Sem título - Faculdade Santa Marcelina

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Sem título - Faculdade Santa Marcelina
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 11 - Nº 33 / 1º Semestre 2011
O que é a questão sino-tibena?
Cynthia M. Marcucci
A questão sino-tibetana é complexa e
envolve várias áreas do conhecimento. As
origens do problema podem ser buscadas no
século XIII, quando, segundo a história oficial
chinesa, o Tibete se tornou parte inalienável
da China por conta da invasão mongol.
Segundo os partidários da pertença do Tibete
à China, a Dinastia Yuan (1280-1368) foi um
poder político nacional governado pela
minoria chinesa e que agregava diversas
nacionalidades: mongol, han, e tibetana. Para
os seguidores dessa vertente, o Império
Mongol foi um Estado Chinês. Já a versão
tibetana deixa claro que a dinastia Yuan não é
chinesa, mas um nome chinês escolhido por
Kublai Khan, imperador mongol.
Mais tarde, nas primeiras décadas do
século XVIII, o Império Manchu subjugou o
Tibete durante o período do VI e VII Dalai
Lamas e estabeleceu na China a dinastia
Ching (1644-1911), atrelando de modo
perverso a história desses países. No século
XIX, a relação entre a dinastia Ching e o
Tibete tornou-se insignificante apesar da
presença de comissionados manchus em
Lhasa.
Por
outro
lado,
a
figura
predominantemente religiosa dos Dalai
Lamas garantia uma relação sem tensões. No
entanto, esse cenário mudou nos primeiros
onze anos do século XX por três motivos: o
interesse britânico pelo Tibete, que resultou
na invasão de 1904; o esforço dos chineses
para restabelecer o controle sobre a região,
que resultou na ocupação chinesa de 1910; e o
fim da dinastia Manchu em 1911.
Dois anos após a invasão do Tibete, a
Grã Bretanha firma um tratado com o Império
Manchu, no qual o Tibete é praticamente
negociado e reconhecido como parte da China
(GOLDSTEIN, 1989). Esse documento abriu
a via para as aspirações chinesas pós-período
Manchu, pois com ele podia contar com um
dispositivo de valor internacional. A presença
dos países ocidentais na Ásia foi também um
motivo para que a China, o vizinho gigante,
empreendesse uma luta contra as forças
imperialistas e desenvolvesse o interesse por
cumprir esse papel dominante por si mesmo.
Para a Dinastia Ching, o Tibete era apenas
uma província atrasada, feudal e teocrática
que se rebelava influenciada pelos países
imperialistas europeus, por isso, em 1910, o
Império Manchu, em represália à invasão
britânica, realiza uma incursão ao Tibete.
Com o fim da dinastia Manchu, tanto
o governo republicano como mais tarde o
Partido Comunista Chinês utilizarão esses
episódios prévios para validar a sua versão
dos movimentos históricos e políticos na
região. O papel do XIII Dalai Lama foi
crucial, mas acompanhar a sua entrada no
cenário político requer mais tempo e espaço.
Neste artigo nos limitaremos aos fatos que
envolveram o Partido Comunista Chinês
(PCC) e o XIV Dalai Lama, que ainda
repercutem, sem solução. A presença
constante do líder tibetano nos meios de
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comunicação, seu apelo reiterado à causa do
Tibete e o tímido apoio dos países ocidentais,
não são suficientes para fazer frente à
potência chinesa. A Grã-Bretanha, junto com
a Rússia apoiavam a China quanto às suas
pretensões ao Tibete. Apesar da preocupação
britânica com os comunistas chineses e a
visita do repórter americano Lowell Thomas
ao Tibete acenando para uma ajuda caso os
comunistas ganhassem a guerra civil e
invadissem aquele território, nada ocorreu
(CHHAYA, 2007).
Por outro lado, disputas e hostilidades
entre Reting Rinpoche e Taktra Rinpoche, os
principais candidatos para assumir o período
de regência, lançou o Tibete em confrontos
entre monges budistas polarizados entre as
posturas pró e anti-chineses. Na segunda
metade dos anos 1940, a busca de poder, que
envolveu traições,
envenenamentos e
assassinatos (GOLDSTEIN, 1989), colocou o
Tibete praticamente nas mãos dos chineses.
Além disso, a postura conservadora dos
tibetanos, confiantes na religião e cegos ao
jogo astucioso que era realizado no nível
internacional, fez com que a intervenção
chinesa fosse uma possibilidade remota.
