invariável ou permanente,
mas sim moldável em relação à sua socialização, definida a
partir de sua história e não herdada biologicamente. Em relação
à identidade do homem pós – moderno, Stuart Hall comenta:
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ìDentro de nÛs h· identidades
contraditÛrias, empurrando em
diferentes direÁões, de tal modo
que nossas identificaÁões est„o
sendo
continuamente
deslocadas. Se sentirmos que
temos uma identidade unificada
desde o nascimento atÈ a morte, È apenas porque construÌmos uma cÙmoda estÛria sobre
nÛs
mesmos
ou
uma
confortadora ënarrativa do euî
(HALL, 1990:14).
O indivíduo pós – moderno se fragmenta em várias
identidades, às vezes, opostas e não resolvidas, tornando então
incoerente a existência de uma identidade inquestionavelmente
completa e segura. Essa pluralização de identidades se
manifesta quando observamos os diversos papéis que
desempenhamos em nosso meio: em uma segmentação de
classe, etnia, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc. Portanto,
em vez de falarmos em identidade, deveríamos falar em
identificação, e é exatamente essa a problemática do povo
brasileiro, caracterizado por ser um povo sincrético, produto
de várias etnias e culturas “herdadas e adquiridas”.
O processo de identificação com suas raízes e
território está cada vez mais fora da realidade, principalmente
dos jovens, que possuem o sentimento de pertencer a um país
pouco promissor, que lhes provoca a sensação de
estrangeirismo permanente.
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Os jovens de “Terra Estrangeira”, no intuito de fugir
desesperadamente dessa sensação corrosiva, mergulham em
uma viagem pelo que há de mais escondido na sociedade oficial
européia, uma viagem em meio a atitudes indecorosas e
marginais, indefinições pessoais e drogas que alucinam física e
ideologicamente. Drogas usadas com um mesmo objetivo: a
alienação, a fuga da realidade não aceita e outra nem sequer
conhecida.
A droga de Miguel o ajuda a suportar a existência
totalmente dispare daquela que sonhou. A de Paco é simbolizada
por seu passaporte, assegurando uma “viagem” promissora
de uma possível satisfação, a de contemplar o que alguém tanto
desejou, enquanto tinha uma existência mergulhada no tédio
do cotidiano.
É disso que todos eles estão em busca, de uma
Passárgada. Porém, em Lisboa não fizeram amizade com rei,
nem tão pouco encontraram a diversão de uma existência
aventureira. Talvez Portugal represente apenas um ponto na
estrada que não leva a lugar algum. Um ponto onde o caos é
mostrado explicitamente, uma ciranda de estrangeiros,
diferentes realidades, sotaques e “portugueses” denunciadores
de que ali se encontra um país tão em crise de identidade
quanto o Brasil, chegando a ponto de ser considerado à parte
da Europa. E é nessa grande desordem que pode – se
“arrebatar” um passaporte brasileiro pela bagatela de trezentos
dólares, seguido de um condescendente baixar de olhos de
quem não tem como argumentar e aceita a inferiorização.
As jovens personagens de “Terra Estrangeira”,
mesmo não concebendo seu estrangeirismo apenas pela viés
da desterritorialização, sonham mesmo em voltar para casa,
sentem falta do conforto de uma paisagem familiar que lhes
arranquem do caótico inverno europeu, que lhes direcionem
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ao nada mais denso. Para Paco, o lar é San Sebastian, onde
poderá sentir novamente um cheiro antigo nunca sentido antes,
um lar idealizado agora assumido por Alex que, exausta de seus
próprios sonhos, toma para si os do amado.
O fato de ter escolhido “Terra Estrangeira” como
objeto de estudo não se deve apenas por ser uma produção
inegavelmente rica no sentido visual, literário e histórico, mas
sim por possuir uma brasilidade evidente, fugindo dos clichês
que pintam nossa realidade de verde – e – amarelo mostrando
o Brasil do carnaval, futebol, mulheres bonitas e o sol de
Copacabana.
“Terra Estrangeira”vai no caminho contrário,
descolore nossa realidade e faz um mergulho no interior do
sentimento brasileiro, mostrando – o como realmente é: um
universo preto – e – branco inserido num exterior de utopias,
ideologias falsas, alienação e onipresença da cultura de vidro
que alimenta nosso escapismo.
Para transmitir ao público esse retrato da
sociedade, Walter Salles e Daniela Thomas (roteiristas e
diretores) e Walter Carvalho (diretor de fotografia), usaram
diferentes códigos visuais e verbais, passeando pelo mundo da
luz e escuridão, esperança e desilusão.
A narrativa tem como contexto histórico a geração
em crise no Brasil da era Collor, o primeiro e decepcionante
presidente eleito democraticamente depois de quase trinta anos
de ditadura militar que ao lado de sua ministra Zélia Cardoso,
protagonizou o golpe de confisco bancário, desencadeando
grandes mudanças na vida do povo brasileiro.
Em meio a dramática e cruel beleza plástica da
arquitetura antropofágica de São Paulo, vive Paco, um jovem
de 21 anos que sonha em ser ator. Sua mãe, uma idosa e
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abatida imigrante, possui duas referências na vida: o único filho
e sua origem basca. A partir de suas míseras economias
adquiridas como costureira, sonha em voltar a San Sebastian
e mostrar ao filho suas verdadeiras raízes.
Porém, o pesadelo do confisco põe fim em seus
sonhos e em sua vida. Paco, tomado pela dor da perda da mãe,
pela solidão e falta de perspectivas, percebe que nada mais o
prende ao país, então aceita uma proposta para levar um violino
para Portugal com objetivo de seguir de lá para a Espanha e
conhecer a cidade natal de sua mãe.
Em Lisboa, seu caminho se cruza com o de Alex,
uma brasileira que renegou suas origens aspirando uma vida
melhor fora de seu país. A partir daí, dá – se início a uma jornada que revela todo o sentimento de desnorteamento de quem
se sente fora de qualquer contexto e perdido em si próprio.
ìOuve ñ se freq¸entemente dizer, em discussões cinematogr·ficas, que È prÛprio dos filmes
que nos atraem e que vivem em
nÛs ñ ao universo desta
univocidade fortemente insistente que marca a imposiÁ„o da
produÁ„o fÌlmica ñ poderem ser
compreendidos de v·rias maneiras, oferecerem seus simbolismos, fora de qualquer ëcastraÁ„oí sem‚ntica, a v·rios sistemas de interpretaÁ„o admitirem
v·rios nÌveis de leitura. … o tema
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das ëleituras múltiplasí, que se
aplica ao texto fÌlmico como a outros tipos de texto, e com justa
raz„oî. (METZ; 92:140)
No que concerne a esse pensamento relacionado à
interpretação do conteúdo fílmico, pretendo mostrar o meu ponto
de vista em relação a algumas seqüências que considerei de
grande relevância por destacar três fatores básicos
sustentadores de minha análise: as questões da linguagem visual,
verbal e da identidade que embora se apresentem diretamente
ligadas, possuem suas singularidades dentro do todo.
Da mesma maneira que uma obra literária é dividida
em capítulos, um filme é fragmentado em seqüências. Em
relação ao processo de análise singular do fragmento, Francis
Vanoye e Anne Goliot – Leté afirmam em “Ensaio sobre a análise
fílmica”: “Desmontar um filme é entender seu registro
perceptivo e com isso, se o filme for realmente rico, usufruí – lo
melhor (...). Analisar um filme ou fragmento é, antes de mais
nada, no sentido científico do termo, decompô – lo em seus
elementos constitutivos”.
(VANOYE, GOLIOT – LETÉ; 1994: 12,15)
Portanto, coloquei – me na responsabilidade de
eleger algumas seqüências que abordassem explicitamente as
questões já citadas. Devo admitir ter sido uma tarefa
extremamente difícil devido a grande variedade de temas a
serem discutidos.
Mas, por fim, decidi – me pelas seqüências que mais
deixam explícitas as questões da busca de identidade, o
sentimento estrangeiro e a plasticidade da linguagem visual.
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SEQÜÊNCIA A: DISTÂNCIA
ìPois, cada um de nÛs entrou
neste universo como se entrasse numa cidade estrangeira, com a qual n„o tivesse nenhuma ligaÁ„o antes de nascer; e, uma vez aqui dentro, o
homem jamais deixa de ser um
hÛspede de passagem, atÈ ter
percorrido de um extremo ao
outro a duraÁ„o de vida que lhe
houver sido atribuÌda...î 1
Santo Agostinho e outros autores da Idade Média,
baseados no tema do estrangeirismo, segundo a Bíblia,
elaboraram o tipo humano peregrino. Segundo esse
pensamento, Adão e Eva quando expulsos do Paraíso,
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- Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos,p.403
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abandonaram sua pátria, recebendo o estatuto de estrangeiros,
emigrados condenados ao exílio.Assim, todo indivíduo tendo sua
existência posterior a de Adão e Eva é conseqüentemente um
mero passageiro em qualquer território onde se encontre. Para
Santo Agostinho, o homem, mesmo em seu próprio país, é um
estrangeiro por condição. Portanto, sendo o céu a única pátria
verdadeira, apenas Deus tem cidadania e os exilados,
estrangeiros por toda a vida terrena.
Nesta seqüência, Alex e Miguel, dois brasileiros
refugiados da crise e desesperança econômica de seu país,
contemplam a beleza de Portugal, país cenário de um exílio
mal tragado e sem os ares românticos da clandestinidade.
Do terraço de um prédio, suspensos do solo
estrangeiro, os dois se encontram numa atmosfera de singular
cumplicidade como se envoltos numa bolha temporariamente
protetora daquele território ameaçador. Neste momento, Alex
e Miguel estão totalmente desligados física e emocionalmente
do país, são solitários “marginais”, à margem de uma sociedade
estranha e que não lhes oferece nenhuma perspectiva de
mudança ou apoio. Encontram um no outro o alicerce
necessário para não desistir da jornada em busca de um
conforto que se esforçam para acreditar na existência.
Próximos ao porto de um país, que renega seus
próprios “filhos” brasileiros, cabo – verdianos, angolanos e
moçambicanos, os dois jovens têm suas essências sintetizadas
em resíduos subjetivos em que a esperança e sonhos se mesclam
com a indiferença à vida. O cansaço em seus olhos e em suas
palavras denunciam dois seres cobertos pela melancolia identitária
e em busca de um recolhimento aparentemente inalcançável.
Como forma de evidenciar tal sentimento de
angústia, vejamos o que o texto da seqüência em questão tem
a nos mostrar:
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Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira
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Alex: eu gosto dessa cidade
essa hora...cidade
branca...bonito nÈ? SÛ que as
vezes me d· um medo.
Miguel: Medo? Medo de quÍ?
Alex: Medo de vocÍ danÁar e eu
ficar sozinha aqui num lugar que
eu nem escolhi para viver.
Alex mostra sua simpatia pela paisagem de Lisboa,
vista de longe, atribuindo à cidade a cor branca, resultante da
iluminação inerente àquela hora do dia. O branco,
cromologicamente, nos remete à paz e serenidade,
características opostas e paradoxais ao meio marginalizado e
obscuro, no qual, as personagens se inserem. Percebe – se aí
uma grande dualidade de sentidos, seguida do desabafo de
Alex, ao mostrar o seu medo da solidão em um lugar que, mesmo
sendo falada a mesma língua, lhe parece um território
insuportável e aversivo. E o diálogo persiste na solidão
estrangeira:
Miguel: a gente pode ir para
onde vocÍ quiser, Alex.
Alex: vocÍ n„o est· entendendo, n„o depende do lugar. Quanto mais o tempo passa, mais eu
me sinto estrangeira. Cada vez
mais eu tenho consciÍncia do
meu sotaque. De que a minha
voz È uma ofensa para o ouvido
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deles. N„o sei n„o, acho que eu
to ficando velha...
Miguel: vocÍ est· ficando È doida, Alex. VocÍ sÛ tem 28 anos.
Alex: 28...30,40,50,60... ta
passando t„o depressa. Depois
eu morro de medo de ficar velha aqui fora. Mas, aÌ quando eu
penso em voltar para o Brasil
me d· um frio na espinha.
É explícito que o sentimento de estrangeirismo é
mais profundo e complexo do que o simples fato da personagem
estar fora do território de origem. Se fundem aqui o
estrangeirismo do desterro e o estrangeirismo existencial
resultando numa incomplementariedade do “eu” originada
inicialmente do desapego tanto à terra natal quanto a si mesma.
O grande conflito de Alex se resume na busca de
uma identidade singular, desenvolvida e plena frente as
influências do mundo. Porém, essa identidade planificada é
incoerente. O que existe é um constante jogo de identidades
contraditórias, direcionando o homem cada hora para caminhos
contraditórios e às vezes desconhecidos.
ìO processo de identificaÁ„o
atravÈs do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, torna ñ se mais provisÛrio, vari·vel e problem·tico. Esse processo produz o
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sujeito pÛs ñ moderno,
conceptualizado como n„o tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna ñ se uma ìcelebraÁ„o mÛvelî: formada e transformada continuamente em
relaÁ„o ‡s formas pelos quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiamî.
(HALL, 1987:13)
A questão é discutida tendo como argumento o fato
do velho conceito de identidade estar em declínio, cedendo lugar
a novas identidades e “desmembrando” o indivíduo que até
então se auto denominava unificado.
Em outras palavras, uma mudança estrutural está
transformando os conceitos culturais de gênero, classe,
sexualidade, raça, nacionalidade, etc., que antes nos
embasavam solidamente como indivíduos pertencentes a uma
sociedade. Tais transformações estão abalando nossas
identidades pessoais nos levando a questionar a idéia que
temos de nós próprios e originando uma “perda em si”, um
“estrangeirismo pessoal”. É justamente essa fragmentação
identidária que gera o fenômeno da crise de identidade. “A
identidade somente se torna uma questão quando está em
crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável
é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”.
(MERCER, 1990:43)
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Esse processo móvel, pode ser considerado como
a transformação da própria modernidade descrevendo a
concepção de um homem pós – moderno, à frente de qualquer
concepção essencialista ou de identidade fixa. Dentro deste
contexto, Alex é a representação do indivíduo pós – moderno,
em crise consigo mesmo por não se dar conta do processo
que está vivenciando.
No decorrer da seqüência, Alex denomina sua voz
como uma ofensa ao ouvido dos Portugueses. Não possuindo
uma valorização pessoal, ela se auto marginaliza pela condição de
clandestina e por ser alguém em confusão de papéis, pouco à
vontade consigo, não tendo senso de pertinência e nenhum senso
de integridade. Como conseqüência da desesperança e não
produtividade, Alex não percebe a transitoriedade do tempo
marcando a aproximação cronológica de uma solidão externa a
ser somada à interna, já existente. Diante de tal pensamento,
levanta a remota possibilidade de voltar ao país de origem seguida
imediatamente de uma expressão de desconforto e a quase
afirmação dessa possibilidade ser inadmissível. A volta ao Brasil é
um desafio extremamente negativo, como uma roleta – russa,
cuja possibilidade da tragédia é mais certa do que o alívio de uma
segunda chance.
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SEQÜÊNCIA B: NO SAL DAS ÁGUAS
Para se abordar a analogia entre a narrativa
cinematográfica e a narrativa literária é necessário especificar
diferenças existentes entre os dois processos de cognição
destas duas formas de arte.
A literatura escrita se utiliza de palavras – conceitos
que, através de signos lingüísticos recebidos de forma sensível e
usufruídos por meio de uma operação mais complexa, porém
imediata, exploram a semântica ligada àquele signo. A partir de
dados contextuais, o signo desencadeará uma série de imagens
estimulando emotivamente o receptor.
No caso de imagem, o caminho é inverso. O primeiro
estímulo é o dado sensível ainda não racionalizado e
conceptualizado, recebido inicialmente com toda a sua carga
vivaz e emotiva.
Entre os dois gêneros, pode – se afirmar que ambos
são manifestações artísticas baseadas na ação. Entendendo – se
por ação uma relação que estabelece entre uma série de fatos, um
desenrolar de acontecimentos reduzidos à estrutura base.
Num romance, esta ação é contada, ao passo que
no cinema ela é representada. Nas palavras de Eco (1987: 190):
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ìA diferenÁa entre a aÁ„o fÌlmica e a aÁ„o
narrativa parece ser a seguinte: o romance diz ñ nos aconteceu isto, depois aconteceu isto,etc. Enquanto o filme nos coloca perante uma sucess„o de ëisto + isto +
isto, etc.í, uma sucess„o de representaÁões de um presente, hierarquiz·veis apenas na fase da montagemî.
Ademais, é relevante dizer que toda e qualquer arte
de representação manifesta produções simbólicas que, direta ou
indiretamente, mais ou menos conscientemente, abordam um ou
vários pontos de vista e leituras sobre o mundo real.
Com a finalidade de obter tal efeito, é muito comum
o uso de metáforas, definida nas palavras de MERTZ (1975:10)
como “...Uma figura de expressão verbal, a forma mais
condensada da imagem literária”.
Portanto, compreende – se por metáfora a analogia
de sentido entre o termo usado e aquele implícito. No caso do
cinema, o efeito metafórico pode ser gerado por uma sucessão
de imagens que produzem um sentido além do literal.
Considerando a seqüência “B”, as metáforas são
detectáveis por intermédio de símbolos e efeitos obtidos através
de alguns planos. A partir da observação de tais recursos,
apresentar – se – á uma descrição seguida de uma leitura
simbólica da seqüência em questão.
Marcada por uma poética que trata da morte, a
seqüência “B” envolve o espectador numa atmosfera intimista e
reveladora. O plano médio (P.M)2 inicial mostra Paco no chuveiro
2
Basicamente, o plano de um corpo humano do tronco para cima. A
maior parte do fundo é eliminada, conseguindo – se, desta maneira, que a
figura humana se converta no centro de atenção.
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perturbado devido a perda da mãe. O enquadramento se fecha
gradativamente culminando em um “close”3, proporcionando a idéia
de aumento da dor ali presente. Tal recurso permite uma melhor
visualização da imagem de Paco, inicialmente desfocada e mais nítida
com a aproximação do plano. Este movimento conduz
metaforicamente o espectador a adentrar no mundo da
personagem, formando assim, uma “cumplicidade” entre ambos.
O “close” amplia a expressão de Paco, revela sua consternação
e seus olhos fechados sugerem uma entrega emocional total.
A partir daí, temos uma sucessão de cenas curtas
que se alternam com a imagem de Paco, criando um paralelo
de causa e conseqüência do sentimento que rege a seqüência.
Paco derrama suas lágrimas ao mesmo tempo em que a água
do chuveiro escorre pelo piso e invade a sala do apartamento,
levando fotos e postais caídos no chão. Dentro do contexto
narrativo, a morte representa paralelamente sofrimento e alívio.
Para Paco, o sofrimento é conseqüência da morte da mãe.
Chora o anúncio explícito da solidão agora generalizada.
Contudo, a arte imita a vida, e o destino da frustrada imigrante
não é de todo surpreendente, já que aos velhos não é dada a
possibilidade de realização de sonhos, apenas, e tão somente,
a repetição em torno de antigos temas e a espera desgastante
de uma morte que os alivie do fardo de uma existência tediosa.
Daí, observa – se a morte como um alívio para a mãe de Paco,
que “paga” com suas esperançosas economias, seu próprio
enterro e a liberdade da letargia e impossibilidade da realização
pessoal
3
Essencial para atingir a máxima intensidade dramática. A expressão do ator
ganha destaque apresentando – se mais nítida e forte.
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VÛs, as ¡guas, que reconfortais,4
trazei ñ nos a forÁa, a grandeza,
a alegria, a vis„o!
...Soberanas das maravilhas,
regentes dos povos, as ¡guas!
...VÛs, as ¡guas, dai sua plenitude ao remÈdio, a fim de que
ele seja uma couraÁa para o
meu corpo, e que assim eu veja
por muito tempo o sol!
Há diferentes variações culturais sobre a simbologia
da água. Mas, pode – se observá-las em três leituras dominantes:
fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência.
Essas três visões se encontram nas mais antigas tradições e podem
formar um enorme e variado número de combinações imaginárias.
Em certas alegorias tântricas, a água é
representada como o sopro vital (Prana) inferindo idéia de
fertilidade, imortalidade, cura e alívio.
Incessante em toda a seqüência, a água pode ser
considerada como um recurso metafórico ao estabelecer uma
analogia entre as lágrimas de Paco e as águas do chuveiro,
representando um choro único e melancolicamente interminável
como o de Iara, personagem de Francisco Ribas, no conto
“Lagoa de Lágrimas”, que ao chorar a morte do amado forma
uma lagoa no lugar onde ele fora sepultado. A permanência da
personagem sob o chuveiro enquanto chora, sugere também a
tentativa de “purificar – se” do sentimento mórbido e corrosivo
4
Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p.15
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causado pela morte. Esse mesmo pranto percorre todos os
cantos do apartamento carregando fotos e postais pertencentes
a sua mãe.
Símbolos de toda história de vida da mulher
estrangeira, essas lembranças e referências eram ao mesmo
tempo retratos de seu passado e representações de seu mais
próspero futuro, pois o sonho de voltar à Espanha acabaria com
o tormento de viver no Brasil, longe de suas verdadeiras raízes e
em meio à solidão típica dos que não possuem mais as múltiplas
escolhas da juventude.
Em um mundo real, a água leva fotos e cartões
postais enquanto que no mundo simbólico, essas águas são
lágrimas de Paco diante dos sonhos e expectativas da mãe,
levados pela morte.
Na atmosfera fria e solitária, observa – se a
profundidade da tristeza de Paco. Estar rodeado por essas
águas escuras é como estar morto simbolicamente. Em seu
interior, agora prevalece o vazio da ausência de um futuro. Busca
em seu pranto uma regeneração corporal e espiritual, porém,
a escuridão tem uma dimensão infinitamente maior do que
qualquer centelha de esperança e o brilho no olhar do jovem
sonhador se apaga na medida em que as águas escorrem em
direção ao desconhecido.
SEQÜÊNCIA C: A MÚSICA E O SILÊNCIO
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5.1. A CENA
Na alucinante fuga de Alex e Paco em direção a
sua tão sonhada terra protetora, o fio condutor que os levaria
à felicidade é quebrado. Paco é baleado por seu perseguidor e
o fardo das personagens ganha dimensão ainda maior, a
estrada para San Sebastian parece ainda mais árdua e extensa.
A seqüência inicia no interior de um carro em
disparada, onde Paco agoniza no colo de Alex. O Plano
Aproximado (P.A) 5 , proporciona ao espectador uma
aproximidade com as personagens, o faz participar da
intimidade de suas emoções e esquecer do ambiente que as
envolve. Inserido na dramaticidade, o espectador assume a
posição de participante da cena, sente – se um companheiro
na fuga de Alex e Paco e compartilha da agonia de ambos,
agora diante da impossibilidade da realização dos sonhos.
Na continuidade da seqüência, o plano interno é
substituído por uma panorâmica em Plano geral (P.G)6, que
amplia a visão, descrevendo a proporção e a intensidade da
ação. A câmera sai do interior do carro, o persegue envolto à
paisagem, traduzindo a agonizante atmosfera. Assim, o
expectador observa o carro de longe, cada vez mais distante,
marcando desta forma a insignificância dos personagens e suas
respectivas dores. E dessa infinita paisagem nos distanciamos
progressivamente, nos despedindo dos jovens aventureiros de
“Terra Estrangeira”.
5
Proporciona ao espectador proximidade em relação a um objeto ou pessoa ao
mesmo tempo que elimina o ambiente que os envolve. Normalmente, o plano
aproximado corta a figura à altura do peito.
6
Oferece uma visão bastante ampla do terreno onde se desenvolve a ação
durante a seqüência.
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Deve –se ressaltar que qualquer recurso técnico
só possui um significado, se aliado a um conteúdo.
ìSÛ quando se articulam a um
conteúdo, os componentes expressivos do filme, adquirem
uma raz„o de existir. Um
ëtravellingí por si sÛ nada quer
dizer (...) o conteúdo e a express„o formam um todo. Apenas suacombinaÁ„o Ìntima È
capaz de gerar a significaÁ„oî.
(VERNET; 1988: 41/42)
Alex e Paco partem em direção ao ponto de
convergência de todas suas esperanças e devaneios em busca
da integração a um mundo mais humanisticamente equilibrado
onde as barreiras entre o espaço interior e o espaço exterior
não existam.
O sustentáculo que um representa para o outro
caracteriza o processo pelo qual o homem cria seus vínculos e
paradigmas na sociedade pós – moderna. A representação de
um para o outro não é apenas uma referência de norteamento,
mas sim uma espécie de razão para “ser”. Paco, inicialmente,
possuindo como aspiração maior a carreira de ator, abre mão
do sonho diante do primeiro fracasso e se apropria do sonho
da mãe morta de voltar à terra natal: a Espanha. Alex, por sua
vez, exausta dos próprios sonhos e sem aspirações próprias,
assume para si a tarefa do amado tomando como missão
deslumbrar a província que supostamente os recolherá da
aflição existencial.
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François Flahault (1978), estabelece uma análise
objetivando compreender melhor como se dá certas
representações sociais.
Toda palavra e comportamento é formulado a partir
de um “o que sou para você e o que você é para mim”; a ação
representada, a título de troca, se manifesta através do que
chamamos de efeitos de posição ou atos ilocutórios. Tais atos
são, em outras palavras, as falas e atitudes que caracterizam
as posições ocupadas pelos interlocutores, de forma explícita
ou implícita. A primeira posição, é manifestada através de ordens
ou pedidos e obediências ou concessões explícitas. A segunda
só é compreendida em relação as posições que os
interlocutores ocupam e ao mesmo tempo definem em seu
comportamento. “Os atos ilocutórios implícitos não dependem
da vontade dos interlocutores, eles não operam seus
posicionamentos, ao contrário, é o posicionamento adquirido
que estabelece sua identidade” (FLAHAULT; 1978 : 78,52)
Deste modo, Flahault mostra como a ação implica
relações de posições. Compreender representações do “eu para
o outro”,ou seja, reprsentações sociais, implica conhecer a
situação que define o indivíduo que os produz.
A questão primordial de “Terra Estrangeira”é a eterna
busca de referenciais, vários “eus” em busca de outros “eus” no
intuito de estabelecer uma relação de segurança e dependência
física e emocional. É notável a substituição de pontos de referência
no decorrer da narrativa. Inicialmente, Paco e Alex possuem como
referenciais respectivamente a mãe e Miguel. Com a morte de
ambos, a angústia do “aleijamento emocional”e o posterior
encontro os une, conferindo aos dois os papéis de imprescindíveis
absolutos.
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Tal comportamento marca uma espécie de
alienação de si próprio. No plano ideológico, o indivíduo pode se
tornar consciente, ao detectar as contradições entre suas
representações e atividades em sua vida material; ou alienado,
quando há a negação da consci6encia como processo, ou
seja, mantendo a alienação o indivíduo permanece em um
estado de “perda”, impedido por si próprio de qualquer ação
transformadora. A alienação aqui é simbolizada pela busca
de um suporte no mundo exterior, um suporte físico. As
personagens desencadeiam uma atitude contrária àquela
realmente modificadora, saem do “eu” para encontrar
respostas em pessoas e lugares em vez de mergulharem em si
em busca da conscientização como seres históricos – sociais.
5.2 A MÚSICA
Nessa frenética busca de auto compreensão e
conhecimento é criada uma interseção entre a confusão de
papéis, a perda e a poética da canção “Vapor Barato” 7 ,
representando o desafogo da estrangeira que para aliviar seu
sofrimento devido a possibilidade da perda de mais um referencial
e manter o companheiro no mundo entre o sono e o sonho,
canta/ acalanta na tentativa de fazê – lo não abrir mão da saga
e acreditar de fato na existência de um lar próximo; e nesta
tentativa, obeservamos a quebra de barreiras entre suas
palavras e a letra da música.
7
Composta em 1969. Parceria de Wally Salomão e Jards Macalé. Interpretada por Gal Costa, originalmente em 1971 no disco “Todo Vapor”.
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ìTalvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe, mas eu quero
esquece ñ la, eu preciso...î
Diante da oportunidade da fuga e agora a perda
de Paco, há a possibilidade do sentimento de vazio interno
transformar – se em único referencial, e o que até então
representava um território de proliferação de conflitos
identidários, pode vir a ser o único porto seguro. Ao chegar ao
final da estrada, possivelmente Alex se veja diante da frustrante
constatação de que nada a espera, de que San Sebastian é
tão somente mais um devaneio conector de seus conflitos
existenciais com o mundo.
