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ISSN 1982-2685 Rio de Janeiro 2010 InterSignos Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA FACULDADE CCAA Diretora Geral • Eliane Faial Diretora Administrativa • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado Diretora Acadêmica • Marcia Moraes Editores María Paz Pizarro • Coordenadora do Curso de Letras da Faculdade CCAA ([email protected]) Ricardo Pinheiro ([email protected]) Conselho Consultivo Peter McLaren • UCLA – EUA Henry Giroux • McMaster University – Canadá Marcia Paraquett • Universidade Federal da Bahia Conselho Editorial da Faculdade CCAA Angélica Castilho Flavia Ferreira dos Santos Luis Carlos de Morais Júnior Marcia Moraes Marcos Freitas Maria Lúcia Monteiro Ricardo Teixeira Roberto Loureiro Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA. INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA V. 3, Out 2010, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2010. pg. 116 Anual ISSN: 1982-2685 1. Literatura. 2. Linguística. CDD 800 Esta obra segue as normas estabelecidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que prevê a padronização do idioma nos países lusófonos. Editoração e Impressão CCAA Editora Editora Gerencial Sylene Matturo Capa Bruno Gomes Projeto Gráfico Juliana Andrade Editoração Eletrônica Paulo Aguiar de Souza Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto Rita Cyntrão Revisão Editorial Luís Antônio Guimarães Revisão de Língua Inglesa Ricardo Pinheiro Revisão de Língua Espanhola María Paz Pizarro Faculdade CCAA Curso de Letras INTERSIGNOS Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA Periodicidade Anual Assinatura R$ 40,00 Endereço para correspondência Avenida Marechal Rondon 1.460 • Riachuelo Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202 Tel.: (21) 2156-5000 www.faculdadeccaa.edu.br Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial. Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus/suas autores/autoras. A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica anual da Faculdade CCAA, tem como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, com uma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica um espaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações. INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua Portuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, dos cursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário linguístico-educacional, trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área. A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicada pela CCAA Editora. Editorial Carmen Lúcia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas Gardênia de Carvalho Rocha • Faculdade CCAA Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman Renata Feital • Faculdade CCAA, UVA, UCM O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular Antonio Andrade • UFRJ Herói clariceano Angélica Castilho • Faculdade CCAA Ideologicamente violento: uma questão de significado Roberto Borges • CEFET/RJ Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 Flavia Ferreira dos Santos • Faculdade CCAA Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora Sérgio N. de Carvalho • Faculdade CCAA, ILE, UERJ, Escola Naval Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista Diogo Pinheiro • UFFS Karen Sampaio Braga Alonso • Faculdade CCAA 9 11 25 39 49 61 79 91 105 EDITORIAL Para a Matemática, o número três possui três características: é um número natural, o segundo número primo e o segundo natural ímpar. Em termos simbólicos, o número três pode representar a união, o equilíbrio e a democracia. Para este terceiro volume da Revista InterSignos, três objetivos “matemático-simbólicos” se apresentaram: manter o padrão de qualidade que perpassou os artigos publicados nos dois números anteriores; promover a união entre diferentes (embora complementares) saberes das áreas das Ciências Humanas e abrir um espaço democrático ímpar, no qual a heterogeneidade é bem-vinda, válida e relevante. Três objetivos para legar à comunidade acadêmico-científica e ao público em geral o terceiro número da Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA. Acreditamos na capacidade da Literatura de ampliar visões do mundo e renovar as relações entre culturas, minimizando o senso comum e o preconceito. Coadunando com nosso pensamento, o presente volume da InterSignos enceta com Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas. Nessa entrevista, a notável investigadora das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa tece laços e fatos sobre as produções literárias de cinco países do continente africano, fazendo uma autêntica “pangeia”: o (re)encontro entre terras e vozes do Brasil e de África. Após a entrevista-aula, segue o artigo de Renata Feital: Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman. Em curiosa consonância, o autor em foco apresenta o número três em sua vida intelectual e pessoal: é pensador, professor e escritor; nasceu na Argentina, viveu por um tempo nos Estados Unidos e foi morar no Chile, onde presenciou o golpe de Estado de 1973. O texto perscruta as questões do trauma e da memória a partir da autobiografia de um “homem em trânsito”, híbrido e soçobrando entre duas línguas e culturas. O artigo seguinte traz preciosas considerações de Antonio Andrade acerca da poesia do fim do século XIX. Em O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular, o pesquisador faz uma leitura do signo luz na poesia de Arthur Rimbaud e propõe um diálogo com dois poetas brasileiros de épocas distintas: o modernista Mário de Andrade e o contemporâneo Armando Freitas Filho. O próximo artigo versa sobre Clarice Lispector: Herói clariceano. Angélica Castilho assevera que as rupturas “com a estabilidade” e com “as verdades construídas” são elementos constantes nas trajetórias das personagens criadas por Lispector. Tais rupturas são escolhas que sempre apontam para a tragicidade das suas vidas. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 9 Editorial Depois de três textos sobre Literatura, o espaço é destinado a dois artigos voltados para sociedade. O primeiro artigo, de autoria de Roberto Borges, trata do significado que a palavra “violência” ganha em duas escolas públicas do Rio de Janeiro. Em Ideologicamente violento: uma questão de significado, o autor relata parte de uma pesquisa realizada com estudantes de escolas localizadas em áreas marcadas pela pobreza (em sentido amplo). O objetivo é entender como as palavras são ressignificadas mediante as situações de interação. Os resultados são bastante reveladores. O artigo seguinte é Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30, assinado por Flavia Ferreira dos Santos. A autora revisa duas décadas de uma história pouco conhecida: a Espanha, numa tentativa de modernização de suas estruturas sociopolíticas e culturais, encontra a Guerra Civil e a ditadura do General Franco como “trágicos desfechos” desse longo processo. Encerrando este volume, dois artigos enveredam por outra rica seara de estudos: a metáfora conceptual. Sérgio N. de Carvalho nos apresenta Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora. Com olhar aguçado e usando o jornal The New York Times como referência, o pesquisador buscou citações de políticos norte-americanos e analisou as metáforas conceptuais nelas presentes. O período escolhido foi aquele envolvendo o 11 de setembro de 2001. Em seguida, Diogo Pinheiro e Karen Sampaio Braga Alonso nos brindam com Um Novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista. Os dedicados pesquisadores apresentam uma visão panorâmica sobre a metáfora e a metonímia em perspectiva cognitivista, dando-lhes um caráter maior, mais importante e democrático do que “simples figuras de linguagem” usadas apenas para “enfeitar” os discursos literários. Desde o primeiro número, o intuito da Revista InterSignos é a difusão de conhecimento para a progressão de saberes. Estamos convictos de que a comunidade acadêmico-científica novamente encontrará relevantes contribuições às pesquisas no campo das Ciências Humanas nesta terceira edição. Em oportuno, agradecemos a Direção da Faculdade CCAA pelo vigoroso e incessante apoio dado para a publicação deste material. Também manifestamos nossa veemente gratidão a todos que não medem esforços para concretizar mais um volume: os Corpos Docente e Discente do Curso de Letras, o Conselho Editorial e Consultivo e a equipe responsável pela elaboração editorial. A todos vocês, nosso “muito obrigado”. E, aos leitores, desejamos boas “descobertas”. 10 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO: DIÁLOGOS COM AS MÁGICAS LETRAS AFRICANAS Gardênia de Carvalho Rocha Estudante do Curso de Letras (Português-Inglês) da Faculdade CCAA contato: [email protected] Quando se fala em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, este nome não pode faltar: Carmen Lucia Tindó Secco. Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela é uma das mais conceituadas pesquisadoras dos estudos literários africanos em língua portuguesa, sendo referência no Brasil, em Portugal e no continente africano. Referência aqui e alhures, ela estabelece diálogos entre Brasil e África. São letras e laços. Dona de uma escrita sedutora e envolvente, seus ensaios críticos primam pela originalidade, pela coerência e pelo fôlego. São nítidas a profunda investigação e a seriedade de que a pesquisadora lança mão em seu mergulho nas letras africanas. Tanta paixão e dedicação à magia das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, tanto saber e tanto sabor levam seus leitores, estudantes, ou mesmo ouvintes em palestras à unânime sensação: o profundo encantamento. Carmen defende que há magia (no sentido de sedução) nas letras africanas. Nós, decerto, concordamos plenamente e acrescentamos: ela é uma de suas condutoras. Seus diálogos com/sobre os estudos literários seduzem e despertam o prazer e a Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 11 Gardênia de Carvalho Rocha vontade de conhecer essas literaturas de países que estão muito mais próximos do que imaginamos. Ler para conhecer. Conhecer para saber. Saber para erradicar o preconceito e o olhar contaminado de lugares-comuns sobre São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, países africanos que a incansável investigadora conhece, lugares onde fez amigos e teceu teias de união. Letras e laços. Com a implementação da Lei 10.639/03 (hoje 11.645/08), surge uma tentativa de erradicar o preconceito e reconhecer (sem dar margens a “exotismos”) a heterogeneidade que nos compõe. A Lei prevê o estudo obrigatório da história e da cultura afro-brasileira e indígena no âmbito escolar, tanto no Ensino Fundamental quanto no Médio. A investigadora, profunda conhecedora das letras, histórias e culturas africanas, reconhece a importância da Lei, mas vaticina: ainda há poucos docentes especializados para ensinarem África e, por isso, a Lei pode demorar a ganhar existência concreta. Concordamos, certamente, com a pesquisadora. No entanto, acreditamos que suas muitas contribuições acadêmico-científicas (artigos, palestras, orientações de mestrado e doutorado) sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa são verdadeiros mananciais para os docentes interessados e/ou comprometidos com as relações “saber-conhecer” e “conhecer-mudar”. Todos podemos contar com a dedicação e a magia desta renomada e relevante pesquisadora. Basta nos deixarmos levar pela magia de seus textos, que, citando Mia Couto (escritor moçambicano sobre quem Carmen já produziu vários estudos), teremos a “incurável doença de sonhar”. 12 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas A ENTREVISTA 1 Gardênia Rocha – A Lei 10.639, aprovada no Brasil em 2003, estabelece a obrigatoriedade da presença da história e cultura afro-brasileira no currículo oficial dos estabelecimentos de Ensino Médio e Fundamental do país. Antes, conhecimentos como a história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira, o negro na formação da sociedade nacional, a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil não faziam parte da formação acadêmica dos brasileiros. Como uma grande estudiosa da Literatura Africana, de que maneira você avalia essa lei? CARMEN – A Lei veio, em grande parte, corrigir as discriminações e os silêncios. Mas ainda falta muito para ela existir concretamente, pois não há, ainda, muitos docentes especializados para ensinarem África. 2 GR – Vamos falar um pouco daquilo que parece ser uma paixão para a senhora: a Literatura Africana. Ela ainda é bastante desconhecida no Brasil. Existe, em seu ver, carência de material específico para os estudos em Literatura Africana? CARMEN – Primeiramente, é importante ressaltar que, na verdade, não há uma Literatura Africana apenas. A África é um continente múltiplo, formado por muitos países, e cada um apresenta suas literaturas. Na UFRJ, eu trabalho apenas com cinco Literaturas Africanas, as daqueles países em que o português é falado: Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Cabo Verde. Eu prefiro a expressão Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Em segundo lugar, devemos lembrar que essas literaturas são jovens ainda. Possuem, aproximadamente, apenas 160 anos de existência. 3 GR – Li, recentemente, que os primeiros textos datam da segunda metade do século XIX. Essa informação procede? CARMEN – Sim, mas essas literaturas começaram a adquirir maioridade somente no século XX: na década de 1930, em Cabo Verde (com Claridade), e nos anos 1950, em Angola (com Mensagem). Naquele momento, elas se desprenderam da literatura portuguesa trazida como paradigma pelos colonizadores. Por conta dos seus diferenciados contextos socioculturais, essas literaturas nem sempre se desenvolveram em conjunto. Ainda assim, elas são, nos meios universitários ocidentais, geralmente estudadas sob uma denominação abrangente que envolve a produção literária das ex-colônias de Portugal na África: Moçambique, São Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau. O ideal é que essas literaturas fossem abordadas individualmente: Literatura de Moçambique, Literatura de Cabo Verde, Literatura de Angola etc. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 13 Gardênia de Carvalho Rocha 4 GR – Isso não demandaria um grande número de professores? CARMEN – Certamente, e isso é outro problema, porque, aqui no Brasil, há uma enorme carência de docentes especializados nessa área de estudos. 5 GR – Voltando à questão das Literaturas Africanas, a senhora disse que elas ainda são muito jovens, tendo, aproximadamente, 160 anos. É possível, então, afirmar que exista uma tradição literária consolidada na África? CARMEN – Claro que já existe. Mas, novamente, devo lembrar que falar em África é muito geral, pois há várias Áfricas. O continente africano é enorme. Nas Literaturas de Angola, Moçambique e Cabo Verde já existe uma consolidação, existem sistemas literários consolidados nesses países, mesmo sendo literaturas um tanto recentes. 6 GR – Nessas literaturas, quais seriam os principais autores? CARMEN – São muitos, mas posso mencionar, de saída: Pepetela, Luandino Vieira, Craveirinha, Mia Couto, Ondjaki, Agualusa, Maimona, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, José Luís Mendonça, Jorge Barbosa, Mário Lúcio, Corsino Fortes, Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho, além, é claro, de muitos outros. 7 GR – Tenho percebido o aumento de interesse pelas Literaturas Africanas entre os estudantes universitários brasileiros. Entretanto, parece haver certa dificuldade em obter material para pesquisa. Para a senhora, isso tem alguma relação com o fato de essa disciplina ter sido retirada do currículo das universidades brasileiras no período militar? CARMEN – Creio que sim. As Literaturas Africanas nasceram no bojo do processo revolucionário nos países africanos, cuja ideologia sustentadora de suas lutas de libertação era marxista. Assim, o Governo Militar brasileiro não admitia que essas literaturas fossem ensinadas e lidas no Brasil. Mas houve, ainda, outras fortes razões que marginalizaram essas letras: o racismo, os preconceitos contra os negros. Uma literatura que falava dos negros ou da África não entrava nos currículos, uma vez que os negros e os africanos eram considerados inferiores. Hoje, com o neoliberalismo, continua a haver um bloqueio editorial. O motivo é que essas literaturas contribuem para a conscientização histórica. Como isso não interessa ao sistema globalizado, as editoras preferem publicar livros de autoajuda, mantendo o boicote a essas literaturas. 14 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas 8 GR – A pouca divulgação das Literaturas Africanas no Brasil dá margem a visões equivocadas a respeito dessas literaturas? CARMEN – Esta questão é muito ampla... É claro que muitos equívocos são gerados pelo profundo desconhecimento que cerca não só essas literaturas, como também a África em geral. Esta, no Brasil, encontra-se ainda envolta em muito misticismo e em visões mitificadoras. Muitos pensam que a África é uma só, e, na verdade, ela é múltipla, multifacetada, complexa etnicamente. A Conferência de Berlim traçou o mapa dos países africanos, sem respeitar os contornos étnicos. Daí ser o continente africano um território esgarçado, mutilado. Isso tudo se reflete nos textos literários africanos. As Literaturas Africanas são também diversas: há as escritas em francês, em inglês, em português e, agora, várias obras começam a ser escritas também em línguas africanas já sistematizadas. Claro que estas têm dificuldade de penetração em países não africanos e mesmo em países africanos, pois nem todos os africanos falam as mesmas línguas. O problema linguístico é complexo e plural. Já existem algumas edições bilíngues, o que assinala uma certa valorização de idiomas que foram discriminados durante séculos pelas colonizações que passaram pela África. 9 GR – De que maneira essas literaturas estão inseridas no cenário mundial? Que reflexões a senhora faria sobre seu valor estético das Literaturas Africanas? CARMEN – Mais uma questão muito ampla. Como fiz na resposta anterior, tentarei responder de modo breve, o que, com certeza, vai reduzir muito a resposta à questão por você formulada. Mas, espero que minhas poucas palavras, pelo menos, levantem algumas pistas que despertem reflexões. Muitas obras africanas têm grande valor estético e são reconhecidas mundialmente, tanto que receberam prêmios: Wole Soyinka, da Nigéria, foi Prêmio Nobel; José Craveirinha, de Moçambique, foi Prêmio Camões em 1991; Pepetela, de Angola, recebeu o Prêmio Camões em 1997. Pepetela, Mia Couto, Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho, Agualusa, entre outros, são alguns dos autores africanos premiados e traduzidos no exterior. As obras desses escritores apresentam grande valor estético. Embora revelem contornos africanos, procurando afirmar traços identitários de seus respectivos países, esses escritores ultrapassam os paradigmas da chamada literatura da “angolanidade” ou da “moçambicanidade”, pois operam artesanalmente com a linguagem e trabalham a estrutura de seus romances e/ou poemas com modernas técnicas, buscando um distanciamento dos lugares-comuns para encontrarem uma plenitude estética universal. As obras desses autores podem ser analisadas com o apoio de sofisticadas teorias literárias lidas e aplicadas em Universidades do mundo todo, o que leva a afirmar que, se vencidas as discriminações ainda por elas sofridas, essas literaturas poderão ser, de um modo geral, inseridas no panorama literário mundial. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 15 Gardênia de Carvalho Rocha 10 GR – A senhora percebe preconceito no meio acadêmico? Ainda há preconceito em relação aos estudos africanos? CARMEN – Infelizmente, em alguns aspectos e áreas, ainda há, sim. Isso se deve, na minha opinião, ao fato de essas literaturas terem se afirmado no bojo do processo revolucionário marxista que libertou Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, além do racismo e marginalizações e exclusões contra os negros, o que censurou o ensino das literaturas africanas por muito tempo no Brasil. Mas, com a Lei 10.639 e todo o trabalho que desenvolvemos há 15 anos na Faculdade de Letras da UFRJ, em nossa unidade esses preconceitos diminuíram sensivelmente. Contudo, a discriminação em relação às Literaturas Africanas se revela pela ausência de uma política sistemática de concessão de vagas para concursos públicos para professores de Literaturas Africanas na UFRJ. O nosso Setor de Literaturas Africanas só conta com duas docentes efetivas e um substituto. Há necessidade de mais docentes, pois a área vem crescendo, devido ao interesse despertado na sociedade brasileira pela Lei 10.639. 11 GR – Sei que é uma pergunta ampla, mas, quais são as principais características e as peculiaridades da Literatura Africana? CARMEN – Como já lhe disse, são Literaturas Africanas e não uma só Literatura Africana. Logo, as características variam. Para você ter uma ideia dessas Literaturas, vou traçar um amplo painel delas. Em Angola e Moçambique, nos anos 1950, surge uma poesia direcionada para a afirmação das raízes africanas e da identidade a ser recuperada. Sob o lema “Vamos descobrir Angola”, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola propunha o resgate da angolanidade, também reivindicada pelos poetas de Mensagem, entre eles Viriato Cruz, António Jacinto, Agostinho Neto, autor do livro de poemas Sagrada esperança. Em Moçambique, também nessa época, se inicia uma poética voltada para a moçambicanidade, cujas principais vozes foram as de Noêmia de Souza, Marcelino dos Santos e José Craveirinha, poeta que, em 1991, recebeu o Prêmio Camões de Literatura, e continua a escrever até hoje, tendo passado por várias fases. O seu livro Xigubo (1964) reúne poemas desse período, versando sobre temas africanos e fazendo a crítica ao racismo, ao colonialismo, aos séculos de escravidão. Em Angola, a poesia de Agostinho Neto, em sua fase da negritude, também clamou contra a opressão sofrida pelos negros, denunciando a exploração escrava. Tanto em Angola como em Moçambique, nesse período, a poesia se afasta dos cânones portugueses e recusa a civilização europeia. É uma poética acusatória, de forte impacto social, que faz ecoar o grito negro da rebeldia. Em busca das raízes profundas do ser africano, utiliza vocábulos das línguas nativas, de modo a macular 16 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas o idioma do colonizador. Craveirinha, por exemplo, traz para seus poemas os sons das marimbas e do tambor, mesclando o português com palavras em ronga [uma das línguas faladas em Moçambique]. Poetas angolanos desse momento também procedem assim, introjetando ao português expressões do quimbundo, do umbundo, do quicongo e de outras línguas, de modo a assinalar, com odores e saberes africanos, o idioma trazido pelo colonizador. Representando a poesia de São Tomé e Príncipe, temos as vozes de Francisco José Tenreiro, de Maria Manuela Margarido e de Alda do Espírito Santo, entre outras, defendendo os paradigmas da negritude e/ou a identidade das ilhas. Em Cabo Verde, desde a década de 1930, Claridade já clamava por uma poesia autêntica, que buscava afirmar a cabo-verdianidade. Essa poética, ao contrário do que ocorre em Moçambique e Angola, na década de 1950, não reivindicava os temas da negritude, tendo em vista a predominância mestiça em Cabo Verde, cujas ilhas, desertas na ocasião da descoberta, foram povoadas por portugueses oriundos da Madeira e negros vindos da Guiné. Claridade representou uma virada na lírica do arquipélago. Influenciada pelo modernismo brasileiro, essa geração rompeu com as formas clássicas da poesia, incorporando o verso livre, a não preocupação com as rimas, o uso do crioulo, os temas cabo-verdianos. A poética claridosa fez o testemunho documental do dilema crucial do ilhéu, um ser cindido pelo desejo de ficar e pela necessidade de partir. Falta, entretanto, à maioria dos representantes dessa lírica, uma conotação político-social mais direta, o que só ocorrerá, efetivamente, com as gerações seguintes. Seus principais poetas foram Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Oswaldo Alcântara (pseudônimo, como poeta, de Baltasar Lopes). Os dois últimos também escreveram prosa: Manuel Lopes, Um galo cantou na baía (contos) e Os flagelados do vento leste (romance); Baltasar Lopes, Chiquinho (romance). Tais narrativas, de cunho social, assemelham-se ao nosso regionalismo de 1930, em particular aos romances de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Só em 1944, a geração Certeza trouxe um tom marxista às narrativas de Cabo Verde. Orlanda Amarílis, que continua a escrever até hoje, foi uma das principais representantes, trazendo para seus contos o imaginário feminino das ilhas. Nos anos 1960, com a guerra declarada contra o colonialismo português, unem-se as literaturas das cinco colônias portuguesas na África em torno da temática libertária, cujas utopias fazem dos versos armas de luta contra o salazarismo português. Em Cabo Verde, Amílcar Cabral lidera o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde], o poeta Ovídio Martins proclama “o ficar para resistir”, e outros poetas se destacam: Osvaldo Osório, Armênio Vieira, Tomé Varela. Outro poeta importante, cuja produção se inicia em 1959 e entra pelos anos 1980, é Corsino Fortes. Sua obra, Pão & fonema (1974) e Árvore & tambor (1986), representa um salto em direção a uma linguagem comprometida com o universo ilhéu, pois busca reescrever Cabo Verde com tintas próprias, com o ritmo dos tambores e fonemas crioulos. Sua poesia Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 17 Gardênia de Carvalho Rocha apresenta alto grau de consciência técnica e política. Prima pelo rigor formal e contenção da linguagem, lembrando a poética de João Cabral. Na Guiné-Bissau, surgem nomes importantes na poesia: Vasco Cabral, Hélder Proença, entre outros. É publicada a primeira antologia da Guiné: Mantenhas para quem luta!, cujas poesias, tornando-se guerrilheiras, cantam o desejo de libertação. Nessa época, em Moçambique, são editados vários fascículos sob a denominação Poesia de combate. Na prosa moçambicana, escritores como Orlando Mendes, com o romance Portagem, e Luís Bernardo Honwana, com o livro de contos Nós matamos o cão tinhoso, denunciam a opressão e a miséria vivida pelo povo. São muitos os poetas, também em Angola, a produzirem poemas nessa dicção: Costa Andrade, Jofre Rocha, e outros. Na ficção, diversos escritores optam pela temática da guerra e pela denúncia das carências sociais. Luandino Vieira, desde os anos 1960 e passando pelas décadas subsequentes, envereda por esse caminho, mas se afirma por um estilo próprio, que busca, à maneira de Guimarães Rosa, recriar a língua de colonização, “quimbundizando-a” pela opção de transcriar a fala dos habitantes dos musseques, isto é, as favelas de Luanda, onde o povo oprimido vivia em condições subumanas. 