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ISSN 1982-2685
Rio de Janeiro
2010
InterSignos
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
FACULDADE CCAA
Diretora Geral • Eliane Faial
Diretora Administrativa • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado
Diretora Acadêmica • Marcia Moraes
Editores
María Paz Pizarro • Coordenadora do Curso de Letras da Faculdade CCAA
([email protected])
Ricardo Pinheiro
([email protected])
Conselho Consultivo
Peter McLaren • UCLA – EUA
Henry Giroux • McMaster University – Canadá
Marcia Paraquett • Universidade Federal da Bahia
Conselho Editorial da Faculdade CCAA
Angélica Castilho
Flavia Ferreira dos Santos
Luis Carlos de Morais Júnior
Marcia Moraes
Marcos Freitas
Maria Lúcia Monteiro
Ricardo Teixeira
Roberto Loureiro
Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.
INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
V. 3, Out 2010, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2010.
pg. 116
Anual
ISSN: 1982-2685
1. Literatura. 2. Linguística.
CDD 800
Esta obra segue as normas estabelecidas no Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que prevê a padronização do
idioma nos países lusófonos.
Editoração e Impressão
CCAA Editora
Editora Gerencial
Sylene Matturo
Capa
Bruno Gomes
Projeto Gráfico
Juliana Andrade
Editoração Eletrônica
Paulo Aguiar de Souza
Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto
Rita Cyntrão
Revisão Editorial
Luís Antônio Guimarães
Revisão de Língua Inglesa
Ricardo Pinheiro
Revisão de Língua Espanhola
María Paz Pizarro
Faculdade CCAA
Curso de Letras
INTERSIGNOS
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
Periodicidade
Anual
Assinatura
R$ 40,00
Endereço para correspondência
Avenida Marechal Rondon 1.460 • Riachuelo
Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202
Tel.: (21) 2156-5000
www.faculdadeccaa.edu.br
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial.
Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus/suas autores/autoras.
A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica anual da Faculdade CCAA, tem
como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, com
uma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica um
espaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações.
INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua
Portuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, dos
cursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário linguístico-educacional,
trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área.
A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicada
pela CCAA Editora.
Editorial
Carmen Lúcia Tindó Secco: diálogos com as
mágicas letras africanas
Gardênia de Carvalho Rocha • Faculdade CCAA
Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
Renata Feital • Faculdade CCAA, UVA, UCM
O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a
poesia finissecular
Antonio Andrade • UFRJ
Herói clariceano
Angélica Castilho • Faculdade CCAA
Ideologicamente violento: uma questão de significado
Roberto Borges • CEFET/RJ
Modernização espanhola: os prósperos anos 20
e a conturbada década de 30
Flavia Ferreira dos Santos • Faculdade CCAA
Metáfora, linguagem e cognição: a visão da
guerra através da metáfora
Sérgio N. de Carvalho • Faculdade CCAA, ILE, UERJ, Escola Naval
Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista
Diogo Pinheiro • UFFS
Karen Sampaio Braga Alonso • Faculdade CCAA
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EDITORIAL
Para a Matemática, o número três possui três características: é um número
natural, o segundo número primo e o segundo natural ímpar. Em termos simbólicos,
o número três pode representar a união, o equilíbrio e a democracia. Para este
terceiro volume da Revista InterSignos, três objetivos “matemático-simbólicos” se
apresentaram: manter o padrão de qualidade que perpassou os artigos publicados
nos dois números anteriores; promover a união entre diferentes (embora complementares)
saberes das áreas das Ciências Humanas e abrir um espaço democrático ímpar, no
qual a heterogeneidade é bem-vinda, válida e relevante. Três objetivos para legar à
comunidade acadêmico-científica e ao público em geral o terceiro número da Revista
Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA.
Acreditamos na capacidade da Literatura de ampliar visões do mundo e renovar
as relações entre culturas, minimizando o senso comum e o preconceito. Coadunando
com nosso pensamento, o presente volume da InterSignos enceta com Carmen Lucia
Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas. Nessa entrevista, a notável
investigadora das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa tece laços e fatos sobre
as produções literárias de cinco países do continente africano, fazendo uma autêntica
“pangeia”: o (re)encontro entre terras e vozes do Brasil e de África.
Após a entrevista-aula, segue o artigo de Renata Feital: Trauma e testemunho nas
memórias de Ariel Dorfman. Em curiosa consonância, o autor em foco apresenta o
número três em sua vida intelectual e pessoal: é pensador, professor e escritor;
nasceu na Argentina, viveu por um tempo nos Estados Unidos e foi morar no Chile,
onde presenciou o golpe de Estado de 1973. O texto perscruta as questões do trauma
e da memória a partir da autobiografia de um “homem em trânsito”, híbrido e
soçobrando entre duas línguas e culturas.
O artigo seguinte traz preciosas considerações de Antonio Andrade acerca da
poesia do fim do século XIX. Em O tema poético da luz em Rimbaud: diálogos com a
poesia finissecular, o pesquisador faz uma leitura do signo luz na poesia de Arthur
Rimbaud e propõe um diálogo com dois poetas brasileiros de épocas distintas: o
modernista Mário de Andrade e o contemporâneo Armando Freitas Filho.
O próximo artigo versa sobre Clarice Lispector: Herói clariceano. Angélica Castilho
assevera que as rupturas “com a estabilidade” e com “as verdades construídas” são
elementos constantes nas trajetórias das personagens criadas por Lispector. Tais
rupturas são escolhas que sempre apontam para a tragicidade das suas vidas.
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Editorial
Depois de três textos sobre Literatura, o espaço é destinado a dois artigos
voltados para sociedade. O primeiro artigo, de autoria de Roberto Borges, trata do
significado que a palavra “violência” ganha em duas escolas públicas do Rio de Janeiro.
Em Ideologicamente violento: uma questão de significado, o autor relata parte de uma
pesquisa realizada com estudantes de escolas localizadas em áreas marcadas pela
pobreza (em sentido amplo). O objetivo é entender como as palavras são ressignificadas
mediante as situações de interação. Os resultados são bastante reveladores. O artigo
seguinte é Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30,
assinado por Flavia Ferreira dos Santos. A autora revisa duas décadas de uma história
pouco conhecida: a Espanha, numa tentativa de modernização de suas estruturas
sociopolíticas e culturais, encontra a Guerra Civil e a ditadura do General Franco
como “trágicos desfechos” desse longo processo.
Encerrando este volume, dois artigos enveredam por outra rica seara de estudos:
a metáfora conceptual. Sérgio N. de Carvalho nos apresenta Metáfora, linguagem e
cognição: a visão da guerra através da metáfora. Com olhar aguçado e usando o jornal
The New York Times como referência, o pesquisador buscou citações de políticos
norte-americanos e analisou as metáforas conceptuais nelas presentes. O período
escolhido foi aquele envolvendo o 11 de setembro de 2001. Em seguida, Diogo Pinheiro
e Karen Sampaio Braga Alonso nos brindam com Um Novo olhar sobre a metáfora:
a abordagem cognitivista. Os dedicados pesquisadores apresentam uma visão
panorâmica sobre a metáfora e a metonímia em perspectiva cognitivista, dando-lhes
um caráter maior, mais importante e democrático do que “simples figuras de linguagem”
usadas apenas para “enfeitar” os discursos literários.
Desde o primeiro número, o intuito da Revista InterSignos é a difusão de
conhecimento para a progressão de saberes. Estamos convictos de que a comunidade
acadêmico-científica novamente encontrará relevantes contribuições às pesquisas no
campo das Ciências Humanas nesta terceira edição.
Em oportuno, agradecemos a Direção da Faculdade CCAA pelo vigoroso e incessante
apoio dado para a publicação deste material. Também manifestamos nossa veemente
gratidão a todos que não medem esforços para concretizar mais um volume: os
Corpos Docente e Discente do Curso de Letras, o Conselho Editorial e Consultivo e
a equipe responsável pela elaboração editorial. A todos vocês, nosso “muito obrigado”.
E, aos leitores, desejamos boas “descobertas”.
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CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO:
DIÁLOGOS COM AS MÁGICAS
LETRAS AFRICANAS
Gardênia de Carvalho Rocha
Estudante do Curso de Letras (Português-Inglês) da Faculdade CCAA
contato: [email protected]
Quando se fala em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, este nome não
pode faltar: Carmen Lucia Tindó Secco. Doutora em Letras pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), ela é uma das mais conceituadas pesquisadoras dos estudos
literários africanos em língua portuguesa, sendo referência no Brasil, em Portugal e
no continente africano. Referência aqui e alhures, ela estabelece diálogos entre Brasil
e África. São letras e laços.
Dona de uma escrita sedutora e envolvente, seus ensaios críticos primam pela
originalidade, pela coerência e pelo fôlego. São nítidas a profunda investigação e a
seriedade de que a pesquisadora lança mão em seu mergulho nas letras africanas.
Tanta paixão e dedicação à magia das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa,
tanto saber e tanto sabor levam seus leitores, estudantes, ou mesmo ouvintes em
palestras à unânime sensação: o profundo encantamento.
Carmen defende que há magia (no sentido de sedução) nas letras africanas. Nós,
decerto, concordamos plenamente e acrescentamos: ela é uma de suas condutoras.
Seus diálogos com/sobre os estudos literários seduzem e despertam o prazer e a
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Gardênia de Carvalho Rocha
vontade de conhecer essas literaturas de países que estão muito mais próximos
do que imaginamos. Ler para conhecer. Conhecer para saber. Saber para erradicar o
preconceito e o olhar contaminado de lugares-comuns sobre São Tomé e Príncipe,
Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau, países africanos que a incansável
investigadora conhece, lugares onde fez amigos e teceu teias de união. Letras e laços.
Com a implementação da Lei 10.639/03 (hoje 11.645/08), surge uma tentativa de
erradicar o preconceito e reconhecer (sem dar margens a “exotismos”) a heterogeneidade
que nos compõe. A Lei prevê o estudo obrigatório da história e da cultura afro-brasileira
e indígena no âmbito escolar, tanto no Ensino Fundamental quanto no Médio. A
investigadora, profunda conhecedora das letras, histórias e culturas africanas, reconhece
a importância da Lei, mas vaticina: ainda há poucos docentes especializados para
ensinarem África e, por isso, a Lei pode demorar a ganhar existência concreta.
Concordamos, certamente, com a pesquisadora. No entanto, acreditamos que
suas muitas contribuições acadêmico-científicas (artigos, palestras, orientações de
mestrado e doutorado) sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa são
verdadeiros mananciais para os docentes interessados e/ou comprometidos com as
relações “saber-conhecer” e “conhecer-mudar”. Todos podemos contar com a dedicação
e a magia desta renomada e relevante pesquisadora. Basta nos deixarmos levar pela
magia de seus textos, que, citando Mia Couto (escritor moçambicano sobre quem
Carmen já produziu vários estudos), teremos a “incurável doença de sonhar”.
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Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
A ENTREVISTA
1 Gardênia Rocha – A Lei 10.639, aprovada no Brasil em 2003, estabelece a obrigatoriedade
da presença da história e cultura afro-brasileira no currículo oficial dos estabelecimentos
de Ensino Médio e Fundamental do país. Antes, conhecimentos como a história da África
e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira, o negro na formação
da sociedade nacional, a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à história do Brasil não faziam parte da formação acadêmica dos
brasileiros. Como uma grande estudiosa da Literatura Africana, de que maneira você
avalia essa lei?
CARMEN – A Lei veio, em grande parte, corrigir as discriminações e os silêncios. Mas ainda
falta muito para ela existir concretamente, pois não há, ainda, muitos docentes especializados
para ensinarem África.
2 GR – Vamos falar um pouco daquilo que parece ser uma paixão para a senhora: a
Literatura Africana. Ela ainda é bastante desconhecida no Brasil. Existe, em seu ver, carência
de material específico para os estudos em Literatura Africana?
CARMEN – Primeiramente, é importante ressaltar que, na verdade, não há uma Literatura
Africana apenas. A África é um continente múltiplo, formado por muitos países, e cada
um apresenta suas literaturas. Na UFRJ, eu trabalho apenas com cinco Literaturas Africanas,
as daqueles países em que o português é falado: Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe,
Angola, Moçambique e Cabo Verde. Eu prefiro a expressão Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa. Em segundo lugar, devemos lembrar que essas literaturas são jovens ainda.
Possuem, aproximadamente, apenas 160 anos de existência.
3 GR – Li, recentemente, que os primeiros textos datam da segunda metade do século XIX.
Essa informação procede?
CARMEN – Sim, mas essas literaturas começaram a adquirir maioridade somente no
século XX: na década de 1930, em Cabo Verde (com Claridade), e nos anos 1950, em Angola
(com Mensagem). Naquele momento, elas se desprenderam da literatura portuguesa trazida
como paradigma pelos colonizadores. Por conta dos seus diferenciados contextos socioculturais,
essas literaturas nem sempre se desenvolveram em conjunto. Ainda assim, elas são, nos
meios universitários ocidentais, geralmente estudadas sob uma denominação abrangente
que envolve a produção literária das ex-colônias de Portugal na África: Moçambique, São
Tomé e Príncipe, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau. O ideal é que essas literaturas fossem
abordadas individualmente: Literatura de Moçambique, Literatura de Cabo Verde, Literatura
de Angola etc.
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Gardênia de Carvalho Rocha
4 GR – Isso não demandaria um grande número de professores?
CARMEN – Certamente, e isso é outro problema, porque, aqui no Brasil, há uma enorme
carência de docentes especializados nessa área de estudos.
5 GR – Voltando à questão das Literaturas Africanas, a senhora disse que elas ainda são
muito jovens, tendo, aproximadamente, 160 anos. É possível, então, afirmar que exista uma
tradição literária consolidada na África?
CARMEN – Claro que já existe. Mas, novamente, devo lembrar que falar em África é muito
geral, pois há várias Áfricas. O continente africano é enorme. Nas Literaturas de Angola,
Moçambique e Cabo Verde já existe uma consolidação, existem sistemas literários consolidados
nesses países, mesmo sendo literaturas um tanto recentes.
6 GR – Nessas literaturas, quais seriam os principais autores?
CARMEN – São muitos, mas posso mencionar, de saída: Pepetela, Luandino Vieira, Craveirinha,
Mia Couto, Ondjaki, Agualusa, Maimona, Boaventura Cardoso, Manuel Rui, José Luís Mendonça,
Jorge Barbosa, Mário Lúcio, Corsino Fortes, Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho, além,
é claro, de muitos outros.
7 GR – Tenho percebido o aumento de interesse pelas Literaturas Africanas entre os
estudantes universitários brasileiros. Entretanto, parece haver certa dificuldade em obter
material para pesquisa. Para a senhora, isso tem alguma relação com o fato de essa disciplina
ter sido retirada do currículo das universidades brasileiras no período militar?
CARMEN – Creio que sim. As Literaturas Africanas nasceram no bojo do processo
revolucionário nos países africanos, cuja ideologia sustentadora de suas lutas de libertação
era marxista. Assim, o Governo Militar brasileiro não admitia que essas literaturas fossem
ensinadas e lidas no Brasil. Mas houve, ainda, outras fortes razões que marginalizaram essas
letras: o racismo, os preconceitos contra os negros. Uma literatura que falava dos negros ou
da África não entrava nos currículos, uma vez que os negros e os africanos eram considerados
inferiores. Hoje, com o neoliberalismo, continua a haver um bloqueio editorial. O motivo é
que essas literaturas contribuem para a conscientização histórica. Como isso não interessa
ao sistema globalizado, as editoras preferem publicar livros de autoajuda, mantendo o
boicote a essas literaturas.
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Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
8 GR – A pouca divulgação das Literaturas Africanas no Brasil dá margem a visões equivocadas
a respeito dessas literaturas?
CARMEN – Esta questão é muito ampla... É claro que muitos equívocos são gerados pelo
profundo desconhecimento que cerca não só essas literaturas, como também a África em
geral. Esta, no Brasil, encontra-se ainda envolta em muito misticismo e em visões mitificadoras.
Muitos pensam que a África é uma só, e, na verdade, ela é múltipla, multifacetada,
complexa etnicamente. A Conferência de Berlim traçou o mapa dos países africanos,
sem respeitar os contornos étnicos. Daí ser o continente africano um território esgarçado,
mutilado. Isso tudo se reflete nos textos literários africanos. As Literaturas Africanas são
também diversas: há as escritas em francês, em inglês, em português e, agora, várias obras
começam a ser escritas também em línguas africanas já sistematizadas. Claro que estas têm
dificuldade de penetração em países não africanos e mesmo em países africanos, pois nem
todos os africanos falam as mesmas línguas. O problema linguístico é complexo e plural.
Já existem algumas edições bilíngues, o que assinala uma certa valorização de idiomas que
foram discriminados durante séculos pelas colonizações que passaram pela África.
9 GR – De que maneira essas literaturas estão inseridas no cenário mundial? Que reflexões
a senhora faria sobre seu valor estético das Literaturas Africanas?
CARMEN – Mais uma questão muito ampla. Como fiz na resposta anterior, tentarei
responder de modo breve, o que, com certeza, vai reduzir muito a resposta à questão por
você formulada. Mas, espero que minhas poucas palavras, pelo menos, levantem algumas
pistas que despertem reflexões. Muitas obras africanas têm grande valor estético e são
reconhecidas mundialmente, tanto que receberam prêmios: Wole Soyinka, da Nigéria, foi
Prêmio Nobel; José Craveirinha, de Moçambique, foi Prêmio Camões em 1991; Pepetela, de
Angola, recebeu o Prêmio Camões em 1997. Pepetela, Mia Couto, Paula Tavares, Ruy Duarte
de Carvalho, Agualusa, entre outros, são alguns dos autores africanos premiados e
traduzidos no exterior. As obras desses escritores apresentam grande valor estético. Embora
revelem contornos africanos, procurando afirmar traços identitários de seus respectivos
países, esses escritores ultrapassam os paradigmas da chamada literatura da “angolanidade”
ou da “moçambicanidade”, pois operam artesanalmente com a linguagem e trabalham
a estrutura de seus romances e/ou poemas com modernas técnicas, buscando um
distanciamento dos lugares-comuns para encontrarem uma plenitude estética universal. As
obras desses autores podem ser analisadas com o apoio de sofisticadas teorias literárias lidas
e aplicadas em Universidades do mundo todo, o que leva a afirmar que, se vencidas as
discriminações ainda por elas sofridas, essas literaturas poderão ser, de um modo geral,
inseridas no panorama literário mundial.
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Gardênia de Carvalho Rocha
10 GR – A senhora percebe preconceito no meio acadêmico? Ainda há preconceito em
relação aos estudos africanos?
CARMEN – Infelizmente, em alguns aspectos e áreas, ainda há, sim. Isso se deve, na minha
opinião, ao fato de essas literaturas terem se afirmado no bojo do processo revolucionário
marxista que libertou Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe, além do racismo e marginalizações e exclusões contra os negros, o que censurou o
ensino das literaturas africanas por muito tempo no Brasil. Mas, com a Lei 10.639 e todo o
trabalho que desenvolvemos há 15 anos na Faculdade de Letras da UFRJ, em nossa unidade
esses preconceitos diminuíram sensivelmente. Contudo, a discriminação em relação às
Literaturas Africanas se revela pela ausência de uma política sistemática de concessão de
vagas para concursos públicos para professores de Literaturas Africanas na UFRJ. O nosso
Setor de Literaturas Africanas só conta com duas docentes efetivas e um substituto. Há
necessidade de mais docentes, pois a área vem crescendo, devido ao interesse despertado na
sociedade brasileira pela Lei 10.639.
11 GR – Sei que é uma pergunta ampla, mas, quais são as principais características e as
peculiaridades da Literatura Africana?
CARMEN – Como já lhe disse, são Literaturas Africanas e não uma só Literatura Africana.
Logo, as características variam. Para você ter uma ideia dessas Literaturas, vou traçar
um amplo painel delas. Em Angola e Moçambique, nos anos 1950, surge uma poesia
direcionada para a afirmação das raízes africanas e da identidade a ser recuperada.
Sob o lema “Vamos descobrir Angola”, o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola
propunha o resgate da angolanidade, também reivindicada pelos poetas de Mensagem,
entre eles Viriato Cruz, António Jacinto, Agostinho Neto, autor do livro de poemas Sagrada
esperança. Em Moçambique, também nessa época, se inicia uma poética voltada para a
moçambicanidade, cujas principais vozes foram as de Noêmia de Souza, Marcelino dos
Santos e José Craveirinha, poeta que, em 1991, recebeu o Prêmio Camões de Literatura, e
continua a escrever até hoje, tendo passado por várias fases. O seu livro Xigubo (1964) reúne
poemas desse período, versando sobre temas africanos e fazendo a crítica ao racismo, ao
colonialismo, aos séculos de escravidão. Em Angola, a poesia de Agostinho Neto, em sua
fase da negritude, também clamou contra a opressão sofrida pelos negros, denunciando a
exploração escrava. Tanto em Angola como em Moçambique, nesse período, a poesia se
afasta dos cânones portugueses e recusa a civilização europeia. É uma poética acusatória,
de forte impacto social, que faz ecoar o grito negro da rebeldia. Em busca das raízes
profundas do ser africano, utiliza vocábulos das línguas nativas, de modo a macular
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Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
o idioma do colonizador. Craveirinha, por exemplo, traz para seus poemas os sons das
marimbas e do tambor, mesclando o português com palavras em ronga [uma das línguas
faladas em Moçambique]. Poetas angolanos desse momento também procedem assim,
introjetando ao português expressões do quimbundo, do umbundo, do quicongo e de outras
línguas, de modo a assinalar, com odores e saberes africanos, o idioma trazido pelo
colonizador. Representando a poesia de São Tomé e Príncipe, temos as vozes de Francisco José
Tenreiro, de Maria Manuela Margarido e de Alda do Espírito Santo, entre outras, defendendo
os paradigmas da negritude e/ou a identidade das ilhas. Em Cabo Verde, desde a década
de 1930, Claridade já clamava por uma poesia autêntica, que buscava afirmar a
cabo-verdianidade. Essa poética, ao contrário do que ocorre em Moçambique e Angola, na
década de 1950, não reivindicava os temas da negritude, tendo em vista a predominância
mestiça em Cabo Verde, cujas ilhas, desertas na ocasião da descoberta, foram povoadas por
portugueses oriundos da Madeira e negros vindos da Guiné. Claridade representou uma
virada na lírica do arquipélago. Influenciada pelo modernismo brasileiro, essa geração
rompeu com as formas clássicas da poesia, incorporando o verso livre, a não preocupação
com as rimas, o uso do crioulo, os temas cabo-verdianos. A poética claridosa fez o testemunho
documental do dilema crucial do ilhéu, um ser cindido pelo desejo de ficar e pela necessidade
de partir. Falta, entretanto, à maioria dos representantes dessa lírica, uma conotação
político-social mais direta, o que só ocorrerá, efetivamente, com as gerações seguintes. Seus
principais poetas foram Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Oswaldo Alcântara (pseudônimo,
como poeta, de Baltasar Lopes). Os dois últimos também escreveram prosa: Manuel Lopes,
Um galo cantou na baía (contos) e Os flagelados do vento leste (romance); Baltasar Lopes,
Chiquinho (romance). Tais narrativas, de cunho social, assemelham-se ao nosso regionalismo
de 1930, em particular aos romances de José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Só em 1944,
a geração Certeza trouxe um tom marxista às narrativas de Cabo Verde. Orlanda Amarílis,
que continua a escrever até hoje, foi uma das principais representantes, trazendo para seus
contos o imaginário feminino das ilhas. Nos anos 1960, com a guerra declarada contra o
colonialismo português, unem-se as literaturas das cinco colônias portuguesas na África
em torno da temática libertária, cujas utopias fazem dos versos armas de luta contra o
salazarismo português. Em Cabo Verde, Amílcar Cabral lidera o PAIGC [Partido Africano
para a Independência da Guiné e Cabo Verde], o poeta Ovídio Martins proclama “o ficar
para resistir”, e outros poetas se destacam: Osvaldo Osório, Armênio Vieira, Tomé Varela.
Outro poeta importante, cuja produção se inicia em 1959 e entra pelos anos 1980, é Corsino
Fortes. Sua obra, Pão & fonema (1974) e Árvore & tambor (1986), representa um salto
em direção a uma linguagem comprometida com o universo ilhéu, pois busca reescrever
Cabo Verde com tintas próprias, com o ritmo dos tambores e fonemas crioulos. Sua poesia
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Gardênia de Carvalho Rocha
apresenta alto grau de consciência técnica e política. Prima pelo rigor formal e contenção da
linguagem, lembrando a poética de João Cabral. Na Guiné-Bissau, surgem nomes importantes
na poesia: Vasco Cabral, Hélder Proença, entre outros. É publicada a primeira antologia
da Guiné: Mantenhas para quem luta!, cujas poesias, tornando-se guerrilheiras, cantam o
desejo de libertação. Nessa época, em Moçambique, são editados vários fascículos sob
a denominação Poesia de combate. Na prosa moçambicana, escritores como Orlando
Mendes, com o romance Portagem, e Luís Bernardo Honwana, com o livro de contos
Nós matamos o cão tinhoso, denunciam a opressão e a miséria vivida pelo povo. São muitos
os poetas, também em Angola, a produzirem poemas nessa dicção: Costa Andrade, Jofre
Rocha, e outros. Na ficção, diversos escritores optam pela temática da guerra e pela
denúncia das carências sociais. Luandino Vieira, desde os anos 1960 e passando pelas
décadas subsequentes, envereda por esse caminho, mas se afirma por um estilo próprio, que
busca, à maneira de Guimarães Rosa, recriar a língua de colonização, “quimbundizando-a”
pela opção de transcriar a fala dos habitantes dos musseques, isto é, as favelas de Luanda,
onde o povo oprimido vivia em condições subumanas.
12 GR – Nesse período, também está Arthur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais
conhecido como Pepetela?
CARMEN – Sim. Junto a outros escritores de destaque, está Pepetela, com o seu famoso
romance Mayombe, o qual, ultrapassando a dimensão apenas ideológica das narrativas
comprometidas com a utopia da Revolução, discute valores humanos universais, como o
amor, o sexo e a amizade, além de criticar o tribalismo e as contradições da própria guerra.
Pepetela é um dos grandes escritores angolanos, cuja obra apresenta várias fases, na medida
em que continua a escrever até hoje. Nos fins dos 1960 e início dos 1970, com a intensa
repressão da PIDE [Polícia Internacional e de Defesa do Estado, existente durante a ditadura
de Salazar em Portugal], a literatura se torna bastante metafórica para driblar a censura.
A poesia, principalmente em Angola e Moçambique, se torna elaborada, voltando-se sobre
ela mesma. É a fase da “Poesia do Gueto”, do grupo Caliban, em Moçambique, com poetas
como Rui Knopfli, Sebastião Alba, Alberto de Lacerda, entre outros, e, em Angola, com
poetas como David Mestre, Manuel Rui, Arlindo Barbeitos, Ruy Duarte de Carvalho, para
citar somente alguns. Com a independência, retornam as utopias. São vários os poetas a
celebrar a liberdade conquistada. Em Angola, lembramos o nome de Manuel Rui, com seu
livro Cinco vezes onze: poemas em novembro, obra literariamente muito bem construída.
Em Moçambique, citamos o livro Monção, de Luís Carlos Patraquim, que celebra os bons
ventos libertários. O fim dos 1980 e os 1990 são marcados por um desencanto na esfera
social, que se reflete na área literária. A poesia dessas décadas se caracteriza pela superação
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Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
da poética “cantalutista” e pelo desaparecimento das referências circunstanciais presentes
na poesia revolucionária. Há a radicalização do projeto de recuperação da língua literária,
aproveitada em suas virtudes intrínsecas e universais, sem os regionalismos característicos
da literatura dos anos anteriores. Há a metaconsciência e o traço crítico, mas sem o
panfletarismo ideológico. Ironia, paródia, desencanto são procedimentos de denúncia à
corrupção e às contradições do poder. Dialogando com poetas das gerações anteriores, essa
lírica aponta para a crise das utopias e funda um novo lirismo, que procura cantar os
sentimentos existenciais, desvinculados do canto coletivo social. Há uma intensificação
poética, através da depuração da linguagem literária que, em alguns poetas, se manifesta
por experimentalismos, por corporizações plásticas de palavras, por metáforas surrealistas,
por jogos verbais que acentuam a relação entre a ética e a estética. Afinados a essa nova
dicção, em Angola, os principais poetas atuais são João Melo, Lopito Feijóo, João Maimona,
Ana Paula Tavares, Eduardo Boavena, José Luís Mendonça. Em Moçambique, lembramos os
nomes de Luís Carlos Patraquim, de Eduardo White, poeta oriundo da revista Charrua, de
Nélson Saúte, de Armando Artur, entre outros. Em São Tomé, não poderíamos nos esquecer
de mencionar Conceição Lima, que faz uma poesia de revisão crítica da história de seu país.