A obstinação de Alex em realizar o desejo do amado
(que se confunde com o seu próprio), distingue um
comportamento mais sentimental do que o apresentado no
início da narrativa. Alex se permite uma transparência que
exterioriza sua sensibilidade e crença numa linha de fuga. Antes,
não considerava sequer a existência de um lar, sentia – se
inerte demais para lutar por algo. Agora, admite estar cansada,
porém não o suficiente para deixar de dar a si própria e ao
amado a possibilidade da felicidade. O cansaço pessoal de Alex
nos remete às palavras de outro poeta da música brasileira:
“Vim pelas noites tão longas
de fracasso em fracasso,
Hoje descrente de tudo,
Me resta o cansaço.
Cansaço de tudo
Cansaço de mim...”
(Antônio Vieira)
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Ao mentir, especialmente para si mesmo, dizendo: “Tô
te levando para casa, meu amor...” talvez a tentativa seja de ativar
no corpo e na alma resquícios de força para manter acesa a
esperança de chegar ao fim da jornada e receber como
recompensa o encontro consigo própria e uma terra natal onde
com o esforço do trabalho cotidiano seja possível formar uma família
feliz, e quiçá originar novos estrangeiros.
ìVou descendo por todas as ruas e vou
tomar aquele velho navio.î
O navio é o símbolo da viagem, da travessia;
representa a viagem da vida. No cristianismo, o navio é
freqüentemente relacionado com a arca de Noé, evocando a
idéia de força, segurança e esperança de recomeçar uma
nova vida.
ìOs filhos de Israel enviam um
embaixador · Schar, rei de
Armor, pedindo permiss„o
para atravessar as suas terras, afim de, alcanÁar a Terra
Prometida. Prometem n„o se
afastar pelos campos e vinhas
(...) andar„o pela estrada real
atÈ que as terras estrangeiras
sejam deixadas para tr·s.î 8
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Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p. 403
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A estrada é o símbolo do caminho condutor, a mais
próspera felicidade, é o paradoxo aos caminhos tortuosos que
os personagens vinham percorrendo. A cada metro acreditam
estar deixando para trás todo seu estrangeirismo. Porém, é na
mesma promissora estrada que parece ter fim o sonho do casal. Juntos, talvez não consigam ultrapassar a fronteira entre a
realidade e o sonho e vislumbrar a tão sedutora Canaã, a terra
onírica, que emana leite e mel, e onde as casas se confundem
com pedras, elementos simbologicamente ligados ao
sedentarismo e segurança dos povos. Nelas, encontravam a obra
– prima para construir suas moradas e abrigos do exterior.
A pedra é, ainda, símbolo da terra – mãe, pois de
acordo com algumas tradições,as pedras preciosas “amadurecem” na rocha para depois “nascerem”. Portanto, a pedra é e
dá vida. E é por vida que eles agora lutam, numa regressiva
tentativa de “retorno ao ventre”, buscam o refúgio uterino chamado San Sebastian, onde desfrutariam de um colo confortável e acolhedor e seriam embalados na mais suave e encantadora canção de ninar.
Entretanto, o destino parece negar esta dádiva a
Paco, oferecendo – lhe como última canção, as palavras de
dor de Alex. A esta, resta a permanência em seu já conhecido
labirinto e a espera de mais um referencial que a resgate de
sua crônica desesperança.
... E a luz se acende
“Terra Estrangeira” é um filme reconhecido internacionalmente devido sua excelente produção e sensibilidade
ao mostrar o fenômeno do estrangeirismo. Como prova de reconhecimento, o filme recebeu vários prêmios em festivais como
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San Sebastian Film, London Films, Paris International Fórum,
Sundance Film, entre outros; reforçando tratar –se de uma
produção que, assim os seus personagens, dispensa passaporte.
Meu objetivo foi explorar seus simbolismos literário
e cinematográfico, condensando – os em uma leitura pessoal.
Como aluno de Letras, pude exercitar minha capacidade de
compreensão e interpretação de uma narrativa literária em
duas formas de manifestação: escrita e visual.
A partir da pesquisa, a prática da associação de
conteúdos, a priori distintos, deixou evidente a necessidade do
profissional que trabalha intimamente com os dados significado
– significante, em estabelecer conexões entre os diversos
conhecimentos adquiridos no decorrer de sua vida profissional,
mostrando – me ainda que a sensibilidade para além do ódio e
ler “entre – linhas” é indispensável na vida de um leitor.
Sendo assim, “Terra Estrangeira”, além de ser um
trabalho acadêmico no qual pude mostrar um pouco de minha
leitura de mundo, foi ponto de referência para um estudo que
resultou em uma melhor compreensão do sentimento de
estrangeirismo permanente e o porquê da existência de uma
“San Sebastian” dentro de muitos de nós.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BAZIN, André. O Cinema – Ensaios. São Paulo, Editora
Brasiliense, 1991.
MARNER, Terence St. John. A Direção Cinematográfica. Lisboa,
Edições 70, s.d.
METZ, Christian. Linguagem e Cinema. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980.
VANOYE, Francis e Goliot – Leté, Anne. Ensaio sobre a Análise
Fílmica. Campinas,
HALL, Stuart. Identidade Culturais na Pós – Modernidade. Rio de
Janeiro, Editora DP &
METZ, Chistian. A Significação no Cinema. São Paulo, Editora
Perspectiva, 1977.
RIBAS, Francisco. Pedaços da alma. Curitiba, Editora Reproset,
1990.
CHEVALIER, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos.
São Paulo, Editora
FLAHAULT, F., La Prole Intermédiaire. Paris, Du Seuil, 1978.
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ANEXO
3 - SEQÜÊNCIA A: DISTÂNCIA
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4 - SEQÜÊNCIA B: NO SAL DAS ÁGUAS
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SEQÜÊNCIA C: A MÚSICA E O SILÊNCIO
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UM ESTUDO DE
TRANSFERÊNCIA DE
INTENSIDADE
APOLO
MOCOTO
H INO
O trabalho “UM ESTUDO DE TRANSFER NCIA DE
INTENSIDADEî, desenvolvido e apresentado pelo aluno APOLO
MOCOTO HINO, como Trabalho de Graduação para conclusão do
Curso de Licenciatura em Letras, apresenta um estudo e uma
pesquisa inéditos nesta IES e, muito provavelmente, nas academias
do Estado do Pará; aspecto este que já o recomenda para
publicação.
Contudo, vale ressaltar o trabalho de lingüísta, próprio do
autor, e o denodo com que se lançou à pesquisa de um tema
cuja bibliografia ainda é incipiente face ao tipo de investigação
realizada, ou seja, o trabalho com os traços suprasegmentais em
lingüística ainda é, no Brasil, bastante polêmico e realizado por
poucos estudiosos em função de, nos últimos anos, os estudos
da linguagem terem se concentrado no modelo grafocêntrico,
típico do exigido por nossa sociedade atual, como diz CAGLIARI
(1980), “os traços suparasegmentais ainda são entendidos como
meros adornos, verdadeiros enfeites da língua e, assim sendo,
desconsiderados por muitos fonólogos”. Entretanto, sem
compreendermos as noções e usos de ritmo, intensidade, sílabas,
moras, entre outros traços, que revelam emoções, sentimentos,
estados intencionais, estaríamos negando a característica básica
do ser humano que é a interação pelos atos de fala e suas
características na busca de sentido.
Assim sendo, sem nenhum receio, recomendo a publicação
deste trabalho.
Prof. Ms. Hilton Silva
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A
dinâmica da língua é um dos aspectos que o
lingüista há de levar em consideração. Sem um registro lingüístico,
fica difícil definir qual seria a identidade de nossas transformações,
qual o momento histórico em que estaria ocorrendo esse processo.
É dentro desse pensamento que essa pesquisa
procura objetivar quais são as causas e efeitos que determinadas
mutações sincrônicas podem acarretar a nossa língua.
Longe dos conceitos estabelecidos pelos livros
acadêmicos, buscamos nesta pesquisa renovar ou reavaliar os
conceitos que, muitas vezes, são defasados frente às
transformações por que passam a língua.
Cada falante tem sua interpretação diante de um
ato de fala, partindo tanto dele quanto de seu(s) interlocutor(es),
por isso é mister estarmos atento para as ocorrências que
provocam determinadas alterações em nosso diálogo.
Há várias concepções enunciativas do sentido,
tornando-se necessário distinguir em cada enunciado aquilo que
se apresenta público ou aberto, ou seja, os argumentos que o
locutor apresenta para induzir o alocutário a determinadas
conclusões, as quais são explicitamente apresentadas pelo
locutor e que são formadas do sentido, daquelas que não o são,
como também o reconhecimento da existência de enunciações
de forma velada, ou seja, por manipulação. As primeiras são
determinadas pela argumentação das frases, enquanto que as
segundas são originárias de certas manobras que o discurso torna
possível. As primeiras baseiam-se na estrutura argumentativa da
frase, enquanto que as segundas são influenciadas pelos
mecanismos de interpretação particulares a cada situação, por
meio de raciocínios, intenções, reações dos interlocutores. A
diferença entre lingüístico/ não- lingüístico é uma distinção entre
mecanismos semânticos e os mecanismos de interpretação
particular em cada situação de discurso.
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Segundo Ducrot (1980), a enunciação é um evento
cuja descrição está feita no interior do próprio enunciado, daí
que a situação passa a ser um conceito lingüístico, isto é, a
enunciação só inclui aquilo que é lingüisticamente produzido
como situação.
Dessa forma, há dois mecanismos retóricos que
se dividem quanto à presença ou não do nível lingüístico.
Quando não pertence ao nível lingüístico temos a
ironia, a sátira, a insinuação, o sarcasmo, etc, através
de termos como: dar a entender, deixar entender e
subentender.
Deixar entender não implica em nenhuma
intenção comunicativa, aberta ou velada do locutor; é uma
enunciação por si mesma. Dar a entender ou insinuar é
um ato que põe em jogo uma intenção comunicativa particular
do locutor, apresentada de maneira velada. Subentender,
por sua vez, opõe-se a ambos. Um locutor subentende que p,
se dá a entender que p, com a intenção de comunicar, por
meio de sua enunciação, algo que, de qualquer modo, o
enunciado implica (deixa entender); porém, tal intenção é
pública, isto é, constitui objeto de um ato de comunicação que
só se realiza por meio do reconhecimento por parte do
alocutário, é o caso, segundo o autor, dos atos de fala indiretos
ou derivados).
A busca de persuadir o outro já foi definida por
Aristóteles como retórica, ele defendeu a tese de que quem
fala tem como objetivo principal persuadir outras pessoas,
segundo o seu ponto de vista.
O objetivo do ser humano é alterar as relações
originais existentes entre o organismo de cada indivíduo e o
ambiente no qual esse se encontra. Em outras palavras: é a
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redução da probabilidade de que sejamos alvo de forças
externas, e aumentarmos a possibilidade de que nós mesmos
exerçamos força. A principal característica na comunicação,
influenciarmos outros, o nosso ambiente, é nós mesmos, é
sermos determinantes. Em suma, nós nos comunicamos
para influenciar com intenção.
Quando se analisa a comunicação, temos vários
pontos a serem analisados: o que desejava o comunicador
como resultado de sua mensagem? Em termos de influência o
que ele desejava? O que outros pensariam a respeito de sua
mensagem? Qual a resposta que ele procurava obter?
Ao se analisar o diálogo, temos que levar em
consideração três elementos: quem fala, o discurso e a
audiência. Em outras palavras: 1) a pessoa que fala; 2) o discurso
que faz e 3) a pessoa que ouve.
Conceituamos a comunicação como um processo
e afirmamos que é dinâmica, evolutiva, por isso seria vantajoso
se fizéssemos uma outra análise sobre comunicação, sob a
ótica de processo, pois em qualquer contexto, fonte e receptor
são interdependentes.
Todavia, o conceito de interdependência é em si
complexo e pode ser definido: A e B s„o independentes se, e
somente se, nenhum influenciar outros.
Em outros a relação de dependência ocorrerá entre
A e B, A influencia B, mas B não influencia A, ou vice-versa.
A interdependência pode ser entendida como uma
seqüência de ação e reação. Temos também a Empatia que é o
processo pelo qual nos projetamos nos estados internos ou
personalidades de outros, a fim de predizermos como se
comportarão. Inferimos os estados internos dos outros
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comparando-os com as nossas próprias atitudes e
predisposições . A relação se dá quando tentamos pôr-nos no
lugar de outra pessoa, perceber o mundo como ela o percebe,
possibilitando a criação de um conceito de pessoa que
utilizamos para tirar inferências sobre os outros. Durante o
ato comunicativo, passamos das inferências para a adoção de
um papel de nossas previsões.
Todos esses fatores influenciam na transferência
de intensidade, pois o falante, de acordo com suas intenções,
altera por meio de sua produção fônica os seus traços suprasegmentais.
I) REFERENCIAL TEÓRICO
Este trabalho versa sobre a natureza dos traços
supra – segmentais, os quais incluem elementos que estão
acima dos segmentos lineares, cuja descrição não se faz em
termos dos movimentos dos articuladores, mas sim em termos
da ação dos músculos respiratórios que aumentam ou
diminuem a energia do fluxo de ar, resultando em durações,
freqüência e intensidade, estes são termos acústicos que se
correlacionam perceptivamente em quantidade, altura e volume.
A denominação “supra-segmental” se deve ao fato
da dificuldade do isolamento do mecanismo fisiológico envolvido
na produção. Tendo como exemplo, que a maior quantidade é
explicada a um esforço suplementar do ar pulmonar pela ação
dos músculos respiratórios e ajustamentos na laringe. No
entanto, estes processos também resultam em tom mais alto
e maior volume.
Os elementos supra-segmentais possuem uma
outra característica que é a relatividade: diz-se que um som é
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longo em relação a outro menos longo, que um tom alto no
homem é sempre mais baixo nas mulheres, ocasionado pela
tessitura da voz dos homens mais baixa que das mulheres.
Segundo Dubois (1993:577), elemento suprasegmental é uma “característica mais extensa que o fonema,
tais como o acento, a entonação e a duração”.
Na língua portuguesa, o termo tonicidade não é
adequado a nossa pragmática lingüística, pois o termo é uma
denominação errônea (Mattoso: 1994) da herança da
gramática grega que é uma língua tonal, e o tom constitui-se
em um fator de distintividade, o que para nós vem a ser o icto,
que é o elemento distintivo. E quando se fala em tonicidade,
temos de levar em consideração que o tom tem a função
distintiva em português em nível frasal, diferenciando as frases
declarativas das exclamativas. A tonicidade envolve também o
termo altura, e este se divide em línguas de tom de contorno e
línguas de tom de nível. No 1º, o tom na sílaba não é estável,
mas muda gradativamente num ascendente ou descendente.
Já em sílabas de tom de nível, o tom de cada sílaba se mantém
fixo em seu nível alto, médio ou baixo.
Dessa forma, o termo tonicidade trata de um outro
traço prosódico que não faz parte do sistema lingüístico no
qual estamos envolvido. Trata-se também do termo que,
segundo Callou (1995:41), não é um segmento e sim uma
qualidade que se superpõe a certos segmentos, evidenciado
quando produzimos diferentes vocábulos, como /’sabya/, /
sa’bia/ e /sabi’a/ ‘sabya/, /sa’bia/.
Essa distintividade é constatada em vocábulos, que
podem ser constituídos por um só item lexical: “pé, mão, casa”,
como por mais de um item lexical, formando um grupo de força,
ou seja, um conjunto de palavras que tem um vocábulo mais
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intenso que outros: / toduzuò’diaò/. O termo distintividade é
sinônimo, também, de funcional, pertinente ou relevante e se
refere à unidade mínima, contrastiva que distingue os elementos
lexicais. Ele serve para caracterizar as infinitas possibilidades
humanas de articulação e constata que um mesmo indivíduo,
ao não realizar o mesmo som de maneira idêntica, não impede
que se identifique sempre determinado som de uma língua.
Martinet (apud Callou, 1995:35) define:
TraÁo distintivo ou pertinente È aquele traÁo
fÙnico que, sozinho,
permite distinguir um
signo, uma palavra ou
um enunciado de outro signo, palavra ou
enunciado.
Há dentro do grupo de força um vocábulo que
superpõe aos outros. Esse fenômeno é produzido também na
modalidade escrita, baseando-se nas pausas acentuais de um
grupo de força ao outro. Temos como exemplo a enunciação
/’muytuyzamigus/for ãwa’festa/, aqui se forma um grupo de
respiração, quando o falante adequa, de acordo com a
respiração, de modo que a enunciação fique inteligível aos
interlocutores. Depreendemos nessa ocorrência um sintagma
de dois ou mais vocábulos que dão à frase um conjunto fonético
significativo. No primeiro momento, temos a formação do sujeito
e logo em seguida a formação do predicado e, nesse intervalo,
tem-se uma pausa respiratória, é quando o enunciador irá
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articular foneticamente outros vocábulos de acordo com o seu
pensamento.
Dessa forma, há uma sílaba predominante dentro
do vocábulo, que só é possível, graças à emissão central que é
a vogal, como principal característica na articulação fonatória,
tudo isso possibilitado pelo tom melódico da frase, que fornece
à fala a musicalidade, logo a vogal é tom puro, periódico,
enquanto que as consoantes são ruídos, não-periódicas.
A sílaba (Mattoso: 1997, 218)
È a emiss„o vocal assinalada
por um ·pice de abrimento
articulatÛrio e tens„o muscular, que corresponde ao
fonema sil·bico, e pode ser
precedido
de
fonemas
assil·bicos de abrimento e tens„o decrescente . Desse encadeamento articulatÛrio resulta uma percepÁ„o acústica
de unidade com um segmento
fÙnico mÌnimo capaz de constituir uma enunciaÁ„o ling¸Ìstica. Visto que o ·pice de
abrimento articulatÛrio
corresponde, do ponto de vista acústico, a um ·pice de sonoridade, ou perceptibilidade
acústica, a sÌlaba, assim defi-
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nida, diz-se sÌlaba sonora (auditiva). Em princÌpio ela È emitida num único impulso de
expiraÁ„o, mas num sÛ impulso tambÈm de expiraÁ„o, mas
tambÈm num sÛ impulso tambÈm se podem articular duas
sÌlabas sonoras, que ficam assim reunidas numa única
expiratÛria ou din‚mica.
Pode-se fazer uma intertextualidade com Callou
(1995:29):
Do ponto de vista articulatÛrio,
a sÌlaba, segundo alguns autores, corresponde a um acrÈscimo da press„o do ar expelido dos pulmões pela atividade
de pulsaÁ„o dos músculos respiratÛrios que faz com que a
saÌda do fluxo de ar n„o seja
contÌnua, mas em jatos sucessivos.
Do ponto de vista da percepÁ„o, considera-se a cadeia sonora como composta de
aclives, ·pices e declives de sonoridade, cada sÌlaba sendo
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constituÌda de um ·pice, que È
o seu núcleo ou centro ocupado por sons de alta sonoridade, como, por exemplo, as vogais. Os aclives e declives
constituem ìvalesî de sonoridade que determinam as fronteiras sil·bicas, suas margens, lugar preferencial das
consoantes.
Conclui-se que a sílaba é a emissão articulatória e
possui um centro silábico constituído pela vogal, graças à
articulação fonatória ou a fonação, que segundo Mattoso
(1986:11) é:
O ato humano de emitir sons vocais. Daí também, a
emissão feita, quando considerada apenas sob o seu aspecto
articulatório ou acústico, sem se levar em conta o seu valor de
forma lingüística, que reúne um significante e um significado. A
fonação considerada em seu intento significativo, a serviço da
comunicação, passa a ser a fala.
Afirma, por sua vez, Callou
(1995:20):
Resumindo, por processo
fonatÛrio, ou fonaÁ„o, entendem-se os diversos estados da
glote e conseq¸ente excitaÁ„o
acústica da corrente de ar ao
passar pelas cordas vocais.
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A intensidade de um som vem determinada pela
amplitude das ondas sonoras. Depende da força expiratória
com que se pronuncia um som. E esta força expiratória que
proporciona o acento de intensidade é chamada icto.
Como pudemos observar em /sabi’a/, sa’bia/ e
/’sabya/, o icto implicou em uma mudança semântica, nesse
caso, quando ele funciona como elemento distintivo, chama-se
de acentema.
II) TRAÇOS SUPRA-SEGMENTAIS:
Segundo Silveira (1988:31):
A intensidade È o efeito acústico que decorre da forÁa (press„o) do ato expiratÛrio, produzindo maior ou menor afastamento da posiÁ„o de repouso
das cordas vocais. Pela intensidade o ouvido percebe os
sons fortes e fracos: por isso
mesmo a intensidade relaciona-se ‡ amplitude, que È a dist‚ncia entre a posiÁ„o de repouso e a de afastamento.
Quanto maior for a intensidade, maior a amplitude, e viceversa.
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Um outro efeito é a duração, que é a quantidade
de tempo vista no processo da vibração das cordas vocais.
Abstraem-se, por meio dessa característica acústica, os sons
longos e breves; no caso do Português, a duração é suprasegmental e constitui variantes individuais estilísticas ou
regionais.
Como afirma Dubois (1998: 293, 294):
Freqüência de um som È o número de ciclos realizados por
um número de tempo. A freq¸Íncia se calcula, em geral,
em ciclos/segundo, ou hertz.
Sendo o perÌodo o tempo que
leva o corpo vibrante para efetuar um ciclo, a freq¸Íncia
corresponde ao inverso do perÌodo. A freq¸Íncia de vibraÁ„o
de um corpo depende de suas
qualidades especÌficas, entre
outras, se trata de uma cavidade, de seu volume, de sua forma, do tamanho da abertura
com relaÁ„o ao volume. Eis porque a modificaÁ„o da forma do
canal bucal acarreta variaÁões
da frequÍncia do som da lÌngua
(...).
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A altura sonora é o resultado da freqüência, ou
seja, do número de vezes que as cordas vocais vão e voltam,
por segundo, ultrapassando sua posição de repouso.
Freqüências iguais resultam no mesmo tom. Em decorrência
da altura, será pertinente para a descrição das línguas tonais.
No português, idioma de icto, grave e agudo são variantes
individuais ou estilísticas.
Segundo Lopes (2000: 121):
A altura relativa da entonaÁ„o
est· codificada nas lÌnguas indo
ñ europÈias para indicar sobretudo a modalidade funcional ñ
sem‚ntica da frase. AtravÈs
dela se expressa o sentimento
Ìntimo do falante, seus estados
de ‚nimo, a raiva, o desprezo, a
ironia, o espanto, enfim, todas
as informaÁões suplementares
que Jakobson englobou sob o
rÛtulo de funÁ„o emotiva (Cf. 1.
12. 4. 3).
Temos como divisão o tom nivelado e o tom de
contorno. E quando se trata de tom nivelado, há 7 níveis tonais
•O tom 7: utiliza-se em uma conversa normal,
encontrado principalmente na primeira sílaba átona do grupo
tonal e na sílaba tônica proeminente.
•O tom 6: usa-se a uma altura aguda e inclui o
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parâmetro força para demonstrar surpresa, espanto, nas
tônicas salientes de frases.
•O tom 5: este tom meio alto se atrela à altura da
sílaba tônica proeminente de uma frase interrogativa, que
expressa interesse, com o objetivo de pedir confirmação de
uma informação.
•O tom 4: este tom relaciona-se à altura da sílaba
tônica proeminente mais comum no final do grupo tonal de
meio de frase, como também na sílaba tônica proeminente da
frase interrogativa.
•O tom 3: o tom meio – baixo é usado em geral
para pedido de confirmação em uma pequena diferença de
altura do tom da frase declarativa normal, mas com a intenção
de alterar-lhe o caráter puramente assertivo.
•O tom 2: este tom corresponde à altura da tônica
proeminente do grupo tonal final de uma frase declarativa
normal.
•O tom 1: corresponde à altura da sílaba tônica
proeminente de uma frase declarativa, denotando comumente
advertência ou ausência de alternativa.
Um grupo de tom de contorno distribui-se em:
•Tom descendente estreito (DE) e tom ascendente
estreito (AE): o tom descendente estreito caracteriza-se pela
mudança suave de altura na sílaba em direção a uma altura
mais baixa.
•Tom descendente largo (DL) e tom ascendente
largo (AL): o tom descendente largo caracteriza-se pela
mudança suave de altura na sílaba em direção a uma altura
mais baixa.
•O tom descendente por salto (DS) e tom
ascendente por salto (AS): o tom descendente por salto (DS)
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caracteriza-se pela forma descendente brusca com início mais
forte comparando-se ao ditongo tonal, porque o início e o final
são mais audíveis.
•O tom descendente breve (NDB) e tom nivelado
ascendente breve (NAB): o tom nivelado descendente breve
(NDB) caracteriza-se por uma parte inicial; nivelada, com uma
duração menor do que a parte nivelada do tom nivelado
descendente longo, e por uma parte descendente final estreita.
•O tom nivelado descendente longo (NDL) e tom
nivelado ascendente longo (NAL): o tom nivelado-descendente
longo caracteriza-se por uma parte inicial nivelada do tom NDB.
A parte final é descendente estreita.
•O tom descendente ascendente estreito (DAE) e
tom ascendente descendente estreito (ADE): o tom descendente
ascendente estreito (DAE) caracteriza-se por um movimento
melódico descendente, seguido por um movimento melódico
ascendente estreito. A distância entre o início do movimento
melódico e a mudança desse melódico é menor que para o tom
descendente ascendente largo.
•O tom descendente ascendente largo (DAL) e tom
ascendente descendente largo (ADL): caracteriza-se pelo
movimento melódico descendente, seguido de movimento
melódico ascendente curto. Do seu início à mudança de direção
a distância é mais larga que no tom DAE.
O acento é o realce de uma sílaba dentro de uma
palavra, tomada como unidade acentual. Diferente dos tons,
que possuem um valor paradigmático opositivo, pois distinguem
morfemas e lexias, o acento realiza-se apenas
sintagmaticamente e seu valor é contrastivo.
Por si só o acento é incapaz de distinguir palavras
de sentidos diferentes. Ele individualiza apenas sílabas,
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operando sempre numa seqüência mínima de duas, das quais
uma é tÙnica ou acentuada, e a outra é ·tona ou não –
acentuada. Fala-se, por isso, em acento culminativo.
Diferentemente, também, dos tons que se
apresentam num número igual ou superior a dois, o acento é
único: as línguas tonais possuem dois ou mais tons opositivos,
mas as línguas acentuais possuem um único acento.
As regras que estabelecem o lugar do acento nas
palavras variam de língua para língua. Há línguas, como o
húngaro, em que o acento se encontra fixado invariavelmente
na primeira sílaba da palavra, ou, como o francês, na última
silaba da palavra, ou, como o polonês, na antepenúltima. Face
a essas línguas de acento fixo, há por outro lado, línguas de
acento livre, como o português, ou o latim, em que o lugar do
acento é imprevisível.
Se as línguas de acento fixo oferecem a vantagem
de demarcar com precisão as fronteiras entre as “palavras”
da frase, cumprindo-se nelas às maravilhas, a f u n Á „ o
demarcatÛria do acento, as línguas de acento livre, em contrapartida, podem manejar o lugar do acento como um recurso
extra para distinguir palavras de sentidos diferentes.
O que tem valor distintivo nas línguas de acento
livre, nesses casos, não é o acento em si, pois se trata sempre
de um e mesmo acento; é o lugar do acento, a sua distribuição
no corpo da palavra. E essa só pode ser apreendida através da
função sintagmática do contraste entre esquemas acentuais.
Essa distinção, portanto, não é fonológica; num e
noutro caso trata-se dos mesmos fonemas, e não de fonemas
diferentes. Não há, aí, confrontação, em nossa memória da
língua, com unidades do código in absentia na cadeia, o que
caracterizaria a função de oposição.
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Segundo Dubois (1998: 496):
Quantidade do som È sua duraÁ„o de emiss„o. Distingue-se: (1)
a
quantidade
objetiva
(mensur·vel), que pode ser calculada para cada som concreto
e depende das qualidades intrÌnsecas dos sons e de certos fatores tais como a vitalidade da
fonaÁ„o e do contexto fonÈtico,
e (2) a quantidade subjetiva que
possui uma funÁ„o ling¸Ìstica e
caracteriza o fonema. As lÌnguas
que utilizam ling¸isticamente a
quantidade opõem pelo menos,
dois tipos de fonemas, cuja diferenÁa de duraÁ„o È suficiente
para ser percebido pelo ouvido e
suster as diferenÁas de significado.
