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FIO DE ARIADNE ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA V. 1 FIO DE ARIADNE ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS Copyright 2002, by Universidade da Amazônia REITOR Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco VICE-REITOR Antonio de Carvalho Vaz Pereira PR”-REITORA DE ADMINISTRA«√O Maria das Graças Landeira Gonçalves PR”-REITOR DE ENSINO E GRADUA«√O Mário Francisco Guzzo PR”-REITORA DE PESQUISA, P”S-GRADUA«√O E EXTENS√O Núbia Maria de Vasconcelos Maciel DIRETORA DO ìCAMPUSî QUINTINO Marlene Coeli Viana DIRETORA DO CENTRO DE CI NCIAS HUMANAS E EDUCA«√O Ana Célia Bahia Silva ìCampusî Alcindo Cacela Av. Alcindo Cacela, 287 66035-190 - Belém-Pará Fone: (91) 210-3000 Fax: (91) 225-3909 F 517f ìCampusî Senador Lemos Av. Senador Lemos, 2809 66120-000 - Belém-Pará Fone: (91) 213-7100 Fax: (91) 224-3643 ìCampusî Quintino Trav. Quintino Bocaiúva, 1808 66035-190 - Belém-Pará Fone: (91) 241-8561 Fax: (91) 230-0622 Fio de Ariadne: orientação e iniciação à pesquisa na Graduação. Belém: UNAMA, 2002 V.1 ISBN 85-86783-39-0 1. Trabalho de Conclusão de Curso - Letras. 2. Iniciação Científica. II .Título CDD: 001.42 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO FIO DE ARIADNE ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM LETRAS V. 1 ISBN: 85-86783-39-0 Belém UNAMA 2002 COMISSÃO EDITORIAL E EXECUTIVA COORDENAÇÃO Maria Célia Jacob PROJETO EDITORIAL Lucilinda Teixeira PARECERISTA CONVIDADO José Ribamar Ferreira Júnior (UFMA) NORMALIZAÇÃO TÉCNICA Lanalúcia Soares GRAVURA DA CAPA: “Labirinto” Reprodução de um dos desenhos dos padrões ornamentais indígenas, do livro A Arte do TranÁado dos Ìndios do Brasil, de Berta G. Ribeiro, Museu Paraense Emílio Goeldi; CNPq, FUNARTE, p. 84. Belém. Falângola Editora. O FIO DE ARIADNE “Na mitologia grega, Ariadne é a bela princesa que ajuda o herói Teseu a se guiar pelo labirinto, onde ele entra para matar o Minotauro, monstro devorador de gente . Para isso, Ariadne amarra a ponta de um novelo na entrada do labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói penetram na emaranhada construção . Morto o Minotauro, ambos conseguem sair do labirinto, enrolando o fio de volta . Ensinar a aprender, então, é não apenas mostrar os caminhos, mas também guiar, orientar o aluno para reconhecer, em meio ao labirinto, as trilhas que conduzem às verdadeiras fontes da informação e do conhecimento.” Marcos Bagno Lingüísta, professor e escritor ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ APRESENTAÇÃO O I Encontro de Formação e Iniciação Científica, promovido pelo Centro de Ciências Humanas e Educação, no qual está inserido o Curso de Letras, realizado no período de 19 a 30 de novembro de 2000, teve como objetivo básico a transformação do aluno em um cidadão crítico e a formação de um profissional capaz de produzir um texto científico, resultante da pesquisa sobre um tema relevante, específico de sua área de conhecimento. Para ilustrar esse Encontro, e na impossibilidade - de natureza espacial - de contemplar todos ou um maior número de graduados, foram indicados à publicação, em um só volume, cinco pesquisas que, pela qualidade de conteúdo e pelos temas abordados, pudessem traduzir o esforço da totalidade tanto dos orientandos como dos orientadores que participaram desse momento de culminância das atividades acadêmicas da graduação em Letras. Em todas essas monografias escolhidas há os dois eixos marcantes por onde oscila o pêndulo do conteúdo e da metodologia: o quê e o como pesquisar. O adequado equilíbrio entre ambos deu-lhes a qualidade que reflete de cada um desses autores, no Curso, e que justifica o conceito máximo atribuído pela banca examinadora. Ao colocarmos à disposição de leitores e interessados esses cinco Trabalhos de Graduação — A ConfiguraÁ„o do Gauche em MacabÈa, Uma leitura SimbÛlica do filme Terra Estrangeira, Um estudo de TransferÍncia de Intensidade, Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta de estrela ideal, Uma an·lise Constrativa: ensino de leitura e pr·tica redacional em dois livros did·ticos de PortuguÍs (5™ sÈrie) ó apresentados ao final do ano letivo de 2000, reiteramos e tornamos público nosso reconhecimento às pessoas cujo apoio tornou possível esta publicação: Profª. Ms. Ana Célia Bahia Silva Diretora do Centro de Ciências Humanas e Educação e Profª. Dr. Luci Teixeira, professora da disciplina Editoração, no Curso de Letras e autora do projeto gráfico deste número. Maria Célia Jacob Coordenação do Encontro de Formação e Iniciação Científica SUMÁRIO 1 A CONFIGURAÇÃO DO GAUCHE EM MACABÉA ................................... 11 Aluno Autor: Lívia Edicely dos Santos Silva Orientador: Dr. Amarílis Tupiassu UNAMA Banca Examinadora: Ms. Josse Fares UNAMA Ms. Paulo Nunes UNAMA 2 UMA LEITURA SIMBÓLICA DO FILME TERRA ESTRANGEIRA ..... 51 Aluno Autor: Narciso Freitas de Oliveira Orientador: Ms. Marisa de Oliveira Mokarzel UNAMA Banca Examinadora: Dr. Lucilinda Teixeira UNAMA Dr. Ribamar Ferreira Júnior UFMA 3 UM ESTUDO DE TRANSFERÊNCIA DE INTENSIDADE ........................ 85 Aluno Autor: Apolo Mocoto Hino Orientador: Ms.Antonio Hilton da Silva Bastos UNAMA Banca Examinadora: Ms. Raimundo JurandY Waghan UNAMA Ms. Maria do Socorro Cardoso UNAMA 4 DORA – UMA ESTRELA DE QUATRO PONTAS, UMA PONTA DA ESTRELA IDEAL ............................................................... 131 Aluno Autor: Luciana de Moraes Rayol Orientador: Ms. Josse Fares UNAMA Banca Examinadora: Dr. Amarílis Tupiassu UNAMA Ms. Paulo Nunes UNAMA 5 UMA ANÁLISE CONTRASTIVA: O ENSINO DE LEITURA E PRÁTICA REDACIONAL EM DOIS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS (5ª SÉRIE) ......................................................................... 175 Aluno Autor: Saul Cabral Gomes Júnior Orientador: Ms. Raimundo Jurandy Wanghan UNAMA Banca Examinadora: Ms. Maria do Socorro Cardoso UNAMA Dr. Rosa Maria Coelho de Assis UNAMA Professores Orientadores da Graduação em Letras AMARÕLIS ISABEL TUPIASSU ANT‘NIO HILTON BASTOS DA SILVA BENILTON LOBATO CRUZ CLEUMA MATOS NASCIMENTO EDILA PORTO DE OLIVEIRA JORGE HABER RESQUE JOS… GUILHERME DE OLIVEIRA CASTRO JOS… LUIS RAMOS FIGUEROA JOSSECL…A FARES JÚLIA MAU…S LUCILINDA TEIXEIRA MARIA C…LIA JACOB MARIA DAS GRA«AS ALVES SALIM MARIA DO PERP…TUO SOCORRO CARDOSO DA SILVA MARISA DE OLIVEIRA MOKARZEL NELLY CECÕLIA PAIVA BARRETO DA ROCHA PAULO MARTINS NUNES PEDRO DE OLIVEIRA ROCHA RAIMUNDO JURANDY WANGHAN ROSA MARIA COELHO DE ASSIS S…RGIO ANT‘NIO SAPUCAHY DA SILVA Linhas de Pesquisa ï ENSINO LÕNGUA E LITERATURA VERN¡CULA OU ESTRANGEIRA NO ENSINO FUNDAMENTAL E M…DIO ï CONTRIBUI«’ES DA LING‹ÕSTICA ¿ CONSTRU«√O DO CONHECIMENTO NA ¡REA DA LINGUAGEM. ï FORMA«√O DO LEITOR ï PRODU«√O DO TEXTO ï EDITORA«√O ï T…CNICAS DE TRADU«√O ï EXPRESS’ES LITER¡RIAS REGIONAIS ï LEITURAS SEMIOL”GICAS DE 10 A CONFIGURAÇÃO DO GAUCHE EM MACABÉA LÕVIA EDICELY DOS S ANTOS SILVA Não é fácil apreender os sentidos circulantes na ficção de Clarice Lispector. Apesar da espontaneidade, marca de sua linguagem; apesar do tom despojado, marca de sua obra, Clarice intimida o analista tal a profundidade como a escritora mergulha no universo interior das personagens, paradigmas de todos nós. Lívia não se intimidou ante à tarefa de compreender a novela “Hora da Estrela” da qual extraiu pouco (demais) muito do ouro entranhado nas camadas claras e latentes do livro. E de tal modo se empenhou Lívia na elaboração de seu trabalho, que se distinguiu, pelo rigor e seriedade, pela disposição de penetrar na lógica poética de Clarice. É sumamente louvável que a Unama se disponha a oferecer a muitos leitores trabalhos de qualidade como o de Lívia Edicely dos Santos Silva. Prof a. Dr. Amarílis Tupiassu 11 ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Q uando estudamos literatura, em especial o perÌodo modernista, nos deparamos com uma figura marcante: Clarice Lispector. Ao selecionar o assunto para desenvolver meu trabalho de conclusão de curso, naturalmente, Clarice se insurgiu como o assunto de eleição. Ou, melhor dizendo, seu texto, tão belo quanto complexo, impressionou-me pela temática intimista tão pouco explorada tão a fundo, na literatura brasileira, quanto por seu estilo inovador de linguagem. Clarice recorre constantemente, em suas obras, aos processos que formam a epifania. Este processo se tornou sua marca registrada, que ela adotou como procedimento básico de sua escritura. O objetivo maior deste trabalho é investigar o modo como Clarice organiza seu texto através da linguagem metafórica, da identificação do autor-narrador com a personagem criada pelo doador da narrativa, e, em particular, investigar o modo como resolve a dificuldade do processo criativo, que faz vibrar o leitor. Em A hora da estrela, novela a ser analisada para o trabalho de conclusão de curso, focalizar-se-ão os eixos do universo clariciano como uma escritura metafórica inscrita entre o dilema de existir e escrever, entre razão e sensibilidade. O livro em pauta trata especificamente da figura do gauche, que encontrou espaço na literatura brasileira, principalmente, a partir da publicação do “Poema de Sete, Faces” de Carlos Drummond de Andrade. O termo gauche remete à idéia de “inepto”, “torto”, servindo portanto para qualificar Macabéa. . A intenção deste estudo é aguçar a vista para o enquadramento do texto clariciano e, em especial, para o 12 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ realizado em A hora da estrela. Como monografia, mostra que o texto é uma “epifania [palavra que na seqüência deste estudo será elucidada] do ato de escrever, uma epifania da própria escritura, um poema sobre a agonia de escrever”1 . Sendo que a palavra é o centro maior desse livro, sua personagem encoberta. Com isso, enfim, mostrarei de que modo a obra da autora de origem ucraniana “coloca no mesmo patamar a questão da criação e o conhecimento de si mesma”2 . Mostrarei o que tece a excelência de seu texto sempre venturoso e estimulante, sempre aliciador e valioso. I – Inserção de A Hora da Estrela na Obra Ficcional de Clarice Lispector Em janeiro de 1977, Clarice concede uma entrevista à TV Cultura, o que lhe era pouco habitual, com o compromisso de só ser transmitida após sua morte. Nessa entrevista, dada ao jornalista Júlio Lerner, a escritora afirma que tinha acabado de escrever uma novela com treze capítulos. Fazendo um certo mistério, resume um pouco a obra. … a histÛria de uma moÁa nordestina, de Alagoas, t„o pobre que sÛ comia cachorro -quente. A histÛria n„o È sÛ isso, n„o. A histÛria È de uma inocÍncia pisada, de uma misÈria anÙnima3 . 1 SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. 1979, p.211. RODRIGUES, Lílian de Oliveira. Clarice através do Espelho. 1997. p.02. 3 LISPECTOR Apud GUIDIN, Márcia Lígia. A hora da estrela – Roteiro de Leitura. 1994. p.18. 2 13 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Júlio pergunta à Clarice qual o estímulo para escrever o texto, e ela declara abertamente que se trata de memória autobiográfica e o processo de inspiração em que se baseou: Morei no Recife, [....] me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira dos nordestinos no campo de S„o Cristov„o e uma vez eu fui l·. DaÌ comeÁou a nascer a idÈia. [....] Depois eu fui a uma cartomante e imaginei... que seria muito engraÁado se um t·xi me pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas.4 Ent„o daÌ foi nascendo tambÈm a trama da histÛria. Essa novela permite desvendar, por uma sorte de efeito retroativo, certas articulações da obra inteira de que faz parte, dentro do singular processo criador da ficcionista, centrado na experiência interior, na sondagem dos estados da consciência individual.5 4 Idem, p.19. NUNES, Benedito. O Drama da Linguagem – uma leitura de Clarice Lispector. 1989. p.160. 5 14 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ I.1 A Presença da Figura Feminina Clarice mostra em sua obra, entre outras preocupaÁões, o retrato do ser humano e, sobretudo, o do ser feminino. Considerando-se que o perfil de Macabéa é construído, fundamentalmente, com base na ironia, pode-se asseverar que, em A hora da estrela, a feminilidade é abordada através de um jogo intratextual, definido por Affonso Romano de Sant’ Anna como “paródia”6 . A personalidade de Maca opõe-se à das demais personagens femininas que protagonizam as narrativas claricianas. Essa oposição pode ser demonstrada ao compararse Macabéa, por exemplo, com Ângela, a protagonista de Um sopro de vida. Esta é uma escritora rica e bem-sucedida, enquanto que aquela é ignorante, feia, desnutrida, virgem e ingênua. No seguinte trecho, Rodrigo S.M., dotado de visão onisciente, explicita: 6 Segundo Affonso Romano de Sant’Anna em Paródia, Paráfrase e Cia, o termo paródia designa o efeito de linguagem que, podendo ser intertextual ou intratextual, baseia-se na contigüidade, consistindo no trabalho de ajuntar pedaços em diferentes partes da obra de um ou vários artistas. Citando Shipley, Sant’Anna distingue três tipos de paródia: a verbal, que ocorre com alteração de uma ou outra palavra do texto; a formal, em que a zombaria se mostra através do estilo e dos efeitos técnicos de um escritor; e a temática, em que a forma e o espírito de um autor são caricaturizados. A nosso ver, em A hora da estrela se patenteiam os dois últimos tipos parodísticos citados, pois, nessa narrativa, a paródia possui teor irônico e funciona como um meio de caracterizar o perfil feminino constante nas demais obras claricianas. 15 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Nascera inteiramente raquÌtica, heranÁa do sert„o. [....] Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sert„o de Alagoas, l· onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora para MaceiÛ com a tia beata, única parenta sua no mundo. (HE, 28) A relação parodística estabelecida entre Macabéa e as outras protagonistas lispectorianas se evidencia, também, na estrutura interna de A hora da estrela. Constata-se este fato ao atentar-se à personagem Glória, que traz no próprio nome a insígnia do poder e da sublimação. Assinala-se, deste modo, a supremacia de Glória em relação à nordestina, que, sendo feia e ignorante, mantém-se em um plano submisso devido à beleza e ao sucesso de Glória. Entre esta personagem e outras de Clarice Lispector, permite-se um paralelo. A título de exemplificação, faça-se uma analogia entre a colega de trabalho de Macabéa e G.H., protagonista de A paixão segundo G. H., escultora bem – sucedida e de vida independente. No decorrer de quase toda a novela, Rodrigo S. M. demonstra a falta de saber própria de Macabéa. Para ele, a lucidez de Macabéa, uma lucidez limitada ao presente imediato, restringe-se somente ao superficial. No trecho abaixo, ele relata que: 16 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ .... n„o saber pode parecer ruim mas n„o È tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguÈm ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo (HE, 29) Como se vê, Macabéa, nas entrelinhas, vai formar um paradigma com a animalidade irracional, a que se move só pelo instinto. Em suma, o caráter parodístico de M a c a se patenteia ao observar-se que Clarice Lispector, ao retratar o ser feminino em suas obras, atribui à mulher inteligência e cultura. Entretanto, a nordestina de A hora da estrela não possui esses atributos; é apenas uma mulher que sobrevive por meio de seu humilde trabalho, sua única fonte de subsistência: a função de datilógrafa. Ressalte-se, no entanto, que o efeito parodístico sucede somente no que diz respeito ao aspecto físico-social de Macabéa, visto que, assim como as demais protagonistas das narrativas lispectorianas, a nordestina é essencialmente solitária. As mulheres representadas nas obras de Clarice são seres que, mesmo cultas ou ignorantes, intelectuais ou alienadas vivem frustadas, pois não conseguem conviver a contento com a sociedade, bem como não possuem um desejável relacionamento familiar. Destaca Guidin (1994. P.60): “A cultura urbana, com seus reflexos é um fardo que arrasta a uma introspecção problemática e agônica”. Isto nos revela que, para Clarice, não importa tanto o exterior e sim, muito mais, o introspectivo, ou seja, a análise do “eu”. 17 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Macabéa mantém um laço indissolúvel com as demais mulheres da obra clariciana: a busca da resposta à interrogação “quem sou eu?”. Esta interrogação é respondida com base na projeção que a mulher faz do homem como principal ícone do seu objetivo: a inserção no universo cultural vigente. I.2 A Busca da Construção de Identidade Na novela A hora da estrela, bem como em outras obras lispectorianas, acentua-se a busca de identidade das personagens principais. Expõe Nunes (op. cit., p.99): Autoconhecimento e express„o, existÍncia e liberdade, contemplaÁ„o e aÁ„o, linguagem e realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relaÁões intersubjetivas, humanidade e animalidade, tais s„o os pontos de referÍncia do horizonte de pensamento que se descortina na ficÁ„o de Clarice Lispector. Essa procura de identidade é um indicador da presença de ecos existencialistas na obra clariciana. Este aspecto inscreve-se, predominantemente, na presença constante do espelho no universo ficcional da escritora. O espelho, recurso metafórico bastante utilizado 18 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ por aquela autora, é o objeto através do qual as personagens buscam o auto-reconhecimento, a exemplo de Ângela, em Um sopro de vida, e Macabéa, em A hora da estrela. Pode-se observar que Macabéa, ao olhar para o espelho, não encontra neste o reflexo de sua imagem. Por duas vezes, só conseguiu ver outras imagens, a saber: a do narrador e a de Marylin Monroe. Em uma outra vez, a nordestina olha para o espelho e não vê imagem alguma, corroborando-se a inexistência de sua identidade. Permite-se, aqui, uma relação com o mito de Narciso, que, ao venerar sua própria beleza, apaixonou-se por seu reflexo. Tanto no caso de Narciso quanto no de Macabéa, estabelece-se uma busca pela projeção da auto-imagem no espelho, sendo que, enquanto o mito grego almeja a autoafirmação de sua vaidade, a nordestina procura em seu reflexo o autoconhecimento. Em A hora da estrela, o espelho funciona como um elo, uma aderência entre o narrador e a protagonista da narrativa. Neste caso, é o narrador que se projeta em Maca, já que esta não tem identidade. Deste o início da novela, Rodrigo S. M. destaca que sua existência depende inteiramente da história a ser narrada, sem a qual não há motivo para que ele viva. Tanto isto é fato, que, ao relatar a morte da protagonista, ele assume que morreu junto com ela: “Macabéa me matou.” (HE, 86) Em A hora da estrela, estabelece-se uma relação dialética de inter-dependência entre Macabéa e o narrador. Assim, Rodrigo S. M. existe somente para narrar a estória, Macabéa não teria sua trajetória relatada se não fosse o narrador. É este que possibilita que a nordestina – que não possui passado, presente nem futuro – se constitua 19 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ um ser histórico, no sentido heideggeriano de ser-no-mundo7 . O fato de a existência de Macabéa estar arraigada ao narrar de Rodrigo S. M. é o primeiro sinal, em A hora da estrela, de uma constante no universo ficcional lispectoriano: a busca de construção da identidade feminina através da projeção no homem. À procura da resposta à interrogação “quem sou eu?”, as personagens femininas claricianas projetam-se no homem, elegendo-o ícone do universo cultural do qual almejam fazer parte. Na maioria das obras de Clarice, sublima-se o ser masculino, colocando-o como referência à mulher. Citem-se alguns exemplos, extraídos da obra clariciana, de personagens masculinos cujos nomes aludem a mitos e heróis: Perseu, de A cidade sitiada; Martim de A maçã no escuro; e Ulisses de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Nestas narrativas, a figura do homem confere identidade às personagens femininas, através da figura do pai, do professor e do marido. Guidin (op. cit.) assinala que Macabéa reproduz ironicamente essa mesma projeção ao relacionar-se com Olímpico de Jesus, cujo nome, por exemplo, só se lembra de perguntar depois de vários encontros. Para Macabéa, Olímpico é o ápice do sucesso humano. Ela o vê como um ser inabalável, pois a ele estão atreladas a feminilidade e o anseio por ascensão social da nordestina. Esta última aspiração de Macabéa é retratada no seguinte trecho da novela: 7 Heidegger define ser-no-mundo como o ser que possui uma história, uma vivência determinada pelo convívio com os outros indivíduos em sociedade. (cf. Aguiar e Silva, 1976). 20 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Quando OlÌmpico lhe dissera que terminaria deputado pelo Estado da ParaÌba, ela ficou boquiaberta e pensou: quando nos casarmos ent„o serei uma deputada? (HE, 47) Na passagem acima, ao entender seu destino a partir da afirmativa de Olímpico, Macabéa demonstra, além do anseio por ascender socialmente, toda a sua ignorância, pois concebe que o matrimônio garante à mulher o mesmo cargo público que o do marido. Patenteia-se, portanto, que a identidade da nordestina é configurada a partir do perfil de Olímpico. I. 3. A linguagem metafórica A escrita de Clarice Lispector peculiariza-se por ser composta utilizando-se uma linguagem metafórica. Em determinadas passagens de A hora da estrela, evidencia-se um nível de linguagem que se alça da denotação, ou seja, do sentido puramente informativo, consensual da língua. Praticando-se este uso, estabelece-se a conotação, isto é, o sentido figurativo, simbólico da língua. Na obra lispectoriana, a conotação manifesta-se, predominantemente, através da metáfora, de tal modo que esta figura de linguagem, por meio da qual real e imaginário se conjugam, acaba por constituir-se no principal recurso estilístico à arquitetura verbal da autora. Segundo Jakobson (1988), é a metáfora que confere poeticidade a um escrito, pois a integração de termos representativos ao texto, a qual ocorre no plano paradigmático, 21 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ proporciona a expressão do Belo por meio do código lingüístico. Cite-se um trecho de A hora da estrela em que se patenteia a utilização metafórica da língua: .... o que eu vou escrever j· deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho È que me copiar com um delicadeza de borboleta brancaî. (HE, 20) Devido à presença essencial da metáfora nos textos de Clarice Lispector, pode-se afirmar que o gênero literário produzido por essa autora funde prosa e poesia, resultando em uma espécie prosaica de intensa expressividade poética. Essa carga poética se faz presente em toda a produção ficcional lispectoriana. A título de exemplificação, mencionar-se-ão, respectivamente, um trecho de Perto do Coração Selvagem e outro de A Cidade Sitiada: Fechou os olhos, vagarosamente foi descansado. Quando os abriu recebeu um pequeno choque. E durante longos e profundos segundos soube que aquele trecho de vida era uma mistura do que j· vivera com o que ainda viveria, tudo fundido e eterno. Estranho, Estranho (...) (PCS, 79) 22 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A praÁa estava nua. T„o irreconhecÌvel ao luar que a moÁa n„o se reconhecia. TambÈm Felipe estacara aliviado: malditos! Exclamou empurrando o quepe para tr·s. S·bado era noite de v·rios mundos: o tenente tossiu transmitindo-lhes sucessivamente a voz sem palavras. (CS, 28 ) No universo ficcional de Clarice Lispector, atribuise à linguagem o caráter de uma barreira concreta a ser ultrapassada a fim de que a mensagem seja de fato transmitida. O único instrumento de que se dispõe para esse exercício de sobrepujança é a própria linguagem, já que é por meio desta que a mensagem se expressa textualmente. Estabelece-se, portanto, a tentativa incessante de superar o potencial comunicativo do código lingüístico através da própria linguagem. Na ficção de Clarice, como ressalta a própria autora, as entrelinhas assumem papel muito mais importante que o das próprias palavras. A estas, resta somente se manifestarem com o máximo de omissão, possibilitando que o entredito prevaleça sobre o dito. Isto se faz notar ao observarem-se, a seguir, as palavras de Rodrigo S. M.: 23 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ... esta histÛria ser· feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases (HE, 14) Atente-se, agora, à seguinte passagem de A paixão segundo G.H.: A linguagem È o meu esforÁo humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as m„os vazias. Mas ñ volto com o indizÌvel. O indizÌvel sÛ me poder· ser dado atravÈs do fracasso de minha linguagem. SÛ quando falha a construÁ„o È que obtenho o que ela n„o conseguiu. (PSGH, 50) Percebe-se, na citação acima, o sentimento de impotência de G.H. ao utilizar-se de sua linguagem. Esta é concebida como um recurso inútil ante a densidade da intenção comunicativa. Entretanto, trata-se do único instrumento que a personagem, em seu “esforço humano”, possui para tentar, debalde, exprimir o indizível. 24 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Dessa forma, na ficção lispectoriana, institui-se um dualismo entre o verbalizável e o não-verbalizável, assinalado por Nunes (1995, p.86): Viver n„o È relat·vel: o momento da vivÍncia, instant‚neo, escapa ‡ palavra que expressa. Viver n„o È vivÌvel: a narrativa, enlace discursivo de significaÁões, recria aquilo que se quis reproduzir. E como reproduzir o instante do Íxtase, mudo, sem palavras, que remonta a um mundo, sem palavras, que remonta a um mundo n„overbaliz·vel? Essa relação dual confere um cunho metafórico à linguagem, visto que a esta se impõe um processo de autosuperação, de transcedência de si mesma, que resultará em seu próprio fracasso (como destaca G. H.), único modo de satisfazer-se plenamente a necessidade expressiva. I. 4. A Instauração da Epifania Nunes (1995 b, p. 80) é quem nos fornece o conceito de epifania: 25 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Do grego epiphanei: manifestaÁ„o, apariÁ„o. No sentido religioso, manifestaÁ„o da divindade no mundo sensÌvel para os olhos espirituais. Termo generalizado poÈtica e esteticamente como iluminaÁ„o súbita, instant‚nea, fora do tempo. A epifania permeia, de uma maneira global, a obra de Clarice Lispector. Devido às personagens desta autora apresentarem a ânsia existencialista de encontrar a si mesmas, o efeito epifânico funciona como um meio de, ausentando-se por instantes do mundo ao qual não se integram, alcançarem o autoconhecimento. Este lhes chega por meio da “revelação”, da “iluminação súbita”, acontecimento que vem demonstrar o aspecto mítico inerente à escritura lispectoriana. No caso de A hora da estrela, o estabelecimento da epifania ocorre quando se dá a morte de Macabéa: AÌ MacabÈa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro: 26 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ - ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Quanto ao futuro. Ter· tido ela saudade do futuro? OuÁo a música antiga de palavras e palavras, sim, È assim. Nesta hora exata MacabÈa sente um fundo enjÙo de estÙmago e quase vomitou, queria vomitar o que n„o È corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. (HE, 85) Somente no instante da morte, a nordestina consegue alçar-se do tempo cronológico (cf. Nunes, op. cit.), que a prendia ao suceder dos fatos, ao cotidiano ininterrupto, restringindo o cômputo de seu viver ao “tic-tac-tic-tac da RádioRelógio”. No momento em que deixa de viver, Macabéa obtém a resposta à obstinada pergunta que perpassa sua vivência: “quem sou eu ?”. O instante da morte anula o desconhecimento que a alagoana tinha de si mesma, o que se deixa expressar através de suas últimas palavras: “ – Quanto ao futuro”. (HE, 85) Conforme ressalta Sá (1979, p.211), A hora da estrela, em si, é “uma epifania do ato de escrever”. O anseio de atingir a auto-revelação por intermédio da transcedência que se manifesta ao longo de toda a novela, por meio da ação do narrador. Assim como Macabéa se conheceu ao morrer, Rodrigo S. M. desvela a escritura no decorrer da narrativa, utilizando a poeticidade como um recurso para que a palavra revele a si mesma: 27 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Ela estava enfim livre de si e de nÛs. N„o vos assusteis, morrer È um instante, passa logo, eu sei porque acabou de morrer com a moÁa. Desculpai-me esta morte. [...] Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e vivo: o morticÌnio dos pombos!!! Viver È luxo. (HE, 86) Na ficção clariciana, outro momento epifânico marcante é quando a protagonista de A Paixão Segundo G.H. está prestes a cometer o assassínio de uma barata: Como chamar de outro modo aquilo horrÌvel e cru, matÈria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em n·usea seca, eu caindo sÈculos e sÈculos dentro de uma lama, e nem sequer lama j· seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde remexiam com lentid„o insuport·vel as raÌzes de minha identidade. (PSGH, 55) 28 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Às vésperas de assassinar definitivamente a barata, G. H. põe na boca a massa branca que transbordava do insento moribundo. Isto lhe causa um arrebatamento extremo, um êxtase que a torna alheia, por um prolongado tempo, de si mesma. Ela se projetara na barata; esta, à beira da morte, a imbuíra de autoconhecimento. O contato com a excreção do inseto lhe proporcionara, enfim, a auto-revelação. A constância da epifania, que assinala o aspecto mítico da escritura lispectoriana, aproxima Clarice, estilisticamente, de Lygia Fagundes Telles, outra prosadora modernista que empreende a sondagem psicológica do universo humano. Na obra de Lygia Fagundes Telles, o momento epifânico se manifesta, por exemplo, no conto “Natal na Barca”, quando a protagonista, em um momento transcendentalmente iluminado, percebe que sua companhia de viagem acredita em Deus. I.5. A Narrativa Monocêntrica A hora da estrela apresenta o monocentrismo que peculiariza o estilo narrativo lispectoriano. Macabéa é a força motriz dessa novela: as aspirações, as frustrações, a visão de mundo da nordestina consistem nos fatores que impulsionam a narrativa. É para se opor às opiniões e crenças da protagonista que outras personagens surgem, a exemplo de Olímpico, sempre contrário ao fato de Macabéa não fazer uso do raciocínio lógico para a compreensão da realidade. É na alagoana que se encontra o foco da narrativa: 29 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexera com uma coisa delicada: a criaÁ„o de uma pessoa inteira que na certa est· t„o viva quanto eu. (HE, 19) A novela trata-se, com efeito, da biografia de Macabéa. Esta, que não possui identidade, tem sua história construída a partir da narrativa, que, como diz o próprio narrador, consiste na “criação de uma pessoa inteira”. Ao relatar a história da nordestina, o narrador realiza um empreendimento historicista, focalizando em Macabéa o seu ofício de narrar a procedência e o desenvolvimento de um ser em sociedade. Rodrigo S. M. atribui um caráter exegético à sua narrativa, pois cada relato de vivência de Macabéa é perpassado pela intenção de explicar justificar os atos praticados pela alagoana, cuja análise comportamental acaba por reger a história narrada. Assim como Macabéa, Joana é uma personagem à qual se destina uma posição hegemônica na narrativa. Assinala Nunes (op. cit., p.19): E na experiÍncia interior da protagonista, Joana, que a aÁ„o romanesca est· centrado. Os episÛdios da primeira parte de Perto do CoraÁ„o Selvagem, sem traÁo de intriga ou enredo, fundem lembranÁas e percepÁões moment‚neas, idÈias gerais abstratas e imagens. 30 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ No universo ficcional clariciano, a narrativa monocêntrica por excelência é Um sopro de vida. Nesta obra, o aparente diálogo entre Ângela Pralini e o Autor consiste, na realidade, em um monólogo, já que o Autor é apenas uma personagem criada pela protagonista para escrever um romance sobre si mesma. Ângela é, simultaneamente, a narradora e o motivo da narração. Esta, sendo efetuada de modo homodiegético8 , circunscreve-se à exposição dos juízos e valores da protagonista. II. O Sentido do termo gauche Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. Na estrofe acima, transcrita do “Poema de Sete Faces” (vide anexo 3), de Carlos Drummond de Andrade, evidencia-se a presença do termo gauche. Na estância supramencionada, a palavra “torto” e a expressão “vivem na sombra” - que exprimem significações relacionadas à contrariedade, à oposição a uma realidade instituída – antecedem o sentido expresso por g a u c h e , proporcionando a compreensão do significado desse termo, ainda que este seja um estrangeirismo. 8 A narrativa homodiegética é aquela cujo narrador “é a entidade que vincula informações advindas da sua própria experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou daí as informações de que carece para construir o seu relato”. (Reis & Lopes, 1988, p.124) 31 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Pode-se traduzir, o vocábulo gauche, originário do francês, como “esquerdo” em Português. Em sentido conotativo, o termo pode significar “acanhado”, “inepto”, que designa o homem às avessas, o “torto”, aquele que está afastado do mundo real que o cerca, e não consegue estabelecer uma satisfatória comunicação. Em A hora da estrela, a personagem protagonista, de nome Macabéa, apresenta-se ali inserida como um ser inadaptável ao meio em que vive, ou seja, não possui as características convencionais para um bom relacionamento em sociedade. Sua falta de percepção física acompanha a psicólogica. Começa com o fato de ela ser vítima da sociedade consumista e da indústria cultural: gostava de colecionar anúncios; comer cachorro-quente e tomar coca-cola. Tinha grande adoração pelo desconhecido, como no caso da palavra “efemérides”, porém nunca procurava saber, com efeito, o significado desse termo, bastava apenas aceitar-lhe a existência e admirá-lo à distância. Macabéa não conseguia se adaptar à cidade grande – Rio de Janeiro - , visto que seu comportamento não se enquadrava nos padrões impostos pelos indivíduos, com quem se relacionava. A personagem era um ser de difícil comunicação, sua ingenuidade fazia com que as pessoas se afastassem dela, não possuía nenhum tipo de atributo intelectual, suas únicas informações eram obtidas através da Rádio Relógio, a exemplo do conhecimento do fato de “que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus.” (HE, 37) Rodrigo S. M., narrador da novela, aclara o deslocamento generalizado da personagem no trecho abaixo: 32 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ .... ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. SÛ vagamente tomava conhecimento da espÈcie de ausÍncia que tinha de si mesma. (HE, 24) Carregava, desde o seu nascimento, o peso de não saber que era peça dispensável à sociedade em que vivia. A nordestina Macabéa tinha aparência física diferente dos demais personagens citadinos; suas características corporais não atraíam nenhum homem. A ela, era negado até mesmo o dom da maternidade. “Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido.” (HE, 58 e 59) O caráter anti-estético e Macabéa se manifesta, com muita propriedade, através das manchas espalhadas pelo seu rosto. No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se panos, diziam que vinham do fÌgado. DisfarÁava os panos com grossa camada de pÛ branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. (HE, 27) 33 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A personagem também não possuía higiene alguma; seu mau cheiro incomodava até mesmo suas próprias colegas de quarto. O narrador exprime: “Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava” (HE, 27). Fazia de suas vestimentas instrumentos pelos quais demonstrava ainda mais o seu desencanto. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinaÁ„o. [...] Assoava o nariz na barra da combinaÁ„o. N„o tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. (HE, 27) Desse modo, torna-se personagem gauche “torta” de tanto tentar ajustar-se num mundo que tanto a repele, isto é, está à esquerda dos acontecimentos, é indivíduo marginalizado, desajustado como os personagens que Drummond criou em sua obra. III. Macabéa: Um Ser Deslocado Ante o Mundo A nordestina Macabéa, personagem principal da novela em questão, carrega no nome o peso de não saber engajar-se socialmente e não conhecer-se introspectivamente. A constância da alagoana no mundo ocorre somente por meio da palavra, visto que o verbo é o intermediário entre Rodrigo S.M. e o leitor, e entre o leitor e Maca. 34 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ III.1. Interpretação Parodística do nome “Macabéa” MacabÈa, sendo uma nordestina desnutrida e sem identidade prÛpria, opõe-se aos Macabeus, povo citado na BÌblia, peculiarizado pelo vigor e auto-suficiÍncia. Diante desta oposiÁ„o, instaura-se um efeito irÙnico, evidenciando-se, portanto, a parÛdia construÌda a partir da atribuiÁ„o do nome ìMacabÈaî ‡ personagem lispectoriana. Como exemplo deste fato, cite-se o trecho a seguir: - E, se me permite, qual È mesmo a sua graÁa? - MacabÈa. - Maca, o quÍ ? - BÈa, foi ela obrigada a completar. - Me desculpe mas atÈ parece doenÁa, doenÁa de pele. (HE, 43) III. 2. Isolamento Social O isolamento social de Macabéa manifesta-se, principalmente, através da alegoria. Esta é assim definida por Moisés (1982, p.15) 35 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Etmologicamente, a alegria consiste num discurso que faz entender outro, numa Linguagem que oculta outra (....). Podemos considerar alegoria toda concretizaÁ„o, por meio de imagens, figuras e pessoas, de idÈias, qualidades ou entidades abstratas. O narrador da história refere-se, espantado, à pobreza e à miséria que Macabéa vive no ambiente social: Como a nordestina, h· milhares de moÁas espalhadas por cortiÁos, vagas de cama num quarto, atr·s de balcões trabalhando atÈ a estafa. N„o notam sequer que s„o facilmente substituÌveis e que tanto existiriam como n„o existiriam. (HE, 14) O caráter alegórico de Macabéa se evidencia ao observar-se que, a esta personagem, subjaz a miséria existente no Nordeste. Por esta razão, essa personagem lispectoriana, com sua realidade, retrata os seres que habitam aquela região, pois sua trajetória está atrelada, entrelaçada à vivência dos nordestinos. Daí porque Portela (apud Guidin, op. cit.) classifica 36 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ a protagonista de A hora da estrela como uma ‘alegoria regional’. Ao observar-se que Macabéa é um recurso literário para camuflar-se, velar-se a denúncia de uma realidade – a miséria nordestina – nota-se que, em A hora da estrela, emerge o Dasein. Este termo, que integra a terminologia de Heidegger, designa o estar-no-mundo atrelado ao senso de engajamento, de compromisso com a comunidade humana, acabando por consistir no estar-com-os-outros (cf. Aguiar e Silva, 1976). O engajamento, apontado por Tavares (1991) como uma das funções da literatura, está explicitamente presente nas páginas iniciais da novela, nos quais o narrador evidencia a origem espacial de Macabéa: Como È que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheÁo, j· que nunca o vivi? … que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdiÁ„o no rosto de uma moÁa nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. (HE, 12) Dessa forma, o isolamento social de Macabéa é o isolamento de uma classe. O hipônimo “nordestina”, constantemente empregado pelo narrador, denuncia: Macabéa é uma figura metonímica, pois sua exclusão nos remete ao alijamento de um todo - os sertanejos do Nordeste. 37 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O espírito engajado que traspassa A hora da estrela se patenteia, também, ao perceber-se, nesta novela, a constância da zoomorfização (cf. Sant’Anna, 1990), processo através do qual as personagens humanas, tomando atitudes de bichos, convertem-se em autênticos animais, conforme se pode constatar na passagem a seguir: O rapaz [OlÌmpico] e ela [MacabÈa] se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espÈcie que se farejam. (HE, 43) A colocação das personagens supramencionadas no mesmo nível que o dos animais – processo presente, também, na novela Vidas secas, de Graciliano Ramos – revela a intenção de expor a condição subumana da vivência dos nordestinos. O alijamento imposto pela sociedade a MacabÈa faz com que esta adote a R·dio RelÛgio como uma espÈcie de refúgio do meio que a despreza. O ìtic-tac-tic-tacî da R·dio RelÛgio, adquire, para a nordestina, aspecto de um microcosmo, um mundo particular no qual se resguarda do macrocosmo que n„o a aceita. As afirmações fornecidas pela Rádio Relógio proporcionam à Macabéa a sensação fenomenológica de conhecer, que lhe é negada pela sociedade. A aquisição dessa sensação acarreta que a nordestina sequer questione as informações recebidas, elegendo a Rádio como fonte inesgotável e irrefutável de saber. Essa rádio termina por ser o refúgio que configura 38 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ o isolamento social de Macabéa. Esta, tornando-se alheia ao meio social em que vive, passa a imbuir-se de alienação 9 , definida por Marx como o deslocamento do homem, ser eminentemente social, do mundo concreto em que os indivíduos efetivam as transformações históricas III. 3. Isolamento Introspectivo Macabéa, a personagem de A hora da estrela, isola-se da sociedade porque era um ser negado de pensamento, ou seja, sua vivência refere-se somente ao estar no mundo. Para a nordestina, sua incompetência reflete-se, principalmente, na falta de se arrumar, conversar e na percepção de sua realidade. Por não possuir essas qualidades, era apenas mais um ser que sobrevive “numa cidade toda feita contra ela” (HE, 15) O deslocamento interior de Macabéa é visto a partir de sua tolice, tal como sua ingenuidade. O narrador da história aborda: “A pessoa de quem ou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos olham”(HE, 15 e 16) A personagem não conseguia se encontrar “É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro”( HE, 34). A mentira é um recurso utilizado por Macabéa para manter-se isolada das pessoas que a rodeiam, cingindo-se a si mesma. Não sabia como falar a seu 9 O termo alienação aparece na obra marxista Manuscritos econômicofilosóficos e outros textos escolhidos (1978). 39 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ chefe que sentia dor nas costas, e queria descansar, por isso inventou que seus dentes doíam, e assim teria um dia de folga para usufruir sozinha do quarto onde morava. Isto é explícito no seguinte trecho: As vezes sÛ a mentira salva. Ent„o, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais preciosa: a solid„o. Tinha um quarto sÛ para ela. Mal acreditava que usufruÌa o espaÁo. E nem uma palavra era ouvida. Ent„o danÁou num ato de absoluta coragem, pois a tia n„o a entenderia. DanÁava e rodopiava porque ao estar sozinha se tornava: l-i-v-r-e! UsufruÌa de tudo, da arduamente conseguida solid„o, do r·dio de pilha tocando o mais alto possÌvel, da vastid„o do quarto sem as Marias (HE, 41) Esse isolamento da personagem caracteriza o comportamento gauche. Para Macabéa, pensamento é algo que não faz parte de sua existência. Deste modo, há uma comparação com 40 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ os animais; estes, como Macabéa, agem somente por instinto. Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, traz em suas poesias a proposta eliminatória do ato de pensar. Para ele, o importante é ver e sentir 10 . A personagem clariciana analisada não está distante desse conceito do existir. Vejamos uma reflexão de Caeiro sobre a inutilidade de pensar, constante na Obra poética do referido poeta português. “Pensar incomoda, como andar a chuva, quando o vento cresce e parece que chove mais.” ( .... ) “Pensar é não compreender.... O mundo não se faz para pensamentos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos e estarmos de acordoî. (......) “..... a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas” ( .... ) ìPensar em Deus È desobedecer a Deus...î Macabéa não valoriza a vida; o pensamento é visto como algo que dificulta sua existência. Vejamos, a seguir, trechos que retomam a questão acima. 10 Os atos de ver e sentir são para Alberto Caeiro, os únicos meios para depreender-se a realidade (cf. Moisés, s/d). 41 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Lívia Edicely dos Santos Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Pensar era t„o difÌcil, ela n„o sabia de que jeito se pensava. (HE, 36) ....Quando acordava n„o sabia mais quem era. SÛ depois È que pensava com satisfaÁ„o: sou datilÛgrafa e virgem e gosto de coca-cola. SÛ ent„o vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediÍncia o papel de ser. (HE, 54) A nordestina é sensual em seus pensamentos, bem como nos momentos de solidão. Com este fato, observa-se que o prazer, para Macabéa, é algo que sempre se alia à dor. A exemplo, ao ver o homem, apesar do prazer que tal visão lhe dá, existe sofrimento por não possuir e por ter a certeza de que alguém assim é mesmo só para ser visto. Glória, sua amiga de trabalho, em uma conversa com Macabéa, pergunta à moça se ser feia dói. A tolice da alagoana é confirmada no ato de sua resposta.“ – Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho...”(HE, 62). Depois desse acontecimento, a personagem protagonista faz a seguinte interrogação: Mas eu lhe pergunto se vocÍ que È feia sente dor. Eu n„o sou feia !!!, gritou GlÛria. (HE, 62) Passado o êxtase, ela voltou ao seu constante vazio: não pensar em nada. Para parar sua dor, tomava constantemente aspirinas. Isto é observado mo diálogo com Glória: 42 A Configuração do Gauche em Macabéa ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ - Por que È que vocÍ me pede tanta aspirina? N„o estou reclamando, embora isso custe dinheiro. - … para eu n„o me doer. - Como È que È ? Hein? VocÍ se dÛi? - Eu me dÙo o tempo todo. - Aonde? - Dentro, n„o sei explicar. (HE,62) Macabéa, mesmo sem existir para as outras pessoas, possuía uma única vantagem: a de “engolir pílulas sem água, assim a seco”. (HE, 63). Isto nos mostra que a importância da personagem aos outros seres era mínima. Somente com esse ato, adquire a admiração da colega... “Glória , que lhe dava aspirinas, admiravaa muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração”. (HE, 63) 43 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ CONCLUSÃO Ao término desta monografia, pude constatar que Clarice Lispector recorre constantemente à prosa intimista, ou seja, à análise do mundo interior das personagens. Essa recorrência implica a sujeição das personagens claricianas a uma profunda sondagem psicológica. No caso de Macabéa, essa sondagem resultou na comprovação de que o perfil da protagonista de A hora da estrela é constituído com base na figura do gauche. O que mais me impressionou foi o modo como Clarice tece suas narrativas, especialmente, A hora da estrela. Seus textos são elaborados a partir de uma linguagem poética, que se fez única na prosa brasileira. Além disso, ressalte-se o sensível retrato que a autora faz do ser feminino. A mulher, na obra lispectoriana, é vista como um ser dotado de sentimentos e anseios explicitamente rejeitados pela sociedade. Entretanto, esta rejeição não impede as personagens femininas de buscarem afirmação no meio social em que vivem, a exemplo de Macabéa. Existem outros recortes marcantes nessa novela, que me chamaram a atenção. Cite-se, por exemplo, a denúncia que a autora faz da vida e da realidade dos nordestinos ao migrarem para os grandes centros urbanos. Isto se evidencia quando Rodrigo S.M. define Macabéa como um elemento metonímico. Vejamos: “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre esta moça, entre milhares delas.”11 Essa citação revela o compromisso que a autora firma com a sociedade, aliado ao seu estilo intimista. Com esta monografia, enfim, alcancei o meu objetivo maior: possuir uma visão mais profunda sobre a ficção clariciana. 11 LISPECTOR , Clarice. A hora da estrela, p. 13 44 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA Obras de Clarice Lispector LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ________. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. ________. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ________. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999. Obras sobre Clarice Lispector GUDIN, Márcia Lígia. A hora da estrela – Roteiro de Leitura. São Paulo: Ática, 1994. NUNES, Benedito. O drama da linguagem – uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1989. Sá, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979. Teses e Revistas NUNES, Benedito. ìClarice Lispector: A Paix„o Segundo G.Hî. In: Rev. Expressão. v.2/ n.1/ p. 77-90. Terezina: UFPI, 1995a. RODRIGUES, Lílian de Oliveira. Clarice através do Espelho. São Paulo: PUC (Dissertação de Mestrado). 1997. Geral AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. Primeira edição brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1976. 45 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1988. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1982. ___________. Fernando Pessoa – O espelho e a esfinge. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1995b. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995. REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SAN’TANNA, Affonso Romano de . Análise Estrutural de Romances Brasileiros. 7ª edição. São Paulo: Ática, 1990. __________. Paródia, Paráfrase e Cia. 7ª edição. São Paulo: Ática, 2000. TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 10ª edição. Belo Horizonte – Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991. 46 ANEXOS BIOGRAFIA Clarice Lispector nasceu em Tehelchenik, na Ucrânia, em 1920. Chegou ao Brasil, com os pais e as duas irmãs, aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. A infância é envolta em sérias dificuldades financeiras. A mãe morre quando ela conta nove anos de idade. A família, então, se transfere para o Rio de Janeiro, onde Clarice começa a trabalhar como professora particular, de português. A relação professor / aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra – desde o primeiro romance: Perto do coração selvagem. Ela estuda Direito, por contingência. Em seguida, começa a trabalhar na Agência Nacional como redatora. No jornalismo, conhece e se aproxima de escritores e jornalistas como Antonio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando Sabrino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines, Lúcio Cardoso e Rubem Braga. Os passos seguintes são o jornal. A noite e o início do livro Perto do coração selvagem. Em 43, conhece e casa-se com Maury Gurgel Valente, futuro diplomata. O casamento dura 15 anos. Dele nascem Pedro e Paulo. No ano seguinte, ela publica Perto do coração selvagem. Em plena Segunda Guerra Mundial, o casal vai para a Europa. Os últimos anos de vida são de intensa produção: A imitação da rosa (contas) e Água viva (ficção), em 1973. A via crucis do corpo (contos) e Onde estiveres de noite, também contos, em 1974. Visão do esplendor (crônicas), em 1975. Nesse ano, é convidada a participar, em Bogotá, do Congresso Mundial de Bruxaria. Sua participação limita-se à leitura do conto “O ovo e a galinha”. No ano seguinte, Clarice 47 Lispector recebe o 1º prêmio do X Congresso Literário Nacional, pelo conjunto da obra. Em 1977, concede entrevista à Tv Cultura, com o compromisso de só ser transmitida após sua morte. Ela antecipa a publicação de um novo livro, que viria a se chamar A hora da estrela, adaptado para o cinema nos anos 80 por Suzana Amaral. Clarice morre, no Rio, no dia nove de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57º aniversário. Queria ser enterrada no cemitério São João Batista, mas era judia. O enterro aconteceu no cemitério Israelita do Caju. Postumamente, foram publicados Um sopro de vida, Para não esquecer e A bela e a fera. 48 POEMA DE SETE FACES Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida. As casas espiam os homens Que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, Não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: Pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos Não perguntam nada. O homem atrás do bigode É sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos O homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste Se sabias que eu não era Deus, Se sabia que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, Se eu me chamasse Raimundo Seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer Mas essa lua Mas esse conhaque Botam a gente comovido como o diabo. (Carlos Drummond de Andrade) 49 50 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira N ARCISO FREITAS DE OLIVEIRA O trabalho de conclusão de curso “Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira”, de Narciso Freitas de Oliveira, extrapola, em muitos aspectos, o que é pedido para mongrafias neste nível acadêmico, pela profundidade da análise e, principalmente, pela sensibilidade com que analisa a obra de Walter Salles, o filme Terra Estrangeira. Por esses aspectos, o trabalho merece ser publicado e conta com o meu parecer inteiramente favorável. Prof. Dr. Ribamar Ferreira Júnior 51 Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 1- Avant-Premiere “ T erra Estrangeira” é um filme que retrata a contemporaneidade da juventude abordando uma das maiores problemáticas mundiais: a crise da identidade. O enfoque maior se faz na crise identitária brasileira, pois a narrativa tem como protagonistas personagens brasileiros em desajuste consigo próprios e com seu contexto social. Elegi o filme como objeto de estudo por pensá – lo como um harmonioso conjunto de linguagens poéticas: texto e imagens; além de evidenciar o sentimento de estrangeirismo pessoal no qual estou pessoalmente inserido. Meu objetivo foi à interpretação de alguns recursos visuais metafóricos encontrados no filme relativos à narrativa. Procurei ainda observar a estética e o conteúdo presentes nas seqüências. Para isso, recolhi dados e sobre o contexto histórico referente à realidade em questão, e em seguida utilizei – me da técnica de decupagem fílmica, isolando seqüências que evidenciassem mais substancialmente os momentos mais significantes referentes à questão da identidade . A partir deste momento, desenvolvi uma leitura simbólica de três seqüências eleitas como relevantes, desmembrando seus respectivos conteúdos e nomeando—as de seqüências A, B e C. A seqüência “A” tem em seu texto, o recurso principal para levantar o fator identidade em crise. Baseei minha análise no autor Stuart Hall, responsável por um pensamento bastante elucidativo a respeito da definição do homem e seus papéis dentro de uma sociedade em transformação. Em relação às técnicas cinematográficas, elegi as seqüências “B” e “C” por possuírem registros de imagens 52 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ metafóricas indeléveis. Para melhor compreensão de tais recursos e suas finalidades, vários estudiosos da área foram essenciais, entre eles: Terence Marner, André Bazin, Christian Mertz, Francis Vanoye e Anne Goliote – Leté. Sobre a seqüência “C”, além de abordar os recursos técnicos, teci comentários sobre seu conteúdo, tendo como referência a Psico – Sociologia, a fim de melhor compreender e esclarecer certas questões abordadas no filme. Para tanto, utilizei – me de textos de François Flahault. 2 - Na Poética de “Terra Estrangeira”: O Percurso da Identidade Ao analisar o universo semântico de uma produção fílmica devemos saber que estamos diante de uma complexa pluralidade de símbolos e vários níveis de leitura. A análise de um filme consiste em mergulhar em um processo de conhecimento do material estudado, examinando – o técnica e emocionalmente, a partir de, uma recepção sistemática e intuitiva, desmembrando – o em fragmentos individuais e significativos para posteriormente tecer uma teia reconstrutora, considerando a própria compreensão e interpretação. O filme é uma janela capaz de nos transportar para dentro ou para fora de nossa realidade, nos permitindo, como espectadores no limiar dessa janela, desenvolver uma visão intuitiva ou emotiva, levando em conta a identificação, que pode ou não ocorrer, ou ainda aguçar um olhar estruturado e racional, buscando no distanciamento, o recurso mais técnico para a análise. 53 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ É inevitável a comparação dessas duas táticas distintas, com duas forças emocionais inerentes ao ser humano: a intuitiva e a sistemática. Quando levados pela primeira, pouco usamos a racionalidade, justificamos um sentimento intuitivo puramente por sua “não – explicação”, às vezes encontrando justificativa em uma estética que nos toca profundamente. Já quando a razão prevalece, estamos diante de estudo, descobrimento e adaptação metodológica. A primeira vez que vi “Terra Estrangeira”, fui conquistado por sua beleza e riqueza estética. Cada seqüência era uma obra de arte digna de inegável admiração. Porém, senti necessidade de entrar em um processo de pesquisa, desmembrando seu rico conteúdo a fim de mostrar o que existe por detrás de tão belas seqüências de imagens, quase sempre poéticas. A interpretação crítica de um conteúdo busca o sentido e a formação técnica deste sentido, estudando os recursos que o autor utilizou para tornar perceptível, mais ou menos explicitamente, suas idéias e intenções. O principal recurso usado para a produção da poética de “Terra Estrangeira” é a simples apresentação da vida e frustração cotidiana do povo brasileiro. Sem uma linguagem demasiadamente rebuscada ou fora de nossa realidade, o filme retrata de modo histórico cultural, um fator inerente ao povo brasileiro, principalmente os que tiveram sua juventude vivida no final dos anos 80 e em toda a década de 90: a crise de identidade. De acordo com a concepção interativa da identidade e do eu, elaborada por GH Mead e CH Colley (1997), a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. 54 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ìO fato de que projetamos a ìnÛs prÛpriosî nossas identidades culturais, ao mesmo tempo que interalisamos seus significados e valores, tornando ñ os ìparte de nÛsî, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos como os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade ent„o, costura (ou para usar uma met·fora mÈdica), ìsuturaî, o sujeito ‡ estruturaî (HALL, 1997:14). O sujeito tem uma essência interior (eu real) que é formada e modificada a partir do contato contínuo com os mundos culturais, exteriores e as identidades que estes mundos oferecem. A identidade preenche o espaço entre o interior (mundo pessoal) e o exterior (mundo público), concatenando o sujeito ao meio – social. Entretanto, considerando um contexto mais atual, destaca – se a figura do indivíduo pós – moderno, não possuidor de uma identidade invariável ou permanente, mas sim moldável em relação à sua socialização, definida a partir de sua história e não herdada biologicamente. Em relação à identidade do homem pós – moderno, Stuart Hall comenta: 55 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ìDentro de nÛs h· identidades contraditÛrias, empurrando em diferentes direÁões, de tal modo que nossas identificaÁões est„o sendo continuamente deslocadas. Se sentirmos que temos uma identidade unificada desde o nascimento atÈ a morte, È apenas porque construÌmos uma cÙmoda estÛria sobre nÛs mesmos ou uma confortadora ënarrativa do euî (HALL, 1990:14). O indivíduo pós – moderno se fragmenta em várias identidades, às vezes, opostas e não resolvidas, tornando então incoerente a existência de uma identidade inquestionavelmente completa e segura. Essa pluralização de identidades se manifesta quando observamos os diversos papéis que desempenhamos em nosso meio: em uma segmentação de classe, etnia, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc. Portanto, em vez de falarmos em identidade, deveríamos falar em identificação, e é exatamente essa a problemática do povo brasileiro, caracterizado por ser um povo sincrético, produto de várias etnias e culturas “herdadas e adquiridas”. O processo de identificação com suas raízes e território está cada vez mais fora da realidade, principalmente dos jovens, que possuem o sentimento de pertencer a um país pouco promissor, que lhes provoca a sensação de estrangeirismo permanente. 56 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Os jovens de “Terra Estrangeira”, no intuito de fugir desesperadamente dessa sensação corrosiva, mergulham em uma viagem pelo que há de mais escondido na sociedade oficial européia, uma viagem em meio a atitudes indecorosas e marginais, indefinições pessoais e drogas que alucinam física e ideologicamente. Drogas usadas com um mesmo objetivo: a alienação, a fuga da realidade não aceita e outra nem sequer conhecida. A droga de Miguel o ajuda a suportar a existência totalmente dispare daquela que sonhou. A de Paco é simbolizada por seu passaporte, assegurando uma “viagem” promissora de uma possível satisfação, a de contemplar o que alguém tanto desejou, enquanto tinha uma existência mergulhada no tédio do cotidiano. É disso que todos eles estão em busca, de uma Passárgada. Porém, em Lisboa não fizeram amizade com rei, nem tão pouco encontraram a diversão de uma existência aventureira. Talvez Portugal represente apenas um ponto na estrada que não leva a lugar algum. Um ponto onde o caos é mostrado explicitamente, uma ciranda de estrangeiros, diferentes realidades, sotaques e “portugueses” denunciadores de que ali se encontra um país tão em crise de identidade quanto o Brasil, chegando a ponto de ser considerado à parte da Europa. E é nessa grande desordem que pode – se “arrebatar” um passaporte brasileiro pela bagatela de trezentos dólares, seguido de um condescendente baixar de olhos de quem não tem como argumentar e aceita a inferiorização. As jovens personagens de “Terra Estrangeira”, mesmo não concebendo seu estrangeirismo apenas pela viés da desterritorialização, sonham mesmo em voltar para casa, sentem falta do conforto de uma paisagem familiar que lhes arranquem do caótico inverno europeu, que lhes direcionem 57 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ao nada mais denso. Para Paco, o lar é San Sebastian, onde poderá sentir novamente um cheiro antigo nunca sentido antes, um lar idealizado agora assumido por Alex que, exausta de seus próprios sonhos, toma para si os do amado. O fato de ter escolhido “Terra Estrangeira” como objeto de estudo não se deve apenas por ser uma produção inegavelmente rica no sentido visual, literário e histórico, mas sim por possuir uma brasilidade evidente, fugindo dos clichês que pintam nossa realidade de verde – e – amarelo mostrando o Brasil do carnaval, futebol, mulheres bonitas e o sol de Copacabana. “Terra Estrangeira”vai no caminho contrário, descolore nossa realidade e faz um mergulho no interior do sentimento brasileiro, mostrando – o como realmente é: um universo preto – e – branco inserido num exterior de utopias, ideologias falsas, alienação e onipresença da cultura de vidro que alimenta nosso escapismo. Para transmitir ao público esse retrato da sociedade, Walter Salles e Daniela Thomas (roteiristas e diretores) e Walter Carvalho (diretor de fotografia), usaram diferentes códigos visuais e verbais, passeando pelo mundo da luz e escuridão, esperança e desilusão. A narrativa tem como contexto histórico a geração em crise no Brasil da era Collor, o primeiro e decepcionante presidente eleito democraticamente depois de quase trinta anos de ditadura militar que ao lado de sua ministra Zélia Cardoso, protagonizou o golpe de confisco bancário, desencadeando grandes mudanças na vida do povo brasileiro. Em meio a dramática e cruel beleza plástica da arquitetura antropofágica de São Paulo, vive Paco, um jovem de 21 anos que sonha em ser ator. Sua mãe, uma idosa e 58 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ abatida imigrante, possui duas referências na vida: o único filho e sua origem basca. A partir de suas míseras economias adquiridas como costureira, sonha em voltar a San Sebastian e mostrar ao filho suas verdadeiras raízes. Porém, o pesadelo do confisco põe fim em seus sonhos e em sua vida. Paco, tomado pela dor da perda da mãe, pela solidão e falta de perspectivas, percebe que nada mais o prende ao país, então aceita uma proposta para levar um violino para Portugal com objetivo de seguir de lá para a Espanha e conhecer a cidade natal de sua mãe. Em Lisboa, seu caminho se cruza com o de Alex, uma brasileira que renegou suas origens aspirando uma vida melhor fora de seu país. A partir daí, dá – se início a uma jornada que revela todo o sentimento de desnorteamento de quem se sente fora de qualquer contexto e perdido em si próprio. ìOuve ñ se freq¸entemente dizer, em discussões cinematogr·ficas, que È prÛprio dos filmes que nos atraem e que vivem em nÛs ñ ao universo desta univocidade fortemente insistente que marca a imposiÁ„o da produÁ„o fÌlmica ñ poderem ser compreendidos de v·rias maneiras, oferecerem seus simbolismos, fora de qualquer ëcastraÁ„oí sem‚ntica, a v·rios sistemas de interpretaÁ„o admitirem v·rios nÌveis de leitura. … o tema 59 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ das ëleituras múltiplasí, que se aplica ao texto fÌlmico como a outros tipos de texto, e com justa raz„oî. (METZ; 92:140) No que concerne a esse pensamento relacionado à interpretação do conteúdo fílmico, pretendo mostrar o meu ponto de vista em relação a algumas seqüências que considerei de grande relevância por destacar três fatores básicos sustentadores de minha análise: as questões da linguagem visual, verbal e da identidade que embora se apresentem diretamente ligadas, possuem suas singularidades dentro do todo. Da mesma maneira que uma obra literária é dividida em capítulos, um filme é fragmentado em seqüências. Em relação ao processo de análise singular do fragmento, Francis Vanoye e Anne Goliot – Leté afirmam em “Ensaio sobre a análise fílmica”: “Desmontar um filme é entender seu registro perceptivo e com isso, se o filme for realmente rico, usufruí – lo melhor (...). Analisar um filme ou fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, decompô – lo em seus elementos constitutivos”. (VANOYE, GOLIOT – LETÉ; 1994: 12,15) Portanto, coloquei – me na responsabilidade de eleger algumas seqüências que abordassem explicitamente as questões já citadas. Devo admitir ter sido uma tarefa extremamente difícil devido a grande variedade de temas a serem discutidos. Mas, por fim, decidi – me pelas seqüências que mais deixam explícitas as questões da busca de identidade, o sentimento estrangeiro e a plasticidade da linguagem visual. 60 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ SEQÜÊNCIA A: DISTÂNCIA ìPois, cada um de nÛs entrou neste universo como se entrasse numa cidade estrangeira, com a qual n„o tivesse nenhuma ligaÁ„o antes de nascer; e, uma vez aqui dentro, o homem jamais deixa de ser um hÛspede de passagem, atÈ ter percorrido de um extremo ao outro a duraÁ„o de vida que lhe houver sido atribuÌda...î 1 Santo Agostinho e outros autores da Idade Média, baseados no tema do estrangeirismo, segundo a Bíblia, elaboraram o tipo humano peregrino. Segundo esse pensamento, Adão e Eva quando expulsos do Paraíso, 1 - Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos,p.403 61 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ abandonaram sua pátria, recebendo o estatuto de estrangeiros, emigrados condenados ao exílio.Assim, todo indivíduo tendo sua existência posterior a de Adão e Eva é conseqüentemente um mero passageiro em qualquer território onde se encontre. Para Santo Agostinho, o homem, mesmo em seu próprio país, é um estrangeiro por condição. Portanto, sendo o céu a única pátria verdadeira, apenas Deus tem cidadania e os exilados, estrangeiros por toda a vida terrena. Nesta seqüência, Alex e Miguel, dois brasileiros refugiados da crise e desesperança econômica de seu país, contemplam a beleza de Portugal, país cenário de um exílio mal tragado e sem os ares românticos da clandestinidade. Do terraço de um prédio, suspensos do solo estrangeiro, os dois se encontram numa atmosfera de singular cumplicidade como se envoltos numa bolha temporariamente protetora daquele território ameaçador. Neste momento, Alex e Miguel estão totalmente desligados física e emocionalmente do país, são solitários “marginais”, à margem de uma sociedade estranha e que não lhes oferece nenhuma perspectiva de mudança ou apoio. Encontram um no outro o alicerce necessário para não desistir da jornada em busca de um conforto que se esforçam para acreditar na existência. Próximos ao porto de um país, que renega seus próprios “filhos” brasileiros, cabo – verdianos, angolanos e moçambicanos, os dois jovens têm suas essências sintetizadas em resíduos subjetivos em que a esperança e sonhos se mesclam com a indiferença à vida. O cansaço em seus olhos e em suas palavras denunciam dois seres cobertos pela melancolia identitária e em busca de um recolhimento aparentemente inalcançável. Como forma de evidenciar tal sentimento de angústia, vejamos o que o texto da seqüência em questão tem a nos mostrar: 62 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Alex: eu gosto dessa cidade essa hora...cidade branca...bonito nÈ? SÛ que as vezes me d· um medo. Miguel: Medo? Medo de quÍ? Alex: Medo de vocÍ danÁar e eu ficar sozinha aqui num lugar que eu nem escolhi para viver. Alex mostra sua simpatia pela paisagem de Lisboa, vista de longe, atribuindo à cidade a cor branca, resultante da iluminação inerente àquela hora do dia. O branco, cromologicamente, nos remete à paz e serenidade, características opostas e paradoxais ao meio marginalizado e obscuro, no qual, as personagens se inserem. Percebe – se aí uma grande dualidade de sentidos, seguida do desabafo de Alex, ao mostrar o seu medo da solidão em um lugar que, mesmo sendo falada a mesma língua, lhe parece um território insuportável e aversivo. E o diálogo persiste na solidão estrangeira: Miguel: a gente pode ir para onde vocÍ quiser, Alex. Alex: vocÍ n„o est· entendendo, n„o depende do lugar. Quanto mais o tempo passa, mais eu me sinto estrangeira. Cada vez mais eu tenho consciÍncia do meu sotaque. De que a minha voz È uma ofensa para o ouvido 63 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ deles. N„o sei n„o, acho que eu to ficando velha... Miguel: vocÍ est· ficando È doida, Alex. VocÍ sÛ tem 28 anos. Alex: 28...30,40,50,60... ta passando t„o depressa. Depois eu morro de medo de ficar velha aqui fora. Mas, aÌ quando eu penso em voltar para o Brasil me d· um frio na espinha. É explícito que o sentimento de estrangeirismo é mais profundo e complexo do que o simples fato da personagem estar fora do território de origem. Se fundem aqui o estrangeirismo do desterro e o estrangeirismo existencial resultando numa incomplementariedade do “eu” originada inicialmente do desapego tanto à terra natal quanto a si mesma. O grande conflito de Alex se resume na busca de uma identidade singular, desenvolvida e plena frente as influências do mundo. Porém, essa identidade planificada é incoerente. O que existe é um constante jogo de identidades contraditórias, direcionando o homem cada hora para caminhos contraditórios e às vezes desconhecidos. ìO processo de identificaÁ„o atravÈs do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, torna ñ se mais provisÛrio, vari·vel e problem·tico. Esse processo produz o 64 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ sujeito pÛs ñ moderno, conceptualizado como n„o tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna ñ se uma ìcelebraÁ„o mÛvelî: formada e transformada continuamente em relaÁ„o ‡s formas pelos quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiamî. (HALL, 1987:13) A questão é discutida tendo como argumento o fato do velho conceito de identidade estar em declínio, cedendo lugar a novas identidades e “desmembrando” o indivíduo que até então se auto denominava unificado. Em outras palavras, uma mudança estrutural está transformando os conceitos culturais de gênero, classe, sexualidade, raça, nacionalidade, etc., que antes nos embasavam solidamente como indivíduos pertencentes a uma sociedade. Tais transformações estão abalando nossas identidades pessoais nos levando a questionar a idéia que temos de nós próprios e originando uma “perda em si”, um “estrangeirismo pessoal”. É justamente essa fragmentação identidária que gera o fenômeno da crise de identidade. “A identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”. (MERCER, 1990:43) 65 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Esse processo móvel, pode ser considerado como a transformação da própria modernidade descrevendo a concepção de um homem pós – moderno, à frente de qualquer concepção essencialista ou de identidade fixa. Dentro deste contexto, Alex é a representação do indivíduo pós – moderno, em crise consigo mesmo por não se dar conta do processo que está vivenciando. No decorrer da seqüência, Alex denomina sua voz como uma ofensa ao ouvido dos Portugueses. Não possuindo uma valorização pessoal, ela se auto marginaliza pela condição de clandestina e por ser alguém em confusão de papéis, pouco à vontade consigo, não tendo senso de pertinência e nenhum senso de integridade. Como conseqüência da desesperança e não produtividade, Alex não percebe a transitoriedade do tempo marcando a aproximação cronológica de uma solidão externa a ser somada à interna, já existente. Diante de tal pensamento, levanta a remota possibilidade de voltar ao país de origem seguida imediatamente de uma expressão de desconforto e a quase afirmação dessa possibilidade ser inadmissível. A volta ao Brasil é um desafio extremamente negativo, como uma roleta – russa, cuja possibilidade da tragédia é mais certa do que o alívio de uma segunda chance. 