Na Guiné-Bissau, a mais pobre das ex-colônias, também algumas vozes novas surgem, entre
as quais as de Domingas Samy e Carlos Lopes, embora, na maior parte das vezes, as narrativas
ainda circulem apenas oralmente. Na poesia, nesses tempos de distopia, há, por exemplo, o
canto lúcido do poeta António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka.
Em Cabo Verde, no ano de 1991, a publicação de Mirabilis: de veias ao sol, antologia
organizada por José Luís Hopffer Almada, reúne os “novíssimos poetas de Cabo Verde”,
divulgando a poesia cabo-verdiana produzida após o 25 de Abril [Revolução dos Cravos
que, em 1974, derrubou o regime ditatorial em Portugal]. O não cumprimento das promessas
sociais gera um desalento. Entretanto, lembrando-se de que, mesmo no deserto, cresce a
mirabilis, a nova geração resiste poeticamente a esses anos de “mau tempo literário”.
Destacam-se, entre os mirabílicos: Manuel Delgado, David Hopffer Almada, Kaliosto
Fidalgo, Euricles Rodrigues, Vera Duarte, Luís Tolentino, Vasco Martins, Canabrava, entre
outros. Na prosa, tendências variadas se apresentam no pós-independência. Há escritores
que buscam a dicção do humor, fazendo a crítica da realidade. Citamos, em Angola,
Uanhenga Xitu, com Estórias na senzala (Kahitu); Manuel Rui, com Quem me dera ser
onda; Pepetela, com O cão e os Caluandas, entre outros. Há, também, as obras que
trabalham na linha da ficção e da história, recuperando procedimentos da oralidade e
tradição africanas, em conjugação com uma escrita que utiliza procedimentos ficcionais
bastante modernos. É o caso, em Angola, de Boaventura Cardoso, com Dizanga dia Muenhu;
de Luandino Vieira, com Nós, os de Makulusu, entre outros livros; de Agualusa, com
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Gardênia de Carvalho Rocha
A conjura; de Pepetela, com Lueji, A geração da utopia, O desejo de Kianda, A parábola do
cágado velho, romances através dos quais o escritor denuncia as guerras sempre presentes
na história angolana, chamando atenção, nos três últimos livros (publicados nos anos
1990), para as guerrilhas entre o MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola] e a
UNITA [União Nacional para a Libertação Total de Angola] que desestabilizaram o
processo de independência e transformaram as utopias revolucionárias em distópicas ruínas,
cujos destroços assinalam o dilaceramento atual de Angola. Em Moçambique, os escritores
também evidenciam a crise que atravessa o país destruído por quase trinta anos de guerra.
Mia Couto, com seus romances, Terra sonâmbula e A varanda do frangipani, e Ba Ka Khosa,
com Ualalapi, repensam a história moçambicana a partir de um trabalho arqueológico com
os fantasmas da memória presentes no imaginário do país. Em Cabo Verde, não poderíamos
deixar de mencionar, na ficção, nomes como os de Teixeira de Sousa, com vários romances
publicados; de Manuel Veiga, que escreve em crioulo; de Vasco Martins; de Dina Salústio e
de Germano Almeida, cujo livro O testamento do Sr. Nepomuceno, foi transformado em
filme, em razão do sucesso que fez, ao captar, com humor e acuidade, os problemas do
universo cabo-verdiano.
13 GR – Em um de seus artigos sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, a
senhora fala em paradigmas norteadores do desenvolvimento dessas Literaturas. Poderia falar
um pouco sobre eles?
CARMEN – De um modo geral, existem sete paradigmas que norteiam o desenvolvimento
das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: o referente às origens (segunda metade do
século XIX), cujos poemas se encontram colados à produção literária portuguesa; o relativo
a uma fase intermediária de busca de identidade local (primeiras décadas do século XX), em
que as obras são ainda perpassadas por uma ambiguidade entre a pátria lusitana e a mátria
africana; o que compreende o período de mergulho nas raízes africanas e de afirmação das
respectivas nacionalidades (década de 1930, em Cabo Verde, e década de 1950 em Angola,
Moçambique, São Tomé); o correspondente à época das utopias libertárias, das lutas contra
o colonialismo (década de 1960); o que se refere à fase de “gueto”, período de intensa
censura, em que, por terem muitos escritores sido presos, a poesia, apenas metaforicamente,
faz alusões ao social, abordando temas universais e voltando-se para a sua própria
construção e linguagem (fim dos 1960 e primeiros anos da década de 1970); o que compreende
os anos da pré e da pós-independência, quando voltam os temas sociais, as utopias
revolucionárias, os textos celebratórios da liberdade. Nessa época, surgem também narrativas
que discutem a necessidade da reconstrução nacional (década de 1970 e parte da década
de 1980); e, por fim, o que corresponde à fase atual de desencanto (fim dos 1980 e os 1990),
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
em que a literatura reflete sobre a falência dos antigos ideais fundados em um marxismo
ortodoxo e aposta na resistência cultural, investindo na recuperação dos mitos e sonhos
submersos no inconsciente coletivo desses povos.
14 GR – Nesse belo e amplo painel generosamente traçado, a senhora mencionou alguns
diálogos entre a Literatura Brasileira e as Africanas. Existe uma ligação histórica entre essas
Literaturas, em especial a Angolana?
CARMEN – Há muitos diálogos, sim, com a Literatura Brasileira. Guimarães Rosa,
Drummond, João Cabral, Manuel Bandeira e muitos outros escritores brasileiros foram lidos
em Angola, Moçambique, Cabo Verde, e há uma forte presença deles em textos literários
angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos. O tema da intertextualidade entre a Literatura
Brasileira e as Literaturas Africanas em Língua Portuguesa é pertinente, pois, embora sejam
muitas as afinidades entre vários autores e poemas, a grande questão que levou alguns
escritores africanos a se espelharem em determinados períodos do sistema literário brasileiro
foi, justamente, a necessidade da busca de uma consciência literária nacional. É comum,
entre os ensaios sobre as literaturas africanas em língua portuguesa, apontar o Modernismo
de 1922 e o Regionalismo de 1930, no Brasil, como marcos paradigmáticos das literaturas
de Angola, Cabo Verde e Moçambique. Mas, voltando os olhos para o final do século XIX,
pode-se constatar que a intertextualidade com autores brasileiros já se fazia, desde essa
época, em poetas como: Costa Alegre, de São Tomé, José Lopes, de Cabo Verde, José Maia da
Silva Ferreira, de Angola, para citar apenas alguns. Leio, a seguir, versos de Maia Ferreira,
cujo ritmo e o encantamento diante da terra natal lembram a Canção do exílio, do poeta
romântico brasileiro Gonçalves Dias. Apesar de o romantismo brasileiro apresentar alguns
ecos nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa desde o final do século XIX e o início
do século XX, é nos anos 1930, 1940 e 1950 que a intertextualidade com a Literatura
Brasileira se faz mais evidente. Em Angola, António Jacinto, importante poeta da Geração
Mensagem, chama atenção para a influência literária brasileira nos jovens poetas angolanos
dos anos 1950. O poeta Maurício Gomes de Almeida é outra das vozes angolanas dos
primeiros tempos de busca de uma literatura autenticamente voltada para Angola, que,
propondo uma ruptura com os antigos cânones lusitanos, funda uma nova poética, cujos
paradigmas passam a ser os do modernismo brasileiro. Na prosa, além da forte presença de
autores como Graciliano, de Vidas secas e São Bernardo; de Jorge Amado, de Jubiabá e
Terras do sem fim; de José Lins do Rego, com as histórias dos engenhos no nordeste brasileiro,
há uma grande intertextualidade entre Luandino Vieira e Guimarães Rosa, o que se verifica
também ao se analisar a obra do escritor moçambicano Mia Couto.
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Gardênia de Carvalho Rocha
15 GR – A senhora publicou um livro chamado A magia das letras africanas. Como surgiu a
ideia de escrever esse livro?
CARMEN – As publicações acerca das Literaturas Africanas aqui no Brasil ainda são
reduzidas. Por isso, resolvi reunir em livro meus artigos apresentados em congressos e análises
minhas usadas em aulas na UFRJ desde 1993. Há, ainda, certa escassez de ensaios críticos
sobre Literaturas Africanas, embora, nos últimos dez anos, algumas obras tenham sido
publicadas e, hoje, com a lei que criou a obrigatoriedade do ensino da temática africana,
muitas editoras vêm se interessando em editar obras sobre a África.
16 GR – Qual é o objetivo da obra?
CARMEN – A magia das letras africanas – ensaios sobre obras das literaturas de Angola e
Moçambique, se apresenta como um conjunto de exercícios literários, de modos produtivos
de exegese textual, através dos quais práticas de interpretação literária são veiculadas, com
o intuito de incitar, nos que se iniciam nos estudos das letras africanas, o prazer de ler, o
gosto de imaginar. Esclarecemos que nossas análises dos textos não se colocam, de modo
algum, como modelos fechados, mas como uma das muitas vias possíveis de leitura.
17 GR – Quais foram os desafios enfrentados para a elaboração desse trabalho?
CARMEN – Escrever foi um prazer, daí o título que dei à obra: a magia das letras africanas.
Magia no sentido da sedução despertada por essas literaturas. Publicar é que foi difícil,
em 2003, quando saiu a primeira edição.
18 GR – Que aspectos das Literaturas Africanas são abordados no livro?
CARMEN – Trabalho com poesia, ficção e pintura. Estudo questões sobre ficção e história,
pós-colonialismo, racismo, memória, oralidades recriadas e o labor estético das obras
literárias analisadas. Por meio de um jogo de desvelamento interpretativo, A magia das
letras africanas se debruça sobre textos de escritores como: Luandino Vieira, Mia Couto,
Manuel Rui, Boaventura Cardoso, entre outros. De outra parte, interpreta também textos
poéticos de Agostinho Neto, José Craveirinha, Paula Tavares, Luis Carlos Patraquim, João
Maimona, Arlindo Barbeitos, Virgílio de Lemos, Eduardo White, entre outros – poetas que
compõem o quadro canônico dessas literaturas. A estas leituras, se vêm juntar as que leem
diálogos intertextuais com autores brasileiros, como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de
Andrade, por exemplo. Há, também, o estudo de outro universo artístico, o da pintura, que
se intersecciona com o da poesia. Quadros de renomados pintores de Angola e Moçambique
– Jorge Gumbe, António Óle, Malangatana Valente ou Roberto Chichorro – vão tecer teias de
cores e movimentos com as palavras poéticas, elas também sempre em cores e movimentos.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Carmen Lucia Tindó Secco: diálogos com as mágicas letras africanas
19 GR – Qual a importância das Literaturas Africanas hoje e quais lições podemos aprender
com elas?
CARMEN – Essas literaturas são importantes como quaisquer outras literaturas. Na minha
opinião, nenhuma literatura deve dar lições. O papel da arte não é dar lições, mas sim ter
qualidade estética e problematizar questões das mais variadas ordens (sociais, artísticas,
existenciais e/ou filosóficas). A literatura, segundo Habermas, “se cola à pele do real não
para capitular diante dele, mas para dissolvê-lo por dentro”. Para mim, são importantes as
obras literárias e artísticas que me fazem levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida.
Nesse sentido, muitos textos africanos me fizeram pensar criticamente sobre: a importância
dos velhos, da oralidade, da história e da memória, da arte e da linguagem literária. Outros
textos me levaram a rever criticamente o pós-colonialismo, o colonialismo, o racismo, a
escravidão, as atuais políticas neoliberais que impõem novas formas de colonialismo à
África e a outros continentes.
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TRAUMA E TESTEMUNHO NAS
MEMÓRIAS DE ARIEL DORFMAN
Renata Feital
Faculdade CCAA
Universidade Veiga de Almeida
Universidade Cândido Mendes
Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/IUPERJ
contato: [email protected]
Resumo: O artigo pretende iniciar uma discussão sobre trauma e memória a
partir da autobiografia de Ariel Dorfman – Uma vida em trânsito: memórias de um
homem entre duas culturas. Em meio a reflexões sobre sua própria condição de ser um
“homem em trânsito”, híbrido, perdido entre duas culturas e dois idiomas, Dorfman
recupera aspectos importantes da memória social do Chile, durante a ditadura militar.
PALAVRAS-CHAVE: trauma; memória; literatura latino-americana.
Abstract: This essay aims at initiating a discussion about trauma and memory, taking
Ariel Dorfman’s autobiography ‘Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas
culturas’ as a starting point. In the middle of reflections about his own condition of being
“a man in transit”, hybrid, lost between two cultures and two languages, Dorfman brings back
important aspects of Chile’s social memory on the days of the military dictatorship.
KEYWORDS: trauma; memory; Latin-American Literature.
Resumen: El artículo se propone iniciar una discusión sobre trauma y memoria
a partir de la autobiografía de Ariel Dorfman – Uma vida en trânsito: memórias de um
homem entre duas culturas. En medio de reflexiones sobre su propia condición de ser un
“hombre en tránsito”, híbrido, perdido entre dos culturas y dos idiomas, Dorfman recupera
aspectos importantes de la memoria social de Chile, durante la dictadura militar.
PALABRAS
CLAVE :
trauma; memória; literatura latino-americana
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Renata Feital
INTRODUÇÃO
“O Departamento de Retrô dos Estados Unidos adverte:
poderá haver uma escassez de passado.”
(Chamada de um falso anúncio colocado na internet)
Um fenômeno que teve lugar nas sociedades ocidentais, sobretudo nos países
latino-americanos, neste início de século, tem sido a tarefa de recuperação da
memória coletiva como uma estratégia política e cultural. Num mundo globalizado,
em que a obrigação de ser contemporâneo se tornou a tarefa fundamental, cujos
espaços sociais estão marcados por deslocamentos, migrações e diásporas, além da
compreensão do futuro como um tempo verdadeiro, uma vez que ele ainda não é, foi
o passado tão evocado na construção do presente como agora. Seja na moda retrô,
seja no culto às visitações aos museus, seja na comercialização em massa da
nostalgia (SELIGMANN-SILVA, 2005), se o “passado passou”, ele, porém, ressurge
de uma forma intempestiva, na Arte, no Jornalismo e na Literatura, e reacende a
memória das sociedades.1
Por trás desse culto à memória, há, segundo Andreas Huyssen (2000), certa
controvérsia em torno do que ele denominou de passado mítico e passado real.
“O real pode ser mitologizado, tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos
de realidade” (HUYSSEN, 2000, p. 16). Em se tratando de memória e esquecimento
de sociedades latino-americanas, que sofreram com as ditaduras militares e que
produziram testemunhos sobre esses traumas, há de se pensar na questão.
Os discursos de memória tomaram corpo na Europa e nos Estados Unidos no
começo da década de 1980, impulsionados pelos debates em torno do holocausto.
Era preciso narrar a barbárie. Contudo, o que vários estudos sobre memória e
testemunho questionam é saber se, por meio da linguagem e do trauma causado,
é possível reviver o choque. Pensar na relação entre o real e o ficcional, entre história
e ficção, é o que aconselha a maior parte dos autores. Como a linguagem pode
traduzir um excesso de realidade “vivida”? O quanto de memória social fabricada
especialmente para o mercado de bens simbólicos não está sendo consumida
como memória “real”? E como fica a literatura diante daqueles que testemunharam o
1 Uma boa referência para se entender os temas do tempo e do espaço na pós-modernidade é Marcio Tavares D´Amaral em: “Sobre
tempo: considerações intempestivas.” In: DOCTORS, Marcio et al. (Orgs.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,
2003, p. 15-32.
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Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
trauma e agora produzem relatos autobiográficos e romances históricos? Com base
nessas questões, este artigo pretende analisar a biografia do escritor Ariel Dorfman
– Uma vida em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas.
O TRAUMA NA TV, NA ARTE E NA LITERATURA
Terroristas que gravam vídeos exibindo suas vítimas na internet, guerras
transmitidas ao vivo, catástrofes naturais acompanhadas por câmeras exclusivas
em tempo real. Em um mundo totalmente dominado pelas novas tecnologias, essas
imagens há muito se tornaram comuns em nossa vida cotidiana. Em vez de causar o
choque, as pessoas, cada vez menos sensíveis, vão se acostumando a elas e se
limitam a lamentá-las. Nossa cultura parece estar fascinada pelo trauma. “Estamos
na época não mais da reprodutibilidade técnica, como Benjamin diagnosticara em
1936, mas da repetição, sem fim, inflacionada, das imagens do terror que não saem
do écran da televisão e de nossas mentes” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64). Para
este autor, há uma política de imagens em curso nas grandes redes de comunicação
do mundo que globalizam o que devemos ver. Segundo ele, “ao reproduzir a
catástrofe, a televisão também multiplica o trauma”. Em relação ao trauma mediado
pelos mais modernos veículos de comunicação, o autor afirma que a reação tende a
ser, de um modo geral, uma “ab-reação, abortada, um bloqueio que só leva a um
agir que encobre o evento traumático e impede a recordação.” (SELIGMANN-SILVA,
2005, p. 64-65)
Já a Arte, segundo Hal Foster, encara o trauma de uma forma “abjeta”. Essa foi a
teoria definida inicialmente por Julia Kristeva e incorporada por este autor no seu
livro The return of the real.2 Além do conceito de Kristeva, Foster utilizou, também,
o conceito lacaniano de real. O abjeto, na concepção de Kristeva, “é do que preciso
livrar-me para tornar-me um eu. [...] Tanto espacial como temporalmente, portanto,
o abjeto é a condição na qual a subjetividade é perturbada, em que o sentido entra
em colapso.” (FOSTER, 2005, p. 179)
2 Para a redação desse texto, foi lida a versão traduzida para o português, editada pela Revistas Concinnitas.
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Renata Feital
A arte abjeta, que tenta um retorno à cena, procederia – via uma dessimbolização
dos objetos – como já patente na arte pop, por exemplo, de um Andy Warhol. Hal
Foster denomina a sua arte, sobretudo a série Death in America (Morte na América)
dos anos 1960, de realismo traumático. O seu princípio é o da mimetização do
choque, cuja presença tornou-se insuportável na sociedade de produção em série: se
você não pode vencê-lo, Warhol sugere, junte-se a ele” (FOSTER, 2005, p. 179). A
repetição em série do real é vista como uma encenação da definição lacaniana do
trauma, enquanto um encontro abortado com o real: enquanto algo perdido, o real
não pode ser representado (ou seja, traduzido para o registro do simbólico), mas
apenas deve ser repetido. Foster cita vários exemplos de outros artistas que
tematizaram esse desencontro com o real na forma da mimetização da sua estrutura,
tais como o super-realista Richard Estes, Richard Prince, representante da
appropriation art (arte como apropriação), Kiki Smith e, sobretudo, Cindy Sherman.
As obras desses artistas servem tanto como “prova da ferida do trauma” como
também almejam desencadear uma reflexão sobre esse real-abjeto. O extremo é a
regra. (FOSTER, 2005, p. 157)
A arte, como Benjamin já notara, assume agora o papel de domesticadora dos
indivíduos para a vida numa sociedade onde o choque se tornou parte da ordem
do dia (FOSTER, 2005, p. 140). Afinal, o sujeito deve possuir um domínio, ainda que
incompleto, do abjeto; ele deve mantê-lo sob controle e a distância, para poder se
definir como objeto.
É Walter Benjamin quem também oferece a sua versão sobre o trauma
na Literatura. No ensaio, Sobre alguns temas em Baudelaire, de 1939,
apresenta a sua visão sobre o trauma. Para o autor, a teoria da modernidade
e do homem moderno se apresenta como alguém que acumula apenas
vivências estéreis para a construção de narrativas, as quais se alimentavam,
antes, da experiência autêntica. (FOSTER, 2005, p. 140)
Segundo Benjamin, quanto maior for o sentimento do choque na vida das pessoas,
maior a presença do consciente para proteger contra esses estímulos. “Quanto maior
for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à
experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência.” (BENJAMIN, 1989,
p. 111)
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Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
Qual o papel da literatura nesse contexto? Segundo Seligmann-Silva (2005), uma das
principais características da literatura é a de não possuir limites. Na opinião do autor, a
literatura não deve se “separar” do real. Sua função seria encenar a criação do real.
A literatura está na vanguarda da linguagem: ela nos ensina a jogar
com o simbólico, com as suas fraquezas e artimanhas. Ela é marcada
pelo real – e busca caminhos que levem a ele, procura estabelecer vasos
comunicantes com ele. Ela nos fala da vida e da morte que está no seu
centro de um visível que não percebemos no nosso estado de vigília e
de constante angústia, diante do pavor do contato com as catástrofes
externas e internas. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 74)
Se a literatura tem problemas para testemunhar o passado, sobretudo a tradição,
ela pode testemunhar o presente. E é o que tem acontecido até agora, principalmente
no final do século passado. A literatura do século XX foi, em grande parte, uma
literatura marcada pelo seu presente traumático. Seligmann-Silva (2005, p. 77) é
contundente ao afirmar que é preciso “aprendermos a ler esse teor testemunhal:
assim como aprendemos que os sobreviventes necessitam de um interlocutor para
seus testemunhos”.
A literatura-testemunho na América Latina tem se concentrado em torno de
relatos sobre a barbárie causada pelas diversas ditaduras militares, como foi o caso
do escritor Ariel Dorfman. Marcado por vários exílios, em 11 de setembro de 1973,
com o golpe de Estado e, posteriormente, Pinochet no poder, Dorfman, que havia
participado ativamente do governo de Salvador Allende, conseguiu sobreviver e
precisou passar por vários exílios, incluindo França, Argentina, Holanda e, finalmente,
Estados Unidos, país em que decidiu permanecer por mais tempo. Suas reflexões,
testemunhos e impressões sobre o que significou o exílio (entre outros temas)
encontram-se no livro Uma vida em trânsito, traduzido para o português por Ana
Luíza Borges.
Eu sobrevivi e fiz uma promessa aos mortos da ditadura chilena. Eu
iria viver para contar as suas histórias. Eu me salvei e não entendia o
porquê. No meu entender, só havia um jeito de reparar a barbárie que
meus amigos e meu povo passaram, praticando o ato mais civilizado
que existe, que é o ato da escritura, para justificar a memória e espantar
o esquecimento.3 (GACEMAIL, 2010, não paginado)
3 Entrevista do autor a Oscar Ranzazine. Disponível em: http://www.gacemail.com.ar/Detalle.asp?NotaID=10101, acesso em: 28/02/2010.
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Renata Feital
TESTEMUNHO E MEMÓRIA COLETIVA
Lívia Reis transcreveu a definição das características gerais do gênero Testemunho,
presentes na ata de criação do Premio Testimónio, de 1970. Entre elas, ressaltam-se
“os méritos literários e a atualidade do tema, além da transcendência política e
social dos textos” (REIS, 2007, p. 79). Pode-se afirmar que o testemunho tem uma
conotação política muito marcada que se traduz em permitir o uso das palavras
por aqueles que, tradicionalmente, se encontram excluídos. O narrador tira o que
narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que escutam. Narrar
o inenarrável, contar o inverossímil, acarreta um complexo jogo entre o
narrador/testemunha, seu texto, sua experiência e o público leitor. Relatar o trauma
significa estabelecer certa negociação entre o que de fato aconteceu e o resgate
de uma memória fragmentada pelo mesmo trauma. “Narrar, esquecer, lembrar, são
procedimentos ambíguos em constante luta no interior do sujeito narrador e na
exterioridade dos textos-testemunhos. A memória existe ao lado do esquecimento,
um complementa e alimenta o outro.” (REIS, 2007, p. 80)
Na definição de Hugo Achugar, citado por Reis (2007), o gênero testemunho
se encontra “entre a autobiografia e a biografia, disputado pela Antropologia e pela
Literatura e que assume modalidades próprias tanto no discurso histórico quanto na
narrativa.” (ACHUGAR, 1992, p. 50 apud REIS, 2007, p. 82)4
Mas há autores que ressaltam uma limitação para o testemunho. É o caso de
Primo Levi. O autor expressa o ponto de vista único e insubstituível do narrador;
ele não deixou, porém, de demarcar o modo parcial e limitado com que esses
testemunhos têm ocorrido. Os sobreviventes que não sucumbiram nos campos de
concentração e que tiveram a sorte de não serem selecionados para as câmaras de
gás são testemunhas conscientes da limitação da sua narrativa.
Nós, tocados pela sorte, tentamos narrar com maior ou menor
sabedoria não só nosso destino, mas também aqueles dos outros, dos
que submergiram: mas tem sido um discurso “em nome de terceiros”, a
narração de coisas vistas de perto, não experimentadas pessoalmente.
A demolição levada a cabo, a obra consumada, ninguém narrou, assim
como ninguém jamais voltou para contar sua morte. (LEVI, 1990, p. 48
apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 67)5
4 Cf. ACHUGAR, Hugo; Berverley, John. (Orgs.). La voz del otro: testimonio, subalternidad y verdad narrative. Lima/Pittsburg:
Latinoamericana Editores, 1992, p. 50.
5 Cf. LEVI, Primo. Os afogados e os sobrevientes. Trad. L.S. Henriques. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
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Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
Narrar é imperativo para a sobrevivência da memória.
O sentido a ser atribuído ao termo memória, neste trabalho, é o mesmo
empregado pelo sociólogo francês Maurice Halbwachs, o principal estudioso das
relações entre memória e história, presentes no livro, La mémoire colletive. Halbwachs
segue os princípios durkheimianos de considerar a predominância do fato social
sobre os fenômenos de ordem individual. Para ele, não interessa estudar como a
memória acontecia de forma individual, mas “os quadros sociais da memória”,
ou seja, se as relações a serem determinadas deverão levar em conta o seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a
profissão, com os grupos de referência e convívio do indivíduo. (HALBWACHS, 1990)
Para Halbwachs (1990), a memória coletiva é partilhada, transmitida e construída
pelo grupo ou sociedade. Esta memória coletiva tem, assim, uma importante função
de contribuir para o sentimento de pertencimento a um grupo de passado comum,
que compartilha memórias. Ela garante o sentimento de identidade do indivíduo,
calcado numa memória compartilhada não só no campo histórico real, mas,
sobretudo, no campo simbólico. Assim, o outro tem um papel fundamental na
produção da memória.
Jozef (2005) demonstrou o problema que é um país sem memória. As nações que
perdem sua memória correm o risco de desaparecer. Daí, segundo ela, os escritores
contemporâneos terem a “missão” de testemunhar sobre os fatos que acontecem no
mundo. “[...] o ato de testemunhar sobre a violência política, o exílio e a repressão
militar ditatorial de seus países para, como declarou Armonía Sommers, forçar a
memória até as últimas consequências.” (JOZEF, 2005, p. 252)
UMA VIDA EM TRÂNSITO – MEMÓRIAS DE UM HOMEM ENTRE DUAS
CULTURAS
Eu não devia estar aqui para contar essa história. A razão é simples: há
um dia em meu passado, um dia há muitos anos, em Santiago, no Chile,
em que eu deveria ter morrido, e não morri. [...] É aí que sempre penso
que esta história deveria ter início no momento em que a História
me transformou, contra a minha vontade, no homem que, um dia,
escreveria estas palavras, e que agora as escreve. [...] Há uma noite
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Renata Feital
antes da suspensão da minha sentença, que é quando realmente preciso
que a história comece: a noite de 10 de setembro, a noite anterior ao
golpe. Amanhã, a esta hora, Allende estará morto e eu escondido,
amanhã terei de aceitar um futuro no qual estarei vivo e tantos outros
terão sido mortos em meu lugar. Mas ainda não. Hoje à noite posso
dizer a mim mesmo, contrariando a evidência patente que grita de
dentro e de fora de mim, que não haverá tomada militar, que o Chile
é diferente dos outros países da América Latina, todos os mitos
confortantes sobre a democracia, a estabilidade e a moderação.