Fonema longo é o fonema que se diferencia tanto
fonética como fonologicamente através de uma duração superior.
Lingüisticamente um fonema longo, num dado
contexto fonético, tem uma duração suficientemente superior à
do fonema breve, a fim de que o falante tenha a nítida impressão
da distinção. As “longas” são em geral mais longas que as “breves”
aproximadamente 50%. Pela oposição entre uma vogal longa e
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uma vogal breve, o latim distinguia palavras como venit, “ele vem”,
e venit, “ele veio”. Essa oposição existe em francês, mesmo
estando em via de extinção: mestre [metr], “pôr” – maitre [me:tr].
“mestre”. Uma consoante longa é também geminada quando é
cindida em duas por uma fronteira silábica (por exemplo, em
italiano fatto, “feito” – fato, “acaso”).
Podemos perceber, desta forma, que o tom em
nossa língua portuguesa constitui-se em um fator de distinção
quanto aos significados de frases declarativas, interrogativas,
exclamativas, atos locutórios dos atos ilocutórios. Enquanto que,
nas línguas tonais, o tom serve de distinção de significado
quanto aos vocábulos, o que no português isso não é relevante
quanto à distintividade, utilizando-se apenas para exprimir a
emoção, o estado do falante.
Temos de levar em consideração, também, a
tessitura que é o conjunto dos sons que abrangem uma parte
da escala geral e convêm melhor a uma determinada voz.
III) LINHA TENDENTE:
A língua é um fenômeno instável que se modifica
no decorrer do tempo. Em vista disso, hão de se levar em conta
as modificações de ocorrência da transferência de intensidade,
sem implicações semânticas.
Os estudos que se fizeram até agora pelos
lingüístas não atentaram para este fenômeno, tendo-se
observado apenas a natureza dos traços segmentais e suprasegmentais.
Além disso, faz-se necessária uma reavaliação dos
conceitos herdados de maneira errônea da gramática grega
dos termos tonal, ocasionando as denominações “oxítona”,
“paroxítona” e “proparoxítona”, para que se estabeleça os
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conceitos de acordo com a nossa natureza prosódica.
A nossa língua é uma língua intensiva, pois em nossa
enunciação a musicalidade não é acentuada, como nas línguas
tonais, a exemplo do chinês, do grego, e de várias línguas
indígenas existentes aqui no Brasil. Nestes casos, há uma sílaba
fortemente acentuada acompanhada de uma musicalidade.
E quando se diz musicalidade da fala, cita-se a
entonação, que é um fenômeno da fala do qual o falante tem
clara intuição: “pela maneira como falou ...”, “pelo seu tom de
voz”, “do jeito que você falou, eu tinha entendido que ...”. e até
mesmo “pela entonação da sua voz...” são algumas das
expressões comumente usadas e que manifestam esse
conhecimento intuitivo.
E um dos fatores que contribuem para este
fenômeno é a natureza do ato de fala, que pode ser locutório
ou ilocutório. O ato locutório representa a enunciação normal
de um falante, enquanto que no ato ilocutório, há uma intenção
de alterar o receptor através de uma enunciação acentuada
de algum vocábulo.
A língua fundamenta-se pela argumentatividade, pois
o homem dotado de razão e vontade, avalia, julga, critica,
constantemente, formando juízos de valor. E, por meio do discurso,
ele tenta influir sobre o comportamento do outro ou tenta
compartilhar das mesmas opiniões. Este é o ato de argumentar,
ou seja, orientar o discurso no sentido de determinadas
conclusões, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia.
Temos, assim, duas maneiras de argumentar: o ato
de convencer e o ato de persuadir. O primeiro é baseado na
razão, através de um raciocínio estritamente lógico, como também
por meio de provas objetivas, podendo atingir uma totalidade, possui
um caráter genuinamente demonstrativo e atemporal, este ato
conduz a certezas; já o ato de persuadir procura conquistar a
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vontade, o sentimento do interlocutor, por meio de argumentos
plausíveis ou verdadeiros, contendo um caráter ideológico,
subjetivo, temporal, direcionando-se a um grupo particular,
cabendo a esse grupo a função da inferência.
Segundo KOCH (1987:21):
Se a frase È uma unidade sint·tico ñ sem‚ntica, o discurso constitui uma unidade
pragm·tica, atividade capaz
de produzir efeitos, reaÁões,
ou, como diz Benveniste
(1974), ìa lÌngua assumida
como exercÌcio pelo indivÌduoî. Ao produzir um discurso, o homem se apropria da
lÌngua, n„o sÛ com o fim de
veicular mensagens, mas,
principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-se como
EU e constituindo, ao mesmo
tempo, como interlocutor, o
outro, que È por sua vez
constitutivo do prÛprio EU, por
meio do jogo de representaÁões e de imagens recÌprocas
que entre eles se estabelecem.
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Com isso, a relação entre os interlocutores é
possível, pois os dois interlocutores possuem cada um o
seu EU.
Cada enunciado possui uma multiplicidade de
significações, explicado pelo fato do falante estar com múltiplas
intenções, por isso não teria sentido dar uma única e verdadeira
interpretação. Daí o sentido de um enunciado se estabelecer
pelas relações interpessoais que se estabelecem no momento
da enunciação, pela estrutura do jogo de representações em
que entram o locutor e o alocutário, quando na e pela enunciação
atualizam suas intenções persuasivas. Sobre este fenômeno,
Ducrot e Vogt destacam em seus trabalhos que o sentido
lingüístico deve ser analisado não apenas como identidade ou
diferença entre a estrutura do fato e a estrutura do enunciado
utilizado para descrevê-lo, ou seja, em termos de verdade ou
falsidade (o dizer), mas, a direção, as conclusões, o futuro
discursivo, enfim, o objetivo para onde esse enunciado aponta
(o mostrar). E essa inter-relação entre o dizer e o mostrar,
que permite a relação a tríplice linguagem ñ homem ñ mundo, o
que acarreta em ideologia na linguagem.
Interpretar significa que a todo momento, no
processo de comunicação, estamos nos fundando na suposição
de que quem fala tem determinadas intenções, buscando a
intelecção na captação dessas intenções, o que deixa em aberto
uma multiplicidade de interpretações.
A alusão, a ironia, o “blefe”, ocorrem com freqüência,
considerados como atos derivados de fala, como também como
aspectos constitutivos do uso normal da linguagem. Podemos
explicitar o ato perlocutório, que o locutor produz por intermédio
de suas enunciações, os atos de humilhar, ofender, atemorizar,
gabar e outros, enquanto que o ato ilocutório é um ato praticado
no e pelo discurso, ou seja, uma entidade totalmente lingüística.
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A respeito do “falar”, “dizer” e “mostrar”, Koch
(1987: 30) explica-nos de forma plausível:
“O falar consiste na produção de frases,
decorrentes da capacidade do falante de produzir determinados
sons de acordo com determinadas regras gramaticais, isto é,
de comportar-se gramaticalmente de acordo com essas regras.
É o nível gramatical, a que se refere Benveniste (1966),
correspondendo ao ato locucionário de Austin (1962). A frase
é uma entidade fono – morfo – sintática, decorrente das leis
segundo as quais os signos se combinam numa dada língua.
O dizer consiste em produzir enunciados,
estabelecer relação entre uma sequência de sons e um estado
de coisas. O enunciado é uma entidade semântica.
O mostrar está ligado à enunciação. Visto à luz do
processo de enunciação, o enunciado passa a ter um sentido,
que incorpora o processo de significação e mostra a direção para
a qual o enunciado aponta, o seu futuro discursivo”.
IV) CONTEXTO DA COLETA DE DADOS
A coleta de dados se deu por meio da reprodução
da situação de discurso sem qualquer tentativa de indução. A
coleta se procedeu espontaneamente desprovida de qualquer
gravador ou fita para que, desse modo, o caráter espontâneo
da fala do informante se desenvolvesse na sua mais genuína
naturalidade. O único caso em que não se utilizou a reprodução
da situação de discurso foi o referente à música da cantora e
compositora Marisa Monte, que, por tratar-se de uma gravação
em CD, dispensou a reprodução.
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1) /vo’se’e’paresidu’kn’sew’pay/
Quando eu estava em meu local de trabalho, no
armarinho, apareceu uma conhecida nossa que há algum tempo
não nos visitava. Quando ela me viu, percebeu a minha
semelhança genética com o meu pai, proferindo a frase citada.
No dia seguinte, reproduzi uma situação de
discurso, onde eu a indaguei o que ela havia falado logo no
momento em que ela havia chegado, para confirmar a palavra
transferida.
2)/’paóL’di¦a’la’beòteóL/
Essa frase foi enunciada em um bate-papo
descontraído na nossa roda de amigos, quando de repente um
amigo nosso emitiu uma opinião sem nexo, e, ao mesmo tempo
cômico. Como resultado uma frase imperativa no intuito de
advertência. Logo após ele ter emitido essa frase com um vocábulo
transferido, perguntei-lhe o que foi que ele havia pedido o outro
fazer, e aí eu confirmei a frase ouvida.
3)/’uaò’pekituo’óaw’tëy’a’póepõdeóãsyL’ëyrela’sãw’awaò’p
ekituiò’kóitu/
Sabe-se, como estudante e pesquisador constante,
que a Lingüística é a ciência que estuda a língua e a linguagem
humanas; conclui-se dessa forma que a modalidade oral
tem a supremacia em relação à modalidade escrita, pois a fala é
inerente ao ser humano, sendo a escrita o privilégio de muitos,
porém não de todos.
E, numa dessas aulas de Lingüística, o professor
dessa disciplina proferiu essa afirmativa, alterando,
possivelmente inconscientemente, a intensidade do vocábulo
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“preponderância”. Imediatamente indaguei-lhe qual a relação
que havia entre os dois componentes da língua com o objetivo
dele repetir a frase com o vocábulo transferido.
4) /’mïhïnu:’póeòtatë’sãw/
É bastante comum que o ser humano em fase
infantil não estabeleça para si mesmo uma consciência que
impeça muitas vezes o seu comportamento inadequado diante
de seus responsáveis. E a expressão acima registrada foi um
caso de uma professora de ensino fundamental, ao ministrar a
sua aula, ficou bastante irritada ao perceber que um de seus
alunos não a obedecia, depois de tantas petições carinhosas.
Essa ocorrência eu registrei quando estagiava em
uma escola pela disciplina Prática de ensino.
Ao término dessa aula fui até ela e comentei que
foi um dia muito irritante para ela por causa dos alunos, por
isso houve uma frase que eu havia me assustado e pedi que
ela repetisse a enunciação transferida, para a partir desse
momento eu anotar mais um dado para a minha pesquisa.
5) /mã’i::’ew’k eóu/
Esta frase desiderativa que não é classificada
oficialmente pela nossa gramática foi registrada quando
participava de um aniversário e, o filho de uma conhecida, ao
cometer vários atos que desagradaram a mãe dele, pediu
insistentemente algo para satisfazer algum desejo. Porém, essa
progenitora foi intransigente em relação ao pedido do filho,
por isso ele tentou de uma forma bem afetiva, tentar conquistar
o perdão proferindo de forma bem afetiva o vocábulo “mãe”,
inconscientemente sofresse transferência de intensidade.
Imediatamente para confirmar a ocorrência pedi que ele
persistisse no seu apelo. Dessa forma pude registrar e ao voltar
a minha casa somei mais este dado.
6) /’eli’takü’ma’fõmi/
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A ocorrência registrada aconteceu quando eu estava
em um restaurante por quilo e deu-se em virtude de um apelo
de um amigo meu que intercedeu pelo outro amigo para pedir
uma refeição a uma pessoa que estava dispondo de um prato
um tanto quanto farto em relação aos demais que estavam no
mesmo restaurante.
Esse amigo chegou com essa pessoa e, para mostrar
a gravidade da necessidade de preencher o vazio do amigo,
enfatizou o artigo indefinido feminino “uma”. Ao término da refeição
comentei o tom de destaque que ele havia enfatizado e pedi que
ele repetisse a frase, pois eu aleguei que eu não havia entendido
corretamente.
7) /’sobaò’tãti’iòpehtu/
A campanha política se reveste de várias
roupagens quando os candidatos pretendem conquistar o voto
do eleitorado. E numa dessas tentativas, ocorrem várias
situações cômicas, pois percebemos vários candidatos
despreparados, sem o mínimo apoio intelectual que um
dirigente de nossa sociedade tem que apresentar.
Essa expressão foi proferida quando um candidato
quis impressionar de uma forma bastante apelativa, de modo
que a sua apresentação acabou bastante cômica, pois ele era
desprovido de qualquer formação intelectual capaz de
convencer o eleitorado.
8) /’vose’taku’todu’gaò/
Em uma escola, durante o meu período de estágio,
uma equipe de trabalho foi se apresentar, porém seria apenas
um representante de cada grupo que iria expor oralmente,
enquanto que os outros integrantes iriam estar de prontidão
para qualquer indagação ou às interferências tanto do professor
quanto dos colegas de classe. E, na hora da escolha, já que não
queriam o sorteio, foram escolhendo o mais “laranja”; até que
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uma das integrantes enunciou a frase citada, tendo como ênfase
o pronome de tratamento, no intuito de influenciar de forma
decisiva a escolha, pois a decisão já se tornava cansativa.
Como eram meus alunos, então para registrar,
cheguei com a pessoa que praticou a transferência e falei-lhe
que ela havia sido bastante enfática na imposição da escolha e
pedi que me repetisse como foi que ela havia forçado a escolha
do representante.
9) /’ki’golasu/
A expressão citada é bastante comum entre nós,
brasileiros, pois convivemos todos os dias com esses momentos
de alegria e emoção.
Foi registrada essa ocorrência quando eu
acompanhava pelo televisor um lance de craque resultando
em um gol que foi unânime pelos cronistas esportivos da mídia
como o gol mais bonito da rodada.
No momento da percepção, perguntei-lhe “Que o
quê?”, com o intuito dele repetir a palavra “golaço”, e dessa
forma pude constatar com mais seguridade a transferência de
intensidade.
10) /‘ki’aviãw/
Essa frase implica em uma certa ambigüidade, pois
em nosso idioma do português brasileiro, o termo “avião”
designa o transporte que sobe ao ar e possibilita uma condução
mais rápida em relação aos outros meios de transporte como
o ônibus, navio e trem, e em outros contextos designa algum
rapaz ou moça atraente. E foi essa segunda interpretação que
ocorreu quando em uma roda de amigas, uma das integrantes
enunciou essa frase, exprimindo a sua emoção. Nesse instante,
cheguei perto dessa garota e pedi que ela repetisse a frase,
tal foi a admiração pelo rapaz.
11) /’goòtey/
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O sujeito-falante foi um aluno universitário que
dificilmente conseguia obter uma nota máxima em suas
avaliações. Porém nessa ocasião teve a oportunidade de
expressar a alegria em decorrência de seu sucesso nessa
avaliação. Aproximei-me dele e perguntei-lhe “E aí tu gostaste
mesmo dessa nota?”, vindo logo em seguida a repetição “Gostei!”
12) /’paóa’pay’degwa/
Essa expressão foi enunciada por um paraense nato
que ao se alimentar de pratos típicos do Pará, exprimiu essa
frase, pois já algum tempo ele estava fora do território
paraense, e nesse momento ele pôde se sentir em casa. E junto
com ele estava a sua esposa que procedia de outra unidade
do território nacional, e isso também influenciou para que ele
enunciasse essa frase porque ele queria impressionar e
mostrar as qualidades intrínsecas à nossa região no que tange
à culinária paraense.
Nessa hora para conseguir registrar o fenômeno,
fingi desconhecer essa expressão e perguntei-lhe como era
mesmo a expressão para que eu confirmasse o que ele havia
enunciado.
13) /e’guL/
A interjeição acima proferida foi enunciada por um
paraense que estava diante de uma roda de amigos
procedentes de outros estados do país, e esses amigos de
outros estados estavam contando as vantagens de cada estado
procedente. O paraense, por sua vez, querendo também colocar
os
valores de sua região, quis impressionar de forma bem
genuína, enunciou essa expressão desconhecida para muitos
brasileiros. Cheguei-me até ele e perguntei-lhe o que ele havia
dito minutos antes, uma frase que eu fingi novamente
desconhecer.
14) /’ki’kãsãw/
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Quando passava pelo bar perto de casa, havia um
concurso entre amigos de videokê. E nessa ocasião, se
sobressaiu uma música que se destacou de tal forma que até
os ouvintes de uma boa distância ficaram admirados com a
melodia do rapaz que cantava, de tal forma que muitos se
aproximaram, e nessa ocasião, ouvi alguém dizer “Que canção!”.
Devido à admiração unânime, ele transferiu a intensidade da
última sílaba /sãw/ para a sílaba inicial /kã/. Para confirmar
o registro do fenômeno, fui até essa pessoa e comentei com
essa pessoa que de fato havia sido uma das melhores músicas
cantadas naquele concurso.
15)
/
’aatu’awpóefey’tuóL’ta’sëdu’müytu’dezõneòtL’kü’sew’povu/
Devido à guerra política que se trava em época de
eleição entre os candidatos, o conteúdo geralmente recai sobre
as mazelas dos adversários, esquecendo de propagar as
suas próprias propostas. E, em uma dessas propagandas,
ouvi um candidato da oposição ao prefeito afirmar que a
prefeitura era muito desonesta com relação às promessas
feitas durante a candidatura. E, a palavra “desonesta” sofreu
uma transferência de intensidade.
16) /vãmula’bóaziw/
Durante a Olimpíada, estava assistindo ao jogo de
nossa seleção brasileira de futebol. Nessa ocasião, o Brasil
estava muito lento no seu setor ofensivo, de modo que o jogo
tornara-se muito monótono. Até que numa hora, um
companheiro nosso de bar exclamou “Vamos lá, Brasil!”. O
vocábulo “Brasil” sofreu uma transferência, tal era a sua revolta
diante do andamento da partida.
17) /’apÉlu/
Certo dia fui a um banco efetuar um pagamento,
quando, de repente, deparei-me com uma colega minha, que
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estudou comigo no Ensino Médio, há alguns anos. Devido ao
tempo de ausência entre nós, ela me abraçou e enunciou
bradamente: “Apolo”, transferindo a intensidade original do /
pÉ/ para o /a/.
18) /’ÉlLki’belezuóL/
Pude observar este dado em uma ocasião em que
eu estava em um shopping da cidade, quando passei perto de
uma consumidora que estava pesquisando preço e produto.
Quando ela se deparou com um produto de moda, exclamou
para sua amiga que estava ao lado: “Olha que belezura”,
mudando a transferência do icto /zu/ para a sílaba inicial /
be/. Discretamente eu perguntei a essa senhora o que ela
achava daquele produto da moda.
19) /’ewiò’kulãbey/
A transferência do verbo “esculhambar” se deu em
virtude da minha colega de classe, em conversa informal, em
um bate – papo descontraído, contava-nos a respeito da
caixinha de formatura, na qual sua filha estava inserida. E, como
normalmente acontece, houve confusão envolvendo os
integrantes dessa caixinha, por essa razão, a minha colega
interferiu em defesa de sua filha, afirmando-nos que deu uma
“esculhambação”. Assim que ela falou, eu quis saber novamente
o que ela havia feito, para que ela enunciasse a frase
transferida.
20) /’mayò’du’ki’pasu’a’payòãw/
Essa passagem foi extraída da música da cantora
e compositora, Marisa Monte. Devido à palavra “paixão” conter
semanticamente o sentimento forte, a cantora expressou-se
de forma bastante emotiva. Assim como na fala, essa
transferência poderia ter ocorrido.
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V) ANÁLISE DOS DADOS
1)
a)
“Você é parecido com o seu pai!”
b)
/vo’se’epaóe’sidu’kõusew’pay/
c) /paóe’sidu/
d) /vo’se’ e’paóesidu’kü’sew’pay/
Tivemos nessa ocorrência uma transferência de
intensidade, visto que a carga emotiva do sujeito – falante
impulsionou-o a se expressar de forma que os traços supra –
segmentais do falante, tais como a quantidade, altura e volume
se alterassem conforme o contexto da comunicação.
Ocorreu neste fenômeno lingüístico uma
justaposição fonológica, pois o que se percebe é que a
transferência da sílaba paroxítona não anula a intensidade
paroxítona.
Nota-se claramente que as intenções entre os
interlocutores se faz presente nesses momentos para expressar
o grau de intimidade entre os interlocutores. Diferentemente se
entre esses dois interlocutores houvesse um certo grau de
distanciamento no que tange à liberdade de se expressar dessa
forma.
2)
a)
“Pára de falar besteira!”
b)
/’paóL’difa’labeò’teóL/
c)
/beò‘teóL/
d)
/’paóL’difa’la’beòteóL/
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Tem-se aqui uma enunciação imperativa, e até certo
ponto, devido ao contexto registrado, um tom pejorativo pelo
qual o falante quis transmitir ao seu intercolutor.
Evidencia-se mais uma vez o caráter do ato
ilocutório devido ao fato do falante no dizer, quer também
mostrar o que perpassa o simples dizer para que o efeito de
sua fala tenha um caráter marcante.
3)
a) “O aspecto oral tem a preponderância em relação
ao aspecto escrito”.
b)
/
’uaò’pekituo’óaw’tëy’apóepõde’óãsyL’ëyrela’sãw’awaò’pekituiòkóitu/
c) /póepõde’óãsyL/
d)
/
’uaò’pekituo’óaw’tëy’a’póepõdeóãsyL’ëyrela’sãw‘awaò‘pekituiò’kóitu/
Houve uma transferência do icto da penúltima sílaba
para a sílaba inicial por fatores de ordem enfática, pois o
destaque da oralidade em relação à escrita se faz presente
em toda e qualquer explanação nas aulas de Lingüística. E o
vocábulo “preponderância” foi uma palavra – chave para essa
explicação.
Percebe-se dessa forma que o tom de destaque, o
qual marca as diferentes frases na língua portuguesa, fica mais
uma vez perceptível.
Devido ao grau de formalismo, no qual o falante se
encontra, o falante quer convencer os seus receptores, de
forma que os assuntos por ele ministrado tenha uma aceitação
no meio. Conclui-se dessa forma que a transferência tem uma
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importância fundamental no que tange ao ambiente entre
diferentes níveis sócio-intelectuais.
4)
a)
b)
c)
d)
”Menino, presta atenção!”
/mï’hïnu:’póeòtate’sãw/
/mï’hïnu/
/’mïhïnu:’póeòtate’sãw/
No caso acima, constatou-se a transferência do
vocábulo paroxítono para a proparoxítona, ocorrendo em
posição de vocativo, agora no intuito de repreender alguém.
Isto foi possível, graças ao ato ilocutório que a falante no ato
da enunciação colocou em prática toda a sua carga emotiva.
Expressa-se a vontade através da transferência do
icto para outra sílaba. Constata-se com isso uma correlação
entre o aspecto psicológico e a produção fônica resultando em
diferentes tons.
5)
a)
b)
c)
d)
“Mãe, eu quero”
/’mãy:’ew’keóu/
/’mãy/
/mã’i::’ew’keóu/
Nesse caso ocorreu um prolongamento da semivogal
em decorrência da afetividade efetuada pelo filho ao solicitar à
mãe um objeto por ele desejado, no entanto, a mãe estava, no
contexto, intransigente em relação ao pedido do filho.
A ocorrência expõe um vocábulo em posição de
vocativo. Tanto na sintaxe quanto na fonologia, o vocativo está
situado isoladamente. Não há nenhuma relação que o ligue a
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outros componentes da enunciação.
Nota-se que a emotividade é um dos fatores que
contribuem para a transferência, pois essa função da linguagem
expressa o sentimento interno do falante.
6)
a)
b)
c)
d)
“Ele tá com uma fome!”
/’eli‘ta’kõ’uma’fõmi/
/’umL/
/’eli’takü’ma’fõmi/
Em determinados grupos de força, encontramos
alterações de intensidade, resultando na fusão entre uma
preposição e o artigo indefinido feminino como é o caso acima
citado. Conclui-se dessa forma, que o desejo enfático no ato de
linguagem se faz presente devido à situação em que se
encontra o interlocutor no ato da enunciação.
7)
a)
b)
“Sou bastante esperto”
/’sobaò’tãtiiò’pehtu/
c)
/iò’pehtu/
d)
/’sobaò’tãti’iòpehtu/
A palavra sofreu uma transferência do icto na
penúltima sílaba com o padrão silábico CVC, e com uma observação:
a segunda consoante é uma vibrante final. Mesmo assim, a
vontade, de cunho publicitário, impulsionou a antecipação do icto
para a antepenúltima sílaba, uma sílaba formada pelo padrão
silábico por VC, e a vogal sofre a neutralização do /e/ para o /i/
e, por alofonia a variante [is] por [iò].
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8)
a) “Você tá com todo o gás!”
b) /vo’se’ta’kü’todu’gaò/
c) /vo’se/
d) /’vose’ta’kü’todu’gaò/
O ato ilocutório foi uma arma importante nesta
transferência, pois sem ela dificilmente o falante iria chamar a
atenção de seu receptor – alvo.
9)
a) “Que golaço!”
b) /’kigo’lasu/
c) /go’lasu/
d) /’ki’golasu/
Nesta ocorrência, temos a formação derivacional
formada pelo morfema lexical “gol”, somado ao sufixo “açu”.
A enunciação ocorrida deu-se em um contexto em
que o jogador de futebol fez um gol de placa. Logo em seguida
um torcedor exprimiu a sua emoção exclamando e transferindo
a intensidade da palavra com o icto na penúltima sílaba para a
antepenúltima sílaba.
Dessa forma, percebe-se que as frases
exclamativas são muito propensas à transferência. Há a
presença implícita do verbo, pois as frases nominais são o
resquício, o fragmento de uma frase verbal. A frase “Que
golaço!” poderia ser ampliada por “Mas que golaço foi esse !”.
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A principal característica de uma frase exclamativa
é a expressão da emoção do falante, com isso ele articula
através do processo fonatório uma emissão em decorrência
de fatores extralingüísticos.
10)
a) “Que avião!”
b) /’kiavi’ãw/
c) /avi’ãw/
d) /‘ki’aviãw/
Esta frase é uma frase que traz uma ambigüidade,
pois “avião” significa um aeródromo dotado de meios próprios
de locomoção, e cuja sustentação se faz por meio de asas. No
entanto, no signo lingüístico brasileiro o termo “avião” faz
referência a uma moça ou um rapaz atraente. E foi esta segunda
significação que foi registrada nesta pesquisa, ao se ouvir
perceptivamente que uma determinada jovem sentiu-se atraída
por um rapaz bem vestido e dentro dos padrões de beleza
estabelecidos pela sociedade.
Pelo ângulo fonético, notou-se a importância do
som sonoro por excelência e, mais especificamente a força do
som vocálico por excelência [a], atraindo o icto do ditongo em
posição final de vocábulo.
Ressalte-se que este vocábulo tem o tema teórico
em /ón/, ao se pluralizá-lo nota-se este fato, pois ele advém
do francês “avión”.
11)
a)
“Gostei!”
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b) /goò’tey/
c) /goò’tey/
d) /’goòtey/
Temos aqui um verbo intransitivo ocasionado por
um falante que ao se deparar com o resultado de sua avaliação
escolar, enunciou a frase verbal aos seus amigos.
A transferência foi facilitada pela oração simples,
composta apenas por um verbo. Deste modo podemos inferir
que as frases compostas por apenas um verbo são bastante
propensas à transferência, e no caso em questão, o verbo em
primeira pessoa, cuja expressividade pertence ao emissor.
12)
a)
“Pará pai dégua!”
b) /pa’óa’pay’degwL/
c) /pa’óa/
d) /’paóL’pay’degwL/
Essa frase é uma frase tipicamente papa-chibé,
intrínseca à nossa região paraense e emitida quando um
determinado paraense estava tomando na ocasião um tacacá.
Temos na nossa gramática o registro de um acento
diferencial que separa o “pára”, verbo do “para”, preposição.