12 GR – Nesse período, também está Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela? CARMEN – Sim. Junto a outros escritores de destaque, está Pepetela, com o seu famoso romance Mayombe, o qual, ultrapassando a dimensão apenas ideológica das narrativas comprometidas com a utopia da Revolução, discute valores humanos universais, como o amor, o sexo e a amizade, além de criticar o tribalismo e as contradições da própria guerra. Pepetela é um dos grandes escritores angolanos, cuja obra apresenta várias fases, na medida em que continua a escrever até hoje. Nos fins dos 1960 e início dos 1970, com a intensa repressão da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado, existente durante a ditadura de Salazar em Portugal], a literatura se torna bastante metafórica para driblar a censura. A poesia, principalmente em Angola e Moçambique, se torna elaborada, voltando-se sobre ela mesma. É a fase da “Poesia do Gueto”, do grupo Caliban, em Moçambique, com poetas como Rui Knopfli, Sebastião Alba, Alberto de Lacerda, entre outros, e, em Angola, com poetas como David Mestre, Manuel Rui, Arlindo Barbeitos, Ruy Duarte de Carvalho, para citar somente alguns. Com a independência, retornam as utopias. São vários os poetas a celebrar a liberdade conquistada. Em Angola, lembramos o nome de Manuel Rui, com seu livro Cinco vezes onze: poemas em novembro, obra literariamente muito bem construída. Em Moçambique, citamos o livro Monção, de Luís Carlos Patraquim, que celebra os bons ventos libertários. O fim dos 1980 e os 1990 são marcados por um desencanto na esfera social, que se reflete na área literária. A poesia dessas décadas se caracteriza pela superação 18 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas da poética “cantalutista” e pelo desaparecimento das referências circunstanciais presentes na poesia revolucionária. Há a radicalização do projeto de recuperação da língua literária, aproveitada em suas virtudes intrínsecas e universais, sem os regionalismos característicos da literatura dos anos anteriores. Há a metaconsciência e o traço crítico, mas sem o panfletarismo ideológico. Ironia, paródia, desencanto são procedimentos de denúncia à corrupção e às contradições do poder. Dialogando com poetas das gerações anteriores, essa lírica aponta para a crise das utopias e funda um novo lirismo, que procura cantar os sentimentos existenciais, desvinculados do canto coletivo social. Há uma intensificação poética, através da depuração da linguagem literária que, em alguns poetas, se manifesta por experimentalismos, por corporizações plásticas de palavras, por metáforas surrealistas, por jogos verbais que acentuam a relação entre a ética e a estética. Afinados a essa nova dicção, em Angola, os principais poetas atuais são João Melo, Lopito Feijóo, João Maimona, Ana Paula Tavares, Eduardo Boavena, José Luís Mendonça. Em Moçambique, lembramos os nomes de Luís Carlos Patraquim, de Eduardo White, poeta oriundo da revista Charrua, de Nélson Saúte, de Armando Artur, entre outros. Em São Tomé, não poderíamos nos esquecer de mencionar Conceição Lima, que faz uma poesia de revisão crítica da história de seu país. Na Guiné-Bissau, a mais pobre das ex-colônias, também algumas vozes novas surgem, entre as quais as de Domingas Samy e Carlos Lopes, embora, na maior parte das vezes, as narrativas ainda circulem apenas oralmente. Na poesia, nesses tempos de distopia, há, por exemplo, o canto lúcido do poeta António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka. Em Cabo Verde, no ano de 1991, a publicação de Mirabilis: de veias ao sol, antologia organizada por José Luís Hopffer Almada, reúne os “novíssimos poetas de Cabo Verde”, divulgando a poesia cabo-verdiana produzida após o 25 de Abril [Revolução dos Cravos que, em 1974, derrubou o regime ditatorial em Portugal]. O não cumprimento das promessas sociais gera um desalento. Entretanto, lembrando-se de que, mesmo no deserto, cresce a mirabilis, a nova geração resiste poeticamente a esses anos de “mau tempo literário”. Destacam-se, entre os mirabílicos: Manuel Delgado, David Hopffer Almada, Kaliosto Fidalgo, Euricles Rodrigues, Vera Duarte, Luís Tolentino, Vasco Martins, Canabrava, entre outros. Na prosa, tendências variadas se apresentam no pós-independência. Há escritores que buscam a dicção do humor, fazendo a crítica da realidade. Citamos, em Angola, Uanhenga Xitu, com Estórias na senzala (Kahitu); Manuel Rui, com Quem me dera ser onda; Pepetela, com O cão e os Caluandas, entre outros. Há, também, as obras que trabalham na linha da ficção e da história, recuperando procedimentos da oralidade e tradição africanas, em conjugação com uma escrita que utiliza procedimentos ficcionais bastante modernos. É o caso, em Angola, de Boaventura Cardoso, com Dizanga dia Muenhu; de Luandino Vieira, com Nós, os de Makulusu, entre outros livros; de Agualusa, com Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 19 Gardênia de Carvalho Rocha A conjura; de Pepetela, com Lueji, A geração da utopia, O desejo de Kianda, A parábola do cágado velho, romances através dos quais o escritor denuncia as guerras sempre presentes na história angolana, chamando atenção, nos três últimos livros (publicados nos anos 1990), para as guerrilhas entre o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] e a UNITA [União Nacional para a Libertação Total de Angola] que desestabilizaram o processo de independência e transformaram as utopias revolucionárias em distópicas ruínas, cujos destroços assinalam o dilaceramento atual de Angola. Em Moçambique, os escritores também evidenciam a crise que atravessa o país destruído por quase trinta anos de guerra. Mia Couto, com seus romances, Terra sonâmbula e A varanda do frangipani, e Ba Ka Khosa, com Ualalapi, repensam a história moçambicana a partir de um trabalho arqueológico com os fantasmas da memória presentes no imaginário do país. Em Cabo Verde, não poderíamos deixar de mencionar, na ficção, nomes como os de Teixeira de Sousa, com vários romances publicados; de Manuel Veiga, que escreve em crioulo; de Vasco Martins; de Dina Salústio e de Germano Almeida, cujo livro O testamento do Sr. Nepomuceno, foi transformado em filme, em razão do sucesso que fez, ao captar, com humor e acuidade, os problemas do universo cabo-verdiano. 13 GR – Em um de seus artigos sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, a senhora fala em paradigmas norteadores do desenvolvimento dessas Literaturas. Poderia falar um pouco sobre eles? CARMEN – De um modo geral, existem sete paradigmas que norteiam o desenvolvimento das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: o referente às origens (segunda metade do século XIX), cujos poemas se encontram colados à produção literária portuguesa; o relativo a uma fase intermediária de busca de identidade local (primeiras décadas do século XX), em que as obras são ainda perpassadas por uma ambiguidade entre a pátria lusitana e a mátria africana; o que compreende o período de mergulho nas raízes africanas e de afirmação das respectivas nacionalidades (década de 1930, em Cabo Verde, e década de 1950 em Angola, Moçambique, São Tomé); o correspondente à época das utopias libertárias, das lutas contra o colonialismo (década de 1960); o que se refere à fase de “gueto”, período de intensa censura, em que, por terem muitos escritores sido presos, a poesia, apenas metaforicamente, faz alusões ao social, abordando temas universais e voltando-se para a sua própria construção e linguagem (fim dos 1960 e primeiros anos da década de 1970); o que compreende os anos da pré e da pós-independência, quando voltam os temas sociais, as utopias revolucionárias, os textos celebratórios da liberdade. Nessa época, surgem também narrativas que discutem a necessidade da reconstrução nacional (década de 1970 e parte da década de 1980); e, por fim, o que corresponde à fase atual de desencanto (fim dos 1980 e os 1990), 20 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas em que a literatura reflete sobre a falência dos antigos ideais fundados em um marxismo ortodoxo e aposta na resistência cultural, investindo na recuperação dos mitos e sonhos submersos no inconsciente coletivo desses povos. 14 GR – Nesse belo e amplo painel generosamente traçado, a senhora mencionou alguns diálogos entre a Literatura Brasileira e as Africanas. Existe uma ligação histórica entre essas Literaturas, em especial a Angolana? CARMEN – Há muitos diálogos, sim, com a Literatura Brasileira. Guimarães Rosa, Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira e muitos outros escritores brasileiros foram lidos em Angola, Moçambique, Cabo Verde, e há uma forte presença deles em textos literários angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos. O tema da intertextualidade entre a Literatura Brasileira e as Literaturas Africanas em Língua Portuguesa é pertinente, pois, embora sejam muitas as afinidades entre vários autores e poemas, a grande questão que levou alguns escritores africanos a se espelharem em determinados períodos do sistema literário brasileiro foi, justamente, a necessidade da busca de uma consciência literária nacional. É comum, entre os ensaios sobre as literaturas africanas em língua portuguesa, apontar o Modernismo de 1922 e o Regionalismo de 1930, no Brasil, como marcos paradigmáticos das literaturas de Angola, Cabo Verde e Moçambique. Mas, voltando os olhos para o final do século XIX, pode-se constatar que a intertextualidade com autores brasileiros já se fazia, desde essa época, em poetas como: Costa Alegre, de São Tomé, José Lopes, de Cabo Verde, José Maia da Silva Ferreira, de Angola, para citar apenas alguns. Leio, a seguir, versos de Maia Ferreira, cujo ritmo e o encantamento diante da terra natal lembram a Canção do exílio, do poeta romântico brasileiro Gonçalves Dias. Apesar de o romantismo brasileiro apresentar alguns ecos nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa desde o final do século XIX e o início do século XX, é nos anos 1930, 1940 e 1950 que a intertextualidade com a Literatura Brasileira se faz mais evidente. Em Angola, António Jacinto, importante poeta da Geração Mensagem, chama atenção para a influência literária brasileira nos jovens poetas angolanos dos anos 1950. O poeta Maurício Gomes de Almeida é outra das vozes angolanas dos primeiros tempos de busca de uma literatura autenticamente voltada para Angola, que, propondo uma ruptura com os antigos cânones lusitanos, funda uma nova poética, cujos paradigmas passam a ser os do modernismo brasileiro. Na prosa, além da forte presença de autores como Graciliano, de Vidas secas e São Bernardo; de Jorge Amado, de Jubiabá e Terras do sem fim; de José Lins do Rego, com as histórias dos engenhos no nordeste brasileiro, há uma grande intertextualidade entre Luandino Vieira e Guimarães Rosa, o que se verifica também ao se analisar a obra do escritor moçambicano Mia Couto. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 21 Gardênia de Carvalho Rocha 15 GR – A senhora publicou um livro chamado A magia das letras africanas. Como surgiu a ideia de escrever esse livro? CARMEN – As publicações acerca das Literaturas Africanas aqui no Brasil ainda são reduzidas. Por isso, resolvi reunir em livro meus artigos apresentados em congressos e análises minhas usadas em aulas na UFRJ desde 1993. Há, ainda, certa escassez de ensaios críticos sobre Literaturas Africanas, embora, nos últimos dez anos, algumas obras tenham sido publicadas e, hoje, com a lei que criou a obrigatoriedade do ensino da temática africana, muitas editoras vêm se interessando em editar obras sobre a África. 16 GR – Qual é o objetivo da obra? CARMEN – A magia das letras africanas – ensaios sobre obras das literaturas de Angola e Moçambique, se apresenta como um conjunto de exercícios literários, de modos produtivos de exegese textual, através dos quais práticas de interpretação literária são veiculadas, com o intuito de incitar, nos que se iniciam nos estudos das letras africanas, o prazer de ler, o gosto de imaginar. Esclarecemos que nossas análises dos textos não se colocam, de modo algum, como modelos fechados, mas como uma das muitas vias possíveis de leitura. 17 GR – Quais foram os desafios enfrentados para a elaboração desse trabalho? CARMEN – Escrever foi um prazer, daí o título que dei à obra: a magia das letras africanas. Magia no sentido da sedução despertada por essas literaturas. Publicar é que foi difícil, em 2003, quando saiu a primeira edição. 18 GR – Que aspectos das Literaturas Africanas são abordados no livro? CARMEN – Trabalho com poesia, ficção e pintura. Estudo questões sobre ficção e história, pós-colonialismo, racismo, memória, oralidades recriadas e o labor estético das obras literárias analisadas. Por meio de um jogo de desvelamento interpretativo, A magia das letras africanas se debruça sobre textos de escritores como: Luandino Vieira, Mia Couto, Manuel Rui, Boaventura Cardoso, entre outros. De outra parte, interpreta também textos poéticos de Agostinho Neto, José Craveirinha, Paula Tavares, Luis Carlos Patraquim, João Maimona, Arlindo Barbeitos, Virgílio de Lemos, Eduardo White, entre outros – poetas que compõem o quadro canônico dessas literaturas. A estas leituras, se vêm juntar as que leem diálogos intertextuais com autores brasileiros, como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Há, também, o estudo de outro universo artístico, o da pintura, que se intersecciona com o da poesia. Quadros de renomados pintores de Angola e Moçambique – Jorge Gumbe, António Óle, Malangatana Valente ou Roberto Chichorro – vão tecer teias de cores e movimentos com as palavras poéticas, elas também sempre em cores e movimentos. 22 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas 19 GR – Qual a importância das Literaturas Africanas hoje e quais lições podemos aprender com elas? CARMEN – Essas literaturas são importantes como quaisquer outras literaturas. Na minha opinião, nenhuma literatura deve dar lições. O papel da arte não é dar lições, mas sim ter qualidade estética e problematizar questões das mais variadas ordens (sociais, artísticas, existenciais e/ou filosóficas). A literatura, segundo Habermas, “se cola à pele do real não para capitular diante dele, mas para dissolvê-lo por dentro”. Para mim, são importantes as obras literárias e artísticas que me fazem levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida. Nesse sentido, muitos textos africanos me fizeram pensar criticamente sobre: a importância dos velhos, da oralidade, da história e da memória, da arte e da linguagem literária. Outros textos me levaram a rever criticamente o pós-colonialismo, o colonialismo, o racismo, a escravidão, as atuais políticas neoliberais que impõem novas formas de colonialismo à África e a outros continentes. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 23 TRAUMA E TESTEMUNHO NAS MEMÓRIAS DE ARIEL DORFMAN Renata Feital Faculdade CCAA Universidade Veiga de Almeida Universidade Cândido Mendes Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/IUPERJ contato: [email protected] Resumo: O artigo pretende iniciar uma discussão sobre trauma e memória a partir da autobiografia de Ariel Dorfman – Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. Em meio a reflexões sobre sua própria condição de ser um “homem em trânsito”, híbrido, perdido entre duas culturas e dois idiomas, Dorfman recupera aspectos importantes da memória social do Chile, durante a ditadura militar. PALAVRAS-CHAVE: trauma; memória; literatura latino-americana. Abstract: This essay aims at initiating a discussion about trauma and memory, taking Ariel Dorfman’s autobiography ‘Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas’ as a starting point. In the middle of reflections about his own condition of being “a man in transit”, hybrid, lost between two cultures and two languages, Dorfman brings back important aspects of Chile’s social memory on the days of the military dictatorship. KEYWORDS: trauma; memory; Latin-American Literature. Resumen: El artículo se propone iniciar una discusión sobre trauma y memoria a partir de la autobiografía de Ariel Dorfman – Uma vida en trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. En medio de reflexiones sobre su propia condición de ser un “hombre en tránsito”, híbrido, perdido entre dos culturas y dos idiomas, Dorfman recupera aspectos importantes de la memoria social de Chile, durante la dictadura militar. PALABRAS CLAVE : trauma; memória; literatura latino-americana Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 25 Renata Feital INTRODUÇÃO “O Departamento de Retrô dos Estados Unidos adverte: poderá haver uma escassez de passado.” (Chamada de um falso anúncio colocado na internet) Um fenômeno que teve lugar nas sociedades ocidentais, sobretudo nos países latino-americanos, neste início de século, tem sido a tarefa de recuperação da memória coletiva como uma estratégia política e cultural. Num mundo globalizado, em que a obrigação de ser contemporâneo se tornou a tarefa fundamental, cujos espaços sociais estão marcados por deslocamentos, migrações e diásporas, além da compreensão do futuro como um tempo verdadeiro, uma vez que ele ainda não é, foi o passado tão evocado na construção do presente como agora. Seja na moda retrô, seja no culto às visitações aos museus, seja na comercialização em massa da nostalgia (SELIGMANN-SILVA, 2005), se o “passado passou”, ele, porém, ressurge de uma forma intempestiva, na Arte, no Jornalismo e na Literatura, e reacende a memória das sociedades.1 Por trás desse culto à memória, há, segundo Andreas Huyssen (2000), certa controvérsia em torno do que ele denominou de passado mítico e passado real. “O real pode ser mitologizado, tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade” (HUYSSEN, 2000, p. 16). Em se tratando de memória e esquecimento de sociedades latino-americanas, que sofreram com as ditaduras militares e que produziram testemunhos sobre esses traumas, há de se pensar na questão. Os discursos de memória tomaram corpo na Europa e nos Estados Unidos no começo da década de 1980, impulsionados pelos debates em torno do holocausto. Era preciso narrar a barbárie. Contudo, o que vários estudos sobre memória e testemunho questionam é saber se, por meio da linguagem e do trauma causado, é possível reviver o choque. Pensar na relação entre o real e o ficcional, entre história e ficção, é o que aconselha a maior parte dos autores. Como a linguagem pode traduzir um excesso de realidade “vivida”? O quanto de memória social fabricada especialmente para o mercado de bens simbólicos não está sendo consumida como memória “real”? E como fica a literatura diante daqueles que testemunharam o 1 Uma boa referência para se entender os temas do tempo e do espaço na pós-modernidade é Marcio Tavares D´Amaral em: “Sobre tempo: considerações intempestivas.” In: DOCTORS, Marcio et al. (Orgs.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003, p. 15-32. 26 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman trauma e agora produzem relatos autobiográficos e romances históricos? Com base nessas questões, este artigo pretende analisar a biografia do escritor Ariel Dorfman – Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. O TRAUMA NA TV, NA ARTE E NA LITERATURA Terroristas que gravam vídeos exibindo suas vítimas na internet, guerras transmitidas ao vivo, catástrofes naturais acompanhadas por câmeras exclusivas em tempo real. Em um mundo totalmente dominado pelas novas tecnologias, essas imagens há muito se tornaram comuns em nossa vida cotidiana. Em vez de causar o choque, as pessoas, cada vez menos sensíveis, vão se acostumando a elas e se limitam a lamentá-las. Nossa cultura parece estar fascinada pelo trauma. “Estamos na época não mais da reprodutibilidade técnica, como Benjamin diagnosticara em 1936, mas da repetição, sem fim, inflacionada, das imagens do terror que não saem do écran da televisão e de nossas mentes” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64). Para este autor, há uma política de imagens em curso nas grandes redes de comunicação do mundo que globalizam o que devemos ver. Segundo ele, “ao reproduzir a catástrofe, a televisão também multiplica o trauma”. Em relação ao trauma mediado pelos mais modernos veículos de comunicação, o autor afirma que a reação tende a ser, de um modo geral, uma “ab-reação, abortada, um bloqueio que só leva a um agir que encobre o evento traumático e impede a recordação.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64-65) Já a Arte, segundo Hal Foster, encara o trauma de uma forma “abjeta”. Essa foi a teoria definida inicialmente por Julia Kristeva e incorporada por este autor no seu livro The return of the real.2 Além do conceito de Kristeva, Foster utilizou, também, o conceito lacaniano de real. O abjeto, na concepção de Kristeva, “é do que preciso livrar-me para tornar-me um eu. [...] Tanto espacial como temporalmente, portanto, o abjeto é a condição na qual a subjetividade é perturbada, em que o sentido entra em colapso.” (FOSTER, 2005, p. 179) 2 Para a redação desse texto, foi lida a versão traduzida para o português, editada pela Revistas Concinnitas. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 27 Renata Feital A arte abjeta, que tenta um retorno à cena, procederia – via uma dessimbolização dos objetos – como já patente na arte pop, por exemplo, de um Andy Warhol. Hal Foster denomina a sua arte, sobretudo a série Death in America (Morte na América) dos anos 1960, de realismo traumático. O seu princípio é o da mimetização do choque, cuja presença tornou-se insuportável na sociedade de produção em série: se você não pode vencê-lo, Warhol sugere, junte-se a ele” (FOSTER, 2005, p. 179). A repetição em série do real é vista como uma encenação da definição lacaniana do trauma, enquanto um encontro abortado com o real: enquanto algo perdido, o real não pode ser representado (ou seja, traduzido para o registro do simbólico), mas apenas deve ser repetido. Foster cita vários exemplos de outros artistas que tematizaram esse desencontro com o real na forma da mimetização da sua estrutura, tais como o super-realista Richard Estes, Richard Prince, representante da appropriation art (arte como apropriação), Kiki Smith e, sobretudo, Cindy Sherman. As obras desses artistas servem tanto como “prova da ferida do trauma” como também almejam desencadear uma reflexão sobre esse real-abjeto. O extremo é a regra. (FOSTER, 2005, p. 157) A arte, como Benjamin já notara, assume agora o papel de domesticadora dos indivíduos para a vida numa sociedade onde o choque se tornou parte da ordem do dia (FOSTER, 2005, p. 140). Afinal, o sujeito deve possuir um domínio, ainda que incompleto, do abjeto; ele deve mantê-lo sob controle e a distância, para poder se definir como objeto. É Walter Benjamin quem também oferece a sua versão sobre o trauma na Literatura. No ensaio, Sobre alguns temas em Baudelaire, de 1939, apresenta a sua visão sobre o trauma. Para o autor, a teoria da modernidade e do homem moderno se apresenta como alguém que acumula apenas vivências estéreis para a construção de narrativas, as quais se alimentavam, antes, da experiência autêntica. (FOSTER, 2005, p. 140) Segundo Benjamin, quanto maior for o sentimento do choque na vida das pessoas, maior a presença do consciente para proteger contra esses estímulos. “Quanto maior for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência.” (BENJAMIN, 1989, p. 111) 28 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman Qual o papel da literatura nesse contexto? Segundo Seligmann-Silva (2005), uma das principais características da literatura é a de não possuir limites. Na opinião do autor, a literatura não deve se “separar” do real. Sua função seria encenar a criação do real. A literatura está na vanguarda da linguagem: ela nos ensina a jogar com o simbólico, com as suas fraquezas e artimanhas. Ela é marcada pelo real – e busca caminhos que levem a ele, procura estabelecer vasos comunicantes com ele. Ela nos fala da vida e da morte que está no seu centro de um visível que não percebemos no nosso estado de vigília e de constante angústia, diante do pavor do contato com as catástrofes externas e internas. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 74) Se a literatura tem problemas para testemunhar o passado, sobretudo a tradição, ela pode testemunhar o presente. E é o que tem acontecido até agora, principalmente no final do século passado. A literatura do século XX foi, em grande parte, uma literatura marcada pelo seu presente traumático. Seligmann-Silva (2005, p. 77) é contundente ao afirmar que é preciso “aprendermos a ler esse teor testemunhal: assim como aprendemos que os sobreviventes necessitam de um interlocutor para seus testemunhos”. A literatura-testemunho na América Latina tem se concentrado em torno de relatos sobre a barbárie causada pelas diversas ditaduras militares, como foi o caso do escritor Ariel Dorfman. Marcado por vários exílios, em 11 de setembro de 1973, com o golpe de Estado e, posteriormente, Pinochet no poder, Dorfman, que havia participado ativamente do governo de Salvador Allende, conseguiu sobreviver e precisou passar por vários exílios, incluindo França, Argentina, Holanda e, finalmente, Estados Unidos, país em que decidiu permanecer por mais tempo. Suas reflexões, testemunhos e impressões sobre o que significou o exílio (entre outros temas) encontram-se no livro Uma vida em trânsito, traduzido para o português por Ana Luíza Borges. Eu sobrevivi e fiz uma promessa aos mortos da ditadura chilena. Eu iria viver para contar as suas histórias. Eu me salvei e não entendia o porquê. No meu entender, só havia um jeito de reparar a barbárie que meus amigos e meu povo passaram, praticando o ato mais civilizado que existe, que é o ato da escritura, para justificar a memória e espantar o esquecimento.3 (GACEMAIL, 2010, não paginado) 3 Entrevista do autor a Oscar Ranzazine. Disponível em: http://www.gacemail.com.ar/Detalle.asp?NotaID=10101, acesso em: 28/02/2010. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 29 Renata Feital TESTEMUNHO E MEMÓRIA COLETIVA Lívia Reis transcreveu a definição das características gerais do gênero Testemunho, presentes na ata de criação do Premio Testimónio, de 1970. Entre elas, ressaltam-se “os méritos literários e a atualidade do tema, além da transcendência política e social dos textos” (REIS, 2007, p. 79). Pode-se afirmar que o testemunho tem uma conotação política muito marcada que se traduz em permitir o uso das palavras por aqueles que, tradicionalmente, se encontram excluídos. O narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que escutam. Narrar o inenarrável, contar o inverossímil, acarreta um complexo jogo entre o narrador/testemunha, seu texto, sua experiência e o público leitor. Relatar o trauma significa estabelecer certa negociação entre o que de fato aconteceu e o resgate de uma memória fragmentada pelo mesmo trauma. “Narrar, esquecer, lembrar, são procedimentos ambíguos em constante luta no interior do sujeito narrador e na exterioridade dos textos-testemunhos. A memória existe ao lado do esquecimento, um complementa e alimenta o outro.” (REIS, 2007, p. 80) Na definição de Hugo Achugar, citado por Reis (2007), o gênero testemunho se encontra “entre a autobiografia e a biografia, disputado pela Antropologia e pela Literatura e que assume modalidades próprias tanto no discurso histórico quanto na narrativa.” (ACHUGAR, 1992, p. 50 apud REIS, 2007, p. 82)4 Mas há autores que ressaltam uma limitação para o testemunho. É o caso de Primo Levi. O autor expressa o ponto de vista único e insubstituível do narrador; ele não deixou, porém, de demarcar o modo parcial e limitado com que esses testemunhos têm ocorrido. Os sobreviventes que não sucumbiram nos campos de concentração e que tiveram a sorte de não serem selecionados para as câmaras de gás são testemunhas conscientes da limitação da sua narrativa. Nós, tocados pela sorte, tentamos narrar com maior ou menor sabedoria não só nosso destino, mas também aqueles dos outros, dos que submergiram: mas tem sido um discurso “em nome de terceiros”, a narração de coisas vistas de perto, não experimentadas pessoalmente. A demolição levada a cabo, a obra consumada, ninguém narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar sua morte. (LEVI, 1990, p. 48 apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 67)5 4 Cf. ACHUGAR, Hugo; Berverley, John. (Orgs.). La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad narrative. Lima/Pittsburg: Latinoamericana Editores, 1992, p. 50. 5 Cf. LEVI, Primo. Os afogados e os sobrevientes. Trad. L.S. Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 30 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman Narrar é imperativo para a sobrevivência da memória. O sentido a ser atribuído ao termo memória, neste trabalho, é o mesmo empregado pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, o principal estudioso das relações entre memória e história, presentes no livro, La mémoire colletive. Halbwachs segue os princípios durkheimianos de considerar a predominância do fato social sobre os fenômenos de ordem individual. Para ele, não interessa estudar como a memória acontecia de forma individual, mas “os quadros sociais da memória”, ou seja, se as relações a serem determinadas deverão levar em conta o seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão, com os grupos de referência e convívio do indivíduo. (HALBWACHS, 1990) Para Halbwachs (1990), a memória coletiva é partilhada, transmitida e construída pelo grupo ou sociedade. Esta memória coletiva tem, assim, uma importante função de contribuir para o sentimento de pertencimento a um grupo de passado comum, que compartilha memórias. Ela garante o sentimento de identidade do indivíduo, calcado numa memória compartilhada não só no campo histórico real, mas, sobretudo, no campo simbólico. Assim, o outro tem um papel fundamental na produção da memória. Jozef (2005) demonstrou o problema que é um país sem memória. As nações que perdem sua memória correm o risco de desaparecer. Daí, segundo ela, os escritores contemporâneos terem a “missão” de testemunhar sobre os fatos que acontecem no mundo. “[...] o ato de testemunhar sobre a violência política, o exílio e a repressão militar ditatorial de seus países para, como declarou Armonía Sommers, forçar a memória até as últimas consequências.” (JOZEF, 2005, p. 252) UMA VIDA EM TRÂNSITO – MEMÓRIAS DE UM HOMEM ENTRE DUAS CULTURAS Eu não devia estar aqui para contar essa história. A razão é simples: há um dia em meu passado, um dia há muitos anos, em Santiago, no Chile, em que eu deveria ter morrido, e não morri. [...] É aí que sempre penso que esta história deveria ter início no momento em que a História me transformou, contra a minha vontade, no homem que, um dia, escreveria estas palavras, e que agora as escreve. [...] Há uma noite Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 31 Renata Feital antes da suspensão da minha sentença, que é quando realmente preciso que a história comece: a noite de 10 de setembro, a noite anterior ao golpe. Amanhã, a esta hora, Allende estará morto e eu escondido, amanhã terei de aceitar um futuro no qual estarei vivo e tantos outros terão sido mortos em meu lugar. Mas ainda não. Hoje à noite posso dizer a mim mesmo, contrariando a evidência patente que grita de dentro e de fora de mim, que não haverá tomada militar, que o Chile é diferente dos outros países da América Latina, todos os mitos confortantes sobre a democracia, a estabilidade e a moderação. (DORFMAN, 1998, p. 13-14) Com estas palavras, Ariel Dorfman inicia o livro de memórias, intitulado Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. Transformando-se em um porta-voz dos mortos da ditadura militar chilena pelo fato de ter sobrevivido à perseguição a todos que participaram do governo Allende, a obra permite ao leitor realizar uma viagem percorrendo espaços geográficos, culturais, linguísticos, políticos e históricos, cujas dimensões são recriadas por meio dos relatos do autor, bem como de reflexões sobre sua própria vida. Desde criança, Dorfman se acostumou ao modo de vida conturbado do exílio. Antes de completar 30 anos, ele havia mudado de país, de cultura e de língua várias vezes: primeiro fugiu com seus pais (que eram judeus e deixaram a Europa Oriental) da Argentina para os Estados Unidos e, depois, para o Chile. Então, em 1973, após um golpe militar e a consequente gestão Pinochet, Dorfman é obrigado a deixar o Chile para uma rápida temporada na Europa, retornando mais tarde aos Estados Unidos, país em que reside atualmente. Dorfman não estava viajando como uma pessoa qualquer, mas sofrendo um tipo de mobilidade forçada entre nações, culturas e línguas que o deixou sem um lugar para chamar de casa ou uma cultura que pudesse definir como sua. Aos sete anos e vivendo uma crise, por estar doente e longe dos pais em um hospital americano, o autor renunciou ao idioma espanhol e jurou tornar-se um norte-americano, adotando a língua e os valores culturais daquela nação. Mais tarde, quando ainda era um estudante em Berkeley, é a vez de renunciar ao inglês, retornando ao castelhano, sua língua nativa. Essa hesitação levou-o a refletir sobre o papel da linguagem na formação da identidade de um povo e é parte da discussão das memórias. Dorfman negava-se a assumir essa duplicidade e passou muito tempo, ora negando a cultura e a língua espanhola, ora a cultura e o inglês americano. O desejo 32 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman de abraçar suas raízes latinas, entretanto, foi além da linguagem, mas somente a política foi capaz de lhe dar a identidade de um escritor, mudando totalmente a sua relação com o mundo. Ao longo de toda a história, as pessoas têm trocado de idiomas como uma maneira de sobreviver. São invadidas, conquistadas, escravizadas, seus lares são destruídos, seu reino, pequeno ou vasto, arruinado [...]. Mas, se você examinar mais atentamente essas inúmeras vítimas que foram obrigadas, em circunstâncias muito mais traumáticas que as minhas, a aprender a língua daqueles que têm o poder sobre elas, perceberá quantas decidiram se tornar bilíngues. Algumas conseguiram e outras só foram capazes de mesclar secretamente o idioma proibido e secreto com o novo e dominante, infiltrar seu ritmo, sua gramática, seu som, torná-lo mais familiar. Mas a maioria delas, tenho certeza, tentou conservar a língua original viva, aquecida, próxima. Enquanto conseguiram, pelo tempo que puderam, os convertidos se consolaram de sua infelicidade com a promessa de que o passado não estava completamente morto, que um dia ressuscitaria. Atreviam-se a se arriscar a ser duplos, a ansiedade, a riqueza, a loucura de ser duplo. (DORFMAN, 1998, p. 60) Essa dupla consciência se constrói a partir da memória do trauma da experiência radical de desenraizamento e da constante metamorfose cultural a que o exilado foi submetido. Dorfman se recusa, inicialmente, a ser um homem dividido por duas línguas iguais, incorporando as diferenças pessoal e coletivamente. “Recusei-me a tomar um atalho para a condição híbrida que assumi hoje.”6 (DORFMAN, 1998, p. 60) Mas será no Chile que o autor vai assumir um envolvimento, uma postura mais ativa. Ele abraçou o país, a língua e as pessoas, como também o movimento socialista de Salvador Allende, atuando em seu governo como consultor de mídia, uma participação engajada politicamente que vai lhe proporcionar mais um exílio no meio de tantos aos quais já tinha se submetido. Ariel, sua mulher Angélica, e seu filho retornam aos Estados Unidos e passaram a viver em uma cultura e na língua que agora eles haviam aprendido a detestar. 6 A questão da dupla consciência em Dorfman será retomada posteriormente como tema da tese de doutoramento. Interessa, neste artigo, as abordagens sobre testemunho e memória presentes no livro do autor. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 33 Renata Feital Por meio de seus relatos, o leitor fica sabendo sobre a motivação para escrever as memórias: durante alguns anos, Ariel Dorfman ficou sem saber o porquê de ter sido poupado naquela noite de 11 de setembro de 1973, uma vez que ele deveria estar trabalhando com seus companheiros no Palácio de La Moneda. A mesma pessoa que o empregou – o ministro Fernando Flores – decidiu riscar o nome de Dorfman da lista de pessoas a serem chamadas para o plantão de emergência. Fiquei sabendo dessa história muitos anos depois, quando nos encontramos no exílio, quando eu o visitei nos Estados Unidos, acho que foi no começo de 1978. Durante os anos anteriores, ele tinha estado preso. [...] Por quê?, perguntei. Por que tinha feito isso? Ele fez uma pausa, tornou-se introspectivo, como se consultasse alguém que ele fora um dia, pensou um pouco e disse, da mesma maneira que, provavelmente, havia riscado meu nome da lista: Bem, alguém tinha de viver para contar a história. (DORFMAN, 1998, p. 58) Em várias passagens do seu relato, Dorfman tentava acreditar no que havia forjado para si. “Se não foi por isso que fui salvo, ele dizia, tentei fazer com que fosse. Em cada história que conto. Obcecado pela certeza de que tenho cumprido uma promessa aos mortos.” (DORFMAN, 1998, p. 58) Não há como negar que, na América Latina, sobretudo nos países que sofreram com as ditaduras, está em curso uma “política da memória”. Segundo Seligmann-Silva (2005), essa política tem sido muito mais partidária do que cultural. “[...] aqui ocorre uma convergência entre política e literatura. Dentro de uma perspectiva de luta de classes assume-se esse gênero como o mais apto para representar os esforços revolucionários dos oprimidos.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 87) No início dos anos 1970, o governo Allende e a ditadura chilena, a partir de 1973, também foram responsáveis pelo estabelecimento do gênero testimónio na América Latina. O resgate da memória em sociedades pós-ditatoriais vem carregado de outro tipo de questões que apontam para problemas de violação dos direitos humanos, justiça e até mesmo de responsabilidade coletiva, que colocam na lista de discussões a tríade: memória, esquecimento e trauma. 34 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman Em uma entrevista a Oscar Ranzazine, Dorfman afirmou que o texto foi escrito levando em consideração certa elaboração literária, com a pretensão de comover a opinião pública sobre a situação chilena. Contudo, após a leitura do livro, percebe-se que, além de testemunhar sobre a situação do Chile na ditadura de Pinochet, Ariel Dorfmam também pretendeu, por meio da história da sua vida, que ele recupera desde a infância e do passado de seus pais, discutir algumas questões pessoais, tais como a busca por uma identidade própria que ele achava nunca ter tido.7 Todos nós desejamos descobrir como começamos, forçar a memória. Essa obsessão: voltar o máximo possível às suas origens, tentar estar ali para observar a si mesmo ser observado na existência. Mas a espécie decretou que estaríamos presentes sem jamais sermos capazes de recordar tudo [...]. E assim, durante muitos e muitos anos necessários para escrever este texto, refleti sobre os eventos de minha vida e de meu país, interroguei-o como um prisioneiro morto, deixei-o girar e girar em minha mente como um talismã ou uma maldição. Mas a pedra do meu passado tornava-se mais lisa e mais enigmática à medida que eu a manipulava. E quanto mais eu tentava acessar aquelas imagens, mais eu me afastava do que havia testemunhado naquele dia. (DORFMAN, 1998, p. 62) A obra de Dorfman traz em si uma reflexão que vimos esboçando ao longo deste ensaio: a impossibilidade de a linguagem representar o trauma, o horror e a necessidade imperiosa de contá-lo mesmo assim. Ao convidar o leitor para partilhar suas memórias, o autor estabelece um jogo de linguagem entre o negar as recordações para narrá-las em seguida, e termina por fazer um resumo das histórias que povoam sua memória e sua narração, prestes a começar. Conheci uma mulher que fora torturada no Chile. O que a salvara nos piores momentos, ela me contou, foi a repetição incessante de algumas frases de Neruda ou Machado – estranho, ela nunca mais conseguiu se lembrar do autor nem das frases – lembra-se que eram versos que continham água, árvores, ela achava, algo sobre o vento. O que importa é que ela se concentrava nele com fúria, de modo a deixar bem claro para si mesma como era diferente dos homens que a estavam fazendo sofrer. 7 Entrevista do autor a Oscar Ranzazine. Disponível em: http://www.gacemail.com.ar/Detalle.asp?NotaID=10101, acesso em: 03/03/2010 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 35 Renata Feital Ela descobriu que, dentro de si mesma, além daquelas mãos e do que estavam lhe fazendo, havia um espaço todo seu, que poderia permanecer intacto, uma pequena zona no mundo que podia manter longe deles. Um poeta morto estava lhe fornecendo esse escudo, com esse anjo da guarda da língua. Enquanto repetia em silêncio essas palavras para si mesma, esperava ser exterminada para sempre. [...] Vi muitas pessoas como ela, anônimas, pessoas desconhecidas, sofrendo outras tentativas de serem eliminadas, sugadas para o buraco negro da história. Talvez não sobrevivam, como ela sobreviveu, para contar a história. Sabemos que a mulher, mesmo que não haja ninguém lá, espera ser ouvida. Não somente por si mesma. E o que ela estava dizendo era simples. Ela não estava disposta, mesmo que ninguém estivesse escutando, mesmo que o seu destino fosse desaparecer da face da Terra, a ser tratada como objeto. Não estava disposta a deixar outros narrarem a sua vida e a sua morte. Enquanto houver uma pessoa como ela neste mundo, estarei defendendo o seu direito de lutar e a nossa obrigação de lembrar. O que mais posso dizer? (DORFMAN, 1998, p. 338-339) Há uma tendência a negar o trauma, o conflito, o sofrimento. Isso encontra respaldo em vários fatores que acontecem nas sociedades. No caso da América Latina, os ditadores e autores coletivos de crimes contra a humanidade vivem para provocar o esquecimento, além, é claro, de, num primeiro momento, aqueles que sobreviveram e foram vítimas desejarem se “esquecer” do seu passado traumático. Há, ainda, outra resistência ao real que seria a marca da nossa cultura atual. Vive-se, hoje, marcado pela presença traumatizante da violência nas imagens que chegam via televisão e outros meios de comunicação. É nesse sentido que podemos entender a obra híbrida de Ariel Dorfman. Em parte, a memória de sua vida marcada por exílios e mobilidades, como também reflexões pela tentativa de construção do socialismo no Chile, o fracasso da revolução, o golpe de estado, sua ativa participação como intelectual que abraçou a causa, o governo da Junta Militar, finalmente em relação a Pinochet e à perseguição a todos aqueles que acreditaram que poderiam vencer o imperialismo. Em nome de tudo isso, ele foi testemunha e, entre obras de ficção e não ficção, contou a experiência de muitos que ainda não puderam relatar seus traumas vividos. Daí, ele afirmar em vários momentos ter encontrado na literatura o refúgio e o lar que nunca teve. 36 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman Referências • BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: ______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. 1. ed. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 103-184. • ______. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. 7. ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196. • BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. • D’AMARAL, Marcio Tavares. Sobre tempo: considerações intempestivas. In: DOCTORS, Marcio et. al (Orgs.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora: 2003, p. 15-32. • DORFMAN, Ariel. Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. Trad. Ana Luíza Borges. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. • FOSTER, Hal. O retorno do real. Concinnitas. Ano 6, vol. 1, Rio de Janeiro/UERJ, n. 8, jul. 2005. • HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. Trad. Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Edições Vértice, 1990. • HUYSSEN, Andreas. Passados, presentes: mídia, política, amnésia. In: ______. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 9-40. • JOZEF, Bella. História da literatura hispano-americana. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, Francisco Alves, 2005. • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à internet. Jovita Maria Gerheim (Org.). Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. • LEVI, Primo. É isto um homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. • RANZAZINE, Oscar. El largo exílio de Ariel Dorfman: una biografía cinematográfica: Mi refugio fue la literatura. Entrevista a Ariel Dorfman. [s.d]. Disponível em: <http://www.gacemail.com.ar/Detalhe.asp?NOtaID=10101>. Acesso em: 13 dez. 2009. Não paginado. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 37 Renata Feital • REIS, Lívia. Testemunho como construção da memória. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e Direitos Humanos. Niterói, n. 33, p. 77-86, [s.d.]. Disponível em: <http://www.uff.br/cadernosletrasuff/33/artigos.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2009. Não paginado. • SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 2005. • ______. Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica. Vol. 20, Rio de Janeiro, n. 1, p. 65-82, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pc/v20n1/05.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2009. Não paginado. 38 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 O TEMA POÉTICO DA LUZ EM RIMBAUD: DIÁLOGOS COM A POESIA FINISSECULAR Antonio Francisco de Andrade Júnior Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutorando em Literatura Comparada pela UFF contato: [email protected] Resumo: Este trabalho desenvolve uma análise do poema “Marinha”, que está no livro Iluminações, do poeta finissecular francês Arthur Rimbaud, mostrando que, nele, o tema poético da luz pode ser compreendido como um signo de questionamento do paradigma moderno que vincula a noção de luz à de racionalidade. Em seguida, o ensaio tenta apresentar duas possibilidades de diálogo entre essa questão, presente já na poética clássica de Rimbaud, e o modo como ela reaparece na obra de Mário de Andrade, ícone do nosso modernismo, e de Armando Freitas Filho, um dos poetas brasileiros mais importantes no cenário contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: poesia; modernidade; visualidade. Abstract: This paper develops an analysis of the poem “Marine”, which is in the book Illuminations, by the French poet Arthur Rimbaud (1754-1791). It highlights the idea that ‘light’, as a poetic theme, can be understood as a questioning sign of the modern paradigm that binds the concept of light to the concept of rationality. Next, the essay tries to present two possibilities of dialogue between that question, which is already present in Rimbaud’s classical poetry, and the way it is reissued in Mário de Andrade’s oeuvre, an icon of our modernism, and Armando Freitas Filho, one of the most important Brazilian contemporary poets. KEYWORDS: poetry; modernity; visuality. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 39 Antonio Andrade Resumen: Este trabajo desarrolla un análisis del poema “Marina”, que está en el libro Iluminaciones, del poeta finisecular francés Arthur Rimbaud, mostrando que se puede comprender ahí el tema poético de la luz como un signo de cuestionamiento del paradigma moderno que relaciona la noción de luz a la de racionalidad. Luego el ensayo trata de presentar dos posibilidades de diálogo entre tal cuestión, presente ya en la poética clásica de Rimbaud, y el modo como ésta reaparece en la obra de Mário de Andrade, ícono do nuestro modernismo, y de Armando Freitas Filho, uno de los poetas brasileños más importantes en el escenario contemporáneo. PALABRAS 40 CLAVE : poesia; modernidad; visualidad. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular [...] tanto a tendência característica dos simbolistas de sugerir mais do que dizer claramente, como seu culto do ponto de vista pessoal e único, são sintomáticos do grau em que estavam desligados dos semelhantes, confinados às suas imaginações privativas. Outro herói e pioneiro do Simbolismo, contudo, iria lutar contra o mundo e sobreviver – embora sobrevivesse como outra coisa que não um poeta; e sua carreira revela toda a situação, num dramático jorro de luz. (WILSON, 1959 - O castelo de Axel) AS ILUMINAÇÕES Um dos livros que marcam de maneira mais contundente a modernidade é Iluminações, de Arthur Rimbaud. Dentre os poemas que o constituem, estão alguns que representam, de maneira paradigmática, a tempestade de desafogo e de fantasia que, segundo Hugo Friedrich, desarticulará o formalismo ainda fortemente presente na poesia do final do século XIX. Tal processo indicia uma mudança de perspectiva com relação aos modos de representação lírica da realidade, evidenciando que a linguagem não é uma simples repetição mimética do real visível. Para isso, uma das técnicas mais utilizadas por Rimbaud, nesta obra, é a da fusão de imagens – num processo, ao mesmo tempo, metafórico e metonímico. O poema “Marinha” é um bom exemplo dela. Eis a sua tradução do original francês: MARINHA Carros de prata e cobre – Proas de aço e prata – Golpeiam a espuma, – Erguem touceiras de sarças. As correntes da charneca, E os sulcos imensos do refluxo, Correm circularmente para o leste, Para os pilares da floresta, Para os fustes do dique, Cujo ângulo é batido por turbilhões de luz.1 1 “Marine”: “Les chars d’argent et de cuivre – / Les proues d’acier et d’argent – / Battent l’écume, – / Soulèvent les souches des ronces. / Les courants de la lande, / Et les ornières immenses du reflux, / Filent circulairement vers l’est, / Vers les piliers de la forêt, – / Vers les fûts de la jetée, / Dont l’angle est heurté par des tourbillons de lumière.” (Grifo nosso). In: Friedrich, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2. ed. Tradução de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1991, p. 85. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 41 Antonio Andrade Nele, o poeta provoca o estranhamento entre o título e a imagem inicial, pois, em lugar de barcos, o que aparece primeiro são os “Carros de prata e cobre”, que, no entanto, também vão sendo novamente confundidos com a metonímia de navios, “proas de aço e prata”, tornando, assim, o texto a união metafórica e tensiva de imagens opostas: barcos são carros. Essa fusão de imagens terrestres e marinhas do carro e do navio – pois ambos “Golpeiam a espuma” – gera, então, o obscurecimento da realidade visual e do sentido propostos pelo texto. Dessa maneira, sem abandonar os elementos naturais, a obra de Rimbaud estabelece, segundo Antonio Candido, a tensão “entre mostrar e esconder o mundo visível.” (CANDIDO, 1993, p. 114). Esse mecanismo rimbaudiano de construção da paisagem afasta-se, assim, da visão contemplativa e bucólica da natureza, tanto da floresta quanto do mar. Neste sentido, a configuração de um olhar em movimento tem aí importante papel na renovação da experiência lírica de ver a realidade. Não é à toa que o mote de construção do poema é a superposição de imagens concentradas no próprio movimento de veículos, de diferentes meios, impelidos em direção à luz. Esta, ao invés de símbolo de completude e estaticidade, aparece associada à imagem do turbilhão, correspondendo à tentativa de fixação do mais intenso movimento em uma única palavra. Em “Alquimia do verbo”, de Uma temporada no inferno, Rimbaud afirma: “Eu escrevia silêncios, [...]. Fixava vertigens”, confirmando seu método de fixação do movimento vertiginoso como um instante de iluminação. A relação entre a fixação plástica do movimento descontrolado e a configuração da monstruosidade bela das iluminações pode ser percebida, também, nos versos do poema “Movimento”: “Vê-se, rolando como um dique além do caminho hidráulico-motriz, / Monstruoso, iluminando-se sem fim”. Além disso, essa relação entre luz e movimento convoca a imbricação dos conceitos de ver e tocar, desestabilizando, assim, a acepção imaterial e, por isso, afastada do humano, que a ideia de luz possui na cultura ocidental. Em “Marinha”, por exemplo, os fluxos e refluxos do movimento interrompidos pelas árvores e represados pelo dique são capazes de transformar a plasticidade imaterial da luz na agressividade tátil do turbilhão. Paradoxalmente, portanto, a metáfora da luz em movimento turbilhonado não só indicaria um efeito contrário de obscuridade visual e, consequentemente, interpretativa, mas também de clímax convulsionado, em lugar de constituir qualquer espécie de conclusão reveladora e tranquila, ou de transcendência metafísica. Por isso mesmo, as Iluminações podem ser caracterizadas como o signo de uma ruptura na relação de identificação entre autor e leitor no século XIX. E, por conseguinte, um dos pontos altos de uma estética da desreferencialidade da lírica 42 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular moderna, que começa a se esboçar a partir de Baudelaire. Está colocado aí, portanto, um grande paradoxo: a linguagem moderna é marcada por “turbilhões de luz”, presentes não só como imagem, mas também como signo de complexificação da própria modernidade. Esta, que é caracterizada por Marshall Berman como um “turbilhão de permanente desintegração e mudanças, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15), deve ser compreendida como um movimento dialético de desestabilização de certezas – não à toa Berman recupera e valoriza a frase de Marx “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Sendo assim, a ideia de turbilhão é fundamental para se compreender como a modernidade questiona a ideia imobilizante da luz, revelando assim suas próprias contradições. Mesmo sendo a priori definida como período de hegemonia do pensamento iluminista, a modernidade possui vertentes de contestação à ordem racionalista. Estas vertentes podem ser identificadas, por exemplo, na poesia finissecular, que ao mesmo tempo que valoriza a imersão do sujeito nas sombras da atmosfera onírica do sonho e do devaneio, por vezes até satânico, continua a lançar mão da ideia de Iluminação, tradicionalmente vinculada às de Clareza e Razão, mas fazendo um novo aproveitamento dela. Na modernidade, a luz pode se tornar índice de multiplicidade e ambiguidade, bem distante do ideal unívoco de Beleza associado por Platão às ideias de Luz e Verdade, das quais a mimese artística estaria duas vezes afastada, segundo o filósofo.2 Essa mudança pode ser percebida, por exemplo, no impressionismo, cuja técnica de pintar a mesma paisagem em momentos distintos do dia desvela as diversidades de impressões que a incidência da luz sobre os objetos pode criar no sujeito. Ou seja, o século XIX, tanto na pintura quanto na poesia, desconstrói a noção de luz enquanto fonte de visão e verdade unívocas. O poema de Rimbaud, então, paradigmático desse processo de questionamento da modernidade, nos permite rever as noções de luminosidade e visibilidade, já que, nele, a luz é menos o que nos faz enxergar o real visível – que o esforço do artista deveria tentar imitar, segundo a concepção mimética – e mais o que, na verdade, tornaria obscura e oblíqua a interpretação do texto. Ela é, pois, elemento de desintegração da linguagem. Não à toa, esse poema foi, na França, o fundador da estética do verso livre – marco da desarticulação do formalismo oitocentista. Toda a sua forma de composição é signo de ambiguidade e de polimorfia. Pois, nele, misturam-se categorias opostas, unindo-se luminoso e obscuro, liberdade métrica e 2 Atentamos, contudo, para o fato de que essa estagnação totalizante, defendida pela visão racionalista ortodoxa, que separa os paradigmas de sujeito “vidente” e visível, de claro/escuro e de (in-)visibilidade em Platão, deveria ser melhor discutida desde o famoso “mito da caverna”, de A República, já que ali estão imbricadas as noções de luz (fogo) e sombra na configuração mítica do espaço do vísivel (mundo das aparências). Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 43 Antonio Andrade grotesco, numa linguagem que, em vez de comunicar com “clareza”, agora sem os entraves da metrificação, busca o estranhamento e a desreferencialidade, como se o excesso de luminosidade fora o responsável por borrar todos os contornos do visível, da mesma forma que a luz muita intensa também é capaz de cegar. Essa tensão entre o visível e o invisível seria, na verdade, fundamental para se compreender o próprio ato de ver, já que toda visão é formada a partir do ponto de vista de um sujeito, pressupondo que aquilo que é visto esconde o que não o é, e que pode ser observado de uma outra perspectiva. Essa é a lição da fenomenologia de Merleau-Ponty, para a qual o conhecimento do mundo só pode se dar através da relação entre sujeito e objeto – destronados da sua condição de “preexistentes”.3 Essa dicotomia entre objetividade e subjetividade pode ser atestada através da oposição entre a poesia preocupada com a investigação do real visível e a que se dedica à perscrutação da intimidade. E sabe-se que tal antinomia – realismo e subjetivismo – se constituiu em critério crítico de divisão das épocas literárias. No entanto, como aprendemos com Merleau-Ponty, tal separação totalizante tenta, na verdade, esconder a tensão que integra toda forma de visão. Sendo assim, o olhar da lírica sobre a própria subjetividade só pode torná-la ponto de confluência entre o visível e o invisível, o mundo real e o subjetivo. Por isso mesmo, em Rimbaud e na poesia moderna em geral – marcada pela impossibilidade de tanto um quanto outro funcionarem como uma válvula controladora ou fonte apriorística para a poesia –, encontramos, ao mesmo tempo, o movimento de fragmentação da subjetividade e, por conseguinte, de configuração de uma perspectiva desarticuladora do real. A corrosão da linguagem e da subjetividade poética que caracteriza o turbilhão da modernidade pode ser percebida através da reversibilidade do ver e do ser visto na poesia e nas artes em geral.4 O sujeito, agora, se mostra explicitamente fragmentado, habitando um lugar de incertezas, já que ganha plena consciência de que não domina o foco da visão sobre o real – de que não pode domar a infinitude das coisas... Por isso, a experiência do sujeito moderno passa pelo desconforto de se sentir também objeto da coisa vista. Em Rimbaud, mais uma vez, a luz exerce um papel decisivo nessa reversibilidade das noções de sujeito e objeto, de ver e de ser visto. Como se já não 3 Através do tempo, o sentido da visão foi tomado como o valor de verdade absoluta, o que explicaria o lugar central do ver para quase todos os pensadores que teorizaram sobre o conhecimento humano. Marilena Chauí, no ensaio “Janela da alma, espelho do mundo”, mostra como, na filosofia, a ideia de ver se vincula à de conhecer, o que caracteriza a fé perceptiva como tributária da fé racionalista, tendência que imobiliza o olhar como um ponto de distanciamento entre o sujeito e o objeto, desconsiderando o seu duplo valor – de possuir um papel, ao mesmo tempo, passivo e ativo na constituição das imagens. E tudo isso representa uma desconsideração ainda mais importante, que é a da lacuna entre sujeito e objeto ou, de outro modo, do abismamento do Ser no mundo, e vice-versa. 4 O dinamismo do ver e do ser visto foi compreendido por Lacan como uma forma de a arte representar a pulsão escópica que caracteriza, segundo ele, a própria formação do indivíduo. 