66 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ SEQÜÊNCIA B: NO SAL DAS ÁGUAS Para se abordar a analogia entre a narrativa cinematográfica e a narrativa literária é necessário especificar diferenças existentes entre os dois processos de cognição destas duas formas de arte. A literatura escrita se utiliza de palavras – conceitos que, através de signos lingüísticos recebidos de forma sensível e usufruídos por meio de uma operação mais complexa, porém imediata, exploram a semântica ligada àquele signo. A partir de dados contextuais, o signo desencadeará uma série de imagens estimulando emotivamente o receptor. No caso de imagem, o caminho é inverso. O primeiro estímulo é o dado sensível ainda não racionalizado e conceptualizado, recebido inicialmente com toda a sua carga vivaz e emotiva. Entre os dois gêneros, pode – se afirmar que ambos são manifestações artísticas baseadas na ação. Entendendo – se por ação uma relação que estabelece entre uma série de fatos, um desenrolar de acontecimentos reduzidos à estrutura base. Num romance, esta ação é contada, ao passo que no cinema ela é representada. Nas palavras de Eco (1987: 190): 67 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ìA diferenÁa entre a aÁ„o fÌlmica e a aÁ„o narrativa parece ser a seguinte: o romance diz ñ nos aconteceu isto, depois aconteceu isto,etc. Enquanto o filme nos coloca perante uma sucess„o de ëisto + isto + isto, etc.í, uma sucess„o de representaÁões de um presente, hierarquiz·veis apenas na fase da montagemî. Ademais, é relevante dizer que toda e qualquer arte de representação manifesta produções simbólicas que, direta ou indiretamente, mais ou menos conscientemente, abordam um ou vários pontos de vista e leituras sobre o mundo real. Com a finalidade de obter tal efeito, é muito comum o uso de metáforas, definida nas palavras de MERTZ (1975:10) como “...Uma figura de expressão verbal, a forma mais condensada da imagem literária”. Portanto, compreende – se por metáfora a analogia de sentido entre o termo usado e aquele implícito. No caso do cinema, o efeito metafórico pode ser gerado por uma sucessão de imagens que produzem um sentido além do literal. Considerando a seqüência “B”, as metáforas são detectáveis por intermédio de símbolos e efeitos obtidos através de alguns planos. A partir da observação de tais recursos, apresentar – se – á uma descrição seguida de uma leitura simbólica da seqüência em questão. Marcada por uma poética que trata da morte, a seqüência “B” envolve o espectador numa atmosfera intimista e reveladora. O plano médio (P.M)2 inicial mostra Paco no chuveiro 2 Basicamente, o plano de um corpo humano do tronco para cima. A maior parte do fundo é eliminada, conseguindo – se, desta maneira, que a figura humana se converta no centro de atenção. 68 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ perturbado devido a perda da mãe. O enquadramento se fecha gradativamente culminando em um “close”3, proporcionando a idéia de aumento da dor ali presente. Tal recurso permite uma melhor visualização da imagem de Paco, inicialmente desfocada e mais nítida com a aproximação do plano. Este movimento conduz metaforicamente o espectador a adentrar no mundo da personagem, formando assim, uma “cumplicidade” entre ambos. O “close” amplia a expressão de Paco, revela sua consternação e seus olhos fechados sugerem uma entrega emocional total. A partir daí, temos uma sucessão de cenas curtas que se alternam com a imagem de Paco, criando um paralelo de causa e conseqüência do sentimento que rege a seqüência. Paco derrama suas lágrimas ao mesmo tempo em que a água do chuveiro escorre pelo piso e invade a sala do apartamento, levando fotos e postais caídos no chão. Dentro do contexto narrativo, a morte representa paralelamente sofrimento e alívio. Para Paco, o sofrimento é conseqüência da morte da mãe. Chora o anúncio explícito da solidão agora generalizada. Contudo, a arte imita a vida, e o destino da frustrada imigrante não é de todo surpreendente, já que aos velhos não é dada a possibilidade de realização de sonhos, apenas, e tão somente, a repetição em torno de antigos temas e a espera desgastante de uma morte que os alivie do fardo de uma existência tediosa. Daí, observa – se a morte como um alívio para a mãe de Paco, que “paga” com suas esperançosas economias, seu próprio enterro e a liberdade da letargia e impossibilidade da realização pessoal 3 Essencial para atingir a máxima intensidade dramática. A expressão do ator ganha destaque apresentando – se mais nítida e forte. 69 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ VÛs, as ¡guas, que reconfortais,4 trazei ñ nos a forÁa, a grandeza, a alegria, a vis„o! ...Soberanas das maravilhas, regentes dos povos, as ¡guas! ...VÛs, as ¡guas, dai sua plenitude ao remÈdio, a fim de que ele seja uma couraÁa para o meu corpo, e que assim eu veja por muito tempo o sol! Há diferentes variações culturais sobre a simbologia da água. Mas, pode – se observá-las em três leituras dominantes: fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Essas três visões se encontram nas mais antigas tradições e podem formar um enorme e variado número de combinações imaginárias. Em certas alegorias tântricas, a água é representada como o sopro vital (Prana) inferindo idéia de fertilidade, imortalidade, cura e alívio. Incessante em toda a seqüência, a água pode ser considerada como um recurso metafórico ao estabelecer uma analogia entre as lágrimas de Paco e as águas do chuveiro, representando um choro único e melancolicamente interminável como o de Iara, personagem de Francisco Ribas, no conto “Lagoa de Lágrimas”, que ao chorar a morte do amado forma uma lagoa no lugar onde ele fora sepultado. A permanência da personagem sob o chuveiro enquanto chora, sugere também a tentativa de “purificar – se” do sentimento mórbido e corrosivo 4 Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p.15 70 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ causado pela morte. Esse mesmo pranto percorre todos os cantos do apartamento carregando fotos e postais pertencentes a sua mãe. Símbolos de toda história de vida da mulher estrangeira, essas lembranças e referências eram ao mesmo tempo retratos de seu passado e representações de seu mais próspero futuro, pois o sonho de voltar à Espanha acabaria com o tormento de viver no Brasil, longe de suas verdadeiras raízes e em meio à solidão típica dos que não possuem mais as múltiplas escolhas da juventude. Em um mundo real, a água leva fotos e cartões postais enquanto que no mundo simbólico, essas águas são lágrimas de Paco diante dos sonhos e expectativas da mãe, levados pela morte. Na atmosfera fria e solitária, observa – se a profundidade da tristeza de Paco. Estar rodeado por essas águas escuras é como estar morto simbolicamente. Em seu interior, agora prevalece o vazio da ausência de um futuro. Busca em seu pranto uma regeneração corporal e espiritual, porém, a escuridão tem uma dimensão infinitamente maior do que qualquer centelha de esperança e o brilho no olhar do jovem sonhador se apaga na medida em que as águas escorrem em direção ao desconhecido. SEQÜÊNCIA C: A MÚSICA E O SILÊNCIO 71 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 5.1. A CENA Na alucinante fuga de Alex e Paco em direção a sua tão sonhada terra protetora, o fio condutor que os levaria à felicidade é quebrado. Paco é baleado por seu perseguidor e o fardo das personagens ganha dimensão ainda maior, a estrada para San Sebastian parece ainda mais árdua e extensa. A seqüência inicia no interior de um carro em disparada, onde Paco agoniza no colo de Alex. O Plano Aproximado (P.A) 5 , proporciona ao espectador uma aproximidade com as personagens, o faz participar da intimidade de suas emoções e esquecer do ambiente que as envolve. Inserido na dramaticidade, o espectador assume a posição de participante da cena, sente – se um companheiro na fuga de Alex e Paco e compartilha da agonia de ambos, agora diante da impossibilidade da realização dos sonhos. Na continuidade da seqüência, o plano interno é substituído por uma panorâmica em Plano geral (P.G)6, que amplia a visão, descrevendo a proporção e a intensidade da ação. A câmera sai do interior do carro, o persegue envolto à paisagem, traduzindo a agonizante atmosfera. Assim, o expectador observa o carro de longe, cada vez mais distante, marcando desta forma a insignificância dos personagens e suas respectivas dores. E dessa infinita paisagem nos distanciamos progressivamente, nos despedindo dos jovens aventureiros de “Terra Estrangeira”. 5 Proporciona ao espectador proximidade em relação a um objeto ou pessoa ao mesmo tempo que elimina o ambiente que os envolve. Normalmente, o plano aproximado corta a figura à altura do peito. 6 Oferece uma visão bastante ampla do terreno onde se desenvolve a ação durante a seqüência. 72 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Deve –se ressaltar que qualquer recurso técnico só possui um significado, se aliado a um conteúdo. ìSÛ quando se articulam a um conteúdo, os componentes expressivos do filme, adquirem uma raz„o de existir. Um ëtravellingí por si sÛ nada quer dizer (...) o conteúdo e a express„o formam um todo. Apenas suacombinaÁ„o Ìntima È capaz de gerar a significaÁ„oî. (VERNET; 1988: 41/42) Alex e Paco partem em direção ao ponto de convergência de todas suas esperanças e devaneios em busca da integração a um mundo mais humanisticamente equilibrado onde as barreiras entre o espaço interior e o espaço exterior não existam. O sustentáculo que um representa para o outro caracteriza o processo pelo qual o homem cria seus vínculos e paradigmas na sociedade pós – moderna. A representação de um para o outro não é apenas uma referência de norteamento, mas sim uma espécie de razão para “ser”. Paco, inicialmente, possuindo como aspiração maior a carreira de ator, abre mão do sonho diante do primeiro fracasso e se apropria do sonho da mãe morta de voltar à terra natal: a Espanha. Alex, por sua vez, exausta dos próprios sonhos e sem aspirações próprias, assume para si a tarefa do amado tomando como missão deslumbrar a província que supostamente os recolherá da aflição existencial. 73 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ François Flahault (1978), estabelece uma análise objetivando compreender melhor como se dá certas representações sociais. Toda palavra e comportamento é formulado a partir de um “o que sou para você e o que você é para mim”; a ação representada, a título de troca, se manifesta através do que chamamos de efeitos de posição ou atos ilocutórios. Tais atos são, em outras palavras, as falas e atitudes que caracterizam as posições ocupadas pelos interlocutores, de forma explícita ou implícita. A primeira posição, é manifestada através de ordens ou pedidos e obediências ou concessões explícitas. A segunda só é compreendida em relação as posições que os interlocutores ocupam e ao mesmo tempo definem em seu comportamento. “Os atos ilocutórios implícitos não dependem da vontade dos interlocutores, eles não operam seus posicionamentos, ao contrário, é o posicionamento adquirido que estabelece sua identidade” (FLAHAULT; 1978 : 78,52) Deste modo, Flahault mostra como a ação implica relações de posições. Compreender representações do “eu para o outro”,ou seja, reprsentações sociais, implica conhecer a situação que define o indivíduo que os produz. A questão primordial de “Terra Estrangeira”é a eterna busca de referenciais, vários “eus” em busca de outros “eus” no intuito de estabelecer uma relação de segurança e dependência física e emocional. É notável a substituição de pontos de referência no decorrer da narrativa. Inicialmente, Paco e Alex possuem como referenciais respectivamente a mãe e Miguel. Com a morte de ambos, a angústia do “aleijamento emocional”e o posterior encontro os une, conferindo aos dois os papéis de imprescindíveis absolutos. 74 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Tal comportamento marca uma espécie de alienação de si próprio. No plano ideológico, o indivíduo pode se tornar consciente, ao detectar as contradições entre suas representações e atividades em sua vida material; ou alienado, quando há a negação da consci6encia como processo, ou seja, mantendo a alienação o indivíduo permanece em um estado de “perda”, impedido por si próprio de qualquer ação transformadora. A alienação aqui é simbolizada pela busca de um suporte no mundo exterior, um suporte físico. As personagens desencadeiam uma atitude contrária àquela realmente modificadora, saem do “eu” para encontrar respostas em pessoas e lugares em vez de mergulharem em si em busca da conscientização como seres históricos – sociais. 5.2 A MÚSICA Nessa frenética busca de auto compreensão e conhecimento é criada uma interseção entre a confusão de papéis, a perda e a poética da canção “Vapor Barato” 7 , representando o desafogo da estrangeira que para aliviar seu sofrimento devido a possibilidade da perda de mais um referencial e manter o companheiro no mundo entre o sono e o sonho, canta/ acalanta na tentativa de fazê – lo não abrir mão da saga e acreditar de fato na existência de um lar próximo; e nesta tentativa, obeservamos a quebra de barreiras entre suas palavras e a letra da música. 7 Composta em 1969. Parceria de Wally Salomão e Jards Macalé. Interpretada por Gal Costa, originalmente em 1971 no disco “Todo Vapor”. 75 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ìTalvez eu volte, um dia eu volto, quem sabe, mas eu quero esquece ñ la, eu preciso...î Diante da oportunidade da fuga e agora a perda de Paco, há a possibilidade do sentimento de vazio interno transformar – se em único referencial, e o que até então representava um território de proliferação de conflitos identidários, pode vir a ser o único porto seguro. Ao chegar ao final da estrada, possivelmente Alex se veja diante da frustrante constatação de que nada a espera, de que San Sebastian é tão somente mais um devaneio conector de seus conflitos existenciais com o mundo. A obstinação de Alex em realizar o desejo do amado (que se confunde com o seu próprio), distingue um comportamento mais sentimental do que o apresentado no início da narrativa. Alex se permite uma transparência que exterioriza sua sensibilidade e crença numa linha de fuga. Antes, não considerava sequer a existência de um lar, sentia – se inerte demais para lutar por algo. Agora, admite estar cansada, porém não o suficiente para deixar de dar a si própria e ao amado a possibilidade da felicidade. O cansaço pessoal de Alex nos remete às palavras de outro poeta da música brasileira: “Vim pelas noites tão longas de fracasso em fracasso, Hoje descrente de tudo, Me resta o cansaço. Cansaço de tudo Cansaço de mim...” (Antônio Vieira) 76 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Ao mentir, especialmente para si mesmo, dizendo: “Tô te levando para casa, meu amor...” talvez a tentativa seja de ativar no corpo e na alma resquícios de força para manter acesa a esperança de chegar ao fim da jornada e receber como recompensa o encontro consigo própria e uma terra natal onde com o esforço do trabalho cotidiano seja possível formar uma família feliz, e quiçá originar novos estrangeiros. ìVou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio.î O navio é o símbolo da viagem, da travessia; representa a viagem da vida. No cristianismo, o navio é freqüentemente relacionado com a arca de Noé, evocando a idéia de força, segurança e esperança de recomeçar uma nova vida. ìOs filhos de Israel enviam um embaixador · Schar, rei de Armor, pedindo permiss„o para atravessar as suas terras, afim de, alcanÁar a Terra Prometida. Prometem n„o se afastar pelos campos e vinhas (...) andar„o pela estrada real atÈ que as terras estrangeiras sejam deixadas para tr·s.î 8 8 Jean CHEVALIER, Alain GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p. 403 77 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Narciso Freitas de Oliveira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ A estrada é o símbolo do caminho condutor, a mais próspera felicidade, é o paradoxo aos caminhos tortuosos que os personagens vinham percorrendo. A cada metro acreditam estar deixando para trás todo seu estrangeirismo. Porém, é na mesma promissora estrada que parece ter fim o sonho do casal. Juntos, talvez não consigam ultrapassar a fronteira entre a realidade e o sonho e vislumbrar a tão sedutora Canaã, a terra onírica, que emana leite e mel, e onde as casas se confundem com pedras, elementos simbologicamente ligados ao sedentarismo e segurança dos povos. Nelas, encontravam a obra – prima para construir suas moradas e abrigos do exterior. A pedra é, ainda, símbolo da terra – mãe, pois de acordo com algumas tradições,as pedras preciosas “amadurecem” na rocha para depois “nascerem”. Portanto, a pedra é e dá vida. E é por vida que eles agora lutam, numa regressiva tentativa de “retorno ao ventre”, buscam o refúgio uterino chamado San Sebastian, onde desfrutariam de um colo confortável e acolhedor e seriam embalados na mais suave e encantadora canção de ninar. Entretanto, o destino parece negar esta dádiva a Paco, oferecendo – lhe como última canção, as palavras de dor de Alex. A esta, resta a permanência em seu já conhecido labirinto e a espera de mais um referencial que a resgate de sua crônica desesperança. ... E a luz se acende “Terra Estrangeira” é um filme reconhecido internacionalmente devido sua excelente produção e sensibilidade ao mostrar o fenômeno do estrangeirismo. Como prova de reconhecimento, o filme recebeu vários prêmios em festivais como 78 Uma leitura simbólica do filme Terra Estrangeira ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ San Sebastian Film, London Films, Paris International Fórum, Sundance Film, entre outros; reforçando tratar –se de uma produção que, assim os seus personagens, dispensa passaporte. Meu objetivo foi explorar seus simbolismos literário e cinematográfico, condensando – os em uma leitura pessoal. Como aluno de Letras, pude exercitar minha capacidade de compreensão e interpretação de uma narrativa literária em duas formas de manifestação: escrita e visual. A partir da pesquisa, a prática da associação de conteúdos, a priori distintos, deixou evidente a necessidade do profissional que trabalha intimamente com os dados significado – significante, em estabelecer conexões entre os diversos conhecimentos adquiridos no decorrer de sua vida profissional, mostrando – me ainda que a sensibilidade para além do ódio e ler “entre – linhas” é indispensável na vida de um leitor. Sendo assim, “Terra Estrangeira”, além de ser um trabalho acadêmico no qual pude mostrar um pouco de minha leitura de mundo, foi ponto de referência para um estudo que resultou em uma melhor compreensão do sentimento de estrangeirismo permanente e o porquê da existência de uma “San Sebastian” dentro de muitos de nós. 79 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BAZIN, André. O Cinema – Ensaios. São Paulo, Editora Brasiliense, 1991. MARNER, Terence St. John. A Direção Cinematográfica. Lisboa, Edições 70, s.d. METZ, Christian. Linguagem e Cinema. São Paulo, Editora Perspectiva, 1980. VANOYE, Francis e Goliot – Leté, Anne. Ensaio sobre a Análise Fílmica. Campinas, HALL, Stuart. Identidade Culturais na Pós – Modernidade. Rio de Janeiro, Editora DP & METZ, Chistian. A Significação no Cinema. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977. RIBAS, Francisco. Pedaços da alma. Curitiba, Editora Reproset, 1990. CHEVALIER, Jean e Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. São Paulo, Editora FLAHAULT, F., La Prole Intermédiaire. Paris, Du Seuil, 1978. 80 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ANEXO 3 - SEQÜÊNCIA A: DISTÂNCIA 81 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 4 - SEQÜÊNCIA B: NO SAL DAS ÁGUAS 82 SEQÜÊNCIA C: A MÚSICA E O SILÊNCIO 83 84 UM ESTUDO DE TRANSFERÊNCIA DE INTENSIDADE APOLO MOCOTO H INO O trabalho “UM ESTUDO DE TRANSFER NCIA DE INTENSIDADEî, desenvolvido e apresentado pelo aluno APOLO MOCOTO HINO, como Trabalho de Graduação para conclusão do Curso de Licenciatura em Letras, apresenta um estudo e uma pesquisa inéditos nesta IES e, muito provavelmente, nas academias do Estado do Pará; aspecto este que já o recomenda para publicação. Contudo, vale ressaltar o trabalho de lingüísta, próprio do autor, e o denodo com que se lançou à pesquisa de um tema cuja bibliografia ainda é incipiente face ao tipo de investigação realizada, ou seja, o trabalho com os traços suprasegmentais em lingüística ainda é, no Brasil, bastante polêmico e realizado por poucos estudiosos em função de, nos últimos anos, os estudos da linguagem terem se concentrado no modelo grafocêntrico, típico do exigido por nossa sociedade atual, como diz CAGLIARI (1980), “os traços suparasegmentais ainda são entendidos como meros adornos, verdadeiros enfeites da língua e, assim sendo, desconsiderados por muitos fonólogos”. Entretanto, sem compreendermos as noções e usos de ritmo, intensidade, sílabas, moras, entre outros traços, que revelam emoções, sentimentos, estados intencionais, estaríamos negando a característica básica do ser humano que é a interação pelos atos de fala e suas características na busca de sentido. Assim sendo, sem nenhum receio, recomendo a publicação deste trabalho. Prof. Ms. Hilton Silva 85 Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ A dinâmica da língua é um dos aspectos que o lingüista há de levar em consideração. Sem um registro lingüístico, fica difícil definir qual seria a identidade de nossas transformações, qual o momento histórico em que estaria ocorrendo esse processo. É dentro desse pensamento que essa pesquisa procura objetivar quais são as causas e efeitos que determinadas mutações sincrônicas podem acarretar a nossa língua. Longe dos conceitos estabelecidos pelos livros acadêmicos, buscamos nesta pesquisa renovar ou reavaliar os conceitos que, muitas vezes, são defasados frente às transformações por que passam a língua. Cada falante tem sua interpretação diante de um ato de fala, partindo tanto dele quanto de seu(s) interlocutor(es), por isso é mister estarmos atento para as ocorrências que provocam determinadas alterações em nosso diálogo. Há várias concepções enunciativas do sentido, tornando-se necessário distinguir em cada enunciado aquilo que se apresenta público ou aberto, ou seja, os argumentos que o locutor apresenta para induzir o alocutário a determinadas conclusões, as quais são explicitamente apresentadas pelo locutor e que são formadas do sentido, daquelas que não o são, como também o reconhecimento da existência de enunciações de forma velada, ou seja, por manipulação. As primeiras são determinadas pela argumentação das frases, enquanto que as segundas são originárias de certas manobras que o discurso torna possível. As primeiras baseiam-se na estrutura argumentativa da frase, enquanto que as segundas são influenciadas pelos mecanismos de interpretação particulares a cada situação, por meio de raciocínios, intenções, reações dos interlocutores. A diferença entre lingüístico/ não- lingüístico é uma distinção entre mecanismos semânticos e os mecanismos de interpretação particular em cada situação de discurso. 86 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Segundo Ducrot (1980), a enunciação é um evento cuja descrição está feita no interior do próprio enunciado, daí que a situação passa a ser um conceito lingüístico, isto é, a enunciação só inclui aquilo que é lingüisticamente produzido como situação. Dessa forma, há dois mecanismos retóricos que se dividem quanto à presença ou não do nível lingüístico. Quando não pertence ao nível lingüístico temos a ironia, a sátira, a insinuação, o sarcasmo, etc, através de termos como: dar a entender, deixar entender e subentender. Deixar entender não implica em nenhuma intenção comunicativa, aberta ou velada do locutor; é uma enunciação por si mesma. Dar a entender ou insinuar é um ato que põe em jogo uma intenção comunicativa particular do locutor, apresentada de maneira velada. Subentender, por sua vez, opõe-se a ambos. Um locutor subentende que p, se dá a entender que p, com a intenção de comunicar, por meio de sua enunciação, algo que, de qualquer modo, o enunciado implica (deixa entender); porém, tal intenção é pública, isto é, constitui objeto de um ato de comunicação que só se realiza por meio do reconhecimento por parte do alocutário, é o caso, segundo o autor, dos atos de fala indiretos ou derivados). A busca de persuadir o outro já foi definida por Aristóteles como retórica, ele defendeu a tese de que quem fala tem como objetivo principal persuadir outras pessoas, segundo o seu ponto de vista. O objetivo do ser humano é alterar as relações originais existentes entre o organismo de cada indivíduo e o ambiente no qual esse se encontra. Em outras palavras: é a 87 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ redução da probabilidade de que sejamos alvo de forças externas, e aumentarmos a possibilidade de que nós mesmos exerçamos força. A principal característica na comunicação, influenciarmos outros, o nosso ambiente, é nós mesmos, é sermos determinantes. Em suma, nós nos comunicamos para influenciar com intenção. Quando se analisa a comunicação, temos vários pontos a serem analisados: o que desejava o comunicador como resultado de sua mensagem? Em termos de influência o que ele desejava? O que outros pensariam a respeito de sua mensagem? Qual a resposta que ele procurava obter? Ao se analisar o diálogo, temos que levar em consideração três elementos: quem fala, o discurso e a audiência. Em outras palavras: 1) a pessoa que fala; 2) o discurso que faz e 3) a pessoa que ouve. Conceituamos a comunicação como um processo e afirmamos que é dinâmica, evolutiva, por isso seria vantajoso se fizéssemos uma outra análise sobre comunicação, sob a ótica de processo, pois em qualquer contexto, fonte e receptor são interdependentes. Todavia, o conceito de interdependência é em si complexo e pode ser definido: A e B s„o independentes se, e somente se, nenhum influenciar outros. Em outros a relação de dependência ocorrerá entre A e B, A influencia B, mas B não influencia A, ou vice-versa. A interdependência pode ser entendida como uma seqüência de ação e reação. Temos também a Empatia que é o processo pelo qual nos projetamos nos estados internos ou personalidades de outros, a fim de predizermos como se comportarão. Inferimos os estados internos dos outros 88 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ comparando-os com as nossas próprias atitudes e predisposições . A relação se dá quando tentamos pôr-nos no lugar de outra pessoa, perceber o mundo como ela o percebe, possibilitando a criação de um conceito de pessoa que utilizamos para tirar inferências sobre os outros. Durante o ato comunicativo, passamos das inferências para a adoção de um papel de nossas previsões. Todos esses fatores influenciam na transferência de intensidade, pois o falante, de acordo com suas intenções, altera por meio de sua produção fônica os seus traços suprasegmentais. I) REFERENCIAL TEÓRICO Este trabalho versa sobre a natureza dos traços supra – segmentais, os quais incluem elementos que estão acima dos segmentos lineares, cuja descrição não se faz em termos dos movimentos dos articuladores, mas sim em termos da ação dos músculos respiratórios que aumentam ou diminuem a energia do fluxo de ar, resultando em durações, freqüência e intensidade, estes são termos acústicos que se correlacionam perceptivamente em quantidade, altura e volume. A denominação “supra-segmental” se deve ao fato da dificuldade do isolamento do mecanismo fisiológico envolvido na produção. Tendo como exemplo, que a maior quantidade é explicada a um esforço suplementar do ar pulmonar pela ação dos músculos respiratórios e ajustamentos na laringe. No entanto, estes processos também resultam em tom mais alto e maior volume. Os elementos supra-segmentais possuem uma outra característica que é a relatividade: diz-se que um som é 89 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ longo em relação a outro menos longo, que um tom alto no homem é sempre mais baixo nas mulheres, ocasionado pela tessitura da voz dos homens mais baixa que das mulheres. Segundo Dubois (1993:577), elemento suprasegmental é uma “característica mais extensa que o fonema, tais como o acento, a entonação e a duração”. Na língua portuguesa, o termo tonicidade não é adequado a nossa pragmática lingüística, pois o termo é uma denominação errônea (Mattoso: 1994) da herança da gramática grega que é uma língua tonal, e o tom constitui-se em um fator de distintividade, o que para nós vem a ser o icto, que é o elemento distintivo. E quando se fala em tonicidade, temos de levar em consideração que o tom tem a função distintiva em português em nível frasal, diferenciando as frases declarativas das exclamativas. A tonicidade envolve também o termo altura, e este se divide em línguas de tom de contorno e línguas de tom de nível. No 1º, o tom na sílaba não é estável, mas muda gradativamente num ascendente ou descendente. Já em sílabas de tom de nível, o tom de cada sílaba se mantém fixo em seu nível alto, médio ou baixo. Dessa forma, o termo tonicidade trata de um outro traço prosódico que não faz parte do sistema lingüístico no qual estamos envolvido. Trata-se também do termo que, segundo Callou (1995:41), não é um segmento e sim uma qualidade que se superpõe a certos segmentos, evidenciado quando produzimos diferentes vocábulos, como /’sabya/, / sa’bia/ e /sabi’a/ ‘sabya/, /sa’bia/. Essa distintividade é constatada em vocábulos, que podem ser constituídos por um só item lexical: “pé, mão, casa”, como por mais de um item lexical, formando um grupo de força, ou seja, um conjunto de palavras que tem um vocábulo mais 90 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ intenso que outros: / toduzuò’diaò/. O termo distintividade é sinônimo, também, de funcional, pertinente ou relevante e se refere à unidade mínima, contrastiva que distingue os elementos lexicais. Ele serve para caracterizar as infinitas possibilidades humanas de articulação e constata que um mesmo indivíduo, ao não realizar o mesmo som de maneira idêntica, não impede que se identifique sempre determinado som de uma língua. Martinet (apud Callou, 1995:35) define: TraÁo distintivo ou pertinente È aquele traÁo fÙnico que, sozinho, permite distinguir um signo, uma palavra ou um enunciado de outro signo, palavra ou enunciado. Há dentro do grupo de força um vocábulo que superpõe aos outros. Esse fenômeno é produzido também na modalidade escrita, baseando-se nas pausas acentuais de um grupo de força ao outro. Temos como exemplo a enunciação /’muytuyzamigus/for ãwa’festa/, aqui se forma um grupo de respiração, quando o falante adequa, de acordo com a respiração, de modo que a enunciação fique inteligível aos interlocutores. Depreendemos nessa ocorrência um sintagma de dois ou mais vocábulos que dão à frase um conjunto fonético significativo. No primeiro momento, temos a formação do sujeito e logo em seguida a formação do predicado e, nesse intervalo, tem-se uma pausa respiratória, é quando o enunciador irá 91 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ articular foneticamente outros vocábulos de acordo com o seu pensamento. Dessa forma, há uma sílaba predominante dentro do vocábulo, que só é possível, graças à emissão central que é a vogal, como principal característica na articulação fonatória, tudo isso possibilitado pelo tom melódico da frase, que fornece à fala a musicalidade, logo a vogal é tom puro, periódico, enquanto que as consoantes são ruídos, não-periódicas. A sílaba (Mattoso: 1997, 218) È a emiss„o vocal assinalada por um ·pice de abrimento articulatÛrio e tens„o muscular, que corresponde ao fonema sil·bico, e pode ser precedido de fonemas assil·bicos de abrimento e tens„o decrescente . Desse encadeamento articulatÛrio resulta uma percepÁ„o acústica de unidade com um segmento fÙnico mÌnimo capaz de constituir uma enunciaÁ„o ling¸Ìstica. Visto que o ·pice de abrimento articulatÛrio corresponde, do ponto de vista acústico, a um ·pice de sonoridade, ou perceptibilidade acústica, a sÌlaba, assim defi- 92 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ nida, diz-se sÌlaba sonora (auditiva). Em princÌpio ela È emitida num único impulso de expiraÁ„o, mas num sÛ impulso tambÈm de expiraÁ„o, mas tambÈm num sÛ impulso tambÈm se podem articular duas sÌlabas sonoras, que ficam assim reunidas numa única expiratÛria ou din‚mica. Pode-se fazer uma intertextualidade com Callou (1995:29): Do ponto de vista articulatÛrio, a sÌlaba, segundo alguns autores, corresponde a um acrÈscimo da press„o do ar expelido dos pulmões pela atividade de pulsaÁ„o dos músculos respiratÛrios que faz com que a saÌda do fluxo de ar n„o seja contÌnua, mas em jatos sucessivos. Do ponto de vista da percepÁ„o, considera-se a cadeia sonora como composta de aclives, ·pices e declives de sonoridade, cada sÌlaba sendo 93 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ constituÌda de um ·pice, que È o seu núcleo ou centro ocupado por sons de alta sonoridade, como, por exemplo, as vogais. Os aclives e declives constituem ìvalesî de sonoridade que determinam as fronteiras sil·bicas, suas margens, lugar preferencial das consoantes. Conclui-se que a sílaba é a emissão articulatória e possui um centro silábico constituído pela vogal, graças à articulação fonatória ou a fonação, que segundo Mattoso (1986:11) é: O ato humano de emitir sons vocais. Daí também, a emissão feita, quando considerada apenas sob o seu aspecto articulatório ou acústico, sem se levar em conta o seu valor de forma lingüística, que reúne um significante e um significado. A fonação considerada em seu intento significativo, a serviço da comunicação, passa a ser a fala. Afirma, por sua vez, Callou (1995:20): Resumindo, por processo fonatÛrio, ou fonaÁ„o, entendem-se os diversos estados da glote e conseq¸ente excitaÁ„o acústica da corrente de ar ao passar pelas cordas vocais. 