Porém devido a essa revisão não restrita à análise fonológica,
com o registro de uma transferência do icto, a comprovação
de que o termo “Pará”, um vocábulo com o icto na última sílaba,
sofreu alteração intensiva sem implicância semântica.
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a) “Égua!”
b) /’egwL/
c) /’egwL/
d) /e’guL/
Ocorreu no caso acima uma sílaba inicial mais
intensa para o ditongo seguinte, gerando uma diérese pelo fato
de que a emissão do ato respiratório foi alterada, sem que isso
implicasse em uma mudança de significado. O tom enfático que
caracteriza os diferentes tipos de frases na nossa língua foi
decisiva nesta ocorrência devido à emotividade que o falante
quis demonstrar no ato da enunciação.
14)
a) “Que canção!”
b) /’kika’sãw/
c) /kã’sãw/
d) /’ki’kãsãw/
Temos uma frase nominal que significa um resquício
de uma frase verbal. Dessa forma, as frases nominais são muito
sujeitas à transferência, pois com a ausência de um verbo, toda
a força de emissão recai sobre o nome que está em evidência.
15)
a) “A atual prefeitura tá sendo muito desonesta
com o seu povo”
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c) /dezo’neòtu/
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’aatu’awpóefey’tuóa’ta’sëdu’muytu’dezoneòtL’kü’sew’povu/
Aqui nesta ocorrência houve uma transferência
para o sufixo “de”, dessa forma há uma vulnerabilidade dos
sufixos em deslocar o icto de sílabas posteriores para o início,
mesmo em vocábulos polissilábicos. Não esquecendo que o
caráter enfático de mostrar aos eleitores a inoperância de
poder público, contribuiu de forma decisiva no ato ilocutório do
candidato da oposição.
16)
a) “Vamos lá Brasil!”
b) /’vãmu’labóa’ziw/
c) /bóa’ziw/
d) /’vãmu’la’bóaziw/
A transferência que se registrou no caso acima foi
resultado de uma emoção do falante que se sentiu desanimado
ao presenciar a seleção brasileira jogar de modo nada animador.
Pudemos constatar a tendência da sílaba inicial atraindo a
intensidade. Note-se que há a presença do caráter emotivo do
falante em expressar toda a sua carga emotiva no ato de
enunciação. O que fica mais uma vez patenteado que há fatores
extra-lingüísticos que concorrem para que a transferência
intensiva seja possível.
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17)
a) “Apolo!”
b) /a’pÉlu/
c) /a’pÉlu/
d) /’apÉlu/
Temos aqui um caso de justaposição fonológica em
função do ato ilocutório através de um único vocábulo com o
objetivo de enfatizar a atenção que a pessoa quis do “Apolo”.
Temos aqui mais um comprovação de que a intenção de falante
se superpõe no ato de fala.
18)
a) “Olha que belezura!”
b) /’ÉlL’kibele’zuóL/
c) /bele’zuóL/
e) /’ÉlL’ki’belezuóL/
A transferência intensiva é muitas vezes
condicionada por alguns fatores, entre os quais encontramos
no caso mencionado: o vocábulo “belezura” é composta do
adjetivo “beleza” somado ao sufixo derivacional “ura”. O vocábulo
pode muitas vezes, em virtude do aspecto derivacional ficar
vulnerável à toda e qualquer transferência, em virtude da
própria natureza da formação da palavra que foi a
imprevisibilidade.
19)
a) “Eu esculhambei!”
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b) /’ewiòkulã’bey/
c) /iòkulã’bey/
d) /’ewiò’kulãbey/
Temos aqui mais um caso de justaposição
fonológica, pois a intensidade transferida não anula a
intensidade da última sílaba /bey/. O objetivo da transferência,
mais uma vez foi o tom enfático da ação do verbo.
20)
b) “Mais do que passo a paixão”
b) /’mays’du’ki’pasu’apay’òãw/
c) /pay’òãw/
d) /’mays’du’ki’pasu’a’payòãw/
Temos uma comprovação de que a
sentimentalidade, o lirismo, influencia de modo marcante na
transferência de intensidade.
Ouve-se que a semivogal /y/ do vocábulo “paixão”
não foi neutralizada, devido ao caráter formal que música se
apresenta. Porém essa formalidade não impediu que a cantora
enfatizasse o vocábulo transferido.
124
COMO SE FOSSE UMA CONCLUSÃO
Durante a pesquisa foi constatada a ocorrência do
icto com função pragmática e, dessa forma, vários conceitos
tradicionalmente estabelecidos pela Fonologia podem ser
acrescidos para melhor compreensão, contribuindo para uma
nova visão a respeito da produção fonológica.
A Lingüística Aplicada é uma das beneficiadas, já
que, por meio dessas conclusões, o professor de Língua
Portuguesa pode reavaliar os conceitos trabalhados em sala
de aula. Porém, o grande problema é: o professor, via de regra,
não trabalha a oralidade, acarretando uma aprendizagem
deficiente, pois o aluno não adquire uma visão entre o aspecto
oral em relação ao aspecto escrito.
Não surte nenhum efeito positivo, o professor
classificar as palavras em “oxítona, “paroxítona” e
“proparoxítona”, se a realidade que se apresenta nem sempre
condiz com essa classificação, podendo, muitas vezes, o aluno
praticar uma dessas transferências, e o professor, desprovido
de qualquer base lingüística, repreendê-lo, quando, muitas vezes,
ele mesmo as pratica.
Muito mais que ensinar, é função primordial do
professor pesquisar. Os que realizam esta tarefa buscam soluções
somente no que tange ao aspecto puramente metodológico. Por
isso, a Universidade fica com todo o ônus da pesquisa, e muitos
acadêmicos de ensino superior não conhecem o sentido de
pesquisa, o valor que ela representa.
Um outro dado interessante foi que o método
perceptivo de audição de diálogos mostrou-se o melhor método
para, em uma entrevista lingüística, obter-se a total
125
espontaneidade de fala do informante. A utilização de recursos
como gravador pode, muitas vezes, inibir o informante e dar
um cunho formal à entrevista, como também pode reproduzir
de modo infiel a fala do informante, comprovando que o recurso
do ouvido ainda é o melhor material para este trabalho. Para a
concretização de nossa pesquisa, fez-se necessária a
reprodução de situação de discurso, que é o conjunto de
circunstâncias no meio das quais se desenrola um ato de
enunciação.
Podemos observar esse fenômeno em locutores
de rádio durante as transmissões de jogos, pois o contexto em
que se desenrola o ato da fala envolve emoções que os levam
a emitir os sons de modo a enfatizar alguma sílaba. Um outro
momento propício para a observação de transferência de
intensidade é quando o professor se encontra dentro de uma
sala de aula, em meio a alunos inquietos, o que o leva a enunciar
determinados vocábulos com o intuito de chamar e prender a
atenção, alterando a acentuação da palavra.
Espero que esta pesquisa tenha contribuindo para
uma nova forma de observar as modificações da nossa língua,
enquanto fenômeno mutável e dinâmico.
Foi preciso até mesmo a definição dos limites da
Lingüística para explicar esse fenômeno da transferência, haja
vista que envolveu aspectos ligados à Psicologia; e é justamente
nessa hora que percebemos a natureza dos estudos
lingüísticos, os quais nasceram dentro de um contexto
multidisciplinar.
Desde a Antigüidade, os filósofos gregos
observavam a natureza do signo lingüístico sem qualquer
compromisso com o aspecto puramente lingüístico. A geografia
contribui de forma decisiva para a Lingüística, a partir do
126
momento em que se afirma que a influência dos fatores
climáticos modifica a fala de uma determinada região.
Analisando toda e qualquer interferência extra –
lingüística, percebemos que as variações de altura melódica da
frase são passíveis de serem alteradas, pois o que se observa,
em alguns contextos, é que não apenas a intensidade é alterada,
mas a altura ou tom, juntamente com a intensidade, são
alteradas.
Os livros didáticos devem levar em consideração
esses fatores de ordem pragmática, caso contrário, tanto o
professor quanto o aluno estarão futuramente
descontextualizados frente a uma nova prosódia.
O que dizer então quando um ditado for posto em
prática? Pensemos no confronto entre o que o aluno produzirá
em decorrência da fala e aquilo que o professor irá tentar
“corrigir” em produções de seus alunos. Faltam, nas nossas
escolas, pesquisas de natureza pragmática para acabar com
os vícios pedagógicos. Não é somente colocar toda a criança
na escola, mas lhe oferecer mais qualidade, mais capacitação
de professores e pedagogos, a fim de que a retórica de muitas
questões irrelevantes, dentro de uma escola, sejam deixadas
para trás, questões estas que refletem o próprio
subdesenvolvimento de nosso país.
Neste trabalho não houve uma investigação neste
sentido, quanto aos resultados desta pesquisa para o ensino,
porém, para futuras buscas, espero que isto seja mais um passo
para o desmazelamento do ensino tradicional.
Falta ao professor de língua trabalhar e enfatizar a
oralidade, estimular o aluno a produzir textos oralmente,
trabalhar a entoação no ato da leitura, de acordo com o
contexto. Sem isso fica difícil o aluno produzir uma leitura do
texto e, ao mesmo tempo, realizar uma boa produção textual.
127
No passado, a oratória era bastante enfática, pelo fato de que,
naquela época, não havia uma classe massificadamente letrada.
Atualmente, a oratória fica bastante deslocada pela falta de
um preparo mais adequado de nossos profissionais, em
assegurar à criança uma melhor maneira de se expressar. O
que se observa hoje em dia é o silêncio que amedronta qualquer
indivíduo.
O ser humano começa, basicamente, chorando,
depois, pequeno, balbuciando, em seguida falando. Daí, a
solução mais prática é habilitar este ser humano à uma prática
oral, para, quando chegar na leitura emotivo – interpretativa,
consiga correlacionar as formas ortográficas e fonológicas,
vindo, logo em seguida, o estágio de interpretação da informação
e de depreensão de traços emocionais.
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BIBLIOGRAFIA
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à teoria e prática. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi da. Estudos de fonologia
portuguesa. São Paulo: Cortez, 1986.
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Dora - Uma Estrela
de quatro pontas, uma
ponta da estrela ideal
LUCIANA
DE
MORAES
R AYOL
O trabalho de graduação da aluna Luciana Moraes Rayol
tematiza a obra de Jorge Amado, um dos escritores mais
lidos da Literatura Brasileira de todos os tempos, embora
não seja tão estudado por aqueles que compõem a academia.
O ensaio da aluna privilegia o universo feminino da obra
amadiana. Neste universo, ela dá destaque a Dora,
personagem do romance Capitães da Areia (1937).
“Dora, uma estrela de quatro pontos, uma ponta da estrela
ideal” compõe-se, basicamente, de duas partes. Na primeira,
destacam-se as multifaces da personagem no (sub)mundo
dos capitães da areia. Na segunda, é traçado um paralelo
entre Dora e três das mais conhecidas figuras femininas
do romance de Jorge Amado: Gabriela, Tieta e dona Flor.
Considero que um trabalho de graduação é processo. nele,
Luciana Rayol cumpriu, com seriedade, todas as etapas
para, finalmente, trazer à luz este ensaio que, no meu
ponto de vista, pode contribuir com aqueles que se iniciam
na leitura da obra de Jorge Amado.
Prof. Ms. Josse Fares
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Luciana de Moraes Rayol
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ara ser realizada a minha pesquisa, eu fiz três
escolhas, na presente ordem: autor, obra e personagem.
Optei por Jorge Amado por ser um dos meus autores favoritos e por, infelizmente, ele ser discriminado em
seu meio, por ser considerado um autor raso, de uma personagem só. Meu trabalho então, será uma forma de
desmistificar essa fama ingrata que o autor baiano ganhou.
Logo em seguida, veio a idéia de tirar de Capitães
da Areia a base do meu texto, por se tratar de um livro da
fase proletária de Amado, característica distante da que lhe
deu fama: a de cronista de costumes. A obra foi escrita em
1937, quando o autor, aos 25 anos de vida, ainda acreditava
que “todo jovem tem o dever de ser socialista”.
A personagem principal, não do livro, mas sim, da
minha pesquisa, é Dora. Antes de falar sobre ela, é necessário
que eu explique o por quê de minha escolha.
Os Capitães da Areia são um grupo de meninos
de rua da cidade da Bahia. Dora, ao ficar órfã de pai e mãe e se
ver na rua tendo como única companhia seu irmão menor, Zé
Fuinha, acaba, por intermédio de João Grande e Professor,
indo parar no grupo. Sendo então a única mulher do bando,
logo Dora ganha um caráter quadridimensional aos olhos
deles. Ela é mãe, irmã, noiva e esposa. Com isso, se torna
figura de destaque na obra.
Considerando a glória obtida por Jorge Amado acerca de suas personagens femininas, o trabalho serve de passaporte a Dora para sua entrada neste rol.
Minha explanação será dividida em duas unidades: Dora no universo masculino dos Capitães da Areia, e Dora
no universo feminino das figuras de Jorge Amado.
Na primeira unidade, baseada na própria divisão
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Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal
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de caracteres de Dora que o autor fez, apresentarei um a um
dos Capitães da Areia e destacarei a relação dos mesmos com
Dora e as consequências desse encontro.
Já na segunda unidade, Dora se juntará à Gabriela,
Dona Flor e Tieta sendo ora confrontada, ora aproximada das
mesmas, para que se tenha enfim a percepção de que não
existe a melhor, nem a mais importante. Unidas, com seus defeitos e qualidades, elas formam o todo – a mulher ideal.
Para a melhor visualização dessa mulher ideal, designarei as quatro personagens a partir da Astropsicologia,
atribuindo às mesmas elementos astrológicos e funções psicológicas próximos à natureza de cada uma delas.
A Astropsicologia foi escolhida como base desse
estudo pois, ao contrário do que se pensa, os elementos astrológicos assim como as funções psicológicas não representam
ícones opostos entre si. Juntos, eles resultam no equilíbrio,
naquilo que chamamos de ideal.
Logo, Dora é água e sentimento; Gabriela é fogo e
intuição; Dona Flor é ar e pensamento; Tieta é terra e percepção e, a partir dessa mandala, vislumbramos a mulher ideal.
Este trabalho de graduação, afinal, tem diversos
motivos e objetivos, sendo multifacetado como Dora – a menina estrela do Trapiche, escolhida no vasto céu constelado da
Literatura Brasileira, para iluminar o leitor acerca do traço inconfundível de Jorge Amado.
2 DORA NO UNIVERSO
MASCULINO DOS CAPITÃES DA AREIA
“A paz da noite envolve o trapiche”
Jorge Amado
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2.1 DORA
ìMais valente porque È
apenas uma menina,
apenas est· comeÁando a viverî
Jorge Amado
Os Capitães da Areia são um grupo de meninos de
rua da cidade da Bahia. Cem, cento e cinqüenta meninos entre
cinco e quinze anos que vivem em um trapiche abandonado na
beira da praia. Eles roubam, trapaceiam, burlam a lei para sobreviver. Entre farrapos de dor e aventura, essas crianças vão tecendo a colcha de retalhos que cobre suas vidas e acalenta suas
noites: o céu estrelado de Salvador.
E deste mesmo céu de estrelas, Deus dá-lhes o seu
melhor presente: Dora. A-Dora-da ou Dorothea? Dorothea, presente de Deus, para uns meninos que teriam parte com o Diabo.
Ela tem treze, quatorze anos, é uma menina com o
cabelo caído pelo ombro em uma onda dourada, e um rosto
muito sério de quase mulherzinha. Seus pais, mortos pela varíola, deixaram-na órfã, tendo como companhia seu irmão caçula, Zé Fuinha.
Discriminada por ser filha de bexiguento, ela se vê
sozinha, sentindo que a noite é sua inimiga. Nesse ponto, Professor e João Grande a conhecem e decidem levá-la para o
Trapiche.
Citar o Trapiche como um substantivo próprio, devese ao fato de, também ele, representar uma personagem, um
Capitão da Areia. Comparamos o Trapiche de Jorge Amado ao
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Sobrado de Érico Veríssimo, sendo, os dois, lugares tão
marcantes, que passam a interagir com seus habitantes.
Então, do mesmo modo que Dora ilumina a vida dos
Capitães da Areia, notamos o Trapiche mais claro, acolhedor, maternal, pacificado enfim, com a chegada da menina.
Vislumbramos a ida de Dora para o mundo dos Capitães da Areia como um raio de Sol em um lugar marcado pelas
trevas do abandono e da violência.
Vale ressaltar que, no grupo, há destaque para oito
dos Capitães e a pesquisa abordará justamente a interação
de Dora no mundo pessoal e universal desses meninos.
Criaturas tão diferentes e, paradoxalmente, tão atreladas entre si pela vida marginal que levam, não poderiam ter o
mesmo tipo de relação com Dora. Não. As relações acontecem
quadridimensionalmente, fazendo com que Dora, como uma
camaleoa, se ajuste a cada um deles conforme a necessidade
dos mesmos.
Logo, ela é mãe, irmã, noiva e esposa, idealizada
por eles. Em sua cabeça, apenas age com naturalidade, não
tem noção da extremada importância que sua presença tem
para aquele grupo.
Pensamos que a única pessoa que tem a devida
idéia do significado de Dora para os Capitães da Areia, é Professor.
João José, o Professor, a via como noiva, como a
Amada, que adornaria os seus mais belos e chocantes quadros. Seu amor platônico, poético e, por que não dizer,
transcendental, fazia-o ter os olhos mais atentos em Dora, e
nas sensações que ela causava entre eles.
A alegria de Gato ao rever, em Dora, sua mãe costu135
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rando sua camisa; o rosto iluminado de Volta Seca ao reconstruir a figura da brava sertaneja, comadre de Lampião, sua mãe,
em uma menina loura e franzina; a paz que encheu os olhos de
Pirulito ao poder, finalmente, contar a sua mãe que ele desejava
ser padre. A admiração do revoltado Sem-Pernas; a fidelidade
de João Grande, que a comparava em valentia a Pedro Bala; o
jeito bamba de Boa-Vida chamá-la de irmã. Todas essas imagens ficam gravadas na mente de Professor que as transformaria em arte depois da perda da Amada para a Morte.
Sim, a Morte chega ao Trapiche e leva dos Capitães da Areia o seu melhor presente, a sua figura mais ímpar.
Dora morre e deixa seus irmãos e filhos atônitos
diante de seu desaparecimento. Nenhum deles parece atinar
para o que de real ou imaginário aconteceu. Foi como um sonho bom para todos. “Menos para Pedro Bala, que a teve.
Menos para Professor, que a amou” (Amado, 1982a, p.191).
Cada um dos Capitães tem seu destino traçado:
Boa-Vida quer uma vida sem esforço; Gato almeja o grande
mundo; Pirulito deseja servir a Deus; Volta Seca sonha com o
cangaço; Sem-Pernas, sob seu ódio, quer apenas uma vida mais
alegre (mesmo que além da morte); e João Grande, como um
cão a seguir seu dono, faria tudo o que Bala pedisse.
Dora modifica então, apenas o destino de seus
noivos, fazendo com que Professor abandone o Trapiche e
mergulhe em sua carreira como pintor, e com que Pedro Bala
lute por uma sociedade melhor e mais justa, sabendo-a no céu,
feito estrela a guiar-lhe, e não como uma sombra no Trapiche.
Cabe dizer, a essa altura dos fatos, que na cidade da
Bahia quando um homem valente morre, ele se transforma em
estrela. Só os homens. Nem mesmo Rosa Palmeirão, nem Maria
Cabaçu, as mulheres mais famosas de Salvador, pela coragem e
destemor que possuíam, nem elas viraram estrelas.
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Mas Dora virou. Porque Dora era tão valente quanto
elas e era uma menina.
Ela não está fixa no Firmamento. Ela o cruza de ponta
à cabeça, deixando a ilusão de sua longa cabeleira loura a iluminar em fachos o coração de Pedro Bala.
Sim, Pedro Bala é o único que sabe da metamorfose estelar de Dora. O amor dele por ela não era metafísico
como o de Professor. Além de noivo, Bala a possuiu e fez dela
sua esposa. Sua paixão o fez nadar até o lugar onde o Queridode-Deus jogou seu corpo no mar, e de lá ele teve a revelação
de que, mais do que um raio de Sol, Dora era um Sol, uma
estrela, que raiou no Trapiche para ensiná-los a ser felizes e
que agora cruzaria outras vidas.
O Trapiche adormece. Dora brilha lá fora, e convida seus filhos, irmãos, noivos e esposo a brilharem também. É
tempo do destino mudar.
2.2 FILHOS
2.2.1 Gato
Com um pouco mais de treze anos, o Gato foi morar sob o Trapiche sendo, apesar da pouca idade, já grande
conhecedor da vida de crianças abandonadas, pois vinha do
meio dos Índios Maloqueiros, o equivalente aos Capitães da
Areia, em Aracaju.
Alvo, rosado, alto, com uma penugem de bigode,
um ar petulante e um gingado malandro no andar, Gato era o
elegante do grupo.
Uma vez, dissera a Boa-Vida que nascera para o grande mundo. Assim, com essa afirmação, percebemos que não se
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trata de um vagabundo despreocupado, como Boa-Vida, nem
tampouco de alguém que queira evoluir por seus próprios méritos,
como Professor. Gato é um vagabundo sim, contudo, preocupado
em subir na vida... às custas dos outros.
Não que ele faça isso prejudicando alguém, passando por cima das pessoas. Não. Entre os Capitães da Areia há uma
lei. Uma lei que jamais foi escrita ou lavrada em cartório e, talvez
por isso mesmo, viva em cada um daqueles meninos. Lei moral,
livre dos papéis, ativa no heroísmo que exalava dos habitantes do
Trapiche.
O Gato tem uma paixão. Dalva é vinte anos mais velha que ele e é uma prostituta. É com ela que ele dorme todas as
noites, só ficando de dia nas aventuras com os outros Capitães.
Em grande parte, sua escalada social se dá às custas dela.
Foi por causa de seu envolvimento com Dalva, que
Gato não desejou, como os outros, Dora, em sua chegada ao
grupo. Ao contrário, Gato foi o primeiro a reconhecer, em Dora,
a figura materna.
Naquela noite, o Gato estava às voltas com um problema que lhe parecia muito grave: enfiar uma linha na agulha.
Ficou rondando Dora, sem se decidir, até que ela mesma perguntou o que ele queria.
Assim, em um átimo, a menina não só havia posto
a linha na agulha, como se oferecera para coser a roupa do
Gato.
Primeiro o paletó de casimira e depois a camisa,
que já estava no corpo dele. Foi neste momento que Gato teve
a certeza de que sua mãe voltara.
O toque da mão de Dora em suas costas, causoulhe um arrepio que ele julgava impossível ter de volta. As mãos
daquela mulherzinha que estava ali, a costurar suas roupas,
arrepiaram-no involuntariamente.
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Aqui, Gato confronta Dora e Dalva, em uma atitude
tipicamente edipiana. Dalva só o queria para o prazer, para
aquele amor despreocupado dos que não amam de verdade.
Mas, de repente, ela voltou. A mãezinha do Gato voltou para
costurar suas roupas com suas mãos maltratadas e carinhosas.
O Gato fecha os olhos e percebe que sua existência sem aquela mãe não significou nada. É como se o tempo
tivesse parado desde a sua morte, e agora ele tem cinco anos
de idade e sua mãe renasceu.
Em sua mente, o desejo não encontra mais espaço. Ele só pensa no cabelo louro de sua mãezinha Dora a
acarinhar o seu ombro; só quer que ela o adormeça entre canções de ninar.
O mais importante: o Gato percebe que é apenas
uma criança, apesar de viver como um homem.
Ele vai ao encontro de Dalva, com seu segredo explodindo pela alma: reencontrara a mãe morta! A amante jamais entenderia.
Mais tarde, muito depois da segunda morte de sua
mãe, o Gato parte para Ilhéus, para viver no grande mundo como
um inveterado vigarista, como um irresistível gigolô.
A maioria dos chefes dos Capitães da Areia se
engaja em movimentos nos quais depositam suas esperanças
em um mundo melhor. Pedro Bala, Professor e João Grande
se tornam comunistas; Pirulito entra para a Igreja; Volta Seca
vai para o cangaço.
O Gato não. Ele quer se dar bem a todo o custo. Apesar da convivência entre os Índios Maloqueiros e os Capitães da
Areia, ele não visa um apogeu coletivo, como os outros.
Esse individualismo (quem sabe egoísmo) se deve,
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tão somente, ao fato do Gato não ter tido quem o ensinasse
sobre honestidade e caráter. Com duas mães mortas, ou uma
morta duas vezes, o Gato ficou sem guia.
Afinal, quando o estudante Alberto chegou ao
Trapiche, convocando-os para a luta por uma sociedade igualitária e justa, o Gato, já era conhecido pelos jornais, procurado pela polícia por todo o sul da Bahia.
2.2.2 Volta Seca
O mais introspectivo dos Capitães da Areia era
Volta Seca. O menino do sertão jamais se acostumara com
aquela vida urbana. O rosto sombrio, de olhos apertados e
boca rasgada, as alpargatas nos pés e o amor imensurável
por Lampião (que era seu padrinho) faziam dele um legítimo
sertanejo.
Viera para a cidade com o intuito de se libertar
da exploração no sertão. Perdeu sua mãe durante a viagem
e ao chegar a cidade da Bahia constatou, nas aventuras diárias com os Capitães da Areia, que os pobres são explorados
em qualquer lugar, sertão ou cidade.
Assim, o menino crescia objetivando apaixonadamente o dia em que se juntaria ao grupo de seu padrim, Lampião, rei do cangaço, para, com ele, vingar todos os pobres –
homens, mulheres, crianças.
Com isso, sobrava pouco tempo para Volta Seca
sorrir, sendo esse raro momento marcado por suas famosas
imitações de bichos. Então, não sorria, trinava como um passarinho a cantar à liberdade.
Volta Seca era uma figura controversa, pois dentro dele conviviam o sangue frio que lhe deu sessenta mar140
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cas no fuzil; a religiosidade que o fazia respeitar e admirar o
padre José Pedro; um cangaceiro nato; um menino apenas.
O afilhado de Lampião era dividido: corpo na cidade e coração no sertão. Na cidade, ele tinha a amizade de Pedro
Bala, que quando crescesse seria tão valente quanto Lampião,
e no sertão, tinha o próprio Lampião, que era o sertão em
pessoa.
Quem sempre lia as notícias das aventuras de Lampião e seu bando para Volta Seca era Professor, que assim
como ele, assim como todos eles, também amava o heroísmo.
Sim, porque apesar de odiado por muitos, Lampião era, ao
mesmo tempo, amado por outros. Era o herói das crianças, “o
braço armado dos pobres no sertão” (Amado, 1982a, p.175).
Então, quando Professor foi estudar no Rio de Janeiro, Volta Seca se entristeceu como se tivessem matado um
do bando de Lampião.
O senso de justiça, hierarquia e lealdade ao bando
também se comprova em Volta Seca, visto a defesa dele a Almiro,
o menino com varíola que Sem-Pernas queria expulsar do
Trapiche, sem antes falar com Bala.
Ora, Bala era o líder e, para Volta Seca, cabia a ele
a decisão do destino de Almiro. Para o sertanejo, o comportamento de Sem-Pernas comparava-se ao de um soldado de polícia o que, vindo de Volta Seca, não era um elogio.
Outro momento marcante na vida do menino foi a
semana em que, junto com Sem-Pernas, fez girar o Grande
Carrossel JaponÍs. O mais curioso e, para Volta Seca, excitante, era o fato de Lampião e seu bando ter rodado, feito
criança, naquele mesmíssimo carrossel.
Contudo, apesar de não largar o cavalo colorido
usado por Lampião; apesar de ter, ele mesmo, montado o ca141
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valo de seu padrinho, Volta Seca, ao ouvir junto com os outros
Capitães da Areia a música doce e antiga saída do carrossel,
não pensa em mais nada além de que é uma criança e aquela
melodia que inunda a cidade é só dele e daquelas crianças
donas das estrelas, donas da Bahia.
Desse modo, é nítida a presença de espírito que
Lampião exerce sobre o menino, fazendo com que todos os
fatos que, corriqueiramente, sucedem a Volta Seca sejam, de
imediato, associados à imagem dele.
Mais um exemplo disso, é a atitude do menino ao
ver Dora chegar ao Trapiche. Volta Seca sentia-se extremamente excitado, como se estivesse, junto com o grupo de Lampião, prestes a deflorar uma filha de fazendeiro.
