18 Pensando Direito relatorio - Pensando o Direito

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18 Pensando Direito relatorio - Pensando o Direito
Série Pensando o Direito
Nº 18/2009 – versão integral
Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica
Convocação 01/2008
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
DIREITO GV
Coordenação Acadêmica
Marta Rodriguez de Assis Machado
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL)
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, sala 434
CEP: 70064-900 – Brasília – DF
www.mj.gov.br/sal
e-mail: [email protected]
CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL
A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) tem por
objetivo institucional a preservação da ordem jurídica, dos direitos políticos e das
garantias constitucionais. Anualmente são produzidos mais de 500 pareceres sobre os
mais diversos temas jurídicos, que instruem a elaboração de novos textos normativos, a
posição do governo no Congresso, bem como a sanção ou veto presidencial.
Em função da abrangência e complexidade dos temas analisados, a SAL
formalizou, em maio de 2007, um acordo de colaboração técnico-internacional
(BRA/07/004) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD),
que resultou na estruturação do Projeto Pensando o Direito.
Em princípio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificação
técnico-jurídica do trabalho desenvolvido pela SAL na análise e elaboração de
propostas legislativas e a aproximação e o fortalecimento do diálogo da Secretaria com
a academia, mediante o estabelecimento de canais perenes de comunicação e
colaboração mútua com inúmeras instituições de ensino públicas e privadas para a
realização de pesquisas em diversas áreas temáticas.
Todavia, o que inicialmente representou um esforço institucional para qualificar
o trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificação da visão
sobre o papel da academia no processo democrático brasileiro.
Tradicionalmente, a pesquisa jurídica no Brasil dedica-se ao estudo do direito
positivo, declinando da análise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros
publicados na área do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado,
desconsiderando o seu processo de formação. Essa cultura demonstra uma falta de
reconhecimento do Parlamento como instância legítima para o debate jurídico e
transfere para o momento no qual a norma é analisada pelo Judiciário todo o debate
público sobre a formação legislativa.
Desse modo, além de promover a execução de pesquisas nos mais variados
temas, o principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito é incentivar a academia a
olhar para o processo legislativo, considerá-lo um objeto de estudo importante, de modo
a produzir conhecimento que possa ser usado para influenciar as decisões do Congresso,
democratizando por conseqüência o debate feito no parlamento brasileiro.
Este caderno integra o conjunto de publicações da Série Projeto Pensando o
Direito e apresenta a versão na íntegra da pesquisa denominada Responsabilização por
ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas – uma contribuição para o debate
público brasileiro, conduzida pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas (DIREITO GV).
Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade
brasileira os resultados das pesquisas produzidas pelas instituições parceiras do Projeto
Pensando o Direito.
Pedro Vieira Abramovay
Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
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CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é um tema que tem adquirido
grande relevância nos planos nacional e internacional, tanto do ponto de vista das
políticas públicas para prevenção e repressão de ilícitos praticados no âmbito de pessoas
jurídicas, quanto do ponto de vista do debate jurídico-dogmático. O pano de fundo dessa
discussão se caracteriza, de um lado, pelo aumento das demandas por regulação e
tratamento de problemas ligados à criminalidade econômica, à corrupção, à lavagem de
dinheiro, à lesão ao meio ambiente, etc. e, de outro, pelo papel central das organizações
empresariais nessas práticas, agravado pelo fato de que são enfrentados hoje obstáculos
significativos à atuação do sistema penal, talhado para imputar responsabilidade
individual, na persecução e punição de tais ilícitos. É nesse contexto que surgem
propostas de ampliar e tornar mais efetivas a responsabilidade penal de pessoas
jurídicas.
No Brasil, a previsão normativa desse instituto foi introduzida pela Constituição
Federal de 1988 e regulamentada dez anos depois pela Lei n. 9.605/98. É atualmente
aplicável somente a casos envolvendo crimes contra o meio ambiente. Entretanto,
tramitam hoje no Congresso Nacional muitas propostas de reforma legislativa que têm
como propósito ampliar a aplicação desse instituto, a fim de incidir em outras condutas
praticadas no âmbito de empresas.
Não obstante a adoção do instituto há mais de dez anos em um campo
importante de aplicação do Direito penal e a iminência de sua ampliação,
diagnosticamos que a aplicação do instituto é incipiente e a jurisprudência sobre o tema
é pouco sólida. Além disso, falta de reflexão no debate brasileiro não somente sobre a
própria experiência pregressa na aplicação do instituto, como também sobre questões
relevantes que dizem respeito a formas alternativas de configuração do sistema de
responsabilidade coletiva, de modo a torná-lo mais eficiente.
A partir das distintas frentes de pesquisa empreendidas, buscou-se, em primeiro
lugar, traçar um diagnóstico da aplicação e do debate teórico e legislativo acerca do
instituto no Brasil, para, diante disso, suscitar questões que nos pareceram
negligenciadas. Chamamos a atenção para as distintas possibilidades de conformação de
um modelo de responsabilidade penal coletiva, que podem apresentar diferenças
significativas em função dos critérios de imputação adotados e do tipo de sanção.
Buscamos também identificar algumas questões que devem ser enfrentadas na
construção de um modelo de responsabilização penal de pessoas jurídicas, pois têm
impacto direto na sua boa institucionalização e aplicação– como, por exemplo, as
possibilidades de redefinição das categorias dogmáticas da parte geral; a adequação do
regime processual penal; a necessidade de soluções regulatórias para os casos de
transformações e uniões de pessoas jurídicas, tão comuns no cenário empresarial.
Por fim, indicamos que um estudo profícuo sobre a responsabilidade da pessoa
jurídica deve necessariamente partir do pressuposto de que a responsabilidade penal é
uma entre tantas outras possibilidades de desenho institucional de responsabilização e,
portanto, apenas é possível considerá-la como um mecanismo satisfatório se as suas
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vantagens e desvantagens em relação a outras esferas do Direito forem cuidadosamente
ponderadas. Dessa forma, embora este não tenha sido o escopo do estudo, estruturado a
partir da responsabilidade penal da pessoa jurídica, trouxemos alguns elementos que
permitem iniciar uma reflexão sobre essa questão.
A nosso ver, o estreitamento do debate brasileiro sobre o tema vem atrapalhando
a imaginação institucional. A principal contribuição deste estudo é apontar as lacunas de
discussão e regulação e chamar a atenção para a urgência de se incluí-las na agenda de
pesquisas e discussões futuras. Identificar e apontar os obstáculos epistemológicos
presentes na discussão pública sobre o tema nos pareceu de extrema relevância tanto
para o aprofundamento das reflexões no campo teórico, como para orientar o trabalho
do formulador de políticas públicas.
São Paulo, novembro de 2009.
Marta Rodriguez de Assis Machado
Coordenadora Acadêmica
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PROJETO PENSANDO O DIREITO
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas
DIREITO GV
Responsabilização por ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas – uma
contribuição para o debate público brasileiro
Marta Rodriguez de Assis Machado, Flavia Portella Püschel, Deborah
Kirschbaum, Davi Tangerino, Juliana Bonacorsi de Palma, Yuri Corrêa da Luz,
Carolina Cutrupi Ferreira, Beatriz Camargo, Pedro Schaffa e
Rogério Lauria Marçal Tucci
Colaboradores:
Marta Cristina Cury Saad Gimenes, Mariana T. Tosi, Mariana de Gouvêa Guarda
Colaboradores internacionais:
Giovanni Fiandaca, Lucia Parlato, Paola Maggio, Alessandro Tesauro, Dario
Porrovecchio, Helena Soleto Muñoz, Pilar Otero, Manuel Artidoro Abanto Vásquez,
Pablo Galain Palermo, Mário Ferreira Monte, Flávia Noversa Loureiro, Pedro Miguel
Freitas.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo é a síntese de um extenso estudo sobre a Responsabilidade
Penal das Pessoas Jurídicas, desenvolvido no âmbito do projeto Pensando o
Direito. Diante da impossibilidade de reproduzir neste espaço limitado a íntegra
dos resultados dessa pesquisa, nosso objetivo neste texto é apresentar seus pontos
mais significativos, com base em um critério central: a utilidade da exposição tanto
para uma compreensão introdutória do tema, quanto para fornecer subsídios
teóricos e práticos aos formuladores de políticas públicas.
Diante disso, detalhes acerca do debate dogmático, do cenário internacional
em que se formulam suas discussões, entre outros pontos, serão aqui apenas
tangenciados. O núcleo de nossas atenções será composto pelas discussões que
possibilitem um contato mais geral com o objeto de nossa pesquisa, de forma a
introduzir o leitor neste que é um dos temas mais relevantes do debate jurídico da
atualidade.
É importante advertir que, no estágio atual da pesquisa, não é possível avançar
para além da discussão do potencial dos diferentes modelos regulatórios para lidar com
o problema dos ilícitos praticados no âmbito das coletividades, pois a conveniência da
sua aplicação, bem como o desenho do modelo mais adequado depende das
características concretas dos ilícitos que se pretenda regular, não sendo, a nosso ver,
possível posicionar-se em abstrato em favor de um modelo geral. De qualquer modo,
nosso trabalho preocupa-se em levantar os pontos que devem ser considerados em
decisões concretas que envolvam o tema.
O artigo foi estruturado da seguinte forma: na primeira parte, trataremos do
contexto pressuposto nos discursos sobre a introdução e a aplicação da
responsabilidade penal de pessoas jurídicas, isto é, do conjunto de fenômenos que
incitaram a reflexão sobre a formulação deste instituto. Neste ponto, procuramos
expor como o protagonismo crescente das organizações empresariais em práticas
ilícitas vem sendo considerado um obstáculo significativo à atuação do sistema
jurídico na prevenção e punição de tais infrações. Indicaremos como o Direito
Penal, por partir tradicionalmente de uma estrutura de imputação individual, vem
enfrentando sérias dificuldades para atribuir responsabilidades pelas infrações
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cometidas no âmbito de entes coletivos, infrações estas inseridas em um quadro de
alta diferenciação funcional e de complexa divisão social do trabalho, onde a
localização do autor e a individualização das condutas danosas é uma tarefa muito
difícil. Também reconstruiremos o atual estado deste contexto regulatório no
Brasil, apontando que tanto nosso modelo individual de imputação quanto nosso
atual modelo de responsabilidade coletiva parecem sofrer de um déficit de
aplicação, fato este verificável a partir de análises empíricas.
Na segunda parte, abordaremos algumas das questões que nos parecem
fundamentais ao aperfeiçoamento deste instituto e que vêm sendo negligenciadas
pelo debate brasileiro sobre o tema, tanto no âmbito acadêmico, como nas
discussões de política pública acerca da formulação de modelos normativos que
possam dar conta do problema em tela. Indicaremos alguns pontos que merecem
ser mais bem discutidos, se pretendemos criar leis melhores e aplicá-las de forma
mais coerente, proporcionando maior segurança jurídica. Por questões de espaço,
limitar-nos-emos à exposição dos seguintes pontos fundamentais: apresentaremos a
possibilidade de conformação de diferentes modelos de responsabilização, quer
dizer, apresentaremos estratégias distintas de imputação de pessoas jurídicas
fundadas em critérios distintos. Em seguida, levantaremos também uma série de
questões ligadas às diversas sanções que podem decorrer de sua responsabilização
e a algumas das dificuldades específicas referentes à regulação desse instituto:
estratégias para lidar com os fenômenos societários de transformação de pessoas
jurídicas e grupos de empresas, bem como as dificuldades processuais penais
específicas que surgem da colocação da pessoa jurídica no pólo passivo da relação
processual penal.
Por fim, serão ponderadas as vantagens e as desvantagens de um modelo de
responsabilização penal das pessoas jurídicas, frente às alternativas de
responsabilidade administrativa e civil. Isso porque nos parece equivocado
pressupor que a responsabilidade penal seja a mais adequada para tratar das
infrações cometidas no âmbito dos entes coletivos, sem considerar as possibilidades
de regulação da questão por meio de outras esferas do Direito. Tendo isto em vista,
exporemos brevemente os resultados de um estudo empírico qualitativo, cujo objetivo
foi o de investigar a suposta superioridade dissuasória da sanção penal frente às demais
sanções jurídicas e, em seguida, apresentaremos as linhas gerais de um estudo
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comparativo das regras de imputação próprias à esfera civil, à esfera administrativa e à
esfera penal. É evidente que a comparação entre as três esferas do Direito é um tema
extremamente complexo, que envolveria um estudo mais detido do funcionamento das
instituições, bem como uma análise particularizada em função dos objetos regulados.
No presente estudo, nos limitamos a indicar algumas questões gerais, bem como os
temas que mereceriam ser melhor investigados, para embasar um juízo adequado e
consistente acerca da melhor forma de tratar os novos desafios trazidos pelo aumento do
papel das pessoas jurídicas na prática de ilícitos na sociedade do presente. Pois bem.
I. DIAGNÓSTICO E QUESTÕES DE POLÍTICA CRIMINAL
A responsabilidade penal das pessoas jurídicas é um tema que tem adquirido
grande relevância nos planos nacional e internacional, tanto do ponto de vista das
políticas públicas para prevenção e repressão, quanto do ponto de vista do debate
jurídico-dogmático. O pano de fundo dessa discussão se caracteriza, de um lado, pelo
aumento das demandas por regulação e tratamento de problemas ligados à criminalidade
econômica, à corrupção, à lavagem de dinheiro, à lesão ao meio ambiente, etc. e, de
outro, pelo papel central das organizações empresariais nessas práticas, agravado pelo
fato de que são enfrentados hoje obstáculos significativos à atuação do sistema penal na
persecução e punição de tais ilícitos.
Neste contexto, em que a organização humana na forma de entidades
empresariais adquiriu grande importância nas sociedades pós-industriais, a criminologia
e o Direito penal vêm se debruçando, cada vez mais, sobre estes tipos de organizações,
tomadas como “centros suscetíveis de gerar ou favorecer a prática de fatos penalmente
ilícitos” (COSTA, 1992, p. 537-559; COSTA, 1976, p. 42). A propósito dessa relação,
é notável o fato de que boa parte das respostas que vêm sendo articuladas pelos sistemas
jurídicos a fim de regular atividades empresariais ou regular condutas em novas áreas
problemáticas tem o Direito penal como elemento relevante e em muitos casos na linha
de frente. Nas palavras emblemáticas de Zúñiga Rodriguez:
se estima que la criminalidad económica ligada al
mundo financiero y a la gran banca recicla sumas de dinero
superiores al billón de euros por año, esto es, mas que el
producto nacional bruto (PNB) de um tercio de la humanidad.
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Sostener que las personas jurídicas no pueden ser sujetos
directos de imputación penal significa realmente dejar fuera del
alcance de sanciones graves a los sujetos económicos o
políticos importantes de nuestra era (ZUÑIGA RODRIGUEZ,
2004, p. 265).