94 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ A intensidade de um som vem determinada pela amplitude das ondas sonoras. Depende da força expiratória com que se pronuncia um som. E esta força expiratória que proporciona o acento de intensidade é chamada icto. Como pudemos observar em /sabi’a/, sa’bia/ e /’sabya/, o icto implicou em uma mudança semântica, nesse caso, quando ele funciona como elemento distintivo, chama-se de acentema. II) TRAÇOS SUPRA-SEGMENTAIS: Segundo Silveira (1988:31): A intensidade È o efeito acústico que decorre da forÁa (press„o) do ato expiratÛrio, produzindo maior ou menor afastamento da posiÁ„o de repouso das cordas vocais. Pela intensidade o ouvido percebe os sons fortes e fracos: por isso mesmo a intensidade relaciona-se ‡ amplitude, que È a dist‚ncia entre a posiÁ„o de repouso e a de afastamento. Quanto maior for a intensidade, maior a amplitude, e viceversa. 95 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Um outro efeito é a duração, que é a quantidade de tempo vista no processo da vibração das cordas vocais. Abstraem-se, por meio dessa característica acústica, os sons longos e breves; no caso do Português, a duração é suprasegmental e constitui variantes individuais estilísticas ou regionais. Como afirma Dubois (1998: 293, 294): Freqüência de um som È o número de ciclos realizados por um número de tempo. A freq¸Íncia se calcula, em geral, em ciclos/segundo, ou hertz. Sendo o perÌodo o tempo que leva o corpo vibrante para efetuar um ciclo, a freq¸Íncia corresponde ao inverso do perÌodo. A freq¸Íncia de vibraÁ„o de um corpo depende de suas qualidades especÌficas, entre outras, se trata de uma cavidade, de seu volume, de sua forma, do tamanho da abertura com relaÁ„o ao volume. Eis porque a modificaÁ„o da forma do canal bucal acarreta variaÁões da frequÍncia do som da lÌngua (...). 96 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ A altura sonora é o resultado da freqüência, ou seja, do número de vezes que as cordas vocais vão e voltam, por segundo, ultrapassando sua posição de repouso. Freqüências iguais resultam no mesmo tom. Em decorrência da altura, será pertinente para a descrição das línguas tonais. No português, idioma de icto, grave e agudo são variantes individuais ou estilísticas. Segundo Lopes (2000: 121): A altura relativa da entonaÁ„o est· codificada nas lÌnguas indo ñ europÈias para indicar sobretudo a modalidade funcional ñ sem‚ntica da frase. AtravÈs dela se expressa o sentimento Ìntimo do falante, seus estados de ‚nimo, a raiva, o desprezo, a ironia, o espanto, enfim, todas as informaÁões suplementares que Jakobson englobou sob o rÛtulo de funÁ„o emotiva (Cf. 1. 12. 4. 3). Temos como divisão o tom nivelado e o tom de contorno. E quando se trata de tom nivelado, há 7 níveis tonais •O tom 7: utiliza-se em uma conversa normal, encontrado principalmente na primeira sílaba átona do grupo tonal e na sílaba tônica proeminente. •O tom 6: usa-se a uma altura aguda e inclui o 97 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ parâmetro força para demonstrar surpresa, espanto, nas tônicas salientes de frases. •O tom 5: este tom meio alto se atrela à altura da sílaba tônica proeminente de uma frase interrogativa, que expressa interesse, com o objetivo de pedir confirmação de uma informação. •O tom 4: este tom relaciona-se à altura da sílaba tônica proeminente mais comum no final do grupo tonal de meio de frase, como também na sílaba tônica proeminente da frase interrogativa. •O tom 3: o tom meio – baixo é usado em geral para pedido de confirmação em uma pequena diferença de altura do tom da frase declarativa normal, mas com a intenção de alterar-lhe o caráter puramente assertivo. •O tom 2: este tom corresponde à altura da tônica proeminente do grupo tonal final de uma frase declarativa normal. •O tom 1: corresponde à altura da sílaba tônica proeminente de uma frase declarativa, denotando comumente advertência ou ausência de alternativa. Um grupo de tom de contorno distribui-se em: •Tom descendente estreito (DE) e tom ascendente estreito (AE): o tom descendente estreito caracteriza-se pela mudança suave de altura na sílaba em direção a uma altura mais baixa. •Tom descendente largo (DL) e tom ascendente largo (AL): o tom descendente largo caracteriza-se pela mudança suave de altura na sílaba em direção a uma altura mais baixa. •O tom descendente por salto (DS) e tom ascendente por salto (AS): o tom descendente por salto (DS) 98 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ caracteriza-se pela forma descendente brusca com início mais forte comparando-se ao ditongo tonal, porque o início e o final são mais audíveis. •O tom descendente breve (NDB) e tom nivelado ascendente breve (NAB): o tom nivelado descendente breve (NDB) caracteriza-se por uma parte inicial; nivelada, com uma duração menor do que a parte nivelada do tom nivelado descendente longo, e por uma parte descendente final estreita. •O tom nivelado descendente longo (NDL) e tom nivelado ascendente longo (NAL): o tom nivelado-descendente longo caracteriza-se por uma parte inicial nivelada do tom NDB. A parte final é descendente estreita. •O tom descendente ascendente estreito (DAE) e tom ascendente descendente estreito (ADE): o tom descendente ascendente estreito (DAE) caracteriza-se por um movimento melódico descendente, seguido por um movimento melódico ascendente estreito. A distância entre o início do movimento melódico e a mudança desse melódico é menor que para o tom descendente ascendente largo. •O tom descendente ascendente largo (DAL) e tom ascendente descendente largo (ADL): caracteriza-se pelo movimento melódico descendente, seguido de movimento melódico ascendente curto. Do seu início à mudança de direção a distância é mais larga que no tom DAE. O acento é o realce de uma sílaba dentro de uma palavra, tomada como unidade acentual. Diferente dos tons, que possuem um valor paradigmático opositivo, pois distinguem morfemas e lexias, o acento realiza-se apenas sintagmaticamente e seu valor é contrastivo. Por si só o acento é incapaz de distinguir palavras de sentidos diferentes. Ele individualiza apenas sílabas, 99 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ operando sempre numa seqüência mínima de duas, das quais uma é tÙnica ou acentuada, e a outra é ·tona ou não – acentuada. Fala-se, por isso, em acento culminativo. Diferentemente, também, dos tons que se apresentam num número igual ou superior a dois, o acento é único: as línguas tonais possuem dois ou mais tons opositivos, mas as línguas acentuais possuem um único acento. As regras que estabelecem o lugar do acento nas palavras variam de língua para língua. Há línguas, como o húngaro, em que o acento se encontra fixado invariavelmente na primeira sílaba da palavra, ou, como o francês, na última silaba da palavra, ou, como o polonês, na antepenúltima. Face a essas línguas de acento fixo, há por outro lado, línguas de acento livre, como o português, ou o latim, em que o lugar do acento é imprevisível. Se as línguas de acento fixo oferecem a vantagem de demarcar com precisão as fronteiras entre as “palavras” da frase, cumprindo-se nelas às maravilhas, a f u n Á „ o demarcatÛria do acento, as línguas de acento livre, em contrapartida, podem manejar o lugar do acento como um recurso extra para distinguir palavras de sentidos diferentes. O que tem valor distintivo nas línguas de acento livre, nesses casos, não é o acento em si, pois se trata sempre de um e mesmo acento; é o lugar do acento, a sua distribuição no corpo da palavra. E essa só pode ser apreendida através da função sintagmática do contraste entre esquemas acentuais. Essa distinção, portanto, não é fonológica; num e noutro caso trata-se dos mesmos fonemas, e não de fonemas diferentes. Não há, aí, confrontação, em nossa memória da língua, com unidades do código in absentia na cadeia, o que caracterizaria a função de oposição. 100 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Segundo Dubois (1998: 496): Quantidade do som È sua duraÁ„o de emiss„o. Distingue-se: (1) a quantidade objetiva (mensur·vel), que pode ser calculada para cada som concreto e depende das qualidades intrÌnsecas dos sons e de certos fatores tais como a vitalidade da fonaÁ„o e do contexto fonÈtico, e (2) a quantidade subjetiva que possui uma funÁ„o ling¸Ìstica e caracteriza o fonema. As lÌnguas que utilizam ling¸isticamente a quantidade opõem pelo menos, dois tipos de fonemas, cuja diferenÁa de duraÁ„o È suficiente para ser percebido pelo ouvido e suster as diferenÁas de significado. Fonema longo é o fonema que se diferencia tanto fonética como fonologicamente através de uma duração superior. Lingüisticamente um fonema longo, num dado contexto fonético, tem uma duração suficientemente superior à do fonema breve, a fim de que o falante tenha a nítida impressão da distinção. As “longas” são em geral mais longas que as “breves” aproximadamente 50%. Pela oposição entre uma vogal longa e 101 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ uma vogal breve, o latim distinguia palavras como venit, “ele vem”, e venit, “ele veio”. Essa oposição existe em francês, mesmo estando em via de extinção: mestre [metr], “pôr” – maitre [me:tr]. “mestre”. Uma consoante longa é também geminada quando é cindida em duas por uma fronteira silábica (por exemplo, em italiano fatto, “feito” – fato, “acaso”). Podemos perceber, desta forma, que o tom em nossa língua portuguesa constitui-se em um fator de distinção quanto aos significados de frases declarativas, interrogativas, exclamativas, atos locutórios dos atos ilocutórios. Enquanto que, nas línguas tonais, o tom serve de distinção de significado quanto aos vocábulos, o que no português isso não é relevante quanto à distintividade, utilizando-se apenas para exprimir a emoção, o estado do falante. Temos de levar em consideração, também, a tessitura que é o conjunto dos sons que abrangem uma parte da escala geral e convêm melhor a uma determinada voz. III) LINHA TENDENTE: A língua é um fenômeno instável que se modifica no decorrer do tempo. Em vista disso, hão de se levar em conta as modificações de ocorrência da transferência de intensidade, sem implicações semânticas. Os estudos que se fizeram até agora pelos lingüístas não atentaram para este fenômeno, tendo-se observado apenas a natureza dos traços segmentais e suprasegmentais. Além disso, faz-se necessária uma reavaliação dos conceitos herdados de maneira errônea da gramática grega dos termos tonal, ocasionando as denominações “oxítona”, “paroxítona” e “proparoxítona”, para que se estabeleça os 102 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ conceitos de acordo com a nossa natureza prosódica. A nossa língua é uma língua intensiva, pois em nossa enunciação a musicalidade não é acentuada, como nas línguas tonais, a exemplo do chinês, do grego, e de várias línguas indígenas existentes aqui no Brasil. Nestes casos, há uma sílaba fortemente acentuada acompanhada de uma musicalidade. E quando se diz musicalidade da fala, cita-se a entonação, que é um fenômeno da fala do qual o falante tem clara intuição: “pela maneira como falou ...”, “pelo seu tom de voz”, “do jeito que você falou, eu tinha entendido que ...”. e até mesmo “pela entonação da sua voz...” são algumas das expressões comumente usadas e que manifestam esse conhecimento intuitivo. E um dos fatores que contribuem para este fenômeno é a natureza do ato de fala, que pode ser locutório ou ilocutório. O ato locutório representa a enunciação normal de um falante, enquanto que no ato ilocutório, há uma intenção de alterar o receptor através de uma enunciação acentuada de algum vocábulo. A língua fundamenta-se pela argumentatividade, pois o homem dotado de razão e vontade, avalia, julga, critica, constantemente, formando juízos de valor. E, por meio do discurso, ele tenta influir sobre o comportamento do outro ou tenta compartilhar das mesmas opiniões. Este é o ato de argumentar, ou seja, orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia. Temos, assim, duas maneiras de argumentar: o ato de convencer e o ato de persuadir. O primeiro é baseado na razão, através de um raciocínio estritamente lógico, como também por meio de provas objetivas, podendo atingir uma totalidade, possui um caráter genuinamente demonstrativo e atemporal, este ato conduz a certezas; já o ato de persuadir procura conquistar a 103 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ vontade, o sentimento do interlocutor, por meio de argumentos plausíveis ou verdadeiros, contendo um caráter ideológico, subjetivo, temporal, direcionando-se a um grupo particular, cabendo a esse grupo a função da inferência. Segundo KOCH (1987:21): Se a frase È uma unidade sint·tico ñ sem‚ntica, o discurso constitui uma unidade pragm·tica, atividade capaz de produzir efeitos, reaÁões, ou, como diz Benveniste (1974), ìa lÌngua assumida como exercÌcio pelo indivÌduoî. Ao produzir um discurso, o homem se apropria da lÌngua, n„o sÛ com o fim de veicular mensagens, mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que È por sua vez constitutivo do prÛprio EU, por meio do jogo de representaÁões e de imagens recÌprocas que entre eles se estabelecem. 104 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Com isso, a relação entre os interlocutores é possível, pois os dois interlocutores possuem cada um o seu EU. Cada enunciado possui uma multiplicidade de significações, explicado pelo fato do falante estar com múltiplas intenções, por isso não teria sentido dar uma única e verdadeira interpretação. Daí o sentido de um enunciado se estabelecer pelas relações interpessoais que se estabelecem no momento da enunciação, pela estrutura do jogo de representações em que entram o locutor e o alocutário, quando na e pela enunciação atualizam suas intenções persuasivas. Sobre este fenômeno, Ducrot e Vogt destacam em seus trabalhos que o sentido lingüístico deve ser analisado não apenas como identidade ou diferença entre a estrutura do fato e a estrutura do enunciado utilizado para descrevê-lo, ou seja, em termos de verdade ou falsidade (o dizer), mas, a direção, as conclusões, o futuro discursivo, enfim, o objetivo para onde esse enunciado aponta (o mostrar). E essa inter-relação entre o dizer e o mostrar, que permite a relação a tríplice linguagem ñ homem ñ mundo, o que acarreta em ideologia na linguagem. Interpretar significa que a todo momento, no processo de comunicação, estamos nos fundando na suposição de que quem fala tem determinadas intenções, buscando a intelecção na captação dessas intenções, o que deixa em aberto uma multiplicidade de interpretações. A alusão, a ironia, o “blefe”, ocorrem com freqüência, considerados como atos derivados de fala, como também como aspectos constitutivos do uso normal da linguagem. Podemos explicitar o ato perlocutório, que o locutor produz por intermédio de suas enunciações, os atos de humilhar, ofender, atemorizar, gabar e outros, enquanto que o ato ilocutório é um ato praticado no e pelo discurso, ou seja, uma entidade totalmente lingüística. 105 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ A respeito do “falar”, “dizer” e “mostrar”, Koch (1987: 30) explica-nos de forma plausível: “O falar consiste na produção de frases, decorrentes da capacidade do falante de produzir determinados sons de acordo com determinadas regras gramaticais, isto é, de comportar-se gramaticalmente de acordo com essas regras. É o nível gramatical, a que se refere Benveniste (1966), correspondendo ao ato locucionário de Austin (1962). A frase é uma entidade fono – morfo – sintática, decorrente das leis segundo as quais os signos se combinam numa dada língua. O dizer consiste em produzir enunciados, estabelecer relação entre uma sequência de sons e um estado de coisas. O enunciado é uma entidade semântica. O mostrar está ligado à enunciação. Visto à luz do processo de enunciação, o enunciado passa a ter um sentido, que incorpora o processo de significação e mostra a direção para a qual o enunciado aponta, o seu futuro discursivo”. IV) CONTEXTO DA COLETA DE DADOS A coleta de dados se deu por meio da reprodução da situação de discurso sem qualquer tentativa de indução. A coleta se procedeu espontaneamente desprovida de qualquer gravador ou fita para que, desse modo, o caráter espontâneo da fala do informante se desenvolvesse na sua mais genuína naturalidade. O único caso em que não se utilizou a reprodução da situação de discurso foi o referente à música da cantora e compositora Marisa Monte, que, por tratar-se de uma gravação em CD, dispensou a reprodução. 106 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 1) /vo’se’e’paresidu’kn’sew’pay/ Quando eu estava em meu local de trabalho, no armarinho, apareceu uma conhecida nossa que há algum tempo não nos visitava. Quando ela me viu, percebeu a minha semelhança genética com o meu pai, proferindo a frase citada. No dia seguinte, reproduzi uma situação de discurso, onde eu a indaguei o que ela havia falado logo no momento em que ela havia chegado, para confirmar a palavra transferida. 2)/’paóL’di¦a’la’beòteóL/ Essa frase foi enunciada em um bate-papo descontraído na nossa roda de amigos, quando de repente um amigo nosso emitiu uma opinião sem nexo, e, ao mesmo tempo cômico. Como resultado uma frase imperativa no intuito de advertência. Logo após ele ter emitido essa frase com um vocábulo transferido, perguntei-lhe o que foi que ele havia pedido o outro fazer, e aí eu confirmei a frase ouvida. 3)/’uaò’pekituo’óaw’tëy’a’póepõdeóãsyL’ëyrela’sãw’awaò’p ekituiò’kóitu/ Sabe-se, como estudante e pesquisador constante, que a Lingüística é a ciência que estuda a língua e a linguagem humanas; conclui-se dessa forma que a modalidade oral tem a supremacia em relação à modalidade escrita, pois a fala é inerente ao ser humano, sendo a escrita o privilégio de muitos, porém não de todos. E, numa dessas aulas de Lingüística, o professor dessa disciplina proferiu essa afirmativa, alterando, possivelmente inconscientemente, a intensidade do vocábulo 107 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ “preponderância”. Imediatamente indaguei-lhe qual a relação que havia entre os dois componentes da língua com o objetivo dele repetir a frase com o vocábulo transferido. 4) /’mïhïnu:’póeòtatë’sãw/ É bastante comum que o ser humano em fase infantil não estabeleça para si mesmo uma consciência que impeça muitas vezes o seu comportamento inadequado diante de seus responsáveis. E a expressão acima registrada foi um caso de uma professora de ensino fundamental, ao ministrar a sua aula, ficou bastante irritada ao perceber que um de seus alunos não a obedecia, depois de tantas petições carinhosas. Essa ocorrência eu registrei quando estagiava em uma escola pela disciplina Prática de ensino. Ao término dessa aula fui até ela e comentei que foi um dia muito irritante para ela por causa dos alunos, por isso houve uma frase que eu havia me assustado e pedi que ela repetisse a enunciação transferida, para a partir desse momento eu anotar mais um dado para a minha pesquisa. 5) /mã’i::’ew’k eóu/ Esta frase desiderativa que não é classificada oficialmente pela nossa gramática foi registrada quando participava de um aniversário e, o filho de uma conhecida, ao cometer vários atos que desagradaram a mãe dele, pediu insistentemente algo para satisfazer algum desejo. Porém, essa progenitora foi intransigente em relação ao pedido do filho, por isso ele tentou de uma forma bem afetiva, tentar conquistar o perdão proferindo de forma bem afetiva o vocábulo “mãe”, inconscientemente sofresse transferência de intensidade. Imediatamente para confirmar a ocorrência pedi que ele persistisse no seu apelo. Dessa forma pude registrar e ao voltar a minha casa somei mais este dado. 6) /’eli’takü’ma’fõmi/ 108 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ A ocorrência registrada aconteceu quando eu estava em um restaurante por quilo e deu-se em virtude de um apelo de um amigo meu que intercedeu pelo outro amigo para pedir uma refeição a uma pessoa que estava dispondo de um prato um tanto quanto farto em relação aos demais que estavam no mesmo restaurante. Esse amigo chegou com essa pessoa e, para mostrar a gravidade da necessidade de preencher o vazio do amigo, enfatizou o artigo indefinido feminino “uma”. Ao término da refeição comentei o tom de destaque que ele havia enfatizado e pedi que ele repetisse a frase, pois eu aleguei que eu não havia entendido corretamente. 7) /’sobaò’tãti’iòpehtu/ A campanha política se reveste de várias roupagens quando os candidatos pretendem conquistar o voto do eleitorado. E numa dessas tentativas, ocorrem várias situações cômicas, pois percebemos vários candidatos despreparados, sem o mínimo apoio intelectual que um dirigente de nossa sociedade tem que apresentar. Essa expressão foi proferida quando um candidato quis impressionar de uma forma bastante apelativa, de modo que a sua apresentação acabou bastante cômica, pois ele era desprovido de qualquer formação intelectual capaz de convencer o eleitorado. 8) /’vose’taku’todu’gaò/ Em uma escola, durante o meu período de estágio, uma equipe de trabalho foi se apresentar, porém seria apenas um representante de cada grupo que iria expor oralmente, enquanto que os outros integrantes iriam estar de prontidão para qualquer indagação ou às interferências tanto do professor quanto dos colegas de classe. E, na hora da escolha, já que não queriam o sorteio, foram escolhendo o mais “laranja”; até que 109 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ uma das integrantes enunciou a frase citada, tendo como ênfase o pronome de tratamento, no intuito de influenciar de forma decisiva a escolha, pois a decisão já se tornava cansativa. Como eram meus alunos, então para registrar, cheguei com a pessoa que praticou a transferência e falei-lhe que ela havia sido bastante enfática na imposição da escolha e pedi que me repetisse como foi que ela havia forçado a escolha do representante. 9) /’ki’golasu/ A expressão citada é bastante comum entre nós, brasileiros, pois convivemos todos os dias com esses momentos de alegria e emoção. Foi registrada essa ocorrência quando eu acompanhava pelo televisor um lance de craque resultando em um gol que foi unânime pelos cronistas esportivos da mídia como o gol mais bonito da rodada. No momento da percepção, perguntei-lhe “Que o quê?”, com o intuito dele repetir a palavra “golaço”, e dessa forma pude constatar com mais seguridade a transferência de intensidade. 10) /‘ki’aviãw/ Essa frase implica em uma certa ambigüidade, pois em nosso idioma do português brasileiro, o termo “avião” designa o transporte que sobe ao ar e possibilita uma condução mais rápida em relação aos outros meios de transporte como o ônibus, navio e trem, e em outros contextos designa algum rapaz ou moça atraente. E foi essa segunda interpretação que ocorreu quando em uma roda de amigas, uma das integrantes enunciou essa frase, exprimindo a sua emoção. Nesse instante, cheguei perto dessa garota e pedi que ela repetisse a frase, tal foi a admiração pelo rapaz. 11) /’goòtey/ 110 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ O sujeito-falante foi um aluno universitário que dificilmente conseguia obter uma nota máxima em suas avaliações. Porém nessa ocasião teve a oportunidade de expressar a alegria em decorrência de seu sucesso nessa avaliação. Aproximei-me dele e perguntei-lhe “E aí tu gostaste mesmo dessa nota?”, vindo logo em seguida a repetição “Gostei!” 12) /’paóa’pay’degwa/ Essa expressão foi enunciada por um paraense nato que ao se alimentar de pratos típicos do Pará, exprimiu essa frase, pois já algum tempo ele estava fora do território paraense, e nesse momento ele pôde se sentir em casa. E junto com ele estava a sua esposa que procedia de outra unidade do território nacional, e isso também influenciou para que ele enunciasse essa frase porque ele queria impressionar e mostrar as qualidades intrínsecas à nossa região no que tange à culinária paraense. Nessa hora para conseguir registrar o fenômeno, fingi desconhecer essa expressão e perguntei-lhe como era mesmo a expressão para que eu confirmasse o que ele havia enunciado. 13) /e’guL/ A interjeição acima proferida foi enunciada por um paraense que estava diante de uma roda de amigos procedentes de outros estados do país, e esses amigos de outros estados estavam contando as vantagens de cada estado procedente. O paraense, por sua vez, querendo também colocar os valores de sua região, quis impressionar de forma bem genuína, enunciou essa expressão desconhecida para muitos brasileiros. Cheguei-me até ele e perguntei-lhe o que ele havia dito minutos antes, uma frase que eu fingi novamente desconhecer. 14) /’ki’kãsãw/ 111 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Quando passava pelo bar perto de casa, havia um concurso entre amigos de videokê. E nessa ocasião, se sobressaiu uma música que se destacou de tal forma que até os ouvintes de uma boa distância ficaram admirados com a melodia do rapaz que cantava, de tal forma que muitos se aproximaram, e nessa ocasião, ouvi alguém dizer “Que canção!”. Devido à admiração unânime, ele transferiu a intensidade da última sílaba /sãw/ para a sílaba inicial /kã/. Para confirmar o registro do fenômeno, fui até essa pessoa e comentei com essa pessoa que de fato havia sido uma das melhores músicas cantadas naquele concurso. 15) / ’aatu’awpóefey’tuóL’ta’sëdu’müytu’dezõneòtL’kü’sew’povu/ Devido à guerra política que se trava em época de eleição entre os candidatos, o conteúdo geralmente recai sobre as mazelas dos adversários, esquecendo de propagar as suas próprias propostas. E, em uma dessas propagandas, ouvi um candidato da oposição ao prefeito afirmar que a prefeitura era muito desonesta com relação às promessas feitas durante a candidatura. E, a palavra “desonesta” sofreu uma transferência de intensidade. 16) /vãmula’bóaziw/ Durante a Olimpíada, estava assistindo ao jogo de nossa seleção brasileira de futebol. Nessa ocasião, o Brasil estava muito lento no seu setor ofensivo, de modo que o jogo tornara-se muito monótono. Até que numa hora, um companheiro nosso de bar exclamou “Vamos lá, Brasil!”. O vocábulo “Brasil” sofreu uma transferência, tal era a sua revolta diante do andamento da partida. 17) /’apÉlu/ Certo dia fui a um banco efetuar um pagamento, quando, de repente, deparei-me com uma colega minha, que 112 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ estudou comigo no Ensino Médio, há alguns anos. Devido ao tempo de ausência entre nós, ela me abraçou e enunciou bradamente: “Apolo”, transferindo a intensidade original do / pÉ/ para o /a/. 18) /’ÉlLki’belezuóL/ Pude observar este dado em uma ocasião em que eu estava em um shopping da cidade, quando passei perto de uma consumidora que estava pesquisando preço e produto. Quando ela se deparou com um produto de moda, exclamou para sua amiga que estava ao lado: “Olha que belezura”, mudando a transferência do icto /zu/ para a sílaba inicial / be/. Discretamente eu perguntei a essa senhora o que ela achava daquele produto da moda. 19) /’ewiò’kulãbey/ A transferência do verbo “esculhambar” se deu em virtude da minha colega de classe, em conversa informal, em um bate – papo descontraído, contava-nos a respeito da caixinha de formatura, na qual sua filha estava inserida. E, como normalmente acontece, houve confusão envolvendo os integrantes dessa caixinha, por essa razão, a minha colega interferiu em defesa de sua filha, afirmando-nos que deu uma “esculhambação”. Assim que ela falou, eu quis saber novamente o que ela havia feito, para que ela enunciasse a frase transferida. 20) /’mayò’du’ki’pasu’a’payòãw/ Essa passagem foi extraída da música da cantora e compositora, Marisa Monte. Devido à palavra “paixão” conter semanticamente o sentimento forte, a cantora expressou-se de forma bastante emotiva. Assim como na fala, essa transferência poderia ter ocorrido. 113 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ V) ANÁLISE DOS DADOS 1) a) “Você é parecido com o seu pai!” b) /vo’se’epaóe’sidu’kõusew’pay/ c) /paóe’sidu/ d) /vo’se’ e’paóesidu’kü’sew’pay/ Tivemos nessa ocorrência uma transferência de intensidade, visto que a carga emotiva do sujeito – falante impulsionou-o a se expressar de forma que os traços supra – segmentais do falante, tais como a quantidade, altura e volume se alterassem conforme o contexto da comunicação. Ocorreu neste fenômeno lingüístico uma justaposição fonológica, pois o que se percebe é que a transferência da sílaba paroxítona não anula a intensidade paroxítona. Nota-se claramente que as intenções entre os interlocutores se faz presente nesses momentos para expressar o grau de intimidade entre os interlocutores. Diferentemente se entre esses dois interlocutores houvesse um certo grau de distanciamento no que tange à liberdade de se expressar dessa forma. 2) a) “Pára de falar besteira!” b) /’paóL’difa’labeò’teóL/ c) /beò‘teóL/ d) /’paóL’difa’la’beòteóL/ 114 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Tem-se aqui uma enunciação imperativa, e até certo ponto, devido ao contexto registrado, um tom pejorativo pelo qual o falante quis transmitir ao seu intercolutor. Evidencia-se mais uma vez o caráter do ato ilocutório devido ao fato do falante no dizer, quer também mostrar o que perpassa o simples dizer para que o efeito de sua fala tenha um caráter marcante. 3) a) “O aspecto oral tem a preponderância em relação ao aspecto escrito”. b) / ’uaò’pekituo’óaw’tëy’apóepõde’óãsyL’ëyrela’sãw’awaò’pekituiòkóitu/ c) /póepõde’óãsyL/ d) / ’uaò’pekituo’óaw’tëy’a’póepõdeóãsyL’ëyrela’sãw‘awaò‘pekituiò’kóitu/ Houve uma transferência do icto da penúltima sílaba para a sílaba inicial por fatores de ordem enfática, pois o destaque da oralidade em relação à escrita se faz presente em toda e qualquer explanação nas aulas de Lingüística. E o vocábulo “preponderância” foi uma palavra – chave para essa explicação. Percebe-se dessa forma que o tom de destaque, o qual marca as diferentes frases na língua portuguesa, fica mais uma vez perceptível. Devido ao grau de formalismo, no qual o falante se encontra, o falante quer convencer os seus receptores, de forma que os assuntos por ele ministrado tenha uma aceitação no meio. Conclui-se dessa forma que a transferência tem uma 115 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ importância fundamental no que tange ao ambiente entre diferentes níveis sócio-intelectuais. 4) a) b) c) d) ”Menino, presta atenção!” /mï’hïnu:’póeòtate’sãw/ /mï’hïnu/ /’mïhïnu:’póeòtate’sãw/ No caso acima, constatou-se a transferência do vocábulo paroxítono para a proparoxítona, ocorrendo em posição de vocativo, agora no intuito de repreender alguém. Isto foi possível, graças ao ato ilocutório que a falante no ato da enunciação colocou em prática toda a sua carga emotiva. Expressa-se a vontade através da transferência do icto para outra sílaba. Constata-se com isso uma correlação entre o aspecto psicológico e a produção fônica resultando em diferentes tons. 5) a) b) c) d) “Mãe, eu quero” /’mãy:’ew’keóu/ /’mãy/ /mã’i::’ew’keóu/ Nesse caso ocorreu um prolongamento da semivogal em decorrência da afetividade efetuada pelo filho ao solicitar à mãe um objeto por ele desejado, no entanto, a mãe estava, no contexto, intransigente em relação ao pedido do filho. A ocorrência expõe um vocábulo em posição de vocativo. Tanto na sintaxe quanto na fonologia, o vocativo está situado isoladamente. Não há nenhuma relação que o ligue a 116 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ outros componentes da enunciação. Nota-se que a emotividade é um dos fatores que contribuem para a transferência, pois essa função da linguagem expressa o sentimento interno do falante. 6) a) b) c) d) “Ele tá com uma fome!” /’eli‘ta’kõ’uma’fõmi/ /’umL/ /’eli’takü’ma’fõmi/ Em determinados grupos de força, encontramos alterações de intensidade, resultando na fusão entre uma preposição e o artigo indefinido feminino como é o caso acima citado. Conclui-se dessa forma, que o desejo enfático no ato de linguagem se faz presente devido à situação em que se encontra o interlocutor no ato da enunciação. 7) a) b) “Sou bastante esperto” /’sobaò’tãtiiò’pehtu/ c) /iò’pehtu/ d) /’sobaò’tãti’iòpehtu/ A palavra sofreu uma transferência do icto na penúltima sílaba com o padrão silábico CVC, e com uma observação: a segunda consoante é uma vibrante final. Mesmo assim, a vontade, de cunho publicitário, impulsionou a antecipação do icto para a antepenúltima sílaba, uma sílaba formada pelo padrão silábico por VC, e a vogal sofre a neutralização do /e/ para o /i/ e, por alofonia a variante [is] por [iò]. 117 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 8) a) “Você tá com todo o gás!” b) /vo’se’ta’kü’todu’gaò/ c) /vo’se/ d) /’vose’ta’kü’todu’gaò/ O ato ilocutório foi uma arma importante nesta transferência, pois sem ela dificilmente o falante iria chamar a atenção de seu receptor – alvo. 9) a) “Que golaço!” b) /’kigo’lasu/ c) /go’lasu/ d) /’ki’golasu/ Nesta ocorrência, temos a formação derivacional formada pelo morfema lexical “gol”, somado ao sufixo “açu”. A enunciação ocorrida deu-se em um contexto em que o jogador de futebol fez um gol de placa. Logo em seguida um torcedor exprimiu a sua emoção exclamando e transferindo a intensidade da palavra com o icto na penúltima sílaba para a antepenúltima sílaba. Dessa forma, percebe-se que as frases exclamativas são muito propensas à transferência. Há a presença implícita do verbo, pois as frases nominais são o resquício, o fragmento de uma frase verbal. A frase “Que golaço!” poderia ser ampliada por “Mas que golaço foi esse !”. 118 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ A principal característica de uma frase exclamativa é a expressão da emoção do falante, com isso ele articula através do processo fonatório uma emissão em decorrência de fatores extralingüísticos. 10) a) “Que avião!” b) /’kiavi’ãw/ c) /avi’ãw/ d) /‘ki’aviãw/ Esta frase é uma frase que traz uma ambigüidade, pois “avião” significa um aeródromo dotado de meios próprios de locomoção, e cuja sustentação se faz por meio de asas. No entanto, no signo lingüístico brasileiro o termo “avião” faz referência a uma moça ou um rapaz atraente. E foi esta segunda significação que foi registrada nesta pesquisa, ao se ouvir perceptivamente que uma determinada jovem sentiu-se atraída por um rapaz bem vestido e dentro dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade. Pelo ângulo fonético, notou-se a importância do som sonoro por excelência e, mais especificamente a força do som vocálico por excelência [a], atraindo o icto do ditongo em posição final de vocábulo. Ressalte-se que este vocábulo tem o tema teórico em /ón/, ao se pluralizá-lo nota-se este fato, pois ele advém do francês “avión”. 11) a) “Gostei!” 119 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ b) /goò’tey/ c) /goò’tey/ d) /’goòtey/ Temos aqui um verbo intransitivo ocasionado por um falante que ao se deparar com o resultado de sua avaliação escolar, enunciou a frase verbal aos seus amigos. A transferência foi facilitada pela oração simples, composta apenas por um verbo. Deste modo podemos inferir que as frases compostas por apenas um verbo são bastante propensas à transferência, e no caso em questão, o verbo em primeira pessoa, cuja expressividade pertence ao emissor. 12) a) “Pará pai dégua!” b) /pa’óa’pay’degwL/ c) /pa’óa/ d) /’paóL’pay’degwL/ Essa frase é uma frase tipicamente papa-chibé, intrínseca à nossa região paraense e emitida quando um determinado paraense estava tomando na ocasião um tacacá. Temos na nossa gramática o registro de um acento diferencial que separa o “pára”, verbo do “para”, preposição. Porém devido a essa revisão não restrita à análise fonológica, com o registro de uma transferência do icto, a comprovação de que o termo “Pará”, um vocábulo com o icto na última sílaba, sofreu alteração intensiva sem implicância semântica. 