Porém, Pedro Bala defende Dora e impede que os
Capitães da Areia ataquem-na. Nesse momento, Volta Seca
assume uma atitude dual, pois mesmo dizendo a Pedro que
não tinha medo dele, e que só não insistiria porque ela era
uma menina, quando Dora se aproxima para fazer-lhe um curativo, ele a olha com espanto, como se tivesse medo dela.
Sim, como uma mãe, Dora perdoa a inicial agressão
de Volta Seca e vai curar suas feridas. A partir daí, o menino passa a observá-la atentamente, constatando que, inacreditavelmente,
aquela menina de cabelos louros, olhos doces e rosto grave era
parecida com sua mãe, sertaneja forte, de carapinha rala, olhos
achinesados e rosto sombrio. Tudo porque, em Dora, havia o
mesmíssimo sorriso de orgulho de mãe para filho. Inconfundível,
indizível. Inesquecível. Tanto quanto a estranha calma do semblante de Volta Seca ao ouvir sua sentença de trinta anos de prisão.
Trinta anos de prisão a uma criança de dezesseis
anos com sessenta marcas no fuzil, um padrinho célebre e duas
mãezinhas.
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2.2.3 Pirulito
Ao nomear o peixinho dourado que Amaro lhe dera
de presente de aniversário de Pirulito, Clarissa não fazia idéia
da existência, na cidade da Bahia, de um Capitão da Areia que
atendesse pelo mesmo nome.
Na verdade, o nome dele era Antônio, por isso e
pelo fato dele ter ouvido falar que Santo Antônio era brasileiro,
possuía uma imagem do santo junto a de Nossa Senhora das
Sete Dores.
Era alto, muito magro, de olhos encovados, cor macilenta e pouco riso.
A fama de ter sangue frio corria de boca em boca,
depois de ter enfiado o punhal na garganta de um menino até
o sangue do mesmo correr e ele conseguir seus objetivos.
Todavia, Deus veio ao encontro de Pirulito. Pela voz
do padre José Pedro, ele ouvia o chamado poderoso de Deus
ecoar por todo o Trapiche.
O Deus de Pirulito tinha duas faces: a do amor e a do
temor. O padre José Pedro falou-lhe de Deus-pura-bondade, Aquele
que faz os dias lá fora serem belos; contudo, o frade alemão da
Igreja da Piedade pregava um Deus justiceiro e castigador, um
Deus-justiça que, na cabeça de Pirulito, ficou como Deus-vingança.
Sim, a vida de pecado dos Capitães da Areia, tão
envoltos com as negrinhas no areal, com os furtos, com as brigas, essa vida tão pregressa que eles levavam, seria vingada
por Deus nas chamas do inferno.
Assim, Pirulito passou a jejuar, a rezar mais
demoradamente, a não ter mais relações com as negrinhas, a
roubar apenas para sobreviver, a não brigar mais. Tudo para
merecer o perdão de Deus.
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Essa obstinação, devoção ou coisa que o valha, intrigava Sem-Pernas a ponto dele não saber o que sentir em relação a Pirulito.
Sem-Pernas queria alegria, felicidade aqui na terra,
não a expressão indefinível (de gozo talvez) do rosto de Pirulito a
rezar, como se estivesse no céu, nos braços de Deus, em uma
fuga transcendental que, para ele, era covarde demais.
Mesmo assim, Pirulito fora valente ao roubar o Deus
Menino daquela loja de uma só porta. Mas, logo ele, que prometera só roubar para comer ou obedecer às leis do grupo, estava
ali roubando aquele Menino simplesmente para tê-lo junto a si,
para acarinhá-lo com seu amor.
O escultor fez o Menino magro e friorento; pobre
como Pirulito. A Virgem da Conceição oferecia o seu Menino a
Pirulito e naquele momento ele dribla a visão do inferno, de Deusvingança e nina o Menino que sorri, aquecido. Aquecedor.
Então, quando Dora chega e pergunta sobre seus
santos, se interessa pela sua vida tão ridicularizada pelos outros, Pirulito apaga a visão de pecado que tinha de Dora. O pecado não mais era a Mulher.
Dora não tinha o riso debochado e convidativo das
negrinhas do areal. Não. Ela era apenas uma menina, pobre e
órfã como eles. Mais. Era como uma mulher mais velha a se
interessar carinhosamente pela sua vida.
Mãe. A palavra m„e soa na mente de Pirulito e se
materializa em sua frente, no corpo de Dora. Só para sua mãe
poderia contar seu segredo. E o faz, iluminado: quer ser padre.
E, sendo padre, teria que estar acima dos pecados.
Por isso, Deus-pura-bondade o faz, involuntariamente, devolver
o Deus Menino à mãe. Não à Virgem da Conceição, mas à Virgem do Trapiche – Dora, purificando assim, o coração dividido,
te(a)mor, de Pirulito.
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2.3 IRMÃOS
2.3.1 João Grande
O menino João Grande que, por ser um Capitão da
Areia, valia como um homem, era o mais alto e forte do grupo.
Segundo Pedro Bala, “quem for bom é igual a João Grande,
melhor não é...” (Amado, 1982a, p.223), e foi por isso que ele se
tornou logo um dos chefes do grupo, sempre participando das
reuniões da cúpula. Sua bondade assegurava-lhe este lugar, mesmo não sendo possuidor de uma grande capacidade mental, doendo-lhe até a cabeça quando era necessário pensar.
Junto a essa limitação da mente, associa-se a ingenuidade de Grande que, apesar da vida adulta que levava,
ainda tinha espaço para se encabular quando Bala o elogiava;
para não entender o duplo significado das palavras de Gato;
para admirar Pedro e Dora como a super-heróis.
Para, afinal, expor a relação de João Grande e Dora,
resolvemos traçar um paralelo da vida de ambos, com o intuito
de clarificar a fraternidade entre os dois, que vai muito além do
simples ato de Dora o chamar de meu irm„o.
Tanto Dora quanto João Grande viviam no morro
com seus pais até que estes morreram. O pai dele, carroceiro,
morreu pegado por um caminhão; os pais dela e de Zé Fuinha
foram vitimados pela varíola. Desde então, não voltaram mais
para o morro, indo em busca da liberdade que exalava da
cidade. Mesmo tendo sido em épocas diferentes (João Grande ficou órfão aos nove anos e Dora aos quatorze), o elo se
fecha em torno deles quando, juntamente com Professor,
Grande leva Dora e seu irmão para viver entre os Capitães da
Areia. Quatro anos após sua desgraça pessoal, João vislumbra sua repetição em Dora e tem a oportunidade de dar-lhe o
conforto que ele não teve.
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Outro aspecto comum aos dois, é a admiração nutrida por ambos por Professor e Pedro Bala. Professor, por ser
o fio condutor da intelectualidade entre os Capitães; por ler para
eles, todas as noites, as mais batutas histórias de aventura e
amor; por plantar, através dos livros, a paixão pelo heroísmo que
incendiava os corações daqueles meninos. E Pedro Bala, por ser,
ele próprio, a personificação do heroísmo, o mais valente e destemido dos Capitães da Areia – o líder.
Viés não menos importante de comparação, é o que
atenta para o fato de João Grande ser uma espécie de pai dos
pequenos do grupo, que encontravam nele o mais valoroso defensor de agressões dos mais velhos; e de Dora ser a mãezinha
dessas crianças, mesmo que inconscientemente, costurando
suas roupas, acalentando suas noites, incentivando seus feitos.
Mais adiante, notamos duas atitudes paradoxais das
personagens. João Grande que, desde a chegada de Dora, se
transformara na sombra da menina, ao ver a morte rondar os
olhos de grande paz de sua irmã, apesar de sofrer uma dor
dilacerante no coração, ainda procurava sorrir, para animá-la. E
Dora, mesmo sentindo a morte a lhe invadir, jurou viver se Pedro
Bala a possuísse em seu amor.
Enfim, ao ver Dora morta, João Grande chorou como
uma mulher, momento este, que consiste na total aproximação
da realidade de ambos. João Grande deixa aflorar seu lado feminino, chorando como se fosse a própria Dora, única figura feminina
entre eles.
Nota-se também o mesmo destino para os meninos: o mar. Enquanto Dora, morta, foi jogada ao mar, João
Grande, com o passar dos anos, embarca do Lóide, como marinheiro. Então, virada estrela, Dora reflete-se no mar e acompanha
seu irmão na mais bela aventura (mais bela até que as contadas
por Professor): a vida.
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2.3.2 Boa-Vida
Apesar de ser um dos oito Capitães da Areia de destaque na narrativa, Boa-Vida não ganha grandes conjecturas a respeito de sua existência, como ocorre com os outros.
Ele é um coadjuvante, uma agulha a costurar os tecidos da trama. Prova disto é que o malandro é quem leva o
Gato para o Trapiche, aproxima o padre José Pedro do grupo e
indica a família da Graça para o golpe de Sem-Pernas.
A verdade é que o mulato pachola, troncudo, feio e
sem sorte com as mulheres, era um parasita. Boa-Vida não
gostava de nenhum tipo de trabalho, fosse ele honesto ou desonesto.
Daí, comendo na casa de um, bebendo na festa de
outro, o malandro ia levando a vida na flauta (ou melhor, no
violão), ajudando periodicamente o Trapiche, em um esforço
sobrenatural ante a sua preguiça, roubando algo de valioso e
entregando diretamente às mãos de Pedro Bala.
Afinal, apesar de no seu pensamento o trabalho ser algo
absolutamente dispensável, ainda prevalecia no menino o senso de
lealdade ao grupo dos Capitães da Areia.
Sim, também ele era apenas um menino, todavia, como os demais, agia como um homem. Não só em sobrevivência, mas igualmente em dignidade. Foi assim então
que Boa-Vida foi para o lazareto (o que era o mesmo que ir
para a morte), no momento em que viu seu corpo todo pintado pela bexiga.
Ora, ele mataria cada um dos Capitães da Areia se
ficasse com varíola no Trapiche. Logo, assim como Bala conheceu o inferno na cafua do Reformatório, Boa-Vida desce às chamas do lazareto, lugar onde os pobres deveriam ser curados
(triste ironia), contudo de onde não voltavam jamais.
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E pode até parecer irritante, repetitivo, mas o fato
é que não devemos esquecer que Boa-Vida é um dos Capitães da Areia e vale mais que um homem, pois é um menino a
viver como homem. É pura e simplesmente por isso que ele
voltou ao Trapiche.
Magro, rosto ossudo, corpo picado pela bexiga,
de todas as marcas que Boa-Vida trouxe consigo, a mais bonita, a unicamente bela, só foi vista por Professor (que a essa
altura bem poderíamos chamar de Observador): no lugar do
coração, brilhava uma estrela. Aquela estrela que o Queridode-Deus sempre disse que brilha no coração dos homens valentes.
Eis aqui a figura do ídolo de Boa-Vida: o saveirista
Querido-de-Deus. Boa-Vida será o Querido-de-Deus dos futuros Capitães da Areia. Será um malandro completo, tocador
de violão, inimigo do trabalho, capoeirista, namorador de cabrochas e, marca do Capitães da Areia de seu tempo e de
todos os relógios e tempos possíveis, sempre terá um bom
coração, faiscante como estrela.
Então, de estrela em estrela, constelamos BoaVida e Dora, em uma relação fraterna onde não se precisa de
demonstrações de sentimento, como nas relações de mãe e
filho, noivos, marido e mulher. Para os irmãos, basta o saber,
o conhecimento de que aquele amor existe. Irmãos não precisam agir ou falar eu te amo; irmãos tão somente sabem que,
uma vez existente o laço fraterno, sempre se amarão.
Essa certeza só veio para Boa-Vida quando Dora
dirigiu-se ao encontro dele e fez um curativo no talho deixado
por João Grande. Assustado, meio a medo, o menino deixou
sua irmã curar suas feridas.
Tinha medo o mulato, pois não entendia o porquê
daquela ajuda, afinal, ele havia sido ferido por querer, junto
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com a maioria do grupo, derrubar Dora, como fazia com as
negrinhas no areal. O desejo era tão cego que ele não reconhecia que aquela era apenas uma menina, que aquela era
(qual o contrário de apenas?) uma irmã.
E apesar de todos aqueles meninos serem como
irmãos, a presença de uma irmã era algo doce, algo como um
sonho bom, um céu azul, um Sol dourado, tão dourado como o
cabelo de Dora.
Assim, em pouco tempo, Boa-Vida também era chamado de mano, de irmão por Dora. Chamado e amado. Tanto
que, apesar de sua aversão por esforço, ele estava lá, na briga
dos Capitães da Areia contra o grupo de Ezequiel, que surrara
Bala e ofendera Dora. Também ele amava-a.
Foram para a luta, cantando, rindo, felizes como se fossem a uma festa. Foram muito juntos, unidos, como se fossem irmãos de sangue. Foram, absolutamente irmãos de amor.
Amor, então, nada a dizer, tudo a sentir.
2.3.3 Sem-Pernas
De todos os Capitães da Areia, a figura mais intrigante é, sem dúvida, a de Sem-Pernas. Odiá-lo ou amá-lo é uma questão de segundos, criando-se assim um emaranhado de sensações acerca do menino coxo, de voz estrídula e fanhosa que vivia
no Trapiche.
O Sem-Pernas vivia burlando de todos, “mesmo de
Professor, de quem gostava, mesmo de Pedro Bala, a quem
respeitava” (Amado, 1982a, p.33). Contudo, esse gesto não
passava de uma fuga. Fuga daquela vida miserável, dolorosa,
triste, revoltante... Fuga diferente da de Pirulito, que afugenta-
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va-se nos braços de Deus, levando consigo uma exaltação no
rosto e no coração.
Mas aquela exaltação não bastava para o Sem-Pernas. Ele queria alegria, felicidade; algo que não o fizesse mais
ter que rir de tudo e de todos, algo que o livrasse da angústia e
da vontade de chorar nas noites de inverno. Algo como paz.
A paz que sentiu ao girar no carrossel de Nhozinho
França, aquele homem bêbado que para o Sem-Pernas era
tão extraordinário quanto Deus, quanto Xangô, porquê fizera
o “milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel” (Amado, 1982a, p.59). Brinquedo tantas vezes sonhado e sempre diluído por adultos que jamais enxergaram que, por trás dos farrapos, do ódio no olhar, ia uma
criança.
Então, é um Sem-Pernas cheio de ternura de criança que roda naquele carrossel velho e desbotado que, aos
olhos de todos os Capitães da Areia, é a coisa mais linda do
mundo. O Sem-Pernas vai repleto de uma estranha comoção,
“girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm
pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa
que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta
certeza” (Amado, 1982a, p.62).
Ironicamente, tempos depois, o Sem-Pernas vê este
devaneio se tornar realidade. Em mais um dos golpes do bando, o
menino se infiltra em uma casa de família da Graça, valendo-se de
seu defeito físico e da pena que ele causava nas pessoas.
Assim, dona Ester recebe o Sem-Pernas, ou melhor,
Augusto. Coincidência romântica, o nome inventado pelo Capitão
da Areia era o mesmo do filho que ela perdera. Para a senhora,
o filho voltara macilento, andrajoso, triste, a lhe pedir abrigo.
Então, o Sem-Pernas vive os melhores dias de sua
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vida, com roupas novas, comida, um quarto só para ele. Porém,
o que mais lhe prendia ali, era aquela sensação de amor, aquela sensação morna de lar, de família; a alegria e a felicidade
que ele tanto desejara e que se traduziam no carinho maternal com que dona Ester o envolvia.
Entretanto, o Sem-Pernas tem a marca dos Capitães
da Areia no peito. Eles eram sua família, as únicas pessoas a
quem ele não odiava, seus irmãos naquela vida abandonada.
Não podia traí-los. Apesar de ter aberto uma exceção no seu
ódio à gente daquela casa da Graça, havia a lei dos Capitães da
Areia, aquele código de honra já esquecido pelos homens, tão
entranhado naquelas crianças.
Desse modo, o Sem-Pernas volta para o Trapiche, fiel à lei
dos Capitães da Areia, todavia sente que traiu dona Ester, sua mãezinha e, o pior, sente ter traído a si próprio.
Daquele momento em diante, o ódio de Sem-Pernas
aumentou. Não havia ninguém mais arredio e briguento que ele no
Trapiche. Arranjava confusão com todo mundo; só respeitava Pedro
Bala. Todo o amor que acumulara ao abrir mão de dona Ester, o
Sem-Pernas dedicava a um cachorro que aparecera no Trapiche.
Seguia o Sem-Pernas como um louco, a falar e lidar com o cão, até o surgimento de Dora.
Com a chegada da menina, o Sem-Pernas ganha
espaço para extravasar seu ódio, incitando o bando a violentar
Dora. Contudo, ele ainda respeitava Bala e assim, acatou a
ordem do chefe de deixar a garota em paz.
A partir daí, nasce uma relação fraterna entre SemPernas e Dora, a ponto do menino abrir mão de seu cachorro
e dá-lo de presente a ela.
Sem-Pernas se comportava como um irmão mais
novo, a admirar os feitos e qualidades da irmã mais velha. Ad-
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miração tamanha que o fez compará-la à Rosa Palmeirão, a
mulher mais valente de quem se tinha notícia.
Dora agradece o elogio com um singelo “- Obrigado, mano” (Amado, 1982a, p.166). E mais do que o obrigado,
mano soa na mente do Sem-Pernas como um bálsamo sobre
aquelas antigas dores, pois ele abriu mão de sua mãezinha,
mas ganhou “uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente” (Amado, 1982a, p.166). Porém, acima disso tudo, Dora
foi a grande responsável pela reintegração de Sem-Pernas ao
grupo. Por ela, também ele lutou contra o grupo de Ezequiel e,
quando Dora e Pedro foram presos no Orfanato e no Reformatório, Sem-Pernas ficou como chefe dos Capitães da Areia, tendo papel decisivo na libertação de ambos.
Depois da morte de Dora, Sem-Pernas se envolve
com uma terceira mulher, em um estágio carnal nunca antes
conhecido por ele.
O menino estava lá para dar um golpe em Joana,
mas ela queria as migalhas de amor dele, queria o corpo de
Sem-Pernas contra o seu, as mãos dele sobre a sua pele sem
contudo, se permitir o amor total por medo de sua honra de
vitalina ser deposta por uma inesperada gravidez.
Ao contrário de Ester e Dora, Joana incita cada
vez mais o ódio em Sem-Pernas, com aquele amor incompleto.
Então, cansado das noites de batalha, de guerra contra os pudores da vitalina, “Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia,
odeia o mundo todo” (Amado, 1982a, p.206).
Em nome desse amor ao ódio que o fazia forte, é que
Sem-Pernas se joga do elevador Lacerda ao se ver encurralado
pelos policiais. Sua gargalhada cheia de ódio é o arremate de sua
vingança. Não seria um troféu para nenhum guarda. Antes, ser
trapezista de circo, mesmo que não alcance o outro trapézio.
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Na platéia, o único ser que o Sem-Pernas conseguiu
amar e que o amou como ele realmente era – o cachorro dele.
2.4 PROFESSOR
Ao ler pela primeira vez a história dos Capitães da
Areia, julgamos o amor de Professor por Dora como algo platônico e idealizado. A utilização da palavra noiva para definir a
imagem que nossa heroína representava na mente de João
José, remete propositalmente à idéia de pureza e inocência
que envolve as relações marcadas pela platonicidade.
Contudo, após idas e vindas, leituras e releituras,
como no sobe-e-desce das ladeiras da cidade da Bahia, vimos
essa primeira impressão ruir.
É necessária aqui a melhor visualização de Professor, não mais como parte integrante do grupo e sim, como um
todo, na pessoa física que ele é.
Apesar de viver em um bando cuja fonte de subsistência principal era o furto, Professor pode ser considerado o
bom moÁo dos Capitães da Areia. Isso se deve ao seu hábito de
leitura; a genialidade com que arquitetava planos, o que fazia com
que o líder não tomasse uma medida sem antes consultá-lo; ao
espírito de amizade que possuía, que o fazia ser querido de Bala a
Sem-Pernas, ícone do sentimento de ódio e revolta da obra; a vocação artística para a pintura que, antes de admirar, chocou a todos
com as impressões fortes da vida nada impune que teve sob o
Trapiche; e até mesmo ao fato de seu aspecto físico ser franzino,
míope e, por que não dizer, frágil.
Mesmo assim, seria perigoso afirmar que o sentimento de João José por Dora era platônico e idealizado.
Ninguém melhor do que Professor observou as
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multifaces de Dora, convivendo diariamente com ela e se apaixonando justamente pela ingenuidade plena dos atos da menina.
O que se torna visível é que o amor de Professor, comparado ao de Pedro Bala, é de uma natureza mais branda, serena.
Ele sente inveja da felicidade de Pirulito quando este
vislumbra a mãe em Dora, pois já sente que no coração dele
não há mais espaço para um amor filial e sim, nupcial, e por
também saber que esse tipo de amor, amor de noiva, Dora
nutria por Bala.
Como havíamos dito antes, Professor prezava muito a amizade e, devido a isso, em nenhum momento se indispôs
com Pedro por causa de Dora. Eis aí o ponto em que esse
amor assume um caráter sublime, transcendental até.
Ao usar a palavra transcendental nos damos o direito
de fazer a seguinte observação em “...para ele, ela também não
era uma mãe. Também para o Professor ela era a Amada” (Amado, 1982a, p.161), é notável o uso da letra maiúscula no meio da
frase, servindo para imprimir um elevado grau de importância a
quem o título refere-se, assim como faziam os simbolistas que,
além disso, cultuavam a sublimação e a transcendentalidade do
amor, fazendo-o mais anímico do que físico.
Professor queria um olhar de Dora. Um daqueles
olhares plenos de amor que ela só lançava a Pedro Bala. Em
nenhum momento temos o menino desejando o corpo, os beijos, o calor de Dora. Ele admira sua valentia, seu instinto maternal, seu sorriso fraterno, seu cabelo dourado.
Quando Dora morre, o Trapiche perde todo seu
encanto para Professor. Ele vai estudar no Rio, mas leva consigo a marca dos Capitães da Areia, e é essa marca que o faz
abandonar o pintor que lhe ensinava formas acadêmicas, e ir
pintar por conta própria seus quadros.
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Quadros que espantam e fascinam. Quadros onde
todos os sentimentos bons sempre são representados por uma
menina loura, magra e de faces febris.
Então, são nesses quadros que Professor ama
Dora. Porque ele pode ter fugido do Trapiche, mas sua Amada
não fugiu de sua alma e da expressão concreta em que ela se
exibe: a sua arte.
2.5 PEDRO BALA
A palavra liberdade está para Jorge Amado assim
como a palavra revolução está para Capitães da Areia. Então, que palavra poderia estar para Pedro Bala?
Bala é o líder. Traz nos olhos e na voz a autoridade de
chefe e, devido a isso, Raimundo, o Caboclo, não durou muito na
chefia do grupo desde a chegada de Pedro.
Apesar de ser mais jovem, Pedro era mais ativo,
sagaz e astuto. E, tendo Raimundo marcado seu rosto para o
resto da vida com uma navalhada, Bala também o marcou para
sempre, tirando dele a liderança do bando, na luta mais incrível
que a praia do cais já presenciou.
A partir daí, a cidade começou a ter notícia dos
Capitães da Areia, meninos de rua que viviam do furto.
Pensamos que Professor é a cabeça do grupo; Dora,
o coração; e Pedro, o espírito. Um espírito valente, forte, cheio
de esperança e de vontade. Mas, vontade de que?
No início, sua função era apenas a de chefe dos Capitães da Areia. E um Capitão da Areia é mesmo que um homem.
Bebida, fumo, brigas, mulheres, roubos, a vida deles é recheada
dessas palavras que soam bem em um contexto adulto.
Então, como um divisor de águas, a chegada de
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Dora atinge incontestavelmente a vida desses meninos e muda
por completo o destino deles.
Cabe aqui a palavra inspiração para definir Dora.
Quando ela chegou ao Trapiche, trazida por João
Grande e Professor, todos, inclusive Bala, pensaram em derrubála como faziam com as negrinhas no areal do cais. Depois, compreenderam que ela era uma menina e respeitaram-na.
Foi aí que Dora se tornou uma mãezinha para todos. Uma irmã, companheira nas aventuras pelas ruas da cidade da Bahia.
Todavia, para Pedro Bala ela sempre tivera um significado diferente. Para ele, era noiva.
Apesar de um noivado puro, onde ficavam de mãos
dadas, conversando amenidades e sorrindo um para o outro,
Bala a desejava também. Desejava possuí-la, mas não por uma
noite apenas e sim, por todas as noites de sua vida, como se
possui a uma esposa.
Seu noivado porém, é interrompido abruptamente.
Pedro Bala é preso no Reformatório e Dora é levada para o
Orfanato.
Após ser surrado, Pedro Bala é confinado na cafua,
um pequeno quarto debaixo da escada, onde ele não tem o
direito de ficar em pé, assinalando assim um castigo pior do
que surras, fome ou escuridão: a tomada de sua
dignidade humana. Pedro é reduzido a um homem-cobra, como
aquele que vira, certa vez, no circo.
Um bicho, um animal, todos poderiam ser dados como
isso ao serem aprisionados na cafua. Contudo, não podemos esquecer que Pedro Bala é o Líder. Ele é o chefe dos Capitães da
Areia e é capaz de suportar toda e qualquer adversidade.
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Em todo o tempo que Bala passa na cafua, seu
pensamento está em Dora. Dora também era sinônimo de liberdade naquele momento.
Logo, quando consegue fugir do Reformatório, nu,
pela gélida madrugada afora, rumo ao Sol, rumo à liberdade,
Pedro Bala rapta sua noiva do Orfanato e a devolve aos seus
filhos e irmãos no Trapiche.
Mas a febre a consumia. Um mês no Orfanato fora
o bastante para apagar nela a vontade de viver. Não adianta a
reza forte da mãe-de-santo Don’Aninha, nem tampouco o tremor com receio de perdê-la dos Capitães da Areia.
A grande paz da noite da Bahia está nos olhos da
menina. A menina que se tornou moça no Orfanato. A mulher
mais valente da Bahia por justamente ser uma menina. Mãe,
irmã, noiva dos Capitães da Areia. Agora, ela é também esposa
de Pedro Bala.
Quando Dora afirma que não morrerá se ele a possuir, inconscientemente, está marcando irreversivelmente a vida
de Pedro.
Assim como revive a cada novo quadro de Professor, Dora sempre cruza o coração de Pedro Bala, o seu mais
belo amado, quando este se põe a vislumbrar o céu estrelado
de Salvador.
Sim, pois só ele quis morrer com ela e só ele viu
quando ela se transformou em uma estrela de longa cabeleira.
Então, a certeza de que ela estaria sempre ali, velando e acalentando suas noites, fez com que ele renascesse das Terras do Sem
Fim de Yemanjá, do mar verde e cinza e azul de Janaína que,
assim como Dora fora para os Capitães da Areia, é a mãe de
todos os filhos da cidade da Bahia.
Nesta passagem, visualizamos o mar como um úte-
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ro. Ora, a comparação da água morna do mar com o líquido
uterino já foi bastante difundida, no entanto, esse mar que acolhe os corpos de Dora e Pedro, sintetiza todo o espírito materno pois é igualmente transformador e protetor.
Dora, ao morrer, retorna ao útero da mãe, que
dessa vez não a transforma de semente em criança, mas de
mulher em estrela, remetendo-a ao céu para, juntas – céu e
mar – mães, aconchegarem a terra em um abraço.
Sob a terra, Pedro, renascido também das entranhas protetoras do mar, transforma-se em um homem sem
destino definido, mas possuidor de duas estrelas: a do céu e a
do coração.
Pedro Bala queria morrer no mar que levava o corpo de Dora, mas Janaína só mata aqueles que a desafiam, não
os apaixonados, os amantes, como Dora e Pedro. Esses, são
acolhidos como filhos, com amor.
Eis que surge o futuro a sua frente. Bala e os outros líderes do grupo cresceram. Um a um, vão seguindo o
destino. Bala é um dos últimos a decidir que rumo dar a sua
vida e a demora dessa decisão de certa forma o angustia.
“Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta” (Amado,
1982a, p.202). Pedro é filho de Loiro, estivador como João de
Adão, que morreu em uma das greves das docas, lutando por
sua classe.