Se esse não nos parece um argumento suficiente para defender a necessidade de
penalizar a pessoa jurídica, ele chama a atenção para o fato de que simplesmente afastar
tal possibilidade com base nas dificuldades dogmáticas ou processuais de estruturação
do instituto mostra-se uma solução tão arbitrária quanto a anterior. Ou seja, tais cifras, a
dimensão do problema, bem como a importância de tais atores nas sociedades
contemporâneas não definem a questão, mas chamam a atenção para a relevância do
tema. Mais ainda, colocam na pauta das políticas penais a necessidade de se travar um
debate aprofundado e qualificado sobre as estratégias político-legislativas e
possivelmente político-criminais para lidar com a questão.
A questão fundamental daquilo que se entende por política criminal pode ser
definida nos seguintes termos: quais são os objetivos perseguidos com a
responsabilização de pessoas jurídicas, que devem ser distintos da responsabilidade
individual? Cabe em seguida perguntar se a esfera do Direito Penal poderia contribuir
para a regulação das infrações cometidas no âmbito de entes coletivos, tendo como pano
de fundo um leque de possibilidades de regulação. Dito isto, ao se optar pela
responsabilização via Direito Penal, cumpre questionar: como esse sistema deve se
estruturar para atingir seus objetivos e finalidades? (EHRHARDT, 1994, p. 159)
Para subsidiar a reflexão acerca da primeira pergunta, parece-nos importante
apontar as principais críticas direcionadas a sistemas baseados em responsabilidade
individual, isto é, nos quais tal forma de responsabilização coletiva não é admitida. A
partir disto, será possível expor quais são as lacunas que a admissão da responsabilidade
penal das pessoas jurídicas pretende suprir e quais os objetivos que se visa a atingir.
I.1. Insuficiências preventivas da responsabilidade individual: o problema da
individualização de condutas no âmbito da empresa
De forma genérica, agrupa-se a criminalidade envolvendo a empresa em três
grandes espécies: a criminalidade que se desenvolve à margem da empresa, a
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criminalidade que se desenvolve dentro da empresa contra a própria empresa, e,
finalmente, a criminalidade que se projeta a partir da empresa. (SCHÜNEMANN, 1988,
p. 529-531). Essa última modalidade de atuação, que encontra na empresa o centro de
imputação penal, vem ganhando relevância no panorama criminológico atual, graças à
“capacidade da estrutura das empresas para dar cobertura a novas formas de
delinqüência” (GARCIA ARÁN, 1999, p. 325).
De fato, as ações tomadas no âmbito de um ente coletivo são, muitas vezes, de
difícil averiguação para aqueles que não participam dele. Além disso, é fácil imaginar
os problemas da imputação penal individual quando se fala em situações de grupo,
especialmente no âmbito de instituições complexas, altamente diferenciadas e
hierarquicamente organizadas em torno do princípio da divisão do trabalho. Em tal
estrutura organizacional, um resultado lesivo ao bem jurídico geralmente é provocado
pela ação conjunta de muitos sujeitos, de diversas posições hierárquicas e com um grau
diferenciado de informação, sendo muito difícil identificar todos os participantes da
ação e delimitar a contribuição de cada um para o evento.
Tal dificuldade de verificação de condutas individuais encontra explicação
fundamental na própria estrutura tradicional de imputação historicamente consolidada
em nosso Direito Penal. Esta estrutura, que tem como paradigma o caso clássico do
homicídio doloso individual, pressupõe que um único autor disponha fundamentalmente
de três capacidades: capacidade de realização de uma ação, capacidade de compreensão
da ilicitude do ato e capacidade de decisão. De fato, muitas das infrações pertencentes à
criminalidade quotidiana podem ser facilmente processadas nestes termos. O problema
surge, no entanto, quando este modelo tradicional e individual de imputação (em que
estas três capacidades estão concentradas em uma única pessoa) precisa dar conta de
fenômenos complexos, ocorridos no âmbito de organizações hierárquica e
funcionalmente estruturadas, ou seja, em que decisão, ação e conhecimento se
pulverizam .
Em outras palavras, nestes ambientes, estas capacidades não estão,
necessariamente, condensadas em uma única pessoa. De forma esquemática, costuma-se
apontar a distribuição dessas capacidades nos diferentes setores da organização coletiva.
Assim, em uma empresa, é freqüente que a ação seja executada por setores inferiores da
estrutura empresarial, que, normalmente, não dispõem nem de uma alta compreensão da
eventual ilicitude de seus atos, nem da capacidade de decidir se eles serão ou não
levados a cabo e que, muitas vezes, nem sequer se dão conta das conseqüências de sua
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atuação. Os chamados setores intermediários da organização, por sua vez, costumam
dispor de uma capacidade relativa de compreensão da eventual ilicitude dos atos
realizados nas baixas instâncias, mas não detêm nem o poder de decidir se o ato deve ou
não ser realizado, nem a competência para sua execução. Finalmente, os setores
superiores da empresa (diretoria ou management), apesar de disporem da capacidade de
decidir ou não pela execução do ato, não participam diretamente deste e, em alguns
casos, nem sequer conseguem reconhecer a eventual ilicitude de todos os atos
praticados no âmbito da complexa rede de relações por eles liderada (SCHÜNEMANN,
1994, p. 272).
Neste cenário, uma estrutura individual de imputação tem dificuldade de operar
de modo eficaz, na medida em que não é capaz de encontrar os três componentes
fundamentais a responsabilização – ação, decisão e conhecimento – em um único
indivíduo. Dada a relativa obscuridade na divisão de funções, na distribuição de
competências e nos fluxos de informação que determinam os comandos a serem
executados torna-se extremamente complicado determinar quais são os atores
envolvidos em uma eventual infração cometida no âmbito da organização
(SCHÜNEMANN, 1982, p. 42-43). Na medida em que o ato punível aparece
freqüentemente como resultado de uma soma de atos parciais e fragmentários – que,
avaliados individualmente, costumam apresentar-se atípicos -, verifica-se, na prática,
uma cisão dos elementos do tipo penal.
Essas condições delineiam as dificuldades de determinação normativa de
competências e de responsabilidades dentro da estrutura da empresa, o que vem
representando um verdadeiro obstáculo à imputação jurídico-penal no âmbito da
criminalidade praticada por intermédio da pessoa jurídica, tanto em razão do cenário
que identificamos acima, de desconfiguração da conduta típica, como em razão das
dificuldades de prova do ato ilícito e suas circunstâncias (COSTA, 1992).
É possível, diante disso, continuar pensando em termos de imputação de
responsabilidade individual, resolvendo tais problemas por via da flexibilização de
alguns critérios de imputação (por exemplo, por meio do conceito de autoria mediata ou
pela ampliação dos delitos omissivos). Soluções que mantém a imputação em bases
individuais vêm recebendo, entretanto, uma série de críticas. De um lado, sob a
perspectiva da crítica à ampliação excessiva da responsabilidade individual e à
sobrecarga do indivíduo (GÜNTHER, (2000, p. 503). De outro lado, sob o ponto de
vista da eficácia preventiva. Nesse registro, costuma-se argumentar, em primeiro lugar,
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o fato de que pessoas físicas suportam a função punitiva (via encarceramento ou outra
medida de privação de liberdade), mas geralmente não dispõem de capacidade
financeira para responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar,
pessoas físicas poderiam negociar junto a outros agentes da empresa mecanismos que a
compensem por sua exposição ao risco por prática de crimes e que funcionem, portanto,
como um seguro privado que beneficia o agente potencial ligado à pessoa jurídica,
desde que lhe seja possível obter da empresa quantia suficiente que compense o risco de
ser investigado e condenado.
Diante de tais críticas à responsabilidade individual, vem crescendo em
importância propostas que buscam adotar padrões de responsabilização coletiva, da
própria pessoa jurídica. Em oposição ao modelo individual, a responsabilização da
pessoa jurídica guardaria algumas vantagens, pois faria com que o ente coletivo
internalizasse os custos do ilícito, o que poderia ser desejável do ponto de vista da
prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa jurídica estaria mais
bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar que o crime seja cometido
ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua prática.
Bernd Schünemann, um dos autores que defende a responsabilidade penal de
pessoas jurídicas, assevera, na esteira do que já havia sido apontada por Ulrich Beck e
sintetizando a defesa político-criminal da responsabilização coletiva, que insistir em
uma estrutura individual de imputação para tratar da responsabilidade por infrações
realizadas no âmbito de pessoas jurídicas nos levaria a um estado de “irresponsabilidade
organizada” (organisierte Unverantwortlichkeit) (SCHÜNEMANN, 1979, p. 30 e
seguintes).
Uma análise criminológica do fundamento da responsabilidade penal de pessoas
jurídicas não estava no escopo da nossa pesquisa, por isso nos limitamos a indicar o
estado do debate acerca desse tema, que subjaz à discussão sobre a adoção do instituto
em estudo. De qualquer forma, acreditamos seja importante mencionar que, ao lado de
tais posições que apontam a necessidade preventiva da responsabilização penal de
pessoas jurídicas, justamente nos Estados Unidos, onde tal instituto tem sido aplicado
há mais de cem anos, é que surgem as críticas mais contundentes, feitas sobre um
histórico de experiências acumuladas. Essas críticas partem, sobretudo, de alguns
estudiosos associados à Análise Econômica do Direito.
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A postura crítica de tais estudiosos não está associada à questão teórica da
intenção para a prática de ilícito. Diversamente disto, os teóricos da Criminal Law and
Economics citados nesta pesquisa fundamentam suas propostas com base na questão da
efetividade do uso do aparato de responsabilização penal e na eficiência da sanção
penal.
A produção científica da Criminal Law and Economics que estuda o instituto da
responsabilidade penal da pessoa jurídica preocupa-se em examinar em que medida sua
aplicação satisfaz os pressupostos indicados para a responsabilização pela via penal.1
Uma vez presentes tais pressupostos, a ordem seguinte de questionamentos dá-se em
torno de avaliar se o nível de punição imposto pela sanção é adequado ou não a padrões
ótimos. O resultado provável da punição excessiva é a diminuição na quantidade de
produtos e serviços oferecidos à sociedade, com a conseqüente elevação de preços e
incapacidade de atender a uma parcela da demanda existente.
Enquanto os primeiros trabalhos elaborados por autores da Law and Economics
preocupavam-se em avaliar se as sanções penais impostas às pessoas jurídicas eram
adequadas ao nível ótimo de sanção (ARLEN 1994; ULEN, 1996; ARLEN e
KRAAKMAN, 1997; ARLEN, ALEXANDER e COHEN, 1999), surgiram também
estudos visando a questionar se os próprios pressupostos para que a pessoa jurídica seja
responsabilizada pela via penal ainda se encontram presentes na atualidade (FISCHEL e
SYKES, 1996; KHANNA, 1996; KHANNA, 2000).
Estudos mais recentes recomendam que a responsabilidade penal por ilícitos
tipicamente praticados no âmbito da atividade empresarial incida apenas sobre os
gestores ou empregados da empresa. (KHANNA, 2003; BROWN, 2004).
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Em linhas gerais, a justificação para que uma conduta deva ser reputada como ilícito penal pela Law and
Economics constrói-se sobre os seguintes pressupostos, que devem estar presentes de modo cumulativo
na maior parte dos casos: (i) a conduta praticada é acompanhada de intenção de produzir benefícios para o
agente, obtidos mediante a imposição de danos à sociedade. O elemento intencional associado ao aspecto
da imposição de danos apenas à sociedade justifica que a conduta seja proibida; (ii) o dano concreto ou
potencial (caso dos crimes de perigo) resultante da conduta não é passível de reparação seja pela
incomensurabilidade da natureza do dano (como o crime contra a vida), seja pela dificuldade de
identificar o conjunto de vítimas afetadas pela conduta e, portanto titulares do direito de reparação; (iii) a
probabilidade de identificação e/ou captura do agente é maior que zero; (iv) a probabilidade de que as
vítimas não ajuizarão uma ação judicial contra o agente é maior que zero seja pela dificuldade de se
organizarem, como também pela dificuldade de reunírem provas contra o agente. É importante notar que
no sistema jurídico dos EUA, tanto as sanções penais quanto as civis podem assumir a função punitiva.
Esta caracteriza a figura dos punitive damages impostas por via das ações judiciais de natureza civil. No
sistema jurídico brasileiro, a responsabilidade civil punitiva, desenvolvida pela jurisprudência, limita-se à
responsabilidade por danos morais, sendo possível afirmar-se ainda hoje que a punição é função
desempenhada primordiamente pela sanção penal, (ULEN, 1996).
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Khanna formula sua crítica à responsabilidade penal da pessoa jurídica nos EUA
com base nos seguintes argumentos: (i) a responsabilização penal da pessoa jurídica tem
sua origem associada a uma época em que apenas o sistema penal provia aparato
processual para tutelar interesses coletivos ou públicos, de outra forma não tuteláveis
pelos instrumentos da processualística civil da época; (ii) esta justificativa histórica não
deve mais persistir atualmente, já que os instrumentos civis de responsabilização e as
instituições incumbidas de sua utilização aperfeiçoaram-se a tal ponto que se tornaram
menos custosas à sociedade do que a alternativa penal (KHANNA, 2003).
Em comparação à sistemática da responsabilização no âmbito civil, por um lado
o processo penal impõe requisitos mais estritos para caracterizar a responsabilização.
Por outro, conta com instrumentos mais rigorosos para a produção de provas e impõe
sanções mais severas. Khanna considera a imputação de responsabilidade penal a
pessoas jurídicas como algo que só se justificava numa época em que era preciso
combinar os únicos instrumentos existentes para preservação de interesses coletivos ou
públicos com a necessidade de responsabilizar a pessoa jurídica. Os instrumentos então
existentes eram justamente institutos de direito penal. (KHANNA, 2000).
Segundo observa Khanna, a maior parte dos casos que inspiraram a imputação
de responsabilidade penal a pessoas jurídicas nos EUA do final do século XIX e
primeira metade do século XX estava associada a danos causados à coletividade.
Considerando a então ausência de instrumentos processuais civis aptos a resguardar
interesses definíveis apenas coletivamente ou em caráter difuso, Khanna entende que o
recurso à imputação de responsabilidade penal em tais casos justificava-se em função da
“lacuna” institucional observada. Conforme o autor, desde o século XVI até o início do
século XX, era por recurso ao procedimento penal que o Estado provia tutela de
interesses jurídicos coletivos ou públicos. Instrumentos processuais civis para a defesa
de tais interesses somente seriam criados a partir da segunda metade do século XX,
quando já se encontrava solidificada a doutrina desenvolvida para imputar
responsabilidade penal às pessoas jurídicas.
Considerando que a pessoa jurídica não pode ser “posta na cadeia” e que as
sanções a que se submete são de caráter pecuniário ou restritivas de direitos, críticos da
responsabilização penal da pessoa jurídica identificam no suposto dano provocado pela
sanção penal à reputação da pessoa jurídica o único elemento que justificaria a
imputação da responsabilidade no âmbito penal.