(DORFMAN, 1998, p. 13-14)
Com estas palavras, Ariel Dorfman inicia o livro de memórias, intitulado Uma vida
em trânsito: memórias de um homem entre duas culturas. Transformando-se em um
porta-voz dos mortos da ditadura militar chilena pelo fato de ter sobrevivido à
perseguição a todos que participaram do governo Allende, a obra permite ao leitor
realizar uma viagem percorrendo espaços geográficos, culturais, linguísticos, políticos e
históricos, cujas dimensões são recriadas por meio dos relatos do autor, bem como
de reflexões sobre sua própria vida.
Desde criança, Dorfman se acostumou ao modo de vida conturbado do exílio.
Antes de completar 30 anos, ele havia mudado de país, de cultura e de língua várias
vezes: primeiro fugiu com seus pais (que eram judeus e deixaram a Europa Oriental)
da Argentina para os Estados Unidos e, depois, para o Chile. Então, em 1973,
após um golpe militar e a consequente gestão Pinochet, Dorfman é obrigado a deixar
o Chile para uma rápida temporada na Europa, retornando mais tarde aos Estados
Unidos, país em que reside atualmente. Dorfman não estava viajando como uma
pessoa qualquer, mas sofrendo um tipo de mobilidade forçada entre nações, culturas
e línguas que o deixou sem um lugar para chamar de casa ou uma cultura que
pudesse definir como sua.
Aos sete anos e vivendo uma crise, por estar doente e longe dos pais em um
hospital americano, o autor renunciou ao idioma espanhol e jurou tornar-se um
norte-americano, adotando a língua e os valores culturais daquela nação. Mais
tarde, quando ainda era um estudante em Berkeley, é a vez de renunciar ao inglês,
retornando ao castelhano, sua língua nativa. Essa hesitação levou-o a refletir sobre o
papel da linguagem na formação da identidade de um povo e é parte da discussão das
memórias. Dorfman negava-se a assumir essa duplicidade e passou muito tempo, ora
negando a cultura e a língua espanhola, ora a cultura e o inglês americano. O desejo
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de abraçar suas raízes latinas, entretanto, foi além da linguagem, mas somente a
política foi capaz de lhe dar a identidade de um escritor, mudando totalmente a sua
relação com o mundo.
Ao longo de toda a história, as pessoas têm trocado de idiomas como
uma maneira de sobreviver. São invadidas, conquistadas, escravizadas,
seus lares são destruídos, seu reino, pequeno ou vasto, arruinado [...].
Mas, se você examinar mais atentamente essas inúmeras vítimas
que foram obrigadas, em circunstâncias muito mais traumáticas que as
minhas, a aprender a língua daqueles que têm o poder sobre elas,
perceberá quantas decidiram se tornar bilíngues. Algumas conseguiram
e outras só foram capazes de mesclar secretamente o idioma proibido e
secreto com o novo e dominante, infiltrar seu ritmo, sua gramática,
seu som, torná-lo mais familiar. Mas a maioria delas, tenho certeza,
tentou conservar a língua original viva, aquecida, próxima. Enquanto
conseguiram, pelo tempo que puderam, os convertidos se consolaram
de sua infelicidade com a promessa de que o passado não estava
completamente morto, que um dia ressuscitaria. Atreviam-se a se
arriscar a ser duplos, a ansiedade, a riqueza, a loucura de ser duplo.
(DORFMAN, 1998, p. 60)
Essa dupla consciência se constrói a partir da memória do trauma da experiência
radical de desenraizamento e da constante metamorfose cultural a que o exilado foi
submetido. Dorfman se recusa, inicialmente, a ser um homem dividido por duas línguas
iguais, incorporando as diferenças pessoal e coletivamente. “Recusei-me a tomar um
atalho para a condição híbrida que assumi hoje.”6 (DORFMAN, 1998, p. 60)
Mas será no Chile que o autor vai assumir um envolvimento, uma postura
mais ativa. Ele abraçou o país, a língua e as pessoas, como também o movimento
socialista de Salvador Allende, atuando em seu governo como consultor de mídia,
uma participação engajada politicamente que vai lhe proporcionar mais um exílio no
meio de tantos aos quais já tinha se submetido. Ariel, sua mulher Angélica, e seu
filho retornam aos Estados Unidos e passaram a viver em uma cultura e na língua que
agora eles haviam aprendido a detestar.
6 A questão da dupla consciência em Dorfman será retomada posteriormente como tema da tese de doutoramento. Interessa, neste
artigo, as abordagens sobre testemunho e memória presentes no livro do autor.
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Renata Feital
Por meio de seus relatos, o leitor fica sabendo sobre a motivação para escrever as
memórias: durante alguns anos, Ariel Dorfman ficou sem saber o porquê de ter sido
poupado naquela noite de 11 de setembro de 1973, uma vez que ele deveria estar
trabalhando com seus companheiros no Palácio de La Moneda. A mesma pessoa que
o empregou – o ministro Fernando Flores – decidiu riscar o nome de Dorfman da lista
de pessoas a serem chamadas para o plantão de emergência.
Fiquei sabendo dessa história muitos anos depois, quando nos
encontramos no exílio, quando eu o visitei nos Estados Unidos, acho
que foi no começo de 1978. Durante os anos anteriores, ele tinha estado
preso. [...] Por quê?, perguntei. Por que tinha feito isso? Ele fez uma
pausa, tornou-se introspectivo, como se consultasse alguém que
ele fora um dia, pensou um pouco e disse, da mesma maneira que,
provavelmente, havia riscado meu nome da lista: Bem, alguém tinha de
viver para contar a história. (DORFMAN, 1998, p. 58)
Em várias passagens do seu relato, Dorfman tentava acreditar no que havia forjado
para si. “Se não foi por isso que fui salvo, ele dizia, tentei fazer com que fosse. Em cada
história que conto. Obcecado pela certeza de que tenho cumprido uma promessa aos
mortos.” (DORFMAN, 1998, p. 58)
Não há como negar que, na América Latina, sobretudo nos países que sofreram
com as ditaduras, está em curso uma “política da memória”. Segundo Seligmann-Silva
(2005), essa política tem sido muito mais partidária do que cultural. “[...] aqui ocorre
uma convergência entre política e literatura. Dentro de uma perspectiva de luta
de classes assume-se esse gênero como o mais apto para representar os esforços
revolucionários dos oprimidos.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 87)
No início dos anos 1970, o governo Allende e a ditadura chilena, a partir de 1973,
também foram responsáveis pelo estabelecimento do gênero testimónio na América
Latina. O resgate da memória em sociedades pós-ditatoriais vem carregado de outro
tipo de questões que apontam para problemas de violação dos direitos humanos,
justiça e até mesmo de responsabilidade coletiva, que colocam na lista de discussões
a tríade: memória, esquecimento e trauma.
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Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
Em uma entrevista a Oscar Ranzazine, Dorfman afirmou que o texto foi escrito
levando em consideração certa elaboração literária, com a pretensão de comover a
opinião pública sobre a situação chilena. Contudo, após a leitura do livro, percebe-se
que, além de testemunhar sobre a situação do Chile na ditadura de Pinochet,
Ariel Dorfmam também pretendeu, por meio da história da sua vida, que ele recupera
desde a infância e do passado de seus pais, discutir algumas questões pessoais, tais
como a busca por uma identidade própria que ele achava nunca ter tido.7
Todos nós desejamos descobrir como começamos, forçar a memória.
Essa obsessão: voltar o máximo possível às suas origens, tentar estar ali
para observar a si mesmo ser observado na existência. Mas a espécie
decretou que estaríamos presentes sem jamais sermos capazes de
recordar tudo [...]. E assim, durante muitos e muitos anos necessários
para escrever este texto, refleti sobre os eventos de minha vida e de meu
país, interroguei-o como um prisioneiro morto, deixei-o girar e girar em
minha mente como um talismã ou uma maldição. Mas a pedra do
meu passado tornava-se mais lisa e mais enigmática à medida que eu a
manipulava. E quanto mais eu tentava acessar aquelas imagens, mais
eu me afastava do que havia testemunhado naquele dia. (DORFMAN,
1998, p. 62)
A obra de Dorfman traz em si uma reflexão que vimos esboçando ao longo deste
ensaio: a impossibilidade de a linguagem representar o trauma, o horror e a necessidade
imperiosa de contá-lo mesmo assim. Ao convidar o leitor para partilhar suas memórias,
o autor estabelece um jogo de linguagem entre o negar as recordações para narrá-las
em seguida, e termina por fazer um resumo das histórias que povoam sua memória
e sua narração, prestes a começar.
Conheci uma mulher que fora torturada no Chile. O que a salvara nos
piores momentos, ela me contou, foi a repetição incessante de algumas
frases de Neruda ou Machado – estranho, ela nunca mais conseguiu
se lembrar do autor nem das frases – lembra-se que eram versos que
continham água, árvores, ela achava, algo sobre o vento. O que importa
é que ela se concentrava nele com fúria, de modo a deixar bem claro para
si mesma como era diferente dos homens que a estavam fazendo sofrer.
7 Entrevista do autor a Oscar Ranzazine. Disponível em: http://www.gacemail.com.ar/Detalle.asp?NotaID=10101, acesso em:
03/03/2010
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Renata Feital
Ela descobriu que, dentro de si mesma, além daquelas mãos e do que
estavam lhe fazendo, havia um espaço todo seu, que poderia permanecer
intacto, uma pequena zona no mundo que podia manter longe deles.
Um poeta morto estava lhe fornecendo esse escudo, com esse anjo da
guarda da língua. Enquanto repetia em silêncio essas palavras para si
mesma, esperava ser exterminada para sempre. [...] Vi muitas pessoas
como ela, anônimas, pessoas desconhecidas, sofrendo outras tentativas
de serem eliminadas, sugadas para o buraco negro da história. Talvez
não sobrevivam, como ela sobreviveu, para contar a história. Sabemos
que a mulher, mesmo que não haja ninguém lá, espera ser ouvida. Não
somente por si mesma. E o que ela estava dizendo era simples. Ela não
estava disposta, mesmo que ninguém estivesse escutando, mesmo que
o seu destino fosse desaparecer da face da Terra, a ser tratada como
objeto. Não estava disposta a deixar outros narrarem a sua vida e a sua
morte. Enquanto houver uma pessoa como ela neste mundo, estarei
defendendo o seu direito de lutar e a nossa obrigação de lembrar. O que
mais posso dizer? (DORFMAN, 1998, p. 338-339)
Há uma tendência a negar o trauma, o conflito, o sofrimento. Isso encontra
respaldo em vários fatores que acontecem nas sociedades. No caso da América
Latina, os ditadores e autores coletivos de crimes contra a humanidade vivem para
provocar o esquecimento, além, é claro, de, num primeiro momento, aqueles que
sobreviveram e foram vítimas desejarem se “esquecer” do seu passado traumático.
Há, ainda, outra resistência ao real que seria a marca da nossa cultura atual. Vive-se,
hoje, marcado pela presença traumatizante da violência nas imagens que chegam via
televisão e outros meios de comunicação.
É nesse sentido que podemos entender a obra híbrida de Ariel Dorfman. Em parte,
a memória de sua vida marcada por exílios e mobilidades, como também reflexões
pela tentativa de construção do socialismo no Chile, o fracasso da revolução, o golpe
de estado, sua ativa participação como intelectual que abraçou a causa, o governo
da Junta Militar, finalmente em relação a Pinochet e à perseguição a todos aqueles
que acreditaram que poderiam vencer o imperialismo. Em nome de tudo isso, ele foi
testemunha e, entre obras de ficção e não ficção, contou a experiência de muitos que
ainda não puderam relatar seus traumas vividos. Daí, ele afirmar em vários momentos
ter encontrado na literatura o refúgio e o lar que nunca teve.
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Trauma e testemunho nas memórias de Ariel Dorfman
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O TEMA POÉTICO DA LUZ EM
RIMBAUD: DIÁLOGOS COM A POESIA
FINISSECULAR
Antonio Francisco de Andrade Júnior
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Doutorando em Literatura Comparada pela UFF
contato: [email protected]
Resumo: Este trabalho desenvolve uma análise do poema “Marinha”, que está
no livro Iluminações, do poeta finissecular francês Arthur Rimbaud, mostrando que,
nele, o tema poético da luz pode ser compreendido como um signo de questionamento
do paradigma moderno que vincula a noção de luz à de racionalidade. Em seguida, o
ensaio tenta apresentar duas possibilidades de diálogo entre essa questão, presente
já na poética clássica de Rimbaud, e o modo como ela reaparece na obra de Mário de
Andrade, ícone do nosso modernismo, e de Armando Freitas Filho, um dos poetas
brasileiros mais importantes no cenário contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: poesia; modernidade; visualidade.
Abstract: This paper develops an analysis of the poem “Marine”, which is in the
book Illuminations, by the French poet Arthur Rimbaud (1754-1791). It highlights the idea
that ‘light’, as a poetic theme, can be understood as a questioning sign of the modern
paradigm that binds the concept of light to the concept of rationality. Next, the essay tries
to present two possibilities of dialogue between that question, which is already present in
Rimbaud’s classical poetry, and the way it is reissued in Mário de Andrade’s oeuvre,
an icon of our modernism, and Armando Freitas Filho, one of the most important Brazilian
contemporary poets.
KEYWORDS: poetry; modernity; visuality.
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Antonio Andrade
Resumen: Este trabajo desarrolla un análisis del poema “Marina”, que está en el
libro Iluminaciones, del poeta finisecular francés Arthur Rimbaud, mostrando que se puede
comprender ahí el tema poético de la luz como un signo de cuestionamiento del paradigma
moderno que relaciona la noción de luz a la de racionalidad. Luego el ensayo trata de
presentar dos posibilidades de diálogo entre tal cuestión, presente ya en la poética clásica
de Rimbaud, y el modo como ésta reaparece en la obra de Mário de Andrade, ícono
do nuestro modernismo, y de Armando Freitas Filho, uno de los poetas brasileños más
importantes en el escenario contemporáneo.
PALABRAS
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CLAVE :
poesia; modernidad; visualidad.
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O tema poético da luz em Rimbaud:
diálogos com a poesia finissecular
[...] tanto a tendência característica dos simbolistas de sugerir mais do
que dizer claramente, como seu culto do ponto de vista pessoal e
único, são sintomáticos do grau em que estavam desligados dos
semelhantes, confinados às suas imaginações privativas. Outro herói e
pioneiro do Simbolismo, contudo, iria lutar contra o mundo e
sobreviver – embora sobrevivesse como outra coisa que não um poeta;
e sua carreira revela toda a situação, num dramático jorro de luz.
(WILSON, 1959 - O castelo de Axel)
AS ILUMINAÇÕES
Um dos livros que marcam de maneira mais contundente a modernidade é
Iluminações, de Arthur Rimbaud. Dentre os poemas que o constituem, estão alguns
que representam, de maneira paradigmática, a tempestade de desafogo e de fantasia
que, segundo Hugo Friedrich, desarticulará o formalismo ainda fortemente presente
na poesia do final do século XIX. Tal processo indicia uma mudança de perspectiva
com relação aos modos de representação lírica da realidade, evidenciando que a
linguagem não é uma simples repetição mimética do real visível.
Para isso, uma das técnicas mais utilizadas por Rimbaud, nesta obra, é a da fusão
de imagens – num processo, ao mesmo tempo, metafórico e metonímico. O poema
“Marinha” é um bom exemplo dela. Eis a sua tradução do original francês:
MARINHA
Carros de prata e cobre –
Proas de aço e prata –
Golpeiam a espuma, –
Erguem touceiras de sarças.
As correntes da charneca,
E os sulcos imensos do refluxo,
Correm circularmente para o leste,
Para os pilares da floresta,
Para os fustes do dique,
Cujo ângulo é batido por turbilhões de luz.1
1 “Marine”: “Les chars d’argent et de cuivre – / Les proues d’acier et d’argent – / Battent l’écume, – / Soulèvent les souches des ronces. /
Les courants de la lande, / Et les ornières immenses du reflux, / Filent circulairement vers l’est, / Vers les piliers de la forêt, – / Vers les
fûts de la jetée, / Dont l’angle est heurté par des tourbillons de lumière.” (Grifo nosso). In: Friedrich, Hugo. Estrutura da lírica
moderna. 2. ed. Tradução de Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Duas Cidades, 1991, p. 85.
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Antonio Andrade
Nele, o poeta provoca o estranhamento entre o título e a imagem inicial, pois,
em lugar de barcos, o que aparece primeiro são os “Carros de prata e cobre”, que, no
entanto, também vão sendo novamente confundidos com a metonímia de navios,
“proas de aço e prata”, tornando, assim, o texto a união metafórica e tensiva de
imagens opostas: barcos são carros. Essa fusão de imagens terrestres e marinhas do
carro e do navio – pois ambos “Golpeiam a espuma” – gera, então, o obscurecimento
da realidade visual e do sentido propostos pelo texto. Dessa maneira, sem abandonar
os elementos naturais, a obra de Rimbaud estabelece, segundo Antonio Candido, a
tensão “entre mostrar e esconder o mundo visível.” (CANDIDO, 1993, p. 114).
Esse mecanismo rimbaudiano de construção da paisagem afasta-se, assim, da visão
contemplativa e bucólica da natureza, tanto da floresta quanto do mar. Neste sentido,
a configuração de um olhar em movimento tem aí importante papel na renovação da
experiência lírica de ver a realidade. Não é à toa que o mote de construção do poema
é a superposição de imagens concentradas no próprio movimento de veículos, de
diferentes meios, impelidos em direção à luz. Esta, ao invés de símbolo de completude e
estaticidade, aparece associada à imagem do turbilhão, correspondendo à tentativa de
fixação do mais intenso movimento em uma única palavra.
Em “Alquimia do verbo”, de Uma temporada no inferno, Rimbaud afirma: “Eu
escrevia silêncios, [...]. Fixava vertigens”, confirmando seu método de fixação do
movimento vertiginoso como um instante de iluminação. A relação entre a fixação
plástica do movimento descontrolado e a configuração da monstruosidade bela das
iluminações pode ser percebida, também, nos versos do poema “Movimento”: “Vê-se,
rolando como um dique além do caminho hidráulico-motriz, / Monstruoso,
iluminando-se sem fim”. Além disso, essa relação entre luz e movimento convoca a
imbricação dos conceitos de ver e tocar, desestabilizando, assim, a acepção imaterial
e, por isso, afastada do humano, que a ideia de luz possui na cultura ocidental.
Em “Marinha”, por exemplo, os fluxos e refluxos do movimento interrompidos pelas
árvores e represados pelo dique são capazes de transformar a plasticidade imaterial
da luz na agressividade tátil do turbilhão. Paradoxalmente, portanto, a metáfora da
luz em movimento turbilhonado não só indicaria um efeito contrário de obscuridade
visual e, consequentemente, interpretativa, mas também de clímax convulsionado,
em lugar de constituir qualquer espécie de conclusão reveladora e tranquila, ou de
transcendência metafísica.
Por isso mesmo, as Iluminações podem ser caracterizadas como o signo de
uma ruptura na relação de identificação entre autor e leitor no século XIX. E, por
conseguinte, um dos pontos altos de uma estética da desreferencialidade da lírica
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O tema poético da luz em Rimbaud:
diálogos com a poesia finissecular
moderna, que começa a se esboçar a partir de Baudelaire. Está colocado aí, portanto,
um grande paradoxo: a linguagem moderna é marcada por “turbilhões de luz”,
presentes não só como imagem, mas também como signo de complexificação da
própria modernidade. Esta, que é caracterizada por Marshall Berman como um
“turbilhão de permanente desintegração e mudanças, de luta e contradição, de
ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15), deve ser compreendida como um
movimento dialético de desestabilização de certezas – não à toa Berman recupera e
valoriza a frase de Marx “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Sendo assim, a ideia
de turbilhão é fundamental para se compreender como a modernidade questiona a
ideia imobilizante da luz, revelando assim suas próprias contradições.
Mesmo sendo a priori definida como período de hegemonia do pensamento
iluminista, a modernidade possui vertentes de contestação à ordem racionalista.
Estas vertentes podem ser identificadas, por exemplo, na poesia finissecular, que ao
mesmo tempo que valoriza a imersão do sujeito nas sombras da atmosfera onírica
do sonho e do devaneio, por vezes até satânico, continua a lançar mão da ideia de
Iluminação, tradicionalmente vinculada às de Clareza e Razão, mas fazendo um novo
aproveitamento dela. Na modernidade, a luz pode se tornar índice de multiplicidade
e ambiguidade, bem distante do ideal unívoco de Beleza associado por Platão às
ideias de Luz e Verdade, das quais a mimese artística estaria duas vezes afastada,
segundo o filósofo.2 Essa mudança pode ser percebida, por exemplo, no
impressionismo, cuja técnica de pintar a mesma paisagem em momentos distintos
do dia desvela as diversidades de impressões que a incidência da luz sobre os objetos
pode criar no sujeito. Ou seja, o século XIX, tanto na pintura quanto na poesia,
desconstrói a noção de luz enquanto fonte de visão e verdade unívocas.
O poema de Rimbaud, então, paradigmático desse processo de questionamento
da modernidade, nos permite rever as noções de luminosidade e visibilidade, já que,
nele, a luz é menos o que nos faz enxergar o real visível – que o esforço do artista
deveria tentar imitar, segundo a concepção mimética – e mais o que, na verdade,
tornaria obscura e oblíqua a interpretação do texto. Ela é, pois, elemento de
desintegração da linguagem. Não à toa, esse poema foi, na França, o fundador da
estética do verso livre – marco da desarticulação do formalismo oitocentista. Toda
a sua forma de composição é signo de ambiguidade e de polimorfia. Pois, nele,
misturam-se categorias opostas, unindo-se luminoso e obscuro, liberdade métrica e
2 Atentamos, contudo, para o fato de que essa estagnação totalizante, defendida pela visão racionalista ortodoxa, que separa os
paradigmas de sujeito “vidente” e visível, de claro/escuro e de (in-)visibilidade em Platão, deveria ser melhor discutida desde o
famoso “mito da caverna”, de A República, já que ali estão imbricadas as noções de luz (fogo) e sombra na configuração mítica do
espaço do vísivel (mundo das aparências).
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Antonio Andrade
grotesco, numa linguagem que, em vez de comunicar com “clareza”, agora sem os
entraves da metrificação, busca o estranhamento e a desreferencialidade, como se o
excesso de luminosidade fora o responsável por borrar todos os contornos do visível,
da mesma forma que a luz muita intensa também é capaz de cegar.
Essa tensão entre o visível e o invisível seria, na verdade, fundamental para se
compreender o próprio ato de ver, já que toda visão é formada a partir do ponto de
vista de um sujeito, pressupondo que aquilo que é visto esconde o que não o é, e
que pode ser observado de uma outra perspectiva. Essa é a lição da fenomenologia
de Merleau-Ponty, para a qual o conhecimento do mundo só pode se dar através da
relação entre sujeito e objeto – destronados da sua condição de “preexistentes”.3
Essa dicotomia entre objetividade e subjetividade pode ser atestada através da
oposição entre a poesia preocupada com a investigação do real visível e a que se
dedica à perscrutação da intimidade. E sabe-se que tal antinomia – realismo e
subjetivismo – se constituiu em critério crítico de divisão das épocas literárias. No
entanto, como aprendemos com Merleau-Ponty, tal separação totalizante tenta, na
verdade, esconder a tensão que integra toda forma de visão. Sendo assim, o olhar
da lírica sobre a própria subjetividade só pode torná-la ponto de confluência entre o
visível e o invisível, o mundo real e o subjetivo. Por isso mesmo, em Rimbaud e na
poesia moderna em geral – marcada pela impossibilidade de tanto um quanto outro
funcionarem como uma válvula controladora ou fonte apriorística para a poesia –,
encontramos, ao mesmo tempo, o movimento de fragmentação da subjetividade e,
por conseguinte, de configuração de uma perspectiva desarticuladora do real.
A corrosão da linguagem e da subjetividade poética que caracteriza o turbilhão da
modernidade pode ser percebida através da reversibilidade do ver e do ser visto na poesia
e nas artes em geral.4 O sujeito, agora, se mostra explicitamente fragmentado, habitando
um lugar de incertezas, já que ganha plena consciência de que não domina o foco
da visão sobre o real – de que não pode domar a infinitude das coisas... Por isso, a
experiência do sujeito moderno passa pelo desconforto de se sentir também objeto
da coisa vista. Em Rimbaud, mais uma vez, a luz exerce um papel decisivo nessa
reversibilidade das noções de sujeito e objeto, de ver e de ser visto. Como se já não
3 Através do tempo, o sentido da visão foi tomado como o valor de verdade absoluta, o que explicaria o lugar central do ver para quase
todos os pensadores que teorizaram sobre o conhecimento humano. Marilena Chauí, no ensaio “Janela da alma, espelho do mundo”,
mostra como, na filosofia, a ideia de ver se vincula à de conhecer, o que caracteriza a fé perceptiva como tributária da fé racionalista,
tendência que imobiliza o olhar como um ponto de distanciamento entre o sujeito e o objeto, desconsiderando o seu duplo valor – de
possuir um papel, ao mesmo tempo, passivo e ativo na constituição das imagens. E tudo isso representa uma desconsideração ainda
mais importante, que é a da lacuna entre sujeito e objeto ou, de outro modo, do abismamento do Ser no mundo, e vice-versa.
4 O dinamismo do ver e do ser visto foi compreendido por Lacan como uma forma de a arte representar a pulsão escópica que
caracteriza, segundo ele, a própria formação do indivíduo.
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O tema poético da luz em Rimbaud:
diálogos com a poesia finissecular
bastasse a sua clássica afirmação, em Carta do vidente, “Je est un autre!” (“Eu é um
outro!”), Rimbaud também escreve “Nácar vê”, que significaria tudo o que brilha vê.
Segundo Gaston Bachelard (2000), esse seria um dos maiores teoremas da imaginação
do mundo da luz, por conter em si a presença do olhar alheio. Com outras palavras, isso
poderia indicar que a luz de uma lâmpada, por exemplo, vela e também vigia. Em outros
poetas, também se desvela esse movimento de transformação do que olha em o que
é olhado. No poema “Emparedado”, de Christiane Barucoa, poeta também citada por
Bachelard, lemos, por exemplo: “Uma lâmpada acesa atrás da janela / Vela no coração
secreto da noite”. A luz aí é, portanto, um indício do olhar do outro que habita a casa.
No poema “Vigílias”, Rimbaud consegue, ainda, fazer uma relação entre a lâmpada e o
mar, como se fundisse a imagem do barco e do seu interior à vastidão do oceano. “As
lâmpadas [...] da vigília”, afirma, “fazem o barulho das vagas, à noite, ao longo do casco
do navio e em torno da terceira classe”.
COM ÓCULOS RIMBAUD
Reunindo tantas questões pertinentes ao debate sobre a modernidade, a obra
rimbaudiana repercutiu na poesia brasileira de tal maneira que Mário de Andrade
chega a fazer a seguinte afirmação em A escrava que não é Isaura: “Não imitamos
Rimbaud. Nós desenvolvemos Rimbaud. ESTUDAMOS A LIÇÃO RIMBAUD” [grifos
do autor]. Com essa afirmação, Mário inaugura o nosso modernismo com uma
referência explícita ao poeta francês, deixando, contudo, patente a característica
antropofágica desse movimento preocupado em reformular, numa nova e instigante
perspectiva, a herança – influência inevitável – da tradição literária europeia.