Houve também aqueles que acreditaram que a
presença maciça da China levaria o Tibete a
uma verdadeira transformação rumo à
modernidade.
O XIV Dalai Lama, nasceu em 6 de
julho de 1935, na aldeia de Taktser, região de
Amdo, nordeste do Tibete e fronteira com a
China; era filho de uma família de fazendeiros
pobres e recebeu o nome de Lhamo Thondup.
Após os trâmites de reconhecimento oficial,
partiu para Lhasa com toda a sua família para
ser instruído e iniciar sua vida monástica aos
2 anos de idade. Nos 10 anos seguintes, foilhe conferida uma educação que abrangia
filosofia budista, lógica, medicina, sânscrito,
astrologia, entre outros estudos, bem como
uma vigorosa disciplina monástica e nas
intensas práticas espirituais. Além da erudição
nos assuntos concernentes à sua cultura,
também recebeu aulas de relações exteriores,
pois as portas à cultura ocidental, incluídos
objetos como automóveis, projetores e filmes,
já haviam sido abertas por seu antecessor,
quando aceitou presentes e entrou em contato
com vários ocidentais, interando-se da
política praticada pelas potências européias
(CHHAYA, 2007).
Em 1940, Lhamo Thondup foi
entronizado no palácio Potala, como líder
espiritual dos tibetanos, recebendo o nome de
Jamphel Ngawang Lobsang Yeshe Tenzin
Gyatso. Durante essa década, a posição da
China em relação ao Tibete ficava cada vez
mais agressiva em nome da libertação do
povo tibetano. Além das mudanças políticas
ocorridas na China em 1911 e 1949 (o fim do
Império Manchu e a declaração da República
Popular da China), a Segunda Guerra Mundial
coloca nesse jogo outros Estados com
interesses imperialistas na região: Rússia e
Japão. Com o fim da guerra, entraram em
cena os EUA, um importante protagonista da
cena internacional que entendia ser, a China,
seu único aliado na Ásia Oriental e, por isso,
apoiou suas pretensões sobre territórios,
tornando mais difícil e carregada as relações
entre o acuado Tibete e as potências
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ocidentais ávidas pelo controle da Ásia
(GOLDSTEIN, 1989).
Em 7 de outubro de 1950, a República
Popular da China invade o Tibete e doze dias
depois, o incipiente exército tibetano capitula
frente ao Exército Popular de Libertação
(EPL) que passou a exercer o controle militar
sobre o país. Pouco tempo depois da invasão
chinesa, o governo tibetano recebeu
indicações do oráculo oficial tibetano – o
Netchung - que Tenzin Gyatso, então com 15
anos de idade, deveria, antecipadamente,
assumir o poder, o que ocorreu em 17 de
novembro de 1950. Sem apoio das Nações
Unidas e com o ínfimo exército derrotado, a
situação do líder político e religioso do Tibete
tornava-se cada vez mais delicada. Ao abrir
negociações com a China, foi assinado em 23
de maio de 1951 o Acordo sobre Medidas
para a Libertação Pacífica do Tibete,
conhecido como Acordo de Dezessete Pontos
(LAIRD, 2008).
Os pretextos da China para o
movimento que culminou com a invasão do
Tibete e o acirramento dos conflitos e
represálias que terminaram por colocar S.S.
XIV Dalai Lama em exílio na Índia evocam
questões históricas, políticas e ideológicas
que estão implícitas nesse Acordo: uma
interpretação da história do Tibete como o
desenrolar de ocorrências dentro do território
chinês, a descrição dos movimentos e
empenhos das forças imperialistas na Ásia, e
o interesse recíproco das partes envolvidas.
Em outras palavras, a partir da aceitação desse
Acordo, a perspectiva chinesa era admitida
publicamente pelo governo tibetano, cujos
representantes enviados para a discussão
desses pontos foram envolvidos na jogo
político do PCC. Nessa ocasião, o Dalai
Lama, por motivos de segurança, já havia
saído de Lhasa para o Mosteiro de Yantung
que fica próximo à fronteira Indiana.