Em uma imagem, de um certo aspecto, piegas,
Pedro Bala segue os passos do pai, se engajando na organização onde comandaria uma brigada de choque que intervém
em comícios, greves, lutas obreiras.
Não à toa seu nome é Pedro. Assim como o Apóstolo Simão, pedra fundamental da Igreja Católica, ao ser nomeado Pedro por Jesus, saiu a propagar e consolidar o Cristianismo entre os povos, o que do prisma religioso foi uma revolu158
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ção, Pedro Bala também sai a divulgar seus ideais comunistas
com o desejo de que, como o poeta Thiago de Mello (1997,
p.22) tão bem expressou, “a liberdade seja algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada seja sempre o
coração do homem”.
Assim, além de traçar seu destino, Bala também
muda o destino das outras crianças do país inteiro. Ou, pelo
menos, acredita que pode mudar. É jovem e ainda se permite
sonhar.
Capitão Pedro agora é o Camarada Pedro Bala e a
palavra-chave para definir o heróico amado de Dora é companheiro.
Para ele, essa é a palavra mais bonita do mundo. O
estudante Alberto chama companheiro como Dora dizia irm„o.
Dora. Sempre ela. A primeira e mais doce revolução que se alastrou em Bala. A definitiva revolução.
3 DORA NO UNIVERSO FEMININO
DAS FIGURAS DE JORGE AMADO
ìO modo como essas mulheres
conseguem enfeitiÁar-nos com
toda a perfeiÁ„o psÌquica concebÌvel atÈ atingirem seus propÛsitos È um dos grandes espet·culos da naturezaî
Sigmund Freud
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3.1 DO CHEIRO DE CRAVO, DA COR DE
CANELA
ìEstava para sempre cravada em
seu peito, cosida em seu corpo, na
sola dos pÈs, no couro da cabeÁa,
na ponta dos dedosî
Jorge Amado
Gabriela foi a primeira personagem feminina
amadiana a ser centro de uma narrativa. Desde o título da
obra, percebemos que até as disputas dos coronéis do cacau
ficam em segundo plano, cedendo espaço à amada de Nacib.
Devemos levar em conta também que “sua construção está lastreada em várias figurações anteriores de um
feminino que tinha sempre destacada sua força” (Duarte,
1997, p.94).
Esse feminino anterior está presente nos romances sociais de Jorge Amado, componentes da primeira fase de
sua obra.
Com Gabriela, Cravo e Canela, o autor adentra
às crônicas de costumes, priorizando o enfoque das relações
humanas e conservando, contudo em segundo plano, a preocupação com o aspecto social.
Dora exercia uma função quadridimensional, sendo mãe, irmã, noiva e esposa dos Capitães da Areia. Já Gabriela
visualizava em Nacib esse caráter pluridimensional. “Para ela
seu Nacib era tudo: marido e patrão, família que nunca tivera,
o pai e a mãe, o irmão que morrera apenas nascido” (Amado,
1982b, p.289).
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Assim como Dora era no Trapiche, Gabriela era no
Vesúvio, a única figura feminina a interagir em um universo
masculino.
Dora era a onda que batia nos alicerces do
Trapiche, amornando o viver dos Capitães da Areia. A água,
segundo Bachelard, dessedenta. Os Capitães da Areia estavam sedentos de amor e Dora veio saciá-los pois, no “devaneio da água, a água converte-se na heroína da doçura e da
pureza” (Bachelard, 1989, p.158).
Por outro lado, Gabriela é a lava quente e furiosa
do Vesúvio, a se alastrar pelo juízo dos homens de Ilhéus.
Chegamos então ao ponto dos elementos astrológicos e das funções psicológicas associadas aos mesmos.
Hamaker-Zondag (1988, p.54) nos afirma que:
O ser humano está ajustado para exercer todas as
quatro funções psicológicas e elas o capacitam a se orientar
no aqui e agora de maneira tão eficiente quanto o comprimento e a largura possibilitam que se oriente no sentido geográfico. A experiência, no entanto, ensinou-lhe que é sempre à base
de apenas uma dessas funções que ele se ajusta à realidade.
As funções psicológicas são vertentes de duas polaridades: racional – pensamento e sentimento; e irracional –
percepção e intuição.
O par racional abrange caracteres apreciativos e
concernentes a julgamentos de valor, não tendo, o par irracional, nenhum julgamento conectado as suas observações.
Atribuímos desse modo, o elemento astrológico
água a Dora, pelo temperamento fleumático da noiva de Pedro
Bala, a lidar com paciência, solidariedade e sabedoria com os
Capitães da Areia.
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A serenidade do mar esverdeado a lamber as pernas do Trapiche, vem encher de esperança a vida daqueles
pequenos homens.
Dora é racional. É uma mulherzinha de rosto muito
sério a costurar, acarinhar, roubar, gargalhar com os Capitães da
Areia, recheando a vida desses meninos de sentimentos bons,
esquecidos na luta diária nas ruas da cidade da Bahia.
O elemento fogo vem representado por Gabriela. É
de se estranhar a associação de um temperamento colérico à
doce Bié, todavia, se levarmos em conta sua ida ao circo, sua
ajuda ao negro Fagundes, seus ensaios no Terno dos Reis, ações
feitas sem o conhecimento de Nacib, podemos afirmar que tais
atos constituem uma cólera surda que atingiria seu ápice na
traição de Gabriela com Tonico.
Mas, afinal, traição seria uma palavra adequada à
índole de Gabriela?
Vislumbramos Gabriela como um pássaro escarlate voando rumo à liberdade anil do céu. Como um pássaro, ela
é intuitiva e irracional, vai sempre em direção de uma “vida
ingênua e sem preconceitos” (Hamaker-Zondag, 1988, p.65).
Desse ponto de vista, Gabriela foi, tão somente,
honesta e leal a si mesma, a seus instintos.
Ela sabe que é um objeto desejado e, ao mesmo tempo,
é um sujeito desejante que, “pela fidelidade ao eros, se afirma enquanto tal a ponto de trocar o casamento pelo prazer e a segurança
do lar por um momento de gozo” (Duarte, 1997, p.96).
Assim, Gabriela não é um objeto sexual apenas; é
também uma trabalhadora operosa, cozinheira ou costureira,
que, apesar dos convites mil, nunca se rendeu a homem nenhum por dinheiro e sim, por prazer.
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Já em Dora, a sexualidade e a sensualidade vêm
acometidas de traços puros e ingênuos. A primeira e única
experiência sexual da menina é movida muito mais pelo amor
do que pelo tesão. Ela age naturalmente, com o desejo doce de
ser unicamente a esposa de Pedro.
Notamos nas duas personagens uma metamorfose,
um rito de passagem.
Em Dora, o agente transformador é a água do mar.
Quando ela morre, seu corpo é jogado ao mar, retornando
assim ao útero materno, aos braços da mãe de todos os santos, Yemanjá. Ela, Dora, a menina que foi mãe daqueles homens mais meninos, agora também tinha sua mãe.
Entretanto, a missão de uma mãe é muito mais
árdua da de uma filha e assim, Dora sai das águas uterinas de
Janaína, para cruzar o céu dos Capitães da Areia e zelar mais
atentamente por eles. Por Gato, por Boa-Vida, por Professor,
por Pedro Bala – uma estrela adorada de longa cabeleira loira.
Em contrapartida, Gabriela se metamorfoseia com
o casamento, tornando-se a Sra. Saad, transformação essa que
operou de forma negativa na essência da mulata pois, “tem
certas flores que são belas e perfumadas enquanto estão nos
galhos, nos jardins. Levadas pros jarros, mesmo jarros de prata, ficam murchas e morrem” (Amado, 1982b, p.233).
Então, “ tudo quanto Gabriela amava ah! era proibido à senhora Saad. Tudo quanto a senhora Saad devia fazer,
ah! essas coisas Gabriela não as tolerava” (Amado, 1982b,
p.289). Por isso foi fiel a si mesma, por isso voltou a ser só
Gabriela, mulher-enigma tal qual Capitu; tal qual “o amor que
não se prova, nem se mede. Existe e basta” (Amado, 1982b,
p.316).
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3.2 DA MULHER DE VADINHO E TEODORO
ìPor que optar se quero as duas coisas?
Por que, me diga?î
Jorge Amado
Em 1966, Jorge Amado apresentou a seu público
a mais barroca de suas personagens femininas: Dona Flor.
Ela tem a dualidade no coração – “o comedido Dr.
Teodoro e o excessivo Vadinho” (DaMatta, 1997, p.121), e resolve esse impasse com uma atitude antitética: escolhe não
escolher, decide não decidir, pois afinal, precisava de ambos
para ser feliz.
Com base no estudo de Hamaker-Zondag (1988,
p.70), concluímos que Dona Flor pertence ao elemento ar pois
“esse elemento é adequadamente o elemento de uni„o, muito
embora o comportamento seja inegavelmente dualístico em
algumas ocasiões”.
Ora, Dona Flor vive em um impasse dual porque
sua moralidade não admite ser mulher de dois maridos ao
mesmo tempo. Todavia, o sentido de unidade nela existente
impera e faz com que ela opte pelos dois.
Já em Capitães da Areia, percebemos essa
moralidade velada no comportamento de Dora em relação a Pedro
Bala e Professor. Assim como Vadinho e Dr. Teodoro, os meninos
também eram diferentes em quase tudo. A vivência das ruas e o
amor por Dora era o que de mais forte os unia. Mesmo assim, a
menina, só tinha olhos para Bala, “para ele era tudo: esposa, irmã
e mãe” (Amado, 1982a, 160).
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Notamos com isso os traços românticos das primeiras obras de Amado – segundo Mário de Andrade, a morte
de Guma também é prova disso – e a maior elasticidade com
que ele passa a lidar com o sentimento de suas personagens
em suas crônicas de costumes.
Dona Flor possui um temperamento sanguíneo.
Ativa e vigorosa, tem o amarelo como cor fundamental, exalando alegria e ânimo como um girassol pelas ruas doces e coloridas da cidade da Bahia.
A dona da escola de culinária “Sabor e Arte” agia
guiada pelos pensamentos, sendo a personificação da razão para
o irresponsável Vadinho e para o ingênuo Teodoro. Nesse ponto, Dona Flor aproximava-se de Dora que também era o eixo
racional que, sentimentalmente, iluminava o caminho dos Capitães da Areia.
Outro aspecto comum entre as personagens é o saldo positivo que ambas obtiveram de suas metamorfoses naturais. Enquanto Dora, por meio das águas maternais do mar, renasce como uma estrela de loira cabeleira continuando em outro
plano sua missão de clarificar a existência dos meninos do Trapiche,
Dona Flor, com seus dois casamentos, atinge a unidade de dois
pólos que, aparentemente opositores, eram, na verdade, lados
complementares de uma mesma moeda – a da felicidade.
Dona Flor carrega consigo toda uma sensualidade
colorida do alto de seus trinta anos e de sua convivência com
dois maridos. Dora é uma menina, órfã, teimando em viver, tentando ser feliz apesar dos dissabores.
Apesar da aproximação de ambas no que tange a
divisão entre dois amores; o racional a movimentar seus atos; e
a positividade de suas transformações ao longo da vida, não
podemos ignorar aquele que é o traço mais contundentemente
oposicional entre ambas: a maternidade.
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Dona Flor, mulher feita, mesmo consciente da paixão que Vadinho nutria por crianças, nunca se encorajou a
submeter-se a uma cirurgia que revertesse sua dificuldade
em ter filhos.
Por medo ou por um surdo egoísmo, Dona Flor abdicou da maternidade, negando aos seus maridos e a si mesma
essa alegria.
Em Dora, nascida sob o signo do elemento água, a
função maternal é mais significativa, agindo na menina mesmo
que de forma inconsciente.
Afinal, “dos quatro elementos, somente a água pode
embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de
seu caráter feminino: ela embala como uma mãe” (Bachelard,
1989, p.136).
Assim, Dora é uma mãe virginal, uma nossa
senhorazinha, como diria Vinícius de Moraes; uma mãe no sentido sentimental da palavra. A mãezinha que costurava as roupas
de Gato, a sertaneja que temia pelo futuro de Volta Seca, a mãe
que encorajava Pirulito, a terna mãe que acalentava o sono de
Zé Fuinha e de todos os pequeninos do Trapiche.
Não podemos esquecer contudo, que também Dora
era órfã; também ela precisava de uma mãezinha, e essa redenção só vem com sua morte, quando “a água leva-a, a água embala-a, a água adormece-a, a água devolve-a a sua mãe” (Bachelard,
1989, p.136), à mãe daqueles que amam a Bahia, com todos os
seus encantos e seus mistérios: Janaína.
Os mesmos encantos e mistérios que fizeram Vadinho
reviver e se unir a Teodoro naquele que é o ideal do bem viver: o
casamento daquilo tudo que é maldito e lindo com o que é correto
e tedioso – o casamento de Dona Flor e seus dois maridos.
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3.3 DA LUZ DE TIETA
“Durou pouco a placa azul, sumiu durante a noite.
Em lugar dela pregaram uma de madeira, confeccionada por
mão artesanal e anônima: RUA DA LUZ DE TIETA.
M„o artesanal e anÙnima. M„o do povoî
Jorge Amado
Com Tieta do Agreste, Jorge Amado nos envolve
em mais uma crônica de costumes, e desta vez com um requinte
a mais: traços naturalistas na escrita.
Ora, Tieta menina era pastora de cabras; Tieta
mulher era pastora de prostitutas.
Sim, a filha pródiga do Agreste era dona do Refúgio dos Lordes, bordel refinado de São Paulo. As meninas
que lá trabalhavam, chamavam-na de Mãezinha, sendo Tieta
enfim, assim como Dora, mãe de uma minoria marginalizada. Dora era a mãezinha de pequenos ladrões e Tieta, de
jovens prostitutas.
Podemos abranger essa comparação e dizer que
Dora era também um ladra e Tieta, era também uma prostituta.
Ambas saíram de casa muito cedo. Os pais de Dora
foram fatalmente vitimados pela varíola e ela, junto com Zé
Fuinha, se viu sozinha no mundo. Já Tieta, foi surrada e expulsa
de casa em um exercício de moralidade que Zé Esteves não
praticava em sua própria vida.
Logo, afastadas do convívio familiar, Tieta e Dora,
ambas meninas, passam a ser marginais, a viver à margem da
sociedade.
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Contudo, enquanto Dora roubava, os outros, para
sobreviver, Tieta roubava a si mesma, entregando seu corpo
aos homens. Dora é uma virgem romântica; Tieta é uma cabra
naturalista. Não se pode condenar ou louvar portanto, a atitude
de nenhuma das duas. Devemos tão somente entendê-las a partir da cronologia bibliográfica de Jorge Amado e de seu amadurecimento enquanto autor, sendo mais profundo em sua análise
do elemento humano em suas crônicas de costumes sem deixar
no entanto, de questionar o aspecto social que os envolve.
Por terem sido retiradas abruptamente do seio
familiar, ambas sentem a chama do eterno retorno a arder
em suas vidas.
Dora retorna, através da morte, ao útero materno, ao mar da cidade da Bahia. Tieta, mulher feita, volta à
Sant’Ana do Agreste para, mais que ser recolhida elo mar de
areia de Mangue Seco, ajustar contas com o seu passado,
enfrentar seus algozes de igual para igual e sarar as feridas
de seu peito.
Tieta herdou de Mangue Seco a força do elemento terra, a melancolia do reflexo branco da areia a se harmonizar com a liberdade azul do céu da Bahia. Completando essa pintura, temos o verde e sereno mar maternal de
Dora e, a própria Dora, a cruzar o céu quando este já está
envolto pela noite.
Assim, água e terra irão metamorfosear ou, para
utilizarmos um termo mais adequado, vão purificar Dora e Tieta
respectivamente, visto que as duas transformações serão positivas para ambas.
Dora volta a sua essência, feito estrela cadente
que é, e Tieta escancara os tabus e preconceitos que envol-
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vem seu clã, fazendo-os ver, através de sua conduta espontaneamente voraz e sedutora, que eles também eram iguais a
ela. Nem melhores nem piores. Humanos.
Perpétua e Zé Esteves em sua ânsia por dinheiro;
Elisa, Ricardo e Peto no afã do prazer e do gozo, um a um, eles
vão revelando seus caracteres.
Engana-se quem vê em Tieta uma vingadora. Ela é
o elemento catártico da família, sendo a sua própria catarse
oriunda de Mangue Seco, paraíso onde ela cresceu, virou mulher, reencontrou-se e onde pretende envelhecer.
Enquanto Dora dá equilíbrio sentimental aos Capitães da Areia, fazendo-os enxergar que ainda eram crianças e
que havia alguém, mãe ou irmã, a zelar por eles, Tieta lidava
com as pessoas ao seu redor, de forma irracional.
Ora, Tieta era obstinada, prática, controlada, todavia, agia, muitas das vezes, movida pela percepção, por existir
dentro dela “um constante desejo de perceber coisas e a sensação física não ser evitada” (Hamaker-Zondag, 1998, p.68).
Prova disso é a sua primeira experiência sexual, seu
envolvimento com Lucas e sua paixão por Ricardo. Atos impensados para muitos, mas naturais à essência de Tieta.
Outro vestígio dessa percepção aguçada, é a preocupação em aparentar para a família uma posição social e
moral que não condizia com a verdade, afinal, “o ser humano
perceptivo está preparado para se sacrificar a fim de conservar as aparências” (Hamaker-Zondag, 1998, p.68).
Graças a Ascânio, ferido em seu orgulho, maior que
o amor que nutria por Leonora, vem à tona a verdade sobre a
filha do meio de Zé Esteves. Enfim, Tieta está livre. Livre como
só na Bahia se pode ser.
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5 EPÍLOGO
Na abertura do romance Cacau, Jorge Amado
confessa-nos que o escreveu com “um mínimo de literatura
para um máximo de honestidade”.
Isso aconteceu em 1933 e ele tinha vinte e um anos –
a minha idade hoje.
O que eu posso dizer ao término de minha pesquisa é que a primeira parte, sobre os Capitães da Areia foi feita
com o máximo de paixão. Me apaixonei e desapaixonei várias
vezes por esse trabalho, sabedora de que, sem bibliografia
acerca desse assunto, ele dependia só de mim, da minha percepção e da minha ternura e, talvez por isso, essa unidade
prima tenha sido mais leve de ser feita, pois éramos apenas
Dora, os Capitães da Areia e eu.
Então, gargalhei, corri, burlei a lei, rodei no velho
carrossel, chorei com eles.
Na segunda fase porém, me vi embasada por outros
autores, mas ao mesmo tempo, confusa. Ora, eu já me achava a
pessoa mais auto-suficiente do mundo.
Assim, foi meio complicado encaixar as teorias de
Hamaker-Zondag, Bachelard, DaMatta e Assis Duarte a minha
explanação, afinal, uma Capitã da Areia tem o espírito muito
livre para se prender às idéias dos outros.
Contudo, aprendi a fazê-los meus aliados e hoje
penso que cumpri minhas metas. Escrevi sobre uma menina
que foi muito mais mulher do que muitas por aí; e analisei
um autor que está há muitos anos-luz dessa crítica cética
perante ao fato de termos um escritor apaixonante e
indecifrável entre nós.
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Indecifrável pois, quando todos pensam que suas
personagens são parecidíssimas, surge alguém dizendo-as
partes de um todo ideal!
Enfim, o que restou desse trabalho para mim foi
uma saudade do tamanho do mar verde e azul e cinza de
Janaína. Para amenizar essa falta, ainda ontem Dora cruzou o
céu da minha janela e revolucionou meu coração, igualzinho
como fez com Pedro Bala.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Record, 1982.
____________. Capit„es da areia. Rio de Janeiro: Record, 1982a.
____________. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record,
1982b.
BACHELARD, Gaston. A ·gua e os sonhos. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
DAMATTA, Roberto. Do país do carnaval à carnavalização: o
escritor e seus dois brasis. Cadernos de Literatura Brasileira, n.
3, p.120-135, mar. 1997.
DUARTE, Eduardo de Assis. Classe, gênero, etnia: povo. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 3, p.88-97, mar. 1997.
HAMAKER-ZONDAG, Karen. Astropsicologia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988.
MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
BIBLIOGRAFIA
AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro:
Record, 1982.
____________. Tieta do Agreste. Rio de Janeiro: Record, 1982.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Nova Cultural,
1987.
AZEVEDO, Sebastião Laércio de. Dicion·rio de nomes de pessoas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.
BOSI, Alfredo. HistÛria concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
172
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT. Dicion·rio de sÌmbolos. Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1989.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo
de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996.
MORAES, Vinicius de. Antologia poÈtica. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. São Paulo: Martins,
1969.
VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. Porto Alegre: Globo, 1981.
_______________. O tempo e o vento. Porto Alegre: Globo,
1981.
173
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UMA ANÁLISE CONTRASTIVA:
o ensino de leitura e prática redacional em
dois livros didáticos
de Português (5ªsérie)
SAUL
CABRAL
GOMES
JÚNIOR
O trabalho Uma an·lise contrastiva: o ensino de leitura
e pr·tica redacional em dois livros did·ticos de portuguÍs (5™
sÈrie), de Saul Cabral Gomes Júnior representa um acurado
e sério estudo de pesquisa acerca de questões ainda hoje
discutidas e discutíveis, no ensino de língua portuguesa,
como é o caso do binômio leitura/redação, chegando ao
final do estudo a concluir o comportamento impróprio
adotado, em algumas escolas, com relação a um ensino
simples e básico: o ler e o escrever.
Pela temática desenvolvida, pela bibliografia adotada
e ainda pelo acurado senso crítico com que tratou a
questão, sou de parecer favorável à publicação do trabalho
em apreço.
Prof. Dr. Rosa Assis.
O trabalho de conclusão de curso “ Uma an·lise
contrastiva: o ensino de leitura e pr·tica redacional em dois
livros did·ticos de PortuguÍs (5™ sÈrie)î, de Saul Cabral Gomes
Júnior, é uma análise séria e bem fundamentada em que
coloca em confronto questões básicas sobre o ler e o
escrever em sala de aula.
Pelas questões discutidas, pela bibliografia atualizada,
pela seriedade do trabalho, sou de parecer favorável à
publicação do texto em consideração.
Prof. Raymundo Jurandy Wangham
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ma observação superficial levar-nos-á a
constatar que, ainda hoje, ensinar Português consiste em
transmitir conteúdos que se limitam à metalinguagem, ou
seja, à mera investigação de alguns aspectos da estrutura
da própria língua. Deste modo, nega-se ao aluno o desenvolvimento de suas duas habilidades lingüísticas essenciais: a
leitura e a produção textual.
Além de ir de encontro a postulados de lingüistas como Halliday, essa privação contraria o que se encontra exposto na LDB promulgada em 1996. No capítulo IX
desta legislação (intitulado DO ENSINO FUNDAMENTAL), especificamente no Art. 48, lê-se a seguinte explicitação:
O ensino fundamental tem por
objetivos especÌficos:
I - o domÌnio da leitura, da
escrita e do c·lculo, enquanto instrumentos para a compreens„o e soluÁ„o dos problemas humanos e o acesso
sistem·tico aos conhecimentos [grifos nossos]1 ;
(...).
1
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da CD / com
comentários de Dermeval Saviani et alii. São Paulo: Cortez, 1990, p. 32.
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Uma Análise Contrastiva
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Assim, percebe-se que, segundo a atual LDB, a leitura e a prática da escrita constituem as duas atividades básicas a serem desenvolvidas na escola, no que concerne ao ensino de Língua Portuguesa. Daí o processo de reformulação que
vem se impondo a este ensino, que visa, sobretudo, a dirimir
seu caráter estritamente metalingüístico.
Nesse contexto de reconcepção do ensino de Português, faz-se imprescindível que se integre a este processo o
principal instrumento da prática de ensino da língua materna:
o livro didático. Este recurso docente vem-se mostrando portador de diversas incoerências e deficiências, particularmente no
que diz respeito à formulação de exercícios, caracterizando-se,
principalmente, pelo excesso de questões objetivas, ou de mera
compreensão, que em nada estimulam a criatividade lingüística do aluno. Trata-se, acima de tudo, de inserir o livro didático
nesse processo de reelaboração da metodologia de ensino do
Português.
Nessa busca de aprimoramento do livro didático,
torna-se fundamental o procedimento da análise contrastiva,
que nos possibilita o confronto entre o vigente ensino quantitativo e o ensino qualitativo, que prima pela proficiência discente
na área de leitura e produção de textos. Objetivando-se contribuir para o desenvolvimento da competência textual do aluno,
decidiu-se, neste trabalho, confrontar dois livros didáticos de
Português (5ª série) - “Português através de textos”, de Magda
Soares, e “Ação e reflexão em língua portuguesa”, de Marilda
Prates -, expondo as convergências e as divergências que eles
apresentam no que se refere às duas modalidades básicas de
atividade: leitura e prática redacional.
Para esta análise contrastiva, dentre os variados
tipos de atividade constantes no livro didático de Português,
optou-se pela leitura e produção textual devido ao fato de se-
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rem estas que viabilizam a efetiva conexão do aluno ao uso
concreto da língua, habilitando o estudante a compreender e
utilizar proficientemente os recursos funcionais da língua e
demonstrando-lhe a importância da sua própria competência
lingüística neste aprendizado.
II - O que é análise contrastiva?
Conforme se evidencia no título deste trabalho, esta
pesquisa fundamentar-se-á na análise contrastiva. Este procedimento é um dos mais eficientes recursos de que a Lingüística Aplicada se utiliza para garantir a boa qualidade do material
didático.
A análise contrastiva consiste na confrontação entre dois elementos ou textos didáticos para constatar-se o que
eles possuem de comum e/ou de diferente. No caso específico
deste trabalho, os elementos a se confrontarem serão dois livros didáticos de Português. A análise contrastiva dá ênfase às
igualdades, às semelhanças, bem como aos contrastes, às
dessemelhanças existentes entre um elemento didático e outro.
Partindo-se dos resultados dessa confrontação, chega-se à corroboração de que um elemento didático encontra-se
mais atualizado, oferece melhores instrumentos de aprendizagem, apresenta maior nível qualitativo em relação ao outro.
Nota-se, dessa maneira, a indissociabilidade existente entre a contrastividade e outra propriedade da Lingüística Aplicada: a atualidade. O principal objetivo de uma análise
contrastiva de texto didático é comprovar o caráter ultrapassado de determinado livro didático, através do paralelo traçado entre este livro e outro que comporte maior adequação às
necessidades, às aspirações do tempo presente.
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A exposição de fatores negativos constantes em
um material didático contribui, fundamentalmente, para o aprimoramento da atuação da Metodologia do ensino das línguas
(ou Didática das línguas), consoante afirmam Gallison e Coste2 :
Definitivamente (...), parece um
fato que a metodologia j· n„o
pode dispensar os seus serviÁos
[os da an·lise contrastiva]
numa forma ou noutra (comparaÁ„o dos cÛdigos, an·lise dos
erros), porquanto razões de
economia e de efic·cia
incitam-na a ordenar cada dia
mais rigorosamente os materiais ling¸Ìsticos que ela escolhe.
Essa consistente contribuição que a Didática das
línguas recebe da análise contrastiva demonstra a inter-relação entre este procedimento e aquela disciplina. Daí que, para
atribuir-se um caráter integral a este trabalho, imponha-se a
busca de um paralelo entre os aspectos conteudísticos e também entre as estratégias metodológicas contidas em cada um
dos livros didáticos em análise. Desta forma, repete-se, aqui, o
“pedido de licença” que Halliday et alii., na obra As ciências
lingüísticas e o ensino de línguas3 ., dirigem aos pedagogos,
2
GALLISON, R. & COSTE, D. Dicionário de didáctica das línguas. Coimbra:
Almedina, 1983, p. 57.
3
HALLIDAY, M. A. K. et alii. As ciências lingüísticas e o ensino de
línguas. Petrópolis: Vozes, 1974.
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visto que o sucesso do ensino de leitura e prática redacional
depende não apenas do conhecimento teórico docente acerca
dessas duas atividades escolares, mas também - e basicamente - do conhecimento metodológico que possibilita ao professor saber conduzir com eficácia as atividades de leitura e produção textual.
III - Tipos de ensino de língua
Antes de incursionar-se especificamente pelo ensino de leitura e prática redacional nas obras em questão, faz-se
conveniente realizar-se um apanhado global dos tipos de ensino
de língua, definidos por Halliday et alii. Estes lingüistas expõem
três tipos de ensino: o prescritivo, o descritivo e o produtivo.