Esse diálogo pode ser confirmado através da poesia andradina, na qual o tema
poético da luz também possui um papel capital como metáfora que subverte as
concepções tradicionais de claro e obscuro, problematizando de uma só vez a
composição da imagem e a configuração da subjetividade. Isto pode ser percebido
nos poemas “Paisagem nº 3” (“De repente / um raio de sol arisco / risca o chuvisco
ao meio.”), “Seis horas lá em São Bento...” (“Estilhaço me fere nos olhos o sangue
da aurora”), “Noturno de Belo Horizonte” (“Maravilha de milhares de brilhos
vidrilhos, / Calma do noturno de Belo Horizonte.../ [...] / Enormes coágulos de
sombra. / [...] / Alegria da noite de Belo Horizonte!”), “Poemas da negra”
(“É a escureza suave, / Que vem de você, / Que se dissolve em mim. / [...] / E nós
partimos adorados / nos turbilhões da estrela Vênus!...”), “Louvação da tarde”
(“Tarde incomensurável, tarde vasta, / Filha de Sol já velho, filha doente”),
“Manhã” (“As sombras se agarravam no folhedo das árvores / Talqualmente preguiças
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Antonio Andrade
pesadas. / O sol sentava nos bancos tomando banho-de-luz.”) e “A meditação do
Tietê” (“De repente / O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, / É um susto.
E num momento o rio / Esplende em luzes inumeráveis”).
Desenvolver, aí, significa, então, modificar. Mário, por isso, traduz toda a
problemática da modernidade em belas imagens que remetem à paisagem brasileira.
Nelas se estabelece a tensão entre as figuras de alegria, calma, suavidade e preguiça
e as de susto, turbilhão, incomensurabilidade e estilhaçamento. Nesse sentido,
podemos entender, portanto, que a obra de Rimbaud, poet’s poet para várias
gerações, acabara sendo, ao mesmo tempo, obstáculo e estímulo para a produção
poética durante todo século XX e até hoje, ora constituindo-se como um diálogo
sub-reptício e silencioso, ora como um aberto exercício de intertextualidade. E um
dos exemplos mais significativos desse exercício na poesia brasileira contemporânea
é o do poema “Com óculos Rimbaud”, do livro De cor, de Armando Freitas Filho:
COM ÓCULOS RIMBAUD
Escrevo sob a luz entrecortada
das bombas que explodem
nas águas da televisão.
Se não, estaria tudo escuro
aqui dentro.
E o branco desta folha, aí fora
neste barco livre
não seria alvo
dessas iluminações sobressaltadas.
Descrevo um clima com 2 sentidos:
uma previsão do tempo de dentro
uma visão do tempo de fora
enquanto entre um e outro
numa estação de ferro
se comete, no tempo instável
com mão-caranguejo e muito tato
um crime
que é um anticlímax perfeito.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
O tema poético da luz em Rimbaud:
diálogos com a poesia finissecular
Nesse poema, fazendo um trocadilho entre as palavras Rimbaud e Ray-Ban,
Armando interpreta a lição do mestre francês como uns óculos escuros que,
ao mesmo tempo, protegem a visão da claridade solar e impõem-lhe uma nova
percepção do mundo visível. Nesse sentido, o desenvolvimento que ele dá a essa
lição é o de tornar-lhe uma nova forma de ver que desestabiliza a separação entre
o dentro e o fora, entre o real e o poético. Nele, “a luz entrecortada” é índice do
estilhaçamento da subjetividade e da fragmentação do visível. Essa luz, sob a qual o
eu lírico escreve, efeito “das bombas que explodem / nas águas da televisão”, é o
elemento que constrói a imagem, confundindo o espaço real ao espaço virtual.
“E o branco da folha”, lugar da criação poética, é, ao mesmo tempo, atingido por
dois focos de luz – um do mundo e outro da própria poesia. Dessa maneira,
afirmativamente tributário do legado rimbaudiano, Armando metaforiza a produção
poética contemporânea como um espaço entre dois lugares de instabilidade. Um é o
da espetacularização e o da proliferação das imagens midiáticas. E o outro, o da
tradição moderna da poesia finissecular, que continua, um século depois, sendo fonte
instigante de releituras.
Referências
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Antonio Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 21-53.
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modernidade. Trad. Carlos Moisés e Ana Ioriatti. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.
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• CANDIDO, Antônio. As transfusões de Rimbaud. In: LIMA, Carlos (Org.).
Rimbaud no Brasil. Rio de Janeiro: Eduerj, 1993, p. 113-116.
• CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto
(Org.). O olhar. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
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Antonio Andrade
• FREITAS FILHO, Armando. De cor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
• FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Trad. Dora F. da Silva.
São Paulo: Duas Cidades, 1991.
• LEVIN, David Michael. Modernity and the hegemonity of vision. California:
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• MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. 4. ed. Trad. José Gianotti e
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São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 23-34.
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Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
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• WILSON, Edmund. Axel e Rimbaud. In: ______. O castelo de Axel: estudo
sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Trad. José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 1959.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
HERÓI CLARICEANO
Angélica Castilho
Faculdade CCAA
Colégio Estadual Visconde de Cairu
Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: Este trabalho tem por objetivo mostrar que a ruptura com a estabilidade
sugerida pelo cotidiano e o desmanchar de verdades construídas ou mesmo adquiridas
durante a trajetória das personagens são elementos comuns nas obras de Clarice
Lispector e apontam a tragicidade como uma consequência da vida das personagens.
O percurso das personagens está vinculado às escolhas feitas por elas, anunciando a
crise decorrente da liberdade parcial humana. Portanto, o herói moderno surge limitado,
inquieto, contraditório, solitário e sem destino. A presença ou a ausência de Deus
não ameniza a situação de desamparo. Não há certezas nem estados permanentes.
A felicidade é “clandestina”.
PALAVRAS-CHAVE: herói; transgressão; existência; Modernidade.
Abstract: The aim of this essay is to show that, in Clarice Lispector’s books, when
it comes to her characters’ lives, both of these elements are common: the rupture with
stability, as it it suggested by daily life, and the disarrangement of the truth, be it constructed
or even acquired. These elements point towards tragedy as a consequence of the characters’
lives. Their path is tied to the choices they make, heralding the subsequent crisis, which
arise from the partial human freedom. Therefore, the modern hero appears limited: he is
uneasy, contradictory, lonely and has no destiny. God’s presence or absence doesn’t soothe
the feeling of abandonment. There are neither certainties, nor permanent states. Happiness
is “clandestine”.
KEYWORDS: hero; transgression; existence; modern period.
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Angélica Castilho
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo presentar que la ruptura con la
estabilidad sugerida por el día a día y el deshacer de las verdades construidas o incluso
aquellas adquiridas durante la trayectoria de los personajes son elementos comunes en
las obras de Clarice Lispector e indican que lo trágico es consecuencia de la vida de los
personajes. El trayecto de dichos personajes está vinculado a elecciones realizadas por ellos
mismos, anunciando la crisis resultante de la libertad parcial humana. Por lo tanto, el
héroe moderno surge limitado, inquieto, contradictorio, solitario y sin destino. La presencia
o la ausencia de Dios no amenizan la situación de desamparo. No existe seguridad ni
estado permanente. La felicidad es “clandestina”.
PALABRAS
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CLAVE :
héroe; transgresión; existencia; modernidad.
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Herói clariceano
O livro de estreia de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem (1943), apresenta
um tema mantido na obra da autora: a travessia do ser humano pela vida e sua
condição heroica. Todavia, a autora não utiliza a figura do herói trágico clássico que
percorre obstáculos até uma morte inevitável. O trágico não é, necessariamente,
o que ocorre ao herói, mas sim o que este desencadeia em sua vida; portanto, as
personagens clariceanas são agentes e não pacientes.
São muitas as indagações feitas e são muitos os limites ultrapassados. Por isso,
as personagens caracterizam-se como transgressoras. No romance citado acima,
Joana, desde criança, manifesta o desejo de “ser herói” ao crescer (LISPECTOR, 1995,
p. 34). Tanto esta quanto as demais personagens estão em construção e, por isso,
são expostas internamente: ideias, sentimentos, sensações. O ponto de partida para
a indefinição do eu frente ao mundo, aos outros e a ele mesmo está nesse ar de
rascunho que as personagens clariceanas detêm. O incômodo de ser um eu para os
outros, sem saber ainda quem é, marca o início das buscas e a necessidade de romper
com a ordenação e a repetição apresentadas no cotidiano.
Tendo em Joana uma personagem na qual se concentram, simultaneamente, revolta
e necessidade de ir além, pode-se afirmar que ela desenvolve aspectos fundamentais
para tornar-se um herói clássico: ultrapassagem de limites, exercícios de habilidades,
coragem de assumir suas vontades e executá-las. Todavia, apresenta contradições e
inquietações típicas do homem moderno. O que angustia a personagem clariceana é o
ruir de concepções, é a paixão não só como sofrimento, mas como arrebatamento
causado por um desmoronamento de mundo, é a certeza crescente de sua
responsabilidade por ser quem é.
Joana aproxima-se do conceito de herói trágico quando acredita ser capaz de
controlar sua vida, quando não compreende o seu destino e acrescenta à sua vida
um dado novo: a indagação. Ela não ignora o que acontece. Quer saber o porquê do
estranhamento causado por estar no mundo. Diferente do herói trágico clássico, Joana
não ignora os fatos que a rodeiam e não é surpreendida como Édipo. O trágico não
surge de uma fatalidade desconhecida e exterior à personagem, mas justamente da
sua ação no mundo.
Na Modernidade, o mundo é a organização das coisas feita por um ser, é seu
cosmos e, como este, relaciona-se com os elementos que o compõem. Se o mundo
construído, se todos os objetivos e verdades desse espaço são postos em xeque,
existe um desmoronamento da realidade do “eu” e ele é arrebatado pelo sentimento
trágico. (DOMENACH, 1968)
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Angélica Castilho
Por Joana perceber o mundo, o outro e a si mesma de forma singular, ela passa
por situações de rompimento entre seus ideais e a realidade. Tais aspectos diferenciam-na
das outras personagens e conferem tragicidade à sua vida. Trata-se de uma personagem
inconformada com a finitude, com o espaço que ocupa, e ansiosa por mudança. Ela
precisa ultrapassar a normalidade que a circunda, a fim de sentir, por um momento,
a felicidade que intui, mas que não vivencia.
A inquietude da personagem é a força motriz de sua vida, mas, também, fonte
de insatisfação. Eis a situação paradoxal vivida pelas personagens:
[...] Quem era ela? A víbora. Sim, sim, para onde fugir? Não se sentia
fraca, mas, pelo contrário, possuída de um ardor pouco comum,
misturado a certa alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de
repente e surpreendeu-se. [...]? (LISPECTOR, 1996, p. 61-62)
A fissura aumenta a cada passo, a cada reflexão, a cada sensação. Tal aspecto
lança as personagens em um estado de abalo muito significativo e marcante para a
formação de seus “eus”, destacando-as como solitárias e senhoras de uma intuição
lúcida. A transgressão necessária acarreta um estado de solidão. Esse exercício
confere a elas a certeza de que todo e qualquer momento de felicidade será furtivo.
No contexto do conto “Felicidade Clandestina”, de livro homônimo (1971), é
evidenciado que mesmo a felicidade passa a ser uma transgressão. Ser feliz é proibido,
algo conseguido após grande sacrifício, revelando o caráter paradoxal desse sentimento
no universo clariceano.
O homem moderno escolhe e toda escolha exclui as demais possibilidades.
Como a felicidade advém de escolhas, nenhuma felicidade é inocente, pois implica
em decisões e não em atos involuntários. As personagens são reflexos da atuante
condição humana, e nisto está uma das origens do trágico na Modernidade. Não é
apenas uma visão sobre um acontecimento, é o estar no mundo como participante.
(DOMENACH, 1968)
Os textos de Clarice Lispector expõem personagens comuns. É precisamente a
condição de normalidade humana que interessa. Não se encontra a dimensão de
superioridade encontrada nos modelos clássicos de herói. São “eus” soltos no dia a dia,
sem interferência do divino. O que Joana de Perto do coração selvagem apresenta de
diferente é seu modo de ver. Ela não é uma semideusa nem possui superpoderes,
por isso, a personagem cresce e continua deslocada, não se transforma no herói que
planejou ser.
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Herói clariceano
Pode-se interpretar que a origem da revolta e a ânsia por ir além, em busca de seus
objetivos, estejam nas capacidades de escolha e de decisão. Ao término da narrativa,
Joana é lançada para um futuro além do texto, ao qual o leitor não tem acesso e só
pode imaginar: tudo e nada pode acontecer, e qualquer suposição não passa de
vã especulação. O final em aberto está em conformidade com a falta de certezas
presente na Modernidade, situando ainda mais a personagem nesse contexto e
dando a dimensão de sua humanidade. Em “Onde Estivestes de Noite”, por exemplo,
a dificuldade de ser herói deve-se a isso “– Que é que eu faço para ser herói? Porque
nos templos só entram heróis.” (LISPECTOR, 1994, p. 59)
Os questionamentos de valores e de crenças, a fragilidade e o deslocamento
humano para delinear uma identidade, mantê-la e definir o espaço no mundo sem
cobranças incompatíveis com os objetivos de vida das personagens e, sobretudo,
sem consequências dolorosas, são os pontos nevrálgicos das narrativas, como se
nota no fragmento da crônica “Os Heróis”, de A descoberta do mundo (1984):
Mesmo em Camus – esse amor pelo heroísmo. Então não há outro modo?
Não, mesmo compreender já é heroísmo. Então um homem não pode
simplesmente abrir uma porta e olhar? (LISPECTOR, 1984, p. 252)
Outro aspecto desse heroísmo está em A maçã no escuro (1961), romance dividido
em três partes, com a segunda intitulada de “Nascimento do herói”. Trata-se de um
herói peculiar que, para reestruturar-se, foge, está à margem dos códigos de conduta e
percebe o cotidiano como elemento fundador de uma nova visão do mundo. Martim
anseia, em sua fuga, encontrar a si mesmo. Nesse rito iniciático, a viagem é símbolo
de uma caminhada de autodescoberta, a qual escapa à lógica e ao bom senso.
A proposta é retornar a um estado primordial, em que seja possível recomeçar:
Pensou que com esse crime executara o seu primeiro ato de homem.
Sim. Corajosamente fizera o que todo homem tinha que fazer uma vez
na sua vida: destruí-la. (LISPECTOR, 1995, p. 124)
[...] Martim foi perdendo, sem sentir, as derradeiras amarras, até que
já não era monstruoso uma pessoa se dar função de pessoa e de
“reconstruir”. O que lhe pareceu facílimo. Até hoje, tudo o que vira fora
para não ver, tudo o que fizera fora para não fazer, tudo o que sentira
fora para não sentir. Hoje, que se rebentassem seus olhos, mas eles
veriam. Ele que nunca tinha encarnado nada de frente. Poucas pessoas
teriam tido oportunidade de reconstruir em seus próprios termos a
existência. [...]. (LISPECTOR, 1995, p. 134-135)
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Angélica Castilho
Um dos aspectos heroicos consiste na persistência em uma causa, mesmo que
não se obtenha êxito ou premiação. No caso das personagens clariceanas, insiste-se
na revista de verdades e, consequentemente, na descoberta de suas naturezas:
Com algum espanto, Martim compreendeu que não havia procurado a
liberdade. Procurara se libertar, sim, mas apenas para ir sem empecilhos
de encontro ao fatal. Quisera estar desimpedido – e na verdade se
desimpedira com um crime – não para inventar um destino! mas para
copiar alguma coisa importante, que era fatal no sentido em que era
alguma coisa que já existia. [...]. (LISPECTOR, 1995, p. 310-311)
O pasmo trágico é inevitável após a tomada de consciência de si e do mundo,
como é constatado nas palavras de Rodrigo S.M., narrador de A hora da estrela (1977):
“[...] A vida é um soco no estômago.” (LISPECTOR, 1996, p. 102). Viver constitui
o grande desafio para as personagens. A visão crítica do narrador expulsa-o da paz
representada pelo falso conforto e pelo medo de mudança expressos na resignação.
A vida é o trilhar pelo sacrifício,1 como enfatiza G.H.: “[...] A condição humana é a
paixão de Cristo.” (LISPECTOR, 1995, p. 179)
Na crônica “Dies Irae”, “o dia da cólera” é uma expressão que faz alusão ao Juízo Final
e que, no texto, representa o momento em que o narrador faz seus julgamentos, dá vazão
a todo sentimento de revolta e tristeza que o sacrifício e a autodescoberta trazem:
Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria
das pessoas estão [sic] mortas e não sabem, ou estão vivas com
charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer
que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso.
E não mentir é um dom que o mundo não merece. [...] E morre-se,
sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma
explicação. [...]
[...] Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes
vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses
que fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu
escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? [...] Queria fazer
alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta
meu coração. (LISPECTOR, 1994, p. 31)
1 O conceito de sacrifício aqui abordado é apresentado por Benedito Nunes em O drama da linguagem: uma leitura de Clarice
Lispector: [...] o ascetismo é um método que visa fundamentalmente ao sacrifício do eu, extirpando o senso de propriedade da
criatura humana em relação a si mesma. A ascese só se completa quando, pela ação conjugada de suas técnicas de redução da
sensibilidade, da inteligência e da vontade – que levam ao despojamento interior e aos diversos graus de vida contemplativa –, dá-se
a superação das limitações egoístas que separam o indivíduo da totalidade do real. Nesse sentido, a nudez e o esvaziamento
ascéticos constituíram uma antecipação da morte. (NUNES, 1989, p. 102)
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Herói clariceano
Mesmo em cólera, a personagem vislumbra a existência do divino; é em Um sopro
de vida, porém, que a caminhada solitária do homem moderno fica evidenciada:
“Deus é abstrato. Esta é a nossa tragédia.” (LISPECTOR, 1994, p. 148). Nesse aspecto
da obra clariceana, encontra-se outro arrebatamento patético,2 que expõe igualmente
as personagens ao desconforto e à angústia:
[...] E espera-se, inutilmente, o milagre. E quem não espera o milagre
ainda é pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão
cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que
seria o contrário da cólera. (LISPECTOR, 1994, p. 31)
Outro aspecto relevante na construção do universo trágico clariceano é a
apropriação do grotesco como objeto literário, contrariando, assim, o pressuposto
aristotélico de que a imitação paute-se na beleza como sendo ações grandiosas e
corajosas (ARISTÓTELES, 1993). Clarice Lispector utiliza a feiura seriamente e torna-a
trágica, como a figura de Macabéa em A hora da estrela, que “nem pobreza enfeitada”
possui (LISPECTOR, 1996, p. 35). Os textos abordam momentos de transgressão
da ordem interior e da exterior, mostram, ainda, que a busca pelo divino que a vida
simboliza encontra-se igualmente na feiura, como em A paixão segundo G.H.:
Aguenta [sic] eu te dizer que Deus não é bonito. E isto porque Ele não
é nem um resultado nem uma conclusão, e tudo o que a gente acha
bonito é às vezes apenas porque já está concluído. [...]
Não quero a beleza, quero a identidade. A beleza seria um acréscimo, e
agora vou ter que dispensá-la. O mundo não tem intenção de beleza,
e isto antes me teria chocado: no mundo não existe nenhum plano
estético, nem mesmo o plano estético da bondade, e isto antes me
chocaria. A coisa é muito mais que isto. O Deus é maior que a bondade
com a sua beleza. (LISPECTOR, 1995, p. 162)
Aristóteles (384-322 a.C.) definiu a concepção de catarse como depuração, isto
é, anulação das comoções e identificação com a ordem (ARISTÓTELES, 1993). Na obra
clariceana, tal conceito é abolido, porque os textos chamam a atenção do leitor
para angústias e inquietações do “eu”, universalizando e partilhando tais experiências
e sensações, causando um reconhecimento de sentimentos, e não um afastamento,
pois as personagens vivenciam o cotidiano e não situações fantásticas e relacionadas
a uma condição de excelência própria aos textos analisados por Aristóteles.
2 O estado patético característico de algumas personagens é oriundo do pathos que, etimologicamente, significa “vivência”,
“desgraça”, “sofrimento”, “paixão”. A Antiguidade chegava mesmo a atribuir ao arrebatamento patético uma anomalia, por tirar
o homem do comedimento que a razão produz. Pathos vem a ser, na atualidade, o sentimento que surge impetuoso de um choque,
de uma forte decepção. (STAIGER, 1975)
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Angélica Castilho
De acordo com Raymond Williams (1921-1988), na Modernidade:
[...] a definição de tragédia tornou-se uma definição centrada num tipo
especial de ação espiritual, mais do que em acontecimentos específicos,
e uma metafísica da tragédia substitui a ênfase moral, seja crítica, seja
comum. Essa nova ênfase sobre a tragédia como um tipo específico, até
mesmo raro, de ação e reação marca a principal emergência de ideias
trágicas modernas. (WILLIAMS, 2002, p. 54)
Não é difícil reconhecer, nas palavras do teórico, a concordância com o
comportamento das personagens clariceanas. Seus percursos são interiores e as
narrativas, relatos ora do momento de revelação por que passam, ora das consequências
da vivência trágica. O sentimento trágico ultrapassa os fatos concretos e recai sobre
as percepções de mundo do homem moderno.
Nesse pendular entre desamparo e abalo, algumas personagens não se revoltam
e aceitam sua condição cindida de inteireza, como G.H.:
Mas agora, através de meu mais difícil espanto – estou enfim caminhando
em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que
construí, caminho para a despersonalização. (LISPECTOR, 1995, p. 177)
A deseroização de mim mesma está minando subterraneamente o meu
edifício, cumprindo-se à minha revelia como uma vocação ignorada. Até
que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
[...]
A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a
fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente
até enfim atingir a altura de poder cair – só posso alcançar a
despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz.
[...]. (LISPECTOR, 1995, p. 179)
A angústia é um sentimento inevitável. O indivíduo angustia-se, porque se
encontra em situação de escolha, sem orientação ou apoio e porque está condenado
a ser livre. Eis um pensamento da filosofia existencialista na obra clariceana, não com
uma experiência que conduza ao nada, mas como uma via para uma plenitude fora
dos padrões conhecidos até então, porque se constrói individualmente (NUNES,
1989). Esse é o grau de liberdade a que chegam as personagens clariceanas, como
Ângela de Um sopro de vida (1978):
[...] Entre o “sim” e o “não” só há um caminho: escolher. Ângela escolheu
“sim”. Ela é tão livre que um dia será presa. “Presa por quê?” “Por excesso
de liberdade”. “Mas essa liberdade é inocente?” “É”. “Até mesmo ingênua”.
“Então por que a prisão”? “Porque a liberdade ofende”. (LISPECTOR, 1994,
p. 72)
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Herói clariceano
O peso da responsabilidade de ser livre em um mundo onde não apenas a relação
entre os homens e os conceitos morais estão sendo debatidos, mas também, cada
conceito existente. (WILLIAMS, 2002)
O que G.H. chama de “minha tragédia”, de “meu destino maior” opõe-se à vida
cotidiana automatizada com “enredo” de fatos exteriores. “[...] Quem sabe eu tive de
algum modo pressa de viver logo tudo o que tivesse a viver para que me sobrasse
tempo de... de viver sem fatos? De viver. [...]” (LISPECTOR, 1995, p. 29). A grande
vivência que a personagem anuncia é a transgressão inserida no processo de
transformação do próprio “eu”, na experiência interior feita de sensações e de
“estado de graça” (LISPECTOR, 1993, p. 92) anunciado em Água viva (1973).
A consequência da liberdade é um dos elementos centrais para a construção dos
perfis das personagens clariceanas. Elas libertam-se devido ao questionamento
constante do mundo e à busca por identidade. A vontade é importante, porque
possui força realizadora e transformadora. A ação – mesmo ocorrendo dentro
da personagem – aponta para um problema3 a ser resolvido após a tomada de
consciência.
De um lado, a personagem questiona as verdades do mundo, do outro, a sociedade
apresenta normas, surgindo o conflito. Sendo assim, a obra está em sintonia com
o cenário da segunda metade do século XX: exercício da liberdade e suas
consequências.
Condenados a essa liberdade parcial, desejando o autoconhecimento e o alcance
do outro, as personagens encontram-se em encruzilhadas e precisam fazer opções.
A paixão surge como etapas a serem ultrapassadas e está expressa claramente nos
títulos A paixão segundo G.H. e A via crucis do corpo (1974), sendo parte integrante
da caminhada das personagens em seu próprio interior e também como vontade,
estremecimento de emoções.
Por ser limitada a liberdade, tanto as personagens quanto os narradores não
deixam de ser totalmente “joguetes do acaso” (HAUSER, 1995, p. 94), pois a ausência
de destino, tal qual se concebe tradicionalmente, não facilita a escolha do caminho
a seguir.
3 Em uma situação trágica, entende-se por problema a questão antecipada que terá que ser recuperada pelo eu. A pergunta “por que
razão?” acompanha o homem até ele dar uma resposta ou mesmo não a encontrar, o que pode ser efetivamente uma resposta,
como é o caso das personagens clariceanas. O problema e o pathos compõem o trágico. O pathos apresenta o querer, o abalo
emocional; o problema indaga. (STAIGER, 1975)
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
57
Angélica Castilho
A Moira, divindade acima dos deuses, não atua na Modernidade. Sendo assim, o
que influencia a vida das personagens é a condição em que vivem e o outro. A fome,
o desemprego, a desigualdade social, a miséria, a humilhação, a falta de respeito, o
desamor são elementos que fazem parte do mundo em que elas estão. São situações
quase coletivas. Mesmo quem está em uma posição social privilegiada não ignora a
transitoriedade e a fragilidade do homem, como a personagem do conto “A Bela e a
Fera” de livro homônimo (1979):
Teve uma vontade inesperada assassina: a de matar todos os mendigos
do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir
em paz seu extraordinário bem-estar.
Não. O mundo não sussurrava.
O mundo gri-ta-va!!! pela boca desdentada desse homem.
A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de
maciez que se lhe jogavam no rosto tão bem maquilado. (LISPECTOR,
1995, p. 111)
O trágico surge do confronto entre representantes de mundos distintos que
possuem o mesmo percurso existencial com variações de experiências de vida:
“Há coisa que nos igualam”, pensou procurando desesperadamente
outro ponto de identidade. Veio de repente a resposta: eram iguais
porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos.
(LISPECTOR, 1995, p. 116)
Em A hora da estrela, o narrador demonstra a inação do divino e sua relatividade
e evidencia ainda mais a condição de desamparo humano:
[...] A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus
não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração
aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas.
[...]. (LISPECTOR, 1996. p. 41)
A figura irônica de uma cartomante que não prevê o destino demonstra o caráter
falho e ilusório do metafísico na narrativa. Macabéa vivencia uma realidade por demais
crua e desprovida de beleza. Ela possui apenas um corpo frágil e faminto, uma alma
vaga para empreender sua jornada.
O narrador lança o olhar para um guia invisível que é a História a conduzir o
homem moderno por vias coletivas. Mesmo a História, porém, com seu “destino”
unificador para o homem, não apresenta um sentido para a morte. A necessidade
humana de um mundo inteligível não é saciada pela racionalidade oferecida por ela.
(DOMENACH, 1968)
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Herói clariceano
Para o filósofo Karel Kosík (1926-2003), a preocupação é o engajamento prático
do indivíduo nas relações sociais a partir de um ponto de vista subjetivo. Por isso, o
indivíduo não pode ver tais relações como normas objetivas, mas sim como normas
relativas a ele e também com sentido para ele. Sendo assim, além de ser o que
acredita ser, o sujeito é parte de sua integração com o mundo. O homem contém
em si a preocupação e é, consequentemente, a própria subjetividade fora de si, ele
transcende uma condição isolada e interage (KOSÍK, 2002). Em A hora da estrela, o
narrador assinala tais aspectos levantados por Kosík ao colocar-se como engrenagem
do mundo sem perder a subjetividade e ao reconhecer Macabéa como um outro “eu”
e não como objeto. Mesmo que ele não consiga através da escrita – enquanto sua
prática no mundo – interferir no processo de reificação do indivíduo, simbolizado na
figura da nordestina, ele busca sentido para a vida e para a morte.
Tal dualidade entre a presença e a ausência de Deus – este com todas as nuances
e todos os aspectos salientados no decorrer das narrativas clariceanas – aponta
questões permanentes na obra: Quem sou? Por que sou? Sou? A obra clariceana
não responde a tais perguntas. Contudo, a não-resposta confere ao sentimento de
solidão uma das condições humanas.