120 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 13) a) “Égua!” b) /’egwL/ c) /’egwL/ d) /e’guL/ Ocorreu no caso acima uma sílaba inicial mais intensa para o ditongo seguinte, gerando uma diérese pelo fato de que a emissão do ato respiratório foi alterada, sem que isso implicasse em uma mudança de significado. O tom enfático que caracteriza os diferentes tipos de frases na nossa língua foi decisiva nesta ocorrência devido à emotividade que o falante quis demonstrar no ato da enunciação. 14) a) “Que canção!” b) /’kika’sãw/ c) /kã’sãw/ d) /’ki’kãsãw/ Temos uma frase nominal que significa um resquício de uma frase verbal. Dessa forma, as frases nominais são muito sujeitas à transferência, pois com a ausência de um verbo, toda a força de emissão recai sobre o nome que está em evidência. 15) a) “A atual prefeitura tá sendo muito desonesta com o seu povo” 121 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ b) / ’aatu’awpóefey’tuóa’ta’sëdu’müytudezo’neòtL’kõ’sew’povu/ c) /dezo’neòtu/ d) / ’aatu’awpóefey’tuóa’ta’sëdu’muytu’dezoneòtL’kü’sew’povu/ Aqui nesta ocorrência houve uma transferência para o sufixo “de”, dessa forma há uma vulnerabilidade dos sufixos em deslocar o icto de sílabas posteriores para o início, mesmo em vocábulos polissilábicos. Não esquecendo que o caráter enfático de mostrar aos eleitores a inoperância de poder público, contribuiu de forma decisiva no ato ilocutório do candidato da oposição. 16) a) “Vamos lá Brasil!” b) /’vãmu’labóa’ziw/ c) /bóa’ziw/ d) /’vãmu’la’bóaziw/ A transferência que se registrou no caso acima foi resultado de uma emoção do falante que se sentiu desanimado ao presenciar a seleção brasileira jogar de modo nada animador. Pudemos constatar a tendência da sílaba inicial atraindo a intensidade. Note-se que há a presença do caráter emotivo do falante em expressar toda a sua carga emotiva no ato de enunciação. O que fica mais uma vez patenteado que há fatores extra-lingüísticos que concorrem para que a transferência intensiva seja possível. 122 Um estudo de Transferência de Intensidade ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 17) a) “Apolo!” b) /a’pÉlu/ c) /a’pÉlu/ d) /’apÉlu/ Temos aqui um caso de justaposição fonológica em função do ato ilocutório através de um único vocábulo com o objetivo de enfatizar a atenção que a pessoa quis do “Apolo”. Temos aqui mais um comprovação de que a intenção de falante se superpõe no ato de fala. 18) a) “Olha que belezura!” b) /’ÉlL’kibele’zuóL/ c) /bele’zuóL/ e) /’ÉlL’ki’belezuóL/ A transferência intensiva é muitas vezes condicionada por alguns fatores, entre os quais encontramos no caso mencionado: o vocábulo “belezura” é composta do adjetivo “beleza” somado ao sufixo derivacional “ura”. O vocábulo pode muitas vezes, em virtude do aspecto derivacional ficar vulnerável à toda e qualquer transferência, em virtude da própria natureza da formação da palavra que foi a imprevisibilidade. 19) a) “Eu esculhambei!” 123 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Apolo Mocotó Hino ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ b) /’ewiòkulã’bey/ c) /iòkulã’bey/ d) /’ewiò’kulãbey/ Temos aqui mais um caso de justaposição fonológica, pois a intensidade transferida não anula a intensidade da última sílaba /bey/. O objetivo da transferência, mais uma vez foi o tom enfático da ação do verbo. 20) b) “Mais do que passo a paixão” b) /’mays’du’ki’pasu’apay’òãw/ c) /pay’òãw/ d) /’mays’du’ki’pasu’a’payòãw/ Temos uma comprovação de que a sentimentalidade, o lirismo, influencia de modo marcante na transferência de intensidade. Ouve-se que a semivogal /y/ do vocábulo “paixão” não foi neutralizada, devido ao caráter formal que música se apresenta. Porém essa formalidade não impediu que a cantora enfatizasse o vocábulo transferido. 124 COMO SE FOSSE UMA CONCLUSÃO Durante a pesquisa foi constatada a ocorrência do icto com função pragmática e, dessa forma, vários conceitos tradicionalmente estabelecidos pela Fonologia podem ser acrescidos para melhor compreensão, contribuindo para uma nova visão a respeito da produção fonológica. A Lingüística Aplicada é uma das beneficiadas, já que, por meio dessas conclusões, o professor de Língua Portuguesa pode reavaliar os conceitos trabalhados em sala de aula. Porém, o grande problema é: o professor, via de regra, não trabalha a oralidade, acarretando uma aprendizagem deficiente, pois o aluno não adquire uma visão entre o aspecto oral em relação ao aspecto escrito. Não surte nenhum efeito positivo, o professor classificar as palavras em “oxítona, “paroxítona” e “proparoxítona”, se a realidade que se apresenta nem sempre condiz com essa classificação, podendo, muitas vezes, o aluno praticar uma dessas transferências, e o professor, desprovido de qualquer base lingüística, repreendê-lo, quando, muitas vezes, ele mesmo as pratica. Muito mais que ensinar, é função primordial do professor pesquisar. Os que realizam esta tarefa buscam soluções somente no que tange ao aspecto puramente metodológico. Por isso, a Universidade fica com todo o ônus da pesquisa, e muitos acadêmicos de ensino superior não conhecem o sentido de pesquisa, o valor que ela representa. Um outro dado interessante foi que o método perceptivo de audição de diálogos mostrou-se o melhor método para, em uma entrevista lingüística, obter-se a total 125 espontaneidade de fala do informante. A utilização de recursos como gravador pode, muitas vezes, inibir o informante e dar um cunho formal à entrevista, como também pode reproduzir de modo infiel a fala do informante, comprovando que o recurso do ouvido ainda é o melhor material para este trabalho. Para a concretização de nossa pesquisa, fez-se necessária a reprodução de situação de discurso, que é o conjunto de circunstâncias no meio das quais se desenrola um ato de enunciação. Podemos observar esse fenômeno em locutores de rádio durante as transmissões de jogos, pois o contexto em que se desenrola o ato da fala envolve emoções que os levam a emitir os sons de modo a enfatizar alguma sílaba. Um outro momento propício para a observação de transferência de intensidade é quando o professor se encontra dentro de uma sala de aula, em meio a alunos inquietos, o que o leva a enunciar determinados vocábulos com o intuito de chamar e prender a atenção, alterando a acentuação da palavra. Espero que esta pesquisa tenha contribuindo para uma nova forma de observar as modificações da nossa língua, enquanto fenômeno mutável e dinâmico. Foi preciso até mesmo a definição dos limites da Lingüística para explicar esse fenômeno da transferência, haja vista que envolveu aspectos ligados à Psicologia; e é justamente nessa hora que percebemos a natureza dos estudos lingüísticos, os quais nasceram dentro de um contexto multidisciplinar. Desde a Antigüidade, os filósofos gregos observavam a natureza do signo lingüístico sem qualquer compromisso com o aspecto puramente lingüístico. A geografia contribui de forma decisiva para a Lingüística, a partir do 126 momento em que se afirma que a influência dos fatores climáticos modifica a fala de uma determinada região. Analisando toda e qualquer interferência extra – lingüística, percebemos que as variações de altura melódica da frase são passíveis de serem alteradas, pois o que se observa, em alguns contextos, é que não apenas a intensidade é alterada, mas a altura ou tom, juntamente com a intensidade, são alteradas. Os livros didáticos devem levar em consideração esses fatores de ordem pragmática, caso contrário, tanto o professor quanto o aluno estarão futuramente descontextualizados frente a uma nova prosódia. O que dizer então quando um ditado for posto em prática? Pensemos no confronto entre o que o aluno produzirá em decorrência da fala e aquilo que o professor irá tentar “corrigir” em produções de seus alunos. Faltam, nas nossas escolas, pesquisas de natureza pragmática para acabar com os vícios pedagógicos. Não é somente colocar toda a criança na escola, mas lhe oferecer mais qualidade, mais capacitação de professores e pedagogos, a fim de que a retórica de muitas questões irrelevantes, dentro de uma escola, sejam deixadas para trás, questões estas que refletem o próprio subdesenvolvimento de nosso país. Neste trabalho não houve uma investigação neste sentido, quanto aos resultados desta pesquisa para o ensino, porém, para futuras buscas, espero que isto seja mais um passo para o desmazelamento do ensino tradicional. Falta ao professor de língua trabalhar e enfatizar a oralidade, estimular o aluno a produzir textos oralmente, trabalhar a entoação no ato da leitura, de acordo com o contexto. Sem isso fica difícil o aluno produzir uma leitura do texto e, ao mesmo tempo, realizar uma boa produção textual. 127 No passado, a oratória era bastante enfática, pelo fato de que, naquela época, não havia uma classe massificadamente letrada. Atualmente, a oratória fica bastante deslocada pela falta de um preparo mais adequado de nossos profissionais, em assegurar à criança uma melhor maneira de se expressar. O que se observa hoje em dia é o silêncio que amedronta qualquer indivíduo. O ser humano começa, basicamente, chorando, depois, pequeno, balbuciando, em seguida falando. Daí, a solução mais prática é habilitar este ser humano à uma prática oral, para, quando chegar na leitura emotivo – interpretativa, consiga correlacionar as formas ortográficas e fonológicas, vindo, logo em seguida, o estágio de interpretação da informação e de depreensão de traços emocionais. 128 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ BIBLIOGRAFIA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ BERLO, David K. O Processo da comunicação: introdução à teoria e prática. São Paulo: Martins Fontes, 1991. CABRAL, Leonor Scliar. Introdução à lingüística. Porto Alegre/ Rio de Janeiro: Globo, 1985. CALLOU, Dinah. Iniciação à fonética e à fonologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: Editor Ltda., 1995. CÂMARA JR. Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática. 18ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997. ___________. Estrutura da língua portuguesa. 26ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996.a CERVONI, Jean. A enunciação. São Paulo: Ática, 1989. CHAVES, Myriam Crestian. “Teoria da pertinÍncia: contribuiÁ„o para uma bordagem comunicativa do ensino/ aprendizagem de lÌnguas?î In Revista Moara nº3(Estudos de pragmática lingüística. Belém: UFPA, 1995. CUNHA, José Carlos. Pragmática lingüística e didática das línguas. Belém: UFPA, 1991. DUBOIS, Jean. Dicionário de lingüística. São Paulo: Cultrix. 1998. DUCROT, Oswald e TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1972. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 1987. LOPES, Edward. Fundamentos da lingüística contemporânea. São Paulo: Cultrix, 2000. MARTINS, Maria Raquel Delgado. Ouvir falar - introdução à fonética do português. Lisboa: Caminho, 1987. PERINI, Mário A. ìNota sobre o uso das velocidades de enunciaÁ„o na descriÁ„o de fenÙmenos fonolÛgicosî. In Cadernos de Lingüística e Teoria da Literatura – Ensaios de Lingüística nº11. Belo Horizonte: UFMG, 1984. SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi da. Estudos de fonologia portuguesa. São Paulo: Cortez, 1986. 129 ○ ○ ○ ○ ○ ○ 130 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal LUCIANA DE MORAES R AYOL O trabalho de graduação da aluna Luciana Moraes Rayol tematiza a obra de Jorge Amado, um dos escritores mais lidos da Literatura Brasileira de todos os tempos, embora não seja tão estudado por aqueles que compõem a academia. O ensaio da aluna privilegia o universo feminino da obra amadiana. Neste universo, ela dá destaque a Dora, personagem do romance Capitães da Areia (1937). “Dora, uma estrela de quatro pontos, uma ponta da estrela ideal” compõe-se, basicamente, de duas partes. Na primeira, destacam-se as multifaces da personagem no (sub)mundo dos capitães da areia. Na segunda, é traçado um paralelo entre Dora e três das mais conhecidas figuras femininas do romance de Jorge Amado: Gabriela, Tieta e dona Flor. Considero que um trabalho de graduação é processo. nele, Luciana Rayol cumpriu, com seriedade, todas as etapas para, finalmente, trazer à luz este ensaio que, no meu ponto de vista, pode contribuir com aqueles que se iniciam na leitura da obra de Jorge Amado. Prof. Ms. Josse Fares 131 Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ P ara ser realizada a minha pesquisa, eu fiz três escolhas, na presente ordem: autor, obra e personagem. Optei por Jorge Amado por ser um dos meus autores favoritos e por, infelizmente, ele ser discriminado em seu meio, por ser considerado um autor raso, de uma personagem só. Meu trabalho então, será uma forma de desmistificar essa fama ingrata que o autor baiano ganhou. Logo em seguida, veio a idéia de tirar de Capitães da Areia a base do meu texto, por se tratar de um livro da fase proletária de Amado, característica distante da que lhe deu fama: a de cronista de costumes. A obra foi escrita em 1937, quando o autor, aos 25 anos de vida, ainda acreditava que “todo jovem tem o dever de ser socialista”. A personagem principal, não do livro, mas sim, da minha pesquisa, é Dora. Antes de falar sobre ela, é necessário que eu explique o por quê de minha escolha. Os Capitães da Areia são um grupo de meninos de rua da cidade da Bahia. Dora, ao ficar órfã de pai e mãe e se ver na rua tendo como única companhia seu irmão menor, Zé Fuinha, acaba, por intermédio de João Grande e Professor, indo parar no grupo. Sendo então a única mulher do bando, logo Dora ganha um caráter quadridimensional aos olhos deles. Ela é mãe, irmã, noiva e esposa. Com isso, se torna figura de destaque na obra. Considerando a glória obtida por Jorge Amado acerca de suas personagens femininas, o trabalho serve de passaporte a Dora para sua entrada neste rol. Minha explanação será dividida em duas unidades: Dora no universo masculino dos Capitães da Areia, e Dora no universo feminino das figuras de Jorge Amado. Na primeira unidade, baseada na própria divisão 132 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ de caracteres de Dora que o autor fez, apresentarei um a um dos Capitães da Areia e destacarei a relação dos mesmos com Dora e as consequências desse encontro. Já na segunda unidade, Dora se juntará à Gabriela, Dona Flor e Tieta sendo ora confrontada, ora aproximada das mesmas, para que se tenha enfim a percepção de que não existe a melhor, nem a mais importante. Unidas, com seus defeitos e qualidades, elas formam o todo – a mulher ideal. Para a melhor visualização dessa mulher ideal, designarei as quatro personagens a partir da Astropsicologia, atribuindo às mesmas elementos astrológicos e funções psicológicas próximos à natureza de cada uma delas. A Astropsicologia foi escolhida como base desse estudo pois, ao contrário do que se pensa, os elementos astrológicos assim como as funções psicológicas não representam ícones opostos entre si. Juntos, eles resultam no equilíbrio, naquilo que chamamos de ideal. Logo, Dora é água e sentimento; Gabriela é fogo e intuição; Dona Flor é ar e pensamento; Tieta é terra e percepção e, a partir dessa mandala, vislumbramos a mulher ideal. Este trabalho de graduação, afinal, tem diversos motivos e objetivos, sendo multifacetado como Dora – a menina estrela do Trapiche, escolhida no vasto céu constelado da Literatura Brasileira, para iluminar o leitor acerca do traço inconfundível de Jorge Amado. 2 DORA NO UNIVERSO MASCULINO DOS CAPITÃES DA AREIA “A paz da noite envolve o trapiche” Jorge Amado 133 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 2.1 DORA ìMais valente porque È apenas uma menina, apenas est· comeÁando a viverî Jorge Amado Os Capitães da Areia são um grupo de meninos de rua da cidade da Bahia. Cem, cento e cinqüenta meninos entre cinco e quinze anos que vivem em um trapiche abandonado na beira da praia. Eles roubam, trapaceiam, burlam a lei para sobreviver. Entre farrapos de dor e aventura, essas crianças vão tecendo a colcha de retalhos que cobre suas vidas e acalenta suas noites: o céu estrelado de Salvador. E deste mesmo céu de estrelas, Deus dá-lhes o seu melhor presente: Dora. A-Dora-da ou Dorothea? Dorothea, presente de Deus, para uns meninos que teriam parte com o Diabo. Ela tem treze, quatorze anos, é uma menina com o cabelo caído pelo ombro em uma onda dourada, e um rosto muito sério de quase mulherzinha. Seus pais, mortos pela varíola, deixaram-na órfã, tendo como companhia seu irmão caçula, Zé Fuinha. Discriminada por ser filha de bexiguento, ela se vê sozinha, sentindo que a noite é sua inimiga. Nesse ponto, Professor e João Grande a conhecem e decidem levá-la para o Trapiche. Citar o Trapiche como um substantivo próprio, devese ao fato de, também ele, representar uma personagem, um Capitão da Areia. Comparamos o Trapiche de Jorge Amado ao 134 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Sobrado de Érico Veríssimo, sendo, os dois, lugares tão marcantes, que passam a interagir com seus habitantes. Então, do mesmo modo que Dora ilumina a vida dos Capitães da Areia, notamos o Trapiche mais claro, acolhedor, maternal, pacificado enfim, com a chegada da menina. Vislumbramos a ida de Dora para o mundo dos Capitães da Areia como um raio de Sol em um lugar marcado pelas trevas do abandono e da violência. Vale ressaltar que, no grupo, há destaque para oito dos Capitães e a pesquisa abordará justamente a interação de Dora no mundo pessoal e universal desses meninos. Criaturas tão diferentes e, paradoxalmente, tão atreladas entre si pela vida marginal que levam, não poderiam ter o mesmo tipo de relação com Dora. Não. As relações acontecem quadridimensionalmente, fazendo com que Dora, como uma camaleoa, se ajuste a cada um deles conforme a necessidade dos mesmos. Logo, ela é mãe, irmã, noiva e esposa, idealizada por eles. Em sua cabeça, apenas age com naturalidade, não tem noção da extremada importância que sua presença tem para aquele grupo. Pensamos que a única pessoa que tem a devida idéia do significado de Dora para os Capitães da Areia, é Professor. João José, o Professor, a via como noiva, como a Amada, que adornaria os seus mais belos e chocantes quadros. Seu amor platônico, poético e, por que não dizer, transcendental, fazia-o ter os olhos mais atentos em Dora, e nas sensações que ela causava entre eles. A alegria de Gato ao rever, em Dora, sua mãe costu135 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ rando sua camisa; o rosto iluminado de Volta Seca ao reconstruir a figura da brava sertaneja, comadre de Lampião, sua mãe, em uma menina loura e franzina; a paz que encheu os olhos de Pirulito ao poder, finalmente, contar a sua mãe que ele desejava ser padre. A admiração do revoltado Sem-Pernas; a fidelidade de João Grande, que a comparava em valentia a Pedro Bala; o jeito bamba de Boa-Vida chamá-la de irmã. Todas essas imagens ficam gravadas na mente de Professor que as transformaria em arte depois da perda da Amada para a Morte. Sim, a Morte chega ao Trapiche e leva dos Capitães da Areia o seu melhor presente, a sua figura mais ímpar. Dora morre e deixa seus irmãos e filhos atônitos diante de seu desaparecimento. Nenhum deles parece atinar para o que de real ou imaginário aconteceu. Foi como um sonho bom para todos. “Menos para Pedro Bala, que a teve. Menos para Professor, que a amou” (Amado, 1982a, p.191). Cada um dos Capitães tem seu destino traçado: Boa-Vida quer uma vida sem esforço; Gato almeja o grande mundo; Pirulito deseja servir a Deus; Volta Seca sonha com o cangaço; Sem-Pernas, sob seu ódio, quer apenas uma vida mais alegre (mesmo que além da morte); e João Grande, como um cão a seguir seu dono, faria tudo o que Bala pedisse. Dora modifica então, apenas o destino de seus noivos, fazendo com que Professor abandone o Trapiche e mergulhe em sua carreira como pintor, e com que Pedro Bala lute por uma sociedade melhor e mais justa, sabendo-a no céu, feito estrela a guiar-lhe, e não como uma sombra no Trapiche. Cabe dizer, a essa altura dos fatos, que na cidade da Bahia quando um homem valente morre, ele se transforma em estrela. Só os homens. Nem mesmo Rosa Palmeirão, nem Maria Cabaçu, as mulheres mais famosas de Salvador, pela coragem e destemor que possuíam, nem elas viraram estrelas. 136 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Mas Dora virou. Porque Dora era tão valente quanto elas e era uma menina. Ela não está fixa no Firmamento. Ela o cruza de ponta à cabeça, deixando a ilusão de sua longa cabeleira loura a iluminar em fachos o coração de Pedro Bala. Sim, Pedro Bala é o único que sabe da metamorfose estelar de Dora. O amor dele por ela não era metafísico como o de Professor. Além de noivo, Bala a possuiu e fez dela sua esposa. Sua paixão o fez nadar até o lugar onde o Queridode-Deus jogou seu corpo no mar, e de lá ele teve a revelação de que, mais do que um raio de Sol, Dora era um Sol, uma estrela, que raiou no Trapiche para ensiná-los a ser felizes e que agora cruzaria outras vidas. O Trapiche adormece. Dora brilha lá fora, e convida seus filhos, irmãos, noivos e esposo a brilharem também. É tempo do destino mudar. 2.2 FILHOS 2.2.1 Gato Com um pouco mais de treze anos, o Gato foi morar sob o Trapiche sendo, apesar da pouca idade, já grande conhecedor da vida de crianças abandonadas, pois vinha do meio dos Índios Maloqueiros, o equivalente aos Capitães da Areia, em Aracaju. Alvo, rosado, alto, com uma penugem de bigode, um ar petulante e um gingado malandro no andar, Gato era o elegante do grupo. Uma vez, dissera a Boa-Vida que nascera para o grande mundo. Assim, com essa afirmação, percebemos que não se 137 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ trata de um vagabundo despreocupado, como Boa-Vida, nem tampouco de alguém que queira evoluir por seus próprios méritos, como Professor. Gato é um vagabundo sim, contudo, preocupado em subir na vida... às custas dos outros. Não que ele faça isso prejudicando alguém, passando por cima das pessoas. Não. Entre os Capitães da Areia há uma lei. Uma lei que jamais foi escrita ou lavrada em cartório e, talvez por isso mesmo, viva em cada um daqueles meninos. Lei moral, livre dos papéis, ativa no heroísmo que exalava dos habitantes do Trapiche. O Gato tem uma paixão. Dalva é vinte anos mais velha que ele e é uma prostituta. É com ela que ele dorme todas as noites, só ficando de dia nas aventuras com os outros Capitães. Em grande parte, sua escalada social se dá às custas dela. Foi por causa de seu envolvimento com Dalva, que Gato não desejou, como os outros, Dora, em sua chegada ao grupo. Ao contrário, Gato foi o primeiro a reconhecer, em Dora, a figura materna. Naquela noite, o Gato estava às voltas com um problema que lhe parecia muito grave: enfiar uma linha na agulha. Ficou rondando Dora, sem se decidir, até que ela mesma perguntou o que ele queria. Assim, em um átimo, a menina não só havia posto a linha na agulha, como se oferecera para coser a roupa do Gato. Primeiro o paletó de casimira e depois a camisa, que já estava no corpo dele. Foi neste momento que Gato teve a certeza de que sua mãe voltara. O toque da mão de Dora em suas costas, causoulhe um arrepio que ele julgava impossível ter de volta. As mãos daquela mulherzinha que estava ali, a costurar suas roupas, arrepiaram-no involuntariamente. 138 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Aqui, Gato confronta Dora e Dalva, em uma atitude tipicamente edipiana. Dalva só o queria para o prazer, para aquele amor despreocupado dos que não amam de verdade. Mas, de repente, ela voltou. A mãezinha do Gato voltou para costurar suas roupas com suas mãos maltratadas e carinhosas. O Gato fecha os olhos e percebe que sua existência sem aquela mãe não significou nada. É como se o tempo tivesse parado desde a sua morte, e agora ele tem cinco anos de idade e sua mãe renasceu. Em sua mente, o desejo não encontra mais espaço. Ele só pensa no cabelo louro de sua mãezinha Dora a acarinhar o seu ombro; só quer que ela o adormeça entre canções de ninar. O mais importante: o Gato percebe que é apenas uma criança, apesar de viver como um homem. Ele vai ao encontro de Dalva, com seu segredo explodindo pela alma: reencontrara a mãe morta! A amante jamais entenderia. Mais tarde, muito depois da segunda morte de sua mãe, o Gato parte para Ilhéus, para viver no grande mundo como um inveterado vigarista, como um irresistível gigolô. A maioria dos chefes dos Capitães da Areia se engaja em movimentos nos quais depositam suas esperanças em um mundo melhor. Pedro Bala, Professor e João Grande se tornam comunistas; Pirulito entra para a Igreja; Volta Seca vai para o cangaço. O Gato não. Ele quer se dar bem a todo o custo. Apesar da convivência entre os Índios Maloqueiros e os Capitães da Areia, ele não visa um apogeu coletivo, como os outros. Esse individualismo (quem sabe egoísmo) se deve, 139 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ tão somente, ao fato do Gato não ter tido quem o ensinasse sobre honestidade e caráter. Com duas mães mortas, ou uma morta duas vezes, o Gato ficou sem guia. Afinal, quando o estudante Alberto chegou ao Trapiche, convocando-os para a luta por uma sociedade igualitária e justa, o Gato, já era conhecido pelos jornais, procurado pela polícia por todo o sul da Bahia. 2.2.2 Volta Seca O mais introspectivo dos Capitães da Areia era Volta Seca. O menino do sertão jamais se acostumara com aquela vida urbana. O rosto sombrio, de olhos apertados e boca rasgada, as alpargatas nos pés e o amor imensurável por Lampião (que era seu padrinho) faziam dele um legítimo sertanejo. Viera para a cidade com o intuito de se libertar da exploração no sertão. Perdeu sua mãe durante a viagem e ao chegar a cidade da Bahia constatou, nas aventuras diárias com os Capitães da Areia, que os pobres são explorados em qualquer lugar, sertão ou cidade. Assim, o menino crescia objetivando apaixonadamente o dia em que se juntaria ao grupo de seu padrim, Lampião, rei do cangaço, para, com ele, vingar todos os pobres – homens, mulheres, crianças. Com isso, sobrava pouco tempo para Volta Seca sorrir, sendo esse raro momento marcado por suas famosas imitações de bichos. Então, não sorria, trinava como um passarinho a cantar à liberdade. Volta Seca era uma figura controversa, pois dentro dele conviviam o sangue frio que lhe deu sessenta mar140 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ cas no fuzil; a religiosidade que o fazia respeitar e admirar o padre José Pedro; um cangaceiro nato; um menino apenas. O afilhado de Lampião era dividido: corpo na cidade e coração no sertão. Na cidade, ele tinha a amizade de Pedro Bala, que quando crescesse seria tão valente quanto Lampião, e no sertão, tinha o próprio Lampião, que era o sertão em pessoa. Quem sempre lia as notícias das aventuras de Lampião e seu bando para Volta Seca era Professor, que assim como ele, assim como todos eles, também amava o heroísmo. Sim, porque apesar de odiado por muitos, Lampião era, ao mesmo tempo, amado por outros. Era o herói das crianças, “o braço armado dos pobres no sertão” (Amado, 1982a, p.175). Então, quando Professor foi estudar no Rio de Janeiro, Volta Seca se entristeceu como se tivessem matado um do bando de Lampião. O senso de justiça, hierarquia e lealdade ao bando também se comprova em Volta Seca, visto a defesa dele a Almiro, o menino com varíola que Sem-Pernas queria expulsar do Trapiche, sem antes falar com Bala. Ora, Bala era o líder e, para Volta Seca, cabia a ele a decisão do destino de Almiro. Para o sertanejo, o comportamento de Sem-Pernas comparava-se ao de um soldado de polícia o que, vindo de Volta Seca, não era um elogio. Outro momento marcante na vida do menino foi a semana em que, junto com Sem-Pernas, fez girar o Grande Carrossel JaponÍs. O mais curioso e, para Volta Seca, excitante, era o fato de Lampião e seu bando ter rodado, feito criança, naquele mesmíssimo carrossel. Contudo, apesar de não largar o cavalo colorido usado por Lampião; apesar de ter, ele mesmo, montado o ca141 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ valo de seu padrinho, Volta Seca, ao ouvir junto com os outros Capitães da Areia a música doce e antiga saída do carrossel, não pensa em mais nada além de que é uma criança e aquela melodia que inunda a cidade é só dele e daquelas crianças donas das estrelas, donas da Bahia. Desse modo, é nítida a presença de espírito que Lampião exerce sobre o menino, fazendo com que todos os fatos que, corriqueiramente, sucedem a Volta Seca sejam, de imediato, associados à imagem dele. Mais um exemplo disso, é a atitude do menino ao ver Dora chegar ao Trapiche. Volta Seca sentia-se extremamente excitado, como se estivesse, junto com o grupo de Lampião, prestes a deflorar uma filha de fazendeiro. Porém, Pedro Bala defende Dora e impede que os Capitães da Areia ataquem-na. Nesse momento, Volta Seca assume uma atitude dual, pois mesmo dizendo a Pedro que não tinha medo dele, e que só não insistiria porque ela era uma menina, quando Dora se aproxima para fazer-lhe um curativo, ele a olha com espanto, como se tivesse medo dela. Sim, como uma mãe, Dora perdoa a inicial agressão de Volta Seca e vai curar suas feridas. A partir daí, o menino passa a observá-la atentamente, constatando que, inacreditavelmente, aquela menina de cabelos louros, olhos doces e rosto grave era parecida com sua mãe, sertaneja forte, de carapinha rala, olhos achinesados e rosto sombrio. Tudo porque, em Dora, havia o mesmíssimo sorriso de orgulho de mãe para filho. Inconfundível, indizível. Inesquecível. Tanto quanto a estranha calma do semblante de Volta Seca ao ouvir sua sentença de trinta anos de prisão. Trinta anos de prisão a uma criança de dezesseis anos com sessenta marcas no fuzil, um padrinho célebre e duas mãezinhas. 142 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 2.2.3 Pirulito Ao nomear o peixinho dourado que Amaro lhe dera de presente de aniversário de Pirulito, Clarissa não fazia idéia da existência, na cidade da Bahia, de um Capitão da Areia que atendesse pelo mesmo nome. Na verdade, o nome dele era Antônio, por isso e pelo fato dele ter ouvido falar que Santo Antônio era brasileiro, possuía uma imagem do santo junto a de Nossa Senhora das Sete Dores. Era alto, muito magro, de olhos encovados, cor macilenta e pouco riso. A fama de ter sangue frio corria de boca em boca, depois de ter enfiado o punhal na garganta de um menino até o sangue do mesmo correr e ele conseguir seus objetivos. Todavia, Deus veio ao encontro de Pirulito. Pela voz do padre José Pedro, ele ouvia o chamado poderoso de Deus ecoar por todo o Trapiche. O Deus de Pirulito tinha duas faces: a do amor e a do temor. O padre José Pedro falou-lhe de Deus-pura-bondade, Aquele que faz os dias lá fora serem belos; contudo, o frade alemão da Igreja da Piedade pregava um Deus justiceiro e castigador, um Deus-justiça que, na cabeça de Pirulito, ficou como Deus-vingança. Sim, a vida de pecado dos Capitães da Areia, tão envoltos com as negrinhas no areal, com os furtos, com as brigas, essa vida tão pregressa que eles levavam, seria vingada por Deus nas chamas do inferno. Assim, Pirulito passou a jejuar, a rezar mais demoradamente, a não ter mais relações com as negrinhas, a roubar apenas para sobreviver, a não brigar mais. Tudo para merecer o perdão de Deus. 143 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Essa obstinação, devoção ou coisa que o valha, intrigava Sem-Pernas a ponto dele não saber o que sentir em relação a Pirulito. Sem-Pernas queria alegria, felicidade aqui na terra, não a expressão indefinível (de gozo talvez) do rosto de Pirulito a rezar, como se estivesse no céu, nos braços de Deus, em uma fuga transcendental que, para ele, era covarde demais. Mesmo assim, Pirulito fora valente ao roubar o Deus Menino daquela loja de uma só porta. Mas, logo ele, que prometera só roubar para comer ou obedecer às leis do grupo, estava ali roubando aquele Menino simplesmente para tê-lo junto a si, para acarinhá-lo com seu amor. O escultor fez o Menino magro e friorento; pobre como Pirulito. A Virgem da Conceição oferecia o seu Menino a Pirulito e naquele momento ele dribla a visão do inferno, de Deusvingança e nina o Menino que sorri, aquecido. Aquecedor. Então, quando Dora chega e pergunta sobre seus santos, se interessa pela sua vida tão ridicularizada pelos outros, Pirulito apaga a visão de pecado que tinha de Dora. O pecado não mais era a Mulher. Dora não tinha o riso debochado e convidativo das negrinhas do areal. Não. Ela era apenas uma menina, pobre e órfã como eles. Mais. Era como uma mulher mais velha a se interessar carinhosamente pela sua vida. Mãe. A palavra m„e soa na mente de Pirulito e se materializa em sua frente, no corpo de Dora. Só para sua mãe poderia contar seu segredo. E o faz, iluminado: quer ser padre. E, sendo padre, teria que estar acima dos pecados. Por isso, Deus-pura-bondade o faz, involuntariamente, devolver o Deus Menino à mãe. Não à Virgem da Conceição, mas à Virgem do Trapiche – Dora, purificando assim, o coração dividido, te(a)mor, de Pirulito. 144 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 2.3 IRMÃOS 2.3.1 João Grande O menino João Grande que, por ser um Capitão da Areia, valia como um homem, era o mais alto e forte do grupo. Segundo Pedro Bala, “quem for bom é igual a João Grande, melhor não é...” (Amado, 1982a, p.223), e foi por isso que ele se tornou logo um dos chefes do grupo, sempre participando das reuniões da cúpula. Sua bondade assegurava-lhe este lugar, mesmo não sendo possuidor de uma grande capacidade mental, doendo-lhe até a cabeça quando era necessário pensar. Junto a essa limitação da mente, associa-se a ingenuidade de Grande que, apesar da vida adulta que levava, ainda tinha espaço para se encabular quando Bala o elogiava; para não entender o duplo significado das palavras de Gato; para admirar Pedro e Dora como a super-heróis. Para, afinal, expor a relação de João Grande e Dora, resolvemos traçar um paralelo da vida de ambos, com o intuito de clarificar a fraternidade entre os dois, que vai muito além do simples ato de Dora o chamar de meu irm„o. Tanto Dora quanto João Grande viviam no morro com seus pais até que estes morreram. O pai dele, carroceiro, morreu pegado por um caminhão; os pais dela e de Zé Fuinha foram vitimados pela varíola. Desde então, não voltaram mais para o morro, indo em busca da liberdade que exalava da cidade. Mesmo tendo sido em épocas diferentes (João Grande ficou órfão aos nove anos e Dora aos quatorze), o elo se fecha em torno deles quando, juntamente com Professor, Grande leva Dora e seu irmão para viver entre os Capitães da Areia. Quatro anos após sua desgraça pessoal, João vislumbra sua repetição em Dora e tem a oportunidade de dar-lhe o conforto que ele não teve. 145 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Outro aspecto comum aos dois, é a admiração nutrida por ambos por Professor e Pedro Bala. Professor, por ser o fio condutor da intelectualidade entre os Capitães; por ler para eles, todas as noites, as mais batutas histórias de aventura e amor; por plantar, através dos livros, a paixão pelo heroísmo que incendiava os corações daqueles meninos. E Pedro Bala, por ser, ele próprio, a personificação do heroísmo, o mais valente e destemido dos Capitães da Areia – o líder. Viés não menos importante de comparação, é o que atenta para o fato de João Grande ser uma espécie de pai dos pequenos do grupo, que encontravam nele o mais valoroso defensor de agressões dos mais velhos; e de Dora ser a mãezinha dessas crianças, mesmo que inconscientemente, costurando suas roupas, acalentando suas noites, incentivando seus feitos. Mais adiante, notamos duas atitudes paradoxais das personagens. João Grande que, desde a chegada de Dora, se transformara na sombra da menina, ao ver a morte rondar os olhos de grande paz de sua irmã, apesar de sofrer uma dor dilacerante no coração, ainda procurava sorrir, para animá-la. E Dora, mesmo sentindo a morte a lhe invadir, jurou viver se Pedro Bala a possuísse em seu amor. Enfim, ao ver Dora morta, João Grande chorou como uma mulher, momento este, que consiste na total aproximação da realidade de ambos. João Grande deixa aflorar seu lado feminino, chorando como se fosse a própria Dora, única figura feminina entre eles. Nota-se também o mesmo destino para os meninos: o mar. Enquanto Dora, morta, foi jogada ao mar, João Grande, com o passar dos anos, embarca do Lóide, como marinheiro. Então, virada estrela, Dora reflete-se no mar e acompanha seu irmão na mais bela aventura (mais bela até que as contadas por Professor): a vida. 146 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 2.3.2 Boa-Vida Apesar de ser um dos oito Capitães da Areia de destaque na narrativa, Boa-Vida não ganha grandes conjecturas a respeito de sua existência, como ocorre com os outros. Ele é um coadjuvante, uma agulha a costurar os tecidos da trama. Prova disto é que o malandro é quem leva o Gato para o Trapiche, aproxima o padre José Pedro do grupo e indica a família da Graça para o golpe de Sem-Pernas. A verdade é que o mulato pachola, troncudo, feio e sem sorte com as mulheres, era um parasita. Boa-Vida não gostava de nenhum tipo de trabalho, fosse ele honesto ou desonesto. Daí, comendo na casa de um, bebendo na festa de outro, o malandro ia levando a vida na flauta (ou melhor, no violão), ajudando periodicamente o Trapiche, em um esforço sobrenatural ante a sua preguiça, roubando algo de valioso e entregando diretamente às mãos de Pedro Bala. Afinal, apesar de no seu pensamento o trabalho ser algo absolutamente dispensável, ainda prevalecia no menino o senso de lealdade ao grupo dos Capitães da Areia. Sim, também ele era apenas um menino, todavia, como os demais, agia como um homem. Não só em sobrevivência, mas igualmente em dignidade. Foi assim então que Boa-Vida foi para o lazareto (o que era o mesmo que ir para a morte), no momento em que viu seu corpo todo pintado pela bexiga. Ora, ele mataria cada um dos Capitães da Areia se ficasse com varíola no Trapiche. Logo, assim como Bala conheceu o inferno na cafua do Reformatório, Boa-Vida desce às chamas do lazareto, lugar onde os pobres deveriam ser curados (triste ironia), contudo de onde não voltavam jamais. 