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Fisse e Braithwaite, estudiosos do tema na Austrália, não são associados à Law
and Economics mas, em alguma medida, ao pensamento pragmático. Esses autores
estão entre os que apóiam a necessidade de sanção penal como dano à reputação das
pessoas jurídicas. Mas é justamente este aspecto um dos mais fortemente questionados
por Khanna, tanto em termos de propósito como de eficácia, isto é: (a) é desejável que a
sanção aplicável à pessoa jurídica se dê em forma de perda reputacional? (b) será que a
sanção penal é intrinsecamente mais danosa à reputação do que a sanção civil? Os
críticos têm adotado posturas bastante céticas com relação a estas duas questões.
Fisse e Braithwaite concordam com a idéia de que a responsabilização deve se
dar sobre o ente ou indivíduo melhor posicionado para suportar seus efeitos. Neste
ponto, seu pragmatismo está em propor que os entes coletivos devam suportar a
responsabilidade pelos atos praticados no âmbito das atividades desempenhadas pela
empresa como maneira de induzirem internamente a observância às normas jurídicas.
Contudo, diferentemente dos teóricos da Law and Economics em seus estudos recentes,
Fisse e Braithwaite argumentam em favor da responsabilização da pessoa jurídica pela
via penal. O interessante é que admitem que o caráter da necessidade de retributividade
(ou “vingança”, ou reprovação pública) presente na sanção penal é o que justifica a
responsabilização da pessoa jurídica por tal via. Assim como pessoas naturais devem
receber reprovação pública por determinados atos por elas cometidos, argumentam que
também devem recebê-la as pessoas jurídicas nos âmbitos das quais sejam praticados
ilícitos penais. (FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p. 502)
Fisse e Braithwaite acreditam que a sanção penal aplicada à pessoa jurídica
incentivaria seus dirigentes a tomar medidas para evitar a prática de ilícitos penais no
âmbito da pessoa jurídica, a fim de proteger sua reputação2. Em termos de propostas
concretas de sanções penais imponíveis às pessoas jurídicas, Fisse e Braithwaite
sugerem a determinação judicial de publicidade desabonadora à prática, serviços
comunitários, medidas que obriguem as pessoas jurídicas a implementarem programas
2
Nas palavras destes autores: [...] in organisations where individuals are stung very little by collective
deterrents, deterrence can still work if those in power are paid good salaries on the understanding that
they will do what is necessary to preserve the reputation of the organisation or to protect it from
whatever other kind of collective adversity is threatened. (FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p. 490) Em
tradução livre: “[...] em organizações onde indivíduos são pouco atingidos por medidas intimidativas
impostas à coletividade, a intimidação pode ainda funcionar se aqueles em poder são bem remunerados
sob a premissa de que farão o que for necessário para preservar a reputação da organização ou protegê-la
de qualquer outra ameaça à coletividade”. Esta idéia, em última análise, revela que os autores associam
uma função utilitarista à função retributiva da sanção penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
15
internos de observância às normas jurídicas, além de as submeter a auditorias internas
para verificar o cumprimento de tais programas.(FISSE e BRAITHWAITE, 1988, p.
490)
Jennifer Arlen, associada à Law and Economics, argumenta que a
responsabilização penal da pessoa jurídica pode surtir mais efeitos perversos do que
benéficos à sociedade. Considerando as visões como as expressas por Fisse e
Brathwaite, ela pondera que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode gerar
efeitos que reciprocamente se anulam, tornando a regra ineficiente. (ARLEN, 1994)
Segundo argumenta Arlen, num regime de responsabilidade penal da pessoa
jurídica por crimes cometidos por seus agentes (strict vicarious criminal liability), o
aumento em custos incorridos pelas empresas para a prevenção à prática de crimes por
seus agentes reduz o número de crimes cometidos e, portanto, reduz a expectativa de
imputação de responsabilidade penal à empresa. Por outro lado, a elevação da
probabilidade de detectar crimes resultante da adoção de tais medidas acaba
aumentando a expectativa de imputação de responsabilidade penal à empresa pelos
crimes que forem praticados. (ARLEN, 1994)
Para a Arlen, a responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes cometidos
por seus agentes poderia em princípio mostrar-se eficiente se as multas fixas fossem
abandonadas em favor de multas com valores que pudessem variar de acordo com o
grau de rigor observado pela própria empresa na observância e no conteúdo de um
programa de compliance interno. A crítica que opõe a tal idéia é que sua implementação
seria demasiadamente custosa, por demandar análise caso a caso para verificar
exatamente o quão satisfatórias foram as medidas adotadas pela empresa considerada e
a quanto isto deve corresponder em termos de multa. (ARLEN, 1994)
A pretensão quanto à possibilidade de fazer com que as pessoas jurídicas
implementem programas de compliance traria os seguintes problemas: (i) o primeiro é a
factibilidade de se elaborar um programa de compliance que contemple a priori e com o
grau de completude adequado quais as medidas para inibir a probabilidade de prática de
crimes; (ii) assumindo que o plano seja bom, o segundo problema é verificar em que
medida ele foi de fato implementado ou acabou ficando mais “no papel” e (iii) talvez o
problema mais difícil, que é transferir ao magistrado a decisão a respeito de determinar
se o programa de compliance adotado pela empresa era ou não era bom o suficiente. A
adoção da proposta pode então mostrar-se inócua seja pelo risco de que os magistrados
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
16
sistematicamente ignorem programas de compliance eventualmente adotados sob
assunção de que a prática do crime atesta que já não eram bons ou o oposto, que
corresponderia aos magistrados deixar de responsabilizar as pessoas jurídicas diante da
sua própria incapacidade de avaliar os planos de compliance.
Para completar o quadro de críticas ao instituto pela ótica dos incentivos, é
relevante considerar o argumento cultural quanto ao impacto da sanção penal. Esse
argumento é utilizado por Darryl Brown, para quem a responsabilização penal da pessoa
jurídica nos Estados Unidos tem raiz em fator eminentemente cultural, que é a pressão
populista presente naquele país para a criminalização de condutas tidas como imorais.
(BROWN, 2004).
Também de acordo com Brown, a solução mais promissora para a
responsabilização por crimes cometidos no âmbito de pessoas jurídicas encontra-se na
combinação entre a via civil e a penal. Contudo, ele defende que a penal deve ser
utilizada exclusivamente para pessoas naturais. Brown ilustra seu ponto com o caso
Merrill Lynch ocorrido em 2003, que assessorou a Enron na concretização de operações
de fraude financeira. O caso foi abordado com um pacote de medidas que
compreenderam a cooperação da instituição financeira com promotores de justiça para o
indiciamento de alguns dos funcionários da empresa, a implementação pela Merrill
Lynch de um programa de prevenção interno contra a prática ou auxílio à prática de
crimes corporativos, o pagamento de U$80 milhões à Securities Exchange Commission
(a comissão de valores mobiliários nos Estados Unidos) e ainda o pagamento a uma
empresa de auditoria encarregada de fiscalizar o cumprimento das medidas pela Merrill
Lynch pelo período de 18 meses.
O autor ainda menciona estudos recentes que apontam que, quando se trata de
ilícitos financeiros, ações ajuizadas por particulares nos Estados Unidos têm-se
mostrado mais efetivas do que ações de iniciativa pública. Isto se deve em parte às
limitações orçamentárias do Estado. Além disso, muitas vezes as partes privadas são
capazes de reunir provas de modo mais eficaz do que os investigadores públicos.
A conclusão a que Brown chega é que a responsabilização civil de pessoas
jurídicas é melhor do que a penal quando os objetivos são prevenção, reparação do dano
e alguma forma de incapacitação para exercício de atividades. A única função melhor
desempenhada pelo ramo penal é a retributiva, isto é, a da expressão da condenação
pública a certas condutas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
17
Enfim, como pudemos sumariar aqui, há uma série de variáveis a serem
consideradas quando se trata de pensar uma política pública de responsabilização da
empresa, debate que merece ser fortalecido no Brasil, para além da questão da adoção
ou não do instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas.
É possível levantar a hipótese de que, em nosso país, fenômenos ligados à
prática de ilícitos no âmbito de pessoas jurídicas se beneficiem da inexistência de um
desenho adequado que regule a atribuição de responsabilidades. Um sistema de
imputação de responsabilidade por meio do direito administrativo encontra-se mais bem
estruturado apenas em alguns setores de regulação (como, por exemplo, a concorrência
e o mercado de capitais, e mesmo assim, com vários problemas). O Direito Civil, por
sua vez, tem em sua linha de frente a função indenizatória e não se discutem de forma
clara as possibilidades de ser esse ramo do direito estruturado para desempenhar
também funções punitivas3.
No campo do direito penal, por sua vez, temos, de um lado, um sistema
fundamentalmente baseado na imputação individual, que padece das dificuldades que
elencamos acima relativas à individualização de responsabilidades no âmbito da
empresa. De outro lado, a introdução em nosso ordenamento do instituto da
responsabilidade penal de pessoas jurídicas para os casos de crimes ambientais também
vem tendo aplicação insatisfatória (como mostram os resultados da pesquisa empírica,
expostos abaixo), além de sofrer grande resistência na doutrina nacional.
O modelo de responsabilidade penal brasileiro está construído com base em um
sistema de culpa própria e de imputação individualizada consagrado na Parte Geral do
nosso Código Penal. Assim, o administrador ou funcionário da pessoa jurídica
responderá criminalmente apenas em razão de sua ação ou omissão (quando a omissão
for imputável) em condutas ilícitas e na medida da sua culpabilidade. Isto é, como regra
central, imputa-se responsabilidade àquele que com sua ação ou omissão deu causa ao
resultado, na medida de sua culpabilidade (CP, arts. 13 e 29). No âmbito do processo
penal esta regra se desdobra na necessidade de que as condutas sejam bem descritas e
particularizadas já no momento da dedução de acusação (CPP, art. 41) e, evidentemente,
que a condenação seja expressão da verificação da culpa individual do acusado,
recebendo este também uma pena determinada a partir de circunstâncias judiciais
individualizadoras (CP, art. 59).
3
Como mencionado acima, a responsabilidade civil punitiva no Brasil é resultado de construção
jurisprudencial, está limitada aos casos de danos morais e é ainda bastante polêmica.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
18
Como vimos, neste tipo de sistema, fundado na responsabilidade individual, as
regras de imputação enfrentam obstáculos para serem aplicadas no âmbito da empresa.
Estudo empírico desenvolvido recentemente em acórdãos proferidos pelos Tribunais
Superiores (STF e STJ) julgados entre 2005 e 2007, sobre o tema da responsabilidade
de administradores de empresas4 mostra que a maioria das decisões em matéria penal
versa sobre o trancamento de ações penais, tendo predominância as decisões que
determinam o encerramento da ação penal com base em falta de prova para autoria ou
ausência de individualização da conduta. Ou seja, ainda que esse levantamento tenha
um objeto restrito, traz forte indicação de que temos nos Tribunais brasileiros um
diagnóstico semelhante ao que apresentamos acima: um déficit de responsabilização
decorrente do sistema de imputação individual.
A discussão brasileira acerca da imputação de responsabilidade a pessoas
jurídicas coloca-se nesse contexto. Esse instituto foi introduzido em nossa ordem
jurídica para os casos de crimes ambientais e a ampliação de sua abrangência,
especialmente aos crimes empresariais, vem sendo discutida por meio de uma série de
projetos de lei ora em tramitação5.
A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições
relativas à responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173,
4
A pesquisa “Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do STJ
e STF”, coordenada por Marta Machado e Viviane Muller Prado foi desenvolvida com o apoio da Escola
de Direito da Fundação Getúlio Vargas, com o objetivo de verificar a concretização do regime jurídico de
responsabilização civil e penal de administradores de sociedades empresariais a partir da análise
quantitativa e qualitativa da jurisprudência dos Tribunais Superiores do Brasil – Supremo Tribunal
Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). O levantamento jurisprudencial foi realizado com
base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites dos Tribunais e seus respectivos bancos de
dados, por meio de palavras-chave que fossem capazes de abranger as decisões acerca da
responsabilidade dos administradores de empresa, a saber: “responsabilidade e administrado$”,
“responsabilidade e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”,
“responsabilidade e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”,
“denúncia e conselheir$” e “denúncia e gerent$”. O levantamento teve como limite temporal 01.01.05 a
01.04.07. Após a exclusão manual de decisões que não se aplicavam à pesquisa, foram analisados 276
acórdãos, sendo 270 casos julgados pelo STJ e 6 julgados pelo STF. No que diz respeito à matéria, 224
acórdãos versam sobre matéria não penal e 52 acórdãos são de matéria penal. Para informações mais
detalhadas, cf. MACHADO, M.; MÜLLER, V.; GANZAROLLI, M.; MARQUES, L. 2009
5
Nota de rodapé: Atualmente tramitam no Congresso Nacional quatro projetos principais que
efetivamente estabelecem a responsabilidade penal da pessoa jurídicas: (i) Projeto de Lei do Senado n.º
4.842/1998 (“Dispõe sobre o acesso a recursos genéticos e seus produtos derivados e dá outras
providências”); (ii) Projeto de Lei da Câmara n.º 27/1999 (“Acrescenta artigo à Lei 7.716, de 5 de
janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional, instituindo a responsabilidade penal de pessoas jurídicas cujos
funcionários realizem práticas de racismo”); (iii) Projeto de Lei da Câmara n.º 1.197/2003 (“Estabelece
as áreas ocupadas por dunas e falésias como espaços territoriais especialmente protegidos e dá outras
providências”); (iv) Projeto de Lei da Câmara n.º 1.142/2007 (“Tipifica o crime de corrupção das
pessoas jurídicas em face da Administração Pública”).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
19
§5° determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da
pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e
financeira e contra a economia popular” (grifos nossos). O art. 225, § 3°, por sua vez,
dispõe que “as condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Para regulamentar
estes dispositivos, surge em 1998 a Lei nº. 9.605 (mais conhecida como Lei dos Crimes
Ambientais), que passa a prever, em nível infraconstitucional, a responsabilidade penal
da pessoa jurídica. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi
estabelecida da seguinte forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a
infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu
órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a
responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato”. Nestes termos, a responsabilidade de entes
coletivos é atualmente aplicável, portanto, somente a casos envolvendo crimes contra o
meio-ambiente.
Entretanto a aplicação do instituto no âmbito dos crimes ambientais vem
enfrentando uma série de obstáculos, como fica evidente a partir de análises empíricas
sobre a aplicação do modelo de responsabilização da Lei de Crimes Ambientais em
nossos tribunais, que realizamos no âmbito desta pesquisa e cujos resultados expomos
no item abaixo.
Vem enfrentando também uma série de obstáculos por parte da doutrina
nacional, que se mostra, de um lado, bastante resistente à adoção do instituto e, de
outro, tem empreendido poucos esforços no sentido de pensar, com criatividade
institucional, qual a melhor forma de lidar com o problema social concreto da
responsabilização por atos praticados no âmbito de pessoas coletivas. Esse cenário de
aparente estagnação pode estar contribuindo, a nosso ver, para os déficits de
responsabilização por tais atos (tanto quando se trata de aplicação de responsabilidade
individual, como no caso da imputação de responsabilidade coletiva nos crimes
ambientais).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
20
As dificuldades de regulação enfrentadas por um modelo individualista de
imputação não precisam ser, necessariamente, superadas por um modelo de
responsabilidade coletiva.