O “eu”, que passa deslocado na infância, como a narradora de Felicidade Clandestina,
e não consegue fazer-se entender e respeitar, que possui os sentimentos de
deslocamento e isolamento quando adulto, não encontra aconchego na velhice,
como Anita de “Feliz Aniversário”, de Laços de família, não encontrou, e nota que
apenas a aceitação do seu “eu” a conforta.
Embora não existam eleitos nos textos de Clarice Lispector, apenas “eus”
deslocados e com visões próprias de mundo, à medida que o termo “herói” é
utilizado, traz concepções que contribuem para entender a inversão e a atualização
de ideias culturalmente adquiridas através da história da humanidade sobre o que seja
heroísmo. Por romper parâmetros e buscar a própria essência, quebrando barreiras
pessoais e sociais, as personagens direcionam a coragem para a vontade de ir além,
o que as leva à ação e à valorização do sentir em detrimento da racionalização do
“eu” e do mundo.
O grande desafio é ser um herói humano. Afinal, as personagens clariceanas
sintetizam o desamparo, as indagações, os êxtases místicos ou não, as alegrias de
uma época conflitante e paradoxal que é a Modernidade. Na obra da autora, a vida
impõe que se viva, nem que seja por um breve momento clandestino de felicidade.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Angélica Castilho
Referências
• ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho.
Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.].
• DOMENACH, Jean-Marie. O retorno do trágico. Trad. M. B. Costa. Lisboa:
Moraes, 1968.
• HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
• KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves, Alderico Toríbio. 7. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
• STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
• LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. A descoberta do mundo. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
• ______. Água viva. 12. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
• ______. A hora da estrela. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
• ______. A maçã no escuro. 9. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. A paixão segundo G.H. 18. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. A via crucis do corpo. 5. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
• ______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
• ______. Perto do coração selvagem. 16. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. Laços de família. 28. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
• ______. Onde estivestes de noite. 7. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
• ______. Um sopro de vida. 10. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
• WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo:
Cosac & Naif, 2002.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
IDEOLOGICAMENTE VIOLENTO: UMA
QUESTÃO DE SIGNIFICADO
Roberto Borges
CEFET / RJ
Doutor em Estudos da Linguagem pela UFF
contato: [email protected]
Resumo: Utilizando-se de fundamentação teórica da Psicolinguística e,
particularmente, de definições do conceito de significado do signo linguístico, este artigo
traz resultados parciais de pesquisa realizada com alunos adolescentes, matriculados no
oitavo ano do ensino fundamental e na terceira (série) do ensino médio de duas escolas
públicas, situadas em regiões do Rio de Janeiro nas quais a pobreza se constitui
como marca. A pesquisa aqui sintetizada consiste na busca da compreensão de como o
significado do signo linguístico pode ser alterado quando os sujeitos vivenciam situações
de interação. Com esse objetivo, trabalhamos com o conceito de “violência” e buscamos
refletir a respeito da elaboração do pensamento conceitual em situações de produção
individual e, em seguida, de produção coletiva.
PALAVRAS-CHAVE: violência; ideologia; significado.
Abstract: Based on Psycholinguistic theories, and, especially, the concept definitions
on the meaning of the linguistic sign, this paper brings the partial results of a survey conducted
among teenager students, enrolled in and regularly attending the eighth year of junior high and
the third year of high school of public schools, located in poverty-ridden areas in the city of Rio
de Janeiro. This summarized research aims at understanding how the meaning of the linguistic
sign can be changed when the subjects experience interaction situations. With this objective in
mind, we used the conception of “violence”and we wanted to reflect about conceptual thought
elaboration in situations of individual production and, afterwards, of collective production.
KEYWORDS: violence; ideology; meaning.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Roberto Borges
Resumen: A partir de una fundamentación teórica de la Psicolingüística y,
particularmente, de definiciones del concepto de significado del signo lingüístico, este
artículo ofrece resultados parciales de una investigación realizada con alumnos adolescentes,
matriculados en el octavo año de la enseñanza fundamental y en la tercera serie de la
enseñanza secundaria de dos escuelas públicas, situadas en regiones de Rio de Janeiro en
las cuales, la pobreza se constituye como marca. La investigación aquí sintetizada consiste
en la búsqueda de la comprensión de cómo el significado del signo lingüístico puede ser
alterado cuando los sujetos viven situaciones de interacción. Con este objetivo, trabajamos
con el concepto de “violencia” y buscamos reflexionar a respecto de la elaboración del
pensamiento conceptual en situaciones de producción individual y, posteriormente, de
producción colectiva.
PALABRAS
62
CLAVE :
violencia; ideología; significado.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Ideologicamente violento: uma questão de significado
POR QUE VIOLÊNCIA?
O trabalho em escolas de Ensino Fundamental e Médio da rede pública estadual
ou nas diversas redes municipais do estado do Rio de Janeiro, comumente, nos leva
à perplexidade diante da miséria e da escassez de condições básicas e necessárias
ao ser humano, situação em que alguns adolescentes sobrevivem sem sequer terem
capacidade de questionar e/ou perceber a violência que sofrem todos os dias.
Para se ter uma ideia da situação econômica de Itaboraí, o documento “Objetivos
de desenvolvimento do milênio – Itaboraí – ano 2007”, organizado pela ONU
HABITAT, PETROBRAS e UFF, informa que 35,2% da população itaboraiense estão
classificados como abaixo da linha da pobreza, o que posiciona o município no
décimo lugar estadual em relação à pobreza. Quanto à escola estadual, localiza-se no
município do Rio de Janeiro, num bairro da região suburbana. Este colégio atende
a alunos que moram nos bairros vizinhos e, em sua grande maioria, residem nas
comunidades próximas ao mesmo.
Ao ter contato com esses adolescentes, percebíamos que tanto a situação de
miséria, de desrespeito, de pobreza, de escassez se igualavam, como também
acontecia em relação à dificuldade de refletir conceitualmente a respeito de toda a
situação violenta em que estavam inseridos, apesar da distância geográfica que
separa as duas instituições (aproximadamente 50 km distantes uma da outra). Há
muito tempo, um dos objetivos de nosso trabalho como educadores tem sido levar
os alunos a uma leitura crítica da situação em que vivem, tentando, dessa forma,
conscientizá-los de que suas histórias podem ser questionadas e, algumas vezes,
modificadas.
Tudo o que foi escrito acima tem como único objetivo contextualizar o leitor de
nosso texto no que diz respeito à realidade dos alunos com quem trabalhamos,
mas o que interessa mesmo à nossa pesquisa nasceu da leitura de Vygotsky (1996),
especificamente “Um estudo experimental da formação de conceitos”, onde
encontramos a seguinte afirmação: “A verdadeira formação de conceitos excede a
capacidade dos pré-adolescentes e só tem início no final da puberdade.” (VYGOTSKY,
1996, p. 46)
Tivemos, então, a ideia de verificar, nos textos produzidos por estes alunos, qual
o significado de violência para eles, comparar seus textos e tentar averiguar em que
se assemelham e em que se diferenciam.
É exatamente isso que nos propomos a fazer no decorrer deste trabalho.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Roberto Borges
A PROPOSTA
Em Itaboraí, lecionamos a adolescentes que estavam na faixa etária entre 14 e 17
anos e cursavam o oitavo ano do Ensino Fundamental. Muitos deles trabalham desde
muito cedo para auxiliar no sustento da família. Alguns já são pais e mães e têm de
lutar para sustentar a si e aos filhos. Na cidade do Rio de Janeiro, trabalhamos com
alunos da terceira série do Ensino Médio, cuja faixa etária varia entre 16 e 18 anos.
Alguns destes também tiveram de encarar a dureza da vida desde muito cedo. Apesar
de serem muito pobres também, é facilmente observável, pelos uniformes que
usam, pelos bens que consomem, pela aparência saudável, a diferença de situação
econômica entre os dois grupos. Resolvemos, então, contrapor o significado de
violência para cada um deles e verificar se são distintos.
O trabalho foi realizado da seguinte forma:
Em um primeiro momento, sem que houvesse nenhum tipo de preparação,
entramos nas turmas e mencionamos o fato de ouvirmos falar a todo instante que
a violência tem aumentado, e pedimos que cada um escrevesse o significado de
violência. Deixamos claro que não podia haver consultas de quaisquer espécies e que
não poderiam, sequer, ler o texto do colega, mesmo quando já tivessem concluído o
seu.
Duas semanas depois, lemos, ouvimos e discutimos a música Milagres/Misérias, que
é cantada por Adriana Calcanhoto (1992), aborda vários tipos de preconceitos e tem
como refrão “Miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferenças.”
Não podemos deixar de dizer que, no primeiro momento, tanto no município do
Rio de Janeiro quanto em Itaboraí houve uma grande rejeição à música. Os alunos
diziam que aquilo era música de “velho”. Um aluno do Rio de Janeiro disse-nos que
se recusava a ouvir aquele tipo de música e que “bom mesmo é ouvir funk”. Diante
deste comportamento, resolvemos travar um pacto com eles: ouviriam a música com
muita atenção e, depois, se ainda quisessem, poderiam ser dispensados do trabalho.
Após ter ouvido atentamente a música, o mesmo menino referido acima exclamou
“isso é muito melhor do que funk!”
A análise do texto foi bastante animada (apenas os alunos falavam, sem a
interferência do professor), pois, a cada momento que um expunha o seu ponto
de vista, suscitava concordâncias e/ou opiniões contrárias dos outros, o que foi
bastante enriquecedor para todos.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Ideologicamente violento: uma questão de significado
Após este momento, propusemos aos alunos que se dividissem em duplas ou
trios, de acordo com suas preferências, e produzissem outro texto em que mais uma
vez expusessem o significado de violência, sendo que, dessa vez, o mesmo deveria
ser o resultado de um consenso do grupo.
Esse trabalho teve como resultado dois tipos de texto: um produzido
individualmente, sem interação e com mediação mínima do professor (consideramos
o fato de sugerir o tema uma espécie de mediação), e outro produzido coletivamente,
resultado de interações, em que há um peso maior da mediação do professor, já que
foi este o elemento que sugeriu o tema, escolheu a letra da música e coordenou o
debate.
O TRABALHO
Foram produzidos um total de 140 textos, entre os escritos individualmente e
elaborados em grupo, que ficaram assim distribuídos:
OITAVO ANO
TERCEIRA SÉRIE
Total: 65 textos
Individuais: 47 textos
Em grupo: 18 textos
Total: 75 textos
Individuais: 54 textos
Em grupo: 21 textos
Nosso trabalho tem dois objetivos principais e são eles:
1. Verificar se os alunos são capazes de conceituar o signo violência.
2. Verificar, quantitativamente, a incidência de clichês e de textos sem
conceituação, primeiramente, em cada série e, em seguida, de forma geral.
O SIGNIFICADO
Por estar bastante claro que pensamento e linguagem são processos que se
cruzam e se influenciam mutuamente, não podemos falar em significado sem antes
discursarmos, ainda que de maneira breve, a respeito do signo linguístico.
Em primeiro lugar, temos de falar em Ferdinand de Saussure, que privilegia uma
“concepção diádica” (ROCHA, 1995, p. 85) do signo e define-o como a união de um
conceito e uma imagem acústica. Ele diz que o signo é social, que “o laço que une
significante e significado é arbitrário” (SAUSSURE, 1984, p. 33) e que é imutável.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Roberto Borges
O que Saussure chama de imagem acústica e/ou todas as implicações que esta
nomenclatura possa supor não nos interessa neste trabalho. O que está ligado ao
objeto de nosso estudo é o que ele denomina conceito. Carvalho diz que conceito é
a representação mental de um objeto ou da realidade social em que
nos situamos, representação essa condicionada, plasmada pela formação
sócio-cultural que nos cerca desde o berço. Em outras palavras, para
Saussure, conceito é sinônimo de significado, sua contraparte inteligível
em oposição ao significante, que é sua parte sensível. (CARVALHO,
1984, p. 33)
Optando pelo mesmo percurso de Fernandes (1999, p. 68) e reproduzindo o que já
foi exposto por ela, temos de falar de Charles Sanders Peirce, Bernard Pottier e L. S.
Vygotsky. Para o que será apresentado abaixo, faremos uso, também, do texto de
Rocha (1999).
Peirce apresenta um modelo triádico de signo: “O signo em Peirce é definido a
partir de três elementos: um objeto, o seu representante (denominado símbolo
ou representamen) e o interpretante” (ROCHA, 1999, p. 97). Para Pierce, fato
fundamental ao nosso trabalho, cada indivíduo tem uma interpretação própria para
cada signo, que varia de acordo com o histórico de cada ser: seus processos mentais,
suas relações sociais, o meio em que vive. A esta interpretação, Peirce chama
“interpretante”.
Na teoria de Pottier, o signo só pode ser admitido se for levado em consideração
o contexto verbal em que se encontra. O signo, para Pottier, pode ser identificado
por meio da seguinte fórmula: “SIGNO = (substância do significado + forma do
significado) + significante. A substância do significado está no plano da semântica.”
(POTTIER, 1978, p. 26, grifo do autor)
Vygotsky tem como princípio que o significado das palavras evolui:
Segundo ele, a compreensão de que há um desenvolvimento individual,
independente da relação social, objetiva mostrar que os significados
de um signo se modificam à medida que a criança se desenvolve e,
também, de acordo com as formas pelas quais o pensamento funciona.
[...] O desenvolvimento dos processos cognitivos interfere de modo a
refletir que o significado (sentido) de um significante (o vocábulo, em si
mesmo, a “imagem’”acústica) se altera para o indivíduo de acordo com
o desenvolvimento de seus processos cognitivos. (FERNANDES, 1999,
p. 69)
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Ideologicamente violento: uma questão de significado
Se o significado modifica-se de acordo com o indivíduo, como já observou
Vygotsky, logo, é subjetivo. Essa subjetividade de conceituação varia de acordo com
o sujeito que olha para o objeto. A diferença, logicamente, situar-se-á na interpretação,
na compreensão que lhe será atribuída, e essa compreensão pode ser moldada,
construída, talhada ideologicamente.
Cabe dizer que o vocábulo “ideologia” surge pela primeira vez em 1801, no livro de
Destutt de Tracy, Eléments d’ldéologie (Elementos de Ideologia), de acordo com Chauí
(1995).
No verbete “ideologia” do Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa,
entre os diversos conceitos, selecionamos dois:
Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: filosofia. no marxismo,
conjunto de ideias presentes nos âmbitos teórico, cultural e institucional
das sociedades, que se caracterizam por ignorar a sua origem materialista
nas necessidades e interesses inerentes às relações econômicas de
produção e, portanto, termina por beneficiar as classes sociais
dominantes Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: sociologia.
sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes,
sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão,
as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e
compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos
ou econômicos. (HOUAISS, 2001, não paginado)
Marilena Chauí diz que:
Um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em
tomar as idéias como independentes da realidade histórica e social, de
modo a fazer com que tais idéias expliquem aquela realidade, quando na
verdade é essa realidade que torna compreensíveis as idéias elaboradas.
(CHAUÍ, 1995, p. 10)
Diante dessas conceituações, podemos dizer que, ao analisar o significado de
violência, jamais se pode deixar de lado o fato histórico, o social e econômico. Eles
tornam-se fundamentais para a compreensão dos resultados que veremos a seguir.
Sabemos que há um grande interesse por parte da classe dominante em que os
dominados/explorados permaneçam inconscientes de sua realidade histórica e social,
pois, ideologicamente, é importante que permaneçam com a visão diminuída de si
mesmos e pensando que aquilo que sofrem é determinado pelo destino e que, por
isso, não pode ser mudado.
Ao homem que não adquiriu poder econômico nem prestígio social, resta apenas
adequar-se à miséria em que vive. Não obter bens é culpa sua; então, cabe a ele
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Roberto Borges
aceitar passivamente e, se for possível, fechar os olhos para sua realidade. É
justamente a realidade de nossos alunos que vai nos trazer a compreensão do fato
de entenderem ou não entenderem a vida que levam como violência.
IDEOLOGIA E SIGNIFICADO
Dentre várias definições, o Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa diz
de violento
1. que ocorre com força extrema ou uma enorme intensidade 2. em
que se emprega força brutal, feroz 3. que possui grande força,
grande poder de ataque ou de destruição [...] 7. que contraria
o direito e a justiça. 8. diz-se da morte causada por força ou por
acidente. (HOUAISS, 2001, não paginado)
Sobre violência, o mesmo diz
1. qualidade do que é violento 2. ação ou efeito de violentar, de
empregar força física ou intimidação moral contra (alguém)
[...] 3.1 cerceamento da justiça e do direito; coação, opressão,
tirania. (HOUAISS, 2001, não paginado)
Nosso trabalho interessa-se em verificar até que ponto nossos alunos compreendem
ou não, dentro do signo violência, os significados que estão ligados ao direito e à
justiça e também ao que está ligado ao constrangimento físico e moral.
Entendemos que passam pelo constrangimento moral: não ter condições
satisfatórias de higiene, não ter alimentação suficiente, não ter vestimentas adequadas
e não ter recursos para gerir o sustento de si e dos seus. Assim, tudo isto tem de
estar inserido dentro do conceito de violência.
Bakhtin diz que
Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é
verdadeiro, falso, correto, justificado, bom etc.). O domínio do ideológico
coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes.
Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo o
que é ideológico possui um valor semiótico. (BAKHTIN, 1992. p. 32)
Acreditamos que as “coisas” passam a existir para nós a partir do momento em
que podemos nomeá-las, quando podemos transformá-las em signos, e é justamente
o nome dado às “coisas” que vai nos permitir a visão, a consciência do que é feito
ideologicamente com elas e, também, por que não dizer, conosco.
Vejamos, então, o que foi produzido por nossos alunos.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Ideologicamente violento: uma questão de significado
LINGUAGEM E CONSCIÊNCIA
Quando escolhemos trabalhar com o significado de violência, sabíamos que o
mesmo poderia remeter nossos alunos a fatos cuja referência fosse externa, concreta,
como brigas, estupros, roubos, homicídios, como também remeter a outras situações
de violência que não são apresentadas, expostas ou discutidas como tal pela grande
mídia, como o é a fome, a miséria, as condições de educação em nosso país e o
desemprego.
Vejamos os resultados que nossa pesquisa nos trouxe.
Antes de comentarmos a amostragem, temos de esclarecer alguns pontos:
1. Chamamos de clichês os textos que não fogem aos fatos totalmente
concretos, visíveis e palpáveis e que são exaustivamente propagados pela
mídia como roubos, estupros, assaltos, disputas entre gangues, entre
torcidas, entre galeras, violência física (tiro, facada, brigas).
2. Dizemos que não houve conceituação quando, em nenhum momento do
texto, o aluno diz o que significa violência para ele. Reproduzimos, a seguir,
um exemplo deste tipo de texto, exatamente como foi escrito por uma aluna
do oitavo ano, sem nenhum tipo de correção:
Há cada dia que passa o nosso país está cheio de violência; As pessoas
tem que fazer o possível para acabar com a violência. Não temos tanta
tranquilidade mais, á todo instante tem pessoas sofrendo a violência.
A violência chegou e ficou em nosso país.
Tem pessoas que querem fazer só a violência, mas temos que colocar
a cabeça no lugar e pensar, que a violência não leva a lugar nenhum.
Temos que acabar com a violência! (informante)
3. Todos os números percentuais que aparecem neste trabalho foram calculados
de forma aproximada.
Uma primeira análise dos sessenta e cinco textos produzidos pelos alunos do oitavo
ano mostrou-nos que, dos 47 textos produzidos individualmente, 12 reproduziam
clichês (aproximadamente 25% do total dos individuais e 18% do total geral) e, dos
18 produzidos em grupo, dois foram construídos da mesma forma (aproximadamente
11% do total em grupo e 3% do total geral). Além disso, encontramos três textos
individuais em que não houve qualquer tipo de conceituação (aproximadamente
6,3% do total individual e 4,6% do total geral). Todos os grupos conceituaram.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Roberto Borges
Temos, então, um total de 14 textos que reproduzem clichês e três que não
conceituam, o que corresponde, respectivamente, a aproximadamente 21% e 4,6%
do total dos textos.
Ao analisarmos os textos da terceira série, surpreenderam-nos dois fatos.
Possuíamos um total de 75 textos analisados. Desses, 54 foram produzidos
individualmente, dentre os quais localizamos apenas dois que podem ser inseridos
no que estamos chamando de clichês (aproximadamente, 3,7% do total dos textos
produzidos individualmente e 2,6% do total geral). Em contrapartida, dentre os 75,
encontramos nove que não conceituaram (aproximadamente 16,6% do total dos
textos individuais e 12% do total geral).
Não encontramos, dentre os 21 textos produzidos em grupo, um que tenha ficado
preso aos limites dos clichês ou que não tenha conceituado o signo em questão.
Consideramos bastante interessante e merecedor de nossa atenção o caso de os dois
textos em que, anteriormente, encontramos clichês, serem de duas alunas que, na
etapa seguinte, se uniram, formando uma dupla que compôs um texto em que os
clichês não apareceram.
Nossos alunos estão todos dentro da mesma faixa etária e pertencem à mesma
classe social. As variáveis idade e classe social, então, não poderão ser utilizadas
como referencial de diferença em nosso trabalho. Utilizaremos, em princípio, as
variáveis escolaridade e geográfica, sabendo-se que nossos alunos do oitavo ano
são todos da cidade de Itaboraí, interior do Estado do Rio de Janeiro, e os da terceira
série são todos da capital do Rio de Janeiro. Todas as conclusões apontadas por série
poderão ser entendidas, portanto, também como geográficas.
As tabelas seguintes resumem o que foi dito na página anterior, facilitando-nos a
visualização dos dados:
Tabela 1
Oitavo ano (visão geral)
Total
Clichês
%
Sem conceituação
%
Textos individuais
47
12
25,5
3
6,3
Textos em grupo
18
2
11,1
0
0
Total geral
65
14
21,5
3
4,6
70
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Ideologicamente violento: uma questão de significado
Diante dos números vistos, sentimo-nos à vontade para traçar, a partir de agora,
alguns comentários gerais.
A maioria dos alunos do oitavo ano, de Itaboraí, conceitua. O número de alunos
que não conceituam é muito pequeno (4,6% do total de textos produzidos). Não há
textos produzidos em grupo em que não haja conceituação. Quando conceituam,
boa parte da produção individual é marcada por clichês (25%) e esta proporção
diminui consideravelmente quando os textos são produzidos em grupo (11,1%).
Acreditamos que isto se dê pelo fato de a interação ser fator marcante na formação
de conceitos. O conceito de um indivíduo certamente influencia e altera o de outro
indivíduo.
Tabela 2
Terceira série (visão geral)
Total
Clichês
%
Sem conceituação
%
Textos individuais
54
2
3,7
9
16,6
Textos em grupo
21
0
0
0
0
Total geral
75
2
2,6
9
12
Todos os textos em grupo da terceira série apresentaram conceitos e encontramos
clichês em apenas dois. Enquanto o oitavo ano apresentou apenas 6,3% dos textos
sem conceituação, a terceira série apresentou um número bastante maior: 16,6%. Em
contrapartida, o número de clichês nos textos dos alunos da terceira série caiu
consideravelmente em relação aos do oitavo ano. Nestes, encontramos clichês
em 21,5%, tanto em textos produzidos em grupo, como em textos produzidos
individualmente; naqueles, encontramos clichês em apenas dois textos produzidos
individualmente, ou seja, em 3,7% de todos os textos produzidos.
Estar na terceira série do Ensino Médio, para a grande maioria desses alunos,
significa transpor obstáculos que, tanto para eles quanto para suas famílias,
pareciam, na maior parte dos casos, intransponíveis. Muitos deles têm plena
consciência de todas as dificuldades impostas pela vida à conclusão de seus estudos,
mas, mesmo assim, pretendem continuar estudando e ingressar nas melhores
universidades do Estado do Rio. Ainda acreditam que a educação seja a tábua de
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salvação de suas vidas. Logicamente, isso fará com que tenham uma visão de mundo
bastante diferente daqueles alunos de Itaboraí, os quais – em grande maioria –
acreditam que a conclusão do Ensino Fundamental, se conseguirem atingi-la, é o
máximo que se pode esperar.
Além das diferenças de escolaridade, diante de tudo isto, não fica difícil entender
o porquê do número de textos com clichês ter aparecido em menor escala nos textos
da terceira série.
Tabela 3
Oitavo ano + Terceira série = 140 textos (visão geral)
8º ano
3ª série
Total
Clichês
Sem conceito
Textos individuais
47
54
101
14 – 13,8%
12 – 11,8%
Textos em grupo
18
21
39
2 – 5,1%
0
Total geral
65
75
140
16 – 11,4%
12 – 8,5%
Em um total de 101 textos individuais produzidos por nossos alunos,
aproximadamente 13,8% reproduzem os clichês de violência e 11,8% não conceituam
este signo. A proximidade entre esses dois índices pode nos trazer uma pista a
respeito do processo mental dos jovens que se encontram na mesma faixa etária e
classe social que nossos alunos: é possível que haja um número bastante significativo
de adolescentes que não conseguem abstrair a ponto de perceberem o que vivem
como violência. Não conseguem nomear os fatos de sua vida como tal e, logo, não
possuem consciência da violência em que estão submersos.
Quando analisamos os textos produzidos em grupo, os índices dos textos que
reproduzem clichês caem muito e os textos sem conceituação desaparecem.
Aproximadamente 20% dos textos estão inseridos no que chamamos de clichês
ou sem conceito. Passaremos a analisar os 80% que, pela nossa leitura, trazem
conceitos e são a maioria dos textos.
Em primeiro lugar, tentaremos fazer um levantamento do significado de violência
para os alunos do oitavo ano de Itaboraí e, depois, veremos como isto se configura
para os alunos da terceira série do Rio de Janeiro. Em seguida, pretendemos contrapor
os dois resultados para conferir se se assemelham ou diferenciam-se.
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Ideologicamente violento: uma questão de significado
Ao lermos os textos do oitavo ano, um primeiro ponto nos chamou muita
atenção: boa parte dos alunos faz grande confusão entre o que significa violência e
o que a gera. Por isso, há um elevado percentual de textos em que encontramos, além
dos significados de violência, as suas causas e consequências. Convém sublinhar,
então, que, muitas vezes, o conceito surge de forma indireta. Por exemplo, o texto
de um dos grupos diz:
Na verdade ainda não sabemos como surgiu a violência, mas temos uma
ideia: miséria, fome, desemprego, inveja, racismo, uns tem de mais outros
tem de menos entre isso e outras coisas. (informante)
Fica claro que tudo isso, para eles, é violência.
Não podemos deixar de mencionar as metáforas que encontramos em um dos
textos: “A violência é como uma espada bem afiada que não tem direção [...] Ela é
como um produto móvel, não pensa mas se move” (informante).
Outro ponto bastante interessante é que, quando tentam explicitar o conceito,
não resistem e apontam soluções ou caminhos que acreditam ser a saída para um
mundo melhor, menos violento.
Até então, fizemos um levantamento estatístico para os textos que produziram
clichês e para os que não conceituaram. Abandonaremos este procedimento daqui
em diante. Os conceitos passarão a ser apresentados de forma genérica.
Alguns dos alunos do oitavo ano dizem que não conseguem entender a violência
e um grande número deles afirma que ela nasce pela falta de amor ao próximo, pela
falta de Deus no coração dos homens, pela falta de amor e de diálogo nos lares e
pela falta de atenção dos pais. Um dos textos diz, claramente, que “violência é falta
de comunhão com Deus” e outro que
[...] significa falta de carinho, de diálogo, o que poderia não existir se
todos os adolescentes fossem tratados com respeito, com carinho e
compreensão. Se todos os pais tirassem uma hora para conversar com
seus filhos muitas coisas poderiam ser evitadas [...] (informante)
A pobreza, a miséria, a fome e o preconceito aparecem em grande escala. Em um
deles, é abordado o fato de adolescentes se prostituírem para ajudar no orçamento
familiar e menciona-se, também, o episódio veiculado pela mídia jornalística e
televisiva de adolescentes que dançavam nuas em bailes funk para receber R$ 20,00
como pagamento.
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Um texto aponta a violência como falta de dignidade, pois, “se o governo
valorizasse mais o povo não iríamos pensar em matar, roubar etc.”