147 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ E pode até parecer irritante, repetitivo, mas o fato é que não devemos esquecer que Boa-Vida é um dos Capitães da Areia e vale mais que um homem, pois é um menino a viver como homem. É pura e simplesmente por isso que ele voltou ao Trapiche. Magro, rosto ossudo, corpo picado pela bexiga, de todas as marcas que Boa-Vida trouxe consigo, a mais bonita, a unicamente bela, só foi vista por Professor (que a essa altura bem poderíamos chamar de Observador): no lugar do coração, brilhava uma estrela. Aquela estrela que o Queridode-Deus sempre disse que brilha no coração dos homens valentes. Eis aqui a figura do ídolo de Boa-Vida: o saveirista Querido-de-Deus. Boa-Vida será o Querido-de-Deus dos futuros Capitães da Areia. Será um malandro completo, tocador de violão, inimigo do trabalho, capoeirista, namorador de cabrochas e, marca do Capitães da Areia de seu tempo e de todos os relógios e tempos possíveis, sempre terá um bom coração, faiscante como estrela. Então, de estrela em estrela, constelamos BoaVida e Dora, em uma relação fraterna onde não se precisa de demonstrações de sentimento, como nas relações de mãe e filho, noivos, marido e mulher. Para os irmãos, basta o saber, o conhecimento de que aquele amor existe. Irmãos não precisam agir ou falar eu te amo; irmãos tão somente sabem que, uma vez existente o laço fraterno, sempre se amarão. Essa certeza só veio para Boa-Vida quando Dora dirigiu-se ao encontro dele e fez um curativo no talho deixado por João Grande. Assustado, meio a medo, o menino deixou sua irmã curar suas feridas. Tinha medo o mulato, pois não entendia o porquê daquela ajuda, afinal, ele havia sido ferido por querer, junto 148 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ com a maioria do grupo, derrubar Dora, como fazia com as negrinhas no areal. O desejo era tão cego que ele não reconhecia que aquela era apenas uma menina, que aquela era (qual o contrário de apenas?) uma irmã. E apesar de todos aqueles meninos serem como irmãos, a presença de uma irmã era algo doce, algo como um sonho bom, um céu azul, um Sol dourado, tão dourado como o cabelo de Dora. Assim, em pouco tempo, Boa-Vida também era chamado de mano, de irmão por Dora. Chamado e amado. Tanto que, apesar de sua aversão por esforço, ele estava lá, na briga dos Capitães da Areia contra o grupo de Ezequiel, que surrara Bala e ofendera Dora. Também ele amava-a. Foram para a luta, cantando, rindo, felizes como se fossem a uma festa. Foram muito juntos, unidos, como se fossem irmãos de sangue. Foram, absolutamente irmãos de amor. Amor, então, nada a dizer, tudo a sentir. 2.3.3 Sem-Pernas De todos os Capitães da Areia, a figura mais intrigante é, sem dúvida, a de Sem-Pernas. Odiá-lo ou amá-lo é uma questão de segundos, criando-se assim um emaranhado de sensações acerca do menino coxo, de voz estrídula e fanhosa que vivia no Trapiche. O Sem-Pernas vivia burlando de todos, “mesmo de Professor, de quem gostava, mesmo de Pedro Bala, a quem respeitava” (Amado, 1982a, p.33). Contudo, esse gesto não passava de uma fuga. Fuga daquela vida miserável, dolorosa, triste, revoltante... Fuga diferente da de Pirulito, que afugenta- 149 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ va-se nos braços de Deus, levando consigo uma exaltação no rosto e no coração. Mas aquela exaltação não bastava para o Sem-Pernas. Ele queria alegria, felicidade; algo que não o fizesse mais ter que rir de tudo e de todos, algo que o livrasse da angústia e da vontade de chorar nas noites de inverno. Algo como paz. A paz que sentiu ao girar no carrossel de Nhozinho França, aquele homem bêbado que para o Sem-Pernas era tão extraordinário quanto Deus, quanto Xangô, porquê fizera o “milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel” (Amado, 1982a, p.59). Brinquedo tantas vezes sonhado e sempre diluído por adultos que jamais enxergaram que, por trás dos farrapos, do ódio no olhar, ia uma criança. Então, é um Sem-Pernas cheio de ternura de criança que roda naquele carrossel velho e desbotado que, aos olhos de todos os Capitães da Areia, é a coisa mais linda do mundo. O Sem-Pernas vai repleto de uma estranha comoção, “girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza” (Amado, 1982a, p.62). Ironicamente, tempos depois, o Sem-Pernas vê este devaneio se tornar realidade. Em mais um dos golpes do bando, o menino se infiltra em uma casa de família da Graça, valendo-se de seu defeito físico e da pena que ele causava nas pessoas. Assim, dona Ester recebe o Sem-Pernas, ou melhor, Augusto. Coincidência romântica, o nome inventado pelo Capitão da Areia era o mesmo do filho que ela perdera. Para a senhora, o filho voltara macilento, andrajoso, triste, a lhe pedir abrigo. Então, o Sem-Pernas vive os melhores dias de sua 150 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ vida, com roupas novas, comida, um quarto só para ele. Porém, o que mais lhe prendia ali, era aquela sensação de amor, aquela sensação morna de lar, de família; a alegria e a felicidade que ele tanto desejara e que se traduziam no carinho maternal com que dona Ester o envolvia. Entretanto, o Sem-Pernas tem a marca dos Capitães da Areia no peito. Eles eram sua família, as únicas pessoas a quem ele não odiava, seus irmãos naquela vida abandonada. Não podia traí-los. Apesar de ter aberto uma exceção no seu ódio à gente daquela casa da Graça, havia a lei dos Capitães da Areia, aquele código de honra já esquecido pelos homens, tão entranhado naquelas crianças. Desse modo, o Sem-Pernas volta para o Trapiche, fiel à lei dos Capitães da Areia, todavia sente que traiu dona Ester, sua mãezinha e, o pior, sente ter traído a si próprio. Daquele momento em diante, o ódio de Sem-Pernas aumentou. Não havia ninguém mais arredio e briguento que ele no Trapiche. Arranjava confusão com todo mundo; só respeitava Pedro Bala. Todo o amor que acumulara ao abrir mão de dona Ester, o Sem-Pernas dedicava a um cachorro que aparecera no Trapiche. Seguia o Sem-Pernas como um louco, a falar e lidar com o cão, até o surgimento de Dora. Com a chegada da menina, o Sem-Pernas ganha espaço para extravasar seu ódio, incitando o bando a violentar Dora. Contudo, ele ainda respeitava Bala e assim, acatou a ordem do chefe de deixar a garota em paz. A partir daí, nasce uma relação fraterna entre SemPernas e Dora, a ponto do menino abrir mão de seu cachorro e dá-lo de presente a ela. Sem-Pernas se comportava como um irmão mais novo, a admirar os feitos e qualidades da irmã mais velha. Ad- 151 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ miração tamanha que o fez compará-la à Rosa Palmeirão, a mulher mais valente de quem se tinha notícia. Dora agradece o elogio com um singelo “- Obrigado, mano” (Amado, 1982a, p.166). E mais do que o obrigado, mano soa na mente do Sem-Pernas como um bálsamo sobre aquelas antigas dores, pois ele abriu mão de sua mãezinha, mas ganhou “uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente” (Amado, 1982a, p.166). Porém, acima disso tudo, Dora foi a grande responsável pela reintegração de Sem-Pernas ao grupo. Por ela, também ele lutou contra o grupo de Ezequiel e, quando Dora e Pedro foram presos no Orfanato e no Reformatório, Sem-Pernas ficou como chefe dos Capitães da Areia, tendo papel decisivo na libertação de ambos. Depois da morte de Dora, Sem-Pernas se envolve com uma terceira mulher, em um estágio carnal nunca antes conhecido por ele. O menino estava lá para dar um golpe em Joana, mas ela queria as migalhas de amor dele, queria o corpo de Sem-Pernas contra o seu, as mãos dele sobre a sua pele sem contudo, se permitir o amor total por medo de sua honra de vitalina ser deposta por uma inesperada gravidez. Ao contrário de Ester e Dora, Joana incita cada vez mais o ódio em Sem-Pernas, com aquele amor incompleto. Então, cansado das noites de batalha, de guerra contra os pudores da vitalina, “Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia, odeia o mundo todo” (Amado, 1982a, p.206). Em nome desse amor ao ódio que o fazia forte, é que Sem-Pernas se joga do elevador Lacerda ao se ver encurralado pelos policiais. Sua gargalhada cheia de ódio é o arremate de sua vingança. Não seria um troféu para nenhum guarda. Antes, ser trapezista de circo, mesmo que não alcance o outro trapézio. 152 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Na platéia, o único ser que o Sem-Pernas conseguiu amar e que o amou como ele realmente era – o cachorro dele. 2.4 PROFESSOR Ao ler pela primeira vez a história dos Capitães da Areia, julgamos o amor de Professor por Dora como algo platônico e idealizado. A utilização da palavra noiva para definir a imagem que nossa heroína representava na mente de João José, remete propositalmente à idéia de pureza e inocência que envolve as relações marcadas pela platonicidade. Contudo, após idas e vindas, leituras e releituras, como no sobe-e-desce das ladeiras da cidade da Bahia, vimos essa primeira impressão ruir. É necessária aqui a melhor visualização de Professor, não mais como parte integrante do grupo e sim, como um todo, na pessoa física que ele é. Apesar de viver em um bando cuja fonte de subsistência principal era o furto, Professor pode ser considerado o bom moÁo dos Capitães da Areia. Isso se deve ao seu hábito de leitura; a genialidade com que arquitetava planos, o que fazia com que o líder não tomasse uma medida sem antes consultá-lo; ao espírito de amizade que possuía, que o fazia ser querido de Bala a Sem-Pernas, ícone do sentimento de ódio e revolta da obra; a vocação artística para a pintura que, antes de admirar, chocou a todos com as impressões fortes da vida nada impune que teve sob o Trapiche; e até mesmo ao fato de seu aspecto físico ser franzino, míope e, por que não dizer, frágil. Mesmo assim, seria perigoso afirmar que o sentimento de João José por Dora era platônico e idealizado. Ninguém melhor do que Professor observou as 153 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ multifaces de Dora, convivendo diariamente com ela e se apaixonando justamente pela ingenuidade plena dos atos da menina. O que se torna visível é que o amor de Professor, comparado ao de Pedro Bala, é de uma natureza mais branda, serena. Ele sente inveja da felicidade de Pirulito quando este vislumbra a mãe em Dora, pois já sente que no coração dele não há mais espaço para um amor filial e sim, nupcial, e por também saber que esse tipo de amor, amor de noiva, Dora nutria por Bala. Como havíamos dito antes, Professor prezava muito a amizade e, devido a isso, em nenhum momento se indispôs com Pedro por causa de Dora. Eis aí o ponto em que esse amor assume um caráter sublime, transcendental até. Ao usar a palavra transcendental nos damos o direito de fazer a seguinte observação em “...para ele, ela também não era uma mãe. Também para o Professor ela era a Amada” (Amado, 1982a, p.161), é notável o uso da letra maiúscula no meio da frase, servindo para imprimir um elevado grau de importância a quem o título refere-se, assim como faziam os simbolistas que, além disso, cultuavam a sublimação e a transcendentalidade do amor, fazendo-o mais anímico do que físico. Professor queria um olhar de Dora. Um daqueles olhares plenos de amor que ela só lançava a Pedro Bala. Em nenhum momento temos o menino desejando o corpo, os beijos, o calor de Dora. Ele admira sua valentia, seu instinto maternal, seu sorriso fraterno, seu cabelo dourado. Quando Dora morre, o Trapiche perde todo seu encanto para Professor. Ele vai estudar no Rio, mas leva consigo a marca dos Capitães da Areia, e é essa marca que o faz abandonar o pintor que lhe ensinava formas acadêmicas, e ir pintar por conta própria seus quadros. 154 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Quadros que espantam e fascinam. Quadros onde todos os sentimentos bons sempre são representados por uma menina loura, magra e de faces febris. Então, são nesses quadros que Professor ama Dora. Porque ele pode ter fugido do Trapiche, mas sua Amada não fugiu de sua alma e da expressão concreta em que ela se exibe: a sua arte. 2.5 PEDRO BALA A palavra liberdade está para Jorge Amado assim como a palavra revolução está para Capitães da Areia. Então, que palavra poderia estar para Pedro Bala? Bala é o líder. Traz nos olhos e na voz a autoridade de chefe e, devido a isso, Raimundo, o Caboclo, não durou muito na chefia do grupo desde a chegada de Pedro. Apesar de ser mais jovem, Pedro era mais ativo, sagaz e astuto. E, tendo Raimundo marcado seu rosto para o resto da vida com uma navalhada, Bala também o marcou para sempre, tirando dele a liderança do bando, na luta mais incrível que a praia do cais já presenciou. A partir daí, a cidade começou a ter notícia dos Capitães da Areia, meninos de rua que viviam do furto. Pensamos que Professor é a cabeça do grupo; Dora, o coração; e Pedro, o espírito. Um espírito valente, forte, cheio de esperança e de vontade. Mas, vontade de que? No início, sua função era apenas a de chefe dos Capitães da Areia. E um Capitão da Areia é mesmo que um homem. Bebida, fumo, brigas, mulheres, roubos, a vida deles é recheada dessas palavras que soam bem em um contexto adulto. Então, como um divisor de águas, a chegada de 155 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Dora atinge incontestavelmente a vida desses meninos e muda por completo o destino deles. Cabe aqui a palavra inspiração para definir Dora. Quando ela chegou ao Trapiche, trazida por João Grande e Professor, todos, inclusive Bala, pensaram em derrubála como faziam com as negrinhas no areal do cais. Depois, compreenderam que ela era uma menina e respeitaram-na. Foi aí que Dora se tornou uma mãezinha para todos. Uma irmã, companheira nas aventuras pelas ruas da cidade da Bahia. Todavia, para Pedro Bala ela sempre tivera um significado diferente. Para ele, era noiva. Apesar de um noivado puro, onde ficavam de mãos dadas, conversando amenidades e sorrindo um para o outro, Bala a desejava também. Desejava possuí-la, mas não por uma noite apenas e sim, por todas as noites de sua vida, como se possui a uma esposa. Seu noivado porém, é interrompido abruptamente. Pedro Bala é preso no Reformatório e Dora é levada para o Orfanato. Após ser surrado, Pedro Bala é confinado na cafua, um pequeno quarto debaixo da escada, onde ele não tem o direito de ficar em pé, assinalando assim um castigo pior do que surras, fome ou escuridão: a tomada de sua dignidade humana. Pedro é reduzido a um homem-cobra, como aquele que vira, certa vez, no circo. Um bicho, um animal, todos poderiam ser dados como isso ao serem aprisionados na cafua. Contudo, não podemos esquecer que Pedro Bala é o Líder. Ele é o chefe dos Capitães da Areia e é capaz de suportar toda e qualquer adversidade. 156 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Em todo o tempo que Bala passa na cafua, seu pensamento está em Dora. Dora também era sinônimo de liberdade naquele momento. Logo, quando consegue fugir do Reformatório, nu, pela gélida madrugada afora, rumo ao Sol, rumo à liberdade, Pedro Bala rapta sua noiva do Orfanato e a devolve aos seus filhos e irmãos no Trapiche. Mas a febre a consumia. Um mês no Orfanato fora o bastante para apagar nela a vontade de viver. Não adianta a reza forte da mãe-de-santo Don’Aninha, nem tampouco o tremor com receio de perdê-la dos Capitães da Areia. A grande paz da noite da Bahia está nos olhos da menina. A menina que se tornou moça no Orfanato. A mulher mais valente da Bahia por justamente ser uma menina. Mãe, irmã, noiva dos Capitães da Areia. Agora, ela é também esposa de Pedro Bala. Quando Dora afirma que não morrerá se ele a possuir, inconscientemente, está marcando irreversivelmente a vida de Pedro. Assim como revive a cada novo quadro de Professor, Dora sempre cruza o coração de Pedro Bala, o seu mais belo amado, quando este se põe a vislumbrar o céu estrelado de Salvador. Sim, pois só ele quis morrer com ela e só ele viu quando ela se transformou em uma estrela de longa cabeleira. Então, a certeza de que ela estaria sempre ali, velando e acalentando suas noites, fez com que ele renascesse das Terras do Sem Fim de Yemanjá, do mar verde e cinza e azul de Janaína que, assim como Dora fora para os Capitães da Areia, é a mãe de todos os filhos da cidade da Bahia. Nesta passagem, visualizamos o mar como um úte- 157 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ro. Ora, a comparação da água morna do mar com o líquido uterino já foi bastante difundida, no entanto, esse mar que acolhe os corpos de Dora e Pedro, sintetiza todo o espírito materno pois é igualmente transformador e protetor. Dora, ao morrer, retorna ao útero da mãe, que dessa vez não a transforma de semente em criança, mas de mulher em estrela, remetendo-a ao céu para, juntas – céu e mar – mães, aconchegarem a terra em um abraço. Sob a terra, Pedro, renascido também das entranhas protetoras do mar, transforma-se em um homem sem destino definido, mas possuidor de duas estrelas: a do céu e a do coração. Pedro Bala queria morrer no mar que levava o corpo de Dora, mas Janaína só mata aqueles que a desafiam, não os apaixonados, os amantes, como Dora e Pedro. Esses, são acolhidos como filhos, com amor. Eis que surge o futuro a sua frente. Bala e os outros líderes do grupo cresceram. Um a um, vão seguindo o destino. Bala é um dos últimos a decidir que rumo dar a sua vida e a demora dessa decisão de certa forma o angustia. “Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta” (Amado, 1982a, p.202). Pedro é filho de Loiro, estivador como João de Adão, que morreu em uma das greves das docas, lutando por sua classe. Em uma imagem, de um certo aspecto, piegas, Pedro Bala segue os passos do pai, se engajando na organização onde comandaria uma brigada de choque que intervém em comícios, greves, lutas obreiras. Não à toa seu nome é Pedro. Assim como o Apóstolo Simão, pedra fundamental da Igreja Católica, ao ser nomeado Pedro por Jesus, saiu a propagar e consolidar o Cristianismo entre os povos, o que do prisma religioso foi uma revolu158 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ção, Pedro Bala também sai a divulgar seus ideais comunistas com o desejo de que, como o poeta Thiago de Mello (1997, p.22) tão bem expressou, “a liberdade seja algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada seja sempre o coração do homem”. Assim, além de traçar seu destino, Bala também muda o destino das outras crianças do país inteiro. Ou, pelo menos, acredita que pode mudar. É jovem e ainda se permite sonhar. Capitão Pedro agora é o Camarada Pedro Bala e a palavra-chave para definir o heróico amado de Dora é companheiro. Para ele, essa é a palavra mais bonita do mundo. O estudante Alberto chama companheiro como Dora dizia irm„o. Dora. Sempre ela. A primeira e mais doce revolução que se alastrou em Bala. A definitiva revolução. 3 DORA NO UNIVERSO FEMININO DAS FIGURAS DE JORGE AMADO ìO modo como essas mulheres conseguem enfeitiÁar-nos com toda a perfeiÁ„o psÌquica concebÌvel atÈ atingirem seus propÛsitos È um dos grandes espet·culos da naturezaî Sigmund Freud 159 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 3.1 DO CHEIRO DE CRAVO, DA COR DE CANELA ìEstava para sempre cravada em seu peito, cosida em seu corpo, na sola dos pÈs, no couro da cabeÁa, na ponta dos dedosî Jorge Amado Gabriela foi a primeira personagem feminina amadiana a ser centro de uma narrativa. Desde o título da obra, percebemos que até as disputas dos coronéis do cacau ficam em segundo plano, cedendo espaço à amada de Nacib. Devemos levar em conta também que “sua construção está lastreada em várias figurações anteriores de um feminino que tinha sempre destacada sua força” (Duarte, 1997, p.94). Esse feminino anterior está presente nos romances sociais de Jorge Amado, componentes da primeira fase de sua obra. Com Gabriela, Cravo e Canela, o autor adentra às crônicas de costumes, priorizando o enfoque das relações humanas e conservando, contudo em segundo plano, a preocupação com o aspecto social. Dora exercia uma função quadridimensional, sendo mãe, irmã, noiva e esposa dos Capitães da Areia. Já Gabriela visualizava em Nacib esse caráter pluridimensional. “Para ela seu Nacib era tudo: marido e patrão, família que nunca tivera, o pai e a mãe, o irmão que morrera apenas nascido” (Amado, 1982b, p.289). 160 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Assim como Dora era no Trapiche, Gabriela era no Vesúvio, a única figura feminina a interagir em um universo masculino. Dora era a onda que batia nos alicerces do Trapiche, amornando o viver dos Capitães da Areia. A água, segundo Bachelard, dessedenta. Os Capitães da Areia estavam sedentos de amor e Dora veio saciá-los pois, no “devaneio da água, a água converte-se na heroína da doçura e da pureza” (Bachelard, 1989, p.158). Por outro lado, Gabriela é a lava quente e furiosa do Vesúvio, a se alastrar pelo juízo dos homens de Ilhéus. Chegamos então ao ponto dos elementos astrológicos e das funções psicológicas associadas aos mesmos. Hamaker-Zondag (1988, p.54) nos afirma que: O ser humano está ajustado para exercer todas as quatro funções psicológicas e elas o capacitam a se orientar no aqui e agora de maneira tão eficiente quanto o comprimento e a largura possibilitam que se oriente no sentido geográfico. A experiência, no entanto, ensinou-lhe que é sempre à base de apenas uma dessas funções que ele se ajusta à realidade. As funções psicológicas são vertentes de duas polaridades: racional – pensamento e sentimento; e irracional – percepção e intuição. O par racional abrange caracteres apreciativos e concernentes a julgamentos de valor, não tendo, o par irracional, nenhum julgamento conectado as suas observações. Atribuímos desse modo, o elemento astrológico água a Dora, pelo temperamento fleumático da noiva de Pedro Bala, a lidar com paciência, solidariedade e sabedoria com os Capitães da Areia. 161 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ A serenidade do mar esverdeado a lamber as pernas do Trapiche, vem encher de esperança a vida daqueles pequenos homens. Dora é racional. É uma mulherzinha de rosto muito sério a costurar, acarinhar, roubar, gargalhar com os Capitães da Areia, recheando a vida desses meninos de sentimentos bons, esquecidos na luta diária nas ruas da cidade da Bahia. O elemento fogo vem representado por Gabriela. É de se estranhar a associação de um temperamento colérico à doce Bié, todavia, se levarmos em conta sua ida ao circo, sua ajuda ao negro Fagundes, seus ensaios no Terno dos Reis, ações feitas sem o conhecimento de Nacib, podemos afirmar que tais atos constituem uma cólera surda que atingiria seu ápice na traição de Gabriela com Tonico. Mas, afinal, traição seria uma palavra adequada à índole de Gabriela? Vislumbramos Gabriela como um pássaro escarlate voando rumo à liberdade anil do céu. Como um pássaro, ela é intuitiva e irracional, vai sempre em direção de uma “vida ingênua e sem preconceitos” (Hamaker-Zondag, 1988, p.65). Desse ponto de vista, Gabriela foi, tão somente, honesta e leal a si mesma, a seus instintos. Ela sabe que é um objeto desejado e, ao mesmo tempo, é um sujeito desejante que, “pela fidelidade ao eros, se afirma enquanto tal a ponto de trocar o casamento pelo prazer e a segurança do lar por um momento de gozo” (Duarte, 1997, p.96). Assim, Gabriela não é um objeto sexual apenas; é também uma trabalhadora operosa, cozinheira ou costureira, que, apesar dos convites mil, nunca se rendeu a homem nenhum por dinheiro e sim, por prazer. 162 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Já em Dora, a sexualidade e a sensualidade vêm acometidas de traços puros e ingênuos. A primeira e única experiência sexual da menina é movida muito mais pelo amor do que pelo tesão. Ela age naturalmente, com o desejo doce de ser unicamente a esposa de Pedro. Notamos nas duas personagens uma metamorfose, um rito de passagem. Em Dora, o agente transformador é a água do mar. Quando ela morre, seu corpo é jogado ao mar, retornando assim ao útero materno, aos braços da mãe de todos os santos, Yemanjá. Ela, Dora, a menina que foi mãe daqueles homens mais meninos, agora também tinha sua mãe. Entretanto, a missão de uma mãe é muito mais árdua da de uma filha e assim, Dora sai das águas uterinas de Janaína, para cruzar o céu dos Capitães da Areia e zelar mais atentamente por eles. Por Gato, por Boa-Vida, por Professor, por Pedro Bala – uma estrela adorada de longa cabeleira loira. Em contrapartida, Gabriela se metamorfoseia com o casamento, tornando-se a Sra. Saad, transformação essa que operou de forma negativa na essência da mulata pois, “tem certas flores que são belas e perfumadas enquanto estão nos galhos, nos jardins. Levadas pros jarros, mesmo jarros de prata, ficam murchas e morrem” (Amado, 1982b, p.233). Então, “ tudo quanto Gabriela amava ah! era proibido à senhora Saad. Tudo quanto a senhora Saad devia fazer, ah! essas coisas Gabriela não as tolerava” (Amado, 1982b, p.289). Por isso foi fiel a si mesma, por isso voltou a ser só Gabriela, mulher-enigma tal qual Capitu; tal qual “o amor que não se prova, nem se mede. Existe e basta” (Amado, 1982b, p.316). 163 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 3.2 DA MULHER DE VADINHO E TEODORO ìPor que optar se quero as duas coisas? Por que, me diga?î Jorge Amado Em 1966, Jorge Amado apresentou a seu público a mais barroca de suas personagens femininas: Dona Flor. Ela tem a dualidade no coração – “o comedido Dr. Teodoro e o excessivo Vadinho” (DaMatta, 1997, p.121), e resolve esse impasse com uma atitude antitética: escolhe não escolher, decide não decidir, pois afinal, precisava de ambos para ser feliz. Com base no estudo de Hamaker-Zondag (1988, p.70), concluímos que Dona Flor pertence ao elemento ar pois “esse elemento é adequadamente o elemento de uni„o, muito embora o comportamento seja inegavelmente dualístico em algumas ocasiões”. Ora, Dona Flor vive em um impasse dual porque sua moralidade não admite ser mulher de dois maridos ao mesmo tempo. Todavia, o sentido de unidade nela existente impera e faz com que ela opte pelos dois. Já em Capitães da Areia, percebemos essa moralidade velada no comportamento de Dora em relação a Pedro Bala e Professor. Assim como Vadinho e Dr. Teodoro, os meninos também eram diferentes em quase tudo. A vivência das ruas e o amor por Dora era o que de mais forte os unia. Mesmo assim, a menina, só tinha olhos para Bala, “para ele era tudo: esposa, irmã e mãe” (Amado, 1982a, 160). 164 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Notamos com isso os traços românticos das primeiras obras de Amado – segundo Mário de Andrade, a morte de Guma também é prova disso – e a maior elasticidade com que ele passa a lidar com o sentimento de suas personagens em suas crônicas de costumes. Dona Flor possui um temperamento sanguíneo. Ativa e vigorosa, tem o amarelo como cor fundamental, exalando alegria e ânimo como um girassol pelas ruas doces e coloridas da cidade da Bahia. A dona da escola de culinária “Sabor e Arte” agia guiada pelos pensamentos, sendo a personificação da razão para o irresponsável Vadinho e para o ingênuo Teodoro. Nesse ponto, Dona Flor aproximava-se de Dora que também era o eixo racional que, sentimentalmente, iluminava o caminho dos Capitães da Areia. Outro aspecto comum entre as personagens é o saldo positivo que ambas obtiveram de suas metamorfoses naturais. Enquanto Dora, por meio das águas maternais do mar, renasce como uma estrela de loira cabeleira continuando em outro plano sua missão de clarificar a existência dos meninos do Trapiche, Dona Flor, com seus dois casamentos, atinge a unidade de dois pólos que, aparentemente opositores, eram, na verdade, lados complementares de uma mesma moeda – a da felicidade. Dona Flor carrega consigo toda uma sensualidade colorida do alto de seus trinta anos e de sua convivência com dois maridos. Dora é uma menina, órfã, teimando em viver, tentando ser feliz apesar dos dissabores. Apesar da aproximação de ambas no que tange a divisão entre dois amores; o racional a movimentar seus atos; e a positividade de suas transformações ao longo da vida, não podemos ignorar aquele que é o traço mais contundentemente oposicional entre ambas: a maternidade. 165 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Dona Flor, mulher feita, mesmo consciente da paixão que Vadinho nutria por crianças, nunca se encorajou a submeter-se a uma cirurgia que revertesse sua dificuldade em ter filhos. Por medo ou por um surdo egoísmo, Dona Flor abdicou da maternidade, negando aos seus maridos e a si mesma essa alegria. Em Dora, nascida sob o signo do elemento água, a função maternal é mais significativa, agindo na menina mesmo que de forma inconsciente. Afinal, “dos quatro elementos, somente a água pode embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter feminino: ela embala como uma mãe” (Bachelard, 1989, p.136). Assim, Dora é uma mãe virginal, uma nossa senhorazinha, como diria Vinícius de Moraes; uma mãe no sentido sentimental da palavra. A mãezinha que costurava as roupas de Gato, a sertaneja que temia pelo futuro de Volta Seca, a mãe que encorajava Pirulito, a terna mãe que acalentava o sono de Zé Fuinha e de todos os pequeninos do Trapiche. Não podemos esquecer contudo, que também Dora era órfã; também ela precisava de uma mãezinha, e essa redenção só vem com sua morte, quando “a água leva-a, a água embala-a, a água adormece-a, a água devolve-a a sua mãe” (Bachelard, 1989, p.136), à mãe daqueles que amam a Bahia, com todos os seus encantos e seus mistérios: Janaína. Os mesmos encantos e mistérios que fizeram Vadinho reviver e se unir a Teodoro naquele que é o ideal do bem viver: o casamento daquilo tudo que é maldito e lindo com o que é correto e tedioso – o casamento de Dona Flor e seus dois maridos. 166 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ 3.3 DA LUZ DE TIETA “Durou pouco a placa azul, sumiu durante a noite. Em lugar dela pregaram uma de madeira, confeccionada por mão artesanal e anônima: RUA DA LUZ DE TIETA. M„o artesanal e anÙnima. M„o do povoî Jorge Amado Com Tieta do Agreste, Jorge Amado nos envolve em mais uma crônica de costumes, e desta vez com um requinte a mais: traços naturalistas na escrita. Ora, Tieta menina era pastora de cabras; Tieta mulher era pastora de prostitutas. Sim, a filha pródiga do Agreste era dona do Refúgio dos Lordes, bordel refinado de São Paulo. As meninas que lá trabalhavam, chamavam-na de Mãezinha, sendo Tieta enfim, assim como Dora, mãe de uma minoria marginalizada. Dora era a mãezinha de pequenos ladrões e Tieta, de jovens prostitutas. Podemos abranger essa comparação e dizer que Dora era também um ladra e Tieta, era também uma prostituta. Ambas saíram de casa muito cedo. Os pais de Dora foram fatalmente vitimados pela varíola e ela, junto com Zé Fuinha, se viu sozinha no mundo. Já Tieta, foi surrada e expulsa de casa em um exercício de moralidade que Zé Esteves não praticava em sua própria vida. Logo, afastadas do convívio familiar, Tieta e Dora, ambas meninas, passam a ser marginais, a viver à margem da sociedade. 167 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Contudo, enquanto Dora roubava, os outros, para sobreviver, Tieta roubava a si mesma, entregando seu corpo aos homens. Dora é uma virgem romântica; Tieta é uma cabra naturalista. Não se pode condenar ou louvar portanto, a atitude de nenhuma das duas. Devemos tão somente entendê-las a partir da cronologia bibliográfica de Jorge Amado e de seu amadurecimento enquanto autor, sendo mais profundo em sua análise do elemento humano em suas crônicas de costumes sem deixar no entanto, de questionar o aspecto social que os envolve. Por terem sido retiradas abruptamente do seio familiar, ambas sentem a chama do eterno retorno a arder em suas vidas. Dora retorna, através da morte, ao útero materno, ao mar da cidade da Bahia. Tieta, mulher feita, volta à Sant’Ana do Agreste para, mais que ser recolhida elo mar de areia de Mangue Seco, ajustar contas com o seu passado, enfrentar seus algozes de igual para igual e sarar as feridas de seu peito. Tieta herdou de Mangue Seco a força do elemento terra, a melancolia do reflexo branco da areia a se harmonizar com a liberdade azul do céu da Bahia. Completando essa pintura, temos o verde e sereno mar maternal de Dora e, a própria Dora, a cruzar o céu quando este já está envolto pela noite. Assim, água e terra irão metamorfosear ou, para utilizarmos um termo mais adequado, vão purificar Dora e Tieta respectivamente, visto que as duas transformações serão positivas para ambas. Dora volta a sua essência, feito estrela cadente que é, e Tieta escancara os tabus e preconceitos que envol- 168 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ vem seu clã, fazendo-os ver, através de sua conduta espontaneamente voraz e sedutora, que eles também eram iguais a ela. Nem melhores nem piores. Humanos. Perpétua e Zé Esteves em sua ânsia por dinheiro; Elisa, Ricardo e Peto no afã do prazer e do gozo, um a um, eles vão revelando seus caracteres. Engana-se quem vê em Tieta uma vingadora. Ela é o elemento catártico da família, sendo a sua própria catarse oriunda de Mangue Seco, paraíso onde ela cresceu, virou mulher, reencontrou-se e onde pretende envelhecer. Enquanto Dora dá equilíbrio sentimental aos Capitães da Areia, fazendo-os enxergar que ainda eram crianças e que havia alguém, mãe ou irmã, a zelar por eles, Tieta lidava com as pessoas ao seu redor, de forma irracional. Ora, Tieta era obstinada, prática, controlada, todavia, agia, muitas das vezes, movida pela percepção, por existir dentro dela “um constante desejo de perceber coisas e a sensação física não ser evitada” (Hamaker-Zondag, 1998, p.68). Prova disso é a sua primeira experiência sexual, seu envolvimento com Lucas e sua paixão por Ricardo. Atos impensados para muitos, mas naturais à essência de Tieta. Outro vestígio dessa percepção aguçada, é a preocupação em aparentar para a família uma posição social e moral que não condizia com a verdade, afinal, “o ser humano perceptivo está preparado para se sacrificar a fim de conservar as aparências” (Hamaker-Zondag, 1998, p.68). Graças a Ascânio, ferido em seu orgulho, maior que o amor que nutria por Leonora, vem à tona a verdade sobre a filha do meio de Zé Esteves. Enfim, Tieta está livre. Livre como só na Bahia se pode ser. 169 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Luciana de Moraes Rayol ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ 5 EPÍLOGO Na abertura do romance Cacau, Jorge Amado confessa-nos que o escreveu com “um mínimo de literatura para um máximo de honestidade”. Isso aconteceu em 1933 e ele tinha vinte e um anos – a minha idade hoje. O que eu posso dizer ao término de minha pesquisa é que a primeira parte, sobre os Capitães da Areia foi feita com o máximo de paixão. Me apaixonei e desapaixonei várias vezes por esse trabalho, sabedora de que, sem bibliografia acerca desse assunto, ele dependia só de mim, da minha percepção e da minha ternura e, talvez por isso, essa unidade prima tenha sido mais leve de ser feita, pois éramos apenas Dora, os Capitães da Areia e eu. Então, gargalhei, corri, burlei a lei, rodei no velho carrossel, chorei com eles. Na segunda fase porém, me vi embasada por outros autores, mas ao mesmo tempo, confusa. Ora, eu já me achava a pessoa mais auto-suficiente do mundo. Assim, foi meio complicado encaixar as teorias de Hamaker-Zondag, Bachelard, DaMatta e Assis Duarte a minha explanação, afinal, uma Capitã da Areia tem o espírito muito livre para se prender às idéias dos outros. Contudo, aprendi a fazê-los meus aliados e hoje penso que cumpri minhas metas. Escrevi sobre uma menina que foi muito mais mulher do que muitas por aí; e analisei um autor que está há muitos anos-luz dessa crítica cética perante ao fato de termos um escritor apaixonante e indecifrável entre nós. 170 Dora - Uma Estrela de quatro pontas, uma ponta da estrela ideal ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ Indecifrável pois, quando todos pensam que suas personagens são parecidíssimas, surge alguém dizendo-as partes de um todo ideal! Enfim, o que restou desse trabalho para mim foi uma saudade do tamanho do mar verde e azul e cinza de Janaína. Para amenizar essa falta, ainda ontem Dora cruzou o céu da minha janela e revolucionou meu coração, igualzinho como fez com Pedro Bala. 171 ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMADO, Jorge. Cacau. Rio de Janeiro: Record, 1982. ____________. Capit„es da areia. Rio de Janeiro: Record, 1982a. ____________. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record, 1982b. BACHELARD, Gaston. A ·gua e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989. DAMATTA, Roberto. Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 3, p.120-135, mar. 1997. DUARTE, Eduardo de Assis. Classe, gênero, etnia: povo. Cadernos de Literatura Brasileira, n. 3, p.88-97, mar. 1997. HAMAKER-ZONDAG, Karen. Astropsicologia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. BIBLIOGRAFIA AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos. Rio de Janeiro: Record, 1982. ____________. Tieta do Agreste. Rio de Janeiro: Record, 1982. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Nova Cultural, 1987. AZEVEDO, Sebastião Laércio de. Dicion·rio de nomes de pessoas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. BOSI, Alfredo. HistÛria concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 172 CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT. Dicion·rio de sÌmbolos. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1989. DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996. MORAES, Vinicius de. Antologia poÈtica. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. São Paulo: Martins, 1969. VERÍSSIMO, Érico. Clarissa. Porto Alegre: Globo, 1981. _______________. O tempo e o vento. Porto Alegre: Globo, 1981. 173 174 UMA ANÁLISE CONTRASTIVA: o ensino de leitura e prática redacional em dois livros didáticos de Português (5ªsérie) SAUL CABRAL GOMES JÚNIOR O trabalho Uma an·lise contrastiva: o ensino de leitura e pr·tica redacional em dois livros did·ticos de portuguÍs (5™ sÈrie), de Saul Cabral Gomes Júnior representa um acurado e sério estudo de pesquisa acerca de questões ainda hoje discutidas e discutíveis, no ensino de língua portuguesa, como é o caso do binômio leitura/redação, chegando ao final do estudo a concluir o comportamento impróprio adotado, em algumas escolas, com relação a um ensino simples e básico: o ler e o escrever. Pela temática desenvolvida, pela bibliografia adotada e ainda pelo acurado senso crítico com que tratou a questão, sou de parecer favorável à publicação do trabalho em apreço. Prof. Dr. Rosa Assis. O trabalho de conclusão de curso “ Uma an·lise contrastiva: o ensino de leitura e pr·tica redacional em dois livros did·ticos de PortuguÍs (5™ sÈrie)î, de Saul Cabral Gomes Júnior, é uma análise séria e bem fundamentada em que coloca em confronto questões básicas sobre o ler e o escrever em sala de aula. Pelas questões discutidas, pela bibliografia atualizada, pela seriedade do trabalho, sou de parecer favorável à publicação do texto em consideração. Prof. Raymundo Jurandy Wangham 175 Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ U ma observação superficial levar-nos-á a constatar que, ainda hoje, ensinar Português consiste em transmitir conteúdos que se limitam à metalinguagem, ou seja, à mera investigação de alguns aspectos da estrutura da própria língua. Deste modo, nega-se ao aluno o desenvolvimento de suas duas habilidades lingüísticas essenciais: a leitura e a produção textual. Além de ir de encontro a postulados de lingüistas como Halliday, essa privação contraria o que se encontra exposto na LDB promulgada em 1996. No capítulo IX desta legislação (intitulado DO ENSINO FUNDAMENTAL), especificamente no Art. 48, lê-se a seguinte explicitação: O ensino fundamental tem por objetivos especÌficos: I - o domÌnio da leitura, da escrita e do c·lculo, enquanto instrumentos para a compreens„o e soluÁ„o dos problemas humanos e o acesso sistem·tico aos conhecimentos [grifos nossos]1 ; (...). 1 LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da CD / com comentários de Dermeval Saviani et alii. São Paulo: Cortez, 1990, p. 32. 176 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Assim, percebe-se que, segundo a atual LDB, a leitura e a prática da escrita constituem as duas atividades básicas a serem desenvolvidas na escola, no que concerne ao ensino de Língua Portuguesa. Daí o processo de reformulação que vem se impondo a este ensino, que visa, sobretudo, a dirimir seu caráter estritamente metalingüístico. Nesse contexto de reconcepção do ensino de Português, faz-se imprescindível que se integre a este processo o principal instrumento da prática de ensino da língua materna: o livro didático. Este recurso docente vem-se mostrando portador de diversas incoerências e deficiências, particularmente no que diz respeito à formulação de exercícios, caracterizando-se, principalmente, pelo excesso de questões objetivas, ou de mera compreensão, que em nada estimulam a criatividade lingüística do aluno. Trata-se, acima de tudo, de inserir o livro didático nesse processo de reelaboração da metodologia de ensino do Português. Nessa busca de aprimoramento do livro didático, torna-se fundamental o procedimento da análise contrastiva, que nos possibilita o confronto entre o vigente ensino quantitativo e o ensino qualitativo, que prima pela proficiência discente na área de leitura e produção de textos. Objetivando-se contribuir para o desenvolvimento da competência textual do aluno, decidiu-se, neste trabalho, confrontar dois livros didáticos de Português (5ª série) - “Português através de textos”, de Magda Soares, e “Ação e reflexão em língua portuguesa”, de Marilda Prates -, expondo as convergências e as divergências que eles apresentam no que se refere às duas modalidades básicas de atividade: leitura e prática redacional. Para esta análise contrastiva, dentre os variados tipos de atividade constantes no livro didático de Português, optou-se pela leitura e produção textual devido ao fato de se- 177 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ rem estas que viabilizam a efetiva conexão do aluno ao uso concreto da língua, habilitando o estudante a compreender e utilizar proficientemente os recursos funcionais da língua e demonstrando-lhe a importância da sua própria competência lingüística neste aprendizado. II - O que é análise contrastiva? Conforme se evidencia no título deste trabalho, esta pesquisa fundamentar-se-á na análise contrastiva. Este procedimento é um dos mais eficientes recursos de que a Lingüística Aplicada se utiliza para garantir a boa qualidade do material didático. A análise contrastiva consiste na confrontação entre dois elementos ou textos didáticos para constatar-se o que eles possuem de comum e/ou de diferente. No caso específico deste trabalho, os elementos a se confrontarem serão dois livros didáticos de Português. A análise contrastiva dá ênfase às igualdades, às semelhanças, bem como aos contrastes, às dessemelhanças existentes entre um elemento didático e outro. Partindo-se dos resultados dessa confrontação, chega-se à corroboração de que um elemento didático encontra-se mais atualizado, oferece melhores instrumentos de aprendizagem, apresenta maior nível qualitativo em relação ao outro. Nota-se, dessa maneira, a indissociabilidade existente entre a contrastividade e outra propriedade da Lingüística Aplicada: a atualidade. O principal objetivo de uma análise contrastiva de texto didático é comprovar o caráter ultrapassado de determinado livro didático, através do paralelo traçado entre este livro e outro que comporte maior adequação às necessidades, às aspirações do tempo presente. 178 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A exposição de fatores negativos constantes em um material didático contribui, fundamentalmente, para o aprimoramento da atuação da Metodologia do ensino das línguas (ou Didática das línguas), consoante afirmam Gallison e Coste2 : Definitivamente (...), parece um fato que a metodologia j· n„o pode dispensar os seus serviÁos [os da an·lise contrastiva] numa forma ou noutra (comparaÁ„o dos cÛdigos, an·lise dos erros), porquanto razões de economia e de efic·cia incitam-na a ordenar cada dia mais rigorosamente os materiais ling¸Ìsticos que ela escolhe. Essa consistente contribuição que a Didática das línguas recebe da análise contrastiva demonstra a inter-relação entre este procedimento e aquela disciplina. Daí que, para atribuir-se um caráter integral a este trabalho, imponha-se a busca de um paralelo entre os aspectos conteudísticos e também entre as estratégias metodológicas contidas em cada um dos livros didáticos em análise. Desta forma, repete-se, aqui, o “pedido de licença” que Halliday et alii., na obra As ciências lingüísticas e o ensino de línguas3 ., dirigem aos pedagogos, 2 GALLISON, R. & COSTE, D. Dicionário de didáctica das línguas. Coimbra: Almedina, 1983, p. 57. 3 HALLIDAY, M. A. K. et alii. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis: Vozes, 1974. 179 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ visto que o sucesso do ensino de leitura e prática redacional depende não apenas do conhecimento teórico docente acerca dessas duas atividades escolares, mas também - e basicamente - do conhecimento metodológico que possibilita ao professor saber conduzir com eficácia as atividades de leitura e produção textual. III - Tipos de ensino de língua Antes de incursionar-se especificamente pelo ensino de leitura e prática redacional nas obras em questão, faz-se conveniente realizar-se um apanhado global dos tipos de ensino de língua, definidos por Halliday et alii. Estes lingüistas expõem três tipos de ensino: o prescritivo, o descritivo e o produtivo. Considerando-se que cada tipo de ensino de língua se encontra estreitamente ligado a um objetivo de ensinar-se a língua materna, ao conceituarem-se os tipos de ensino, explicitar-se-á simultaneamente o objetivo ao qual cada um deles se relaciona. 1) Ensino prescritivo O prescritivo é o ensino normativo da língua. Ele consiste na transmissão de um aglomerado de regras gramaticais que o aluno deverá assimilar, tomando-se este conjunto de regras como a forma “correta” da língua. Com relação ao “para que ensinar-se prescritivamente a língua?” e à caracterização deste tipo de ensino, elucidam Halliday et alii. (op. cit., p. 260-261): 180 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ [responde-se ‡ supracitada pergunta:] ëpara ensinar as crianÁas a substituÌrem aqueles de seus padrões de atividade ling¸Ìstica que s„o inaceit·veis por outros padrões, aceit·veis.í (...) O ensino prescritivo significa, portanto, selecionar os padrões, em qualquer nÌvel, que s„o favorecidos por alguns membros da comunidade ling¸Ìstica, inclusive os mais influentes, e usar pr·ticas padronizadas de ensino, para persuadir as crianÁas a se conformarem ‡queles padrões. Esse tipo de ensino ignora as variedades lingüísticas, visto que seu objetivo único é levar o aluno a dominar a norma-padrão da língua. Deste modo, do ponto de vista prescritivo, a única variedade a ser ensinada é a escrita, porque a oral comporta “erros” que devem ser, a todo custo, isolados. O ensino prescritivo tem espaço garantido em sala de aula, pois todos os três tipos de ensino o têm, “desde que sejam razoavelmente equilibrados e compreendidos seus diferentes propósitos” (Halliday et alii, op. cit., p.260). A prescrição mostrar-se-á necessária ao ensinarem-se as convenções ortográficas, por exemplo, já que se trata do ensino de uma arbitrariedade da língua escrita. Deve-se, apenas, poupar o ensino de um caráter predominantemente prescritivo, a fim de que não se iniba a criatividade lingüística do aluno e de que não se imponha um empecilho ao desenvolvimento de sua expressão oral. Preju181 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ízos ainda maiores serão evitados caso seja abolida a conversão do ensino prescritivo em proscritivo. Este designa o ensino de um conjunto de regras que não devem ser cumpridas, acabando por imbuir a mentalidade discente de erros. 2) Ensino descritivo O ensino descritivo objetiva demonstrar ao aluno o modo como a língua funciona, patenteando-lhe a estrutura lingüística interna. Ele trata de todas as variedades lingüísticas, almejando ensinar novas habilidades ao estudante, sem, no entanto, alterar o conhecimento lingüístico que o indivíduo adquire no lar. Esse tipo de ensino atende ao seguinte objetivo: “(...) ensinar o aluno a pensar, a raciocinar, a desenvolver o raciocínio científico, a capacidade de análise sistemática dos fatos e fenômenos que encontra na natureza e na sociedade.” 4 O ensino descritivo, juntamente com o prescritivo, tem conquistado amplo espaço nas aulas de língua materna, dado que, nestas aulas, tem-se percebido a preponderância de atividades normativas e metalingüísticas. Estas últimas são conceituadas por Travaglia (op. cit., p. 34-35): “As atividades metalingüísticas [grifo do autor] são aquelas em que se usa a língua para analisar a própria língua, construindo então o que se chama de metalinguagem, isto é, um conjunto de elementos lingüísticos próprios e apropriados para se falar sobre a língua”. 4 TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996, p. 39. 182 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Geraldi5 distingue, com muita propriedade, os produtos do ensino do uso lingüístico e os do ensino da metalinguagem: (...) uma coisa È saber a lÌngua, isto È, dominar as habilidades de uso da lÌngua em situaÁões concretas de interaÁ„o, entendendo e produzindo enunciados, percebendo as diferenÁas entre uma forma de express„o e outra. Outra, È saber analisar uma lÌngua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a lÌngua, se apresentam suas caracterÌsticas estruturais e de uso. 3) Ensino produtivo O ensino produtivo visa a ensinar novas habilidades ao aluno, abarcando todas as variedades lingüísticas, pois que tem, como meta primordial, levar o estudante a estender o uso de sua língua materna do modo mais eficaz possível. Assim sendo, nota-se a vinculação desse tipo de ensino ao objetivo de aprimorar-se a competência comunicativa do aluno, que se desdobra em duas: 5 GERALDI, João Wanderley. “Concepções de linguagem e ensino de português”. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997, p. 45-46. 183 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ a) competência lingüística, ou seja, a capacidade de gerar seqüências lingüísticas que os usuários da língua considerem seqüências próprias da língua em questão; b) competência textual, isto é, a capacidade de, em situações de interação comunicativa, produzir e compreender textos de consistência efetiva. Buscando-se proporcionar ao aluno a aquisição da proficiência comunicativa, o ensino produtivo concentra-se na maior unidade lingüística: o texto (ou enunciado). Daí que este tipo de ensino se baseie em atividades epilingüísticas, cuja definição é cedida por Travaglia (op. cit., p. 34): “As atividades epilingüísticas [grifo do autor] são aquelas que suspendem o desenvolvimento do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no curso da interação comunicativa, tratar dos próprios recursos lingüísticos que estão sendo utilizados, ou de aspectos da interação (...).” Ao fundamentar-se na compreensão e na elaboração de textos, o ensino produtivo possibilita que o estudante apreenda a adequação do ato comunicativo a diferentes contextos. Desta forma, no referido ensino, priorizam-se os dois tipos de exercício que, segundo Fonseca & Fonseca6 , devem ocupar a maior parte do tempo destinado às aulas de língua materna: praticar a comunicação, exercitando a linguagem em situações concretas de produção discursiva não dialógica, de recepção e de intercâmbio; e analisar a comunicação, refletindo sobre o instrumental utilizado para a efetuação dos discursos criados nas referidas atividades de prática da comunicação. Notabiliza-se que o ensino produtivo atrela-se à concepção da linguagem como forma de interação, uma vez que valoriza os efeitos da mensagem executada sobre o ouvinte, levando em consideração as finalidades dessa mensagem e os meios para que ela se efetive. 6 FONSECA, Fernanda & FONSECA, Joaquim. Pragmática lingüística e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1990. 184 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Voltando-se a atenção para o restrito espaço que este tipo de ensino tem ocupado nas aulas de língua materna, constata-se a necessidade de esta situação ser revertida, visto que o ensino produtivo proporciona, com primazia, o desenvolvimento das duas habilidades lingüísticas essenciais do aluno: a leitura e a produção textual. IV - A interface leitura X produção textual Devido a este trabalho consistir em uma tessitura de considerações sobre o ensino de leitura e prática redacional, deve-se destacar, aqui, a indissociabilidade existente entre essas duas habilidades lingüísticas. Ao tratar-se do ensino de produção textual, não se pode deixar de mencionar a leitura, pois é esta que fornecerá o instrumental necessário para que o aluno execute eficientemente aquela. Em busca de demonstrar a inter-relação entre leitura e prática redacional, convém uma recorrência ao gerativismo. Fazendo-se uso da terminologia própria dessa corrente lingüística, pode-se asseverar que é através da leitura que o aluno adquire a “competência” para o “desempenho” da escrita. Daí a imprescindibilidade de a leitura constar na metodologia de ensino de prática redacional, visto que a ausência da leitura antes da redação gera a impossibilidade de que o escrito do aluno alcance a textualidade, ou seja, a propriedade de ser um texto. O exercício da leitura possibilita que o discente, por meio do processamento de textos, apreenda os sete fatores de textualidade, a saber: a coerência, a coesão, a informatividade, a situacionalidade, a intencionalidade, a aceitabilidade e a intertextualidade (cf. Costa Val7 ). 7 COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 185 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ O ato de ler, além de proporcionar o contato prévio do aluno com a língua escrita, serve como um elemento motivador para o exercício da redação. Conforme expõe Silva8 , produzir um texto é exteriorizar algo internalizado, adquirido através de diferentes leituras; é dialogar com o leitor quer se fazendo ouvir, quer se fazendo ler. Para que o estudante construa um texto, faz-se imprescindível um conteúdo a ser expresso por esse texto. Este conteúdo será concedido pela leitura. Dialeticamente, ao atingir o nível crítico, a leitura tem como culminância a produção de textos. Assinalam Azambuja & Souza9 : “Quando o Estudo de Texto não se limita a um receber de significados, de modo passivo e acrítico, ocorre uma interação entre aluno-texto-autor, gerando, no aluno, uma necessidade de expressar algo que foi ativado durante as leituras”. Todo o conhecimento, a gama de informações, que o discente obtém através da leitura é exteriorizado por meio da elaboração textual, resultando em uma ação produtiva de receber e emitir. Uma das maiores assimilações feitas pelo leitor competente é a variabilidade lingüística. A leitura dos mais variados tipos de texto torna possível ao aluno a percepção de que a língua escrita - assim como a falada - comporta diferentes registros e graus de formalismo. O estudante explicitará essa percepção ao produzir os mais diversos tipos de texto, mostrando-se apto a adequar sua competência lingüística às distintas situações e exigências do meio social. 8 SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler - fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 1996. 9 AZAMBUJA, Jorcelina Queiroz de & SOUZA, Maria Letícia Rocha de. “O estudo de texto como técnica de ensino”. In:VEIGA, Ilma Passos de Alencastro (org.). Técnicas de ensino: por que não? 3ª ed. Campinas: Papirus, 1995, p. 30. 186 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ V - Bases teóricas para um ensino eficiente de leitura A fim de que o ensino de leitura atinja seu objetivo principal, que é formar leitores críticos e capacitados ao entendimento de qualquer gênero de texto, faz-se necessário que se considerem as bases conceituais fornecidas pelos lingüistas e educadores que vêm se dedicando ao estudo do processamento do texto por parte do aluno. Ler um texto com eficácia, muito além de decodificar a palavra escrita, é extrair-lhe a significação, apreendendo aprofundadamente a mensagem nele contida. Com vistas a que se consolide este processo de depreensão do sentido textual, o material didático deve favorecer a exercitação de habilidades de leitura inerentes ao aluno. A primeira dessas habilidades a ser citada é o estabelecer-se do relacionamento entre leitura de mundo e leitura do texto. A leitura não se limita ao código escrito, conforme assinala Freire10 . Segundo este autor, procurando-se abarcar a exata dimensão do conceito de ler, pode-se afirmar que este ato consiste em atingir a compreensão de todo tipo de objeto que se coloca à observação do sujeito-leitor no decorrer de sua vivência. A esta idéia global de leitura, denomina-se leitura de mundo. Desse modo, é imprescindível que o ensino de leitura leve em conta o conhecimento que o indivíduo já possui antes de ingressar na escola, adquirido através de sua leitura de mundo. Ensina-nos Joel Martins, no prefácio de Silva (op. cit., p. 18): “A essência do ato de ler é, então, selecionar e com- 10 FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler - em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1986. 187 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ binar itens relevantes da experiência que estão presentes de forma implícita no texto, nas emoções do autor, no equilíbrio afetivo, nas intenções e no conhecimento anterior do leitor e que pode esclarecer o significado de um texto”. Surge, assim, a noção de conhecimento prévio: A compreens„o de um texto È um processo que se caracteriza pela utilizaÁ„o de conhecimento prÈvio: o leitor utiliza na leitura o que ele j· sabe, o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. (...) Pode-se dizer com seguranÁa que sem o engajamento do conhecimento prÈvio do leitor n„o haver· compreens„o.11 Na constituição do conhecimento prévio, participam outros níveis de conhecimento além do de mundo. Destaquem-se os outros dois seguintes: conhecimento lingüístico, congênito a todo falante de uma língua, que abrange subconhecimentos, como o de pronúncia, o léxico-gramatical e o referente ao uso da língua; e conhecimento textual, que permite ao indivíduo identificar os distintos tipos de texto (diferenciando, por exemplo, uma carta de uma receita de bolo) e as diferentes formas de estruturação textual (estruturas expositiva, descritiva e narrativa). Kleiman (op. cit.) ressalta 11 KLEIMAN, Angela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6ª ed. Campinas: Pontes, 1999, p. 13. 188 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ que é mediante a interação destes níveis de conhecimento que o leitor constrói o sentido textual. Devido à utilização desses diversos níveis cognitivos que interagem entre si, atribuise à leitura um caráter interativo. Para explicitar-se o processo interativo que se empreende quando da leitura de um texto pelo aluno, utilizar-se-á o seguinte modelo gráfico, proposto por Silva (op. cit., p. 92): ATO DE LER Mundo Documentos RecepÁ„o ConsciÍncia do ConstataÁ„o Cotejo Documento TransformaÁ„o Intencionalidade AtribuiÁ„o de Significado ExperiÍncia dos ExistÍncia do Horizontes Ser Leitor do Texto Posicionamento do ser no Mundo como Leitor Abertura da ConsciÍncia Compreens„o Leitura para o Texto Possibilidades de ModificaÁıes do Documento ou CriaÁ„o de Novas DerivaÁıes Do quadro anterior, depreende-se que a apreensão da mensagem textual por parte do aluno somente ocorrerá caso o conteúdo do texto esteja adequado à vivência do indivíduo discente. No que se refere particularmente ao objeto desta pesquisa, demonstra-se a necessidade de os textos dos livros didáticos de 5ª série estarem de acordo com a experiência, com a capacidade de percepção do estudante, de modo que este possa atribuir-lhes significação, compreendendo-os de fato. Essa imprescindibilidade de os textos didáticos serem correspondentes à experiência de vida discente é explicitada por Perini, quando este autor postula que apenas desta maneira o livro didático estará contribuindo efetivamente para que o aluno adquira a leitura funcional, ou seja, a leitura através da qual ocorre a depreensão de conteúdos informa- 189 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ tivos, habilitando-se o leitor a interpretar qualquer mensagem presente no universo verbal que o cerca. “Não é raro encontrar textos de terceira ou quarta série cuja complexidade se compara à de textos universitários; não é de admirar que os alunos se vejam derrotados frente a eles. Estou convencido de que esse fato é um dos fatores do fracasso da escola em alfabetizar funcionalmente.”12 O autor supracitado encontra duas funções nos textos didáticos de séries iniciais: servir como fonte de informação ao aprendiz cognoscente; e iniciar consistentemente o estudante na área da leitura, já que aqueles textos são os que proporcionam o contactar-se primordial do aluno com a língua escrita. Para que se cumpram essas funções, assinala: “Acredito que os textos deveriam ser graduados quanto à sua dificuldade de leitura, de modo que um texto de terceira série fosse significativamente mais simples do que um de oitava série, ou um de nível universitário” (Perini, op. cit., p. 82). Outra habilidade discente a ser desenvolvida pela leitura é a aquisição do léxico. A capacidade de armazenamento lexical, inata ao falante-leitor e possibilitada pela memória de longo termo (cf. Kato13 ), é desempenhada por meio do contato do aluno com o vocabulário contido nos textos didáticos. “É através da aula de leitura, através da análise do texto para examinar os efeitos conseguidos pelo autor que esse ensino é possível, sendo que essa análise poderá ser incorporada à escrita dos alunos, com as diferenças devidas às diversas competências discursivas.”14 12 PERINI, Mário A. “A leitura funcional e a dupla função do livro didático”. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura - perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988, p. 84. 13 KATO, Mary A. No mundo da escrita - uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1995. 14 KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989, p. 205-206. 190 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Assim, percebe-se que o enriquecimento do léxico, viabilizado pela leitura, concorrerá para o aprimoramento da competência textual do discente na prática da escrita, visto que o aluno incorporará o acervo lexical obtido, automaticamente, ao seu texto, mostrando-se possuidor de conhecimento verbal suficiente para expressar a contento suas idéias. Cite-se a última habilidade discente a ser desenvolvida pela leitura: a assimilação da variabilidade lingüística. A diversificação dos textos constantes nos livros didáticos é fundamental para o aprimoramento da competência comunicativa do estudante, pois somente através dela se pode demonstrar ao aluno que a língua não é um código uniforme, mas sim um sistema que comporta variações. Destas, que se manifestam tanto na língua falada quanto na língua escrita, se vale o indivíduo para adaptar-se às distintas situações que o convívio em sociedade lhe impõe. Além da assimilação da variabilidade da língua, a diversidade dos textos didáticos proporciona ao discente a aquisição de uma ampla gama de informações não-visuais15 , ou seja, dados referentes à realidade extralingüística do indivíduo, que subjazem ao código lingüístico expresso no papel. Ao travar contato com variadas espécies de texto, o aluno deparase com diversas leituras de mundo, o que possibilita que ele, partindo dessas leituras, construa a sua própria visão crítica sobre a realidade que o cinge. 15 Na obra Como facilitar a leitura (São Paulo: Contexto, 1992), as autoras, Lúcia Fulgêncio e Yara Liberato, distinguem dois tipos de informação adquirida por intermédio da leitura: as visuais, que vêm a ser as propriedades da língua escrita, a exemplo da ortografia; e as não-visuais, que consistem nas informações contidas na macroestrutura textual, isto é, no plano das idéias que compõem o texto. 191 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ VI - Bases teóricas para um ensino eficiente de prática redacional A prática da escrita consiste, essencialmente, na exteriorização das informações obtidas através do processamento do texto. Daí a necessidade de que a leitura seja uma atividade prévia à execução da escrita, já que, ao redigir, o aluno desempenha o conhecimento advindo da leitura. Evidencia-se, portanto, que a proficiência na escrita depende, irremissivelmente, de um eficiente aprendizado de leitura. Conforme já se destacou na seção IV deste trabalho, é a leitura que viabiliza a ação introdutória do processo de escrever: a formulação de idéias. Dado este passo inicial, o discente deve ocupar-se somente com o exercício da competência que a leitura de textos lhe oferece. Essa competência, cujo desempenho eficaz - considerando o enorme prestígio que a sociedade contemporânea vem concedendo à escrita - é de ordem efetivamente pragmática, resume-se, basicamente, à capacidade de distinguir língua falada e língua escrita. A produção de textos impõe ao estudante a imprescindibilidade de praticar essa distinção, que, embora transformada pela escola em fator de discriminação social, é uma realidade patente na comunicação cotidiana. A fala e a escrita são meios de comunicação verbal distintos, que atendem a necessidades comunicativas diferentes. Voltando-se à escrita, Kato (op. cit., p. 31) expõe algumas das diferenças entre as duas modalidades lingüísticas: a) a escrita é menos dependente do contexto situacional; b) a escrita permite um planejamento verbal mais cuidadoso; c) a escrita é mais sujeita a convenções prescritivas; d) a escrita é um produto permanente. 192 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O fato de a escrita ser norteada pela gramática prescritiva, como foi explicitado na citação acima, acarreta que o ensino de redação, via de regra, restrinja-se ao ensino da prática da norma-padrão, o que implica destinar à língua falada um tratamento discriminatório. Tradicionalmente, nas atividades de prática redacional, adota-se um critério sociológico ao se distinguirem as variações da língua, classificando-as em “certa” (dialeto-padrão, o escrito) e “erradas” (dialetos não-padrão, os falados). Esta classificação, conforme ressalta Soares16 , não se assenta em nenhuma fundamentação lingüística; ela é regida por preconceitos sociais. Todos os dialetos equivalem como instrumento de comunicação, pois todos atendem a metas comunicativas do falante e adequam-se a cada contexto em que o ato comunicativo é empreendido. A norma-padrão não será a única a ser empregada pelo aluno quando da elaboração de um texto. Determinados modelos de texto escrito - como uma carta dirigida a um indivíduo cuja escolarização seja restrita, por exemplo - exigirão do discente o uso de uma variação lingüística distensa, a fim de que o destinatário apreenda efetivamente a mensagem transmitida. Destaca Labov (apud Soares, op. cit., p. 47): “A situação social é o mais poderoso determinante do comportamento verbal”. Não compete à escola, no que diz respeito ao ensino de prática redacional, alijar qualquer um dos dialetos que a língua comporta, mas sim demonstrar que as variações lingüísticas correspondem a diferentes situações impostas pela própria vivência em sociedade. Segundo Heidegger17 é a lingua16 SOARES, Magda. Linguagem e escola - uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986. 17 HEIDEGGER, Martin. “Sobre o humanismo”. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 193 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ gem que afirma o homem enquanto ser social, visto que é a atividade que lhe possibilita interagir com todos aqueles que o rodeiam, integrando-o aos diversos ambientes em que se fragmenta o meio social. A produção escrita, assim como a falada, é um recurso para que ocorra essa integração do homem à sociedade. Assevera Marcuschi18 que a leitura é o ato individual de uma prática social. Este conceito também se aplica à escritura, já que esta, embora seja efetuada individualmente, deve satisfazer a expectativas do destinatário, que não será apenas um, mas vários, que pertencerão a distintos blocos sociais. Estes corresponderão a diferenciadas comunidades lingüísticas, cuja compreensão do texto escrito dependerá do enquadramento deste no conhecimento lingüístico de cada uma delas. Daí a necessidade de o estudante estar ciente da variabilidade lingüística ao produzir um texto. Assim, ainda que o uso eficaz da norma-padrão deva ser enfatizado nas lições de prática redacional - como um meio de o aluno responder pragmaticamente aos anseios da sociedade letrada -, percebe-se a imprescindibilidade de se integrarem ao ensino de produção textual as variantes não-padrão da língua, com vistas a que se desenvolva, no discente, a habilidade de adaptar o texto escrito à sua intenção comunicativa. Esta intenção, na realidade, são intenções, que variam de acordo com o destinatário e com o contexto de uso da língua. A capacidade de expressar estas intenções é inata ao falante e denomina-se competência textual. Cabe à escola, apenas, aprimorá-la. 18 MARCUSCHI, Luiz Antônio. “A compreensão do texto falado e do texto escrito como ato individual de uma prática social”. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura - perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988. 