Além disso, ainda que se opte por este modelo de responsabilidade coletiva, há
distintas formas de articulação dos critérios de imputação, capazes de produzir
resultados muito diversos. Como veremos logo abaixo, o modelo de responsabilidade
coletiva tal como adotado e aplicado no Brasil vem produzindo resultados
insatisfatórios. Dessa forma, não se trata apenas decidir a favor ou contra a adoção do
instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas, sendo imprescindível ponderar
acerca das vantagens e desvantagens de cada modelo.
Da mesma forma, uma discussão acerca do tipo de intervenção mais apropriado
aos objetivos pretendidos e que, ao mesmo tempo, não gere prejuízos à economia do
país dependerá de uma discussão mais profunda sobre as modalidades de sanção que
podem ser colocadas à disposição do juiz. Por fim, entendemos que a opção pela adoção
de responsabilidade penal de pessoas jurídicas deve se dar sob o pano de fundo das
possibilidades de que a intervenção seja articulada a partir de outras esferas do direito,
como o direito penal e o direito administrativo, apresentando cada uma delas vantagens
e desvantagens.
São esses elementos que a nosso ver devem passar a fazer parte das reflexões e
discussões sobre o tema no debate público brasileiro e que buscamos apontar com a
presente pesquisa.
I. 2. Pesquisa empírica de jurisprudência: aplicação da responsabilidade
penal de pessoas jurídicas em crimes ambientais no Brasil
A fim de levantar informações acerca da aplicação do instituto da
responsabilidade penal de pessoas jurídicas por nossos tribunais, empreendemos um
estudo sistemático de julgados em casos envolvendo imputação de crimes ambientais a
pessoas jurídicas nos Tribunais Superiores e nos Tribunais Regionais Federais da
Primeira, Segunda, Quarta e Quinta Região. Este estudo compreendeu a análise de 48
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
21
decisões entre os anos de 2001 e 20086. Embora a Lei dos Crimes Ambientais seja do
ano de 1998, as primeiras decisões encontradas datam o ano de 2001.
Com isso, pudemos colher dados relevantes acerca de como o Judiciário vem
entendendo as regras e requisitos para responsabilização de pessoas jurídicas, o tipo de
resultado que esses casos vêm alcançando e os principais problemas enfrentados em sua
aplicação.
Desta análise, diversos pontos chamam a atenção. Em primeiro lugar, percebe-se
que há uma grande discrepância no número de casos envolvendo ações propostas contra
as pessoas jurídicas, a depender do Tribunal em que se faz a busca7. Embora a pesquisa
não atinja dados de primeira instância, isso pode significar que ainda estamos diante de
um instituto de aplicação muito heterogênea e não-pacificada. Em segundo lugar, o
levantamento resultou em poucos recursos – 48 no total – um possível indício de que o
oferecimento de denúncias em face de pessoas jurídicas seja pequeno, sem prejuízo de
se levantar também a hipótese de que muitos processos tenham sido extintos nas
instâncias inferiores por questões de natureza processual.
Os recursos encaminhados para análise dos Tribunais são, em grande maioria,
recursos em sentido estrito, Habeas Corpus e mandado de segurança, sendo muito
pequeno o número de apelações criminais (apenas 4 dos 48 casos). Verifica-se a
predominância de recursos interpostos antes da sentença de primeiro grau, com pedidos
de recebimento da denúncia e de trancamento da ação penal que somam quase 80% do
total. O momento da decisão de recebimento da denúncia pelo juiz ainda é o mais
controvertido, com mais da metade dos recursos sendo provenientes desta decisão.
Nos casos envolvendo trancamento ou prosseguimento da ação, decisões que
determinaram a continuidade da persecução penal foram maioria (21 casos de
prosseguimento contra 13 de trancamento).
É interessante notar que, embora a própria legitimidade e o cabimento deste
modelo de imputação ainda seja objeto de polêmica, nas decisões analisadas a aceitação
6
O levantamento jurisprudencial foi realizado com base nos acórdãos disponíveis no banco de
jurisprudência online dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs), do Superior Tribunal de Justiça
(STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), entre 01 e 07 de março de 2008. Foram selecionadas todas
as ementas que resultaram da busca pela expressão “responsabilidade penal da pessoa jurídica” e as
variações necessárias em razão dos diferentes sistemas de busca de cada Tribunal ou aquelas que
poderiam resultar em maior número de resultados. Utilizou-se somente este termo (e, quando necessário,
suas variações), uma vez que é a expressão mais ampla e a que possibilita um número maior de retornos.
Todas as decisões repetidas ou que não tinham direta relação com a responsabilidade penal da pessoa
jurídica foram descartadas, consolidando, deste modo, um universo total de 48 decisões.
7
Enquanto há um grande número de ocorrências nos TRF1 e TRF4, nenhuma decisão foi encontrada no
TRF3.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
22
do instituto é pacífica. Nos Tribunais, o que se exige, entretanto, é a imputação conjunta
do co-réu pessoa.
Um dos dados mais significativo desta pesquisa empírica refere-se justamente a
esta questão, a qual apareceu em número elevado de julgados e de recursos que
questionavam especificamente a legitimidade da pessoa jurídica para figurar sozinha no
pólo passivo da ação penal. Nesses casos, o entendimento predominante nos Tribunais
foi no sentido de que é necessária a imputação do co-réu pessoa física para que se possa
processar criminalmente a pessoa jurídica.
Do universo de casos analisados, 75% das justificativas para trancamento das
ações versavam sobre a inexistência de co-réu pessoa física e falta de provas da conduta
individual concreta, assim como 40% das fundamentações para o não-recebimento da
denúncia cuidam da falta de imputação de crime à pessoa física que agiu concretamente.
Estes dados nos permitem afirmar que, no que tange ao modelo de responsabilidade
penal da pessoa jurídica que temos atualmente, os Tribunais estão sendo chamados
basicamente para resolver questões “primárias” quanto ao tema, como a
constitucionalidade desta forma de responsabilização penal e a necessidade ou não da
co-existência de réu pessoa física no pólo passivo, análises feitas ainda no início do
procedimento penal. Apenas um número bastante reduzido de julgados chega a ser
analisado em seu mérito.
Na medida em que a maioria dos julgados analisados indica a necessidade de
fazer a individualização da pessoa física para figurar como co-réu, colocamo-nos
novamente diante da extrema dificuldade de individualizar condutas e de provar a
autoria em âmbitos altamente diferenciados e funcionalmente estruturados. Ou seja, o
modelo de responsabilidade da pessoa jurídica, tal qual aplicado hoje em nosso país,
pouco consegue enfrentar e superar as dificuldades derivadas de um modelo de
imputação estritamente individual.
I.3. Resistências da dogmática penal tradicional ao instituto da RPPJ
O dado empírico acima relatado sugere que um debate teórico e dogmático
sobre o tema da responsabilização de pessoas jurídicas é necessário para que se
possam considerar os limites e as possibilidades abertas por este instituto. De fato,
a responsabilidade penal de entes coletivos é um dos temas mais polêmicos
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
23
tratados atualmente pela dogmática de Direito Penal. Isso porque, se, por um lado,
as demandas político-criminais são bastante fortes no sentido da introdução de uma
regulação penal das atividades das pessoas jurídicas, por outro, este instituto
coloca em xeque conceitos tradicionais da teoria do delito, tais como (e
especialmente) os conceitos de ação e de culpa. A convivência entre tal instituto e
a compreensão tradicional desses conceitos pode estar gerando curto-circuitos em
sua aplicação.
Uma questão central, portanto, consiste em refletir sobre a possibilidade de
compatibilizar as categorias da dogmática penal com este novo modelo de
responsabilização. Neste ponto, identificam-se, de um lado, posições contrárias à
introdução do instituto no direito penal, em razão da sua incompatibilidade com os
conceitos dogmáticos de ação e de culpa e, de outro, tentativas de reformular tais
categorias, para que possam ser aplicadas não apenas às pessoas naturais, mas
também às pessoas coletivas. Não é de se desconsiderar que as posições
dogmáticas do primeiro tipo têm influenciado decisões de política-criminal
contrárias à introdução do instituto em diversos ordenamentos jurídicos e tem
também relevância no debate brasileiro. Além disso, nos casos em que o legislador
decidiu pela introdução do instituto, elas podem ainda impactar no momento de sua
aplicação – o que se pode observar no caso brasileiro.
Em nossa pesquisa, procuramos mostrar que a resistência ao instituto está
ligada à influência dos conceitos dogmáticos desenvolvidos pela escola finalista8
de Direito Penal. No que concerne à ação, esta escola a define ontologicamente,
como uma “alteração do mundo exterior, condicionada pela vontade de um ser
consciente e direcionada a um determinado fim” (WELZEL, 1969, p. 33). Por sua
vez, no que tange à noção de culpa, define-se esta a partir de critérios
8
A Escola Finalista, desenvolvida fundamentalmente por Hans Welzel, pode ser considerada a principal
escola de Direito Penal no século XX. Para tal escola, que encontra grande aceitação até os dias de hoje,
trata-se de perceber que a regulação jurídica da vida em sociedade está determinada por categorias a
priori, isto é, que determinadas estruturas humanas definem necessariamente a forma pela qual uma
conduta poderá ser juridicamente avaliada e regulada. Assim, exemplarmente, Hans Welzel vai afirmar
que o conceito jurídico-penal de Ação não pode prescindir do fato de que todo agir humano é um agir
orientado finalisticamente, ou seja, um comportamento dotado de sentido e de uma orientação final.
Quando se transpõe esta premissa para a análise da possibilidade de responsabilização das pessoas
jurídicas, torna-se necessário, segundo os finalistas, “perceber que os modos de organização e o processo
de atividades reais das pessoas jurídicas constituem para a regulação jurídica dados previamente
estabelecidos (...), no sentido de que os elementos estruturais de tal realidade previamente dada traçam,
por si só, limites à possibilidade de sua valoração e, portanto, ao estabelecimento de possíveis
conseqüências jurídicas”. GRACIA MARTÍN, 1996, p. 38.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
24
psicológicos, afirmando-se que a atribuição de culpa consiste em “uma objeção
levantada a uma pessoa que voluntariamente decidiu-se por um comportamento
ilícito, apesar de ter o dever de se comportar conforme o Direito” (GRACIA
MARTIN, 1995, p. 66).
Esta forma de compreender os elementos estruturantes do conceito de delito
tem grande impacto sobre a reflexão acerca da responsabilidade penal da pessoa
jurídica. Segundo essa formulação de ação, apenas os membros de uma
coletividade seriam capazes de, finalisticamente, dar origem a um nexo causal e,
assim, criar alterações no mundo exterior capazes de violar bens jurídicos
relevantes (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 40-41). 9 A conduta (ação ou omissão),
pedra angular da teoria do crime, seria produto exclusivo do homem e a capacidade
de ação exigiria a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da
pessoa individual (BITTENCOURT, 2000, p. 199). A partir desta perspectiva,
portanto, costuma-se negar às pessoas jurídicas capacidade de ação em sentido
penal
e,
conseqüentemente,
possibilidade
de
estas
serem
penalmente
responsabilizadas (JESCHECK, 1988, p. 204) (ROXIN, 1992, p. 154) (MUÑOZ
CONDE, 1989, p. 276).
Do mesmo modo, com relação ao conceito de culpa, a doutrina tradicional
toma as pessoas jurídicas como entes sem capacidade de culpa. Apoiada nos
dogmas “societas delinquere non potest” (HUNGRIA/FRAGOSO, 1978, p. 628631)10 e “nulla poena sine culpa”, afirma-se que o conceito penal de culpa não
pode ser aplicado a entes diferentes das pessoas em sentido natural (EHRHARDT,
1994, p. 45). Isso porque, tradicionalmente, a noção de culpa pressupõe a
existência de um ente com capacidade de livre auto-determinação moral (freie und
sittliche Selbstbestimmung), capacidade esta que apenas seres humanos poderiam
ter (GRACIA MARTIN, 1995, p. 66).
Esta forma de encarar a dogmática leva, portanto, à negação da
9
Segundo Gracia Martín, “às pessoas jurídicas faltam a consciência e a vontade em sentido psicológico, e
com isso a capacidade de autodeterminação”. Mais ainda, afirma que, “no caso das pessoas jurídicas,
sujeito de imputação e sujeito da ação não coincidem, pois elas só podem atuar através de seus órgãos e
representantes, isto é, de pessoas físicas (sujeitos da ação) (...) O elemento portador da possibilidade de
responsabilização penal é sempre e apenas o exercício da vontade, bem como o seu processo de
formação”.
10
Já a assertiva de Nelson Hungria e Heleno Fragoso expressavam este entendimento tradicional. Neste
sentido, a emblemática assertiva de Hungria-Fragoso de que “no direito brasileiro, o princípio ‘societas
delinquere non potest’ é regra absoluta”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
25
responsabilidade penal da pessoa jurídica, na medida em que esta não seria capaz
de agir e muito menos de agir com culpa.
É preciso pontuar, entretanto, que esta posição reflete apenas uma entre
tantas outras formas de construir os conceitos da dogmática penal. Ao lado desta
visão tradicional, que tem base nos princípios das ciências naturais e elementos
ditos ontológicos, outras posições teóricas são possíveis e sustentáveis – a exemplo
daquelas que não vinculam intrinsecamente a responsabilização de uma pessoa por
um ato à existência de um nexo causal ou à comprovação da orientação psicológica
de uma ação humana e mostram-se, portanto, compatíveis com o instituto.
Neste contexto, no campo da dogmática penal (especialmente alemã) os
pressupostos ontológicos da teoria finalista vêm sendo fortemente questionados em
favor da compreensão do delito como um constructo humano que apenas se dá em
sociedade11.
Nesta linha, uma concepção normativa (e não mais ontológica) das
categorias da teoria do delito tráz consigo uma nova forma de considerar as
questões envolvendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Tal normatização
dos conceitos pressupõe, por exemplo, que o conceito de “pessoa” não é
ontológico, isto é, não está vinculado necessariamente aos aspectos naturais do ser
humano. Pelo contrário, normativamente considerada, a pessoa é vista como
portadora de direitos e deveres, o que tornaria impossível avaliar tal status sem
considerar o contexto social no qual ele se insere.
Nestes termos, a ação é avaliada não como comportamento puramente
11
"Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem a uma
funcionalização e desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e
desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser
tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo:
dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão –
também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é
tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem
re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em
seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática
penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca
extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser
definidos como um Sistema imputável”. Cf. JAKOBS, 1993, p. 149."
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26
naturalístico, mas sim como um complexo dotado de significado social. 12 Por este
motivo, torna-se também aceitável a idéia de que uma pessoa jurídica pode agir
propriamente, bastando para isso que as diversas ações individuais executadas por
seus membros possam ser avaliadas como uma ação complexa em seu significado
global. Ou seja, ainda que fruto de diversas vontades humanas, o Direito poderia
considerá-la como vontade própria do ente coletivo, ao ater-se ao seu sentido
social e comunicativo.