Violência aparece como falta de educação, falta de respeito ao idoso, como
covardia e desunião. Contudo, muito interessante é observar que, apesar de não
conseguirem nomear a diferença de classes, apontam, muitas vezes, para ela. Dizem
que “a violência vem das grandes famílias, dos filhinhos de papai, que trazem lá
de fora a cocaína, o craque e outras drogas” ou “A violência é uma barbaridade.
Enquanto os ricos vivem numa casa grande, bela, o pobre é humilhado e esculachado
na favela”.
O conceito de violência explicitado pelos alunos da terceira série é, no mínimo,
bem mais elaborado do que os do oitavo ano. Podemos ligar isso a diversos fatores.
Apontaremos apenas dois deles por serem, segundo nosso entender, os que mais
sobressaem:
1. Estar concluindo o Ensino Médio já proporcionou a estes, além da elevação da
autoestima, leituras, conhecimentos e experiências que ainda não foram
vivenciados por aqueles outros.
2. Viver na cidade do Rio de Janeiro é ter, quase que obrigatoriamente, contato
direto com pessoas de classes sociais e culturas diferentes e, também, com a
produção cultural de nossa sociedade, principalmente levando-se em
consideração que havia alguns professores dessa escola que tinham como
prática levar os alunos a teatros, cinemas, exposições e promover debates e
discussões a respeito de filmes vistos em classe, textos de jornais e revistas e
sobre a realidade de suas vidas, o que raramente acontecia em Itaboraí.
Não podemos deixar de citar, também, que esses alunos preparam-se para o
vestibular e, consequentemente, estão condicionados a dissertar sobre todos os
temas que caem em suas mãos. Logo, muitas vezes, no lugar de escreverem sobre
o significado de violência, fazem verdadeiras dissertações em que explicitam seus
conhecimentos sobre este tema. Temos de lembrar, ainda, que a produção de
textos dissertativos exige que o aluno seja capaz de argumentar e tenha posse do
pensamento analítico e sintético.
Outro ponto que queremos mencionar é o de ter havido uma pluralidade
grandiosa de conceitos. Impossível listá-los todos. Selecionamos, aleatoriamente,
alguns que passamos a expor.
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Ideologicamente violento: uma questão de significado
Muitos textos apontam de forma direta a violência como resultado das desigualdades
sociais. “A crise econômica do país ocasiona miséria e gera a degradação da classe
pobre.” Em outros, as desigualdades sociais aparecem como sinônimo de violência:
“O significado de violência vem das desigualdades sociais existentes em todos os
países onde alguns têm demais e outros absolutamente nada.” Um grupo diz que
“falar em violência significa falar em fome, desemprego e preconceito racial”.
Falam, ainda, do desemprego que gera a falta de renda, apontando como causa
uma política mal estruturada e todo o tipo de preconceito. O texto de um dos grupos
diz que
Violência é qualquer tipo de agressão física ou moral, que possa destruir
não só a vida, mas como a auto-estima do ser humano. Não é um fato
isolado, mas sim um conjunto de desigualdades sociais e econômicas
que existe no nosso país atualmente. (informante)
Certamente, por já estarem na luta ferrenha da vida, esses alunos já sentem na
própria pele o resultado das diferenças sociais, do preconceito e da luta de classes.
A tentativa de ingresso no mercado de trabalho e o sonho de estudar em uma boa
universidade já lhes mostraram a crua realidade que reside por trás disso. É muito
mais fácil, então, perceber os fatos como violência.
O SIGNIFICADO DE VIOLÊNCIA
Essa pesquisa trouxe-nos algumas conclusões.
A grande maioria dos jovens de Itaboraí, entre 14 e 17 anos, que está cursando o
oitavo ano do Ensino Fundamental, é capaz de conceituar violência. Há, porém, uma
grande tendência de reproduzirem em seus textos tudo aquilo que ouvem e/ou leem
na mídia a este respeito.
Pareceu-nos que são capazes de perceber intuitivamente como é violenta a vida
que levam, a discriminação que sofrem na própria pele, o descaso do governo, as
diferenças sociais. Entretanto, a falta de consciência disso os torna incapazes de
nomeá-las, portanto, incapazes de abstrair e apresentá-las, na grande maioria das
vezes, como conceito.
Os alunos da terceira série, do Rio de Janeiro, ainda que estejam na mesma faixa
etária daqueles outros, são capazes de um nível bem maior de abstração. Percebemos,
sem dificuldades, que seu processo mental já está bem mais evoluído, o que pode ser
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comprovado pela quase ausência de clichês, que apareceram apenas em dois textos
individuais, os quais desapareceram no texto em grupo.
Houve grande incidência do significado de violência como descaso do governo e
como desigualdade econômica e social.
Na tabela 3, podemos ver que houve grande proximidade entre os índices de
textos elaborados com clichês e os sem conceito. Isso pode evidenciar que há um
grande número de jovens nessa faixa etária cujos conceitos ainda estão em fase de
desenvolvimento.
Outro fato que nos chamou atenção foi a dificuldade dos alunos em conceituar
violência sem falar de causas e consequências e, muitas vezes, apontar saídas para
um mundo melhor.
Tudo o que aqui foi apresentado conduz-nos a concordar com algumas ideias
defendidas por Vygotsky e com outras defendidas por Peirce.
A pluralidade de conceitos comprova a tese de Peirce que diz que cada indivíduo
tem uma interpretação própria para cada signo. O fato de o meio em que vivem os
jovens da terceira série e de suas relações sociais serem bastante diferentes do meio
em que vivem e se relacionam os alunos do oitavo ano certamente contribui, de forma
considerável, para a diferença de significado para eles, apesar de estarem dentro da
mesma faixa etária e de terem situações econômicas bem parecidas.
Vygotsky diz que o significado das palavras evolui e que o desenvolvimento das
potencialidades humanas só é possível mediante interação. Não temos dúvidas com
relação a isso e nosso trabalho pode comprová-lo. Acrescentamos que a evolução
do significado não está somente ligada à faixa etária, pois, se assim o fosse, não
teríamos como explicar a diferença marcante entre o aparecimento de textos com
clichês e sem conceituação nos textos dos dois grupos: 25,5% de textos com clichês
e 6,3% de textos sem conceituação para o oitavo ano, versus 3,7% de textos com
clichês e 16,6% de textos sem conceituação para a terceira série. Certamente, a
qualidade da interação é fator preponderante para esta diferença. Temos de esclarecer,
porém, que, quando falamos de qualidade, não queremos, com isso, passar por juízos
de valores dos quais façam parte o conceito de bom ou de ruim, mas sim pensamos
na riqueza das vivências experimentadas por cada um dos grupos, como já explicamos
anteriormente.
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Ideologicamente violento: uma questão de significado
Tínhamos como objetivo inicial, em nosso trabalho, verificar se nossos alunos
são capazes de conceituar o signo violência. Como supúnhamos, a grande maioria é
capaz de construir o conceito (80,1%).
Vimos, também, que o oitavo ano produziu, proporcionalmente, um número bem
maior de textos com clichês (21,5%) do que a terceira série (2,6%). Em contrapartida,
para nossa surpresa, o índice maior para textos sem conceituação foi encontrado
dentre os produzidos pela terceira série (16,6%). O oitavo ano produziu apenas 4,6%
de textos sem conceitos.
Queremos arriscar uma explicação para o surgimento desse grande índice de
textos sem conceito para a terceira série: os processos de análise desses jovens ainda
não se consolidaram. Tentam produzir uma dissertação, mas ainda não são capazes
de unir, em um mesmo texto, análise e síntese; perdem-se, então, em suas ideias,
sem conseguir organizá-las.
Podemos fechar nosso texto dizendo que, obviamente, pensamento conceitual
não se ensina e nem se aprende, necessária ou obrigatoriamente, na escola, mas
esta pode facilitar um meio enriquecedor para que o aluno desenvolva toda a sua
potencialidade e seja capaz de ter consciência do mundo em que está inserido para
poder entendê-lo, discuti-lo, nomeá-lo e, se quiser, tentar mudá-lo.
Referências
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1992.
• CARVALHO, Castelar. Para entender Saussure. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora
Rio, 1984.
• CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 39. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
• CALCANHOTO, Adriana. Senhas. São Paulo: Sony Music, 1992. 1 CD.
• FERNANDES, Eulália. Pensamento e linguagem. In: CARNEIRO, M. (Org.).
Pistas e travessias. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.
• HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Versão 1.0.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 CD-ROM. Não paginado.
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Roberto Borges
• Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
ONU-HABITAT/ROLAC e PETROBRAS. Objetivos de desenvolvimento do
milênio – Itaboraí – ano 2007. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em:
<www.unhabitat.org/pmss/getElectronicVersion.asp?nr=2773&alt=1>.
Acesso em: 15 mar. 2010. Não Paginado.
• POTTIER, Bernard. Linguística geral: teoria e descrição. Rio de Janeiro:
Presença, 1978.
• ROCHA, Décio Orlando Soares da. A natureza do signo linguístico. In:
CARNEIRO, M. (Org.). Pistas e travessias. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999.
• ______. O linguístico e o extralinguístico. In: CARNEIRO, M. (Org.). Pistas e
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• VYGOTSKY, Lev Seminovic. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
MODERNIZAÇÃO ESPANHOLA: OS
PRÓSPEROS ANOS 20 E A CONTURBADA
DÉCADA DE 30
Flavia Ferreira dos Santos
Faculdade CCAA
Mestre em Letras Neolatinas pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: Deve-se entender a Guerra Civil espanhola e a ditadura do General
Francisco Franco como desfecho (trágico) de um longo processo de luta interna
espanhola pela modernização de suas estruturas políticas, sociais e culturais. Este
trabalho analisa uma parte desse processo, concentrando-se nas décadas de 1920 e
1930.
PALAVRAS-CHAVE: História; sociedade; guerra civil espanhola.
Abstract: The Spanish Civil War and the following years of Franco’s dictatorship
were tragic endings to a major Spanish struggle for the modernization of its political, social
and cultural structures. This paper analyzes the previous years of the war, focusing on the
1920’s and the 1930’s.
KEYWORDS: History; society; Spanish Civil War
Resumen: Se debe entender la Guerra Civil española y los años de la dictadura
franquista como el desenlace (trágico) de un largo proceso de lucha por la modernización
de las estructuras políticas, sociales y culturales nacionales. El presente trabajo analiza
una parte de este proceso, principalmente los años 20 y 30.
PALABRAS
CLAVE :
Historia; sociedad; guerra civil.
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Flavia Ferreira dos Santos
“A história contemporânea do povo espanhol começa [...] com os seus primeiros
esforços para se readaptar ao mundo moderno” (VILAR, 1992, p. 59). Existia entre a
intelectualidade espanhola do fim do século XIX e início do século XX o sentimento
de que a forma como se desenvolveu o Estado espanhol, sobretudo a forte identidade
entre o poder e a Igreja Católica, impediu o desenvolvimento da Espanha como
próspera nação capitalista. O atraso na modernização das estruturas econômicas
e de poder custou caro a esse país, que não acompanhou o desenvolvimento dos
demais países, mas que, anacronicamente, ainda se achava uma potência colonial no
fim do século XX. A perda das últimas colônias americanas em 1898, na guerra contra
os Estados Unidos, se tornou um símbolo da decadência espanhola.
O país viveu, assim, o acirramento de um processo de lutas e divisões internas,
fruto das disputas de poder entre uma oligarquia “caciquista” e a nova burguesia
enriquecida, reflexo da luta histórica de superação política das estruturas feudais
pelas formas capitalistas de poder. Desde as tentativas de Carlos III de trazer o espírito
da Ilustração ao país no século XVIII, o poder da igreja e da elite conservadora freou as
propostas de mudanças mais radicais.
Instituições medievais, como a Inquisição e a Mesta (o sindicato de proprietários de
gado, que dispunha de privilégios reais), prolongaram a sua existência até o século XIX.
A desapropriação da terra, concentrada nas mãos da nobreza e da Igreja, essencial no
processo de modernização capitalista, foi, algumas vezes, protelada e, quando levada
a cabo, não promoveu a distribuição da terra. Em vez de minifúndios trabalhados por
pequenos proprietários, os terrenos foram comprados pelos grandes proprietários,
aumentando a concentração da terra. Este era o perfil da Andaluzia, sul do país, de
território fértil e população miserável, submetida às piores condições de exploração.
No outro extremo do desenvolvimento estava o nascimento de uma próspera
burguesia no País Vasco (siderurgia) e Catalunha (indústria têxtil). O crescimento
demográfico e a consequente urbanização fortaleceram-na, provocaram o surgimento
de um proletariado organizado e a valorização de sentimentos regionalistas opostos
à centralização do Estado Espanhol desde Madri. A Espanha se tornara um espelho
de desigualdades sociais e conflitos internos.
No plano político, as reformas foram de tal modo adiadas que a luta entre o velho e
o novo sistema gerou um período de profundo desgaste do sistema monárquico. Desde
os Reis Católicos, a “unidade espanhola” esteve atrelada ao papel da Monarquia e o
aparecimento da Segunda República foi, sobretudo, o resultado da perda de credibilidade
daquela, dividida entre o desejo de modernização e aceitação do Capitalismo e a velha
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Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30
forma absolutista “católica” de poder (JACKSON, 1999, p. 25). Assim, a Espanha viveu,
durante o século XIX, um período de guerras fratricidas e instabilidade.
No início do século XIX, a Espanha sofreu a disputa entre Carlos IV e Fernando VII,
pai e filho, que culminou com o exílio de ambos e a ascensão francesa do Imperador
José I, irmão de Napoleão Bonaparte, em 1808. Graças à luta do povo espanhol pela
independência, Fernando VII voltou ao trono, mas, sob a “bandeira” do “ódio ao
francês”, governou no pior estilo da “contra-reforma”. Após a morte desse monarca, em
1833, surgiram as Guerras Carlistas de disputa pela sucessão, na qual se enfrentaram
novos “conservadores”, em torno do irmão do rei, Carlos, e “liberais”, na defesa da filha
do monarca, Isabel. Uma vez concluída a luta e transformada a princesa em Isabel II, o
seu reinado demonstrou-se instável, e a rainha, devido aos seus hábitos escandalosos,
impopular. Em 1868, um golpe a afastou do poder e estabeleceu um governo provisório,
seguido pelo coroamento de Amadeo de Saboya e um curto governo republicano,
derrubado pela volta da Monarquia e a subida ao trono do filho de Isabel II, Alfonso XII,
em 1875.
Não se pode compreender a história desse período sem destacar a participação
dos militares.
Entre 1833, en que comenzó la guerra carlista, y 1875, en que se instauró
la Monarquia constitucional, el ejército dirigió los destinos del país.
El único medio de cambiar de gobierno era el ‘pronunciamiento’, una
repentina sublevación de un general, de común acuerdo relativamente
poco sangrienta y en torno al cual se agrupaban las fuerzas de oposición
como única esperanza de cambio. (JACKSON, 1999, p. 26)
Essa participação não só não diminuiu após 1875, como esteve presente em todos
os momentos de lutas internas do século XX, que culminaram com a ascensão do
General Francisco Franco, em 1939. Além dos “pronunciamientos”, golpes militares
que se tornaram comuns na época, o exército muitas vezes garantiu a
governabilidade, funcionando como aparelho repressor dos movimentos populares.
Dessa forma, um “pronunciamiento” em Sagunto, em 1874, restaurou a Monarquia
Borbônica, na figura de Alfonso XII, e pôs fim ao contínuo “vaivém” de governos. Os
anos da Restauração, nome dado ao período que entre 1875 e 1923, representaram
uma época de “relativa estabilidade”, garantida por uma manobra política vislumbrada
pelo político Cánovas del Castillo, do Partido Conservador.
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Flavia Ferreira dos Santos
Proclamou-se uma Constituição que estabelecia a monarquia parlamentar e
garantia certas liberdades de expressão. Esse sistema, na verdade, se transformou
em um pacto de governabilidade entre os Partidos Conservador e Liberal. Selou-se a
alternância de poder entre os dois partidos no parlamento e gerou-se um sistema
eleitoral profundamente corrupto, marcado pela fraude e pelo “caciquismo” nas
cidades do interior, que desmoralizou o regime constitucional e desferiu o golpe de
morte na já desgastada imagem da Monarquia.
Tal “turno pacífico”, expressão como se tornou conhecido o arranjo, não podia
existir com o consentimento nacional, dada a insatisfação que esse modelo gerava
em vários setores da população. Como consequência, o assassinato de Cánovas, em
1897, por um militante anarquista, fragilizou sobremaneira tal sistema e os Partidos
Conservador e Liberal se desintegraram progressivamente, até 1917 (JACKSON, 1999,
p. 27). Os protestos vinham de vários lugares.
Por um lado, tal alternância de poder excluía a participação de liberais não ligados
aos dois partidos e não refletia a crescente influência dos movimentos populares –
e, com eles, o desenvolvimento dos movimentos anarquista e socialista – e regionalistas.
Nessa época, surgiram as primeiras formas organizadas de atuação proletária –
a 1ª seção espanhola da Associação Internacional de Trabalhadores (1871), a CNT
(Confederación Nacional del Trabajo, 1911), sindicato anarquista, o PSOE (Partido
Socialista Obrero Español, 1879), a UGT (Unión General de Trabajadores, 1888),
sindicato socialista – e alguns partidos regionalistas – a Lliga regionalista (partido
catalão, 1901) e o PNV (Partido Nacionalista Vasco, 1894).
Dois fortes movimentos populares sacudiram o período: a semana trágica de
Barcelona, em 1909, e as Greves Gerais de 1917. Após a perda de Cuba, os militares
se concentraram na manutenção dos territórios espanhóis no norte da África, em
Marrocos. Em 1909, após a derrota na batalha de Melilla, o exército decidiu mobilizar
os reservistas catalães, o que desencadeou uma greve geral e uma onda de revoltas
durante vários dias, com graves distúrbios urbanos, como queimas de templos e
conventos. O exército restabeleceu a ordem à força e condenou-se a fuzilamento um
pedagogo anarquista, Francisco Ferrer y Guardia, como responsável pelo movimento.
O episódio desencadeou uma onda de protestos nacionais e estrangeiros e provocou
a queda de outro dos pilares da política de “turno” da Restauração: o chefe de
governo na época, o conservador Antonio Maura.
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Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30
Em 1917, as tensões sociais fomentadas pelo aumento do custo de vida acirraram-se,
e a insatisfação abarcava vários setores. Oficiais de menor patente fundaram as
“Juntas militares de defensa”, espécie de sindicato que reivindicava melhores salários
e condições de trabalho, e setores da burguesia realizaram, em Barcelona, uma
assembleia de parlamentares para pressionar o governo a convocar eleições para
“Cortes Constituyentes”. A ação mais devastadora, porém, viria dos movimentos
operários. No mesmo ano, em 10 de agosto, foi deflagrada uma greve geral
revolucionária, liderada pela UGT. Seu objetivo era proclamar uma “República
democrática socialista” nos moldes da revolução russa iniciada em fevereiro.
Ao contrário da movimentação russa, a unidade do exército, “juntistas” ou não,
conseguiu sufocar a rebelião após três dias de lutas sangrentas e assustar a burguesia.
A vitória “le hacia [ao exército] dueño de los destinos de España” (VICENS VIVES,
1985, p. 356). Esse episódio, pela sua envergadura, abalou profundamente o esquema
de poder, a ponto de marcar a etapa terminal da Restauração.
Se vimos, até agora, o teor das insatisfações civis desse período e da “mesocracia”
militar, por outro lado estava o descontentamento da cúpula militar. Como
assinalamos, criara-se na Espanha um exército conservador, usado muitas vezes para
reprimir os movimentos populares. Foram eles que, de fato, sustentaram a Monarquia
e “garantiram” a ordem da Restauração. Em “compensação”, Alfonso XIII garantiu
um orçamento avantajado ao exército, através das cortes, e financiou as suas
“aventuras marroquinas”. Paradoxalmente, esse pilar do sistema também seria a
sua ruína. Em 1921, a derrota na Batalha de Annual, localidade marroquina perto de
Melilla, na qual uma rebelião popular matou doze mil soldados espanhóis (GARCIA
DE CORTAZAR, 1995, p. 546), desencadeou uma onda de protestos.
El desastre de Annual retificaba Ia crítica del 98 [perda de Cuba], en
el preciso instante que Ias fuerzas conservadoras hacían del Ejército
Ia columna vertebral del orden político y social en España. Incluso Ia
persona de Alfonso XIII se vio incluida en Ia demanda de responsabilidad
que los partidos de izquierda exigieron desde el Parlamento. (VINCENS
VIVES, 1985, p. 368)
Ante a possibilidade de ter que dar explicações sobre o desastre em Annual no
Parlamento, e politicamente encurralado, o exército impôs um golpe militar dirigido pelo
general Miguel Primo de Rivera. Apesar da história de lutas e participação popular até o
momento descritas, a ditadura se implantou sem uma resistência significativa.
[...] Ia masa neutra española recibió con satisfacción Ia noticia [...]
El caos civil, militar y social de los últimos cinco anos, había roto
los nervios del hombre de Ia calle y éste deseaba paz y un gobierno
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Flavia Ferreira dos Santos
que implantara radicalmente unas medidas de emergencia. [...] Por otra
parte, los mismos elementos disidentes del viejo sistema constitucional
abrieron crédito de confianza a Primo de Rivera: Ia burguesia catalana,
los socialistas e incluso ciertos republicanos – como Lerroux –
estimaban posible que Ia Dictadura militar despejaría a su favor Ia
incógnita planteada por Ias últimas cuestiones políticas y sociales.
(VINCENS VIVES, 1985, p. 68)
Assim é que a ditadura do General Primo de Rivera, em 1923, se instalou com
certa tranquilidade. A instabilidade não desapareceu completamente, mas “Se inicia
un periodo de paz social en el que desaparecen, casi por completo, atentados,
huelgas revolucionarias y gran parte de los conflictos laborales” (GARCIA DE
CORTAZAR, 1995, p. 557). É preciso destacar, no entanto, que essa tranquilidade
inicial relacionou-se, também, ao caráter autoritário do governo, que suspendeu os
direitos civis e declarou “Estado de Guerra”.
Sem a onda de prosperidade mundial que coincidiu com seu governo, a ditadura
não sobreviveria tanto tempo. Os preços se estabilizaram e a indústria se desenvolveu,
“a ritmo lento pero seguro” (VINCENS VIVES, 1985, p. 371). Investiu-se em obras de
infraestrutura, como a criação da primeira grande rede de estradas da Espanha, e em
empreendimentos estatais, como a criação de CAMPSA (monopólio do petróleo e
derivados).
No entanto, não se alteraram as estruturas política, econômica e social espanholas.
Sob a ilusão de prosperidade, o governo não resolveu as questões centrais de um
desenvolvimento tardio e desigual, subvencionado por um Estado também falido.
O resultado, depois da suave brisa, foi um vendaval, em 1929. O rápido período de
“progresso” se convertia em mais uma época de crise, que levaria à demissão do
ditador em 1930 e à fuga do monarca em 1931, deixando livre o caminho para a
Segunda República.
Depois da saída de Primo de Rivera, o rei Alfonso XIII convocou eleições, como
forma de promover certa abertura política que desse sustentação à Monarquia. No
entanto, o resultado da votação confirmou uma grande vitória dos republicanos nos
grandes centros urbanos. A habilidade política destes em capitalizar o resultado das
eleições “como uma espécie de plebiscito Monarquia X República e o ambiente de
festa popular instalado” (BAHAMONDE, 2000, p. 544) foram fundamentais. Dado o
claro isolamento político da Monarquia, proclamou-se a República, em 14 de abril
de 1931, tendo como presidente o católico conservador Niceto Alcalá-Zamora e
obrigando o rei a se exilar.
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Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30
O peso dos desafios impostos ao novo sistema, de modernizar um país tão atrasado,
e a demora em efetivamente começar a resolvê-los, fruto das dificuldades econômicas do
período e, principalmente, das profundas diferenças de projeto entre os vários grupos
que assumiram o poder, feriram a credibilidade e inviabilizaram a estabilidade do novo
regime, deixando o caminho livre para o avanço das tropas franquistas.
El nuevo régimen estaba Ilamado en apariencia a enterrar Ia vieja España
cacique de Ia Restauración. Se esperaba de él un verdadero revolcón
social con Ia palanca de Ia reforma agraria y el protagonismo del
movimiento obrero; un correctivo a Ia omnipresencia de Ia Iglesia; un
reajuste de los cuerpos armados, que a un tiempo podase los recargados
cuadros de oficiales y ahuyentase el espectro del militarismo; una labor
cultural y de educación ciudadana para hacer realidad Ias fórmulas
democráticas y, finalmente, una respuesta política a Ia singularidad
regional de Ia península. (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 667)
O problema é que nem todas essas questões interessavam a todos os grupos
comprometidos com a República e os grupos interessados em uma mesma questão
nem sempre (ou quase nunca) concordavam com o modo de resolvê-las. Este era o
preço a pagar por uma “aliança” que incluía setores conservadores, republicanos de
esquerda e socialistas.
[...] República era sinónimo de modernización politica y democracia,
pero no era todo. La República [...] era percibida y sentida
emocionalmente como el símbolo de las expectativas que se abrían, y
por ello fue entendida de muy distintas fomas, y a Ella apeló um nutrido
inventario de aspiraciones muy diferentes. Por ello no cabe hablar
de uma sola República, aunque formal e institucionalmente solo hubiera
uma, sino de varias repúblicas, o dicho de otro modo, distintas formas
de entender el régimen republicano em función de aspiraciones sociales,
proyectos politicos o inquietudes culturales y vitales diversas.
(MARTÍNEZ, 2000, p. 543)
Desse modo, a Espanha tinha dado o passo “mais fácil”. Restava então arrumar a
casa.
El objetivo de acabar con la Monarquia estaba colmado, y La adhesión
mayoritaria y popular al régimen era un hecho. Pero se abrió um
gran debate sobre la orientación que tomo, mientras las tensiones
empezaron a aflorar fruto de expectativas políticas, sociales,
econômicas e ideológicas contrapuestas. (MARTÍNEZ, 2000, p. 545)
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Flavia Ferreira dos Santos
O primeiro biênio (1931-1933) se caracteriza por uma composição inicial de
“centro-esquerda”, que tenta tomar as primeiras medidas para “mudar o rumo
da história da Espanha” (GARCIA DE CORTAZAR, 1995, p. 566) e para garantir a
legitimidade do novo regime. O primeiro governo provisório estava composto, assim,
por um amplo espectro de partidos que iam desde setores mais conservadores, como
“Derecha Liberal Republicana” (depois Partido Republicano Progressista), partido do
presidente Alcalá-Zamora, e o Partido Radical, e tendências mais progressistas, como
a Acción Republicana, do chefe de governo Manuel Azaña (presidente em 1936) e o
Partido Republicano Radical Socialista (dissidência da AR mais à esquerda). Também
incluía o PSOE, os partidos regionais autonomistas ORGA (“Galicia”) e o Partido
Catalinista Republicano. (MARTÍNEZ, 2000)
Como primeira medida, devia-se garantir a base legítima do Estado, motivo pelo
qual se convocaram eleições para as cortes constituintes, com o objetivo de estabelecer
a nova Constituição Republicana, promulgada em dezembro de 1931. A nova Carta
Magna estabeleceu as bases do sistema democrático, que, na prática, funcionava como
um sistema parlamentarista, com um presidente com poucos poderes, entre eles o de
dissolver as cortes unicamerais, o poder legislativo, no máximo duas vezes durante o
seu mandato de sete anos, e um chefe de governo, nomeado pelo presidente desde que
aprovado pelas cortes.
Além disso, o texto final e suas leis complementares asseguraram a igualdade entre
os cidadãos, definindo Espanha como uma “República democrática de trabalhadores
de toda classe”, e incluíram o sufrágio universal e o voto para maiores de 23 anos (o que
instituía o voto feminino e dos soldados). Também afirmaram o caráter laico do Estado,
com a separação de Igreja e Estado e a liberdade de consciência e de cultos, retirando a
subvenção estatal à Igreja Católica, garantindo o fim da obrigatoriedade do ensino
de religião nas escolas e, inclusive, proibindo a existência de instituições religiosas de
ensino. Reconhecia-se, também, o casamento civil e o direito ao divórcio. Por fim,
estabelecia o direito à expropriação de terras, com direito à indenização, para uso social,
cujo objetivo patente era o de promover a reforma agrária, e garantia o direito de cada
região a estabelecer um estatuto de autonomia.