194 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ VII - Confrontação entre os dois livros didáticos Nesta seção, efetivar-se-á a análise contrastiva19 entre os dois livros didáticos em questão, ambos de 5ª série: “Português através de textos”, de Magda Soares, e “Ação e reflexão em língua portuguesa”, de Marilda Prates. Em termos introdutórios, expor-se-ão, sistematicamente, similaridades e diferenças gerais existentes entre os dois livros, para, posteriormente, executar-se a confrontação específica de aspectos concernentes ao ensino de leitura e prática redacional. VII. 1) Comparação de aspectos genéricos VII. 1. 1) Pontos em comum a) Exposição didático-pedagógica da estruturação do livro didático Os dois livros comportam uma unidade destinada, particularmente, à descrição dos conteúdos abordados na obra e da metodologia empregada para que o aluno apreenda esses conteúdos. Abordagem da oralidade b) Tanto em “Português através de textos” quanto em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, existem exercícios voltados para a prática da linguagem oral. No livro de Magda Soares (p. 72), após se mostrarem os poemas “Classificados poéticos”, de Roseana Murray, e “Pardalzinho”, de Manuel Bandeira, pede-se aos alunos que, se- 19 Quando da confrontação entre os dois livros didáticos, ao fazerem-se necessárias ilustrações com passagens das duas obras, adotar-se-á o seguinte modo de citação: as siglas PAT (“Português através de textos”) e ARLP (“Ação e reflexão em língua portuguesa”) seguidas imediatamente do número da página da qual se extraiu a passagem utilizada. 195 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ guidamente a uma discussão entre si, posicionem-se a respeito da proibição legal de caça, venda e compra de pássaros da fauna brasileira. Neste livro, acentua-se a função socializante da prática oral, dado que, nele, todos os exercícios de oralidade exigem cooperação mútua entre os discentes, seja através de trabalhos em equipe, seja por meio de discussões entre os colegas. No livro de Marilda Prates (p. 151), cede-se o seguinte dizer de Tom Jobim: “Quando uma árvore é cortada, ela renasce em outro lugar. Quando eu morrer, quero ir para esse lugar, onde as árvores vivem em paz”. Em seguida, solicita-se ao aluno que, associando imagens (colagens de árvores na referida página) e palavras, “fale sobre os sentimentos que despertam no seu interior”. Nas duas obras, percebe-se a prática oral como um exercício de argumentação, consistindo em um meio de aprimorar-se, nos alunos, a capacidade de expressar suas idéias, de modo coerente, através da língua falada. VII. 1. 2) Pontos divergentes a) Orientação metodológica ao professor: em Magda Soares, eficiente; em Marilda Prates, carente Em “Português através de textos”, a seção de orientações metodológicas ao professor é ampla, contendo, além de variadas sugestões de como se conduzirem exercícios, os objetivos das atividades propostas. Já no livro de Marilda Prates, as orientações ao professor, em geral, limitam-se a estritas sugestões e respostas de exercícios. b) Presença (Marilda Prates) e ausência (Magda Soares) de sugestões complementares ao livro didático Ao final de “Ação e reflexão em língua portuguesa”, na unidade reservada à descrição da estrutura da obra, consta uma seção de sugestões cujo objetivo é complementar o con- 196 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ teúdo do livro didático. Não se encontra igual seção no livro de Magda Soares. c) Sugestões bibliográficas comentadas (Magda Soares) e não-comentadas (Marilda Prates) ao professor Em “Português através de textos”, acima de cada indicação bibliográfica ao professor, há um comentário acerca da obra, como o que a autora faz a respeito de Comunicação em prosa moderna, de Othon Garcia: “Obra indispensável a todo professor de Português e fundamental para compreender a metodologia de ensino da redação, na coleção [“Português através de textos”] (bem como para compreender, ainda, certos tópicos gramaticais incluídos na coleção)” (PAT, 19). Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a orientação bibliográfica ao professor se resume a um conjunto de livros listados ao final da obra. d) Restrição (Magda Soares) e abundância (Marilda Prates) de recursos visuais Em “Português através de textos”, nota-se um restrito uso dos recursos visuais de que dispõe o livro didático. Nessa obra, as figuras são poucas, predominando o texto20 propriamente verbal. Opostamente, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, evidencia-se uma profusão de desenhos, imagens, figuras que cativam, à primeira vista, o aluno. Desse modo, traçando-se um paralelo entre as duas obras, pode-se corroborar que a ludicidade predomina, sobremaneira, no livro de Marilda Prates. 20 Neste caso, empregou-se “texto” na acepção semiótica, a saber: qualquer unidade da qual se possa depreender uma mensagem, que pode ser expressa por outros canais que não sejam o verbal; destes canais, o puramente visual é um exemplo. 197 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ VII. 2) O ensino de leitura em “Português através de textos” e “Ação e reflexão em língua portuguesa” VII. 2. 1) Pontos em comum a) Consideração da coerência global ao selecionarem-se os textos didáticos Em ambos os livros, os textos didáticos se adequam perfeitamente à faixa etária do público-alvo, pois não comportam temas prolixos e são correspondentes ao conhecimento de mundo de alunos de 5ª série, apresentando, por isto, o que Kato (op. cit.) denomina coerência global. b) Constância de questões de compreensão e interpretação textuais Tanto em “Português através de textos” quanto em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, constam questões de compreensão e de interpretação de texto. Em “Português através de textos”, após a leitura do conto “Lisete”, de Clarice Lispector, a autora propõe a seguinte questão de compreensão textual: O texto não diz, mas dá informações que permitem saber: a) Em que mês Lisete foi comprada? Em que informação do texto você se baseou para dar essa resposta? b) Quantos dias Lisete viveu na casa da autora? Em que informação do texto você se baseou para dar essa resposta? (PAT, 54) 198 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Essa questão é de compreensão textual porque as respostas solicitadas estão no próprio texto, conforme explicita, já no comando da questão, a autora. Trata-se de uma atividade objetiva de transposição de informações. Já na página 163, no bloco de questões referentes ao conto “De sol a sol”, de Lucília de Almeida Prado, encontra-se a seguinte interrogação: “Neguito parou de estudar antes de terminar a 3ª série. Que conseqüências [grifo da autora] você acha que isso terá na vida futura dele?”. A resposta para essa questão não está explícita no texto. A fim de achá-la, o estudante terá de recorrer a seu conhecimento de mundo e a seu senso crítico. Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a objetividade peculiariza as questões de compreensão textual. Um exemplo destas aparece após a apresentação do conto “Me dá a sua mão”, de Heleninha Bortone: “Quais são as personagens dessa narração?” (ARLP, 95). A partir da leitura do conto “Mariana”, de Maria Lúcia Amaral, propõe-se a seguinte questão interpretativa: “Você concorda que lugar de mulher é em casa? Por quê?” (ARLP, 116). VII. 2. 2) Pontos divergentes a) Emprego (Magda Soares) e não-emprego (Marilda Prates) dos diversos tipos de leitura A de diferentes objetivos que do ato de ler, leitura é uma atividade que pode ser realizada modos. Estes se relacionam com os diferentes se formulam previamente ao empreendimento em sala de aula ou fora dela. Oliveira21 expõe que a leitura pode ser de dois ti21 OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Ensino de língua e literatura. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. 199 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ pos: leitura oral, que possibilita o aprimoramento da entonação, da relação som-vocábulo; e leitura silenciosa, que proporciona o conhecimento do vocabulário e a compreensão da idéia global e dos elementos subsidiários do texto. A estes dois tipos, acrescente-se a leitura dramatizada (ou dialogada), que tem um papel essencialmente desinibidor, já que, por meio da teatralização, torna os alunos próximos uns aos outros. Em “Português através de textos”, a autora explicita, nas seções de orientações metodológicas referentes à ApresentaÁ„o do texto, a diversidade dos tipos de leitura. Na p. 12, sugere que, primordialmente, o professor faça a leitura oral do conto “O mistério do coelho pensante”, de Clarice Lispector, visto que este texto consiste em uma estória contada por um adulto a uma criança; em seguida, para que se complete a compreensão do texto, recomenda a leitura silenciosa a ser feita pelos alunos. Na p. 78, indica que a apresentação do conto “Menino”, de Fernando Sabino, ao aluno deve ocorrer através da leitura oral, expressiva por parte do professor, a quem caberá explorar eficientemente os recursos prosódicos da língua, de modo que, posteriormente, os alunos, ao lerem em voz alta o mesmo texto, possam fazer semelhante uso da prosódia. Na p. 91, orienta que, inicialmente, os alunos façam uma leitura silenciosa do conto “Martelo malvado”, de Luís Jardim, para, após isto, fazerem uma leitura dramatizada do mesmo conto, na qual três alunos seriam os seguintes personagens: o narrador, José e o menino Jesus. Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, o único tipo de leitura ao qual se direcionam as orientações metodológicas é a leitura dramatizada, cuja definição é cedida pela autora: “A gente dramatiza um texto quando faz-de-conta que está no lugar das pessoas, dos animais e daquele (a) que 200 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ conta a história. Como se nós fôssemos as personagens falando e gesticulando numa atitude de imitação”(ARLP, 14). A leitura dramatizada ocupa uma posição hegemônica nessa obra. Acha-se um exemplo de atividade que envolve esse tipo de leitura nas páginas 13-14, nas quais a autora sugere que se dramatize o poema “Pequena história de gente e bicho”, de Ciça Fittipaldi. b) Variedade (Marilda Prates) e não-variedade (Magda Soares) de textos por unidade Em “Português através de textos”, apenas um texto inicia cada unidade. Já em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, identifica-se uma ampla quantidade de textos por unidade, divididos em textos b·sicos e textos de apoio. c) Profusão (Magda Soares) e ausência (Marilda Prates) de informações sobre os textos e seus autores Oferece-se, em “Português através de textos”, uma extensa gama de informações acerca dos textos utilizados e de seus autores. Nessa obra, abaixo de cada texto introdutório de uma unidade, citam-se todas as referências bibliográficas do livro de que se retirou tal texto. Assim ocorre com qualquer texto que esteja incluído em “Português através de textos”. Isto proporciona que o aluno se situe em relação ao texto lido. Destaque-se, também, o fornecimento de informações biográficas a respeito dos autores cujos textos são utilizados. Trata-se de um eficiente recurso para que o aluno adquira gosto pela leitura, pois a obtenção de conhecimento sobre a vida dos literatos desperta, no estudante, o interesse por conhecê-los ainda mais, resultando no contato do discente com a obra literária produzida por esses autores e, conseqüentemente, no envolver-se por esta obra. 201 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ Nas páginas 42 e 43 do livro de Magda Soares, abaixo do poema “Lembrança do mundo antigo”, de Carlos Drummond de Andrade, há uma série de informações acerca desse escritor, a qual estimula o aluno a procurar conhecer melhor a obra do poeta de Itabira, a começar pelo livro Sentimento do mundo, mencionado nas referências concernentes ao poema estudado. A foto do autor quando criança e a sucessão de fotografias que contêm imagens do mundo descrito no poema - do mundo da infância do autor - possibilitam ao discente a comunhão do “ler imagético” e do “ler verbal”. Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, não há referências sobre os livros dos quais se extraíram os textos utilizados. Além disto, nessa obra, não se identifica qualquer dado biográfico referente aos autores daqueles textos. No livro de Marilda Prates, essa lacuna informativa pode ser notada, por exemplo, ao observar-se da página 152 à 155, espaço em que aparecem três textos - o conto “Nós vamos de trem, exaltou-se o menino”, de Wander Piroli; a crônica “Azul e lindo planeta Terra, nossa casa”, de Ruth Rocha e Otávio Roth; e os versos “Contra um céu de chumbo / Aquelas árvores desesperadamente verdes”, de Mário Quintana desacompanhados de qualquer referência a seus livros de origem e à vida de seus autores. d) Constância (Magda Soares) e não-constância (Marilda Prates) de página preparatória para a leitura do texto Percebe-se, em “Português através de textos”, um fragmento da seção de orientações metodológicas dedicado exclusivamente à preparação do aluno para a leitura. Tal fragmento não consta em “Ação e reflexão em língua portuguesa”. Magda Soares sugere que, anteriormente à leitura dos textos que principiam cada unidade, deve haver uma 202 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ espécie de “familiarização” do discente com o tema a ser abordado. Esta familiarização ocorre por meio do emprego de fotografias e quadrinhos antes dos textos que iniciam algumas das unidades. A utilização dessas figuras propicia que o aluno note a existência do texto não-verbal, ou seja, da unidade significativa que não se constitui de palavras. Exponha-se, como ilustração desse tipo de texto, a história em quadrinhos “Lisete”, constante na página 133: Nessa história em quadrinhos - que antecede o conto “Lisete”, de Clarice Lispector - não há palavras. Assim, a autora pretende que, através da confrontação dos quadrinhos com o conto “Lisete”, o estudante perceba as duas formas de narração: a verbal e a não-verbal. e) Presença (Marilda Prates) e ausência (Magda Soares) de erro gráfico no texto didático Não se constataram erros gráficos em “Português através de textos”. Já em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, encontrou-se a seguinte contradição no plano gráfico do livro: na página 155, pede-se ao aluno que comente a passagem “... da nossa casa nós podemos mudar. Da Terra não.”; entretanto, na crônica da qual se extraiu essa passagem “Azul e lindo planeta Terra, nossa casa”, de Ruth Rocha e Otávio Roth -, lê-se: “... da nossa casa nós podemos nos [grifo nosso] mudar. Da Terra não”. Na passagem utilizada para o exercício, a ausência do pronome nos gerou uma patente incoerência, dado que a transitividade do verbo “mudar” foi alterada, entrando em desacordo com a estrutura topicalizada “da nossa casa”. Tratouse de um erro no fornecimento de informação visual (cf. Fulgêncio e Liberato, op. cit.), que prejudicou extremamente a compreensão do exercício a ser feito. 203 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ f) Elucidação (Magda Soares) e não-elucidação (Marilda Prates) da estilística própria do texto literário A linguagem literária, apoiando-se na liberdade conferida ao processo de criação artística, permite-se uma estilística autônoma, independente da escrita formal (cf. Proença Filho22 ). Esse fato não se explicita em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, porque, ao trabalhar-se com textos como o conto “Nós vamos de trem, exaltou-se o menino”, de Wander Piroli, (p. 152-153-154), não há a explicitação de que o texto literário possui a peculiaridade de poder comportar traços de oralidade. Em “Português através de textos”, evidencia-se a liberdade estilística atribuída ao texto literário na seção de sugestões metodológicas referentes à apresentação do conto “De sol a sol”, de Lucília Almeida de Prado. Reconhecendo-se, nesse texto, a presença da fala rural, a autora faz a seguinte recomendação ao professor: “Levar os alunos a observar as características da fala das personagens rurais e a comparálas com a fala da professora (exemplos: a professora falaria você; Vô Juvenal e seu Venerando falam ocê, cê; Vô Juvenal fala com nóis, a professora falaria conosco) [grifos da autora]” (PAT, 10). Na mesma página, assinala-se que as variantes lingüísticas rurais devem ser tratadas como diferentes e não como deficientes. 22 PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1987. 204 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ VII. 3) O ensino de prática redacional em “Português através de textos” e “Ação e reflexão em língua portuguesa” VII. 3. 1) Pontos em comum a) Execução da interface entre leitura e produção da escrita Em “Português através de textos”, o tema da redação está sempre vinculado ao texto que inicia cada unidade. Isto possibilita que, tendo feito a leitura do texto no princípio da unidade, o estudante sinta-se estimulado a produzir um texto. Também em “Ação e reflexão em língua portuguesa” se mostra a inter-relação entre leitura e produção textual. Antes de cada proposta de redação, identifica-se um texto de apoio que servirá como referência para o texto a ser elaborado. b) Recorrência à criatividade lingüística do aluno Fazem-se notórios, em ambos os livros, exercícios por meio dos quais se explora a criatividade lingüística do discente. Constata-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a constância de textos, retratos e figuras a partir dos quais o aluno construirá os seus próprios textos, em prosa ou em verso. Em “Português através de textos”, as entrelinhas dos textos introdutores de cada unidade são os motes das questões-desafio que se propõem nas atividades de redação. Nessa obra, requisita-se do discente que reproduza, de modo pessoal e por escrito, sentimentos e atitudes expressos nos textos utilizados - prosaicos ou poéticos -, proporcionando que o estudante estabeleça uma relação intertextual entre seu texto e o do autor estudado. 205 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ VII. 3. 2) Pontos divergentes a) Carência (Marilda Prates) e abundância (Magda Soares) de sugestões metodológicas específicas às atividades de redação Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, no que se refere ao ensino de prática redacional, fazem-se escassas as orientações metodológicas ao professor, restringindo-se a informações sobre a formulação de documentos escritos, como a carta (p. 147). No livro de Magda Soares, observa-se um consistente conjunto de sugestões metodológicas específicas às atividades de redação, explicitando-se os objetivos de cada exercício proposto e o destinatário do texto a ser produzido. No exercício da unidade 4, ao lidar-se com o poema drummondiano “Lembrança do mundo antigo”, a autora faz, entre outras sugestões, a seguinte: “Se o professor julgar a redação difícil para a turma, pode promover um debate a partir das perguntas da questão 1 [Como você imagina que será o mundo futuro?], no quadro de orientação para o desenvolvimento, como preparação para a produção do texto”(PAT, 48). b) Fragmentação (Marilda Prates) e não-fragmentação (Magda Soares) da noção de constituição textual Percebe-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a fragmentação da noção de constituição textual. Ou seja, nessa obra, divide-se a produção textual em três níveis: na frase, na pontuação e na expressão criativa. O primeiro nível consta de exercícios metalingüísticos e de reconstruções frásicas; o segundo nível consiste nos exercícios de análise da função sintática da pontuação; e o terceiro nível é o dos exercícios produtivos de fato. 206 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Na obra de Magda Soares, as atividades de redação deixam transparecer uma visão global da constituição do texto. O método de formulação dessas atividades não dissocia os componentes genéricos do texto escrito: morfossintaxe, semântica e pragmática. Deste modo, solicita-se ao aluno que elabore um texto, unidade lingüística por excelência, na qual se conjugam sistematicamente os componentes lingüísticos e através da qual se transmite efetivamente a mensagem. Assim sendo, em “Português através de textos”, o texto é entendido como unidade de comunicação, que não pode ser desdobrada em subunidades - visto que se trata de um todo funcional - e cuja produção depende inteiramente da intenção comunicativa do falante-escrevente. Esta concepção de texto se demonstra na exposição da estrutura didático-pedagógica do livro, particularmente na descrição do planejamento de ensino de redação, na qual se lê: Para que os exercícios de redação sejam situações de comunicação, de interação, tanto quanto possível naturais e reais, são propostos de forma a criar condições de produção de texto, isto é, criar situações em que a expressão escrita se apresente como uma resposta a um desejo ou a uma necessidade de comunicação, de interação [grifos da autora]. (PAT, 10) c) Presença (Magda Soares) e ausência (Marilda Prates) de atividades de redação em grupo Nota-se, em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, a inexistência de atividades de redação que exijam a cooperação entre alunos, através do trabalho em grupo. Nessa obra, os exercícios de prática redacional são restritamente individuais. Já no livro de Magda Soares, é freqüente a produção textual exercitada em grupo. A reunião de alunos em equipe 207 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ para produzir textos é outra atividade socializante que, assim como os debates orais em grupos, integra a metodologia de ensino de “Português através de textos”. Desta atividade, cite-se o seguinte exemplo: ”A turma divide-se em grupos. Cada grupo deve escrever a história de Bidu - vocês vão verificar as diferenças entre a comunicação exclusivamente verbal e a comunicação que associa o não-verbal ao verbal [grifos da autora]” (PAT, 110). d) Exposição (Magda Soares) e não-exposição (Marilda Prates) da estrutura de texto Em “Ação e reflexão em língua portuguesa”, não se identifica a explicitação de um modelo de estruturação textual. Opostamente, em “Português através de textos”, além de uma meticulosa orientação ao aluno sobre como praticar a atividade proposta, notabiliza-se, em algumas unidades, a exposição da estrutura do texto requisitado. Trata-se de um eficiente recurso para que o estudante da 5ª série, nesta fase inicial de produção da escrita, perceba que o texto deve possuir uma consistente articulação, assimilando, gradativamente, os dois primordiais fatores de textualidade: a coerência e a coesão textuais (analisadas minuciosamente por Fávero23 ). Um modelo estrutural de texto é cedido na página 48, em que a autora recomenda, por meio da organização das idéias em parágrafos, como introduzir, desenvolver e concluir um texto sobre o mundo futuro idealizado pelo discente. 23 FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. 208 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ VIII – Considerações finais Ao término da confrontação entre os dois livros didáticos, pôde-se corroborar que “Português através de textos”, obra em que se confere uma primorosa metodologia de ensino à leitura e à prática redacional e em que se empreende um ensino produtivo da gramática, apresenta nível qualitativo superior ao de “Ação e reflexão em língua portuguesa”. A este livro, falta atualizar-se, principalmente, no que diz respeito à preparação do aluno para ler e produzir textos e ao estímulo à pesquisa bibliográfica. A fim de evitar-se uma conclusão maniqueísta a esta análise contrastiva, exponha-se uma vantagem do livro de Marilda Prates sobre o de Magda Soares: a superior recorrência à ludicidade, expressa por intermédio de desenhos e figuras utilizados com extrema freqüência em “Ação e reflexão em língua portuguesa”. À guisa de complementação do presente estudo, voltado para o ensino de leitura e prática redacional no livro didático de Português de 5ª série, realizou-se uma breve pesquisa em 03 colégios de Belém (um público e dois particulares), visando-se à análise do uso que os professores de Português de 5ª série fazem do livro didático. Em cada colégio, executou-se um questionário (vide ANEXO) - composto de perguntas concernentes à proposta de ensino de leitura e produção textual constante no livro didático - para 07 professores, totalizando-se 21 entrevistados. As entrevistas permitiram chegar-se aos seguintes dados: 209 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Dos resultados expostos acima: o 3) mostra-nos que a leitura e a prática redacional não vêm ocupando seu devido lugar nas aulas de Língua Portuguesa; o 1), o 2), o 5) e o 6) indicam-nos a falta de eficácia inerente à metodologia dessas duas atividades escolares; e o 4) ratifica o fato de que o livro didático ainda é o principal instrumento pedagógico do professor de Português. Levando-se em conta o fato referido acima e objetivando-se contribuir para que se aprimore a deficiente metodologia de ensino supracitada, finalizar-se-á este trabalho com a concisa exposição de orientações sobre como conduzir as atividades de leitura e produção textual, reiterando algumas propostas já contidas nos livros didáticos analisados e explicitando outras sugestões, calcadas na leitura de autores que vêm dirigindo especial atenção ao modo de se ensinarem aquelas atividades. A) Sugestões metodológicas referentes ao ensino de leitura A leitura é uma fonte profícua de informações. Logo, ela deve servir de meio para que o aluno adquira conhecimentos; esta é sua principal função. A busca de informações por intermédio da leitura pode ocorrer de dois modos, conforme 210 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ explicita Geraldi24 : com roteiro previamente elaborado, método em que a leitura serve para que o aluno responda a questões pré-estabelecidas; ou sem roteiro previamente elaborado, método em que as informações são buscadas no próprio texto, sem qualquer questão pré-fixada. A preparação prévia é um fator crucial para o sucesso das atividades de leitura. De acordo com Azambuja & Souza (op. cit.), ela consiste em discussões, relatos, debates sobre filmes, pesquisas bibliográficas e de campo, enfim, todo tipo de atividade que possa proporcionar ou desenvolver, no estudante, conhecimento prévio acerca do tema a ser abordado, estimulando-o a praticar a leitura. O estudo do texto propriamente dito se faz por meio da utilização das diversas formas de leitura em sala de aula. A leitura silenciosa possibilita ao aluno extrair os significados do texto, relacionando-os à sua experiência de vida; trata-se do passo primordial para que o discente execute o processo de compreensão do texto. A leitura oral viabiliza a interação leitor-texto, através da exploração, por parte do estudante, dos recursos prosódicos da língua; a expressividade oral, muitas vezes, torna possível a captação de significados que, por serem provenientes de traços suprasegmentais - a exemplo da entonação -, não são abarcados pela leitura silenciosa. A leitura dramatizada (ou dialogada) possui um papel essencialmente desinibidor e socializante; ela proporciona a cooperação entre os alunos, desenvolvendo, neles, a noção de trabalho em grupo. 24 GERALDI, João Wanderley. “Prática da leitura na escola”. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. 211 ○ ○ ○ ○ ○ ○ Saul Cabral Gomes Júnior ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ B) Sugestões metodológicas referentes ao ensino de prática redacional O ensino eficiente de prática redacional está indissociavelmente ligado à leitura. Daí que, anteriormente a cada atividade de redação, imponha-se a leitura de um texto, que servirá como elemento motivador para o exercício da escrita. A leitura do texto possibilitará que o discente construa seu próprio texto através da relação intertextual com o texto lido. Consoante destaca Meserani25 , é a intertextualidade que cede ao estudante o instrumental necessário para que ele apreenda os mecanismos da língua. A prática redacional deve focalizar-se na criatividade lingüística do aluno, concedendo a este que expresse, inicialmente, o conhecimento lingüístico que já possui - como assinalam Miranda et alii.26 -, para, em seguida, passar a utilizar-se da gramática formal, que assimilará graças à sua competência textual. O contato com textos variados, com imagens diversas, suscitará, no aluno, a necessidade de expressar algo. Para esta expressão, seu código será o lingüístico. A variabilidade lingüística, conforme já se ressaltou neste trabalho, deve ser uma presença constante nas aulas de redação. Essa presença ocorrerá ao, terminados os textos elaborados pelos alunos, montar-se um mural no qual se exponham as produções discentes. À medida que o contato dos estudantes com a gramática formal for se estreitando, paten25 MESERANI, Samir. O intertexto escolar - sobre leitura, aula e redação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998. 26 MIRANDA, Regina Lúcia et alii. A língua portuguesa no coração de uma nova escola. São Paulo: Ática, 1995. 212 Uma Análise Contrastiva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ tear-se-ão as diferenças existentes entre a língua falada, assimilada no lar, e a língua escrita, adquirida na escola. Seguidas as instruções metodológicas acima e as referentes à leitura, certamente, contribuir-se-á para o aprimoramento da competência textual do aluno, necessidade exposta, inclusive, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, em cujas páginas se lê: “[a leitura e a produção da escrita] são práticas que permitem ao aluno construir seu conhecimento sobre os diferentes gêneros [de texto], sobre os procedimentos mais adequados para lê-los e escrevê-los e sobre as circunstâncias de uso da escrita.”27 27 Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental (Língua Portuguesa). Brasília: MEC / SEF: 1998, p. 52. 213 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Este trabalho consiste numa sintética amostragem do que pode ser feito no campo da contrastividade aplicada ao livro didático de Português. Espera-se que ele possa servir para suscitar outros trabalhos voltados para a análise contrastiva, que visem sobretudo à demonstração da necessidade de aprimorar-se a atuação do professor de Língua Portuguesa, sob diversos aspectos: base teórica mais consistente, domínio de metodologia, atualização por meio de freqüentes processos de reciclagem etc. Paralelamente a este aprimoramento da formação docente, com vistas à execução de um ensino efetivamente produtivo da língua materna, faz-se imprescindível que se viabilizem uma escola bem equipada, um salário digno ao educador, entre outros empreendimentos que motivem o professor de Português, assim como os das demais disciplinas, a exercer sua profissão com eficiência. 214 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ BIBLIOGRAFIA I - Livros didáticos analisados PRATES, Marilda. Ação e reflexão em língua portuguesa 5ª série. São Paulo: Moderna, 1998. SOARES, Magda. Português através de textos - 5 ª série. São Paulo: Moderna: 1997. II - Bibliografia complementar AZAMBUJA, Jorcelina Queiroz de & SOUZA, Maria Letícia Rocha de. ìO estudo de texto como tÈcnica de ensinoî. In:VEIGA, Ilma Passos de Alencastro (org.). Técnicas de ensino: por que não? 3ª ed. Campinas: Papirus, 1995. COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. FONSECA, Fernanda & FONSECA, Joaquim. Pragmática lingüística e ensino do português. Coimbra: Almedina, 1990. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler - em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1986. FULGÊNCIO, Lúcia & LIBERATO, Yara. Como facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 1992. GALLISON, R. & COSTE, D. Dicionário de didáctica das línguas. Coimbra: Almedina, 1983. 215 GERALDI, João Wanderley. ìConcepÁões de linguagem e ensino de portuguÍsî. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. _______________________. ìPr·tica da leitura na escolaî. In: GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997. HALLIDAY, M. A. K. et alii. As ciências lingüísticas e o ensino de línguas. Petrópolis: Vozes, 1974. HEIDEGGER, Martin. ìSobre o humanismoî. In: Conferências e escritos filosóficos. Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1973. KATO, Mary A. No mundo da escrita - uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1995. KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989. ________________. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6ª ed. Campinas: Pontes, 1999. LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: texto aprovado na Comissão de Educação, Cultura e Desporto da CD / com comentários de Dermeval Saviani et alii. São Paulo: Cortez, 1990. 216 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ MARCUSCHI, Luiz Antônio. ìA compreens„o do texto falado e do texto escrito como ato individual de uma pr·tica socialî. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988. MESERANI, Samir. O intertexto escolar - sobre leitura, aula e redação. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1998. MIRANDA, Regina Lúcia et alii. A língua portuguesa no coração de uma nova escola. São Paulo: Ática, 1995. OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. Ensino de língua e literatura. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental (Língua Portuguesa). Brasília: MEC / SEF: 1998. PERINI, Mário A. ìA leitura funcional e a dupla funÁ„o do livro did·ticoî. In: SILVA, Ezequiel Theodoro da & ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura - perspectivas interdisciplinares. 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São Paulo: Cortez, 1996. 217 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ANEXO Questionário sobre leitura e prática redacional nas aulas de Língua Portuguesa Sexo do professor: ( ) Masculino ( ) Feminino Iniciais do nome: Série(s) em que leciona: ( ) 5 a ( ) 6ª ( ) 7ª ( ) 8ª Perguntas referentes à leitura 1) A leitura é praticada em suas aulas: ( ) sim ( ) não 2) Há uma preparação prévia, por parte do aluno, antes desta atividade: ( ) sim ( ) não 3) Marque o(s) tipo(s) de leitura exercitado(s) pelo aluno: ( ) leitura oral ( ) leitura silenciosa ( ) leitura reflexiva ( ) leitura dialogada 4) O tempo reservado para a leitura é: ( ) parte do horário da aula ( ) todo o período da aula ( ) o período de duas aulas 218 5) Durante a aula de leitura, os textos utilizados são exclusivamente dos livros didáticos: ( ) sim ( ) não 6) O aluno faz leitura extra-classe: ( ) sim ( ) não Perguntas referentes à prática redacional 1) A prática redacional, em suas aulas, é: ( ) semanal ( ) outro ( ) quinzenal ( ) bimensal 2) O tempo determinado para esta atividade é: ( ) parte do horário da aula ( ) todo o período da aula ( ) o período de duas aulas 3) Há preparação prévia para a prática da redação: ( ) sim ( ) não 4) Antes da atividade redacional, os alunos lêem algum texto relacionado com o assunto a ser desenvolvido: ( ) sim ( ) não 5) Inclui-se a prática redacional nas avaliações bimensais: ( ) sim ( ) não 219 A prática sistemática e constante do ler e do escrever são imprescindíveis para que o aluno obtenha sucesso no ensino/aprendizagem de qualquer disciplina, especialmente no estudo da língua materna. O livro didático é um auxiliar importante para essa prática, principalmente quando bem elaborado e devidamente utilizado por professor e aluno. A confrontação entre os livros didáticos de 5a. série PortuguÍs atravÈs de textos, de Magda Soares, e AÁ„o e reflex„o em lÌngua portuguesa, de Marilda Prates, evidencia que nem sempre os livros didáticos estão no mesmo nível de eficiência para servir de apoio ao professor na sua tarefa de conduzir a aprendizagem ao bom termo, isto é, que faça com que o aluno produza textos orais e escritos, cresça, desenvolva o senso crítico, trabalhe com prazer. O trabalho em questão comprova que o livro didático pode contribuir positivamente para agilizar o aprendizado da leitura e prática redacional. Raymundo Jurandy Wangham 220