44 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular bastasse a sua clássica afirmação, em Carta do vidente, “Je est un autre!” (“Eu é um outro!”), Rimbaud também escreve “Nácar vê”, que significaria tudo o que brilha vê. Segundo Gaston Bachelard (2000), esse seria um dos maiores teoremas da imaginação do mundo da luz, por conter em si a presença do olhar alheio. Com outras palavras, isso poderia indicar que a luz de uma lâmpada, por exemplo, vela e também vigia. Em outros poetas, também se desvela esse movimento de transformação do que olha em o que é olhado. No poema “Emparedado”, de Christiane Barucoa, poeta também citada por Bachelard, lemos, por exemplo: “Uma lâmpada acesa atrás da janela / Vela no coração secreto da noite”. A luz aí é, portanto, um indício do olhar do outro que habita a casa. No poema “Vigílias”, Rimbaud consegue, ainda, fazer uma relação entre a lâmpada e o mar, como se fundisse a imagem do barco e do seu interior à vastidão do oceano. “As lâmpadas [...] da vigília”, afirma, “fazem o barulho das vagas, à noite, ao longo do casco do navio e em torno da terceira classe”. COM ÓCULOS RIMBAUD Reunindo tantas questões pertinentes ao debate sobre a modernidade, a obra rimbaudiana repercutiu na poesia brasileira de tal maneira que Mário de Andrade chega a fazer a seguinte afirmação em A escrava que não é Isaura: “Não imitamos Rimbaud. Nós desenvolvemos Rimbaud. ESTUDAMOS A LIÇÃO RIMBAUD” [grifos do autor]. Com essa afirmação, Mário inaugura o nosso modernismo com uma referência explícita ao poeta francês, deixando, contudo, patente a característica antropofágica desse movimento preocupado em reformular, numa nova e instigante perspectiva, a herança – influência inevitável – da tradição literária europeia. Esse diálogo pode ser confirmado através da poesia andradina, na qual o tema poético da luz também possui um papel capital como metáfora que subverte as concepções tradicionais de claro e obscuro, problematizando de uma só vez a composição da imagem e a configuração da subjetividade. Isto pode ser percebido nos poemas “Paisagem nº 3” (“De repente / um raio de sol arisco / risca o chuvisco ao meio.”), “Seis horas lá em São Bento...” (“Estilhaço me fere nos olhos o sangue da aurora”), “Noturno de Belo Horizonte” (“Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos, / Calma do noturno de Belo Horizonte.../ [...] / Enormes coágulos de sombra. / [...] / Alegria da noite de Belo Horizonte!”), “Poemas da negra” (“É a escureza suave, / Que vem de você, / Que se dissolve em mim. / [...] / E nós partimos adorados / nos turbilhões da estrela Vênus!...”), “Louvação da tarde” (“Tarde incomensurável, tarde vasta, / Filha de Sol já velho, filha doente”), “Manhã” (“As sombras se agarravam no folhedo das árvores / Talqualmente preguiças Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 45 Antonio Andrade pesadas. / O sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.”) e “A meditação do Tietê” (“De repente / O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, / É um susto. E num momento o rio / Esplende em luzes inumeráveis”). Desenvolver, aí, significa, então, modificar. Mário, por isso, traduz toda a problemática da modernidade em belas imagens que remetem à paisagem brasileira. Nelas se estabelece a tensão entre as figuras de alegria, calma, suavidade e preguiça e as de susto, turbilhão, incomensurabilidade e estilhaçamento. Nesse sentido, podemos entender, portanto, que a obra de Rimbaud, poet’s poet para várias gerações, acabara sendo, ao mesmo tempo, obstáculo e estímulo para a produção poética durante todo século XX e até hoje, ora constituindo-se como um diálogo sub-reptício e silencioso, ora como um aberto exercício de intertextualidade. E um dos exemplos mais significativos desse exercício na poesia brasileira contemporânea é o do poema “Com óculos Rimbaud”, do livro De cor, de Armando Freitas Filho: COM ÓCULOS RIMBAUD Escrevo sob a luz entrecortada das bombas que explodem nas águas da televisão. Se não, estaria tudo escuro aqui dentro. E o branco desta folha, aí fora neste barco livre não seria alvo dessas iluminações sobressaltadas. Descrevo um clima com 2 sentidos: uma previsão do tempo de dentro uma visão do tempo de fora enquanto entre um e outro numa estação de ferro se comete, no tempo instável com mão-caranguejo e muito tato um crime que é um anticlímax perfeito. 46 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a poesia finissecular Nesse poema, fazendo um trocadilho entre as palavras Rimbaud e Ray-Ban, Armando interpreta a lição do mestre francês como uns óculos escuros que, ao mesmo tempo, protegem a visão da claridade solar e impõem-lhe uma nova percepção do mundo visível. Nesse sentido, o desenvolvimento que ele dá a essa lição é o de tornar-lhe uma nova forma de ver que desestabiliza a separação entre o dentro e o fora, entre o real e o poético. Nele, “a luz entrecortada” é índice do estilhaçamento da subjetividade e da fragmentação do visível. Essa luz, sob a qual o eu lírico escreve, efeito “das bombas que explodem / nas águas da televisão”, é o elemento que constrói a imagem, confundindo o espaço real ao espaço virtual. “E o branco da folha”, lugar da criação poética, é, ao mesmo tempo, atingido por dois focos de luz – um do mundo e outro da própria poesia. Dessa maneira, afirmativamente tributário do legado rimbaudiano, Armando metaforiza a produção poética contemporânea como um espaço entre dois lugares de instabilidade. Um é o da espetacularização e o da proliferação das imagens midiáticas. E o outro, o da tradição moderna da poesia finissecular, que continua, um século depois, sendo fonte instigante de releituras. Referências • ANDRADE, Mario de. Poesias completas. São Paulo: Martins, 1955. • ______. A escrava que não é Isaura. In: Obra imatura. São Paulo: Martins, 1960. • BACHELARD, Gaston. A casa. Do porão ao sótão. 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São Paulo: Cultrix, 1959. 48 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 HERÓI CLARICEANO Angélica Castilho Faculdade CCAA Colégio Estadual Visconde de Cairu Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ contato: [email protected] Resumo: Este trabalho tem por objetivo mostrar que a ruptura com a estabilidade sugerida pelo cotidiano e o desmanchar de verdades construídas ou mesmo adquiridas durante a trajetória das personagens são elementos comuns nas obras de Clarice Lispector e apontam a tragicidade como uma consequência da vida das personagens. O percurso das personagens está vinculado às escolhas feitas por elas, anunciando a crise decorrente da liberdade parcial humana. Portanto, o herói moderno surge limitado, inquieto, contraditório, solitário e sem destino. A presença ou a ausência de Deus não ameniza a situação de desamparo. Não há certezas nem estados permanentes. A felicidade é “clandestina”. PALAVRAS-CHAVE: herói; transgressão; existência; Modernidade. Abstract: The aim of this essay is to show that, in Clarice Lispector’s books, when it comes to her characters’ lives, both of these elements are common: the rupture with stability, as it it suggested by daily life, and the disarrangement of the truth, be it constructed or even acquired. These elements point towards tragedy as a consequence of the characters’ lives. Their path is tied to the choices they make, heralding the subsequent crisis, which arise from the partial human freedom. Therefore, the modern hero appears limited: he is uneasy, contradictory, lonely and has no destiny. God’s presence or absence doesn’t soothe the feeling of abandonment. There are neither certainties, nor permanent states. Happiness is “clandestine”. KEYWORDS: hero; transgression; existence; modern period. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 49 Angélica Castilho Resumen: Este trabajo tiene como objetivo presentar que la ruptura con la estabilidad sugerida por el día a día y el deshacer de las verdades construidas o incluso aquellas adquiridas durante la trayectoria de los personajes son elementos comunes en las obras de Clarice Lispector e indican que lo trágico es consecuencia de la vida de los personajes. El trayecto de dichos personajes está vinculado a elecciones realizadas por ellos mismos, anunciando la crisis resultante de la libertad parcial humana. Por lo tanto, el héroe moderno surge limitado, inquieto, contradictorio, solitario y sin destino. La presencia o la ausencia de Dios no amenizan la situación de desamparo. No existe seguridad ni estado permanente. La felicidad es “clandestina”. PALABRAS 50 CLAVE : héroe; transgresión; existencia; modernidad. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Herói clariceano O livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem (1943), apresenta um tema mantido na obra da autora: a travessia do ser humano pela vida e sua condição heroica. Todavia, a autora não utiliza a figura do herói trágico clássico que percorre obstáculos até uma morte inevitável. O trágico não é, necessariamente, o que ocorre ao herói, mas sim o que este desencadeia em sua vida; portanto, as personagens clariceanas são agentes e não pacientes. São muitas as indagações feitas e são muitos os limites ultrapassados. Por isso, as personagens caracterizam-se como transgressoras. No romance citado acima, Joana, desde criança, manifesta o desejo de “ser herói” ao crescer (LISPECTOR, 1995, p. 34). Tanto esta quanto as demais personagens estão em construção e, por isso, são expostas internamente: ideias, sentimentos, sensações. O ponto de partida para a indefinição do eu frente ao mundo, aos outros e a ele mesmo está nesse ar de rascunho que as personagens clariceanas detêm. O incômodo de ser um eu para os outros, sem saber ainda quem é, marca o início das buscas e a necessidade de romper com a ordenação e a repetição apresentadas no cotidiano. Tendo em Joana uma personagem na qual se concentram, simultaneamente, revolta e necessidade de ir além, pode-se afirmar que ela desenvolve aspectos fundamentais para tornar-se um herói clássico: ultrapassagem de limites, exercícios de habilidades, coragem de assumir suas vontades e executá-las. Todavia, apresenta contradições e inquietações típicas do homem moderno. O que angustia a personagem clariceana é o ruir de concepções, é a paixão não só como sofrimento, mas como arrebatamento causado por um desmoronamento de mundo, é a certeza crescente de sua responsabilidade por ser quem é. Joana aproxima-se do conceito de herói trágico quando acredita ser capaz de controlar sua vida, quando não compreende o seu destino e acrescenta à sua vida um dado novo: a indagação. Ela não ignora o que acontece. Quer saber o porquê do estranhamento causado por estar no mundo. Diferente do herói trágico clássico, Joana não ignora os fatos que a rodeiam e não é surpreendida como Édipo. O trágico não surge de uma fatalidade desconhecida e exterior à personagem, mas justamente da sua ação no mundo. Na Modernidade, o mundo é a organização das coisas feita por um ser, é seu cosmos e, como este, relaciona-se com os elementos que o compõem. Se o mundo construído, se todos os objetivos e verdades desse espaço são postos em xeque, existe um desmoronamento da realidade do “eu” e ele é arrebatado pelo sentimento trágico. (DOMENACH, 1968) Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 51 Angélica Castilho Por Joana perceber o mundo, o outro e a si mesma de forma singular, ela passa por situações de rompimento entre seus ideais e a realidade. Tais aspectos diferenciam-na das outras personagens e conferem tragicidade à sua vida. Trata-se de uma personagem inconformada com a finitude, com o espaço que ocupa, e ansiosa por mudança. Ela precisa ultrapassar a normalidade que a circunda, a fim de sentir, por um momento, a felicidade que intui, mas que não vivencia. A inquietude da personagem é a força motriz de sua vida, mas, também, fonte de insatisfação. Eis a situação paradoxal vivida pelas personagens: [...] Quem era ela? A víbora. Sim, sim, para onde fugir? Não se sentia fraca, mas, pelo contrário, possuída de um ardor pouco comum, misturado a certa alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de repente e surpreendeu-se. [...]? (LISPECTOR, 1996, p. 61-62) A fissura aumenta a cada passo, a cada reflexão, a cada sensação. Tal aspecto lança as personagens em um estado de abalo muito significativo e marcante para a formação de seus “eus”, destacando-as como solitárias e senhoras de uma intuição lúcida. A transgressão necessária acarreta um estado de solidão. Esse exercício confere a elas a certeza de que todo e qualquer momento de felicidade será furtivo. No contexto do conto “Felicidade Clandestina”, de livro homônimo (1971), é evidenciado que mesmo a felicidade passa a ser uma transgressão. Ser feliz é proibido, algo conseguido após grande sacrifício, revelando o caráter paradoxal desse sentimento no universo clariceano. O homem moderno escolhe e toda escolha exclui as demais possibilidades. Como a felicidade advém de escolhas, nenhuma felicidade é inocente, pois implica em decisões e não em atos involuntários. As personagens são reflexos da atuante condição humana, e nisto está uma das origens do trágico na Modernidade. Não é apenas uma visão sobre um acontecimento, é o estar no mundo como participante. (DOMENACH, 1968) Os textos de Clarice Lispector expõem personagens comuns. É precisamente a condição de normalidade humana que interessa. Não se encontra a dimensão de superioridade encontrada nos modelos clássicos de herói. São “eus” soltos no dia a dia, sem interferência do divino. O que Joana de Perto do coração selvagem apresenta de diferente é seu modo de ver. Ela não é uma semideusa nem possui superpoderes, por isso, a personagem cresce e continua deslocada, não se transforma no herói que planejou ser. 52 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Herói clariceano Pode-se interpretar que a origem da revolta e a ânsia por ir além, em busca de seus objetivos, estejam nas capacidades de escolha e de decisão. Ao término da narrativa, Joana é lançada para um futuro além do texto, ao qual o leitor não tem acesso e só pode imaginar: tudo e nada pode acontecer, e qualquer suposição não passa de vã especulação. O final em aberto está em conformidade com a falta de certezas presente na Modernidade, situando ainda mais a personagem nesse contexto e dando a dimensão de sua humanidade. Em “Onde Estivestes de Noite”, por exemplo, a dificuldade de ser herói deve-se a isso “– Que é que eu faço para ser herói? Porque nos templos só entram heróis.” (LISPECTOR, 1994, p. 59) Os questionamentos de valores e de crenças, a fragilidade e o deslocamento humano para delinear uma identidade, mantê-la e definir o espaço no mundo sem cobranças incompatíveis com os objetivos de vida das personagens e, sobretudo, sem consequências dolorosas, são os pontos nevrálgicos das narrativas, como se nota no fragmento da crônica “Os Heróis”, de A descoberta do mundo (1984): Mesmo em Camus – esse amor pelo heroísmo. Então não há outro modo? Não, mesmo compreender já é heroísmo. Então um homem não pode simplesmente abrir uma porta e olhar? (LISPECTOR, 1984, p. 252) Outro aspecto desse heroísmo está em A maçã no escuro (1961), romance dividido em três partes, com a segunda intitulada de “Nascimento do herói”. Trata-se de um herói peculiar que, para reestruturar-se, foge, está à margem dos códigos de conduta e percebe o cotidiano como elemento fundador de uma nova visão do mundo. Martim anseia, em sua fuga, encontrar a si mesmo. Nesse rito iniciático, a viagem é símbolo de uma caminhada de autodescoberta, a qual escapa à lógica e ao bom senso. A proposta é retornar a um estado primordial, em que seja possível recomeçar: Pensou que com esse crime executara o seu primeiro ato de homem. Sim. Corajosamente fizera o que todo homem tinha que fazer uma vez na sua vida: destruí-la. (LISPECTOR, 1995, p. 124) [...] Martim foi perdendo, sem sentir, as derradeiras amarras, até que já não era monstruoso uma pessoa se dar função de pessoa e de “reconstruir”. O que lhe pareceu facílimo. Até hoje, tudo o que vira fora para não ver, tudo o que fizera fora para não fazer, tudo o que sentira fora para não sentir. Hoje, que se rebentassem seus olhos, mas eles veriam. Ele que nunca tinha encarnado nada de frente. Poucas pessoas teriam tido oportunidade de reconstruir em seus próprios termos a existência. [...]. (LISPECTOR, 1995, p. 134-135) Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 53 Angélica Castilho Um dos aspectos heroicos consiste na persistência em uma causa, mesmo que não se obtenha êxito ou premiação. No caso das personagens clariceanas, insiste-se na revista de verdades e, consequentemente, na descoberta de suas naturezas: Com algum espanto, Martim compreendeu que não havia procurado a liberdade. Procurara se libertar, sim, mas apenas para ir sem empecilhos de encontro ao fatal. Quisera estar desimpedido – e na verdade se desimpedira com um crime – não para inventar um destino! mas para copiar alguma coisa importante, que era fatal no sentido em que era alguma coisa que já existia. [...]. (LISPECTOR, 1995, p. 310-311) O pasmo trágico é inevitável após a tomada de consciência de si e do mundo, como é constatado nas palavras de Rodrigo S.M., narrador de A hora da estrela (1977): “[...] A vida é um soco no estômago.” (LISPECTOR, 1996, p. 102). Viver constitui o grande desafio para as personagens. A visão crítica do narrador expulsa-o da paz representada pelo falso conforto e pelo medo de mudança expressos na resignação. A vida é o trilhar pelo sacrifício,1 como enfatiza G.H.: “[...] A condição humana é a paixão de Cristo.” (LISPECTOR, 1995, p. 179) Na crônica “Dies Irae”, “o dia da cólera” é uma expressão que faz alusão ao Juízo Final e que, no texto, representa o momento em que o narrador faz seus julgamentos, dá vazão a todo sentimento de revolta e tristeza que o sacrifício e a autodescoberta trazem: Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão [sic] mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. [...] E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. [...] [...] Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? [...] Queria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração. (LISPECTOR, 1994, p. 31) 1 O conceito de sacrifício aqui abordado é apresentado por Benedito Nunes em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector: [...] o ascetismo é um método que visa fundamentalmente ao sacrifício do eu, extirpando o senso de propriedade da criatura humana em relação a si mesma. A ascese só se completa quando, pela ação conjugada de suas técnicas de redução da sensibilidade, da inteligência e da vontade – que levam ao despojamento interior e aos diversos graus de vida contemplativa –, dá-se a superação das limitações egoístas que separam o indivíduo da totalidade do real. Nesse sentido, a nudez e o esvaziamento ascéticos constituíram uma antecipação da morte. (NUNES, 1989, p. 102) 54 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Herói clariceano Mesmo em cólera, a personagem vislumbra a existência do divino; é em Um sopro de vida, porém, que a caminhada solitária do homem moderno fica evidenciada: “Deus é abstrato. Esta é a nossa tragédia.” (LISPECTOR, 1994, p. 148). Nesse aspecto da obra clariceana, encontra-se outro arrebatamento patético,2 que expõe igualmente as personagens ao desconforto e à angústia: [...] E espera-se, inutilmente, o milagre. E quem não espera o milagre ainda é pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera. (LISPECTOR, 1994, p. 31) Outro aspecto relevante na construção do universo trágico clariceano é a apropriação do grotesco como objeto literário, contrariando, assim, o pressuposto aristotélico de que a imitação paute-se na beleza como sendo ações grandiosas e corajosas (ARISTÓTELES, 1993). Clarice Lispector utiliza a feiura seriamente e torna-a trágica, como a figura de Macabéa em A hora da estrela, que “nem pobreza enfeitada” possui (LISPECTOR, 1996, p. 35). Os textos abordam momentos de transgressão da ordem interior e da exterior, mostram, ainda, que a busca pelo divino que a vida simboliza encontra-se igualmente na feiura, como em A paixão segundo G.H.: Aguenta [sic] eu te dizer que Deus não é bonito. E isto porque Ele não é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha bonito é às vezes apenas porque já está concluído. [...] Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza, e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade com a sua beleza. (LISPECTOR, 1995, p. 162) Aristóteles (384-322 a.C.) definiu a concepção de catarse como depuração, isto é, anulação das comoções e identificação com a ordem (ARISTÓTELES, 1993). Na obra clariceana, tal conceito é abolido, porque os textos chamam a atenção do leitor para angústias e inquietações do “eu”, universalizando e partilhando tais experiências e sensações, causando um reconhecimento de sentimentos, e não um afastamento, pois as personagens vivenciam o cotidiano e não situações fantásticas e relacionadas a uma condição de excelência própria aos textos analisados por Aristóteles. 2 O estado patético característico de algumas personagens é oriundo do pathos que, etimologicamente, significa “vivência”, “desgraça”, “sofrimento”, “paixão”. A Antiguidade chegava mesmo a atribuir ao arrebatamento patético uma anomalia, por tirar o homem do comedimento que a razão produz. Pathos vem a ser, na atualidade, o sentimento que surge impetuoso de um choque, de uma forte decepção. (STAIGER, 1975) Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 55 Angélica Castilho De acordo com Raymond Williams (1921-1988), na Modernidade: [...] a definição de tragédia tornou-se uma definição centrada num tipo especial de ação espiritual, mais do que em acontecimentos específicos, e uma metafísica da tragédia substitui a ênfase moral, seja crítica, seja comum. Essa nova ênfase sobre a tragédia como um tipo específico, até mesmo raro, de ação e reação marca a principal emergência de ideias trágicas modernas. (WILLIAMS, 2002, p. 54) Não é difícil reconhecer, nas palavras do teórico, a concordância com o comportamento das personagens clariceanas. Seus percursos são interiores e as narrativas, relatos ora do momento de revelação por que passam, ora das consequências da vivência trágica. O sentimento trágico ultrapassa os fatos concretos e recai sobre as percepções de mundo do homem moderno. Nesse pendular entre desamparo e abalo, algumas personagens não se revoltam e aceitam sua condição cindida de inteireza, como G.H.: Mas agora, através de meu mais difícil espanto – estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização. (LISPECTOR, 1995, p. 177) A deseroização de mim mesma está minando subterraneamente o meu edifício, cumprindo-se à minha revelia como uma vocação ignorada. Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome. [...] A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair – só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz. [...]. (LISPECTOR, 1995, p. 179) A angústia é um sentimento inevitável. O indivíduo angustia-se, porque se encontra em situação de escolha, sem orientação ou apoio e porque está condenado a ser livre. Eis um pensamento da filosofia existencialista na obra clariceana, não com uma experiência que conduza ao nada, mas como uma via para uma plenitude fora dos padrões conhecidos até então, porque se constrói individualmente (NUNES, 1989). Esse é o grau de liberdade a que chegam as personagens clariceanas, como Ângela de Um sopro de vida (1978): [...] Entre o “sim” e o “não” só há um caminho: escolher. Ângela escolheu “sim”. Ela é tão livre que um dia será presa. “Presa por quê?” “Por excesso de liberdade”. “Mas essa liberdade é inocente?” “É”. “Até mesmo ingênua”. “Então por que a prisão”? “Porque a liberdade ofende”. (LISPECTOR, 1994, p. 72) 56 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Herói clariceano O peso da responsabilidade de ser livre em um mundo onde não apenas a relação entre os homens e os conceitos morais estão sendo debatidos, mas também, cada conceito existente. (WILLIAMS, 2002) O que G.H. chama de “minha tragédia”, de “meu destino maior” opõe-se à vida cotidiana automatizada com “enredo” de fatos exteriores. “[...] Quem sabe eu tive de algum modo pressa de viver logo tudo o que tivesse a viver para que me sobrasse tempo de... de viver sem fatos? De viver. [...]” (LISPECTOR, 1995, p. 29). A grande vivência que a personagem anuncia é a transgressão inserida no processo de transformação do próprio “eu”, na experiência interior feita de sensações e de “estado de graça” (LISPECTOR, 1993, p. 92) anunciado em Água viva (1973). A consequência da liberdade é um dos elementos centrais para a construção dos perfis das personagens clariceanas. Elas libertam-se devido ao questionamento constante do mundo e à busca por identidade. A vontade é importante, porque possui força realizadora e transformadora. A ação – mesmo ocorrendo dentro da personagem – aponta para um problema3 a ser resolvido após a tomada de consciência. De um lado, a personagem questiona as verdades do mundo, do outro, a sociedade apresenta normas, surgindo o conflito. Sendo assim, a obra está em sintonia com o cenário da segunda metade do século XX: exercício da liberdade e suas consequências. Condenados a essa liberdade parcial, desejando o autoconhecimento e o alcance do outro, as personagens encontram-se em encruzilhadas e precisam fazer opções. A paixão surge como etapas a serem ultrapassadas e está expressa claramente nos títulos A paixão segundo G.H. e A via crucis do corpo (1974), sendo parte integrante da caminhada das personagens em seu próprio interior e também como vontade, estremecimento de emoções. Por ser limitada a liberdade, tanto as personagens quanto os narradores não deixam de ser totalmente “joguetes do acaso” (HAUSER, 1995, p. 94), pois a ausência de destino, tal qual se concebe tradicionalmente, não facilita a escolha do caminho a seguir. 3 Em uma situação trágica, entende-se por problema a questão antecipada que terá que ser recuperada pelo eu. A pergunta “por que razão?” acompanha o homem até ele dar uma resposta ou mesmo não a encontrar, o que pode ser efetivamente uma resposta, como é o caso das personagens clariceanas. O problema e o pathos compõem o trágico. O pathos apresenta o querer, o abalo emocional; o problema indaga. (STAIGER, 1975) Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 57 Angélica Castilho A Moira, divindade acima dos deuses, não atua na Modernidade. Sendo assim, o que influencia a vida das personagens é a condição em que vivem e o outro. A fome, o desemprego, a desigualdade social, a miséria, a humilhação, a falta de respeito, o desamor são elementos que fazem parte do mundo em que elas estão. São situações quase coletivas. Mesmo quem está em uma posição social privilegiada não ignora a transitoriedade e a fragilidade do homem, como a personagem do conto “A Bela e a Fera” de livro homônimo (1979): Teve uma vontade inesperada assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar. Não. O mundo não sussurrava. O mundo gri-ta-va!!! pela boca desdentada desse homem. A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão bem maquilado. (LISPECTOR, 1995, p. 111) O trágico surge do confronto entre representantes de mundos distintos que possuem o mesmo percurso existencial com variações de experiências de vida: “Há coisa que nos igualam”, pensou procurando desesperadamente outro ponto de identidade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos. (LISPECTOR, 1995, p. 116) Em A hora da estrela, o narrador demonstra a inação do divino e sua relatividade e evidencia ainda mais a condição de desamparo humano: [...] A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. [...]