A perspectiva normativa do conceito de culpa também não estaria presa à
fundamentação da imputação penal de um ente à consciência que este teria de estar
agindo ilicitamente. A noção normativa de culpa exige para a imputação que a
pessoa jurídica seja dotada da capacidade de organizar seus comportamentos de
acordo com o Direito. Se uma pessoa tem a possibilidade de organizar seus
comportamentos de acordo com a medida das regras de convivência social e, por
sua vez, não o faz, então a ela pode ser atribuída uma reprovação de culpabilidade.
E o fato de que, normalmente, as pessoas jurídicas possuem a capacidade de
organizar licitamente suas atividades conforme padrões de licitude permitiria, de
acordo com esta visão, imputar responsabilidade àquelas que agem de modo
desviante.
Estas novas teorias, que buscam concepções de ação e de culpa que possam
ser vistas a partir de uma perspectiva social e não apenas ontológica, constituem a
base para se afirmar, no interior da dogmática jurídica, que também as pessoas
jurídicas podem ser penalmente responsabilizáveis. É no âmbito dessa linha de
pensamento que se situam as tentativas mais bem sucedidas de adaptar o instituto
da responsabilidade penal da pessoa jurídica aos conceitos da teoria do delito 13. É
de se notar, contudo, que esse esforço dogmático está praticamente ausente na
doutrina nacional.
Um retrato do debate doutrinário brasileiro acerca da responsabilidade penal
das pessoas jurídicas mostra que ele vem se ocupando de um conjunto restrito de
12
Tentativas de formulação de um conceito de ação próprio às pessoas jurídicas podem ser verificadas,
guardadas as diferenças pontuais entre cada proposta, em EHRHARDT, 1994, p. 239; HIRSCH, 1995, p.
289; TIEDEMANN, 1998, p. 1172; HEINE, 1996, p. 211.
13
Exemplos destas tentativas podem ser vistos em ALVARADO, 2007; GOMÉZ-JARA DÍEZ, 2005;
LAMPE, 1994.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
27
questões,14
É ainda forte no debate brasileiro a discussão acerca da constitucionalidade
do instituto. Neste campo, os argumentos existentes discutem, i) se, em um
primeiro nível, as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF seriam compatíveis
com os demais princípios consolidados na constituição, e ii) se, em um segundo
nível, as previsões da Lei de Crimes Ambientais seriam, por sua vez, eivadas de
inconstitucionalidade e, portanto, deveriam ser tidas como inválidas. Neste ponto,
parte da doutrina chega mesmo a afirmar que, tanto de uma analise literal quanto
de uma análise sistemática destes dispositivos legais, a Constituição não poderia
ter recepcionado a responsabilidade penal da pessoa jurídica (CRETELLA
JÚNIOR, 1988, p.4045. No mesmo sentido, ver SANTOS, 2006, p. 428; PRADO,
1992, p. 32-33).15
Sob a perspectiva da dogmática penal propriamente dita, o debate está centrado
na compatibilidade da responsabilidade penal das pessoas jurídicas com os elementos
estruturantes do conceito de delito, tais como o conceito de ação e de culpabilidade
Nesse sentido, é bastante forte na doutrina nacional a posição que parte do conceito
tradicional de ação e compreende a pessoa jurídica como incapaz de desenvolver uma
atividade dirigida pela vontade livre para consecução de um determinado fim
(PIERANGELLI, 2004, p. 430; SANTOS, 2006, p. 432; PRADO, 2001, p. 105-106;
MIRABETE, 1987, p. 106; CONSTANTINO, 1999, p. 1). Logo, ainda que se admitisse
a formação de uma vontade coletiva no seio da pessoa jurídica, o dolo que dirigiu a
realização do ilícito continuaria se referindo, no limite, aos aparelhos psíquicos das
pessoas físicas que a compõem. No que diz respeito à culpabilidade, a maioria dos
penalistas brasileiros entende que a pessoa jurídica não é passível de agir com culpa,
pois não seria imputável (incapaz de culpabilidade) e pelo fato de que a consciência de
ilicitude do injusto só poderia ser verificada nas pessoas físicas (PRADO, 2001, p. 106;
SANTOS, 2006, p. 440; ROBALDO, 1998, p. 1; BITENCOURT, 1999, p. 62). Por
estes motivos aqui apresentados bastante sinteticamente, a doutrina nacional majoritária
14
A íntegra do relatório apresenta, de forma pormenorizada, o contexto de discussões doutrinárias e o
posicionamento de defensores e críticos das teorias aqui expostas.
15
Em posição contrária, cita-se FREITAS, 1999, p. 213; SHECAIRA, 2003, p. 136-137; CABETTE,
2003, p. 65-66; ROTHENBURG, 1998, p. 63. Para mais detalhes, ver relatório final desta pesquisa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
28
costuma negar a possibilidade de estruturar dogmaticamente a responsabilidade penal da
pessoal jurídica.16
Por fim, verificamos que o debate no campo da política criminal é ainda muito
incipiente no Brasil, o que se percebe, por exemplo, pelo grande déficit de pesquisas
empíricas sobre o tema até o presente momento. Assim, as duas principais questões
político-criminais – as dos fins a serem perseguidos pelo sistema penal e a dos meios
necessários para tanto – encontram-se, no Brasil, pouco delimitadas, sendo mesmo
possível verificar que, muitas vezes, as finalidades da regulação penal são discutidas
sem que se faça referência a quais seriam os meios e modelos mais adequados de sua
formulação. Este quadro parece apontar para a necessidade de que o debate brasileiro
acerca da formulação de uma política de responsabilização também leve em
consideração questões de diversas ordens, que atualmente vêm sendo negligenciadas. .
II. QUESTÕES A SEREM CONSIDERADAS NA FORMULAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS DE REGULAÇÃO DE ILÍCITOS PRATICADOS NO
ÂMBITO DE PESSOAS JURÍDICAS OU OUTRAS COLETIVIDADES
Como vimos, o debate doutrinário brasileiro, ao se debruçar sobre o tema da
responsabilidade penal das pessoas jurídicas, centrou-se, fundamentalmente, na questão
da constitucionalidade deste instituto e sua compatibilidade com as categorias de ação e
de culpabilidade, estruturantes do conceito de delito. Neste sentido, dedicou-se pouco à
discussão prospectiva sobre a melhor forma de lidar com o problema de atos ilícitos
praticados no âmbito de pessoas jurídicas e as distintas possibilidades de
responsabilização. Pesquisas empíricas (tanto sobre o problema a ser regulado quanto
sobre as atuais respostas estatais de que dispomos), análises de política criminal e
questões relativas ao aperfeiçoamento do modelo de regulação são, desse modo,
exceções em nosso debate.
Por este motivo, a preocupação desta pesquisa foi a de suscitar questões que nos
pareciam negligenciadas, além de chamar a atenção para o fato de que há distintas
possibilidades de conformação de um modelo de responsabilidade coletiva. Eles podem
16
Exceções são os posicionamentos de SHECAIRA, 2003, p. 110; ROTHENBURG, 1998, p. 62 e
ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93-94.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
29
assumir arranjos a partir de distintas áreas do Direito, de distintos critérios de imputação
e de variações também em relação ao tipo de sanção aplicada.
Além disso, buscamos também identificar algumas questões que devem ser
enfrentadas uma vez se decida pela responsabilização penal de pessoas jurídicas, pois
têm impacto direto na aplicação do instituto - como a adequação do regime processual
penal e as soluções regulatórias para os casos de transformações e uniões de pessoas
jurídicas, tão comuns no cenário empresarial.
Parece-nos que a ausência dessas questões do debate público colabora para o
déficit de regulação acima mencionado, bem como para as insuficiências de muitos dos
projetos de lei que se encontram ora em tramitação.
Neste artigo, tratamos sinteticamente de algumas destas questões: os possíveis
modelos de responsabilidade penal de entes coletivos (II.1); a discussão sobre as
possíveis sanções jurídicas a serem atribuídas após a decisão pela responsabilização
(II.2); dificuldades específicas a serem enfrentadas na responsabilidade penal de pessoas
jurídicas (II.3); e, por fim, a responsabilidade administrativa e civil como alternativas
possíveis à responsabilidade penal (II.4)17.
II.1. Modelos de determinação de responsabilidade
Uma vez que se decida estabelecer responsabilidade de entes coletivos no
âmbito penal, apresenta-se a questão de como atribuir tal responsabilidade. Quando
devemos entender um determinado acontecimento como ato de certa coletividade?
E como deverá ser apurada a reprovação de tal conduta?
A questão fundamental que se apresenta é determinar em que circunstâncias
o ato de um ou vários indivíduos, ou mesmo certo acontecimento não passível de
ser atribuído à ação de nenhum indivíduo, devem ser considerados como ação de
uma pessoa jurídica ou de uma coletividade não personalizada.
Relacionada a essa questão, há a necessidade de se determinar como se
17
A íntegra do relatório discute essas questões com mais detalhe e profundidade, além de trazer
informações sobre a conformação desse instituto na Alemanha, Espanha, Portugal e Estados Unidos, bem
como o estágio da discussão no âmbito da União Européia, ampliando o leque de informações acerca da
possibilidade de conformação de diferentes concepções de modelos regulatórios para a questão.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
30
devem apurar os elementos que irão embasar a culpabilidade em relação aos atos
das pessoas jurídicas e demais coletividades.
A pergunta sobre quando devemos entender um acontecimento como ato de
certa coletividade pode ser respondida basicamente de três modos: (i) com uma
teoria de responsabilidade pelo fato de outrem; (ii) com recurso à teoria orgânica
da pessoa jurídica; (iii) ou com emprego de critérios independentes da ação de
quaisquer indivíduos.
Relacionados ao modelo de ação, temos os modelos de avaliação da
culpabilidade da coletividade: esta pode depender da culpabilidade individual ou
utilizar critério de culpabilidade específico para coletividades.
Em princípio, todos os modelos de ação das coletividades podem ser
conjugados com qualquer um dos modelos de apuração de culpabilidade. No
entanto, da forma como vêm sendo debatidos, os modelos de ação individual
apresentam-se conjugados a formas de apuração de culpabilidade igualmente
individuais.
O modelo brasileiro atual, previsto na lei ambiental, seria uma conjugação
do modelo de responsabilidade pelo fato de outrem com um modelo de
culpabilidade individual, se levada em conta a tendência de interpretação que
apuramos em levantamento jurisprudencial.
Como vimos, os tribunais têm sido avessos à aceitação da denúncia sempre
que a pessoa física tida como responsável não é citada como co-ré, ao lado da
pessoa jurídica. Desta forma, todas as vezes em que é impossível a identificação da
pessoa física, a ação penal é trancada. Este exemplo parece deixar claro que a
regulação de infrações penais com base na responsabilidade por fato de outrem se
mostra, por um lado, limitada, já que dependente da identificação de uma pessoa
física relacionada diretamente com a prática do ilícito, e, por outro, ampla demais,
já que a imputação da empresa ocorre de modo quase automático (HEINE, 2006, p.
33).
Tendo em vista que um dos problemas centrais da regulação da
criminalidade praticada no âmbito de organizações complexas é justamente a
dificuldade de apuração de responsabilidade individual – devido à fragmentação de
condutas, de decisões e de informações decorrentes da própria divisão do trabalho
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
31
– modelos de ação própria da coletividade, que não dependam da identificação de
ação individual, e de culpabilidade também própria e específica das coletividades
tendem a fornecer respostas mais adequadas do que os modelos de ação e
culpabilidade individuais.
i) Modelo da responsabilidade pelo fato de outrem (responsabilidade
vicária)
A primeira forma básica de aferição de responsabilidade dos entes coletivos
se espelha na teoria da responsabilidade por fato de outrem desenvolvida no
Direito civil.
No direito brasileiro, o art. 932 do CC a prevê em várias hipóteses:
responsabilidade dos pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e
em sua companhia, responsabilidade do tutor e do curador por seus pupilos e
curatelados nas mesmas condições, responsabilidade do empregador ou comitente
por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes
competir, entre outras hipóteses. Nesses casos, a responsabilidade civil de uma
pessoa (do patrão, por exemplo) decorre da prática de um ato ilícito por parte de
outra pessoa (seu empregado, no caso). O autor direto do ilícito (empregado) não
fica isento de responsabilidade, mas a ela se acrescenta a responsabilidade de outra
pessoa (patrão).
Transportada para o âmbito do Direito Penal, a teoria da responsabilidade
vicária parte da idéia de que o dono do negócio (Geschäftsherr) é sempre
responsável pelos crimes que seus subordinados cometerem no exercício de sua
atividade, na medida em que o ato ilícito não teria ocorrido se houvesse a devida
cautela
quando
da
escolha
e
fiscalização
das
atividades
dos
mesmos
(KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543)18. Com isso, esse modelo
18
No direito civil brasileiro atual, a discussão acerca da culpa do patrão está superada, diante da previsão
expressa de que sua responsabilidade é objetiva (CC art. 933). No entanto, antes da aceitação pacífica da
responsabilidade objetiva no direito civil, partidários da responsabilidade por culpa entendiam que o
fundamento da chamada responsabilidade por fato de outrem era, em última análise, uma culpa própria do
patrão, a qual consistia na seleção ou na vigilância inadequadas dos subordinados (culpa in eligendo e
culpa in vigilando, respectivamente) (AGUIAR DIAS 1983, 571). Na vigência do CC de 1916, o qual não
trazia norma expressa quanto à responsabilidade sem culpa do empregador ou comitente, esta era
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
32
representa uma forma de responsabilização por fato de outrem, bem como se
constitui em uma responsabilidade objetiva, já que não investiga a existência de
uma real parcela de culpa do ente coletivo relativamente ao delito cometido.
Em termos esquemáticos, pode-se dizer que, segundo este modelo, para que
a empresa possa ser responsabilizada por atos de seus empregados, seria necessário
observar fundamentalmente três requisitos. Em primeiro lugar, deve-se verificar,
logicamente, que houve um crime cometido por um empregado da empresa. Em
segundo lugar, a ação deve ocorrer no exercício de sua função, sendo que uma
ação fora deste quadro não poderia ser tomada como sendo de responsabilidade do
ente coletivo. Finalmente, deve haver o propósito de agir em favor da empresa,
sendo irrelevante a existência do propósito de favorecimento de si próprio ou de
terceiros, bem como a questão sobre se tal favorecimento de fato ocorreu
(KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 547 – 548).
Desenhada desta forma, a responsabilidade penal do ente coletivo torna-se
absolutamente dependente da responsabilidade penal da pessoa física que cometeu
o ato, de modo que ele vem a responder penalmente mesmo que o subordinado não
tenha permissão para agir ou ainda tenha contrariado uma proibição expressa nesse
sentido, excusando-se, em contrapartida, quando a pessoa física não se fizer
punível (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543).