Em julho do mesmo ano, a delegação
chinesa encarregada de confirmar junto ao
Dalai Lama os termos do Acordo e fazê-lo
retornar a Lhasa, chegou a Yatung. Nesse
momento, a postura do líder tibetano já estava
decidida: diante das dificuldades em
conseguir apoio e ações efetivas por parte da
comunidade internacional, desamparado e
insulado nas suas questões individuais, o
Acordo de Dezessete Pontos não seria
refutado. Retornou a Lhasa e viveu em
reclusão no Potala, tendo como paisagem a
presença das tropas chinesas e vendo serem
impostas várias exigências tais como
alimentos para as tropas de ocupação, por
exemplo, que com o tempo deixaram de ser
compradas e passaram a ser simplesmente
confiscadas (CHHAYA, 2007). Alterações de
documentos, murais, interferências na
manutenção ou demissão de autoridades do
governo, relatos tendenciosos dos chineses,
fazem parte da realidade que um jovem Dalai
Lama teve que enfrentar.
A presença chinesa desencadeou uma
crise nacional e a situação de Sua Santidade
foi se tornando insustentável. Além disso, a
reação da população tibetana não foi
majoritariamente
condescendente
nem
colaboradora, houve resistência desde o
início, mas a postura do XIV Dalai Lama foi
também de alguém que apesar das
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adversidades pensava no bem-estar de seu
povo: apostou no diálogo e na clara visão de
que suas forças de luta estavam aquém do
inimigo. A prova dessa inferioridade militar e
da assimetria dessa relação foi que, entre 1956
e 1960, ocorreram revoltas que resultaram em
mortes, desaparecimento de tribos nômades,
miséria, prisões e sofrimento e nenhuma
mudança na situação (LAIRD, 2008).
Os problemas foram acrescendo até
que, em 10 de março de 1959, ocorreu um
novo levante. Os tibetanos reuniram-se no
Norbulingka (Palácio de Verão) para impedir
que o Dalai Lama fosse entregue aos chineses
por colaboradores. Esse ato teve a repercussão
de uma declaração de independência do
Tibete. Sete dias depois, com a crise se
agravando, os chineses furiosos com a
presença da CIA no Tibete e o repúdio
popular ao Acordo dos Dezessete Pontos, o
XIV Dalai Lama deixa o Norbulingka
disfarçado de soldado do exército e parte em
direção ao sul (território libertado) onde
declara nulo o Acordo. O levante de março e
a fuga do Dalai Lama tiveram como efeito a
repressão do EPL: Potala e Norbulingka
bombardeados, 86.000 tibetanos mortos, por
conta de abater uma revolta supostamente
instigada
pelas
forças
imperialistas
estrangeiras e comandadas pela elite feudal
tibetana.
Em Dharamsala, Índia, o XIV Dalai
Lama organizou um governo tibetano no
exílio de tendência democrática, através do
qual exerce sua influência política, promove
diálogos inter-religiosos, concede iniciações
religiosas como líder espiritual de todas as
escolas budistas e trabalha na preservação do
budismo e de outros aspectos da cultura
tibetana. Hoje, está em suas mãos agregar
culturalmente os tibetanos fora do Tibete e
lutar por aqueles que ficaram na terra natal
através da organização das colônias, institutos
de preservação da arte, história e medicina
tibetana. Desde então, ele conscientiza as
pessoas sobre a luta de seu país com a China
enquanto defende soluções não violentas para
as disputas religiosas e políticas. Para tanto,
desde 1967, percorre o mundo para a
divulgação de suas ideias e encontros notáveis
com
autoridades
políticas,
religiosas,
científicas e vários artistas.
Várias vezes, no decorrer da ocupação
chinesa, os tibetanos se revoltaram,
promoveram ataques às guarnições chinesas e
fomentaram rebeliões. A cada uma dessas
tentativas desesperadas de colocar fim a essa
situação, a postura do governo chinês
recrudescia: restrições a tibetanos, maciça
transferência de chineses da etnia han para
colonizar a região, programas de reeducação
(principalmente aos monges), proibição da
utilização do idioma tibetano e a obstinação
em dificultar o diálogo com o Dalai Lama,
sob o pretexto de que seria o agente das
insurreições tibetanas e principal artífice da
campanha de independência do Tibete.
A postura resistente das autoridades
chinesas dá sinais de que cada vez mais
distante se encontra uma solução favorável ao
Tibete: sem chances de via pacífica, sem
chances de via violenta. Como resistir ao
porte da agressividade chinesa? Sem
resultados concretos para qualquer atitude de
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entendimento, percebemos que os esforços
chineses são situações que a China apresenta
para seus pares nas relações internacionais,
sem a intenção autêntica de superar o
impasse. Seu interesse na região e sua
situação na comunidade internacional
atualmente deixam-na em uma posição
confortável. Não é sua prioridade negociar,
resta somente encontrar motivos suficientes
para culpar a outra parte pelo fracasso do
diálogo.