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Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30
Como se observa, uma grande parte dessas reformas correspondia essencialmente
aos anseios de socialistas e de republicanos de esquerda, o que contribuiu a atrelar
a imagem da República a estes grupos.1
La constitución resultaba Ia plasmación de un proyecto intelectual para
modernizar el país y democratizar sus estructuras, pero no había sido
el resultado de un amplio consenso. Había quedado mutilada por los
que se inhibieron o se opusieron, y en todo caso era producto de un
consenso de izquierdas, vertebrado por socialistas y republicanos de
izquierda, a los que quedó asociada, perdiendo la vocación universalista
con la que había nacido. (MARTÍNEZ, 2000, p. 564)
A sua promulgação gerou descontentamentos por parte dos setores mais
conservadores ligados à Igreja e às oligarquias, que poderiam ver as suas terras
confiscadas para a reforma agrária, além de provocar a saída do governo da Derecha
Republicana e do Partido Radical.2 Do mesmo modo, a regulamentação de direitos
trabalhistas e o fortalecimento do papel dos sindicatos (o que favoreceria à UGT),
propostos pelo ministério do socialista Largo Caballero, despertaram o medo dos
empresários e a oposição da CNT.
Se a Constituição desagrava aos setores mais conservadores, deveria, então,
responder aos anseios da classe trabalhadora, operários (base política do PSOE,
através da UGT) e camponeses (muitos afiliados a FNTT, braço político da UGT, que
cresceu após 1931) e do eleitor urbano em geral, os quais depositaram na República
as suas esperanças de melhoria de vida. No entanto, a fuga de capitais, as
dificuldades econômicas de um período marcado pela depressão de 1929 e as
dificuldades políticas tornaram difícil a realização de projetos ousados e caros.
A expropriação de terras, cuja proposta inicial foi suavizada na constituinte, e o
assentamento de famílias ficaram muito abaixo do esperado, o número de escolas
primárias estatais criadas para substituir a ampla rede católica não foi suficiente3
e houve aumento do desemprego. A demora em se conseguir resultados efetivos
acabou minando o amplo apoio popular inicial.
1 A coalisão de governo foi a grande vitoriosa nas eleições de 1931, tendo o PSOE o maior número de deputados (114), seguido pelo
Partido Republicano Radical (89),o Partido Republicano Radical-Socialista (55), Esquerda Republicana de Catalunya (36), Acción
Republicana (30), Derecha Republicana (22) e a ORGA (16). Estes números, somados à representação de pequenos partidos
republicanos e independentes, representavam aproximadamente 90% do parlamento. (MARTÍNEZ, 2000, p. 556)
2 Após a promulgação da Constituição, a Derecha Republicana e o Partido Radical não compuseram o novo governo, que se reduziu
a uma aliança republicana de esquerda-socialista. A saída do Partido Radical, segunda maior bancada do parlamento, e a sua
aproximação aos setores oposicionistas, seria fundamental para a composição de centro-direita do segundo biênio da República
(1933-1936).
3 No caso da educação, isto não significa que os números tenham sido irrisórios [...] mas insuficiente para uma demanda de 27.000
novas escolas (MARTÍNEZ, 2000, p. 76).
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Flavia Ferreira dos Santos
Além das dificuldades de gestão, a coalizão teve que responder às diversas
movimentações oposicionistas ao regime, fossem elas à direita ou à esquerda.
Modernizar o país implicava acabar com a longa tradição de ingerências católicas e
militares no Estado. Esse fato, consumado de forma radical na Constituição e nas
medidas adotadas pelo governo, pouco a pouco situavam católicos e militares, além
dos próprios monarquistas, num campo oposto ao da República. A questão religiosa
era extremamente delicada, uma vez que o amplo apoio popular à República não
significava o fim das profundas raízes católicas do povo espanhol nem o fim do
enorme poder da Igreja e da sua influência, principalmente no campo. Após
14 de abril de 1931, a Igreja observou com desconfiança o novo sistema. Depois das
primeiras medidas provisórias desfavoráveis, um setor, representado pelo Cardeal
Segura, disparou os primeiros ataques, elogiando as relações entre a Monarquia e a
Igreja e taxando as medidas laicizantes de “atentado contra a Igreja”, além de incitar
os fiéis à oposição. Paralela à influência eclesiástica, existia um forte anticlericalismo
popular, de tipo mais emocional do que liberal, que tinha crescido ao longo do
século XIX, associando à Igreja os males que assolavam o país. Desse confronto
surgiram os ataques a igrejas e conventos em maio de 1931, por ocasião da Criação
de um Círculo Monárquico em Madri (MARTÍNEZ, 2000). O Cardeal Segura se negava
a reconhecer o regime e foi expulso do país. Desde então, as relações foram sempre
conflituosas. A aprovação da Constituição, com as medidas laicizantes já citadas, e
a dissolução da Companhia de Jesus em 1932, a mais influente ordem eclesiástica do
país, aumentaram ainda mais a insatisfação da Igreja, o que levaria um setor a se
organizar para intervir nas eleições através da CEDA (Confederación Española de
Derechas Autónomas), como veremos adiante.
Os militares, desde o início, também tramaram contra a República. Muitos eram
simpáticos ao velho regime, fruto do poder do exército como “base de sustentação
da ordem”. A insatisfação só foi aumentando ao longo do tempo, principalmente
depois da política de reorganização e modernização do exército, planejada por
Manuel Azaña. O então ministro da Guerra optou por uma política de renovação
de quadros militares como forma de dotar a República de lideranças fiéis ao novo
regime. Desse modo, obrigou os militares a um juramento de fidelidade à República
e promoveu a aposentadoria voluntária de generais e oficiais, além de reorganizar a
justiça militar, restringindo-a ao âmbito interno. Estas e outras medidas geraram
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Modernização espanhola: os prósperos anos 20 e a conturbada década de 30
desconforto entre os oficiais e, em 10 de agosto de 1932, se realizou uma primeira
tentativa fracassada de Golpe, liderada pelo general Sanjurjo.
Su morfología recuerda ai pronunciamiento del siglo XIX de carácter
cívico-militar, en una mezcla confusa de militares y civiles monárquicos
alfonsinos, carlistas – aunque no en nombre de Ia Comunión –,
nacionalistas fascistas y algún monárquico liberal, con fines muy
heterogéneos, desde el frontal ataque al régimen para instaurar Ia
Monarquía [...] hasta un cambio de gobierno. (MARTÍNEZ, 2000, p. 592)
A revolta foi sufocada e o seu líder, condenado à morte, pena comutada em prisão
perpétua. Além disso, áreas de grandes proprietários ligados ao golpe foram confiscadas
para a reforma agrária e os monarquistas foram perseguidos. Era natural que os
monarquistas conspirassem contra o regime desde o primeiro momento, procurando,
como aliados, os militares insatisfeitos com as reformas. Contrários à República
por convicção política, eles se dividiam em carlistas (Comunión Tradicionalista) e
alfonsinistas (Renovación Española). Após o golpe, atuaram de forma colaboracionista,
inclusive com uma tentativa, infrutífera, de unificação das “linhas sucessórias”,
chegando a fazer um pacto com Mussolini para derrubar o governo.
Por outro lado, além de enfrentar os setores mais conservadores (militares,
monarquistas e religiosos), a República teve que lidar com as greves e manifestações
organizadas pela CNT, o sindicato anarquista. Desde o seu congresso de junho de
1931, a CNT optou pelo não-reconhecimento do novo regime e a “ação direta” rumo
a um “comunismo libertário”. Assim, estimulou a greve geral e a insurreição popular
como formas de tomar o poder e derrubar a República, percebida como modo de
governo burguês, incapaz, portanto, de defender os interesses do povo. A partir
de então, organizou várias greves na cidade e no campo andaluz, misturadas a
ocupações de cortiços. A crise culminou em janeiro de 1933, quando a CNT promoveu
uma insurreição geral e várias localidades sob a sua influência se rebelaram. Em Casa
Viejas, uma pequena cidade andaluza, os rebeldes foram assassinados pela “guardia
civil”. A dura repressão ao movimento provocaria a queda do governo, chefiado por
Azaña, e o desgaste das relações entre republicanos e socialistas, que se afastaram
do governo e adotaram uma linha mais radical.
Assim, marcada pela campanha anarquista de abstenção, pelo desânimo dos
trabalhadores e camponeses, pelo medo da burguesia à revolução e, finalmente, pela
desarticulação das esquerdas, que concorrem separadas ao pleito, a direita venceu as
eleições de 1933, dando início ao chamado biênio conservador ou de centro-direita.
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Flavia Ferreira dos Santos
Da união de partidos católicos de direita, especialmente da “Acción Popular”,
surgira, em 1933, a CEDA, com o objetivo de ser um partido de direita, organizado
para influir nos rumos da República, a partir das próprias instituições do sistema
republicano. Através de alianças com outros partidos conservadores, a CEDA se
tornou o partido com mais cadeiras no parlamento e com o apoio do Partido Radical,
o segundo maior, definiu o novo governo. Uma vez no poder, a direita revogou
medidas do período anterior, favorecendo a Igreja, anistiando os insurretos de
Sanjurjo e devolvendo as terras expropriadas a seus antigos donos. A reação foi
grande, culminando com as revoltas de outubro de 1934, duramente sufocadas.
Aunque constitucionalmente era un nuevo episódio político con
una base de continuidad, en Ia práctica era otra República Ia que se
configuraba, por cuanto era entendida de forma distinta, cuestionándose
los soportes en los que había descansado hasta entonces. (MARTÍNEZ,
2000, p. 96)
Após escândalos envolvendo o governo de Lerroux, em 1936, o presidente
Alcalá-Zamora dissolveu as Cortes e convocou novas eleições. Dessa vez, a esquerda se
uniu na Frente Popular e saiu vitoriosa. A direita protestou e o país se converteu em foco
de pequenos ataques violentos e rebeliões. Em 13 de julho de 1936, o líder da oposição
José Calvo Sotelo foi assassinado pela Guardia de Asalto, polícia da República. Era o
pretexto para o início do “Pronunciamiento”, que levaria à Guerra Civil.
Referências
• BAHAMONDE, Angel. (Org.). Historia de España, siglo XX: 1875-1939. Madri:
Cátedra, 2000.
• GARCIA DE CORTAZAR, Fernando. Breve historia de España. Madri: Alianza,
1995.
• JACKSON, Gabriel. La república española y la guerra civil. Barcelona: Crítica,
1999.
• VICENS VIVES, J. (Org.). Historia de España y América – social y económica.
Barcelona: Vicens-Vives, 1985, Vol. V.
• VILAR, Pierre. História de Espanha. Lisboa: Horizonte, 1992.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
METÁFORA, LINGUAGEM E COGNIÇÃO:
A VISÃO DA GUERRA ATRAVÉS
DA METÁFORA
Sérgio N. de Carvalho
Faculdade CCAA
ILE – UERJ
Escola Naval
Doutor em Estudos da Linguagem pela UFF
contato: [email protected]
Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar criticamente os efeitos de
metáforas conceptuais na ideologia do governo do Presidente G. W. Bush e seus
principais aliados por ocasião dos eventos de 11 de setembro de 2001, passando pelas
pré-guerras do Afeganistão e Iraque. Utilizamos como corpus citações desses experientes
políticos, publicadas em artigos do The New York Times durante o referido período
histórico e, portanto, atribuindo à imprensa escrita o fator de relevância que tem na
formação de cultura e vice-versa. Tendo como fundo os interesses da política internacional,
o uso de metáforas foi interpretado em relação à necessidade de enfatizar e reforçar
algumas imagens que pudessem descrever a posição dos Estados Unidos e seus aliados
no período mencionado.
PALAVRAS-CHAVE: discurso crítico; metáfora conceptual; política internacional.
Abstract: This work aims at analyzing critically the effects of conceptual
metaphors in the rhetoric of President G.W. Bush and his collaborators during the attacks
of the World Trade Center (New York City) and the pre-wars of Afghanistan and Iraq. For
that purpose, our corpus was based on the discourse of these important politicians published
by the leading newspaper The New York Times; therefore, testifying the relevant aspects of
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Sérgio N. de Carvalho
the written media in the formation of culture and vice-versa. As background, we had the
interests of international politics where conceptual metaphors were used to emphasize the
political needs of the United States during that period.
KEYWORDS: critical discourse; conceptual metaphor; international politics.
Resumen: Este estudio tiene como objetivo analizar críticamente los efectos de
metáforas conceptuales en la ideología política del gobierno del Presidente G.W. Bush y sus
principales aliados en ocasión de los sucesos del 11 de septiembre de 2001, pasando por
las preguerras de Afganistán e Irak. Hemos utilizado como corpus citas de esos experimentados
políticos, publicadas en el The New York Times durante tal periodo histórico. Por lo tanto,
estamos atribuyendo a la prensa escrita el factor de relevancia que posee en la formación
de la cultura, y viceversa. Tomando como trasfondo los intereses de la política internacional,
se ha interpretado el uso de metáforas motivadas por la necesidad de enfatizar y reforzar
algunas imágenes que pudieran describir la posición de los Estados Unidos/aliados en el
periodo susodicho.
PALABRAS
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CLAVE :
discurso crítico; metáfora conceptual; política internacional.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora
INTRODUÇÃO
Este texto é sobre linguagem e, especificamente, a forma como o discurso é usado
em tempo de crise política nacional ou internacional. Os eventos que aconteceram
em 11 de setembro de 2001 e aqueles que os sucederam, através da retórica pública,
tornaram-se guerras. O governo do Presidente G. W. Bush ratificou muito bem isso.
A cidade de Nova York passa ser a capital da América e todo o mundo volta os seus
olhos para essa gigantesca metrópole, o centro nervoso das finanças, a Meca cultural
da América. E por que não dizer que as torres gêmeas, metaforicamente falando, são
o coração do estado americano?
Este pequeno estudo faz parte de uma pesquisa maior que se refere ao uso de
expressões linguísticas metafóricas usadas por pessoas, cidadãos que (presumivelmente)
são peritos no uso da retórica política. Portanto, supostamente, conhecedores da
capacidade de persuasão que este tropo tem na modalidade do discurso aqui citado.
O conteúdo desse esse período histórico foi examinado através do jornal diário
americano The New York Times (doravante NYT), com o intuito de descobrir como a
metáfora foi usada em relação aos objetivos e decisões políticas. A escolha desse
jornal dá-se pela sua enorme circulação na sociedade daquele país como veículo de
informação, pela sua credibilidade e pelo número recorde de prêmios Pulitzer ganhos
em 2002 em reconhecimento à ampla cobertura dada àqueles acontecimentos.
Nesse conteúdo, através de citações do referido jornal, veremos o Presidente
norte-americano G. W. Bush e seus principais colaboradores de governo como
experientes articuladores políticos e exímios palestrantes, no que diz respeito ao
discurso político.
Algumas vezes, oferecemos um exemplo representativo de uma determinada
expressão metafórica no domínio do “crime” e da “guerra” que possa ter ocorrido
várias vezes na referida mídia (NYT). Depois de analisar as expressões linguísticas
metafóricas, elas são agrupadas em categorias, cada categoria sob o título de uma
determinada metáfora conceitual, conceito esse a ser explicado mais adiante no artigo.
Compartilhamos com Schon (1979) que as dificuldades mais prementes na
política social, e acrescentamos na política também, têm mais a ver com a colocação
dos problemas do que praticamente com a solução dos mesmos. Ou seja, a maneira
como um problema é conceitualizado ou verbalizado é, frequentemente, metafórico,
e por aí já se tem o desencadeamento das possíveis soluções desse problema. No
caso da política, nacional ou internacional, muito da agenda dos dirigentes de um
país é estruturada com base em discursos repletos de metáforas. Lakoff e Johnson
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Sérgio N. de Carvalho
(1980, 2002, p. 61) denominam tais metáforas estruturais de metáforas gerais (ou
conceituais), que nos permitem, mais do que simplesmente orientar conceitos, nos
referir a eles, quantificá-los, etc. Como fazemos com as metáforas simples, “elas nos
permitem, além disso, usar um conceito bem estruturado e delineado para estruturar
outro” (p. 61). Os autores nos exemplificam com a metáfora “TEMPO É UM BEM
MATERIAL” (TIME IS A RESOURCE), que estrutura a forma como vemos tempo
como um recurso contável e de valor, que pode ser gasto, guardado e desperdiçado.
(LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002, p. 65, grifo do autor)
A trajetória linguística do World Trade Center e do Pentágono começou em
silêncio. Nenhum país se responsabilizou pelos acontecimentos de 11 de setembro.
Mas, os Estados Unidos asseguraram que eles tinham um “inimigo” – um “inimigo
sem cara” que personificava o “mal”. E, contra esse mal, os Estados Unidos se
lançaram em uma guerra. O primeiro passo para essa guerra, o primeiro alvo, foi o
empobrecido Afeganistão. Tudo isso porque aquele país “escondia” o “inimigo sem
cara”. Tendo o ataque lá começado em 7 de outubro de 2001, a pergunta que se faz é:
Como que, de uma resposta ao terror, se forma uma guerra ao terrorismo?
Finalizando, o objetivo desse artigo é mostrar, ainda que resumidamente, tendo
em vista a natureza desse texto, o caminho percorrido por um país na construção de
uma guerra com o auxílio de uma poderosa arma: o discurso metafórico.
A METÁFORA E O DISCURSO POLÍTICO
Existe um grande número de estudos sobre a metáfora na literatura. Sontag e
outros começam por Aristóteles, cujo livro Poética define metáfora de uma forma
simples, mas clara: “Metáfora consiste em nominar uma coisa em nome de outra”.
A partir dessa definição, estudos em diversos campos sobre a metáfora se ampliam:
retórica, discurso, literatura, linguística, pragmática, psicologia, ciência cognitiva
e outros (BOYS-STONES, 2003; EUBANKS, 2000; ORTONY, 1993; SEARLE, 1993;
WHITE, 1978). Mas aqui consideraremos a metáfora do ponto de vista da linguística
cognitiva (BLACK, 1962; LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002; ORTONY, 1993; GIBBS,
1994; LAKOFF; TURNER, 1989; LAKOFF, 1991; EUBANKS, 2000; CAMERON e LOW,
1999; CAMERON, 1999, 2003; DEIGNAN, 1995, 1999; JOHNSON, 1987; KÖVECSES,
2002, 2004, apenas para citar alguns) e sua implicação no discurso político.
Certamente, a área da política é, em particular, um campo fértil para pesquisa dessa
figura de linguagem. Alguns estudos de interesse já se apresentam na literatura como
Bostdorff (1994), Chilton (2004), Green (1992) e Swanson e Nimmo (1990).
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Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora
Mas, sem dúvida alguma, o grande divisor de águas do estudo da metáfora é
Metáforas da vida cotidiana (tradução do GEIM/PUC/SP), escrito pelo linguista
cognitivo George Lakoff e o filósofo Mark Johnson, em 1980. Essa obra tornou-se
de grande relevância para a discussão social e política da metáfora. Os autores
argumentam que o sistema conceitual humano é fundamentalmente metafórico e
que a metáfora estrutura a nossa maneira de pensar. A argumentação deles de que a
metáfora “não é um recurso somente da linguagem, mas também do pensamento e
da ação”, apoia o estudo do discurso social e político (LAKOFF; JOHNSON, 1980,
p. 208); (BLACK, 1962; JOHNSON, 1987; LAKOFF, 1986; LAKOFF; TURNER, 1989 e
SWEETSER, 1991). Assim sendo, do ponto de vista cognitivo da metáfora, ela é usada
na comunicação para que possamos compreender situações problemáticas a partir de
situações que já nos são conhecidas. As metáforas “antigas” ou “mortas” e “novas”
ou “vivas” são normalmente construídas a partir de conceitos humanos provenientes
da interação do corpo humano com o meio ambiente em que vivemos: ficar de pé,
estar num espaço delimitado, mover-se de um ponto para o outro.
Além das características acima da metáfora como um processo cognitivo
universal, esse tropo tem a função no discurso, nesse caso do ponto de vista
interacional, na relação face a face, de atenuar o mal-estar que possa haver no
contato entre indivíduos. No modelo de Brown-Levinson (1987), a metáfora é
considerada uma “estratégia fora de registro”; isto é, o seu objetivo é controlar os
mais ameaçadores atos de fala e, ao mesmo tempo, minimizar o envolvimento de seu
escritor/falante.
É do ouvinte a responsabilidade de entender as implicações metafóricas e a
sua importância naquele momento da comunicação. Ao mesmo tempo, a metáfora
propicia um terreno comum no que diz respeito ao aspecto cultural (DEIGNAN,
2003; GIBBS, 1999; KÖVECSES, 2002, 2004; LAKOFF; JOHNSON, 1980, 2002) e,
também, ao mesmo tempo, do ponto de vista cognitivo, ela age como um grande
recurso para que novos conceitos e políticas possam ser explorados. Mas fica o alerta
para que tenhamos cuidado com a possibilidade desse terreno comum, quando
uma determinada comunicação surge entre culturas, podendo-se incidir em uma má
compreensão da metáfora por conta das diferenças culturais entre o escritor/falante
e o leitor/ouvinte. (DEIGNAN, 2003; ROHER, 2004)
Não poderíamos nos esquecer de mencionar, dentro desse tópico da metáfora
e política e, mais diretamente, a política internacional, a capacidade de persuasão
daquela figura de linguagem.
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Sérgio N. de Carvalho
Apesar do crescente interesse no estudo da metáfora, ainda não se tem um número
muito expressivo de pesquisas sobre sua função de mudança de atitude ou efeitos
de persuasão (expressando e manipulando crenças). A maioria do interesse nessa área
centraliza-se nos efeitos persuasivos da linguagem. (BOERS, 1963, 1964)
A função persuasiva da metáfora se faz entender a partir da teoria contemporânea
da metáfora, como Lakoff (1993) se refere. O autor e seus seguidores postulam a
existência de relações mentais chamadas de metáforas conceituais, como vimos
acima. As metáforas conceituais funcionam no nível do pensamento, em vez do
da linguagem. Elas são passíveis de serem concretizadas através de expressões
denominadas “metáforas”. Os escritores da escola contemporânea se referem a essas
expressões linguísticas como “metáforas linguísticas” (LAKOFF; JOHNSON, 1980,
1999; CAMERON, 1999, 2003; DEIGNAN, 1995, 1999). Muito embora as relações
conceituais, segundo a teoria contemporânea, sejam mais significativas do que as
relações linguísticas individuais, as metáforas linguísticas são as únicas evidências
disponíveis para que se possa provar a existência das metáforas conceituais. Isto quer
dizer que quase toda discussão sobre metáfora conceitual recai nos exemplos de
metáforas linguísticas, de modo geral concebidas intuitivamente.
Concluindo, as metáforas podem ser usadas com o intuito de persuadir, ao
tendenciosamente sugerir uma interpretação de situações ou acontecimentos. Isso
acontece porque elas constroem um equilíbrio entre os elementos do domínio-fonte
(o campo semântico do qual o significado literal é originado) e domínio-alvo (o
domínio semântico dentro do qual o significado metafórico está localizado).
Entretanto, temos que estar atentos, porque a metáfora não proporciona uma visão
completa do seu tópico, mas, com certeza, ela destacará alguns aspectos e esconderá
outros. E é por causa dessa característica que o discurso político, metafórico quase
por natureza, merece atenção no campo da análise crítica de texto escrito e/ou falado
desse campo da ciência.
UMA BREVE ANÁLISE CRÍTICA DO CORPUS
Com a intenção de apenas situar os leitores no fato histórico, naquela manhã
de 11 de setembro de 2001, aviões de linha comercial chocaram-se contra as torres
gêmeas, na cidade de Nova York e o prédio do Pentágono, na cidade de Washington,
D.C., a capital dos Estados Unidos. Aquele evento foi primeiramente descrito com o
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Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora
termo um ato de “terror” e/ou “crime” e, depois, se tornou um ato de “guerra”. “Atos
de guerra”, normalmente, são recíprocos com outros “atos de guerra” – mas, guerra
contra quem? Fazer tal pergunta é pegar uma lente de alto grau de aumento para
refletir sobre como a linguagem foi usada para trazer a público o senso comum na
política nacional da América.
Abaixo, mostraremos, de forma resumida, uma análise crítica de falas do
Presidente Bush e seus assessores, através de citações de artigos do jornal NYT,
focalizando as metáforas linguísticas usadas para exemplificar a trajetória de uma
conceituação de crime a ato de guerra que, consequentemente, nos leva à metáfora
conceitual dominante EVENTO “X” É UM ATO DE GUERRA. Destacaremos, também,
outras metáforas do domínio da política internacional que possam interagir com a
metáfora dominante, acompanhadas de um breve comentário sobre a ideologia que
permeia, possivelmente, cada metáfora. Isso ocorre porque não podemos falar sobre
guerra sem falarmos em política internacional.
Apresentaremos, assim, a metáfora conceitual (sempre em letras maiúsculas, em
português e inglês), seguida de considerações ideológicas, quando se fizerem necessárias,
e os exemplos, respectivamente, com a fonte e data.
TERRORISMO É UM CRIME (TERRORISM IS A CRIME)
Esta metáfora teve um tempo de vida curta no cenário da política americana por
ocasião do ataque às torres gêmeas e à sede do Pentágono. Segundo o Presidente
Bush, esse evento, em questão de horas, se torna um “ato de guerra”, como veremos
adiante. Assim, um ataque terrorista passa a ter o mérito de uma completa resposta
militar por parte dos Estados Unidos e a criação de um grupo de aliados. Esse
“sistema” de crime envolve: vítima, lei, punição, juiz, corte, e esses elementos foram
abandonados rapidamente.
1. “These acts of mass murder were intended to frighten our nation…” (“Esses atos
de assassinatos tiveram a intenção de assustar a nossa nação” (NYT, 11/09/01).
2. “I have directed… to bring them to justice” (“Eu os pedi que… os julgassem”)
(NYT, 11/09/01).
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Sérgio N. de Carvalho
3. “This is the day… our resolve for justice and peace” (“Este é o dia… nossa
decisão pela justiça e paz”) (NYT, 11/09/01).
4. “Crime scenes have been established by the federal authorities” (“Cenas de
crime foi como as autoridades federais viram o atentado”) (NYT, 11/09/01).
5. “The full resources of the Department of Justice… are being deployed to
investigate these crimes and to assist survivors end victim families.” (“Todos
os recursos do Ministério da Justiça… estão sendo empregados com o intuito
de investigar esses crimes e dar assistência aos sobreviventes e familiares das
vítimas”) (NYT, 11/09/01).
6. “May God bless the victims,…” (“Que Deus abençoe as vítimas,...”)
(NYT, 12/09/01).
O ACONTECIMENTO/EVENTO “X” É UM ATO DE GUERRA (EVENT
“X” IS AN ACT OF WAR)
Em questão de horas, no seu primeiro discurso à nação americana, o presidente,
sua equipe e seus países aliados transformam o cenário de um “ato de crime” em
“um ato de guerra”.
1. “… we stand together to win the war against terrorism” (“… ficaremos a
postos, juntos para vencer essa guerra contra o terrorismo”) (NYT, 11/09/01).
2. “This is not a battle between the United States of America and terrorism,
but…” (“Essa não é uma batalha entre os Estados Unidos da América e o
terrorismo, mas…”) (NYT, 12/09/01).
3. “This war will not be like the war against Iraq a decade ago,…” (“Essa guerra
não será como a guerra contra o Iraque há uma década,…”) (NYT, 12/09/01).
4. “Americans should not expect one battle, but…” (“Os americanos não devem
esperar uma batalha, mas...”) (NYT, 20/09/01).
5. “… that an act of war was declared on us” (“…que um ato de guerra nos foi
declarado) (NYT, 14/09/01).
6. “...war on home territory” (“...guerra na nossa casa”) (NYT, 12/09/01).