. (LISPECTOR, 1996. p. 41) A figura irônica de uma cartomante que não prevê o destino demonstra o caráter falho e ilusório do metafísico na narrativa. Macabéa vivencia uma realidade por demais crua e desprovida de beleza. Ela possui apenas um corpo frágil e faminto, uma alma vaga para empreender sua jornada. O narrador lança o olhar para um guia invisível que é a História a conduzir o homem moderno por vias coletivas. Mesmo a História, porém, com seu “destino” unificador para o homem, não apresenta um sentido para a morte. A necessidade humana de um mundo inteligível não é saciada pela racionalidade oferecida por ela. (DOMENACH, 1968) 58 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Herói clariceano Para o filósofo Karel Kosík (1926-2003), a preocupação é o engajamento prático do indivíduo nas relações sociais a partir de um ponto de vista subjetivo. Por isso, o indivíduo não pode ver tais relações como normas objetivas, mas sim como normas relativas a ele e também com sentido para ele. Sendo assim, além de ser o que acredita ser, o sujeito é parte de sua integração com o mundo. O homem contém em si a preocupação e é, consequentemente, a própria subjetividade fora de si, ele transcende uma condição isolada e interage (KOSÍK, 2002). Em A hora da estrela, o narrador assinala tais aspectos levantados por Kosík ao colocar-se como engrenagem do mundo sem perder a subjetividade e ao reconhecer Macabéa como um outro “eu” e não como objeto. Mesmo que ele não consiga através da escrita – enquanto sua prática no mundo – interferir no processo de reificação do indivíduo, simbolizado na figura da nordestina, ele busca sentido para a vida e para a morte. Tal dualidade entre a presença e a ausência de Deus – este com todas as nuances e todos os aspectos salientados no decorrer das narrativas clariceanas – aponta questões permanentes na obra: Quem sou? Por que sou? Sou? A obra clariceana não responde a tais perguntas. Contudo, a não-resposta confere ao sentimento de solidão uma das condições humanas. O “eu”, que passa deslocado na infância, como a narradora de Felicidade Clandestina, e não consegue fazer-se entender e respeitar, que possui os sentimentos de deslocamento e isolamento quando adulto, não encontra aconchego na velhice, como Anita de “Feliz Aniversário”, de Laços de família, não encontrou, e nota que apenas a aceitação do seu “eu” a conforta. Embora não existam eleitos nos textos de Clarice Lispector, apenas “eus” deslocados e com visões próprias de mundo, à medida que o termo “herói” é utilizado, traz concepções que contribuem para entender a inversão e a atualização de ideias culturalmente adquiridas através da história da humanidade sobre o que seja heroísmo. Por romper parâmetros e buscar a própria essência, quebrando barreiras pessoais e sociais, as personagens direcionam a coragem para a vontade de ir além, o que as leva à ação e à valorização do sentir em detrimento da racionalização do “eu” e do mundo. O grande desafio é ser um herói humano. Afinal, as personagens clariceanas sintetizam o desamparo, as indagações, os êxtases místicos ou não, as alegrias de uma época conflitante e paradoxal que é a Modernidade. Na obra da autora, a vida impõe que se viva, nem que seja por um breve momento clandestino de felicidade. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 59 Angélica Castilho Referências • ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. • DOMENACH, Jean-Marie. O retorno do trágico. Trad. M. B. Costa. Lisboa: Moraes, 1968. • HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003. • KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves, Alderico Toríbio. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. • STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. • LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. A descoberta do mundo. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • ______. Água viva. 12. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. • ______. A hora da estrela. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996. • ______. A maçã no escuro. 9. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. A paixão segundo G.H. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. A via crucis do corpo. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • ______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. • ______. Perto do coração selvagem. 16. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. Laços de família. 28. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. • ______. Onde estivestes de noite. 7. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • ______. Um sopro de vida. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. • WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. 60 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 IDEOLOGICAMENTE VIOLENTO: UMA QUESTÃO DE SIGNIFICADO Roberto Borges CEFET / RJ Doutor em Estudos da Linguagem pela UFF contato: [email protected] Resumo: Utilizando-se de fundamentação teórica da Psicolinguística e, particularmente, de definições do conceito de significado do signo linguístico, este artigo traz resultados parciais de pesquisa realizada com alunos adolescentes, matriculados no oitavo ano do ensino fundamental e na terceira (série) do ensino médio de duas escolas públicas, situadas em regiões do Rio de Janeiro nas quais a pobreza se constitui como marca. A pesquisa aqui sintetizada consiste na busca da compreensão de como o significado do signo linguístico pode ser alterado quando os sujeitos vivenciam situações de interação. Com esse objetivo, trabalhamos com o conceito de “violência” e buscamos refletir a respeito da elaboração do pensamento conceitual em situações de produção individual e, em seguida, de produção coletiva. PALAVRAS-CHAVE: violência; ideologia; significado. Abstract: Based on Psycholinguistic theories, and, especially, the concept definitions on the meaning of the linguistic sign, this paper brings the partial results of a survey conducted among teenager students, enrolled in and regularly attending the eighth year of junior high and the third year of high school of public schools, located in poverty-ridden areas in the city of Rio de Janeiro. This summarized research aims at understanding how the meaning of the linguistic sign can be changed when the subjects experience interaction situations. With this objective in mind, we used the conception of “violence”and we wanted to reflect about conceptual thought elaboration in situations of individual production and, afterwards, of collective production. KEYWORDS: violence; ideology; meaning. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 61 Roberto Borges Resumen: A partir de una fundamentación teórica de la Psicolingüística y, particularmente, de definiciones del concepto de significado del signo lingüístico, este artículo ofrece resultados parciales de una investigación realizada con alumnos adolescentes, matriculados en el octavo año de la enseñanza fundamental y en la tercera serie de la enseñanza secundaria de dos escuelas públicas, situadas en regiones de Rio de Janeiro en las cuales, la pobreza se constituye como marca. La investigación aquí sintetizada consiste en la búsqueda de la comprensión de cómo el significado del signo lingüístico puede ser alterado cuando los sujetos viven situaciones de interacción. Con este objetivo, trabajamos con el concepto de “violencia” y buscamos reflexionar a respecto de la elaboración del pensamiento conceptual en situaciones de producción individual y, posteriormente, de producción colectiva. PALABRAS 62 CLAVE : violencia; ideología; significado. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado POR QUE VIOLÊNCIA? O trabalho em escolas de Ensino Fundamental e Médio da rede pública estadual ou nas diversas redes municipais do estado do Rio de Janeiro, comumente, nos leva à perplexidade diante da miséria e da escassez de condições básicas e necessárias ao ser humano, situação em que alguns adolescentes sobrevivem sem sequer terem capacidade de questionar e/ou perceber a violência que sofrem todos os dias. Para se ter uma ideia da situação econômica de Itaboraí, o documento “Objetivos de desenvolvimento do milênio – Itaboraí – ano 2007”, organizado pela ONU HABITAT, PETROBRAS e UFF, informa que 35,2% da população itaboraiense estão classificados como abaixo da linha da pobreza, o que posiciona o município no décimo lugar estadual em relação à pobreza. Quanto à escola estadual, localiza-se no município do Rio de Janeiro, num bairro da região suburbana. Este colégio atende a alunos que moram nos bairros vizinhos e, em sua grande maioria, residem nas comunidades próximas ao mesmo. Ao ter contato com esses adolescentes, percebíamos que tanto a situação de miséria, de desrespeito, de pobreza, de escassez se igualavam, como também acontecia em relação à dificuldade de refletir conceitualmente a respeito de toda a situação violenta em que estavam inseridos, apesar da distância geográfica que separa as duas instituições (aproximadamente 50 km distantes uma da outra). Há muito tempo, um dos objetivos de nosso trabalho como educadores tem sido levar os alunos a uma leitura crítica da situação em que vivem, tentando, dessa forma, conscientizá-los de que suas histórias podem ser questionadas e, algumas vezes, modificadas. Tudo o que foi escrito acima tem como único objetivo contextualizar o leitor de nosso texto no que diz respeito à realidade dos alunos com quem trabalhamos, mas o que interessa mesmo à nossa pesquisa nasceu da leitura de Vygotsky (1996), especificamente “Um estudo experimental da formação de conceitos”, onde encontramos a seguinte afirmação: “A verdadeira formação de conceitos excede a capacidade dos pré-adolescentes e só tem início no final da puberdade.” (VYGOTSKY, 1996, p. 46) Tivemos, então, a ideia de verificar, nos textos produzidos por estes alunos, qual o significado de violência para eles, comparar seus textos e tentar averiguar em que se assemelham e em que se diferenciam. É exatamente isso que nos propomos a fazer no decorrer deste trabalho. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 63 Roberto Borges A PROPOSTA Em Itaboraí, lecionamos a adolescentes que estavam na faixa etária entre 14 e 17 anos e cursavam o oitavo ano do Ensino Fundamental. Muitos deles trabalham desde muito cedo para auxiliar no sustento da família. Alguns já são pais e mães e têm de lutar para sustentar a si e aos filhos. Na cidade do Rio de Janeiro, trabalhamos com alunos da terceira série do Ensino Médio, cuja faixa etária varia entre 16 e 18 anos. Alguns destes também tiveram de encarar a dureza da vida desde muito cedo. Apesar de serem muito pobres também, é facilmente observável, pelos uniformes que usam, pelos bens que consomem, pela aparência saudável, a diferença de situação econômica entre os dois grupos. Resolvemos, então, contrapor o significado de violência para cada um deles e verificar se são distintos. O trabalho foi realizado da seguinte forma: Em um primeiro momento, sem que houvesse nenhum tipo de preparação, entramos nas turmas e mencionamos o fato de ouvirmos falar a todo instante que a violência tem aumentado, e pedimos que cada um escrevesse o significado de violência. Deixamos claro que não podia haver consultas de quaisquer espécies e que não poderiam, sequer, ler o texto do colega, mesmo quando já tivessem concluído o seu. Duas semanas depois, lemos, ouvimos e discutimos a música Milagres/Misérias, que é cantada por Adriana Calcanhoto (1992), aborda vários tipos de preconceitos e tem como refrão “Miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferenças.” Não podemos deixar de dizer que, no primeiro momento, tanto no município do Rio de Janeiro quanto em Itaboraí houve uma grande rejeição à música. Os alunos diziam que aquilo era música de “velho”. Um aluno do Rio de Janeiro disse-nos que se recusava a ouvir aquele tipo de música e que “bom mesmo é ouvir funk”. Diante deste comportamento, resolvemos travar um pacto com eles: ouviriam a música com muita atenção e, depois, se ainda quisessem, poderiam ser dispensados do trabalho. Após ter ouvido atentamente a música, o mesmo menino referido acima exclamou “isso é muito melhor do que funk!” A análise do texto foi bastante animada (apenas os alunos falavam, sem a interferência do professor), pois, a cada momento que um expunha o seu ponto de vista, suscitava concordâncias e/ou opiniões contrárias dos outros, o que foi bastante enriquecedor para todos. 64 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Após este momento, propusemos aos alunos que se dividissem em duplas ou trios, de acordo com suas preferências, e produzissem outro texto em que mais uma vez expusessem o significado de violência, sendo que, dessa vez, o mesmo deveria ser o resultado de um consenso do grupo. Esse trabalho teve como resultado dois tipos de texto: um produzido individualmente, sem interação e com mediação mínima do professor (consideramos o fato de sugerir o tema uma espécie de mediação), e outro produzido coletivamente, resultado de interações, em que há um peso maior da mediação do professor, já que foi este o elemento que sugeriu o tema, escolheu a letra da música e coordenou o debate. O TRABALHO Foram produzidos um total de 140 textos, entre os escritos individualmente e elaborados em grupo, que ficaram assim distribuídos: OITAVO ANO TERCEIRA SÉRIE Total: 65 textos Individuais: 47 textos Em grupo: 18 textos Total: 75 textos Individuais: 54 textos Em grupo: 21 textos Nosso trabalho tem dois objetivos principais e são eles: 1. Verificar se os alunos são capazes de conceituar o signo violência. 2. Verificar, quantitativamente, a incidência de clichês e de textos sem conceituação, primeiramente, em cada série e, em seguida, de forma geral. O SIGNIFICADO Por estar bastante claro que pensamento e linguagem são processos que se cruzam e se influenciam mutuamente, não podemos falar em significado sem antes discursarmos, ainda que de maneira breve, a respeito do signo linguístico. Em primeiro lugar, temos de falar em Ferdinand de Saussure, que privilegia uma “concepção diádica” (ROCHA, 1995, p. 85) do signo e define-o como a união de um conceito e uma imagem acústica. Ele diz que o signo é social, que “o laço que une significante e significado é arbitrário” (SAUSSURE, 1984, p. 33) e que é imutável. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 65 Roberto Borges O que Saussure chama de imagem acústica e/ou todas as implicações que esta nomenclatura possa supor não nos interessa neste trabalho. O que está ligado ao objeto de nosso estudo é o que ele denomina conceito. Carvalho diz que conceito é a representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos, representação essa condicionada, plasmada pela formação sócio-cultural que nos cerca desde o berço. Em outras palavras, para Saussure, conceito é sinônimo de significado, sua contraparte inteligível em oposição ao significante, que é sua parte sensível. (CARVALHO, 1984, p. 33) Optando pelo mesmo percurso de Fernandes (1999, p. 68) e reproduzindo o que já foi exposto por ela, temos de falar de Charles Sanders Peirce, Bernard Pottier e L. S. Vygotsky. Para o que será apresentado abaixo, faremos uso, também, do texto de Rocha (1999). Peirce apresenta um modelo triádico de signo: “O signo em Peirce é definido a partir de três elementos: um objeto, o seu representante (denominado símbolo ou representamen) e o interpretante” (ROCHA, 1999, p. 97). Para Pierce, fato fundamental ao nosso trabalho, cada indivíduo tem uma interpretação própria para cada signo, que varia de acordo com o histórico de cada ser: seus processos mentais, suas relações sociais, o meio em que vive. A esta interpretação, Peirce chama “interpretante”. Na teoria de Pottier, o signo só pode ser admitido se for levado em consideração o contexto verbal em que se encontra. O signo, para Pottier, pode ser identificado por meio da seguinte fórmula: “SIGNO = (substância do significado + forma do significado) + significante. A substância do significado está no plano da semântica.” (POTTIER, 1978, p. 26, grifo do autor) Vygotsky tem como princípio que o significado das palavras evolui: Segundo ele, a compreensão de que há um desenvolvimento individual, independente da relação social, objetiva mostrar que os significados de um signo se modificam à medida que a criança se desenvolve e, também, de acordo com as formas pelas quais o pensamento funciona. [...] O desenvolvimento dos processos cognitivos interfere de modo a refletir que o significado (sentido) de um significante (o vocábulo, em si mesmo, a “imagem’”acústica) se altera para o indivíduo de acordo com o desenvolvimento de seus processos cognitivos. (FERNANDES, 1999, p. 69) 66 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Se o significado modifica-se de acordo com o indivíduo, como já observou Vygotsky, logo, é subjetivo. Essa subjetividade de conceituação varia de acordo com o sujeito que olha para o objeto. A diferença, logicamente, situar-se-á na interpretação, na compreensão que lhe será atribuída, e essa compreensão pode ser moldada, construída, talhada ideologicamente. Cabe dizer que o vocábulo “ideologia” surge pela primeira vez em 1801, no livro de Destutt de Tracy, Eléments d’ldéologie (Elementos de Ideologia), de acordo com Chauí (1995). No verbete “ideologia” do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, entre os diversos conceitos, selecionamos dois: Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: filosofia. no marxismo, conjunto de ideias presentes nos âmbitos teórico, cultural e institucional das sociedades, que se caracterizam por ignorar a sua origem materialista nas necessidades e interesses inerentes às relações econômicas de produção e, portanto, termina por beneficiar as classes sociais dominantes Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: sociologia. sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos. (HOUAISS, 2001, não paginado) Marilena Chauí diz que: Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as idéias como independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais idéias expliquem aquela realidade, quando na verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias elaboradas. (CHAUÍ, 1995, p. 10) Diante dessas conceituações, podemos dizer que, ao analisar o significado de violência, jamais se pode deixar de lado o fato histórico, o social e econômico. Eles tornam-se fundamentais para a compreensão dos resultados que veremos a seguir. Sabemos que há um grande interesse por parte da classe dominante em que os dominados/explorados permaneçam inconscientes de sua realidade histórica e social, pois, ideologicamente, é importante que permaneçam com a visão diminuída de si mesmos e pensando que aquilo que sofrem é determinado pelo destino e que, por isso, não pode ser mudado. Ao homem que não adquiriu poder econômico nem prestígio social, resta apenas adequar-se à miséria em que vive. Não obter bens é culpa sua; então, cabe a ele Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 67 Roberto Borges aceitar passivamente e, se for possível, fechar os olhos para sua realidade. É justamente a realidade de nossos alunos que vai nos trazer a compreensão do fato de entenderem ou não entenderem a vida que levam como violência. IDEOLOGIA E SIGNIFICADO Dentre várias definições, o Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa diz de violento 1. que ocorre com força extrema ou uma enorme intensidade 2. em que se emprega força brutal, feroz 3. que possui grande força, grande poder de ataque ou de destruição [...] 7. que contraria o direito e a justiça. 8. diz-se da morte causada por força ou por acidente. (HOUAISS, 2001, não paginado) Sobre violência, o mesmo diz 1. qualidade do que é violento 2. ação ou efeito de violentar, de empregar força física ou intimidação moral contra (alguém) [...] 3.1 cerceamento da justiça e do direito; coação, opressão, tirania. (HOUAISS, 2001, não paginado) Nosso trabalho interessa-se em verificar até que ponto nossos alunos compreendem ou não, dentro do signo violência, os significados que estão ligados ao direito e à justiça e também ao que está ligado ao constrangimento físico e moral. Entendemos que passam pelo constrangimento moral: não ter condições satisfatórias de higiene, não ter alimentação suficiente, não ter vestimentas adequadas e não ter recursos para gerir o sustento de si e dos seus. Assim, tudo isto tem de estar inserido dentro do conceito de violência. Bakhtin diz que Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico. (BAKHTIN, 1992. p. 32) Acreditamos que as “coisas” passam a existir para nós a partir do momento em que podemos nomeá-las, quando podemos transformá-las em signos, e é justamente o nome dado às “coisas” que vai nos permitir a visão, a consciência do que é feito ideologicamente com elas e, também, por que não dizer, conosco. Vejamos, então, o que foi produzido por nossos alunos. 68 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado LINGUAGEM E CONSCIÊNCIA Quando escolhemos trabalhar com o significado de violência, sabíamos que o mesmo poderia remeter nossos alunos a fatos cuja referência fosse externa, concreta, como brigas, estupros, roubos, homicídios, como também remeter a outras situações de violência que não são apresentadas, expostas ou discutidas como tal pela grande mídia, como o é a fome, a miséria, as condições de educação em nosso país e o desemprego. Vejamos os resultados que nossa pesquisa nos trouxe. Antes de comentarmos a amostragem, temos de esclarecer alguns pontos: 1. Chamamos de clichês os textos que não fogem aos fatos totalmente concretos, visíveis e palpáveis e que são exaustivamente propagados pela mídia como roubos, estupros, assaltos, disputas entre gangues, entre torcidas, entre galeras, violência física (tiro, facada, brigas). 2. Dizemos que não houve conceituação quando, em nenhum momento do texto, o aluno diz o que significa violência para ele. Reproduzimos, a seguir, um exemplo deste tipo de texto, exatamente como foi escrito por uma aluna do oitavo ano, sem nenhum tipo de correção: Há cada dia que passa o nosso país está cheio de violência; As pessoas tem que fazer o possível para acabar com a violência. Não temos tanta tranquilidade mais, á todo instante tem pessoas sofrendo a violência. A violência chegou e ficou em nosso país. Tem pessoas que querem fazer só a violência, mas temos que colocar a cabeça no lugar e pensar, que a violência não leva a lugar nenhum. Temos que acabar com a violência! (informante) 3. Todos os números percentuais que aparecem neste trabalho foram calculados de forma aproximada. Uma primeira análise dos sessenta e cinco textos produzidos pelos alunos do oitavo ano mostrou-nos que, dos 47 textos produzidos individualmente, 12 reproduziam clichês (aproximadamente 25% do total dos individuais e 18% do total geral) e, dos 18 produzidos em grupo, dois foram construídos da mesma forma (aproximadamente 11% do total em grupo e 3% do total geral). Além disso, encontramos três textos individuais em que não houve qualquer tipo de conceituação (aproximadamente 6,3% do total individual e 4,6% do total geral). Todos os grupos conceituaram. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 69 Roberto Borges Temos, então, um total de 14 textos que reproduzem clichês e três que não conceituam, o que corresponde, respectivamente, a aproximadamente 21% e 4,6% do total dos textos. Ao analisarmos os textos da terceira série, surpreenderam-nos dois fatos. Possuíamos um total de 75 textos analisados. Desses, 54 foram produzidos individualmente, dentre os quais localizamos apenas dois que podem ser inseridos no que estamos chamando de clichês (aproximadamente, 3,7% do total dos textos produzidos individualmente e 2,6% do total geral). Em contrapartida, dentre os 75, encontramos nove que não conceituaram (aproximadamente 16,6% do total dos textos individuais e 12% do total geral). Não encontramos, dentre os 21 textos produzidos em grupo, um que tenha ficado preso aos limites dos clichês ou que não tenha conceituado o signo em questão. Consideramos bastante interessante e merecedor de nossa atenção o caso de os dois textos em que, anteriormente, encontramos clichês, serem de duas alunas que, na etapa seguinte, se uniram, formando uma dupla que compôs um texto em que os clichês não apareceram. Nossos alunos estão todos dentro da mesma faixa etária e pertencem à mesma classe social. As variáveis idade e classe social, então, não poderão ser utilizadas como referencial de diferença em nosso trabalho. Utilizaremos, em princípio, as variáveis escolaridade e geográfica, sabendo-se que nossos alunos do oitavo ano são todos da cidade de Itaboraí, interior do Estado do Rio de Janeiro, e os da terceira série são todos da capital do Rio de Janeiro. Todas as conclusões apontadas por série poderão ser entendidas, portanto, também como geográficas. As tabelas seguintes resumem o que foi dito na página anterior, facilitando-nos a visualização dos dados: Tabela 1 Oitavo ano (visão geral) Total Clichês % Sem conceituação % Textos individuais 47 12 25,5 3 6,3 Textos em grupo 18 2 11,1 0 0 Total geral 65 14 21,5 3 4,6 70 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Diante dos números vistos, sentimo-nos à vontade para traçar, a partir de agora, alguns comentários gerais. A maioria dos alunos do oitavo ano, de Itaboraí, conceitua. O número de alunos que não conceituam é muito pequeno (4,6% do total de textos produzidos). Não há textos produzidos em grupo em que não haja conceituação. Quando conceituam, boa parte da produção individual é marcada por clichês (25%) e esta proporção diminui consideravelmente quando os textos são produzidos em grupo (11,1%). Acreditamos que isto se dê pelo fato de a interação ser fator marcante na formação de conceitos. O conceito de um indivíduo certamente influencia e altera o de outro indivíduo. Tabela 2 Terceira série (visão geral) Total Clichês % Sem conceituação % Textos individuais 54 2 3,7 9 16,6 Textos em grupo 21 0 0 0 0 Total geral 75 2 2,6 9 12 Todos os textos em grupo da terceira série apresentaram conceitos e encontramos clichês em apenas dois. Enquanto o oitavo ano apresentou apenas 6,3% dos textos sem conceituação, a terceira série apresentou um número bastante maior: 16,6%. Em contrapartida, o número de clichês nos textos dos alunos da terceira série caiu consideravelmente em relação aos do oitavo ano. Nestes, encontramos clichês em 21,5%, tanto em textos produzidos em grupo, como em textos produzidos individualmente; naqueles, encontramos clichês em apenas dois textos produzidos individualmente, ou seja, em 3,7% de todos os textos produzidos. Estar na terceira série do Ensino Médio, para a grande maioria desses alunos, significa transpor obstáculos que, tanto para eles quanto para suas famílias, pareciam, na maior parte dos casos, intransponíveis. Muitos deles têm plena consciência de todas as dificuldades impostas pela vida à conclusão de seus estudos, mas, mesmo assim, pretendem continuar estudando e ingressar nas melhores universidades do Estado do Rio. Ainda acreditam que a educação seja a tábua de Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 71 Roberto Borges salvação de suas vidas. Logicamente, isso fará com que tenham uma visão de mundo bastante diferente daqueles alunos de Itaboraí, os quais – em grande maioria – acreditam que a conclusão do Ensino Fundamental, se conseguirem atingi-la, é o máximo que se pode esperar. Além das diferenças de escolaridade, diante de tudo isto, não fica difícil entender o porquê do número de textos com clichês ter aparecido em menor escala nos textos da terceira série. Tabela 3 Oitavo ano + Terceira série = 140 textos (visão geral) 8º ano 3ª série Total Clichês Sem conceito Textos individuais 47 54 101 14 – 13,8% 12 – 11,8% Textos em grupo 18 21 39 2 – 5,1% 0 Total geral 65 75 140 16 – 11,4% 12 – 8,5% Em um total de 101 textos individuais produzidos por nossos alunos, aproximadamente 13,8% reproduzem os clichês de violência e 11,8% não conceituam este signo. A proximidade entre esses dois índices pode nos trazer uma pista a respeito do processo mental dos jovens que se encontram na mesma faixa etária e classe social que nossos alunos: é possível que haja um número bastante significativo de adolescentes que não conseguem abstrair a ponto de perceberem o que vivem como violência. Não conseguem nomear os fatos de sua vida como tal e, logo, não possuem consciência da violência em que estão submersos. Quando analisamos os textos produzidos em grupo, os índices dos textos que reproduzem clichês caem muito e os textos sem conceituação desaparecem. Aproximadamente 20% dos textos estão inseridos no que chamamos de clichês ou sem conceito. Passaremos a analisar os 80% que, pela nossa leitura, trazem conceitos e são a maioria dos textos. Em primeiro lugar, tentaremos fazer um levantamento do significado de violência para os alunos do oitavo ano de Itaboraí e, depois, veremos como isto se configura para os alunos da terceira série do Rio de Janeiro. Em seguida, pretendemos contrapor os dois resultados para conferir se se assemelham ou diferenciam-se. 72 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Ao lermos os textos do oitavo ano, um primeiro ponto nos chamou muita atenção: boa parte dos alunos faz grande confusão entre o que significa violência e o que a gera. Por isso, há um elevado percentual de textos em que encontramos, além dos significados de violência, as suas causas e consequências. Convém sublinhar, então, que, muitas vezes, o conceito surge de forma indireta. Por exemplo, o texto de um dos grupos diz: Na verdade ainda não sabemos como surgiu a violência, mas temos uma ideia: miséria, fome, desemprego, inveja, racismo, uns tem de mais outros tem de menos entre isso e outras coisas. (informante) Fica claro que tudo isso, para eles, é violência. Não podemos deixar de mencionar as metáforas que encontramos em um dos textos: “A violência é como uma espada bem afiada que não tem direção [...] Ela é como um produto móvel, não pensa mas se move” (informante). Outro ponto bastante interessante é que, quando tentam explicitar o conceito, não resistem e apontam soluções ou caminhos que acreditam ser a saída para um mundo melhor, menos violento. Até então, fizemos um levantamento estatístico para os textos que produziram clichês e para os que não conceituaram. Abandonaremos este procedimento daqui em diante. Os conceitos passarão a ser apresentados de forma genérica. Alguns dos alunos do oitavo ano dizem que não conseguem entender a violência e um grande número deles afirma que ela nasce pela falta de amor ao próximo, pela falta de Deus no coração dos homens, pela falta de amor e de diálogo nos lares e pela falta de atenção dos pais. Um dos textos diz, claramente, que “violência é falta de comunhão com Deus” e outro que [...] significa falta de carinho, de diálogo, o que poderia não existir se todos os adolescentes fossem tratados com respeito, com carinho e compreensão. Se todos os pais tirassem uma hora para conversar com seus filhos muitas coisas poderiam ser evitadas [...] (informante) A pobreza, a miséria, a fome e o preconceito aparecem em grande escala. Em um deles, é abordado o fato de adolescentes se prostituírem para ajudar no orçamento familiar e menciona-se, também, o episódio veiculado pela mídia jornalística e televisiva de adolescentes que dançavam nuas em bailes funk para receber R$ 20,00 como pagamento. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 73 Roberto Borges Um texto aponta a violência como falta de dignidade, pois, “se o governo valorizasse mais o povo não iríamos pensar em matar, roubar etc.” Violência aparece como falta de educação, falta de respeito ao idoso, como covardia e desunião. Contudo, muito interessante é observar que, apesar de não conseguirem nomear a diferença de classes, apontam, muitas vezes, para ela. Dizem que “a violência vem das grandes famílias, dos filhinhos de papai, que trazem lá de fora a cocaína, o craque e outras drogas” ou “A violência é uma barbaridade. Enquanto os ricos vivem numa casa grande, bela, o pobre é humilhado e esculachado na favela”. O conceito de violência explicitado pelos alunos da terceira série é, no mínimo, bem mais elaborado do que os do oitavo ano. Podemos ligar isso a diversos fatores. Apontaremos apenas dois deles por serem, segundo nosso entender, os que mais sobressaem: 1. Estar concluindo o Ensino Médio já proporcionou a estes, além da elevação da autoestima, leituras, conhecimentos e experiências que ainda não foram vivenciados por aqueles outros. 2. Viver na cidade do Rio de Janeiro é ter, quase que obrigatoriamente, contato direto com pessoas de classes sociais e culturas diferentes e, também, com a produção cultural de nossa sociedade, principalmente levando-se em consideração que havia alguns professores dessa escola que tinham como prática levar os alunos a teatros, cinemas, exposições e promover debates e discussões a respeito de filmes vistos em classe, textos de jornais e revistas e sobre a realidade de suas vidas, o que raramente acontecia em Itaboraí. Não podemos deixar de citar, também, que esses alunos preparam-se para o vestibular e, consequentemente, estão condicionados a dissertar sobre todos os temas que caem em suas mãos. Logo, muitas vezes, no lugar de escreverem sobre o significado de violência, fazem verdadeiras dissertações em que explicitam seus conhecimentos sobre este tema. Temos de lembrar, ainda, que a produção de textos dissertativos exige que o aluno seja capaz de argumentar e tenha posse do pensamento analítico e sintético. Outro ponto que queremos mencionar é o de ter havido uma pluralidade grandiosa de conceitos. Impossível listá-los todos. Selecionamos, aleatoriamente, alguns que passamos a expor. 74 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Muitos textos apontam de forma direta a violência como resultado das desigualdades sociais. “A crise econômica do país ocasiona miséria e gera a degradação da classe pobre.” Em outros, as desigualdades sociais aparecem como sinônimo de violência: “O significado de violência vem das desigualdades sociais existentes em todos os países onde alguns têm demais e outros absolutamente nada.” Um grupo diz que “falar em violência significa falar em fome, desemprego e preconceito racial”. Falam, ainda, do desemprego que gera a falta de renda, apontando como causa uma política mal estruturada e todo o tipo de preconceito. O texto de um dos grupos diz que Violência é qualquer tipo de agressão física ou moral, que possa destruir não só a vida, mas como a auto-estima do ser humano. Não é um fato isolado, mas sim um conjunto de desigualdades sociais e econômicas que existe no nosso país atualmente. (informante) Certamente, por já estarem na luta ferrenha da vida, esses alunos já sentem na própria pele o resultado das diferenças sociais, do preconceito e da luta de classes. A tentativa de ingresso no mercado de trabalho e o sonho de estudar em uma boa universidade já lhes mostraram a crua realidade que reside por trás disso. É muito mais fácil, então, perceber os fatos como violência. O SIGNIFICADO DE VIOLÊNCIA Essa pesquisa trouxe-nos algumas conclusões. A grande maioria dos jovens de Itaboraí, entre 14 e 17 anos, que está cursando o oitavo ano do Ensino Fundamental, é capaz de conceituar violência. Há, porém, uma grande tendência de reproduzirem em seus textos tudo aquilo que ouvem e/ou leem na mídia a este respeito. Pareceu-nos que são capazes de perceber intuitivamente como é violenta a vida que levam, a discriminação que sofrem na própria pele, o descaso do governo, as diferenças sociais. Entretanto, a falta de consciência disso os torna incapazes de nomeá-las, portanto, incapazes de abstrair e apresentá-las, na grande maioria das vezes, como conceito. Os alunos da terceira série, do Rio de Janeiro, ainda que estejam na mesma faixa etária daqueles outros, são capazes de um nível bem maior de abstração. Percebemos, sem dificuldades, que seu processo mental já está bem mais evoluído, o que pode ser Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 75 Roberto Borges comprovado pela quase ausência de clichês, que apareceram apenas em dois textos individuais, os quais desapareceram no texto em grupo. Houve grande incidência do significado de violência como descaso do governo e como desigualdade econômica e social. Na tabela 3, podemos ver que houve grande proximidade entre os índices de textos elaborados com clichês e os sem conceito. Isso pode evidenciar que há um grande número de jovens nessa faixa etária cujos conceitos ainda estão em fase de desenvolvimento. Outro fato que nos chamou atenção foi a dificuldade dos alunos em conceituar violência sem falar de causas e consequências e, muitas vezes, apontar saídas para um mundo melhor. Tudo o que aqui foi apresentado conduz-nos a concordar com algumas ideias defendidas por Vygotsky e com outras defendidas por Peirce. A pluralidade de conceitos comprova a tese de Peirce que diz que cada indivíduo tem uma interpretação própria para cada signo. O fato de o meio em que vivem os jovens da terceira série e de suas relações sociais serem bastante diferentes do meio em que vivem e se relacionam os alunos do oitavo ano certamente contribui, de forma considerável, para a diferença de significado para eles, apesar de estarem dentro da mesma faixa etária e de terem situações econômicas bem parecidas. Vygotsky diz que o significado das palavras evolui e que o desenvolvimento das potencialidades humanas só é possível mediante interação. Não temos dúvidas com relação a isso e nosso trabalho pode comprová-lo. Acrescentamos que a evolução do significado não está somente ligada à faixa etária, pois, se assim o fosse, não teríamos como explicar a diferença marcante entre o aparecimento de textos com clichês e sem conceituação nos textos dos dois grupos: 25,5% de textos com clichês e 6,3% de textos sem conceituação para o oitavo ano, versus 3,7% de textos com clichês e 16,6% de textos sem conceituação para a terceira série. Certamente, a qualidade da interação é fator preponderante para esta diferença. Temos de esclarecer, porém, que, quando falamos de qualidade, não queremos, com isso, passar por juízos de valores dos quais façam parte o conceito de bom ou de ruim, mas sim pensamos na riqueza das vivências experimentadas por cada um dos grupos, como já explicamos anteriormente. 76 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Ideologicamente violento: uma questão de significado Tínhamos como objetivo inicial, em nosso trabalho, verificar se nossos alunos são capazes de conceituar o signo violência. Como supúnhamos, a grande maioria é capaz de construir o conceito (80,1%). Vimos, também, que o oitavo ano produziu, proporcionalmente, um número bem maior de textos com clichês (21,5%) do que a terceira série (2,6%). Em contrapartida, para nossa surpresa, o índice maior para textos sem conceituação foi encontrado dentre os produzidos pela terceira série (16,6%). O oitavo ano produziu apenas 4,6% de textos sem conceitos. Queremos arriscar uma explicação para o surgimento desse grande índice de textos sem conceito para a terceira série: os processos de análise desses jovens ainda não se consolidaram. Tentam produzir uma dissertação, mas ainda não são capazes de unir, em um mesmo texto, análise e síntese; perdem-se, então, em suas ideias, sem conseguir organizá-las. Podemos fechar nosso texto dizendo que, obviamente, pensamento conceitual não se ensina e nem se aprende, necessária ou obrigatoriamente, na escola, mas esta pode facilitar um meio enriquecedor para que o aluno desenvolva toda a sua potencialidade e seja capaz de ter consciência do mundo em que está inserido para poder entendê-lo, discuti-lo, nomeá-lo e, se quiser, tentar mudá-lo. Referências • BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. • CARVALHO, Castelar. Para entender Saussure. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1984. • CHAUÍ, Marilena. 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Abstract: The Spanish Civil War and the following years of Franco’s dictatorship were tragic endings to a major Spanish struggle for the modernization of its political, social and cultural structures. This paper analyzes the previous years of the war, focusing on the 1920’s and the 1930’s. KEYWORDS: History; society; Spanish Civil War Resumen: Se debe entender la Guerra Civil española y los años de la dictadura franquista como el desenlace (trágico) de un largo proceso de lucha por la modernización de las estructuras políticas, sociales y culturales nacionales. El presente trabajo analiza una parte de este proceso, principalmente los años 20 y 30. PALABRAS CLAVE : Historia; sociedad; guerra civil. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 79 Flavia Ferreira dos Santos “A história contemporânea do povo espanhol começa [...] com os seus primeiros esforços para se readaptar ao mundo moderno” (VILAR, 1992, p. 59). Existia entre a intelectualidade espanhola do fim do século XIX e início do século XX o sentimento de que a forma como se desenvolveu o Estado espanhol, sobretudo a forte identidade entre o poder e a Igreja Católica, impediu o desenvolvimento da Espanha como próspera nação capitalista. O atraso na modernização das estruturas econômicas e de poder custou caro a esse país, que não acompanhou o desenvolvimento dos demais países, mas que, anacronicamente, ainda se achava uma potência colonial no fim do século XX. A perda das últimas colônias americanas em 1898, na guerra contra os Estados Unidos, se tornou um símbolo da decadência espanhola. O país viveu, assim, o acirramento de um processo de lutas e divisões internas, fruto das disputas de poder entre uma oligarquia “caciquista” e a nova burguesia enriquecida, reflexo da luta histórica de superação política das estruturas feudais pelas formas capitalistas de poder. Desde as tentativas de Carlos III de trazer o espírito da Ilustração ao país no século XVIII, o poder da igreja e da elite conservadora freou as propostas de mudanças mais radicais. Instituições medievais, como a Inquisição e a Mesta (o sindicato de proprietários de gado, que dispunha de privilégios reais), prolongaram a sua existência até o século XIX. A desapropriação da terra, concentrada nas mãos da nobreza e da Igreja, essencial no processo de modernização capitalista, foi, algumas vezes, protelada e, quando levada a cabo, não promoveu a distribuição da terra. Em vez de minifúndios trabalhados por pequenos proprietários, os terrenos foram comprados pelos grandes proprietários, aumentando a concentração da terra. Este era o perfil da Andaluzia, sul do país, de território fértil e população miserável, submetida às piores condições de exploração. No outro extremo do desenvolvimento estava o nascimento de uma próspera burguesia no País Vasco (siderurgia) e Catalunha (indústria têxtil). O crescimento demográfico e a consequente urbanização fortaleceram-na, provocaram o surgimento de um proletariado organizado e a valorização de sentimentos regionalistas opostos à centralização do Estado Espanhol desde Madri. A Espanha se tornara um espelho de desigualdades sociais e conflitos internos. No plano político, as reformas foram de tal modo adiadas que a luta entre o velho e o novo sistema gerou um período de profundo desgaste do sistema monárquico. Desde os Reis Católicos, a “unidade espanhola” esteve atrelada ao papel da Monarquia e o aparecimento da Segunda República foi, sobretudo, o resultado da perda de credibilidade daquela, dividida entre o desejo de modernização e aceitação do Capitalismo e a velha 80 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 forma absolutista “católica” de poder (JACKSON, 1999, p. 25). Assim, a Espanha viveu, durante o século XIX, um período de guerras fratricidas e instabilidade. No início do século XIX, a Espanha sofreu a disputa entre Carlos IV e Fernando VII, pai e filho, que culminou com o exílio de ambos e a ascensão francesa do Imperador José I, irmão de Napoleão Bonaparte, em 1808. Graças à luta do povo espanhol pela independência, Fernando VII voltou ao trono, mas, sob a “bandeira” do “ódio ao francês”, governou no pior estilo da “contra-reforma”. Após a morte desse monarca, em 1833, surgiram as Guerras Carlistas de disputa pela sucessão, na qual se enfrentaram novos “conservadores”, em torno do irmão do rei, Carlos, e “liberais”, na defesa da filha do monarca, Isabel. Uma vez concluída a luta e transformada a princesa em Isabel II, o seu reinado demonstrou-se instável, e a rainha, devido aos seus hábitos escandalosos, impopular. Em 1868, um golpe a afastou do poder e estabeleceu um governo provisório, seguido pelo coroamento de Amadeo de Saboya e um curto governo republicano, derrubado pela volta da Monarquia e a subida ao trono do filho de Isabel II, Alfonso XII, em 1875. Não se pode compreender a história desse período sem destacar a participação dos militares. Entre 1833, en que comenzó la guerra carlista, y 1875, en que se instauró la Monarquia constitucional, el ejército dirigió los destinos del país. El único medio de cambiar de gobierno era el ‘pronunciamiento’, una repentina sublevación de un general, de común acuerdo relativamente poco sangrienta y en torno al cual se agrupaban las fuerzas de oposición como única esperanza de cambio. (JACKSON, 1999, p. 26) Essa participação não só não diminuiu após 1875, como esteve presente em todos os momentos de lutas internas do século XX, que culminaram com a ascensão do General Francisco Franco, em 1939. Além dos “pronunciamientos”, golpes militares que se tornaram comuns na época, o exército muitas vezes garantiu a governabilidade, funcionando como aparelho repressor dos movimentos populares. Dessa forma, um “pronunciamiento” em Sagunto, em 1874, restaurou a Monarquia Borbônica, na figura de Alfonso XII, e pôs fim ao contínuo “vaivém” de governos. Os anos da Restauração, nome dado ao período que entre 1875 e 1923, representaram uma época de “relativa estabilidade”, garantida por uma manobra política vislumbrada pelo político Cánovas del Castillo, do Partido Conservador. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 81 Flavia Ferreira dos Santos Proclamou-se uma Constituição que estabelecia a monarquia parlamentar e garantia certas liberdades de expressão. Esse sistema, na verdade, se transformou em um pacto de governabilidade entre os Partidos Conservador e Liberal. Selou-se a alternância de poder entre os dois partidos no parlamento e gerou-se um sistema eleitoral profundamente corrupto, marcado pela fraude e pelo “caciquismo” nas cidades do interior, que desmoralizou o regime constitucional e desferiu o golpe de morte na já desgastada imagem da Monarquia. Tal “turno pacífico”, expressão como se tornou conhecido o arranjo, não podia existir com o consentimento nacional, dada a insatisfação que esse modelo gerava em vários setores da população. Como consequência, o assassinato de Cánovas, em 1897, por um militante anarquista, fragilizou sobremaneira tal sistema e os Partidos Conservador e Liberal se desintegraram progressivamente, até 1917 (JACKSON, 1999, p. 27). Os protestos vinham de vários lugares. Por um lado, tal alternância de poder excluía a participação de liberais não ligados aos dois partidos e não refletia a crescente influência dos movimentos populares – e, com eles, o desenvolvimento dos movimentos anarquista e socialista – e regionalistas. Nessa época, surgiram as primeiras formas organizadas de atuação proletária – a 1ª seção espanhola da Associação Internacional de Trabalhadores (1871), a CNT (Confederación Nacional del Trabajo, 1911), sindicato anarquista, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español, 1879), a UGT (Unión General de Trabajadores, 1888), sindicato socialista – e alguns partidos regionalistas – a Lliga regionalista (partido catalão, 1901) e o PNV (Partido Nacionalista Vasco, 1894). Dois fortes movimentos populares sacudiram o período: a semana trágica de Barcelona, em 1909, e as Greves Gerais de 1917. Após a perda de Cuba, os militares se concentraram na manutenção dos territórios espanhóis no norte da África, em Marrocos. Em 1909, após a derrota na batalha de Melilla, o exército decidiu mobilizar os reservistas catalães, o que desencadeou uma greve geral e uma onda de revoltas durante vários dias, com graves distúrbios urbanos, como queimas de templos e conventos. O exército restabeleceu a ordem à força e condenou-se a fuzilamento um pedagogo anarquista, Francisco Ferrer y Guardia, como responsável pelo movimento. O episódio desencadeou uma onda de protestos nacionais e estrangeiros e provocou a queda de outro dos pilares da política de “turno” da Restauração: o chefe de governo na época, o conservador Antonio Maura. 82 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 Em 1917, as tensões sociais fomentadas pelo aumento do custo de vida acirraram-se, e a insatisfação abarcava vários setores. Oficiais de menor patente fundaram as “Juntas militares de defensa”, espécie de sindicato que reivindicava melhores salários e condições de trabalho, e setores da burguesia realizaram, em Barcelona, uma assembleia de parlamentares para pressionar o governo a convocar eleições para “Cortes Constituyentes”. A ação mais devastadora, porém, viria dos movimentos operários. No mesmo ano, em 10 de agosto, foi deflagrada uma greve geral revolucionária, liderada pela UGT. Seu objetivo era proclamar uma “República democrática socialista” nos moldes da revolução russa iniciada em fevereiro. Ao contrário da movimentação russa, a unidade do exército, “juntistas” ou não, conseguiu sufocar a rebelião após três dias de lutas sangrentas e assustar a burguesia. A vitória “le hacia [ao exército] dueño de los destinos de España” (VICENS VIVES, 1985, p. 356). Esse episódio, pela sua envergadura, abalou profundamente o esquema de poder, a ponto de marcar a etapa terminal da Restauração. Se vimos, até agora, o teor das insatisfações civis desse período e da “mesocracia” militar, por outro lado estava o descontentamento da cúpula militar. Como assinalamos, criara-se na Espanha um exército conservador, usado muitas vezes para reprimir os movimentos populares. Foram eles que, de fato, sustentaram a Monarquia e “garantiram” a ordem da Restauração. Em “compensação”, Alfonso XIII garantiu um orçamento avantajado ao exército, através das cortes, e financiou as suas “aventuras marroquinas”. Paradoxalmente, esse pilar do sistema também seria a sua ruína. Em 1921, a derrota na Batalha de Annual, localidade marroquina perto de Melilla, na qual uma rebelião popular matou doze mil soldados espanhóis (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 546), desencadeou uma onda de protestos. El desastre de Annual retificaba Ia crítica del 98 [perda de Cuba], en el preciso instante que Ias fuerzas conservadoras hacían del Ejército Ia columna vertebral del orden político y social en España. Incluso Ia persona de Alfonso XIII se vio incluida en Ia demanda de responsabilidad que los partidos de izquierda exigieron desde el Parlamento. (VINCENS VIVES, 1985, p. 368) Ante a possibilidade de ter que dar explicações sobre o desastre em Annual no Parlamento, e politicamente encurralado, o exército impôs um golpe militar dirigido pelo general Miguel Primo de Rivera. Apesar da história de lutas e participação popular até o momento descritas, a ditadura se implantou sem uma resistência significativa. [...] Ia masa neutra española recibió con satisfacción Ia noticia [...] El caos civil, militar y social de los últimos cinco anos, había roto los nervios del hombre de Ia calle y éste deseaba paz y un gobierno Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 83 Flavia Ferreira dos Santos que implantara radicalmente unas medidas de emergencia. [...] Por otra parte, los mismos elementos disidentes del viejo sistema constitucional abrieron crédito de confianza a Primo de Rivera: Ia burguesia catalana, los socialistas e incluso ciertos republicanos – como Lerroux – estimaban posible que Ia Dictadura militar despejaría a su favor Ia incógnita planteada por Ias últimas cuestiones políticas y sociales. (VINCENS VIVES, 1985, p. 68) Assim é que a ditadura do General Primo de Rivera, em 1923, se instalou com certa tranquilidade. A instabilidade não desapareceu completamente, mas “Se inicia un periodo de paz social en el que desaparecen, casi por completo, atentados, huelgas revolucionarias y gran parte de los conflictos laborales” (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 557). É preciso destacar, no entanto, que essa tranquilidade inicial relacionou-se, também, ao caráter autoritário do governo, que suspendeu os direitos civis e declarou “Estado de Guerra”. Sem a onda de prosperidade mundial que coincidiu com seu governo, a ditadura não sobreviveria tanto tempo. Os preços se estabilizaram e a indústria se desenvolveu, “a ritmo lento pero seguro” (VINCENS VIVES, 1985, p. 371). Investiu-se em obras de infraestrutura, como a criação da primeira grande rede de estradas da Espanha, e em empreendimentos estatais, como a criação de CAMPSA (monopólio do petróleo e derivados). No entanto, não se alteraram as estruturas política, econômica e social espanholas. Sob a ilusão de prosperidade, o governo não resolveu as questões centrais de um desenvolvimento tardio e desigual, subvencionado por um Estado também falido. O resultado, depois da suave brisa, foi um vendaval, em 1929. O rápido período de “progresso” se convertia em mais uma época de crise, que levaria à demissão do ditador em 1930 e à fuga do monarca em 1931, deixando livre o caminho para a Segunda República. Depois da saída de Primo de Rivera, o rei Alfonso XIII convocou eleições, como forma de promover certa abertura política que desse sustentação à Monarquia. No entanto, o resultado da votação confirmou uma grande vitória dos republicanos nos grandes centros urbanos. A habilidade política destes em capitalizar o resultado das eleições “como uma espécie de plebiscito Monarquia X República e o ambiente de festa popular instalado” (BAHAMONDE, 2000, p. 544) foram fundamentais. Dado o claro isolamento político da Monarquia, proclamou-se a República, em 14 de abril de 1931, tendo como presidente o católico conservador Niceto Alcalá-Zamora e obrigando o rei a se exilar. 84 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 O peso dos desafios impostos ao novo sistema, de modernizar um país tão atrasado, e a demora em efetivamente começar a resolvê-los, fruto das dificuldades econômicas do período e, principalmente, das profundas diferenças de projeto entre os vários grupos que assumiram o poder, feriram a credibilidade e inviabilizaram a estabilidade do novo regime, deixando o caminho livre para o avanço das tropas franquistas. El nuevo régimen estaba Ilamado en apariencia a enterrar Ia vieja España cacique de Ia Restauración. Se esperaba de él un verdadero revolcón social con Ia palanca de Ia reforma agraria y el protagonismo del movimiento obrero; un correctivo a Ia omnipresencia de Ia Iglesia; un reajuste de los cuerpos armados, que a un tiempo podase los recargados cuadros de oficiales y ahuyentase el espectro del militarismo; una labor cultural y de educación ciudadana para hacer realidad Ias fórmulas democráticas y, finalmente, una respuesta política a Ia singularidad regional de Ia península. (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 667) O problema é que nem todas essas questões interessavam a todos os grupos comprometidos com a República e os grupos interessados em uma mesma questão nem sempre (ou quase nunca) concordavam com o modo de resolvê-las. Este era o preço a pagar por uma “aliança” que incluía setores conservadores, republicanos de esquerda e socialistas. [...] República era sinónimo de modernización politica y democracia, pero no era todo. La República [...] era percibida y sentida emocionalmente como el símbolo de las expectativas que se abrían, y por ello fue entendida de muy distintas fomas, y a Ella apeló um nutrido inventario de aspiraciones muy diferentes. Por ello no cabe hablar de uma sola República, aunque formal e institucionalmente solo hubiera uma, sino de varias repúblicas, o dicho de otro modo, distintas formas de entender el régimen republicano em función de aspiraciones sociales, proyectos politicos o inquietudes culturales y vitales diversas. (MARTÍNEZ, 2000, p. 543) Desse modo, a Espanha tinha dado o passo “mais fácil”. Restava então arrumar a casa. El objetivo de acabar con la Monarquia estaba colmado, y La adhesión mayoritaria y popular al régimen era un hecho. Pero se abrió um gran debate sobre la orientación que tomo, mientras las tensiones empezaron a aflorar fruto de expectativas políticas, sociales, econômicas e ideológicas contrapuestas. (MARTÍNEZ, 2000, p. 545) Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 85 Flavia Ferreira dos Santos O primeiro biênio (1931-1933) se caracteriza por uma composição inicial de “centro-esquerda”, que tenta tomar as primeiras medidas para “mudar o rumo da história da Espanha” (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 566) e para garantir a legitimidade do novo regime. O primeiro governo provisório estava composto, assim, por um amplo espectro de partidos que iam desde setores mais conservadores, como “Derecha Liberal Republicana” (depois Partido Republicano Progressista), partido do presidente Alcalá-Zamora, e o Partido Radical, e tendências mais progressistas, como a Acción Republicana, do chefe de governo Manuel Azaña (presidente em 1936) e o Partido Republicano Radical Socialista (dissidência da AR mais à esquerda). Também incluía o PSOE, os partidos regionais autonomistas ORGA (“Galicia”) e o Partido Catalinista Republicano. (MARTÍNEZ, 2000) Como primeira medida, devia-se garantir a base legítima do Estado, motivo pelo qual se convocaram eleições para as cortes constituintes, com o objetivo de estabelecer a nova Constituição Republicana, promulgada em dezembro de 1931. A nova Carta Magna estabeleceu as bases do sistema democrático, que, na prática, funcionava como um sistema parlamentarista, com um presidente com poucos poderes, entre eles o de dissolver as cortes unicamerais, o poder legislativo, no máximo duas vezes durante o seu mandato de sete anos, e um chefe de governo, nomeado pelo presidente desde que aprovado pelas cortes. Além disso, o texto final e suas leis complementares asseguraram a igualdade entre os cidadãos, definindo Espanha como uma “República democrática de trabalhadores de toda classe”, e incluíram o sufrágio universal e o voto para maiores de 23 anos (o que instituía o voto feminino e dos soldados). Também afirmaram o caráter laico do Estado, com a separação de Igreja e Estado e a liberdade de consciência e de cultos, retirando a subvenção estatal à Igreja Católica, garantindo o fim da obrigatoriedade do ensino de religião nas escolas e, inclusive, proibindo a existência de instituições religiosas de ensino. Reconhecia-se, também, o casamento civil e o direito ao divórcio. Por fim, estabelecia o direito à expropriação de terras, com direito à indenização, para uso social, cujo objetivo patente era o de promover a reforma agrária, e garantia o direito de cada região a estabelecer um estatuto de autonomia. 