Considerando-se que cada tipo de ensino de língua
se encontra estreitamente ligado a um objetivo de ensinar-se
a língua materna, ao conceituarem-se os tipos de ensino,
explicitar-se-á simultaneamente o objetivo ao qual cada um deles
se relaciona.
1)
Ensino prescritivo
O prescritivo é o ensino normativo da língua. Ele
consiste na transmissão de um aglomerado de regras gramaticais que o aluno deverá assimilar, tomando-se este conjunto
de regras como a forma “correta” da língua. Com relação ao
“para que ensinar-se prescritivamente a língua?” e à caracterização deste tipo de ensino, elucidam Halliday et alii. (op. cit., p.
260-261):
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[responde-se ‡ supracitada pergunta:] ëpara ensinar as crianÁas a substituÌrem aqueles de
seus padrões de atividade ling¸Ìstica que s„o inaceit·veis por outros padrões, aceit·veis.í (...) O
ensino prescritivo significa, portanto, selecionar os padrões, em
qualquer nÌvel, que s„o favorecidos por alguns membros da comunidade ling¸Ìstica, inclusive os
mais influentes, e usar pr·ticas
padronizadas de ensino, para persuadir as crianÁas a se conformarem ‡queles padrões.
Esse tipo de ensino ignora as variedades lingüísticas, visto que seu objetivo único é levar o aluno a dominar a
norma-padrão da língua. Deste modo, do ponto de vista
prescritivo, a única variedade a ser ensinada é a escrita, porque
a oral comporta “erros” que devem ser, a todo custo, isolados.
O ensino prescritivo tem espaço garantido em sala
de aula, pois todos os três tipos de ensino o têm, “desde que
sejam razoavelmente equilibrados e compreendidos seus diferentes propósitos” (Halliday et alii, op. cit., p.260). A prescrição
mostrar-se-á necessária ao ensinarem-se as convenções ortográficas, por exemplo, já que se trata do ensino de uma arbitrariedade da língua escrita. Deve-se, apenas, poupar o ensino de
um caráter predominantemente prescritivo, a fim de que não se
iniba a criatividade lingüística do aluno e de que não se imponha
um empecilho ao desenvolvimento de sua expressão oral. Preju181
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ízos ainda maiores serão evitados caso seja abolida a conversão
do ensino prescritivo em proscritivo. Este designa o ensino de
um conjunto de regras que não devem ser cumpridas, acabando por imbuir a mentalidade discente de erros.
2)
Ensino descritivo
O ensino descritivo objetiva demonstrar ao aluno o
modo como a língua funciona, patenteando-lhe a estrutura lingüística interna. Ele trata de todas as variedades lingüísticas,
almejando ensinar novas habilidades ao estudante, sem, no
entanto, alterar o conhecimento lingüístico que o indivíduo adquire no lar.
Esse tipo de ensino atende ao seguinte objetivo: “(...) ensinar o aluno a pensar, a raciocinar, a desenvolver o raciocínio científico, a capacidade de análise sistemática dos fatos e fenômenos que encontra na natureza e na
sociedade.” 4
O ensino descritivo, juntamente com o prescritivo,
tem conquistado amplo espaço nas aulas de língua materna,
dado que, nestas aulas, tem-se percebido a preponderância
de atividades normativas e metalingüísticas. Estas últimas são
conceituadas por Travaglia (op. cit., p. 34-35): “As atividades
metalingüísticas [grifo do autor] são aquelas em que se usa
a língua para analisar a própria língua, construindo então o
que se chama de metalinguagem, isto é, um conjunto de elementos lingüísticos próprios e apropriados para se falar sobre
a língua”.
4
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o
ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996, p. 39.
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Geraldi5 distingue, com muita propriedade, os produtos do ensino do uso lingüístico e os do ensino da
metalinguagem:
(...) uma coisa È saber a lÌngua,
isto È, dominar as habilidades de
uso da lÌngua em situaÁões concretas de interaÁ„o, entendendo e produzindo enunciados, percebendo as diferenÁas entre
uma forma de express„o e outra. Outra, È saber analisar uma
lÌngua dominando conceitos e
metalinguagens a partir dos
quais se fala sobre a lÌngua, se
apresentam suas caracterÌsticas estruturais e de uso.
3)
Ensino produtivo
O ensino produtivo visa a ensinar novas habilidades
ao aluno, abarcando todas as variedades lingüísticas, pois que
tem, como meta primordial, levar o estudante a estender o uso
de sua língua materna do modo mais eficaz possível.
Assim sendo, nota-se a vinculação desse tipo de
ensino ao objetivo de aprimorar-se a competência comunicativa do aluno, que se desdobra em duas:
5
GERALDI, João Wanderley. “Concepções de linguagem e ensino de português”.
In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática,
1997, p. 45-46.
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a)
competência lingüística, ou seja, a capacidade
de gerar seqüências lingüísticas que os usuários da língua considerem seqüências próprias da língua em questão;
b)
competência textual, isto é, a capacidade de,
em situações de interação comunicativa, produzir e compreender textos de consistência efetiva.
Buscando-se proporcionar ao aluno a aquisição da
proficiência comunicativa, o ensino produtivo concentra-se na maior
unidade lingüística: o texto (ou enunciado). Daí que este tipo de
ensino se baseie em atividades epilingüísticas, cuja definição é
cedida por Travaglia (op. cit., p. 34): “As atividades epilingüísticas
[grifo do autor] são aquelas que suspendem o desenvolvimento
do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no curso da
interação comunicativa, tratar dos próprios recursos lingüísticos
que estão sendo utilizados, ou de aspectos da interação (...).”
Ao fundamentar-se na compreensão e na elaboração de textos, o ensino produtivo possibilita que o estudante
apreenda a adequação do ato comunicativo a diferentes contextos. Desta forma, no referido ensino, priorizam-se os dois tipos
de exercício que, segundo Fonseca & Fonseca6 , devem ocupar
a maior parte do tempo destinado às aulas de língua materna:
praticar a comunicação, exercitando a linguagem em situações
concretas de produção discursiva não dialógica, de recepção e
de intercâmbio; e analisar a comunicação, refletindo sobre o instrumental utilizado para a efetuação dos discursos criados nas
referidas atividades de prática da comunicação.
Notabiliza-se que o ensino produtivo atrela-se à
concepção da linguagem como forma de interação, uma vez
que valoriza os efeitos da mensagem executada sobre o ouvinte, levando em consideração as finalidades dessa mensagem e
os meios para que ela se efetive.
6
FONSECA, Fernanda & FONSECA, Joaquim. Pragmática lingüística e
ensino do português. Coimbra: Almedina, 1990.
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Voltando-se a atenção para o restrito espaço que
este tipo de ensino tem ocupado nas aulas de língua materna, constata-se a necessidade de esta situação ser revertida,
visto que o ensino produtivo proporciona, com primazia, o desenvolvimento das duas habilidades lingüísticas essenciais do
aluno: a leitura e a produção textual.
IV - A interface leitura X produção textual
Devido a este trabalho consistir em uma tessitura
de considerações sobre o ensino de leitura e prática redacional,
deve-se destacar, aqui, a indissociabilidade existente entre essas duas habilidades lingüísticas.
Ao tratar-se do ensino de produção textual, não se
pode deixar de mencionar a leitura, pois é esta que fornecerá
o instrumental necessário para que o aluno execute eficientemente aquela.
Em busca de demonstrar a inter-relação entre leitura e prática redacional, convém uma recorrência ao
gerativismo. Fazendo-se uso da terminologia própria dessa corrente lingüística, pode-se asseverar que é através da leitura
que o aluno adquire a “competência” para o “desempenho” da
escrita. Daí a imprescindibilidade de a leitura constar na
metodologia de ensino de prática redacional, visto que a ausência da leitura antes da redação gera a impossibilidade de
que o escrito do aluno alcance a textualidade, ou seja, a propriedade de ser um texto. O exercício da leitura possibilita que o
discente, por meio do processamento de textos, apreenda os
sete fatores de textualidade, a saber: a coerência, a coesão, a
informatividade, a situacionalidade, a intencionalidade, a
aceitabilidade e a intertextualidade (cf. Costa Val7 ).
7
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
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O ato de ler, além de proporcionar o contato prévio
do aluno com a língua escrita, serve como um elemento motivador
para o exercício da redação. Conforme expõe Silva8 , produzir
um texto é exteriorizar algo internalizado, adquirido através de
diferentes leituras; é dialogar com o leitor quer se fazendo ouvir,
quer se fazendo ler. Para que o estudante construa um texto,
faz-se imprescindível um conteúdo a ser expresso por esse texto. Este conteúdo será concedido pela leitura.
Dialeticamente, ao atingir o nível crítico, a leitura
tem como culminância a produção de textos. Assinalam
Azambuja & Souza9 : “Quando o Estudo de Texto não se limita
a um receber de significados, de modo passivo e acrítico, ocorre uma interação entre aluno-texto-autor, gerando, no aluno,
uma necessidade de expressar algo que foi ativado durante
as leituras”. Todo o conhecimento, a gama de informações,
que o discente obtém através da leitura é exteriorizado por
meio da elaboração textual, resultando em uma ação produtiva de receber e emitir.
Uma das maiores assimilações feitas pelo leitor
competente é a variabilidade lingüística. A leitura dos mais variados tipos de texto torna possível ao aluno a percepção de que
a língua escrita - assim como a falada - comporta diferentes
registros e graus de formalismo. O estudante explicitará essa
percepção ao produzir os mais diversos tipos de texto, mostrando-se apto a adequar sua competência lingüística às distintas situações e exigências do meio social.
8
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler - fundamentos psicológicos
para uma nova pedagogia da leitura. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 1996.
9
AZAMBUJA, Jorcelina Queiroz de & SOUZA, Maria Letícia Rocha de. “O estudo
de texto como técnica de ensino”. In:VEIGA, Ilma Passos de Alencastro (org.).
Técnicas de ensino: por que não? 3ª ed. Campinas: Papirus, 1995, p. 30.
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V - Bases teóricas para um ensino eficiente de leitura
A fim de que o ensino de leitura atinja seu objetivo
principal, que é formar leitores críticos e capacitados ao entendimento de qualquer gênero de texto, faz-se necessário que se
considerem as bases conceituais fornecidas pelos lingüistas e
educadores que vêm se dedicando ao estudo do processamento
do texto por parte do aluno.
Ler um texto com eficácia, muito além de decodificar a
palavra escrita, é extrair-lhe a significação, apreendendo
aprofundadamente a mensagem nele contida. Com vistas a que se
consolide este processo de depreensão do sentido textual, o material didático deve favorecer a exercitação de habilidades de leitura
inerentes ao aluno.
A primeira dessas habilidades a ser citada é o estabelecer-se do relacionamento entre leitura de mundo e leitura do texto. A leitura não se limita ao código escrito, conforme
assinala Freire10 . Segundo este autor, procurando-se abarcar
a exata dimensão do conceito de ler, pode-se afirmar que este
ato consiste em atingir a compreensão de todo tipo de objeto
que se coloca à observação do sujeito-leitor no decorrer de
sua vivência. A esta idéia global de leitura, denomina-se leitura
de mundo.
Desse modo, é imprescindível que o ensino de leitura leve em conta o conhecimento que o indivíduo já possui
antes de ingressar na escola, adquirido através de sua leitura
de mundo. Ensina-nos Joel Martins, no prefácio de Silva (op.
cit., p. 18): “A essência do ato de ler é, então, selecionar e com-
10
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler - em três artigos que se
completam. São Paulo: Cortez, 1986.
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binar itens relevantes da experiência que estão presentes de
forma implícita no texto, nas emoções do autor, no equilíbrio
afetivo, nas intenções e no conhecimento anterior do leitor e
que pode esclarecer o significado de um texto”.
Surge, assim, a noção de conhecimento prévio:
A compreens„o de um texto È
um processo que se caracteriza pela utilizaÁ„o de conhecimento prÈvio: o leitor utiliza na
leitura o que ele j· sabe, o conhecimento adquirido ao longo
de sua vida. (...) Pode-se dizer
com seguranÁa que sem o
engajamento do conhecimento
prÈvio do leitor n„o haver· compreens„o.11
Na constituição do conhecimento prévio, participam outros níveis de conhecimento além do de mundo. Destaquem-se os outros dois seguintes: conhecimento lingüístico,
congênito a todo falante de uma língua, que abrange
subconhecimentos, como o de pronúncia, o léxico-gramatical
e o referente ao uso da língua; e conhecimento textual, que
permite ao indivíduo identificar os distintos tipos de texto (diferenciando, por exemplo, uma carta de uma receita de bolo)
e as diferentes formas de estruturação textual (estruturas
expositiva, descritiva e narrativa). Kleiman (op. cit.) ressalta
11
KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6ª
ed. Campinas: Pontes, 1999, p. 13.
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que é mediante a interação destes níveis de conhecimento
que o leitor constrói o sentido textual. Devido à utilização desses diversos níveis cognitivos que interagem entre si, atribuise à leitura um caráter interativo.
Para explicitar-se o processo interativo que se empreende quando da leitura de um texto pelo aluno, utilizar-se-á o
seguinte modelo gráfico, proposto por Silva (op. cit., p. 92):
ATO DE LER
Mundo
Documentos
RecepÁ„o
ConsciÍncia do
ConstataÁ„o Cotejo
Documento
TransformaÁ„o
Intencionalidade
AtribuiÁ„o de
Significado
ExperiÍncia dos ExistÍncia do
Horizontes
Ser Leitor
do Texto
Posicionamento
do ser no Mundo
como Leitor
Abertura da ConsciÍncia
Compreens„o
Leitura
para o Texto
Possibilidades de ModificaÁıes do Documento ou CriaÁ„o de Novas
DerivaÁıes
Do quadro anterior, depreende-se que a apreensão
da mensagem textual por parte do aluno somente ocorrerá caso
o conteúdo do texto esteja adequado à vivência do indivíduo discente. No que se refere particularmente ao objeto desta pesquisa, demonstra-se a necessidade de os textos dos livros didáticos
de 5ª série estarem de acordo com a experiência, com a capacidade de percepção do estudante, de modo que este possa atribuir-lhes significação, compreendendo-os de fato.
Essa imprescindibilidade de os textos didáticos serem correspondentes à experiência de vida discente é
explicitada por Perini, quando este autor postula que apenas
desta maneira o livro didático estará contribuindo efetivamente para que o aluno adquira a leitura funcional, ou seja, a leitura através da qual ocorre a depreensão de conteúdos informa-
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tivos, habilitando-se o leitor a interpretar qualquer mensagem
presente no universo verbal que o cerca. “Não é raro encontrar textos de terceira ou quarta série cuja complexidade se
compara à de textos universitários; não é de admirar que os
alunos se vejam derrotados frente a eles. Estou convencido de
que esse fato é um dos fatores do fracasso da escola em alfabetizar funcionalmente.”12
O autor supracitado encontra duas funções nos
textos didáticos de séries iniciais: servir como fonte de informação ao aprendiz cognoscente; e iniciar consistentemente o estudante na área da leitura, já que aqueles textos são os que
proporcionam o contactar-se primordial do aluno com a língua
escrita. Para que se cumpram essas funções, assinala: “Acredito que os textos deveriam ser graduados quanto à sua dificuldade de leitura, de modo que um texto de terceira série
fosse significativamente mais simples do que um de oitava série, ou um de nível universitário” (Perini, op. cit., p. 82).
Outra habilidade discente a ser desenvolvida pela leitura é a aquisição do léxico. A capacidade de armazenamento
lexical, inata ao falante-leitor e possibilitada pela memória de longo termo (cf. Kato13 ), é desempenhada por meio do contato do
aluno com o vocabulário contido nos textos didáticos. “É através
da aula de leitura, através da análise do texto para examinar os
efeitos conseguidos pelo autor que esse ensino é possível, sendo
que essa análise poderá ser incorporada à escrita dos alunos,
com as diferenças devidas às diversas competências discursivas.”14
12
PERINI, Mário A. “A leitura funcional e a dupla função do livro didático”. In: SILVA,
Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura - perspectivas
interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988, p. 84.
13
KATO, Mary A. No mundo da escrita - uma perspectiva
psicolingüística. São Paulo: Ática, 1995.
14
KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989, p.
205-206.
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Assim, percebe-se que o enriquecimento do léxico,
viabilizado pela leitura, concorrerá para o aprimoramento da
competência textual do discente na prática da escrita, visto
que o aluno incorporará o acervo lexical obtido, automaticamente, ao seu texto, mostrando-se possuidor de conhecimento verbal suficiente para expressar a contento suas idéias.
Cite-se a última habilidade discente a ser desenvolvida pela leitura: a assimilação da variabilidade lingüística.
A diversificação dos textos constantes nos livros didáticos é
fundamental para o aprimoramento da competência comunicativa do estudante, pois somente através dela se pode demonstrar ao aluno que a língua não é um código uniforme,
mas sim um sistema que comporta variações. Destas, que se
manifestam tanto na língua falada quanto na língua escrita,
se vale o indivíduo para adaptar-se às distintas situações que
o convívio em sociedade lhe impõe.
Além da assimilação da variabilidade da língua, a
diversidade dos textos didáticos proporciona ao discente a
aquisição de uma ampla gama de informações não-visuais15 ,
ou seja, dados referentes à realidade extralingüística do indivíduo, que subjazem ao código lingüístico expresso no papel. Ao
travar contato com variadas espécies de texto, o aluno deparase com diversas leituras de mundo, o que possibilita que ele,
partindo dessas leituras, construa a sua própria visão crítica
sobre a realidade que o cinge.
15
Na obra Como facilitar a leitura (São Paulo: Contexto, 1992), as autoras,
Lúcia Fulgêncio e Yara Liberato, distinguem dois tipos de informação adquirida por
intermédio da leitura: as visuais, que vêm a ser as propriedades da língua escrita,
a exemplo da ortografia; e as não-visuais, que consistem nas informações contidas na macroestrutura textual, isto é, no plano das idéias que compõem o texto.
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VI - Bases teóricas para um ensino
eficiente de prática redacional
A prática da escrita consiste, essencialmente, na
exteriorização das informações obtidas através do
processamento do texto. Daí a necessidade de que a leitura seja
uma atividade prévia à execução da escrita, já que, ao redigir, o
aluno desempenha o conhecimento advindo da leitura. Evidencia-se, portanto, que a proficiência na escrita depende,
irremissivelmente, de um eficiente aprendizado de leitura.
Conforme já se destacou na seção IV deste trabalho, é a leitura que viabiliza a ação introdutória do processo de
escrever: a formulação de idéias. Dado este passo inicial, o discente deve ocupar-se somente com o exercício da competência
que a leitura de textos lhe oferece. Essa competência, cujo desempenho eficaz - considerando o enorme prestígio que a sociedade contemporânea vem concedendo à escrita - é de ordem
efetivamente pragmática, resume-se, basicamente, à capacidade de distinguir língua falada e língua escrita.
A produção de textos impõe ao estudante a
imprescindibilidade de praticar essa distinção, que, embora transformada pela escola em fator de discriminação social, é uma
realidade patente na comunicação cotidiana. A fala e a escrita
são meios de comunicação verbal distintos, que atendem a necessidades comunicativas diferentes. Voltando-se à escrita, Kato
(op. cit., p. 31) expõe algumas das diferenças entre as duas modalidades lingüísticas:
a) a escrita é menos dependente do contexto
situacional;
b) a escrita permite um planejamento verbal mais
cuidadoso;
c) a escrita é mais sujeita a convenções prescritivas;
d)
a escrita é um produto permanente.
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O fato de a escrita ser norteada pela gramática
prescritiva, como foi explicitado na citação acima, acarreta que
o ensino de redação, via de regra, restrinja-se ao ensino da
prática da norma-padrão, o que implica destinar à língua falada um tratamento discriminatório. Tradicionalmente, nas atividades de prática redacional, adota-se um critério sociológico
ao se distinguirem as variações da língua, classificando-as em
“certa” (dialeto-padrão, o escrito) e “erradas” (dialetos não-padrão, os falados). Esta classificação, conforme ressalta Soares16 ,
não se assenta em nenhuma fundamentação lingüística; ela é
regida por preconceitos sociais. Todos os dialetos equivalem
como instrumento de comunicação, pois todos atendem a metas comunicativas do falante e adequam-se a cada contexto
em que o ato comunicativo é empreendido.
A norma-padrão não será a única a ser empregada
pelo aluno quando da elaboração de um texto. Determinados
modelos de texto escrito - como uma carta dirigida a um indivíduo
cuja escolarização seja restrita, por exemplo - exigirão do discente
o uso de uma variação lingüística distensa, a fim de que o destinatário apreenda efetivamente a mensagem transmitida. Destaca
Labov (apud Soares, op. cit., p. 47): “A situação social é o mais
poderoso determinante do comportamento verbal”.
Não compete à escola, no que diz respeito ao ensino de prática redacional, alijar qualquer um dos dialetos que a
língua comporta, mas sim demonstrar que as variações lingüísticas correspondem a diferentes situações impostas pela própria vivência em sociedade. Segundo Heidegger17 é a lingua16
SOARES, Magda. Linguagem e escola - uma perspectiva social. São
Paulo: Ática, 1986.
17
HEIDEGGER, Martin. “Sobre o humanismo”. In: Conferências e escritos
filosóficos. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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gem que afirma o homem enquanto ser social, visto que é a
atividade que lhe possibilita interagir com todos aqueles que o
rodeiam, integrando-o aos diversos ambientes em que se fragmenta o meio social.
A produção escrita, assim como a falada, é um recurso para que ocorra essa integração do homem à sociedade. Assevera Marcuschi18 que a leitura é o ato individual de
uma prática social. Este conceito também se aplica à escritura,
já que esta, embora seja efetuada individualmente, deve satisfazer a expectativas do destinatário, que não será apenas um,
mas vários, que pertencerão a distintos blocos sociais. Estes
corresponderão a diferenciadas comunidades lingüísticas, cuja
compreensão do texto escrito dependerá do enquadramento
deste no conhecimento lingüístico de cada uma delas. Daí a
necessidade de o estudante estar ciente da variabilidade lingüística ao produzir um texto.
Assim, ainda que o uso eficaz da norma-padrão deva
ser enfatizado nas lições de prática redacional - como um meio de o
aluno responder pragmaticamente aos anseios da sociedade letrada -, percebe-se a imprescindibilidade de se integrarem ao ensino
de produção textual as variantes não-padrão da língua, com vistas a
que se desenvolva, no discente, a habilidade de adaptar o texto
escrito à sua intenção comunicativa. Esta intenção, na realidade,
são intenções, que variam de acordo com o destinatário e com o
contexto de uso da língua. A capacidade de expressar estas intenções é inata ao falante e denomina-se competência textual. Cabe à
escola, apenas, aprimorá-la.
18
MARCUSCHI, Luiz Antônio. “A compreensão do texto falado e do texto
escrito como ato individual de uma prática social”. In: SILVA, Ezequiel Theodoro
da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura - perspectivas
interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
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VII - Confrontação entre os dois livros
didáticos
Nesta seção, efetivar-se-á a análise contrastiva19
entre os dois livros didáticos em questão, ambos de 5ª série:
“Português através de textos”, de Magda Soares, e “Ação e
reflexão em língua portuguesa”, de Marilda Prates.
Em termos introdutórios, expor-se-ão, sistematicamente, similaridades e diferenças gerais existentes entre os dois livros,
para, posteriormente, executar-se a confrontação específica de
aspectos concernentes ao ensino de leitura e prática redacional.
VII. 1) Comparação de aspectos genéricos
VII. 1. 1) Pontos em comum
a)
Exposição
didático-pedagógica
da
estruturação do livro didático
Os dois livros comportam uma unidade destinada,
particularmente, à descrição dos conteúdos abordados na obra
e da metodologia empregada para que o aluno apreenda esses conteúdos.
Abordagem da oralidade
b)
Tanto em “Português através de textos” quanto em
“Ação e reflexão em língua portuguesa”, existem exercícios voltados para a prática da linguagem oral.
No livro de Magda Soares (p. 72), após se mostrarem os poemas “Classificados poéticos”, de Roseana Murray, e
“Pardalzinho”, de Manuel Bandeira, pede-se aos alunos que, se-
19
Quando da confrontação entre os dois livros didáticos, ao fazerem-se necessárias ilustrações com passagens das duas obras, adotar-se-á o seguinte modo de
citação: as siglas PAT (“Português através de textos”) e ARLP (“Ação e reflexão
em língua portuguesa”) seguidas imediatamente do número da página da qual se
extraiu a passagem utilizada.
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guidamente a uma discussão entre si, posicionem-se a respeito
da proibição legal de caça, venda e compra de pássaros da fauna
brasileira. Neste livro, acentua-se a função socializante da prática oral, dado que, nele, todos os exercícios de oralidade exigem
cooperação mútua entre os discentes, seja através de trabalhos em equipe, seja por meio de discussões entre os colegas.
No livro de Marilda Prates (p. 151), cede-se o seguinte dizer de Tom Jobim: “Quando uma árvore é cortada, ela
renasce em outro lugar. Quando eu morrer, quero ir para esse
lugar, onde as árvores vivem em paz”. Em seguida, solicita-se
ao aluno que, associando imagens (colagens de árvores na
referida página) e palavras, “fale sobre os sentimentos que
despertam no seu interior”.
Nas duas obras, percebe-se a prática oral como um
exercício de argumentação, consistindo em um meio de aprimorar-se, nos alunos, a capacidade de expressar suas idéias, de
modo coerente, através da língua falada.
VII. 1. 2) Pontos divergentes
a)
Orientação metodológica ao professor: em
Magda Soares, eficiente; em Marilda Prates, carente
Em “Português através de textos”, a seção de orientações metodológicas ao professor é ampla, contendo, além
de variadas sugestões de como se conduzirem exercícios, os
objetivos das atividades propostas. Já no livro de Marilda Prates,
as orientações ao professor, em geral, limitam-se a estritas sugestões e respostas de exercícios.
b) Presença (Marilda Prates) e ausência (Magda
Soares) de sugestões complementares ao livro didático
Ao final de “Ação e reflexão em língua portuguesa”,
na unidade reservada à descrição da estrutura da obra, consta
uma seção de sugestões cujo objetivo é complementar o con-
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teúdo do livro didático. Não se encontra igual seção no livro de
Magda Soares.
c) Sugestões bibliográficas comentadas (Magda Soares) e não-comentadas (Marilda Prates) ao professor
Em “Português através de textos”, acima de cada
indicação bibliográfica ao professor, há um comentário acerca
da obra, como o que a autora faz a respeito de Comunicação
em prosa moderna, de Othon Garcia: “Obra indispensável a
todo professor de Português e fundamental para compreender
a metodologia de ensino da redação, na coleção [“Português
através de textos”] (bem como para compreender, ainda, certos
tópicos gramaticais incluídos na coleção)” (PAT, 19).
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a orientação bibliográfica ao professor se resume a um conjunto de
livros listados ao final da obra.
d) Restrição (Magda Soares) e abundância (Marilda
Prates) de recursos visuais
Em “Português através de textos”, nota-se um restrito uso dos recursos visuais de que dispõe o livro didático. Nessa obra, as figuras são poucas, predominando o texto20 propriamente verbal. Opostamente, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, evidencia-se uma profusão de desenhos, imagens, figuras que cativam, à primeira vista, o aluno.
Desse modo, traçando-se um paralelo entre as duas
obras, pode-se corroborar que a ludicidade predomina, sobremaneira, no livro de Marilda Prates.
20
Neste caso, empregou-se “texto” na acepção semiótica, a saber: qualquer
unidade da qual se possa depreender uma mensagem, que pode ser expressa
por outros canais que não sejam o verbal; destes canais, o puramente visual é um
exemplo.
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VII. 2) O ensino de leitura em “Português através de textos” e “Ação e reflexão em língua portuguesa”
VII. 2. 1) Pontos em comum
a) Consideração da coerência global ao selecionarem-se os textos didáticos
Em ambos os livros, os textos didáticos se adequam
perfeitamente à faixa etária do público-alvo, pois não comportam temas prolixos e são correspondentes ao conhecimento
de mundo de alunos de 5ª série, apresentando, por isto, o que
Kato (op. cit.) denomina coerência global.
b) Constância de questões de compreensão e interpretação textuais
Tanto em “Português através de textos” quanto em
“Ação e reflexão em língua portuguesa”, constam questões de
compreensão e de interpretação de texto.