Trata-se de modelo que leva em consideração, tanto para a atribuição da
conduta à pessoa jurídica, quanto para apuração de culpabilidade apenas o
indivíduo (conjugação de um modelo de ação individual, com um modelo de
culpabilidade individual). A rigor, seria possível imaginar um modelo de
responsabilidade por fato de terceiro que exigisse uma apuração de culpa própria
da pessoa jurídica, mas isso tornaria a imputação de responsabilidade a pessoas
jurídicas ainda mais difícil do que já é com o modelo de culpa individual, ao exigir
a conjugação de imputação criminal ao indivíduo e apuração adicional de
culpabilidade própria da pessoa jurídica.
presumida, na forma de culpa in eligendo, conforme a Súmula 341 do STF (Cf. a respeito, CAVALIERI
FILHO 2008, 38) e ainda hoje há autores que vêem na responsabilidade por fato de terceiro uma
responsabilidade por fato próprio, neste caso, por uma omissão (CAVALIERI FILHO 2008, 25).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
33
ii) Modelo de imputação penal baseado na teoria orgânica (ou da identificação)
O segundo modelo para atribuição de determinada conduta à coletividade
parte de uma visão em certa medida antropomórfica dos entes coletivos.
A teoria da identificação (ou alter-ego doctrine) entende que os órgãos
diretivos da empresa constituiriam uma espécie de “alter-ego” da mesma,
representando nessa medida o seu “cérebro”. Com isso, a ação e a culpa da
empresa seriam identificados com o agir e a culpabilidade do indivíduo que possui
um poder de direção em seu âmbito (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 549550).
Sendo assim, querendo-se aplicar esta teoria, é importante verificar como o
Direito Civil brasileiro considera a capacidade de agir das pessoas jurídicas no que
se refere à prática de atos lícitos, especialmente negócios jurídicos, uma vez que é
tal capacidade que se considera para a imputação penal neste modelo. Do ponto de
vista do direito civil, o que está em questão é o modo como a pessoa jurídica forma
e exterioriza sua vontade (MULLER PRADO, 2007, p. 154). A formação e
exteriorização da vontade da pessoa jurídica se dão por meio de seus órgãos,
conforme o que estabeleçam os atos constitutivos da pessoa jurídica em questão
(contrato social ou estatuto) (MULLER PRADO, 2007, p. 157).
Segundo este modelo, os órgãos sociais assim constituídos tornam presente
a pessoa jurídica. Com isso se quer dizer que os órgãos não são representantes da
pessoa jurídica, mas – por uma ficção – são a própria pessoa jurídica. Desse modo,
as pessoas físicas que, em conjunto ou isoladamente, constituem órgão social, ao
agir, vinculam a própria pessoa jurídica (MULLER PRADO, 2007, p. 159).
Na medida em que a capacidade negocial é vista como critério para
considerar determinado ilícito como um ato da pessoa jurídica para efeitos penais,
estaríamos diante de uma maior limitação dos atos imputáveis às pessoas jurídicas;
afinal, o ente coletivo responderia apenas por atos praticados por um determinado
e restrito grupo de indivíduos. No entanto, tal limitação é mais frágil do que
parece. Isso porque, para efeitos do Direito privado, os órgãos de formação e
expressão de vontade constituídos por meio do contrato ou estatuto da pessoa
jurídica não esgotam, na realidade, as possibilidades de manifestação de vontade
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
34
juridicamente vinculante.
Em primeiro lugar, existe a possibilidade de delegação de certas atribuições,
o que pode ser feito informalmente, de modo que para estabelecer as competências
no interior de uma dada pessoa jurídica não basta consultar seus documentos
constitutivos. Os balconistas de uma loja, por exemplo, são simples empregados,
mas a eles é delegado o poder de celebrar negócios jurídicos (compra e venda dos
produtos da loja) em nome do patrão. Tal delegação do poder de vincular
juridicamente a pessoa jurídica na maior parte dos casos é necessária para permitir
o próprio exercício de suas atividades: não seria razoável supor que o sócioadministrador, por exemplo, fosse participar pessoalmente de todos os negócios
jurídicos celebrados por uma pessoa jurídica no exercício de uma complexa
atividade econômica.
Por fim, o Direito privado prevê a possibilidade de vinculação da pessoa
jurídica em certos casos nos quais não houve adequada formação e/ou
exteriorização da vontade da pessoa jurídica, com o objetivo de proteger terceiros,
com base na teoria da aparência.
Por basear-se na capacidade negocial, portanto, diferentemente do modelo
anteriormente mencionado, no modelo baseado na teoria da identificação não é a
ação de qualquer empregado no âmbito do ente coletivo que pode vinculá-lo
penalmente.
Todavia, isso
não
significa que esteja fechada a via de
responsabilização do ente coletivo por ato de simples empregados. Tal ocorre
ainda a partir da idéia de que aos órgãos diretivos da empresa incumbe o dever de
impedir que aqueles cometam crimes, o que pode gerar, conforme se verifique no
caso em questão, a sua responsabilidade penal através das figuras da autoria
mediata ou da omissão (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 556).
iii. Modelo de atuação própria da coletividade
Os dois modelos de determinação de responsabilidade apresentados acima,
por serem fundados na atuação individual, trazem consigo uma série de
dificuldades. Segundo Günther Heine, tais modelos teriam utilidade somente no
âmbito de empresas de pequeno porte, pois que se mostrariam insuficientes quando
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
35
se tem em consideração a complexidade atual da organização empresarial, que não
permite a identificação da pessoa física responsável, nem dos representantes
hierarquicamente superiores responsáveis pelo crime (HEINE, 2001, p. 58). Mais
ainda,
seria
possível
identificar
um
efeito
colateral
de
ampliação
da
responsabilidade das pessoas físicas no Direito penal (já que quanto maior a
extensão da responsabilidade do indivíduo, maior a dos entes coletivos), bem como
uma equiparação da responsabilidade individual com a coletiva e uma dificuldade
em se controlar toda a coletividade por meio do controle da ação de um indivíduo
isoladamente (HEINE, 2001, p. 59).
Retomando o paralelo com o direito civil, é interessante notar que a
responsabilidade por fato de outrem do art. 932, III do CC perdeu quase todo seu campo
de aplicação, por ter sido substituída por mecanismos de responsabilidade própria do
empregador ou comitente (CAVALIERI FILHO 2008, 192).
No direito civil, o ilícito próprio funda-se na idéia do risco da atividade, segundo
a qual os efeitos indesejáveis de determinada atividade se atribuem àquele que criou o
risco, o controla e dele tira proveito (CAVALIERI FILHO 2008, p. 191; sobre o
desenvolvimento da teoria do risco e suas justificativas no direito civil, cf. PÜSCHEL,
2005, p. 95-100).
Um exemplo desse tipo de modelo no direito civil é a responsabilidade do
fornecedor, estabelecida pelo CDC. Nesse caso, a lei nem sequer menciona o
empregado, serviçal ou preposto (CDC, arts. 12, 14, 18 e 20). O critério para imposição
de responsabilidade ao fornecedor é a ocorrência de dano causado por produto ou
serviço seu, viciado ou defeituoso, colocado no mercado.
No mesmo sentido, pode-se mencionar o art. 927, parágrafo único do CC, o qual
estabelece uma responsabilidade direta para quem exerce atividade que implique, por
sua natureza, risco para os direitos de outrem.
No direito civil, a passagem da responsabilidade por fato de outrem para uma
responsabilidade própria se deu de modo vinculado ao abandono do requisito da culpa.
No entanto, não nos parece que esse fato exprima uma relação necessária. É possível
imaginar o estabelecimento de uma responsabilidade própria de alguém que exerça certa
atividade – no sentido de uma responsabilidade por atos eventualmente praticados por
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
36
outras pessoas, como empregados, comitentes, etc., mas que não dependa da apuração
de responsabilidade dessas pessoas – baseada na culpa (também própria).
É o que fazem, no campo do direito penal, as teorias que enxergam uma
forma própria de culpa dos entes coletivos em um defeito de organização do
próprio ente coletivo (Organisationsverschulden ou ainda reactive corporate
fault), segundo o qual a responsabilidade da empresa se baseia na criação de uma
atmosfera que possibilita ou exige a prática de crimes em seu seio
(KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 560).
Uma primeira perspectiva a ser mencionada no sentido de um modelo de
imputação baseado na responsabilidade subjetiva da própria empresa encontra-se
na proposta de Klaus Tiedemann, que buscou reformular o tradicional princípio da
culpabilidade, adaptando-o às relações internas das pessoas jurídicas
e
fundamentando sua responsabilidade com base em categorias sociais e jurídicas.
Neste sentido, este autor afirma que seria possível formular, para os casos
de delitos cometidos por entes coletivos, um conceito de culpabilidade diverso do
usado em casos de delitos cometidos por pessoas naturais: se nestes a noção de
culpabilidade está fundamentalmente vinculada a uma “reprovação ética frente ao
agir individual contra a norma” (TIEDEMANN, 1988, p. 1172)
noção deveria ser orientada por “categorias sociais e jurídicas”.
20
19
, naqueles tal
Tratar-se-ia de
fundamentar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas na “culpabilidade por
defeito de organização”. A pessoa jurídica seria responsável pelos fatos realizados
por seus membros sempre que ela e seus órgãos não tenham tomado as medidas de
cuidado ou vigilância necessárias à garantia de uma atividade não-delitiva
(TIEDEMANN, 1988, p. 1172).21 No âmbito da pessoa jurídica (como uma
empresa, por exemplo), todo delito ou infração administrativa dos seus órgãos
19
Tiedemann fala de um “agir pessoal moralmente defeituoso” (“ persönliche sittliche Fehlleistung”).
20
“einer an sozialen und rechtlichen Kategorien ausgerichteten Schuldbegriff”. Cf. (TIEDEMANN,
1988, p. 1172). Neste texto, Tiedemann ainda não deixa claro o que entende por essa expressão.
Posteriormente, no entanto, o autor a clarifica um pouco mais, afirmando que se trata de estender e
interpretar o conceito de culpabilidade “no sentido de uma responsabilidade social”. Cf. TIEDEMANN,
1993, p. 233.
21
Neste mesmo sentido, Schroth afirma que a culpabilidade da pessoa jurídica não deve ser vista como
sendo puramente vinculada ao órgão autor do delito; pelo contrário, ela deve ser tomada como
culpabilidade funcional (funktionale Organschuld), isto é, como fruto da imputação de um
comportamento culposo do órgão à pessoa jurídica que ele representa. Tratar-se-ia de uma culpa por
defeitos de organização do ente coletivo. Cf. SCHROTH, 1993, p. 203-204.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
37
representantes surgiria como um erro do próprio ente coletivo, a não ser que se
esteja frente a um caso de “excesso de representação”.
22
Nestes termos, o ato
individual deveria ser tomado como ato próprio do ente coletivo, na medida em
que este tenha se omitido em tomar medidas de prevenção necessárias ao
desenvolvimento lícito de suas atividades.
A responsabilização não se dá por conta do fato individual, cometido pela
pessoa natural, mas sim por conta da falta de cuidado do ente coletivo, que em um
momento anterior poderia ter evitado a ocorrência do delito (TIEDEMANN, 1988,
p. 1173). A aferição de culpabilidade referente ao ato praticado pela pessoa natural
seria, assim, irrelevante na medida em que a responsabilidade pelo ato se baseia
num comportamento reprovável anteriormente ocorrido (TIEDEMANN, 1988, p.
1173). Assim, seria a violação, por omissão, de um dever de vigilância
(Aufsichtspflichtverletzung)23 que fundamentaria a culpabilidade do ente coletivo,
com base em um defeito de organização a ele imputável.
Postos nestes termos, o modelo de Tiedemann foi uma das primeiras
tentativas profícuas de desenvolvimento e re-elaboração da categoria de
culpabilidade, para aplicá-la às pessoas jurídicas.
Ainda que muitos de seus critérios tenham sido posteriormente criticados
(GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 156-159), fato é que muitos autores 24 seguiram
Tiedemann no intento de buscar novas formulações de categorias dogmáticas e
pensar critérios de imputação próprios para a pessoa jurídica.
Mencione-se, a título de exemplo, o modelo de culpabilidade pelo injusto de
sistema (Systemsunrecht) desenvolvido por Ernst-Joachim Lampe (LAMPE, 1994),
considerado uma das tentativas mais aprofundadas e conseqüentes de superar os
pressupostos individualistas da dogmática penal tradicional (BACIGALUPO,
22
Com este termo se designa todo ato ou conjunto de atos que, embora tomado dentro do âmbito da
pessoa jurídica, constitua abuso funcional por parte da pessoa natural que dela faz parte. Neste caso,
logicamente, a pessoa jurídica não deveria arcar com a responsabilidade pelo delito cometido, pois a ela
não pode ser imputado um dever de evitar comportamentos que excedam as funções internamente
distribuídas para persecução de sua atividade. Apontamentos críticos sobre os limites estabelecidos pela
idéia de “excesso de representação” podem ser encontrados em SCHÜNEMANN, 1994, p. 284-285.
23
Tiedemann engloba neste conceito “deveres e medidas de cuidado, de controle e de organização,
exigíveis na estruturação de uma pessoa jurídica que pretende exercer sua atividade licitamente”.
24
É o caso, por exemplo, daqueles propostos por GÓMES JARA DÍEZ, 2006; SCHROTH, 1993; e
EHRHARDT, 1994.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
38
1998, p. 192 ss.). Para ele, boa parte da criminalidade empresarial teria, ademais
de uma dimensão individual, uma dimensão sistêmica. Injustos de dimensão
sistêmica seriam todos aqueles comportamentos que lesionam bens jurídicos com
base em certa filosofia da empresa25 ou devido a uma organização deficiente
(LAMPE, 1994, p. 709). Diante deste quadro, a responsabilidade penal individual
seria adequada apenas quando o ilícito encontra expressão no comportamento
lesivo de um de seus membros. Já a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por
sua vez, encontraria seu objeto ideal nos casos em que a própria estrutura do ente
coletivo favorece seus membros no cometimento de delitos. 26 Para tanto, existiriam
quatro causas fundamentais que constituiriam um injusto de sistema de
responsabilidade da empresa: a) o potencial perigo criado pela empresa para
realizar uma dada prestação; b) a estrutura deficitária de sua organização
(defiziente Organisationsstruktur), que neutralizaria erroneamente a periculosidade
deste potencial; c) uma filosofia empresarial “criminosa”, que ofereceria aos
membros da organização a tentação de levar a cabo ações delitivas; d) a erosão de
responsabilidade interna à empresa, nos casos em que esta não possui regras claras
e eficientes de responsabilização de seus membros em caso de desvios funcionais
(LAMPE, 1994, p. 709).
Modelos desse tipo fundamentam a capacidade de produção de injusto não
mais em termos de capacidade de ação, mas em termos de capacidade de
organização. Eles têm vantagens em relação ao modelo de responsabilidade por
fato de outrem, pois evitam uma responsabilização objetiva do ente coletivo, que
deixa de ser responsabilizável em casos em que sua estrutura é absolutamente
idônea e não favorece qualquer comportamento ilícito. Além disso, têm um
potencial preventivo interessante, pois descentralizam o controle e a gestão de
riscos e estimulam a adoção de culturas empresariais que não contribuam para a
prática de ilícitos.