86 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 Como se observa, uma grande parte dessas reformas correspondia essencialmente aos anseios de socialistas e de republicanos de esquerda, o que contribuiu a atrelar a imagem da República a estes grupos.1 La constitución resultaba Ia plasmación de un proyecto intelectual para modernizar el país y democratizar sus estructuras, pero no había sido el resultado de un amplio consenso. Había quedado mutilada por los que se inhibieron o se opusieron, y en todo caso era producto de un consenso de izquierdas, vertebrado por socialistas y republicanos de izquierda, a los que quedó asociada, perdiendo la vocación universalista con la que había nacido. (MARTÍNEZ, 2000, p. 564) A sua promulgação gerou descontentamentos por parte dos setores mais conservadores ligados à Igreja e às oligarquias, que poderiam ver as suas terras confiscadas para a reforma agrária, além de provocar a saída do governo da Derecha Republicana e do Partido Radical.2 Do mesmo modo, a regulamentação de direitos trabalhistas e o fortalecimento do papel dos sindicatos (o que favoreceria à UGT), propostos pelo ministério do socialista Largo Caballero, despertaram o medo dos empresários e a oposição da CNT. Se a Constituição desagrava aos setores mais conservadores, deveria, então, responder aos anseios da classe trabalhadora, operários (base política do PSOE, através da UGT) e camponeses (muitos afiliados a FNTT, braço político da UGT, que cresceu após 1931) e do eleitor urbano em geral, os quais depositaram na República as suas esperanças de melhoria de vida. No entanto, a fuga de capitais, as dificuldades econômicas de um período marcado pela depressão de 1929 e as dificuldades políticas tornaram difícil a realização de projetos ousados e caros. A expropriação de terras, cuja proposta inicial foi suavizada na constituinte, e o assentamento de famílias ficaram muito abaixo do esperado, o número de escolas primárias estatais criadas para substituir a ampla rede católica não foi suficiente3 e houve aumento do desemprego. A demora em se conseguir resultados efetivos acabou minando o amplo apoio popular inicial. 1 A coalisão de governo foi a grande vitoriosa nas eleições de 1931, tendo o PSOE o maior número de deputados (114), seguido pelo Partido Republicano Radical (89),o Partido Republicano Radical-Socialista (55), Esquerda Republicana de Catalunya (36), Acción Republicana (30), Derecha Republicana (22) e a ORGA (16). Estes números, somados à representação de pequenos partidos republicanos e independentes, representavam aproximadamente 90% do parlamento. (MARTÍNEZ, 2000, p. 556) 2 Após a promulgação da Constituição, a Derecha Republicana e o Partido Radical não compuseram o novo governo, que se reduziu a uma aliança republicana de esquerda-socialista. A saída do Partido Radical, segunda maior bancada do parlamento, e a sua aproximação aos setores oposicionistas, seria fundamental para a composição de centro-direita do segundo biênio da República (1933-1936). 3 No caso da educação, isto não significa que os números tenham sido irrisórios [...] mas insuficiente para uma demanda de 27.000 novas escolas (MARTÍNEZ, 2000, p. 76). Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 87 Flavia Ferreira dos Santos Além das dificuldades de gestão, a coalizão teve que responder às diversas movimentações oposicionistas ao regime, fossem elas à direita ou à esquerda. Modernizar o país implicava acabar com a longa tradição de ingerências católicas e militares no Estado. Esse fato, consumado de forma radical na Constituição e nas medidas adotadas pelo governo, pouco a pouco situavam católicos e militares, além dos próprios monarquistas, num campo oposto ao da República. A questão religiosa era extremamente delicada, uma vez que o amplo apoio popular à República não significava o fim das profundas raízes católicas do povo espanhol nem o fim do enorme poder da Igreja e da sua influência, principalmente no campo. Após 14 de abril de 1931, a Igreja observou com desconfiança o novo sistema. Depois das primeiras medidas provisórias desfavoráveis, um setor, representado pelo Cardeal Segura, disparou os primeiros ataques, elogiando as relações entre a Monarquia e a Igreja e taxando as medidas laicizantes de “atentado contra a Igreja”, além de incitar os fiéis à oposição. Paralela à influência eclesiástica, existia um forte anticlericalismo popular, de tipo mais emocional do que liberal, que tinha crescido ao longo do século XIX, associando à Igreja os males que assolavam o país. Desse confronto surgiram os ataques a igrejas e conventos em maio de 1931, por ocasião da Criação de um Círculo Monárquico em Madri (MARTÍNEZ, 2000). O Cardeal Segura se negava a reconhecer o regime e foi expulso do país. Desde então, as relações foram sempre conflituosas. A aprovação da Constituição, com as medidas laicizantes já citadas, e a dissolução da Companhia de Jesus em 1932, a mais influente ordem eclesiástica do país, aumentaram ainda mais a insatisfação da Igreja, o que levaria um setor a se organizar para intervir nas eleições através da CEDA (Confederación Española de Derechas Autónomas), como veremos adiante. Os militares, desde o início, também tramaram contra a República. Muitos eram simpáticos ao velho regime, fruto do poder do exército como “base de sustentação da ordem”. A insatisfação só foi aumentando ao longo do tempo, principalmente depois da política de reorganização e modernização do exército, planejada por Manuel Azaña. O então ministro da Guerra optou por uma política de renovação de quadros militares como forma de dotar a República de lideranças fiéis ao novo regime. Desse modo, obrigou os militares a um juramento de fidelidade à República e promoveu a aposentadoria voluntária de generais e oficiais, além de reorganizar a justiça militar, restringindo-a ao âmbito interno. Estas e outras medidas geraram 88 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30 desconforto entre os oficiais e, em 10 de agosto de 1932, se realizou uma primeira tentativa fracassada de Golpe, liderada pelo general Sanjurjo. Su morfología recuerda ai pronunciamiento del siglo XIX de carácter cívico-militar, en una mezcla confusa de militares y civiles monárquicos alfonsinos, carlistas – aunque no en nombre de Ia Comunión –, nacionalistas fascistas y algún monárquico liberal, con fines muy heterogéneos, desde el frontal ataque al régimen para instaurar Ia Monarquía [...] hasta un cambio de gobierno. (MARTÍNEZ, 2000, p. 592) A revolta foi sufocada e o seu líder, condenado à morte, pena comutada em prisão perpétua. Além disso, áreas de grandes proprietários ligados ao golpe foram confiscadas para a reforma agrária e os monarquistas foram perseguidos. Era natural que os monarquistas conspirassem contra o regime desde o primeiro momento, procurando, como aliados, os militares insatisfeitos com as reformas. Contrários à República por convicção política, eles se dividiam em carlistas (Comunión Tradicionalista) e alfonsinistas (Renovación Española). Após o golpe, atuaram de forma colaboracionista, inclusive com uma tentativa, infrutífera, de unificação das “linhas sucessórias”, chegando a fazer um pacto com Mussolini para derrubar o governo. Por outro lado, além de enfrentar os setores mais conservadores (militares, monarquistas e religiosos), a República teve que lidar com as greves e manifestações organizadas pela CNT, o sindicato anarquista. Desde o seu congresso de junho de 1931, a CNT optou pelo não-reconhecimento do novo regime e a “ação direta” rumo a um “comunismo libertário”. Assim, estimulou a greve geral e a insurreição popular como formas de tomar o poder e derrubar a República, percebida como modo de governo burguês, incapaz, portanto, de defender os interesses do povo. A partir de então, organizou várias greves na cidade e no campo andaluz, misturadas a ocupações de cortiços. A crise culminou em janeiro de 1933, quando a CNT promoveu uma insurreição geral e várias localidades sob a sua influência se rebelaram. Em Casa Viejas, uma pequena cidade andaluza, os rebeldes foram assassinados pela “guardia civil”. A dura repressão ao movimento provocaria a queda do governo, chefiado por Azaña, e o desgaste das relações entre republicanos e socialistas, que se afastaram do governo e adotaram uma linha mais radical. Assim, marcada pela campanha anarquista de abstenção, pelo desânimo dos trabalhadores e camponeses, pelo medo da burguesia à revolução e, finalmente, pela desarticulação das esquerdas, que concorrem separadas ao pleito, a direita venceu as eleições de 1933, dando início ao chamado biênio conservador ou de centro-direita. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 89 Flavia Ferreira dos Santos Da união de partidos católicos de direita, especialmente da “Acción Popular”, surgira, em 1933, a CEDA, com o objetivo de ser um partido de direita, organizado para influir nos rumos da República, a partir das próprias instituições do sistema republicano. Através de alianças com outros partidos conservadores, a CEDA se tornou o partido com mais cadeiras no parlamento e com o apoio do Partido Radical, o segundo maior, definiu o novo governo. Uma vez no poder, a direita revogou medidas do período anterior, favorecendo a Igreja, anistiando os insurretos de Sanjurjo e devolvendo as terras expropriadas a seus antigos donos. A reação foi grande, culminando com as revoltas de outubro de 1934, duramente sufocadas. Aunque constitucionalmente era un nuevo episódio político con una base de continuidad, en Ia práctica era otra República Ia que se configuraba, por cuanto era entendida de forma distinta, cuestionándose los soportes en los que había descansado hasta entonces. (MARTÍNEZ, 2000, p. 96) Após escândalos envolvendo o governo de Lerroux, em 1936, o presidente Alcalá-Zamora dissolveu as Cortes e convocou novas eleições. Dessa vez, a esquerda se uniu na Frente Popular e saiu vitoriosa. A direita protestou e o país se converteu em foco de pequenos ataques violentos e rebeliões. Em 13 de julho de 1936, o líder da oposição José Calvo Sotelo foi assassinado pela Guardia de Asalto, polícia da República. Era o pretexto para o início do “Pronunciamiento”, que levaria à Guerra Civil. Referências • BAHAMONDE, Angel. (Org.). Historia de España, siglo XX: 1875-1939. Madri: Cátedra, 2000. • GARCIA DE CORTAZAR, Fernando. Breve historia de España. Madri: Alianza, 1995. • JACKSON, Gabriel. La república española y la guerra civil. Barcelona: Crítica, 1999. • VICENS VIVES, J. (Org.). Historia de España y América – social y económica. Barcelona: Vicens-Vives, 1985, Vol. V. • VILAR, Pierre. História de Espanha. Lisboa: Horizonte, 1992. 90 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 METÁFORA, LINGUAGEM E COGNIÇÃO: A VISÃO DA GUERRA ATRAVÉS DA METÁFORA Sérgio N. de Carvalho Faculdade CCAA ILE – UERJ Escola Naval Doutor em Estudos da Linguagem pela UFF contato: [email protected] Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar criticamente os efeitos de metáforas conceptuais na ideologia do governo do Presidente G. W. Bush e seus principais aliados por ocasião dos eventos de 11 de setembro de 2001, passando pelas pré-guerras do Afeganistão e Iraque. Utilizamos como corpus citações desses experientes políticos, publicadas em artigos do The New York Times durante o referido período histórico e, portanto, atribuindo à imprensa escrita o fator de relevância que tem na formação de cultura e vice-versa. Tendo como fundo os interesses da política internacional, o uso de metáforas foi interpretado em relação à necessidade de enfatizar e reforçar algumas imagens que pudessem descrever a posição dos Estados Unidos e seus aliados no período mencionado. PALAVRAS-CHAVE: discurso crítico; metáfora conceptual; política internacional. Abstract: This work aims at analyzing critically the effects of conceptual metaphors in the rhetoric of President G.W. Bush and his collaborators during the attacks of the World Trade Center (New York City) and the pre-wars of Afghanistan and Iraq. For that purpose, our corpus was based on the discourse of these important politicians published by the leading newspaper The New York Times; therefore, testifying the relevant aspects of Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 91 Sérgio N. de Carvalho the written media in the formation of culture and vice-versa. As background, we had the interests of international politics where conceptual metaphors were used to emphasize the political needs of the United States during that period. KEYWORDS: critical discourse; conceptual metaphor; international politics. Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar críticamente los efectos de metáforas conceptuales en la ideología política del gobierno del Presidente G.W. Bush y sus principales aliados en ocasión de los sucesos del 11 de septiembre de 2001, pasando por las preguerras de Afganistán e Irak. Hemos utilizado como corpus citas de esos experimentados políticos, publicadas en el The New York Times durante tal periodo histórico. Por lo tanto, estamos atribuyendo a la prensa escrita el factor de relevancia que posee en la formación de la cultura, y viceversa. Tomando como trasfondo los intereses de la política internacional, se ha interpretado el uso de metáforas motivadas por la necesidad de enfatizar y reforzar algunas imágenes que pudieran describir la posición de los Estados Unidos/aliados en el periodo susodicho. PALABRAS 92 CLAVE : discurso crítico; metáfora conceptual; política internacional. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora INTRODUÇÃO Este texto é sobre linguagem e, especificamente, a forma como o discurso é usado em tempo de crise política nacional ou internacional. Os eventos que aconteceram em 11 de setembro de 2001 e aqueles que os sucederam, através da retórica pública, tornaram-se guerras. O governo do Presidente G. W. Bush ratificou muito bem isso. A cidade de Nova York passa ser a capital da América e todo o mundo volta os seus olhos para essa gigantesca metrópole, o centro nervoso das finanças, a Meca cultural da América. E por que não dizer que as torres gêmeas, metaforicamente falando, são o coração do estado americano? Este pequeno estudo faz parte de uma pesquisa maior que se refere ao uso de expressões linguísticas metafóricas usadas por pessoas, cidadãos que (presumivelmente) são peritos no uso da retórica política. Portanto, supostamente, conhecedores da capacidade de persuasão que este tropo tem na modalidade do discurso aqui citado. O conteúdo desse esse período histórico foi examinado através do jornal diário americano The New York Times (doravante NYT), com o intuito de descobrir como a metáfora foi usada em relação aos objetivos e decisões políticas. A escolha desse jornal dá-se pela sua enorme circulação na sociedade daquele país como veículo de informação, pela sua credibilidade e pelo número recorde de prêmios Pulitzer ganhos em 2002 em reconhecimento à ampla cobertura dada àqueles acontecimentos. Nesse conteúdo, através de citações do referido jornal, veremos o Presidente norte-americano G. W. Bush e seus principais colaboradores de governo como experientes articuladores políticos e exímios palestrantes, no que diz respeito ao discurso político. Algumas vezes, oferecemos um exemplo representativo de uma determinada expressão metafórica no domínio do “crime” e da “guerra” que possa ter ocorrido várias vezes na referida mídia (NYT). Depois de analisar as expressões linguísticas metafóricas, elas são agrupadas em categorias, cada categoria sob o título de uma determinada metáfora conceitual, conceito esse a ser explicado mais adiante no artigo. Compartilhamos com Schon (1979) que as dificuldades mais prementes na política social, e acrescentamos na política também, têm mais a ver com a colocação dos problemas do que praticamente com a solução dos mesmos. Ou seja, a maneira como um problema é conceitualizado ou verbalizado é, frequentemente, metafórico, e por aí já se tem o desencadeamento das possíveis soluções desse problema. No caso da política, nacional ou internacional, muito da agenda dos dirigentes de um país é estruturada com base em discursos repletos de metáforas. Lakoff e Johnson Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 93 Sérgio N. de Carvalho (1980, 2002, p. 61) denominam tais metáforas estruturais de metáforas gerais (ou conceituais), que nos permitem, mais do que simplesmente orientar conceitos, nos referir a eles, quantificá-los, etc. Como fazemos com as metáforas simples, “elas nos permitem, além disso, usar um conceito bem estruturado e delineado para estruturar outro” (p. 61). Os autores nos exemplificam com a metáfora “TEMPO É UM BEM MATERIAL” (TIME IS A RESOURCE), que estrutura a forma como vemos tempo como um recurso contável e de valor, que pode ser gasto, guardado e desperdiçado. (LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002, p. 65, grifo do autor) A trajetória linguística do World Trade Center e do Pentágono começou em silêncio. Nenhum país se responsabilizou pelos acontecimentos de 11 de setembro. Mas, os Estados Unidos asseguraram que eles tinham um “inimigo” – um “inimigo sem cara” que personificava o “mal”. E, contra esse mal, os Estados Unidos se lançaram em uma guerra. O primeiro passo para essa guerra, o primeiro alvo, foi o empobrecido Afeganistão. Tudo isso porque aquele país “escondia” o “inimigo sem cara”. Tendo o ataque lá começado em 7 de outubro de 2001, a pergunta que se faz é: Como que, de uma resposta ao terror, se forma uma guerra ao terrorismo? Finalizando, o objetivo desse artigo é mostrar, ainda que resumidamente, tendo em vista a natureza desse texto, o caminho percorrido por um país na construção de uma guerra com o auxílio de uma poderosa arma: o discurso metafórico. A METÁFORA E O DISCURSO POLÍTICO Existe um grande número de estudos sobre a metáfora na literatura. Sontag e outros começam por Aristóteles, cujo livro Poética define metáfora de uma forma simples, mas clara: “Metáfora consiste em nominar uma coisa em nome de outra”. A partir dessa definição, estudos em diversos campos sobre a metáfora se ampliam: retórica, discurso, literatura, linguística, pragmática, psicologia, ciência cognitiva e outros (BOYS-STONES, 2003; EUBANKS, 2000; ORTONY, 1993; SEARLE, 1993; WHITE, 1978). Mas aqui consideraremos a metáfora do ponto de vista da linguística cognitiva (BLACK, 1962; LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002; ORTONY, 1993; GIBBS, 1994; LAKOFF; TURNER, 1989; LAKOFF, 1991; EUBANKS, 2000; CAMERON e LOW, 1999; CAMERON, 1999, 2003; DEIGNAN, 1995, 1999; JOHNSON, 1987; KÖVECSES, 2002, 2004, apenas para citar alguns) e sua implicação no discurso político. Certamente, a área da política é, em particular, um campo fértil para pesquisa dessa figura de linguagem. Alguns estudos de interesse já se apresentam na literatura como Bostdorff (1994), Chilton (2004), Green (1992) e Swanson e Nimmo (1990). 94 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora Mas, sem dúvida alguma, o grande divisor de águas do estudo da metáfora é Metáforas da vida cotidiana (tradução do GEIM/PUC/SP), escrito pelo linguista cognitivo George Lakoff e o filósofo Mark Johnson, em 1980. Essa obra tornou-se de grande relevância para a discussão social e política da metáfora. Os autores argumentam que o sistema conceitual humano é fundamentalmente metafórico e que a metáfora estrutura a nossa maneira de pensar. A argumentação deles de que a metáfora “não é um recurso somente da linguagem, mas também do pensamento e da ação”, apoia o estudo do discurso social e político (LAKOFF; JOHNSON, 1980, p. 208); (BLACK, 1962; JOHNSON, 1987; LAKOFF, 1986; LAKOFF; TURNER, 1989 e SWEETSER, 1991). Assim sendo, do ponto de vista cognitivo da metáfora, ela é usada na comunicação para que possamos compreender situações problemáticas a partir de situações que já nos são conhecidas. As metáforas “antigas” ou “mortas” e “novas” ou “vivas” são normalmente construídas a partir de conceitos humanos provenientes da interação do corpo humano com o meio ambiente em que vivemos: ficar de pé, estar num espaço delimitado, mover-se de um ponto para o outro. Além das características acima da metáfora como um processo cognitivo universal, esse tropo tem a função no discurso, nesse caso do ponto de vista interacional, na relação face a face, de atenuar o mal-estar que possa haver no contato entre indivíduos. No modelo de Brown-Levinson (1987), a metáfora é considerada uma “estratégia fora de registro”; isto é, o seu objetivo é controlar os mais ameaçadores atos de fala e, ao mesmo tempo, minimizar o envolvimento de seu escritor/falante. É do ouvinte a responsabilidade de entender as implicações metafóricas e a sua importância naquele momento da comunicação. Ao mesmo tempo, a metáfora propicia um terreno comum no que diz respeito ao aspecto cultural (DEIGNAN, 2003; GIBBS, 1999; KÖVECSES, 2002, 2004; LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002) e, também, ao mesmo tempo, do ponto de vista cognitivo, ela age como um grande recurso para que novos conceitos e políticas possam ser explorados. Mas fica o alerta para que tenhamos cuidado com a possibilidade desse terreno comum, quando uma determinada comunicação surge entre culturas, podendo-se incidir em uma má compreensão da metáfora por conta das diferenças culturais entre o escritor/falante e o leitor/ouvinte. (DEIGNAN, 2003; ROHER, 2004) Não poderíamos nos esquecer de mencionar, dentro desse tópico da metáfora e política e, mais diretamente, a política internacional, a capacidade de persuasão daquela figura de linguagem. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 95 Sérgio N. de Carvalho Apesar do crescente interesse no estudo da metáfora, ainda não se tem um número muito expressivo de pesquisas sobre sua função de mudança de atitude ou efeitos de persuasão (expressando e manipulando crenças). A maioria do interesse nessa área centraliza-se nos efeitos persuasivos da linguagem. (BOERS, 1963, 1964) A função persuasiva da metáfora se faz entender a partir da teoria contemporânea da metáfora, como Lakoff (1993) se refere. O autor e seus seguidores postulam a existência de relações mentais chamadas de metáforas conceituais, como vimos acima. As metáforas conceituais funcionam no nível do pensamento, em vez do da linguagem. Elas são passíveis de serem concretizadas através de expressões denominadas “metáforas”. Os escritores da escola contemporânea se referem a essas expressões linguísticas como “metáforas linguísticas” (LAKOFF; JOHNSON, 1980, 1999; CAMERON, 1999, 2003; DEIGNAN, 1995, 1999). Muito embora as relações conceituais, segundo a teoria contemporânea, sejam mais significativas do que as relações linguísticas individuais, as metáforas linguísticas são as únicas evidências disponíveis para que se possa provar a existência das metáforas conceituais. Isto quer dizer que quase toda discussão sobre metáfora conceitual recai nos exemplos de metáforas linguísticas, de modo geral concebidas intuitivamente. Concluindo, as metáforas podem ser usadas com o intuito de persuadir, ao tendenciosamente sugerir uma interpretação de situações ou acontecimentos. Isso acontece porque elas constroem um equilíbrio entre os elementos do domínio-fonte (o campo semântico do qual o significado literal é originado) e domínio-alvo (o domínio semântico dentro do qual o significado metafórico está localizado). Entretanto, temos que estar atentos, porque a metáfora não proporciona uma visão completa do seu tópico, mas, com certeza, ela destacará alguns aspectos e esconderá outros. E é por causa dessa característica que o discurso político, metafórico quase por natureza, merece atenção no campo da análise crítica de texto escrito e/ou falado desse campo da ciência. UMA BREVE ANÁLISE CRÍTICA DO CORPUS Com a intenção de apenas situar os leitores no fato histórico, naquela manhã de 11 de setembro de 2001, aviões de linha comercial chocaram-se contra as torres gêmeas, na cidade de Nova York e o prédio do Pentágono, na cidade de Washington, D.C., a capital dos Estados Unidos. Aquele evento foi primeiramente descrito com o 96 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora termo um ato de “terror” e/ou “crime” e, depois, se tornou um ato de “guerra”. “Atos de guerra”, normalmente, são recíprocos com outros “atos de guerra” – mas, guerra contra quem? Fazer tal pergunta é pegar uma lente de alto grau de aumento para refletir sobre como a linguagem foi usada para trazer a público o senso comum na política nacional da América. Abaixo, mostraremos, de forma resumida, uma análise crítica de falas do Presidente Bush e seus assessores, através de citações de artigos do jornal NYT, focalizando as metáforas linguísticas usadas para exemplificar a trajetória de uma conceituação de crime a ato de guerra que, consequentemente, nos leva à metáfora conceitual dominante EVENTO “X” É UM ATO DE GUERRA. Destacaremos, também, outras metáforas do domínio da política internacional que possam interagir com a metáfora dominante, acompanhadas de um breve comentário sobre a ideologia que permeia, possivelmente, cada metáfora. Isso ocorre porque não podemos falar sobre guerra sem falarmos em política internacional. Apresentaremos, assim, a metáfora conceitual (sempre em letras maiúsculas, em português e inglês), seguida de considerações ideológicas, quando se fizerem necessárias, e os exemplos, respectivamente, com a fonte e data. TERRORISMO É UM CRIME (TERRORISM IS A CRIME) Esta metáfora teve um tempo de vida curta no cenário da política americana por ocasião do ataque às torres gêmeas e à sede do Pentágono. Segundo o Presidente Bush, esse evento, em questão de horas, se torna um “ato de guerra”, como veremos adiante. Assim, um ataque terrorista passa a ter o mérito de uma completa resposta militar por parte dos Estados Unidos e a criação de um grupo de aliados. Esse “sistema” de crime envolve: vítima, lei, punição, juiz, corte, e esses elementos foram abandonados rapidamente. 1. “These acts of mass murder were intended to frighten our nation…” (“Esses atos de assassinatos tiveram a intenção de assustar a nossa nação” (NYT, 11/09/01). 2. “I have directed… to bring them to justice” (“Eu os pedi que… os julgassem”) (NYT, 11/09/01). Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 97 Sérgio N. de Carvalho 3. “This is the day… our resolve for justice and peace” (“Este é o dia… nossa decisão pela justiça e paz”) (NYT, 11/09/01). 4. “Crime scenes have been established by the federal authorities” (“Cenas de crime foi como as autoridades federais viram o atentado”) (NYT, 11/09/01). 5. “The full resources of the Department of Justice… are being deployed to investigate these crimes and to assist survivors end victim families.” (“Todos os recursos do Ministério da Justiça… estão sendo empregados com o intuito de investigar esses crimes e dar assistência aos sobreviventes e familiares das vítimas”) (NYT, 11/09/01). 6. “May God bless the victims,…” (“Que Deus abençoe as vítimas,...”) (NYT, 12/09/01). O ACONTECIMENTO/EVENTO “X” É UM ATO DE GUERRA (EVENT “X” IS AN ACT OF WAR) Em questão de horas, no seu primeiro discurso à nação americana, o presidente, sua equipe e seus países aliados transformam o cenário de um “ato de crime” em “um ato de guerra”. 1. “… we stand together to win the war against terrorism” (“… ficaremos a postos, juntos para vencer essa guerra contra o terrorismo”) (NYT, 11/09/01). 2. “This is not a battle between the United States of America and terrorism, but…” (“Essa não é uma batalha entre os Estados Unidos da América e o terrorismo, mas…”) (NYT, 12/09/01). 3. “This war will not be like the war against Iraq a decade ago,…” (“Essa guerra não será como a guerra contra o Iraque há uma década,…”) (NYT, 12/09/01). 4. “Americans should not expect one battle, but…” (“Os americanos não devem esperar uma batalha, mas...”) (NYT, 20/09/01). 5. “… that an act of war was declared on us” (“…que um ato de guerra nos foi declarado) (NYT, 14/09/01). 6. “...war on home territory” (“...guerra na nossa casa”) (NYT, 12/09/01). 98 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora 7. “Let’s make glass out of Afghanistan” (“Vamos fazer do Afeganistão cacos de vidro”) (NYT, 14/09/01). 8. “Gerhard Schroeder called the attacks a declaration of war against…” (“Gerhard Schroeder chamou os ataques de uma declaração de guerra contra…”) (NYT, 12/09/01). 9. “…but now that war has been declared on us…” (“...mas agora que nos foi declarada guerra,…”) (NYT, 14/09/01). 