Em “Português através de textos”, após a leitura
do conto “Lisete”, de Clarice Lispector, a autora propõe a seguinte questão de compreensão textual:
O texto não diz, mas dá informações que permitem saber:
a) Em que mês Lisete foi comprada? Em que informação do texto você se baseou para dar essa resposta?
b) Quantos dias Lisete viveu na casa da autora?
Em que informação do texto você se baseou para dar essa
resposta?
(PAT, 54)
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Essa questão é de compreensão textual porque as
respostas solicitadas estão no próprio texto, conforme explicita,
já no comando da questão, a autora. Trata-se de uma atividade
objetiva de transposição de informações. Já na página 163, no
bloco de questões referentes ao conto “De sol a sol”, de Lucília
de Almeida Prado, encontra-se a seguinte interrogação:
“Neguito parou de estudar antes de terminar a 3ª série. Que
conseqüências [grifo da autora] você acha que isso terá na
vida futura dele?”. A resposta para essa questão não está explícita no texto. A fim de achá-la, o estudante terá de recorrer a
seu conhecimento de mundo e a seu senso crítico.
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a objetividade peculiariza as questões de compreensão textual. Um
exemplo destas aparece após a apresentação do conto “Me
dá a sua mão”, de Heleninha Bortone: “Quais são as personagens dessa narração?” (ARLP, 95). A partir da leitura do conto
“Mariana”, de Maria Lúcia Amaral, propõe-se a seguinte questão interpretativa: “Você concorda que lugar de mulher é em
casa? Por quê?” (ARLP, 116).
VII. 2. 2) Pontos divergentes
a)
Emprego (Magda Soares) e não-emprego
(Marilda Prates) dos diversos tipos de leitura
A
de diferentes
objetivos que
do ato de ler,
leitura é uma atividade que pode ser realizada
modos. Estes se relacionam com os diferentes
se formulam previamente ao empreendimento
em sala de aula ou fora dela.
Oliveira21 expõe que a leitura pode ser de dois ti21
OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Ensino de língua e literatura. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
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pos: leitura oral, que possibilita o aprimoramento da entonação,
da relação som-vocábulo; e leitura silenciosa, que proporciona o
conhecimento do vocabulário e a compreensão da idéia global e
dos elementos subsidiários do texto. A estes dois tipos, acrescente-se a leitura dramatizada (ou dialogada), que tem um papel
essencialmente desinibidor, já que, por meio da teatralização,
torna os alunos próximos uns aos outros.
Em “Português através de textos”, a autora explicita,
nas seções de orientações metodológicas referentes à ApresentaÁ„o do texto, a diversidade dos tipos de leitura. Na p. 12,
sugere que, primordialmente, o professor faça a leitura oral do
conto “O mistério do coelho pensante”, de Clarice Lispector,
visto que este texto consiste em uma estória contada por um
adulto a uma criança; em seguida, para que se complete a
compreensão do texto, recomenda a leitura silenciosa a ser
feita pelos alunos. Na p. 78, indica que a apresentação do conto “Menino”, de Fernando Sabino, ao aluno deve ocorrer através da leitura oral, expressiva por parte do professor, a quem
caberá explorar eficientemente os recursos prosódicos da língua, de modo que, posteriormente, os alunos, ao lerem em voz
alta o mesmo texto, possam fazer semelhante uso da prosódia.
Na p. 91, orienta que, inicialmente, os alunos façam uma leitura silenciosa do conto “Martelo malvado”, de Luís Jardim, para,
após isto, fazerem uma leitura dramatizada do mesmo conto,
na qual três alunos seriam os seguintes personagens: o
narrador, José e o menino Jesus.
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, o único tipo de leitura ao qual se direcionam as orientações
metodológicas é a leitura dramatizada, cuja definição é cedida
pela autora: “A gente dramatiza um texto quando faz-de-conta
que está no lugar das pessoas, dos animais e daquele (a) que
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conta a história. Como se nós fôssemos as personagens falando e gesticulando numa atitude de imitação”(ARLP, 14).
A leitura dramatizada ocupa uma posição
hegemônica nessa obra. Acha-se um exemplo de atividade que
envolve esse tipo de leitura nas páginas 13-14, nas quais a
autora sugere que se dramatize o poema “Pequena história
de gente e bicho”, de Ciça Fittipaldi.
b)
Variedade (Marilda Prates) e não-variedade
(Magda Soares) de textos por unidade
Em “Português através de textos”, apenas um texto inicia cada unidade. Já em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, identifica-se uma ampla quantidade de textos por unidade, divididos em textos b·sicos e textos de apoio.
c)
Profusão (Magda Soares) e ausência (Marilda
Prates) de informações sobre os textos e seus autores
Oferece-se, em “Português através de textos”, uma
extensa gama de informações acerca dos textos utilizados e
de seus autores.
Nessa obra, abaixo de cada texto introdutório de
uma unidade, citam-se todas as referências bibliográficas do
livro de que se retirou tal texto. Assim ocorre com qualquer
texto que esteja incluído em “Português através de textos”. Isto
proporciona que o aluno se situe em relação ao texto lido.
Destaque-se, também, o fornecimento de informações biográficas a respeito dos autores cujos textos são utilizados. Trata-se de um eficiente recurso para que o aluno adquira
gosto pela leitura, pois a obtenção de conhecimento sobre a
vida dos literatos desperta, no estudante, o interesse por
conhecê-los ainda mais, resultando no contato do discente com
a obra literária produzida por esses autores e, conseqüentemente, no envolver-se por esta obra.
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Nas páginas 42 e 43 do livro de Magda Soares,
abaixo do poema “Lembrança do mundo antigo”, de Carlos
Drummond de Andrade, há uma série de informações acerca
desse escritor, a qual estimula o aluno a procurar conhecer
melhor a obra do poeta de Itabira, a começar pelo livro Sentimento do mundo, mencionado nas referências concernentes
ao poema estudado.
A foto do autor quando criança e a sucessão de
fotografias que contêm imagens do mundo descrito no poema
- do mundo da infância do autor - possibilitam ao discente a
comunhão do “ler imagético” e do “ler verbal”.
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, não há
referências sobre os livros dos quais se extraíram os textos utilizados. Além disto, nessa obra, não se identifica qualquer dado
biográfico referente aos autores daqueles textos.
No livro de Marilda Prates, essa lacuna informativa
pode ser notada, por exemplo, ao observar-se da página 152 à
155, espaço em que aparecem três textos - o conto “Nós vamos de trem, exaltou-se o menino”, de Wander Piroli; a crônica
“Azul e lindo planeta Terra, nossa casa”, de Ruth Rocha e Otávio Roth; e os versos “Contra um céu de chumbo / Aquelas
árvores desesperadamente verdes”, de Mário Quintana desacompanhados de qualquer referência a seus livros de origem e à vida de seus autores.
d) Constância (Magda Soares) e não-constância
(Marilda Prates) de página preparatória para a leitura do texto
Percebe-se, em “Português através de textos”, um
fragmento da seção de orientações metodológicas dedicado
exclusivamente à preparação do aluno para a leitura. Tal fragmento não consta em “Ação e reflexão em língua portuguesa”.
Magda Soares sugere que, anteriormente à leitura dos textos que principiam cada unidade, deve haver uma
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espécie de “familiarização” do discente com o tema a ser abordado. Esta familiarização ocorre por meio do emprego de fotografias e quadrinhos antes dos textos que iniciam algumas
das unidades. A utilização dessas figuras propicia que o aluno
note a existência do texto não-verbal, ou seja, da unidade significativa que não se constitui de palavras. Exponha-se, como
ilustração desse tipo de texto, a história em quadrinhos
“Lisete”, constante na página 133:
Nessa história em quadrinhos - que antecede o
conto “Lisete”, de Clarice Lispector - não há palavras. Assim, a
autora pretende que, através da confrontação dos quadrinhos
com o conto “Lisete”, o estudante perceba as duas formas de
narração: a verbal e a não-verbal.
e) Presença (Marilda Prates) e ausência (Magda
Soares) de erro gráfico no texto didático
Não se constataram erros gráficos em “Português
através de textos”. Já em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, encontrou-se a seguinte contradição no plano gráfico do
livro: na página 155, pede-se ao aluno que comente a passagem “... da nossa casa nós podemos mudar. Da Terra não.”;
entretanto, na crônica da qual se extraiu essa passagem “Azul e lindo planeta Terra, nossa casa”, de Ruth Rocha e Otávio Roth -, lê-se: “... da nossa casa nós podemos nos [grifo
nosso] mudar. Da Terra não”.
Na passagem utilizada para o exercício, a ausência
do pronome nos gerou uma patente incoerência, dado que a
transitividade do verbo “mudar” foi alterada, entrando em desacordo com a estrutura topicalizada “da nossa casa”. Tratouse de um erro no fornecimento de informação visual (cf.
Fulgêncio e Liberato, op. cit.), que prejudicou extremamente a
compreensão do exercício a ser feito.
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f) Elucidação (Magda Soares) e não-elucidação
(Marilda Prates) da estilística própria do texto literário
A linguagem literária, apoiando-se na liberdade
conferida ao processo de criação artística, permite-se uma
estilística autônoma, independente da escrita formal (cf. Proença Filho22 ).
Esse fato não se explicita em “Ação e reflexão em
língua portuguesa”, porque, ao trabalhar-se com textos como
o conto “Nós vamos de trem, exaltou-se o menino”, de Wander
Piroli, (p. 152-153-154), não há a explicitação de que o texto
literário possui a peculiaridade de poder comportar traços de
oralidade.
Em “Português através de textos”, evidencia-se a
liberdade estilística atribuída ao texto literário na seção de sugestões metodológicas referentes à apresentação do conto
“De sol a sol”, de Lucília Almeida de Prado. Reconhecendo-se,
nesse texto, a presença da fala rural, a autora faz a seguinte
recomendação ao professor: “Levar os alunos a observar as
características da fala das personagens rurais e a comparálas com a fala da professora (exemplos: a professora falaria
você; Vô Juvenal e seu Venerando falam ocê, cê; Vô Juvenal
fala com nóis, a professora falaria conosco) [grifos da autora]” (PAT, 10). Na mesma página, assinala-se que as variantes
lingüísticas rurais devem ser tratadas como diferentes e não
como deficientes.
22
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1987.
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VII. 3) O ensino de prática redacional
em “Português através de textos” e “Ação e reflexão em língua portuguesa”
VII. 3. 1) Pontos em comum
a) Execução da interface entre leitura e produção
da escrita
Em “Português através de textos”, o tema da redação está sempre vinculado ao texto que inicia cada unidade. Isto
possibilita que, tendo feito a leitura do texto no princípio da unidade, o estudante sinta-se estimulado a produzir um texto.
Também em “Ação e reflexão em língua portuguesa”
se mostra a inter-relação entre leitura e produção textual. Antes
de cada proposta de redação, identifica-se um texto de apoio que
servirá como referência para o texto a ser elaborado.
b) Recorrência à criatividade lingüística do aluno
Fazem-se notórios, em ambos os livros, exercícios
por meio dos quais se explora a criatividade lingüística do discente.
Constata-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a constância de textos, retratos e figuras a partir dos
quais o aluno construirá os seus próprios textos, em prosa ou
em verso.
Em “Português através de textos”, as entrelinhas
dos textos introdutores de cada unidade são os motes das
questões-desafio que se propõem nas atividades de redação.
Nessa obra, requisita-se do discente que reproduza, de modo
pessoal e por escrito, sentimentos e atitudes expressos nos
textos utilizados - prosaicos ou poéticos -, proporcionando que
o estudante estabeleça uma relação intertextual entre seu
texto e o do autor estudado.
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VII. 3. 2) Pontos divergentes
a)
Carência (Marilda Prates) e abundância (Magda Soares) de sugestões metodológicas específicas às atividades de redação
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, no que
se refere ao ensino de prática redacional, fazem-se escassas
as orientações metodológicas ao professor, restringindo-se a
informações sobre a formulação de documentos escritos, como
a carta (p. 147).
No livro de Magda Soares, observa-se um consistente conjunto de sugestões metodológicas específicas às atividades
de redação, explicitando-se os objetivos de cada exercício proposto e o destinatário do texto a ser produzido. No exercício da unidade 4, ao lidar-se com o poema drummondiano “Lembrança do
mundo antigo”, a autora faz, entre outras sugestões, a seguinte:
“Se o professor julgar a redação difícil para a turma, pode promover um debate a partir das perguntas da questão 1 [Como você
imagina que será o mundo futuro?], no quadro de orientação para
o desenvolvimento, como preparação para a produção do
texto”(PAT, 48).
b) Fragmentação (Marilda Prates) e não-fragmentação (Magda Soares) da noção de constituição textual
Percebe-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a fragmentação da noção de constituição textual. Ou
seja, nessa obra, divide-se a produção textual em três níveis:
na frase, na pontuação e na expressão criativa. O primeiro nível consta de exercícios metalingüísticos e de reconstruções
frásicas; o segundo nível consiste nos exercícios de análise da
função sintática da pontuação; e o terceiro nível é o dos exercícios produtivos de fato.
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Na obra de Magda Soares, as atividades de redação
deixam transparecer uma visão global da constituição do texto. O
método de formulação dessas atividades não dissocia os componentes genéricos do texto escrito: morfossintaxe, semântica e
pragmática. Deste modo, solicita-se ao aluno que elabore um texto, unidade lingüística por excelência, na qual se conjugam sistematicamente os componentes lingüísticos e através da qual se
transmite efetivamente a mensagem.
Assim sendo, em “Português através de textos”, o
texto é entendido como unidade de comunicação, que não pode
ser desdobrada em subunidades - visto que se trata de um
todo funcional - e cuja produção depende inteiramente da intenção comunicativa do falante-escrevente. Esta concepção de
texto se demonstra na exposição da estrutura didático-pedagógica do livro, particularmente na descrição do planejamento
de ensino de redação, na qual se lê:
Para que os exercícios de redação sejam situações
de comunicação, de interação, tanto quanto possível naturais
e reais, são propostos de forma a criar condições de produção de texto, isto é, criar situações em que a expressão
escrita se apresente como uma resposta a um desejo ou a
uma necessidade de comunicação, de interação [grifos da autora]. (PAT, 10)
c) Presença (Magda Soares) e ausência (Marilda
Prates) de atividades de redação em grupo
Nota-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a inexistência de atividades de redação que exijam a cooperação entre alunos, através do trabalho em grupo. Nessa
obra, os exercícios de prática redacional são restritamente individuais. Já no livro de Magda Soares, é freqüente a produção
textual exercitada em grupo. A reunião de alunos em equipe
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como os debates orais em grupos, integra a metodologia de
ensino de “Português através de textos”. Desta atividade, cite-se
o seguinte exemplo: ”A turma divide-se em grupos. Cada grupo
deve escrever a história de Bidu - vocês vão verificar as diferenças entre a comunicação exclusivamente verbal e a comunicação que associa o não-verbal ao verbal [grifos da autora]” (PAT,
110).
d) Exposição (Magda Soares) e não-exposição
(Marilda Prates) da estrutura de texto
Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, não se
identifica a explicitação de um modelo de estruturação textual.
Opostamente, em “Português através de textos”,
além de uma meticulosa orientação ao aluno sobre como praticar a atividade proposta, notabiliza-se, em algumas unidades,
a exposição da estrutura do texto requisitado. Trata-se de um
eficiente recurso para que o estudante da 5ª série, nesta fase
inicial de produção da escrita, perceba que o texto deve possuir uma consistente articulação, assimilando, gradativamente,
os dois primordiais fatores de textualidade: a coerência e a
coesão textuais (analisadas minuciosamente por Fávero23 ). Um
modelo estrutural de texto é cedido na página 48, em que a
autora recomenda, por meio da organização das idéias em
parágrafos, como introduzir, desenvolver e concluir um texto
sobre o mundo futuro idealizado pelo discente.
23
FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. 3ª ed. São Paulo:
Ática, 1995.
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VIII – Considerações finais
Ao término da confrontação entre os dois livros
didáticos, pôde-se corroborar que “Português através de textos”, obra em que se confere uma primorosa metodologia de
ensino à leitura e à prática redacional e em que se empreende
um ensino produtivo da gramática, apresenta nível qualitativo
superior ao de “Ação e reflexão em língua portuguesa”. A este
livro, falta atualizar-se, principalmente, no que diz respeito à
preparação do aluno para ler e produzir textos e ao estímulo à
pesquisa bibliográfica. A fim de evitar-se uma conclusão
maniqueísta a esta análise contrastiva, exponha-se uma vantagem do livro de Marilda Prates sobre o de Magda Soares: a
superior recorrência à ludicidade, expressa por intermédio de
desenhos e figuras utilizados com extrema freqüência em “Ação
e reflexão em língua portuguesa”.
À guisa de complementação do presente estudo,
voltado para o ensino de leitura e prática redacional no livro
didático de Português de 5ª série, realizou-se uma breve pesquisa em 03 colégios de Belém (um público e dois particulares), visando-se à análise do uso que os professores de Português de 5ª série fazem do livro didático. Em cada colégio, executou-se um questionário (vide ANEXO) - composto de perguntas concernentes à proposta de ensino de leitura e produção
textual constante no livro didático - para 07 professores,
totalizando-se 21 entrevistados. As entrevistas permitiram chegar-se aos seguintes dados:
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Dos resultados expostos acima: o 3) mostra-nos
que a leitura e a prática redacional não vêm ocupando seu
devido lugar nas aulas de Língua Portuguesa; o 1), o 2), o 5) e
o 6) indicam-nos a falta de eficácia inerente à metodologia dessas duas atividades escolares; e o 4) ratifica o fato de que o
livro didático ainda é o principal instrumento pedagógico do
professor de Português.
Levando-se em conta o fato referido acima e
objetivando-se contribuir para que se aprimore a deficiente
metodologia de ensino supracitada, finalizar-se-á este trabalho
com a concisa exposição de orientações sobre como conduzir
as atividades de leitura e produção textual, reiterando algumas propostas já contidas nos livros didáticos analisados e
explicitando outras sugestões, calcadas na leitura de autores
que vêm dirigindo especial atenção ao modo de se ensinarem
aquelas atividades.
A) Sugestões metodológicas referentes ao ensino
de leitura
A leitura é uma fonte profícua de informações. Logo,
ela deve servir de meio para que o aluno adquira conhecimentos; esta é sua principal função. A busca de informações por
intermédio da leitura pode ocorrer de dois modos, conforme
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explicita Geraldi24 : com roteiro previamente elaborado, método em que a leitura serve para que o aluno responda a questões pré-estabelecidas; ou sem roteiro previamente elaborado, método em que as informações são buscadas no próprio
texto, sem qualquer questão pré-fixada.
A preparação prévia é um fator crucial para o sucesso das atividades de leitura. De acordo com Azambuja &
Souza (op. cit.), ela consiste em discussões, relatos, debates
sobre filmes, pesquisas bibliográficas e de campo, enfim, todo
tipo de atividade que possa proporcionar ou desenvolver, no
estudante, conhecimento prévio acerca do tema a ser abordado, estimulando-o a praticar a leitura.
O estudo do texto propriamente dito se faz por
meio da utilização das diversas formas de leitura em sala de
aula. A leitura silenciosa possibilita ao aluno extrair os significados do texto, relacionando-os à sua experiência de vida;
trata-se do passo primordial para que o discente execute o
processo de compreensão do texto. A leitura oral viabiliza a
interação leitor-texto, através da exploração, por parte do
estudante, dos recursos prosódicos da língua; a
expressividade oral, muitas vezes, torna possível a captação
de significados que, por serem provenientes de traços suprasegmentais - a exemplo da entonação -, não são abarcados
pela leitura silenciosa. A leitura dramatizada (ou dialogada)
possui um papel essencialmente desinibidor e socializante;
ela proporciona a cooperação entre os alunos, desenvolvendo, neles, a noção de trabalho em grupo.
24
GERALDI, João Wanderley. “Prática da leitura na escola”. In: GERALDI, João
Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
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B) Sugestões metodológicas referentes ao ensino
de prática redacional
O ensino eficiente de prática redacional está
indissociavelmente ligado à leitura. Daí que, anteriormente a cada
atividade de redação, imponha-se a leitura de um texto, que servirá como elemento motivador para o exercício da escrita.
A leitura do texto possibilitará que o discente construa seu próprio texto através da relação intertextual com o
texto lido. Consoante destaca Meserani25 , é a intertextualidade
que cede ao estudante o instrumental necessário para que ele
apreenda os mecanismos da língua.
A prática redacional deve focalizar-se na criatividade
lingüística do aluno, concedendo a este que expresse, inicialmente, o conhecimento lingüístico que já possui - como assinalam Miranda et alii.26 -, para, em seguida, passar a utilizar-se
da gramática formal, que assimilará graças à sua competência
textual.
O contato com textos variados, com imagens diversas, suscitará, no aluno, a necessidade de expressar algo. Para
esta expressão, seu código será o lingüístico. A variabilidade
lingüística, conforme já se ressaltou neste trabalho, deve ser
uma presença constante nas aulas de redação.
Essa presença ocorrerá ao, terminados os textos
elaborados pelos alunos, montar-se um mural no qual se exponham as produções discentes. À medida que o contato dos
estudantes com a gramática formal for se estreitando, paten25
MESERANI, Samir. O intertexto escolar - sobre leitura, aula e
redação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998.
26
MIRANDA, Regina Lúcia et alii. A língua portuguesa no coração de uma
nova escola. São Paulo: Ática, 1995.
212
Uma Análise Contrastiva
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tear-se-ão as diferenças existentes entre a língua falada, assimilada no lar, e a língua escrita, adquirida na escola.
Seguidas as instruções metodológicas acima e as
referentes à leitura, certamente, contribuir-se-á para o aprimoramento da competência textual do aluno, necessidade exposta, inclusive, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, em
cujas páginas se lê: “[a leitura e a produção da escrita] são
práticas que permitem ao aluno construir seu conhecimento
sobre os diferentes gêneros [de texto], sobre os procedimentos mais adequados para lê-los e escrevê-los e sobre as circunstâncias de uso da escrita.”27
27
Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental (Língua Portuguesa). Brasília: MEC / SEF: 1998, p. 52.
213
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Este trabalho consiste numa sintética amostragem
do que pode ser feito no campo da contrastividade aplicada ao
livro didático de Português. Espera-se que ele possa servir para
suscitar outros trabalhos voltados para a análise contrastiva,
que visem sobretudo à demonstração da necessidade de aprimorar-se a atuação do professor de Língua Portuguesa, sob
diversos aspectos: base teórica mais consistente, domínio de
metodologia, atualização por meio de freqüentes processos
de reciclagem etc. Paralelamente a este aprimoramento da
formação docente, com vistas à execução de um ensino efetivamente produtivo da língua materna, faz-se imprescindível que
se viabilizem uma escola bem equipada, um salário digno ao
educador, entre outros empreendimentos que motivem o professor de Português, assim como os das demais disciplinas, a
exercer sua profissão com eficiência.
214
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BIBLIOGRAFIA
I - Livros didáticos analisados
PRATES, Marilda. Ação e reflexão em língua portuguesa 5ª série. São Paulo: Moderna, 1998.
SOARES, Magda. Português através de textos - 5 ª série.
São Paulo: Moderna: 1997.
II - Bibliografia complementar
AZAMBUJA, Jorcelina Queiroz de & SOUZA, Maria Letícia Rocha de. ìO estudo de texto como tÈcnica de ensinoî. In:VEIGA,
Ilma Passos de Alencastro (org.). Técnicas de ensino: por
que não? 3ª ed. Campinas: Papirus, 1995.
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. 3ª ed.
São Paulo: Ática, 1995.
FONSECA, Fernanda & FONSECA, Joaquim. Pragmática lingüística e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1990.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler - em três
artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1986.
FULGÊNCIO, Lúcia & LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 1992.
GALLISON, R. & COSTE, D. Dicionário de didáctica das línguas. Coimbra: Almedina, 1983.
215
GERALDI, João Wanderley. ìConcepÁões de linguagem e ensino
de portuguÍsî. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na
sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.
_______________________. ìPr·tica da leitura na escolaî. In:
GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula.
São Paulo: Ática, 1997.
HALLIDAY, M. A. K. et alii. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis: Vozes, 1974.
HEIDEGGER, Martin. ìSobre o humanismoî. In: Conferências e
escritos filosóficos. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo:
Abril Cultural, 1973.
KATO, Mary A. No mundo da escrita - uma perspectiva
psicolingüística. São Paulo: Ática, 1995.
KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas:
Pontes, 1989.
________________. Texto e leitor: aspectos cognitivos
da leitura. 6ª ed. Campinas: Pontes, 1999.
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e
Desporto da CD / com comentários de Dermeval
Saviani et alii. São Paulo: Cortez, 1990.
216
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. ìA compreens„o do texto falado e do
texto escrito como ato individual de uma pr·tica socialî. In: SILVA,
Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
MESERANI, Samir. O intertexto escolar - sobre leitura,
aula e redação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998.
MIRANDA, Regina Lúcia et alii. A língua portuguesa no coração de uma nova escola. São Paulo: Ática, 1995.
OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Ensino de língua e literatura.
3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto
ciclos do ensino fundamental (Língua Portuguesa).
Brasília: MEC / SEF: 1998.
PERINI, Mário A. ìA leitura funcional e a dupla funÁ„o do livro did·ticoî. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina
(org.). Leitura - perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. 2ª ed. São
Paulo: Ática, 1987.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler - fundamentos
psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 7 ª
ed. São Paulo: Cortez, 1996.
SOARES, Magda. Linguagem e escola - uma perspectiva
social. São Paulo: Ática, 1986.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1 º e 2 º graus.
São Paulo: Cortez, 1996.
217
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ANEXO
Questionário sobre leitura e prática
redacional nas aulas de Língua Portuguesa
Sexo do professor: (
) Masculino ( ) Feminino
Iniciais do nome:
Série(s) em que leciona: ( ) 5 a
( ) 6ª ( ) 7ª ( ) 8ª
Perguntas referentes à leitura
1) A leitura é praticada em suas aulas:
( ) sim
( ) não
2) Há uma preparação prévia, por parte do aluno, antes
desta atividade:
( ) sim
( ) não
3) Marque o(s) tipo(s) de leitura exercitado(s) pelo
aluno:
( ) leitura oral ( ) leitura silenciosa ( ) leitura reflexiva
( ) leitura dialogada
4) O tempo reservado para a leitura é:
( ) parte do horário da aula ( ) todo o período da aula
( ) o período de duas aulas
218
5) Durante a aula de leitura, os textos utilizados são
exclusivamente dos livros didáticos:
( ) sim
( ) não
6) O aluno faz leitura extra-classe:
( ) sim
( ) não
Perguntas referentes à prática redacional
1) A prática redacional, em suas aulas, é:
( ) semanal
( ) outro
( ) quinzenal
( ) bimensal
2) O tempo determinado para esta atividade é:
( ) parte do horário da aula ( ) todo o período da aula
( ) o período de duas aulas
3) Há preparação prévia para a prática da redação:
( ) sim
( ) não
4) Antes da atividade redacional, os alunos lêem algum texto relacionado com o assunto a ser desenvolvido:
( ) sim
( ) não
5) Inclui-se a prática redacional nas avaliações bimensais:
( ) sim
( ) não
219
A prática sistemática e constante do ler e do escrever são imprescindíveis para que o aluno obtenha sucesso
no ensino/aprendizagem de qualquer disciplina, especialmente no estudo da língua materna. O livro didático é um auxiliar
importante para essa prática, principalmente quando bem elaborado e devidamente utilizado por professor e aluno. A confrontação entre os livros didáticos de 5a. série PortuguÍs atravÈs de textos, de Magda Soares, e AÁ„o e reflex„o em lÌngua
portuguesa, de Marilda Prates, evidencia que nem sempre os
livros didáticos estão no mesmo nível de eficiência para servir
de apoio ao professor na sua tarefa de conduzir a aprendizagem ao bom termo, isto é, que faça com que o aluno produza
textos orais e escritos, cresça, desenvolva o senso crítico, trabalhe com prazer. O trabalho em questão comprova que o livro
didático pode contribuir positivamente para agilizar o aprendizado da leitura e prática redacional.
Raymundo Jurandy Wangham
220

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