25
Por “filosofia da empresa“ entende Lampe a totalidade da orientação e da concepção de valores que
direcionam a empresa, principalmente em relação a sua posição em seu contexto social, econômico e
ecológico. Cf. LAMPE, 1994, p. 708.
26
Exemplos disso seriam casos em que a organização da empresa não se preocupa com a criação de
normas de internas de controle, ou mesmo quando não desenvolve regras de responsabilização individual
por atos de seus empregados. Nestes casos, quando surge uma lesão de bem-jurídico praticada com base
nesta organização deficiente da empresa, produz-se um injusto sistêmico, cuja responsabilidade deve ser
arcada pelo ente coletivo, e não pelos seus membros. Neste sentido: LAMPE, 1994, p. 727 e seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
39
É preciso mencionar também, o surgimento, nesse contexto, de um dabate
inovador no campo da dogmática penal acerca do papel de dos programas de
compliance27 na prevenção da criminalidade econômica e sua consideração pela
dogmática penal como uma forma de se aferir elementos da organização ou da cultura
da empresa. 28
A concretização dessa proteção seria realizada por procedimentos desenvolvidos
em cada programa, determinados de acordo com a atividade e o tamanho da empresa em
questão. Por exemplo, procedimentos para a descoberta de irregularidades instaurados a
partir de “denúncias anônimas” por parte dos empregados, bem como diferentes formas
de controle interno e externo. Nesse ponto vale ainda mencionar a existência de
mecanismos sancionatórios ou medidas disciplinares no interior das empresas como
modo de efetivar o cumprimento das regras estabelecidas (SIEBER, 2008, p. 456).
Os programas de compliance constituiriam em si importantes vias de prevenção
de crimes no âmbito das empresas e uma forma de estimular sua adoção seria
justamente considerar medidas adotadas nesse sentido na indicação da culpa da pessoa
jurídica. Esses programas representariam a “mentalidade” da empresa e forneceriam
indícios sobre os seus esforços em criar uma cultura corporativa que não dê margens a
condutas criminosas. Logo, mostram-se especialmente relevantes quando se parte de um
modelo de responsabilidade originária da empresa.
Modelos desse tipo, ao levarem em consideração para a configuração do delito
não apenas a conduta da pessoa física, mas também a própria forma de organização da
empresa, inclinada ou não a um comportamento lícito, oferecem vantagens em termos
preventivos, já que se desvia de uma responsabilização objetiva, levando em conta
também os aspectos específicos de cada empresa. Os modelos de responsabilidade
27
Com a denominação “programas de compliance” tem-se em mente o conjunto amplo de mecanismos
aplicados no seio das empresas, especialmente nos países de tradição anglo-saxã (PAMPEL, 2007, p.
1636), que visem o estabelecimento de seus objetivos e a reafirmação de seus valores, assim como a
concretização dos mesmos, no âmbito da condução de suas atividades. Abarca uma infinidade de
mecanismos aplicados pelas empresas que são conhecidos por denominações diversas (tais como business
ethics e corporate governance) e têm em comum o fato de definirem determinados objetivos e
procedimentos da direção empresarial que dizem respeito fundamentalmente à prevenção de crimes no
seio das empresas, tais como corrupção, lavagem de dinheiro, etc., o que conduz à proteção de diversos
valores (que variam conforme a empresa e resultam em uma enorme diferença de conteúdo de um
programa para outro), numa extensão que chega a ser inclusive maior que a inscrita no âmbito de
proteção das normas penais (SIEBER, 2008, p. 451, 454-455).
28
É preciso notar que na tradição americana de aplicação do instituto esse elemento já era considerado –
consta, por exemplo, do Sentencing Guidelines. A novidade é sua incorporação às construções
dogmáticas, especialmente por autores alemães.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
40
derivada, por sua vez, não geram estímulo algum para que a empresa aperfeiçoe sua
estrutura organizacional e crie mecanismos internos de controle de riscos. Em outras
palavras: sendo a adoção de cultura corporativa ética vantajosa para as empresas, já que
consideradas na apuração de sua possível responsabilidade criminal, o seu incremento
será estimulado, o que poderia gerar um efeito preventivo global superior à aplicação do
direito penal em quaisquer situações indistintamente. Entretanto, se à primeira vista
modelos desse tipo pareçam fazer mais sentido para lidar com a responsabilidade no
âmbito da empresa, não se deve desconsiderar os desafios e dificuldades que ele enseja,
como aqueles apontados por Arlen, a que nos referimos na parte I deste texto (ARLEN,
1994).
II.2. Tipos de sanções impostas a pessoas jurídicas
A discussão em torno das formas de sanções aplicadas e aplicáveis aos entes
coletivos foi, durante muitos anos, limitada29 e passou a ganhar mais consistência
apenas recentemente, sendo contudo bastante incipiente no Brasil. E isso porque,
no âmbito dos países de tradição romano-germânica, a polêmica sobre a aceitação
mesma da responsabilidade penal da pessoa jurídica consumiu de modo majoritário
os esforços teóricos – seja no plano da política criminal, seja no campo da
dogmática penal.
O fato de ser impensável a aplicação de pena de prisão para um ente
coletivo possibilita imaginar novos instrumentos para que Direito penal atinja seus
objetivos. Neste sentido, as legislações de países que adotaram o instituto elencam
possibilidades que vão desde as sanções pecuniárias, mais tradicionais, a formas de
curatela, vigilância, imposição de programas de compliance etc.. Mas ainda há um
longo caminho a se percorrer, tanto no que diz respeito aos efeitos alcançados com
as distintas possibilidades (vantagens e desvantagens, impacto econômico e social
e fins a serem perseguidos), como no que se refere aos parâmetros e critérios para
29
A exceção a esse quadro é a regulamentação do tema nos EUA, que, por adotar o instituto há muito
mais tempo, desenvolveu o U.S. Sentencing Guidelines Manual, que impõe, em âmbito federal, uma série
de critérios a serem observados na determinação e quantificação da pena à pessoa jurídica. As principais
sanções que podem ser impostas são multa, reparação dos danos causados às vítimas e probation.
Expomos mais detalhadamente esse sistema no Anexo 8 do relatório de pesquisa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
41
aplicação e dosimetria das sanções. Trata-se, certamente, de um campo totalmente
novo aos operadores do Direito penal, na medida em que o novo ator é movido por
outros estímulos, enfeixa outros interesses sociais e a consideração de todos eles
muitas vezes requererá o olhar mais especializado do aplicador da lei.
Chamamos atenção para a necessidade de aprofundar a discussão sobre os
tipos de sanção, sob pena de que as estratégias de responsabilização que vêm sendo
adotadas possam acarretar efeitos indesejáveis. No âmbito deste texto indicaremos,
de modo não exaustivo, algumas das sanções que vêm sendo utilizadas para tratar
deste tipo de criminalidade e teceremos breves comentários críticos a seu respeito.
a) Sanções pecuniárias
Essa é a forma mais tradicional de sanção pensada para pessoas jurídicas,
por se pressupor que ela neutralizaria a busca de lucro, base da maioria dos crimes
praticados no âmbito de entes coletivos. Seu potencial preventivo dependeria do
fato de a sanção patrimonial imposta superar a vantagem derivada de uma violação
à lei, para que a sanção então torne o cometimento do ilícito uma prática nãocompensadora.30 Se a imposição de sanção se dirigisse apenas ao indivíduo que
agiu no âmbito do ente coletivo, este efeito sobre o cálculo custo-benefício do
cometimento do ilícito não se verificaria. A sanção pecuniária imposta
exclusivamente sobre pessoas naturais é ineficaz na medida em que tais pessoas
raramente têm patrimônio pessoal suficiente para arcar seja com a multa, seja com
a reparação do dano, ao passo que a pessoa jurídica não chega a ser afetada. Um
ente coletivo que não precisa levar em conta a imposição de sanções contra si
mesmo não teria interesse algum em motivar seus membros a permanecer dentro
da legalidade quando da prática de suas atividades. (EHRHARDT, 1994, p. 165166). Supõe-se, ainda, que a imposição deste tipo de sanção endereçada à própria
pessoa jurídica agiria sobre todos aqueles que dela fazem parte: cada empregado
passaria a levar em conta o fato de que uma imposição de uma forte multa, com
base no cometimento de um ato ilícito praticado no âmbito da organização, poderia
em última instância colocar em risco a própria existência da organização e com
30
Tal argumento pode ser encontrado fundamentalmente na chamada Análise Econômica do Direito, de
matriz norte-americana. Especificamente sobre as relações entre cometimento de ilícitos penais e a
análise custo benefício feita pelas empresas, ver POSNER, 1986, p. 205 e seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
42
isso os postos de trabalho por ela oferecidos. Deste modo, seria incentivado um
ambiente de vigilância mútua, em que o indivíduo desenvolveria um interesse
maior em desencorajar seus companheiros de trabalho a cometerem práticas
ilícitas, o que resultaria em um sensível ganho no campo da prevenção destas
infrações. A mera imposição de multa, entretanto, pode trazer consigo dois
principais problemas.
Em primeiro lugar, aponta-se que ela pode resultar numa “pecuniarização”
das condutas, o que seria socialmente indesejável. Se, por um lado, fazer com que
o indivíduo opere o cálculo custo-benefício quando da decisão sobre praticar o
delito pode trazer ganhos preventivos (a idéia de que a infração pode “não
compensar”), por outro, este mesmo cálculo pode conduzir a uma conclusão
perversa: a de que o risco derivado da decisão pelo cometimento do delito pode,
em muitos casos, não ser relevante. Este risco de “pecuniarização” da reprovação
penal, no sentido de que esta se torna refém do cálculo custo-benefício e, portanto,
apenas passa a ser preventiva quando o custo for muito alto, acabaria, na prática,
por permitir um marco de comportamentos onde o crime, efetivamente,
“compensa”. Tendo em vista estas falhas, muitos autores afirmam que apenas a
imposição de sanções pecuniárias não pode constituir um mecanismo apropriado
de combate à criminalidade coletiva.
Outro problema da imposição de multas decorre dos casos em que elas são
excessivamente altas. Ao se abordar o problema de crimes praticados por pessoa
jurídica da esfera privada, não devemos ignorar uma questão preliminar, que deve
ser levantada: no caso concreto, trata-se de uma empresa constituída por meio de
pessoas jurídicas com histórico de desempenho de operações lícitas, ou de uma
empresa “de fachada”? Essa informação é extremamente importante, pois, se
ambos os casos se manifestam na realidade, é preciso considerar qual o impacto
desejado da sanção, tendo em perspectiva os efeitos que podem surtir sobre cada
um dos casos. Afinal, a sanção deve ser pensada de modo que o impacto desejado
seja obtido sem prejuízo à preservação de demais interesses juridicamente
relevantes, como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de seus
reflexos positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja
dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Apenas em se tratando de
empresa puramente “de fachada”, esta questão pode ser desprezada, já que não
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
43
sobrariam atividades lícitas a serem preservadas. No caso de pessoas jurídicas que
desempenham atividade lícita, custeada e remunerada de forma independente do
resultado auferido com a prática do ato ilícito, os efeitos da sanção devem se
limitar ao escopo do impacto desejado, e só a tal escopo. Seria indesejável que as
sanções produzissem efeitos negativos sobre o desempenho das atividades lícitas,
hipótese em que a sanção ultrapassaria seu fim e geraria efeitos negativos de difícil
mensuração para a sociedade como um todo. Em suma, é necessário perceber que a
aplicação de uma multa excessivamente alta pode inviabilizar a atividade lícita do
agente e, conseqüentemente, prejudicar outros interesses.
b) Extinção ou interdição temporária da empresa
Uma forma de sanção pensada em termos repressivos consiste no
próprio fechamento da empresa (DANNECKER, 2001, p. 290; SCHÜNEMANN,
1994, p. 290). Este seria o caso extremo em que a pessoa jurídica se mostra
incapaz de lidar com seus próprios defeitos organizativos, bem como de reformálos (HEINE, 1995, p. 302-303).
Também aqui é fundamental a distinção entre empresas marcadas por uma
“filosofia criminógena” e empresas no âmbito de cujas atividades ocorre prática
eventual de ilícitos penais.
31
31
O Projeto de Lei n. 1.142/07, hoje tramitando no Congresso, parece ter
isso em mente, pois distingue entre pessoas jurídicas cuja atividade exclusiva ou
predominante está associada a atos de corrupção da Administração Pública e
pessoas jurídicas que desempenham atividades lícitas, mas que praticam atos de
corrupção em caráter eventual. Quanto às primeiras, supõe-se tratar de casos em
que os agentes da empresa são praticantes contumazes de crimes associados à
atividade da empresa. São casos em que geralmente as atividades lícitas
eventualmente desenvolvidas não chegam a garantir superávit. Nelas, a atividade
ilícita responde pela produção de superávit, daí a contumácia. Quanto às segundas,
supõe-se que a atividade lícita é desenvolvida e custeada e remunerada de forma
independente do resultado auferido com a prática do ato ilícito, sendo que o
superávit geral deve independer da prática do ilícito.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
44
A aplicação de tal sanção parece especialmente grave e danosa a empresas
que desempenham atividade lícita que garante sua viabilidade econômicofinanceira independentemente da prática dos ilícitos. É indesejável que as sanções
produzam efeitos negativos sobre o desempenho das atividades lícitas, hipótese em
que a sanção ultrapassaria seu fim e geraria efeitos negativos de difícil mensuração
para a sociedade como um todo.
Sanções como a extinção ou interdição temporária podem produzir efeitos
danosos à sociedade como um todo. Além de implicar o afastamento de um ente
produtivo da economia do país, com prejuízo para a comunidade de trabalhadores,
consumidores e credores, as sanções podem ainda impedir que a pessoa jurídica
produza receita necessária para reparar o próprio dano derivado do crime.
O fechamento da empresa poderia atingir a liberdade de profissão e de
exercício de atividade econômica e, portanto, apenas pode ser aceita sob a
observância de rígidos pressupostos (DANNECKER, 2001, p. 125). Ainda, não se
podem esquecer os possíveis efeitos colaterais que eventualmente podem derivar
da imposição desta medida drástica32. Tendo em vista estas dificuldades, afirma-se
que esta forma de sanção apenas deve ter lugar quando nenhuma outra puder
alcançar o mesmo efeito retributivo e preventivo (DANNECKER, 2001, p. 125).
Contudo, os próprios critérios para se determinar quando se trata de uma
empresa criada exclusivamente com intuitos ilícitos são algo que merece atenção
especial, sob pena de total ou parcial inefetividade regulatória. 33 Não faria sentido
procurar formular normas supostamente capazes de definir a priori quais entidades
32
Como exemplo pode ser citado o complexo de insolvências que derivariam do fechamento de uma
empresa. A questão inevitável seria: quem pagaria pelos débitos e contratos firmados, agora que a
empresa não mais existe e, portanto, não possui mais um fluxo ativo de caixa? Mais ainda, também a
demissão em massa decorrente de tal medida deve ser considerada com especial atenção.