10. “How to fight this foe” (“Como lutar contra esse inimigo”) (NYT, 24/09/01). NAÇÃO É UMA PESSOA (NATION IS A PERSON) Essa metáfora é um recurso linguístico de extrema relevância em conflitos internacionais em que a guerra se faz presente. O país é visto como uma “pessoa” e, consequentemente, ele/ela se engaja em relações sociais, ou não, em casa, ou dentro de uma comunidade mundial. O seu território passa a ser “lar”, ele (o país) vive em uma “vizinhança” com seus “amigos”, “vizinhos”, “inimigos”. Esse tropo dá ao povo americano o sentimento de que é justo/moral lutar contra o inimigo que invade a sua casa e lhe tira o direito de ter seus valores (aqui, a liberdade, tão proclamada pelo governo Bush e aliados). O mal que se faz não é a um país, mas sim a uma pessoa, a um ser humano. Dessa maneira, para a sociedade americana, todo o conflito está bem próximo, mas de uma forma bem diferente dos fatos reais. Essa mesma metáfora pode ser analisada como uma metonímia. Considerando que, no discurso da política internacional, é comum que ela seja vista assim, podemos arriscar, dizendo que se trata de uma possível metaforização da metonímia. 1. “…to frighten our nation into chaos and retreat” (“…assustar nossa nação, criando-se um caos e nos afastando covardemente”) (NYT, 12/09/01). 2. “Our nation saw evil...” (“Nossa nação viu o mal...”) (NYT, 12/09/01). 3. “America has stood down enemies before…” (A América já enfrentou muito bem inimigos antes…”) (NYT, 12/09/01). 4. “Today America has experienced one of the greatest…” (“Hoje a América experimentou uma das maiores…”) (NYT, 11/09/01). Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 99 Sérgio N. de Carvalho 5. “…when America suffers,…” (“…quando a América sofre,...) (NYT, 12/09/01). 6. “The president repeatedly states that Iraq had failed to disarm” (“O presidente várias vezes repetiu que o Iraque não atendeu ao pedido de desarmamento”) (NYT, 07/03/02). 7. “…the Unites States might suffer” (“...os Estados Unidos podem sofrer”) (NYT, 07/03/02). 8. “…the United States decides to take military action” (“…os Estados Unidos decidem investir militarmente”) (NYT, 07/03/02). 9. “The United States is not as isolated as it might seem” (“Os Estados Unidos não estão tão isolados quanto possa parecer”) (NYT, 07/03/02). FICAR DE PÉ É AGIR MORALMENTE (TO STAND IS TO ACT MORALLY) Uma vez que a “nação-pessoa” se “levanta” contra o “inimigo”, ela está agindo moralmente. O “mal”, o “inimigo” deve ser vencido pelo “bem”. Portanto, ao eliminarmos o “inimigo”, estamos colaborando para que ele não ameace aqueles mais fracos. E contra o “inimigo”, não se questiona o seu extermínio. O “bem” tem que vencer o “mal”. 1. “And we stand together to win the war against terrorism” (“E levantamos juntos contra o inimigo para vencer a guerra contra o terrorismo”) (NYT, 12/09/01). 2. “America has stood down enemies before,…” (“A América já se levantou contra inimigos antes,...”) (NYT, 12/09/01). SUDDAN HUSSEIN É O MAL/IRAQUE É O MAL (SADDAM HUSSEIN IS EVIL /IRAQ IS EVIL) Esta metáfora, na verdade, é um desencadeamento da metáfora conceitual dominante no discurso político internacional de conflitos de guerra o CONTO DE FADAS. Na literatura, temos os seguintes personagens: o herói (aqui representado pelos Estados Unidos), a vítima (também os Estados Unidos e/ou a comunidade mundial, segundo o governo Bush e aliados) e o vilão (não se sabe bem quem, mas o governo Bush e aliados denominam de Bin Laden – Guerra do Afeganistão – e, 100 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora depois, armas de destruição em massa – nunca encontradas – ou Saddam Hussein – Guerra do Iraque). A escolha do vilão é importante para poder armar a história completa com todos os seus personagens. Dessa forma, o governo Bush e aliados justificam uma guerra moralmente, de modo que Saddam Hussein é o mal, o inimigo e, portanto, deve ser eliminado vivo ou morto como o próprio Bush afirmou na mídia. 1. “President Bush prepared the country tonight for possibly imminent military action against Iraq,… declaring that Saddam Hussein posed a direct threat to the security of the Unites States…” (“O Presidente Bush preparou o povo hoje à noite para uma possível investida militar contra o Iraque,... declarando que Saddam Hussein é uma ameaça à segurança dos Estados Unidos...”) (NYT, 07/03/03). 2. “… saying Mr. Hussein posed a comparable danger” (“… afirmando que o Sr. Hussein apresenta-se como um perigo”) (NYT, 07/03/03). 3. “… while portraying Iraq as the most urgent threat, Mr. Bush referred to …” (“… enquanto mostrava o Iraque como a ameaça mais iminente, o Sr. Bush se referiu a ...”) (NYT, 20/03/03). 4. But Mr. Bush said… on confronting Iraq and the dangers it poses” (“Mas o Sr. Bush afirmou… ao confrontar o Iraque e os perigos que ele representa” (NYT, 07/03/03). 5. “He’s a murderer”, he said...” (“Ele é um assassino”, ele disse...”) (NYT, 07/03/03). CONCLUSÃO Este trabalho tentou mostrar o papel da metáfora conceitual no discurso político em situações de conflitos de guerra. Devido à natureza do gênero presente (artigo jornalístico) e, consequentemente, a limitação deste espaço, não houve a intenção de explorar o assunto de forma mais aprofundada, como está sendo feito na pesquisa em andamento. Podemos observar, a partir deste estudo, que a metáfora tem uma influência cultural a ser considerada e devemos entender que o seu processo está de acordo com os interesses políticos do local. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 101 Sérgio N. de Carvalho Ressaltamos, também, que a metáfora desempenha uma função relevante ao criar significados que possam ser compartilhados por muitos, percepções e um certo grau de afirmação entre o público. Muito embora diferentes metáforas possam competir na guerra da aceitação por parte do público, a visão metafórica que é disseminada frequentemente desfruta de uma grande vantagem porque, em tempo de conflitos, o líder de uma nação é geralmente visto como um protetor contra os inimigos. Assim se apresentou o Presidente Bush e seus grandes aliados, que também exercem posição de destaque em seus governos. Falamos, ainda, da função persuasiva da metáfora, no sentido de que ela pode ser manipulada para criar efeitos persuasivos em situações de grande interesse do público. Entretanto, por experiência na análise de textos dessa natureza e como leitores competentes que somos, argumentamos que a maioria dos escritores/falantes não permitem que sejam eles mesmos julgados por essas metáforas. As metáforas, sem dúvida, são usadas com significados avaliativos por aqueles que tentam ser persuasivos, mas nós podemos, com certeza, exercer o nosso papel de questionadores e explorar esses usos para criticar os valores, julgamentos, atitudes, enfim, ideologias que estão por trás delas. Referências • BLACK, M. Models and metaphors. Ithaca: NY: Cornell U. Press, 1962. • BOERS, J. W. Language intensity, social intorversion and attitude change. Speech Monographs. n. 30, 1963, p. 345-352. • ______. Some correlates of language intensity. Quartely Journal of Speech. n. 50, 1964, p. 415-420. • BOSTDORFF, D. M. The presidency and the rhetoric of foreign crisis. Columbia: University of South Carolina Press, 1994. • BOYES-STONES, G. R. 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At the end, we also present the overall ideas that lie behind the cognitive approach to the “figure of speech” known as metonymy. KEYWORDS: metaphor, cognitive linguistics, conceptual domains. Resumen: Este artículo busca introducir al lector al abordaje innovador de la metáfora conceptual que está siendo desarrollada desde la década de los ochenta en el ámbito de la lingüística cognitiva. Al final, también se presentan brevemente las líneas generales de un tratamiento cognitivo para la “figura de lenguaje” conocida como metonimia. PALABRAS CLAVE : metáfora, lingüística cognitiva, dominios conceptuales. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 105 Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso PRIMEIRAS PALAVRAS Em certo sentido, a metáfora dispensa apresentações: é uma figura de linguagem presente em dez entre dez manuais escolares que contenham um capítulo, ou anexo, de Estilística. Também nos manuais de literatura brasileira, não há estudante que não a reencontre. Ficamos sabendo, por exemplo, que o poeta barroco emprega abundantemente esse recurso, ao passo que o poeta árcade o evita. De tão repetidos, exemplos paradigmáticos de metáfora, como (1) e (2) a seguir, já se tornaram clichês da sala de aula: (1) O jogador foi um leão em campo. (2) A Amazônia é o pulmão do mundo. Mas, afinal, como definir a metáfora? E, sobretudo, por que voltar, neste espaço, a um tema já tão repetido? A segunda resposta é simples. Resgatamos aqui esses assuntos porque, desde o início da década de 1980, um novo paradigma em linguística, surgido como alternativa à teoria gerativa, vem propondo uma maneira nova e estimulante de se pensar a metáfora (principalmente) e a metonímia: trata-se do arcabouço conhecido hoje como linguística cognitiva1 (LC). A segunda resposta, por seu turno, depende diretamente da primeira: em outras palavras, a definição de metáfora dependerá da perspectiva que se adote. O objetivo central deste artigo é apresentar essa perspectiva inovadora sobre a metáfora. Desenvolvida pioneiramente pelo linguista George Lakoff e pelo filósofo Mark Johnson. Tal perspectiva, que deu origem ao modelo hoje conhecido como Teoria da Metáfora Conceptual (TMC), foi exposta originalmente na obra seminal intitulada Metaphors we live by (1980).2 Depois dela, uma série de publicações desenvolveram as propostas originais, dentre elas, destacam-se Lakoff e Johnson (1980); Lakoff (1987); Johnson (1987); Lakoff e Turner (1989); Lakoff e Johnson (1999); Lakoff e Nuñez (2000). Para apresentar a TMC, começamos contrastando esse novo olhar com a visão tradicional da metáfora. Em seguida, buscaremos sistematizar a teoria, apresentando sua operacionalização no âmbito da pesquisa em LC. Por fim, fazemos um breve comentário sobre outras “figuras de linguagem”, como a personificação, a catacrese e a metonímia. 1 Introduções recentes, e em língua portuguesa, a essa teoria são Ferrari (2009) e Leitão de Almeida, Pinheiro, Lemos de Souza, Nascimento e Bernardo (2009). 2 Publicada pela Editora Mercado de Letras, a tradução para o português saiu em 2002 e ganhou o nome de Metáforas da vida cotidiana. É preciso dizer que as propostas apresentadas nesse livro têm pelo menos um precursor, conforme reconhecido por Lakoff (1993): trata-se de Michael Reddy, cujo artigo The Conduit Metaphor (REDDY, 1979) prenuncia ideias que serão depois retomadas e aprofundadas no desenvolvimento da TMC. 106 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista A METÁFORA: DA PERSPECTIVA TRADICIONAL À VISÃO COGNITIVISTA Conhecida pelo menos desde Aristóteles, a metáfora é provavelmente o tropos, ou figura de linguagem, mais celebrado. Vista como a própria essência da linguagem poética, já que possibilita afastá-la da (suposta) natureza denotacional rasteira da linguagem do dia a dia, ela diz o que as coisas de fato não são: pela metáfora, jogadores podem tornar-se leões. Por se tratar de uma conquista da imaginação, resultante frequentemente de insights criativos, assume-se normalmente que a metáfora não é para todos: dominá-la seria, nas palavras de Aristóteles, a “marca do gênio” (2008, p. 80). É a partir dessa concepção que se constrói a visão tradicional da metáfora como atributo exclusivo de textos expressivos especiais, sobretudo os literários. Para ilustrar esse ponto, Leitão de Almeida, Pinheiro, Lemos de Souza e Nascimento (2009) dão os seguintes exemplos: (3) “Salvo a grandiloquência de uma cheia / lhe impondo interina outra linguagem, / um rio precisa de muita água em fios / para que todos os poços se enfrasem.” (João Cabral de Melo Neto) (4) João entrou em / está em / saiu da depressão No primeiro caso, aparece uma metáfora literária, por meio da qual o discurso fluente é caracterizado como um rio, ao mesmo tempo em que a fala fragmentada é retratada como poços de “água paralítica”. No segundo caso, porém, não estamos diante de nenhum uso linguístico especialmente expressivo; trata-se, pelo contrário, de um uso banal, corriqueiro. Apesar disso, a mesma relação analógica pode ser verificada. Se em (3) o discurso é comparado a um rio, em (4) um estado – especificamente, depressão – é entendido como um lugar físico. Como poderemos constatar repetidamente na próxima seção, exemplos como estes mostram que a metáfora está fortemente presente na linguagem ordinária. Em suma, vimos até aqui duas diferenças entre as perspectivas tradicional e cognitivista da metáfora. Em primeiro lugar, a LC não enxerga essa “figura” como índices de genialidade; pelo contrário, ela é produzida corriqueiramente por qualquer falante que não tenha determinados déficits de linguagem. A segunda diferença, certamente relacionada à primeira, diz respeito ao fato de que, do ponto de vista da LC, a metáfora não pertence apenas à esfera dos textos literários; pelo contrário, está bastante disseminada pela linguagem ordinária, como os exemplos acima devem ter deixado claro. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 107 Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso As diferenças, porém, não param por aí. Uma das questões mais cruciais diz respeito ao locus da metáfora. A perspectiva tradicional nos ensina que se trata de uma figura de linguagem – vale dizer, de um recurso linguístico especial que pode, opcionalmente, ser empregado para enriquecer estilisticamente um texto, tornando-o, talvez, menos rasteiro ou trivial. Trata-se, portanto, de um adorno ou ornamento linguístico – e, como tal, perfeitamente dispensável. O quadro pintado pela LC, por sua vez, é inteiramente outro. De um ponto de vista cognitivista, a metáfora é, antes, um processo mental. Ela reside, portanto, primariamente, no pensamento, e apenas secundariamente na linguagem. Além disso, ela muitas vezes não é opcional, mas um recurso imprescindível para estruturar e organizar o próprio sistema conceptual humano. Nesse sentido, Lakoff (1993) faz questão de distinguir metáfora e expressões metafóricas: enquanto aquela é a relação analógica inscrita na mente, estas são as manifestações ou concretizações linguísticas particulares. Assim, entende-se que sentenças como (4) evidenciam a existência de uma relação metafórica mental que pode ser formulada linguisticamente como ESTADOS SÃO LUGARES (no caso, como se viu, o “estado” é a depressão, e a conceptualização de “lugar” é denunciada pela presença de verbos locativos). Essa metáfora subjacente pode então motivar uma série de expressões metafóricas: (5) Maria entrou em / está em / saiu da depressão. (6) Ela esstá num estado de nervos que só vendo. (7) Ele continua em pânico por causa do concurso. (8) Carlinhos permanece em coma. O quadro a seguir sintetiza as diferenças entre as perspectivas tradicional e cognitivista da metáfora: (9) VISÃO TRADICIONAL São a “marca do gênio”. Específicas de textos expressivos especiais, sobretudo literários. Fenômeno da linguagem. Adornos, ornamentos linguísticos. 108 VISÃO COGNITIVISTA São produzidas por todos os indivíduos. Fortemente presente também na linguagem ordinária. Fenômeno primariamente do pensamento. Processos centrais da cognição humana. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista Em suma, apresentamos, nesta seção, os fundamentos de uma nova visão da metáfora, que vem contrariar, em muitos pontos, a perspectiva tradicional. Na próxima seção, veremos como a LC formaliza teoricamente esse processo mental. POR UMA TEORIA DA METÁFORA Dissemos anteriormente que o livro seminal da TMC é a obra Metaphors we live by (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Como se vê, o próprio título do livro ressalta exatamente um dos aspectos da TMC para o qual chamamos a atenção na seção anterior: o fato de que a metáfora está presente na linguagem ordinária. Com efeito, a literatura especializada inventaria diversas metáforas que estruturam nosso sistema conceptual e materializam-se em uma série de expressões metafóricas concretas. Algumas dessas metáforas podem ser vistas nos exemplos que seguem. (10) DISCUSSÃO É GUERRA a. Seus argumentos são indefensáveis. b. Eu destruí o argumento dele. c. Ela sempre perde a discussão. d. Ele atacou os pontos fracos da minha argumentação. (11) TEORIAS SÃO CONSTRUÇÕES a. Lakoff e Johnson (1980) apresentam os fundamentos da TMC. b. Atenção, pais preocupados com o problema: Albert Einstein só aprendeu a falar aos 3 anos de idade. Aos 26, começava a ergguer a Teoria da Relatividade.3 c. Copérnico demoliu a teoria geocêntrica do sistema solar e tornou-se logo óbvio que “a mãe Terra” não é nada mais do que um grãozinho da poeira cósmica girando na imensidão do espaço e do tempo.4 O formalismo da TMC baseia-se na noção de domínios conceituais. Essencialmente, metáforas são relações analógicas estabelecidas entre dois domínios distintos. Tais relações são chamadas de mapeamentos (uma tradução mais literal do inglês mappings) ou projeções conceptuais. Quanto aos dois domínios distintos, em (6) trata-se de discussão e guerra; em (7), teorias científicas e construções arquitetônicas. 3 Fonte: Revista Época, disponível em:<http://epoca.globo.com/edic/19980727/perisant.htm>. Acesso em: mar. 2010. 4 Fonte: Cérebro e mente, disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n17/opinion/millenium_p.html>. Acesso em: mar. 2010. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 109 Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso Para que haja uma metáfora, é necessário que um dos domínios seja, de alguma forma, mais básico ou familiar que o outro. O mecanismo se baseia, precisamente, neste princípio: compreendemos (organizamos, estruturamos, concebemos) ideias menos familiares a partir das noções que nos são mais básicas. Esse domínio mais básico, que serve de ponto de partida para a metáfora, tem sido chamado de domínio-fonte (source domain), ao passo que o outro, conceptualizado por meio do primeiro, é conhecido como domínio-alvo (target domain). Assim, guerra e construção são domínios-fonte, ao passo que discussão e teorias são domínios-alvo. Em outras palavras, as noções de discussão e de teoria uções científica são conceptualizadas a partir das ideias de guerra e de constru arquitetônicas, respectivamente. Uma das metáforas mais recorrentes é A VIDA É UMA TRAVESSIA. Para Lakoff (1993), esta é uma formulação mais geral, que abrange duas metáforas particulares – O AMOR É UMA TRAVESSIA e A CARREIRA É UMA TRAVESSIA. De fato, essa formulação mais geral é necessária, já que a metáfora não se aplica apenas aos domínios amoroso e profissional, mas a uma série de domínios particulares: (12) A VIDA É UMA TRAVESSIA a. Passamos novamente a incomodar e fomos chegando sorrateiramente. Viramos puros garanhões na reta final (Pô, quem poderia imaginar que disputaríamos o título?). O fato é que chegamos lá... estamos a um passo do Olimpo...5 b. Mesmo enfrentando dificuldades, é preciso deixar os problemas para trás e seguir em frente. Sem dúvida, metáforas convencionalizadas na linguagem ordinária podem ser exploradas literariamente. É o que faz o poeta barroco Gregório de Matos no soneto abaixo, construído a partir da metáfora em (13). (13) Carregado de mim ando no mundo, E o grande peso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo. 5 Fonte: blogue Flamengo Eterno, disponível em: <http://flaeterno.wordpress.com/author/flaboteco/>. Acesso em: mar. 2010. 110 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bestas andam juntas mais ousadas, Do que anda só o engenho mais profundo. Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos. O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo, mar de enganos, Ser louco c’os demais, que só, sisudo. Note-se como, neste poema, a vida é conceptualizada, metaforicamente, como um caminho, uma travessia. A seleção lexical denuncia a metáfora subjacente: “ando”, “passadas”, “vias desusadas”, “seguir”, “imundo caminho”, “pisadas”, “andam”, “anda”, “atalho”. É interessante observar como, em pelo menos um momento, aparece uma metáfora conflitante, na qual a vida deixa de ser entendida como uma caminhada vertical e passa a ser concebida como movimento vertical: “e vou-me ao fundo”. Aqui, está presente outra metáfora recorrentemente apontada na literatura especializada (por exemplo: LAKOFF; JOHNSON, 1980): BOM É PARA CIMA, RUIM É PARA BAIXO, concretizada em expressões metafóricas como as seguintes: (14) a. Estou meio para baixo hoje. b. Ele caiu em desgraça. c. Você precisa dar uma levantada nesse humor. Em resumo: sob a ótica da TMC, a metáfora é entendida como um processo mental específico, a saber, a projeção entre domínios díspares. Tipicamente, as metáforas são apresentadas sob a forma X É Y, em que X é o domínio-alvo e Y, o domínio-fonte – este, sempre mais básico ou familiar que aquele. Uma das maiores evidências da realidade psicológica dessas projeções mentais é a forte presença, na linguagem ordinária, de expressões metafóricas relacionadas entre si – como todos os exemplos em (10), em (11) e em (12) ou em (13). Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 111 Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE OUTRAS “FIGURAS DE LINGUAGEM” A metáfora é, possivelmente, a mais celebrada das figuras de linguagem. Nossa tradição escolar, porém, nos brinda com um sem-número de outras figuras. Dentre elas, algumas estão intimamente ligadas à metáfora. De um lado, estão a comparação, a personificação e a catacrese. De outro, a metonímia. No primeiro grupo, estão recursos de estilo que não se diferenciam, na prática, da metáfora. No caso da comparação, a própria estilística tradicional reconhece que a única distinção está associada à presença ou ausência de um conector comparativo explícito. A personificação, por sua vez, pode ser entendida como uma metáfora cujo domínio-fonte é sempre um ser humano. A catacrese, por sua vez, consiste em metáforas convencionalizadas, às vezes totalmente esmaecidas da consciência do falante, e empregadas para a designação de um objeto (asa da xícara, pé da mesa) ou ação (embarcar no trem). O caso da metonímia é um pouco diferente. Aqui, trata-se, de fato, de um processo mental diverso – e que também vem recebendo atenção dentro do quadro teórico da LC, ainda que não tanto quanto a metáfora. Na literatura cognitivista, tratam da metonímia Lakoff (1987), Kövecses (2002), Panther e Thornburg (2003) e Croft (2003). Fundamentalmente, a metonímia se aproxima da metáfora por também envolver uma projeção conceptual. A diferença, porém, é que nesta a projeção se dá, como já vimos, entre domínios diferentes (interdominial), ao passo que naquela a projeção ocorre dentro de um mesmo domínio (intradominial). Isso fica claro nos exemplos a seguir: (15) Ele já comeu três pratos! (16) Onde você está estacionado? A sentença (15) envolve o domínio da refeição, que inclui comida, bebida, pratos, talheres etc. Assim, quando se substitui o referente comida pelo referente prato, está sendo feita uma substituição no interior de um mesmo domínio conceptual. Da mesma forma, (16) envolve o domínio do automóvel, que inclui o motorista, as peças, o ano de fabricação etc. Desse modo, o deslocamento conceptual, mais uma vez, ocorre dentro do mesmo domínio – do carro para o motorista. 112 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista A oposição entre projeção inter e intradominial não é, contudo, a única diferença entre a metáfora e a metonímia. Outros aspectos também distinguem os dois processos. Por exemplo, a metáfora é um mecanismo que permite a conceitualização/compreensão de conceitos menos familiares ou mais abstratos, ao passo que a metonímia está envolvida no direcionamento da atenção. Aqui, infelizmente, não será possível apresentar com mais detalhes uma teoria da metonímia. Para o leitor interessado, recomendamos a bibliografia citada anteriormente. Para uma discussão específica sobre as diferenças entre metonímia e metáfora, sugerimos Croft (2003). CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, tivemos a preocupação de apresentar ao leitor pouco familiarizado com a linguística cognitiva uma nova maneira de compreender a “figura de linguagem” conhecida como metáfora. Fundamentalmente, essa mudança de perspectiva implica considerar a linguagem como instrumento imprescindível na estruturação do sistema conceptual humano, o que se reflete no vastíssimo número de expressões metafóricas encontradas na linguagem ordinária. De agora em diante, convidamos os leitores a explorarem a bibliografia indicada ao longo deste artigo, de maneira a enveredar pelos caminhos cognitivistas da metáfora e, não menos importante, da metonímia. Referências • ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. • BLOGUE FLAMENGO ETERNO. Chegou o dia. Rio de Janeiro: 2009. Disponível em: <http://flaeterno.wordpress.com/author/flaboteco/>. Acesso em: mar. 2010. Não paginado. • CROFT, W. The role domain in the interpretation of metaphors and metonymies. 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Disponível em: <http://epoca.globo.com/edic/19980727/perisant.htm>. Acesso em: mar. 2010. Não paginado. 114 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 DIRETRIZES PARA SUBMETER TRABALHOS 1. Os trabalhos devem ser inéditos e originais. 2. A Revista INTERSIGNOS aceita publicar trabalhos nos seguintes formatos discursivos: artigo (entre 10 e 15 páginas), ensaio (entre 10 e 15 páginas), relato ou resumo de pesquisa (entre 5 e 10 páginas). A Revista também publica, a cada edição, uma entrevista com algum expoente na área (entre 3 e 5 páginas). 3. Ilustrações, tabelas, gráficos, desenhos, fotografias ou outros recursos visuais devem ser encaminhados em CD-R separado, enumerados com algarismos arábicos, com as respectivas legendas e a indicação, no texto, do lugar em que devem ser inseridos. 4. Os trabalhos serão apreciados pelo Conselho Editorial, que poderá sugerir reformulações, a fim de que atendam à proposta editorial da publicação. Os textos aprovados são revisados e corrigidos ou adequados aos padrões editoriais. Qualquer modificação significativa será previamente apresentada ao autor, para sua consideração. Os trabalhos que não atendam às orientações serão devolvidos para correção e ajuste. Aqueles que não forem aceitos pelo Conselho não serão devolvidos. Em qualquer dos casos, o autor será comunicado sobre o parecer do Conselho Editorial. A revisão tipográfica é de responsabilidade da equipe da revista. 5. O autor do texto aprovado deverá ceder os direitos autorais à Waldyr Lima Editora por meio de carta de cessão de direitos (cujo modelo será fornecido pela Faculdade CCAA) devidamente assinada. Fica permitida a reprodução total ou parcial dos trabalhos aceitos para publicação, desde que citada a fonte. Os autores têm exclusiva responsabilidade pelos trabalhos por eles assinados e pelas opiniões que expressem, direta ou indiretamente, em seus respectivos textos. 6. Os trabalhos devem ser enviados por e-mail ou CD para [email protected] e, em texto impresso, via SEDEX, para Av. Marechal Rondon 1.460, Riachuelo, Rio de Janeiro – RJ, CEP: 20.950-202, aos cuidados dos editores. Orientações e normas técnicas de apresentação do trabalho: 1. Formatação dos textos: programa Word, papel A4, fonte Arial, corpo 12, espaço entre linhas 1,5 (um e meio), texto justificado, 1cm de recuo no início do parágrafo, 3cm de margens esquerda e superior, 2cm de margens direita e inferior, páginas numeradas. Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3 115 Estrutura dos trabalhos: 1. Elementos pré-textuais: a) Título: primeira linha, caixa-alta, conciso, objetivo e claro. Se houver subtítulo, deve vir na linha seguinte, também em caixa-alta; b) Nome e identificação do autor: duas linhas abaixo do título, alinhados à margem esquerda. Após o nome do autor, indicar formação acadêmica, instituição à qual está vinculado e e-mail para contato; c) Resumo do trabalho: três linhas abaixo da identificação do autor; entre 5 (cinco) e 10 (dez) linhas; versão em português, inglês e espanhol; colocar a palavra RESUMO em caixa-alta, seguida de dois-pontos; texto justificado, espaço simples; texto objetivo, conciso e claro, redigido de acordo com as normas de formatação textual da ABNT; d) três palavras-chave que expressem os conceitos centrais do texto, em português, inglês e espanhol. 2. Elementos textuais: a) Alinhamento: justificado em todo o texto; b) Espaçamento: 1,5 (um e meio) entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto (citações diretas longas, tabelas, ilustrações, etc.); c) Citações: i) citação indireta (paráfrase): no corpo do texto, indicando-se o ano de publicação da obra, entre parênteses, após a menção do nome do autor; ii) citação direta: no corpo do texto, até 3 linhas, entre aspas. Acima de 3 linhas, fora do corpo do texto, em parágrafo separado, com um recuo de 4cm a partir da margem esquerda, espaço entre linhas simples e em corpo 10. Após as citações, indicam-se, entre parênteses, nome do autor em caixa-alta, ano de publicação da obra e número da página onde se encontra a citação. 3. Elementos pós-textuais: a) Referências: somente aquelas efetivamente mencionadas no texto, e conforme normas da ABNT. 116 Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3