O que podemos perceber até aqui é
que a questão do Tibete ultrapassa as questões
lineares entre nações e vai além das questões
étnicas e de preservação de tradições. Temos
uma confluência de fatores, uma encruzilhada
de tempos que torna a questão sino-tibetana
exemplar para uma análise transdisciplinar.
Internamente, podemos citar seu isolamento,
lutas internas e conservadorismo religioso,
que foram potencializados no contexto do
colonialismo europeu, da segunda guerra
mundial e do interesse da China comunista.
Acrescente-se a isso as relações históricas
com mongóis e manchus e a apropriação
dessa história por parte da China. Todos esses
fatores, sem exceção e sem privilegiar um
ponto de vista em detrimento de outro, são
vias de mão dupla, tanto concorrem para o
resultado nefasto como trazem também um
lado criativo e transformador, inusitado e
surpreendente. São eixos de pesquisa e
estudos que dificilmente poderiam ser
discutidos em um único trabalho, mas
provavelmente promoveriam várias linhas de
interesses.
O Dalai Lama quer voltar para o
Tibete, mas não se submete a ser uma ficha
no jogo que a China prepara para ser
reconhecida internacionalmente, como foi o
caso das Olimpíadas de Pequim 2008. Por
princípio, todo o budista é a favor da nãoviolência, desse modo a posição de S.S. Dalai
Lama é clara, notória e reconhecida (Prêmio
Nobel da Paz em 1989), não ignora o atraso
do Tibete no que tange à educação e à
tecnologia e, em nome da modernização,
esclarece que não deseja a independência do
Tibete em relação à República Popular da
China, mas uma província com autonomia
política, um auto-governo com liberdade para
resguardar a cultura, espiritualidade e o
idioma tibetanos.
Estudiosos da política chinesa e
Tibete, tais como o Dr. Orville Schell (apud
CHHAYA, 2007), afirmam que, tendo
chegado aonde chegou e da maneira como
chegou, dificilmente a China mudará seu
modo de lidar com essa questão: aguardar a
morte do XIV Dalai Lama, nomear ela mesma
seu sucessor e sufocar, finalmente, qualquer
tentativa de rebelião. Convém lembrar,
entretanto, que o inesperado num mundo
determinado é a especialidade do budismo. A
determinação histórica ou social é provedora
de subterfúgios e desculpas. As leis históricas,
as condições sociais ou econômicas apontam
para um final esperado, mas essa
determinação não é certa, sempre haverá a
possibilidade do imprevisto.
Conhecer a história do Tibete e entrar
em contato com sua cultura é uma forma de
compreender que temos ali algo mais que um
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país distante, exótico e cheio de mistérios
guardados em mosteiros encravados em
montanhas geladas. Atentar para as
peculiaridades do budismo tibetano e
compreender seu sistema de crenças, é
reconhecer que os tibetanos são mais que
peritos em meditação, mantras e cerimônias
extravagantes que precisam de nações
modernas para organizar suas vidas, fazer
suas escolhas, desenhar o seu futuro a partir
de um modelo que pouco, ou nada, se adéqua
à sua cultura tributária, em todos os sentidos,
da religião.
Cynthia M. Marcucci é Doutora em História
pela PUC-SP e professora do curso de
Relações Internacionais da FASM.
Referências Bibliográficas
CHHAYA, Mayank. Dalai Lama: o homem, o
monge, o místico. Tradução Marly Winckler.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
FRANKE, Herbert; TRAUZETTEL, Rolf. El
Imperio Chino. 6.ed. Espanha: Siglo
Veintiuno, 1985 (História Universal Siglo
XXI v.19).
GOLDSTEIN, Melvyn C. A History of
Modern Tibet. V. I. 1913-1951: the demise of
the Lamaist state. Berkeley/Los Angeles:
University of California Press, 1989.
______. A History of Modern Tibet. V. 2.
The Calm before the Storm: 1951-1955.
Berkeley/Los
Angeles:
University
of
California Press, 2007.
LAIRD, Thomas. História do Tibete:
conversas com o Dalai Lama. Tradução
Miguel Mata. Lisboa: Edições 70, 2008.
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