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Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora
7. “Let’s make glass out of Afghanistan” (“Vamos fazer do Afeganistão cacos de
vidro”) (NYT, 14/09/01).
8. “Gerhard Schroeder called the attacks a declaration of war against…”
(“Gerhard Schroeder chamou os ataques de uma declaração de guerra
contra…”) (NYT, 12/09/01).
9. “…but now that war has been declared on us…” (“...mas agora que nos foi
declarada guerra,…”) (NYT, 14/09/01).
10. “How to fight this foe” (“Como lutar contra esse inimigo”) (NYT, 24/09/01).
NAÇÃO É UMA PESSOA (NATION IS A PERSON)
Essa metáfora é um recurso linguístico de extrema relevância em conflitos
internacionais em que a guerra se faz presente. O país é visto como uma “pessoa” e,
consequentemente, ele/ela se engaja em relações sociais, ou não, em casa, ou dentro
de uma comunidade mundial. O seu território passa a ser “lar”, ele (o país) vive em
uma “vizinhança” com seus “amigos”, “vizinhos”, “inimigos”. Esse tropo dá ao povo
americano o sentimento de que é justo/moral lutar contra o inimigo que invade a sua
casa e lhe tira o direito de ter seus valores (aqui, a liberdade, tão proclamada pelo
governo Bush e aliados). O mal que se faz não é a um país, mas sim a uma pessoa,
a um ser humano. Dessa maneira, para a sociedade americana, todo o conflito está bem
próximo, mas de uma forma bem diferente dos fatos reais.
Essa mesma metáfora pode ser analisada como uma metonímia. Considerando
que, no discurso da política internacional, é comum que ela seja vista assim, podemos
arriscar, dizendo que se trata de uma possível metaforização da metonímia.
1. “…to frighten our nation into chaos and retreat” (“…assustar nossa nação,
criando-se um caos e nos afastando covardemente”) (NYT, 12/09/01).
2. “Our nation saw evil...” (“Nossa nação viu o mal...”) (NYT, 12/09/01).
3. “America has stood down enemies before…” (A América já enfrentou muito bem
inimigos antes…”) (NYT, 12/09/01).
4. “Today America has experienced one of the greatest…” (“Hoje a América
experimentou uma das maiores…”) (NYT, 11/09/01).
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Sérgio N. de Carvalho
5. “…when America suffers,…” (“…quando a América sofre,...) (NYT, 12/09/01).
6. “The president repeatedly states that Iraq had failed to disarm” (“O presidente
várias vezes repetiu que o Iraque não atendeu ao pedido de desarmamento”)
(NYT, 07/03/02).
7. “…the Unites States might suffer” (“...os Estados Unidos podem sofrer”)
(NYT, 07/03/02).
8. “…the United States decides to take military action” (“…os Estados Unidos
decidem investir militarmente”) (NYT, 07/03/02).
9. “The United States is not as isolated as it might seem” (“Os Estados Unidos
não estão tão isolados quanto possa parecer”) (NYT, 07/03/02).
FICAR DE PÉ É AGIR MORALMENTE (TO STAND IS TO ACT MORALLY)
Uma vez que a “nação-pessoa” se “levanta” contra o “inimigo”, ela está agindo
moralmente. O “mal”, o “inimigo” deve ser vencido pelo “bem”. Portanto, ao
eliminarmos o “inimigo”, estamos colaborando para que ele não ameace aqueles
mais fracos. E contra o “inimigo”, não se questiona o seu extermínio. O “bem” tem
que vencer o “mal”.
1. “And we stand together to win the war against terrorism” (“E levantamos
juntos contra o inimigo para vencer a guerra contra o terrorismo”)
(NYT, 12/09/01).
2. “America has stood down enemies before,…” (“A América já se levantou contra
inimigos antes,...”) (NYT, 12/09/01).
SUDDAN HUSSEIN É O MAL/IRAQUE É O MAL (SADDAM HUSSEIN IS
EVIL /IRAQ IS EVIL)
Esta metáfora, na verdade, é um desencadeamento da metáfora conceitual
dominante no discurso político internacional de conflitos de guerra o CONTO DE
FADAS. Na literatura, temos os seguintes personagens: o herói (aqui representado
pelos Estados Unidos), a vítima (também os Estados Unidos e/ou a comunidade
mundial, segundo o governo Bush e aliados) e o vilão (não se sabe bem quem, mas
o governo Bush e aliados denominam de Bin Laden – Guerra do Afeganistão – e,
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Metáfora, linguagem e cognição: a visão da guerra através da metáfora
depois, armas de destruição em massa – nunca encontradas – ou Saddam Hussein –
Guerra do Iraque). A escolha do vilão é importante para poder armar a história
completa com todos os seus personagens. Dessa forma, o governo Bush e aliados
justificam uma guerra moralmente, de modo que Saddam Hussein é o mal, o inimigo
e, portanto, deve ser eliminado vivo ou morto como o próprio Bush afirmou na mídia.
1. “President Bush prepared the country tonight for possibly imminent military
action against Iraq,… declaring that Saddam Hussein posed a direct threat to
the security of the Unites States…” (“O Presidente Bush preparou o povo hoje
à noite para uma possível investida militar contra o Iraque,... declarando
que Saddam Hussein é uma ameaça à segurança dos Estados Unidos...”)
(NYT, 07/03/03).
2. “… saying Mr. Hussein posed a comparable danger” (“… afirmando que o
Sr. Hussein apresenta-se como um perigo”) (NYT, 07/03/03).
3. “… while portraying Iraq as the most urgent threat, Mr. Bush referred to …”
(“… enquanto mostrava o Iraque como a ameaça mais iminente, o Sr. Bush
se referiu a ...”) (NYT, 20/03/03).
4. But Mr. Bush said… on confronting Iraq and the dangers it poses” (“Mas o
Sr. Bush afirmou… ao confrontar o Iraque e os perigos que ele representa”
(NYT, 07/03/03).
5. “He’s a murderer”, he said...” (“Ele é um assassino”, ele disse...”)
(NYT, 07/03/03).
CONCLUSÃO
Este trabalho tentou mostrar o papel da metáfora conceitual no discurso político
em situações de conflitos de guerra. Devido à natureza do gênero presente (artigo
jornalístico) e, consequentemente, a limitação deste espaço, não houve a intenção
de explorar o assunto de forma mais aprofundada, como está sendo feito na pesquisa
em andamento.
Podemos observar, a partir deste estudo, que a metáfora tem uma influência
cultural a ser considerada e devemos entender que o seu processo está de acordo
com os interesses políticos do local.
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Sérgio N. de Carvalho
Ressaltamos, também, que a metáfora desempenha uma função relevante ao criar
significados que possam ser compartilhados por muitos, percepções e um certo grau
de afirmação entre o público. Muito embora diferentes metáforas possam competir
na guerra da aceitação por parte do público, a visão metafórica que é disseminada
frequentemente desfruta de uma grande vantagem porque, em tempo de conflitos,
o líder de uma nação é geralmente visto como um protetor contra os inimigos.
Assim se apresentou o Presidente Bush e seus grandes aliados, que também exercem
posição de destaque em seus governos.
Falamos, ainda, da função persuasiva da metáfora, no sentido de que ela pode ser
manipulada para criar efeitos persuasivos em situações de grande interesse do público.
Entretanto, por experiência na análise de textos dessa natureza e como leitores
competentes que somos, argumentamos que a maioria dos escritores/falantes não
permitem que sejam eles mesmos julgados por essas metáforas. As metáforas, sem
dúvida, são usadas com significados avaliativos por aqueles que tentam ser persuasivos,
mas nós podemos, com certeza, exercer o nosso papel de questionadores e explorar
esses usos para criticar os valores, julgamentos, atitudes, enfim, ideologias que estão
por trás delas.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
UM NOVO OLHAR SOBRE A METÁFORA:
A ABORDAGEM COGNITIVISTA
Diogo Pinheiro
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS
Doutorando em Linguística pela UFRJ
Karen Sampaio Braga Alonso
Faculdade CCAA
Doutora em Linguística pela UFRJ
contato: [email protected] / [email protected]
Resumo: Este artigo pretende introduzir o leitor à abordagem inovadora da
metáfora conceptual que vem sendo desenvolvida desde a década de 1980 no âmbito da
linguística cognitiva. Ao final, também se apresentam brevemente as linhas gerais de
um tratamento cognitivista para a “figura de linguagem” conhecida como metonímia.
PALAVRAS-CHAVE: metáfora; linguística cognitiva; domínios conceptuais.
Abstract: This paper introduces the reader to the new approach on conceptual
metaphor that has been under development since the 1980’s within cognitive linguistics
framework. At the end, we also present the overall ideas that lie behind the cognitive approach
to the “figure of speech” known as metonymy.
KEYWORDS: metaphor, cognitive linguistics, conceptual domains.
Resumen: Este artículo busca introducir al lector al abordaje innovador de la
metáfora conceptual que está siendo desarrollada desde la década de los ochenta en el ámbito
de la lingüística cognitiva. Al final, también se presentan brevemente las líneas generales de
un tratamiento cognitivo para la “figura de lenguaje” conocida como metonimia.
PALABRAS
CLAVE :
metáfora, lingüística cognitiva, dominios conceptuales.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso
PRIMEIRAS PALAVRAS
Em certo sentido, a metáfora dispensa apresentações: é uma figura de linguagem
presente em dez entre dez manuais escolares que contenham um capítulo, ou anexo,
de Estilística. Também nos manuais de literatura brasileira, não há estudante que
não a reencontre. Ficamos sabendo, por exemplo, que o poeta barroco emprega
abundantemente esse recurso, ao passo que o poeta árcade o evita. De tão repetidos,
exemplos paradigmáticos de metáfora, como (1) e (2) a seguir, já se tornaram clichês
da sala de aula:
(1) O jogador foi um leão em campo.
(2) A Amazônia é o pulmão do mundo.
Mas, afinal, como definir a metáfora? E, sobretudo, por que voltar, neste espaço, a um
tema já tão repetido?
A segunda resposta é simples. Resgatamos aqui esses assuntos porque, desde o
início da década de 1980, um novo paradigma em linguística, surgido como alternativa
à teoria gerativa, vem propondo uma maneira nova e estimulante de se pensar a
metáfora (principalmente) e a metonímia: trata-se do arcabouço conhecido hoje
como linguística cognitiva1 (LC). A segunda resposta, por seu turno, depende
diretamente da primeira: em outras palavras, a definição de metáfora dependerá da
perspectiva que se adote.
O objetivo central deste artigo é apresentar essa perspectiva inovadora sobre
a metáfora. Desenvolvida pioneiramente pelo linguista George Lakoff e pelo filósofo
Mark Johnson. Tal perspectiva, que deu origem ao modelo hoje conhecido como
Teoria da Metáfora Conceptual (TMC), foi exposta originalmente na obra seminal
intitulada Metaphors we live by (1980).2 Depois dela, uma série de publicações
desenvolveram as propostas originais, dentre elas, destacam-se Lakoff e Johnson
(1980); Lakoff (1987); Johnson (1987); Lakoff e Turner (1989); Lakoff e Johnson (1999);
Lakoff e Nuñez (2000). Para apresentar a TMC, começamos contrastando esse novo
olhar com a visão tradicional da metáfora. Em seguida, buscaremos sistematizar
a teoria, apresentando sua operacionalização no âmbito da pesquisa em LC. Por fim,
fazemos um breve comentário sobre outras “figuras de linguagem”, como a
personificação, a catacrese e a metonímia.
1 Introduções recentes, e em língua portuguesa, a essa teoria são Ferrari (2009) e Leitão de Almeida, Pinheiro, Lemos de Souza,
Nascimento e Bernardo (2009).
2 Publicada pela Editora Mercado de Letras, a tradução para o português saiu em 2002 e ganhou o nome de Metáforas da vida
cotidiana. É preciso dizer que as propostas apresentadas nesse livro têm pelo menos um precursor, conforme reconhecido por Lakoff
(1993): trata-se de Michael Reddy, cujo artigo The Conduit Metaphor (REDDY, 1979) prenuncia ideias que serão depois retomadas
e aprofundadas no desenvolvimento da TMC.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista
A METÁFORA: DA PERSPECTIVA TRADICIONAL À VISÃO COGNITIVISTA
Conhecida pelo menos desde Aristóteles, a metáfora é provavelmente o tropos,
ou figura de linguagem, mais celebrado. Vista como a própria essência da linguagem
poética, já que possibilita afastá-la da (suposta) natureza denotacional rasteira da
linguagem do dia a dia, ela diz o que as coisas de fato não são: pela metáfora, jogadores
podem tornar-se leões.
Por se tratar de uma conquista da imaginação, resultante frequentemente de insights
criativos, assume-se normalmente que a metáfora não é para todos: dominá-la seria, nas
palavras de Aristóteles, a “marca do gênio” (2008, p. 80). É a partir dessa concepção que
se constrói a visão tradicional da metáfora como atributo exclusivo de textos expressivos
especiais, sobretudo os literários. Para ilustrar esse ponto, Leitão de Almeida, Pinheiro,
Lemos de Souza e Nascimento (2009) dão os seguintes exemplos:
(3) “Salvo a grandiloquência de uma cheia / lhe impondo interina outra linguagem, /
um rio precisa de muita água em fios / para que todos os poços se enfrasem.”
(João Cabral de Melo Neto)
(4) João entrou em / está em / saiu da depressão
No primeiro caso, aparece uma metáfora literária, por meio da qual o discurso
fluente é caracterizado como um rio, ao mesmo tempo em que a fala fragmentada é
retratada como poços de “água paralítica”. No segundo caso, porém, não estamos
diante de nenhum uso linguístico especialmente expressivo; trata-se, pelo contrário,
de um uso banal, corriqueiro. Apesar disso, a mesma relação analógica pode ser
verificada. Se em (3) o discurso é comparado a um rio, em (4) um estado –
especificamente, depressão – é entendido como um lugar físico. Como poderemos
constatar repetidamente na próxima seção, exemplos como estes mostram que a
metáfora está fortemente presente na linguagem ordinária.
Em suma, vimos até aqui duas diferenças entre as perspectivas tradicional e
cognitivista da metáfora. Em primeiro lugar, a LC não enxerga essa “figura” como índices
de genialidade; pelo contrário, ela é produzida corriqueiramente por qualquer falante
que não tenha determinados déficits de linguagem. A segunda diferença, certamente
relacionada à primeira, diz respeito ao fato de que, do ponto de vista da LC, a
metáfora não pertence apenas à esfera dos textos literários; pelo contrário, está
bastante disseminada pela linguagem ordinária, como os exemplos acima devem ter
deixado claro.
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Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso
As diferenças, porém, não param por aí. Uma das questões mais cruciais diz respeito
ao locus da metáfora. A perspectiva tradicional nos ensina que se trata de uma figura
de linguagem – vale dizer, de um recurso linguístico especial que pode,
opcionalmente, ser empregado para enriquecer estilisticamente um texto, tornando-o,
talvez, menos rasteiro ou trivial. Trata-se, portanto, de um adorno ou ornamento
linguístico – e, como tal, perfeitamente dispensável.
O quadro pintado pela LC, por sua vez, é inteiramente outro. De um ponto de
vista cognitivista, a metáfora é, antes, um processo mental. Ela reside, portanto,
primariamente, no pensamento, e apenas secundariamente na linguagem. Além disso,
ela muitas vezes não é opcional, mas um recurso imprescindível para estruturar e
organizar o próprio sistema conceptual humano. Nesse sentido, Lakoff (1993) faz
questão de distinguir metáfora e expressões metafóricas: enquanto aquela é a relação
analógica inscrita na mente, estas são as manifestações ou concretizações linguísticas
particulares. Assim, entende-se que sentenças como (4) evidenciam a existência
de uma relação metafórica mental que pode ser formulada linguisticamente como
ESTADOS SÃO LUGARES (no caso, como se viu, o “estado” é a depressão, e a
conceptualização de “lugar” é denunciada pela presença de verbos locativos). Essa
metáfora subjacente pode então motivar uma série de expressões metafóricas:
(5) Maria entrou em / está em / saiu da depressão.
(6) Ela esstá num estado de nervos que só vendo.
(7) Ele continua em pânico por causa do concurso.
(8) Carlinhos permanece em coma.
O quadro a seguir sintetiza as diferenças entre as perspectivas tradicional e
cognitivista da metáfora:
(9)
VISÃO TRADICIONAL
São a “marca do gênio”.
Específicas de textos expressivos
especiais, sobretudo literários.
Fenômeno da linguagem.
Adornos, ornamentos
linguísticos.
108
VISÃO COGNITIVISTA
São produzidas por todos os
indivíduos.
Fortemente presente também na
linguagem ordinária.
Fenômeno primariamente do
pensamento.
Processos centrais da cognição
humana.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista
Em suma, apresentamos, nesta seção, os fundamentos de uma nova visão da
metáfora, que vem contrariar, em muitos pontos, a perspectiva tradicional. Na
próxima seção, veremos como a LC formaliza teoricamente esse processo mental.
POR UMA TEORIA DA METÁFORA
Dissemos anteriormente que o livro seminal da TMC é a obra Metaphors we live
by (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Como se vê, o próprio título do livro ressalta
exatamente um dos aspectos da TMC para o qual chamamos a atenção na seção
anterior: o fato de que a metáfora está presente na linguagem ordinária. Com efeito,
a literatura especializada inventaria diversas metáforas que estruturam nosso sistema
conceptual e materializam-se em uma série de expressões metafóricas concretas.
Algumas dessas metáforas podem ser vistas nos exemplos que seguem.
(10) DISCUSSÃO É GUERRA
a. Seus argumentos são indefensáveis.
b. Eu destruí o argumento dele.
c. Ela sempre perde a discussão.
d. Ele atacou os pontos fracos da minha argumentação.
(11) TEORIAS SÃO CONSTRUÇÕES
a. Lakoff e Johnson (1980) apresentam os fundamentos da TMC.
b. Atenção, pais preocupados com o problema: Albert Einstein só aprendeu a falar
aos 3 anos de idade. Aos 26, começava a ergguer a Teoria da Relatividade.3
c. Copérnico demoliu a teoria geocêntrica do sistema solar e tornou-se logo óbvio
que “a mãe Terra” não é nada mais do que um grãozinho da poeira cósmica
girando na imensidão do espaço e do tempo.4
O formalismo da TMC baseia-se na noção de domínios conceituais. Essencialmente,
metáforas são relações analógicas estabelecidas entre dois domínios distintos. Tais
relações são chamadas de mapeamentos (uma tradução mais literal do inglês mappings)
ou projeções conceptuais. Quanto aos dois domínios distintos, em (6) trata-se de
discussão e guerra; em (7), teorias científicas e construções arquitetônicas.
3 Fonte: Revista Época, disponível em:<http://epoca.globo.com/edic/19980727/perisant.htm>. Acesso em: mar. 2010.
4 Fonte: Cérebro e mente, disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n17/opinion/millenium_p.html>.
Acesso em: mar. 2010.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso
Para que haja uma metáfora, é necessário que um dos domínios seja, de alguma
forma, mais básico ou familiar que o outro. O mecanismo se baseia, precisamente, neste
princípio: compreendemos (organizamos, estruturamos, concebemos) ideias menos
familiares a partir das noções que nos são mais básicas.
Esse domínio mais básico, que serve de ponto de partida para a metáfora,
tem sido chamado de domínio-fonte (source domain), ao passo que o outro,
conceptualizado por meio do primeiro, é conhecido como domínio-alvo (target
domain). Assim, guerra e construção são domínios-fonte, ao passo que discussão e
teorias são domínios-alvo. Em outras palavras, as noções de discussão e de teoria
uções
científica são conceptualizadas a partir das ideias de guerra e de constru
arquitetônicas, respectivamente.
Uma das metáforas mais recorrentes é A VIDA É UMA TRAVESSIA. Para Lakoff
(1993), esta é uma formulação mais geral, que abrange duas metáforas particulares –
O AMOR É UMA TRAVESSIA e A CARREIRA É UMA TRAVESSIA. De fato, essa
formulação mais geral é necessária, já que a metáfora não se aplica apenas aos
domínios amoroso e profissional, mas a uma série de domínios particulares:
(12) A VIDA É UMA TRAVESSIA
a. Passamos novamente a incomodar e fomos chegando sorrateiramente. Viramos
puros garanhões na reta final (Pô, quem poderia imaginar que disputaríamos o
título?). O fato é que chegamos lá... estamos a um passo do Olimpo...5
b. Mesmo enfrentando dificuldades, é preciso deixar os problemas para trás e
seguir em frente.
Sem dúvida, metáforas convencionalizadas na linguagem ordinária podem ser
exploradas literariamente. É o que faz o poeta barroco Gregório de Matos no soneto
abaixo, construído a partir da metáfora em (13).
(13)
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
5 Fonte: blogue Flamengo Eterno, disponível em: <http://flaeterno.wordpress.com/author/flaboteco/>. Acesso em: mar. 2010.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista
O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.
Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c’os demais, que só, sisudo.
Note-se como, neste poema, a vida é conceptualizada, metaforicamente, como
um caminho, uma travessia. A seleção lexical denuncia a metáfora subjacente:
“ando”, “passadas”, “vias desusadas”, “seguir”, “imundo caminho”, “pisadas”,
“andam”, “anda”, “atalho”.
É interessante observar como, em pelo menos um momento, aparece uma
metáfora conflitante, na qual a vida deixa de ser entendida como uma caminhada
vertical e passa a ser concebida como movimento vertical: “e vou-me ao fundo”. Aqui,
está presente outra metáfora recorrentemente apontada na literatura especializada
(por exemplo: LAKOFF; JOHNSON, 1980): BOM É PARA CIMA, RUIM É PARA BAIXO,
concretizada em expressões metafóricas como as seguintes:
(14)
a. Estou meio para baixo hoje.
b. Ele caiu em desgraça.
c. Você precisa dar uma levantada nesse humor.
Em resumo: sob a ótica da TMC, a metáfora é entendida como um processo
mental específico, a saber, a projeção entre domínios díspares. Tipicamente, as
metáforas são apresentadas sob a forma X É Y, em que X é o domínio-alvo e Y, o
domínio-fonte – este, sempre mais básico ou familiar que aquele. Uma das maiores
evidências da realidade psicológica dessas projeções mentais é a forte presença, na
linguagem ordinária, de expressões metafóricas relacionadas entre si – como todos
os exemplos em (10), em (11) e em (12) ou em (13).
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso
UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE OUTRAS “FIGURAS DE LINGUAGEM”
A metáfora é, possivelmente, a mais celebrada das figuras de linguagem. Nossa
tradição escolar, porém, nos brinda com um sem-número de outras figuras. Dentre
elas, algumas estão intimamente ligadas à metáfora. De um lado, estão a
comparação, a personificação e a catacrese. De outro, a metonímia.
No primeiro grupo, estão recursos de estilo que não se diferenciam, na prática, da
metáfora. No caso da comparação, a própria estilística tradicional reconhece que a
única distinção está associada à presença ou ausência de um conector comparativo
explícito. A personificação, por sua vez, pode ser entendida como uma metáfora
cujo domínio-fonte é sempre um ser humano. A catacrese, por sua vez, consiste em
metáforas convencionalizadas, às vezes totalmente esmaecidas da consciência do
falante, e empregadas para a designação de um objeto (asa da xícara, pé da mesa) ou
ação (embarcar no trem).
O caso da metonímia é um pouco diferente. Aqui, trata-se, de fato, de um
processo mental diverso – e que também vem recebendo atenção dentro do quadro
teórico da LC, ainda que não tanto quanto a metáfora. Na literatura cognitivista,
tratam da metonímia Lakoff (1987), Kövecses (2002), Panther e Thornburg (2003) e
Croft (2003).
Fundamentalmente, a metonímia se aproxima da metáfora por também envolver
uma projeção conceptual. A diferença, porém, é que nesta a projeção se dá, como já
vimos, entre domínios diferentes (interdominial), ao passo que naquela a projeção
ocorre dentro de um mesmo domínio (intradominial). Isso fica claro nos exemplos a
seguir:
(15) Ele já comeu três pratos!
(16) Onde você está estacionado?
A sentença (15) envolve o domínio da refeição, que inclui comida, bebida, pratos,
talheres etc. Assim, quando se substitui o referente comida pelo referente prato,
está sendo feita uma substituição no interior de um mesmo domínio conceptual.
Da mesma forma, (16) envolve o domínio do automóvel, que inclui o motorista, as
peças, o ano de fabricação etc. Desse modo, o deslocamento conceptual, mais uma
vez, ocorre dentro do mesmo domínio – do carro para o motorista.
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Um novo olhar sobre a metáfora: a abordagem cognitivista
A oposição entre projeção inter e intradominial não é, contudo, a única diferença
entre a metáfora e a metonímia. Outros aspectos também distinguem os dois processos.
Por exemplo, a metáfora é um mecanismo que permite a conceitualização/compreensão
de conceitos menos familiares ou mais abstratos, ao passo que a metonímia está
envolvida no direcionamento da atenção.
Aqui, infelizmente, não será possível apresentar com mais detalhes uma teoria da
metonímia. Para o leitor interessado, recomendamos a bibliografia citada anteriormente.
Para uma discussão específica sobre as diferenças entre metonímia e metáfora,
sugerimos Croft (2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, tivemos a preocupação de apresentar ao leitor pouco familiarizado
com a linguística cognitiva uma nova maneira de compreender a “figura de linguagem”
conhecida como metáfora. Fundamentalmente, essa mudança de perspectiva implica
considerar a linguagem como instrumento imprescindível na estruturação do sistema
conceptual humano, o que se reflete no vastíssimo número de expressões metafóricas
encontradas na linguagem ordinária.
De agora em diante, convidamos os leitores a explorarem a bibliografia indicada
ao longo deste artigo, de maneira a enveredar pelos caminhos cognitivistas da metáfora
e, não menos importante, da metonímia.
Referências
• ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
• BLOGUE FLAMENGO ETERNO. Chegou o dia. Rio de Janeiro: 2009.
Disponível em: <http://flaeterno.wordpress.com/author/flaboteco/>. Acesso
em: mar. 2010. Não paginado.
• CROFT, W. The role domain in the interpretation of metaphors and
metonymies. Cognitive linguistics 4 (4). 2003, p. 335-370.
• FERRARI, L. (Org.). Espaços mentais e construções gramaticais: do uso
linguístico à tecnologia. Rio de Janeiro: Imprinta, 2009.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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Diogo Pinheiro & Karen Sampaio Braga Alonso
• JOHNSON, M. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination
and reason. Chicago: University Press, 1987.
• KÖVECSES, Z. Metaphor: a practical introduction. Oxford: University Press,
2002.
• LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of
Chicago Press, 1980.
• ______; TURNER, M. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor.
Chicago: University of Chicago Press, 1989.
• ______; JOHNSON, G. Philosophy in the flesh. New York: Basic Groups, 1999.
• ______; NUÑEZ, R. Where mathematics comes from: how the embodied mind
brings mathematics into being. New York: Basic Books, 2000.
• ______. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the
mind. Chicago: University Press, 1987.
• LEITÃO DE ALMEIDA, M. L.; FERREIRA, R. G.; PINHEIRO, D.; LEMOS
DE SOUZA, J.; GONÇALVES, C. A. V. Linguística cognitiva: morfologia e
semântica do português. Rio de Janeiro: Publit, 2009.
• PANTHER, K.U.; THORNBURG, L. L. Introduction: on the nature of
conceptual metonymy. In: ______. Metonymy and pragmatic inferencing.
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2003, p. 1-20.
• RAMACHANDRAN, Vilayanur S. O futuro da pesquisa sobre o cérebro.
Revista Cérebro e Mente.
Campinas:
2003.
Disponível
em:
<http://www.cerebromente.org.br/n17/opinion/millenium_p.html>. Acesso
em: mar. 2010. Não paginado.
• REDDY, M. The conduit metaphor – a case of frame conflict in outr language
about language. In: ORTONY, A. Metaphor and thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 1993, p. 164-201.
• Revista Época. A conversa está gravada nos genes. 1997. Disponível em:
<http://epoca.globo.com/edic/19980727/perisant.htm>. Acesso em: mar.
2010. Não paginado.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2010 • Vol. 3
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