33
A exemplo do que ocorre no art. 4º, § 2º do Projeto de Lei n. 1.142/07, a distinção entre os dois tipos de
pessoa jurídica pode ser formulada de modo questionável, por diversos motivos. Por exemplo, o referido
dispositivo condiciona a aplicação da sanção à verificação de que “os fundadores da pessoa jurídica (...)
tenham tido a intenção (...) de por meio dela, praticar os crimes previstos na lei ou quando a prática
reiterada de tais crimes demonstre que a pessoa jurídica está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos
seus membros, quer por quem exerça a respectiva administração.” Do modo como feita esta redação, a
sanção de extinção não poderia ser aplicada em nenhuma das hipóteses a seguir: (a) caso os fundadores
não tenham tido a intenção de praticar os crimes previstos na lei por meio da pessoa jurídica (mas, por
hipótese, os gestores ou sócios adquirentes das participações dos fundadores tenham tido tal intenção); (b)
caso não seja possível provar a intenção dos fundadores; (c) caso o ato de corrupção não tenha sido objeto
de prática reiterada. Assim, supondo que a extinção empresa seja desejável em alguns casos, é possível
que os critérios de distinção entre as finalidades da empresa possam complicar a aplicação deste tipo de
sanção. Afinal, não é fácil comprovar a intenção dos fundadores da pessoa jurídica quanto a um propósito
de constituir ou utilizar-se da pessoa jurídica para praticar atos de corrupção.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
45
são “exclusiva ou predominantemente” dedicadas à prática de ilícitos e quais o são
apenas secundariamente. Para cada empresa considerada, seria necessário
visualizar qual é o percentual de receita associado a cada tipo de atividade
desempenhada, lícita ou ilícita. Mas qualquer regra que pretendesse fixar algum
critério para mensurar isto seria arbitrária e imprecisa. Para evitar este problema, o
modo mais confiável para se aferir se há algo que justifique a continuidade da
empresa por meio de determinada pessoa jurídica seria impor sanções que
tornassem proibitivo o custo do cometimento do ilícito penal, sem extinção da
pessoa jurídica, o que faz com que a empresa prove por si própria se é capaz de
continuar no mercado desempenhando apenas atividades lícitas. Viabilidade
econômico-financeira é um problema que interessa aos sócios, credores e
empregados das empresas e deve ser abordado pelo direito falimentar, não pelo
direito penal. Se a empresa que sofre a sanção penal é economicamente inviável
sem o cometimento de ilícitos penais, ela deverá sair do mercado como qualquer
outra empresa economicamente inviável. Não é desejável que a sociedade arque
com custos adicionais dirigidos a pessoas jurídicas agentes de ilícitos penais,
destinados a monitorar se tais entidades são ou não viáveis, ausentes as práticas de
ilícitos penais.
c) Proibição de contratar com o Poder Público
Uma modalidade interessante de restrições de direitos é a proibição de
contratar com o Poder Público. Essa modalidade é largamente praticada no Brasil,
e atinge não apenas as empresas que tipicamente participam de licitações públicas
e celebram contratos administrativos com o Poder Público, mas qualquer empresa
que pleiteia crédito oferecido por bancos estatais ou por bancos privados que
repassam recursos estatais. Com prazo determinado, geralmente correspondente a
dois anos, essa sanção é capaz de atingir um dos principais interesses da pessoa
jurídica, o patrimonial, sem, contudo, incorrer nas questões problemáticas
suscitadas no caso da pena de multa. Apesar do caráter patrimonial da sanção, não
é possível quantificar com exatidão os prejuízos causados pela sua aplicação.
Conseqüência disso é o fato de que o cálculo custo/benefício no cometimento do
crime não seria tão simples e direto como no caso da multa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
46
d) Publicação da sentença condenatória
A publicização da condenação judicial sofrida pela pessoa jurídica é uma
modalidade de sanção que vem sendo utilizada em face de pessoas jurídicas
condenadas34. Trata-se de uma previsão em princípio interessante, pois altera a
lógica do paradigma punitivo vigente, reforçando a publicidade da imputação de
responsabilidade como uma resposta em si relevante do sistema jurídico para a
sociedade.
Principalmente sobre as empresas cujas ações são negociadas em bolsas de
valores35, esta medida parece ser dotada de forte efeito especial-preventivo,
desencorajando-as
de
cometerem
delitos
no
âmbito
de
sua
atividade
(DANNECKER, 2001, p. 127). Assim, transferem-se para o mercado as decisões
sobre eventuais conseqüências negativas da imputação de responsabilidade,
impondo também à empresa condenada a demonstração da cessação das práticas
ilícitas, de sua confiabilidade, solidez, etc..
e) Sanções de fundamento preventivo
Ao lado das medidas direcionadas estritamente à repressão dos delitos
cometidos no âmbito das pessoas jurídicas, são pensadas também formas de sanção
cujo objetivo é tentar garantir diretamente – e não como possível efeito da via
repressiva – que, no futuro, nenhuma violação seja cometida (DANNECKER,
2001, p. 124; HEINE, 1995, p. 304; EHRHARDT, 1994, p. 168).
Inicialmente, o cumprimento de certas instruções pode ser imposto à pessoa
jurídica, organizando setores de seu funcionamento, de modo a evitar que novos
delitos venham a ser cometidos em seu âmbito de atividade. Esta medida pode vir
acompanhada de proibições específicas para exercer determinada prática, quando
esta está claramente contaminada por um defeito organizativo que incentiva o
cometimento de infrações (SCHÜNEMANN, 2008, p. 441). Também se propõe a
imposição de criação de Compliance-Programs, com o objetivo de fomentar na
34
Prevista, por exemplo, no Título 7 do Código Penal francês. Cf. SCHÜNEMANN, 2008, p. 441.
35
Isso porque a boa reputação de uma empresa é essencial para a sua valorização no mercado de bolsas.
Um exemplo claro e atual pode ser visto no caso Siemens, onde o escândalo sobre corrupção interna
abalou a reputação da empresa e causou uma forte queda nos valores de suas ações.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
47
cultura interna à pessoa jurídica um ambiente de ética coletiva e de respeito pela
legalidade de sua atividade (HEINE, 1995, p. 304). 36 O objetivo principal deste
conjunto de medidas seria “combater e superar as fontes delituosas presentes na
estruturação de uma determinada pessoa jurídica”.
37
Há ainda quem proponha como sanção a submissão da pessoa jurídica a
regimes temporários de intervenção ou curatela (EHRHARDT, 1994, p. 128;
SCHÜNEMANN, 2008, p. 446-447), exercida por um órgão estatal ou por uma
agremiação especializada. Tal curatela, primeiramente, teria como vantagem frente
ao simples fechamento da empresa o fato de que, por meio dela, estariam
garantidos os empregos exercidos na organização, as atividades por ela exercidas,
bem
como
as
prestações
referentes
aos
contratos
por
ela
firmados
(SCHÜNEMANN, 1979, p. 129 e seguintes). Esta forma de intervenção temporária
teria como objetivo precípuo superar as falhas e os defeitos de organização e de
gestão que, eventualmente, podem ter levado a pessoa jurídica a se tornar um
ambiente propício à prática delituosa (SCHUNEMANN, 2004, p. 446). A
expectativa dos autores que sustentam a proposta é a de que problemas políticocriminais que a simples imposição de uma multa não pode superar encontrariam,
então, um tratamento apropriado (SCHÜNEMANN, 2008, p. 446). Além disso,
sustentam que tal forma de sanção seria dotada não apenas de uma, mas sim de
duas diferentes modalidades de efeitos preventivos: por um lado, o efeito especialpreventivo, que faz com que a pessoa jurídica em questão seja de tal forma reestruturada que se torne mais difícil de ocorrerem delitos em seu âmbito; por outro
lado, ainda, tal curatela poderia ser publicizada 38 e assim ter o efeito de dissuadir
outras empresas, por temerem que sua reputação seja afetada (prevenção geral).
Com vistas a influenciar a regularidade da atividade da pessoa jurídica que já
cometeu práticas delitivas, propõe-se a realização de auditorias e a submissão de
seus produtos a testes específicos de qualidade, principalmente nos casos de
36
Esta tendência seria verificável, por exemplo, nos Estados Unidos. Analisamos com maior atenção a
importância dos Programas de Compliance no relatório final desta pesquisa.
37
Para tanto, cita-se a possibilidade intervenção de especialistas, cujo aconselhamento e cujas diretrizes
podem, por um lado, identificar na estrutura da organização falhas e dificuldades internas de comunicação
e informação. EHRHADT, 1994, p. 129 e 169.
38
Uma sugestão citada por Schünemann consiste na marcação, com a inscrição “sob curatela”, dos
produtos da empresa sancionada, o que deveria, por si, atingir fortemente a imagem do ente coletivo
frente a seus consumidores. Cf. SCHÜNEMANN, 2008, p. 447.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
48
pessoas jurídicas responsabilizadas por produção ou comercialização de produtos
defeituosos (DANNECKER, 2001, p. 128).
A sanção de intervenção (ou submissão a regime de curatela estatal), no
entanto, apresenta uma série de problemas, que devem ser considerados, sob pena
de resultar contraproducente. Como se sabe, a intervenção estatal no domínio de
empresas privadas ocorre apenas em situações bastante excepcionais: o Banco
Central do Brasil pode intervir em instituições financeiras em casos de alto risco
de liquidez e solvência da instituição. Do mesmo modo, pode a SUSEP intervir em
seguradoras no Brasil, sob condições análogas. Tal intervenção tem sua
justificativa numa circunstância que é absolutamente peculiar à natureza da
atividade das empresas a ela sujeitas, que é o risco sistêmico ocasionado por sua
insolvência e o fato de já seu funcionamento regular estar sujeito à regulação e
permanente fiscalização das entidades competentes para a eventual intervenção.
Além disso, os agentes do Banco Central e da SUSEP em tese encontram-se
suficientemente familiarizados com o objeto exercido pelas instituições nas quais
venham a atuar como interventores, o que os habilita para o desempenho de tal
função. Tradicionalmente, a intervenção só ocorre realmente em situações préfalimentares.
Note-se que nenhuma das circunstâncias que justificam a intervenção de
agentes estatais em instituições reguladas aplica-se ou pode ser estendida ao caso
de ilícito cometido no âmbito de empresas. Há razões para se questionar propostas
desse tipo: (i) a sociedade como um todo arcaria com os custos da intervenção
numa empresa, apenas pelo fato de que esta cometeu ilícitos associados ao
desempenho de sua atividade; (ii) nem sempre se pode atender à expectativa de que
um interventor estatal possa ter expertise para compreender com a profundidade
necessária quais são os fatores que garantem que a atividade das empresas de todos
e quaisquer ramos e portes sejam economicamente viáveis, expurgada a prática de
ilícitos; (iii) a intervenção não afasta o risco de “captura”, que é o alinhamento do
interventor ao agente do ilícito; (iv) a atividade do interventor é dificilmente
monitorável; (v) atividade empresarial econômica lida fundamentalmente com
riscos que os sócios, em última instância, estão dispostos a assumir; portanto, seria
problemático que qualquer decisão de gestão possa ser influenciada por um agente
externo, rompendo com a relação agente-principal entre sócios e gestores; e (vi) é
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
49
provável que a exposição de organizações a agentes externos encontre resistências
internas (por parte do corpo funcional) consideráveis, o que faria com que fosse
grande a chance de a intervenção ser inócua ou ocasionar o fenômeno de captura,
já mencionado.
Diante de tudo isso, fica claro que o problema da escolha do instrumento
apto a lidar com os ilícitos praticados no âmbito das pessoas jurídicas não está
encerrado. Se a pessoa jurídica deve ser responsabilizada, não está claro de que
modo e por quais sanções. Como discutido, há uma série de possíveis sanções
teoricamente imponíveis às pessoas jurídicas que muito provavelmente imporiam à
sociedade um custo social superior ao potencial benefício. Incluem-se aí aquelas
sanções que implicarem intervenção estatal na pessoa jurídica, suspensão ou
extinção de suas atividades e multas excessivamente elevadas.
Entre as várias modalidades de sanções expostas, as que parecem apresentar
maior potencial de ganhos sociais dizem respeito à adoção de regras de compliance
e publicização da condenação judicial. Como se pode perceber, estas modalidades
de sanção, quando pensadas para serem impostas diretamente às pessoas jurídicas,
fazem com que a esfera penal e outras esferas de regulação (como a administrativa
e a civil) se aproximem consideravelmente. Por isso, a discussão acerca das
sanções impostas às pessoas jurídicas não vincula o modelo de responsabilização à
esfera penal. Dessa forma, a discussão sobre as sanções aqui esboçada deve se dar
sob o pano de fundo das alternativas regulatórias a esse sistema (i.e. as
responsabilidades administrativa e civil).
II.3. Tranformação e união de pessoas jurídicas
O fato de as pessoas jurídicas não terem uma base biológica como as pessoas
físicas faz com que tenham certas peculiaridades, as quais precisam ser consideradas
quando da regulação de sua responsabilidade, seja ela penal, administrativa ou civil.
Diferentemente dos indivíduos (pessoas físicas) as pessoas jurídicas podem
transformar-se, passando por modificações do seu contrato social ou estatuto, bem como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
50
cindir-se, fundir-se, incorporar ou ser incorporadas por outras. Trata-se de situações em
que a identidade da pessoa jurídica original é afetada.
Nos casos de responsabilidade civil, tendo em vista que a sanção consiste em um
débito (o qual é em princípio transferível), a possibilidade de adaptação da
responsabilidade às transformações da pessoa jurídica é relativamente simples do ponto
de vista jurídico-dogmático. Já no âmbito da responsabilidade penal, no entanto, o
princípio de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado – talhado para lidar
com indivíduos – tende a constituir um obstáculo jurídico-dogmático para tratar com as
pessoas jurídicas nessas situações.
Diante disso, existe o risco de que a aplicação da lei penal à pessoa jurídica seja
elidida – inclusive por ma fé – diante do desaparecimento da pessoa jurídica no âmbito
da qual se praticou o ato delituoso ou da sua transformação em pessoa diversa – o que
ocorre em casos de incorporação, fusão, cisão e transformação de tipo societário. A
ocorrência de um desses fenômenos, tão comuns na prática empresarial, impõe sérias
dificuldades para a aplicação do regime de responsabilização por atos praticados no
cenário anterior. Devem, a nosso ver, ser levados em consideração quando da
formulação da regulamentação sobre responsabilização, sob pena de torná-lo inefetivo.
Além das possibilidades de transformação da pessoa jurídica, é preciso levar em
conta ainda que pessoas jurídicas podem unir-se por vários meios para criar
organizações mais complexas, não personificadas.
Também essa situação é relevante do ponto de vista da imputação penal. Em
primeiro lugar, trata-se de fenômenos associativos que, sem configurar pessoa jurídica
autônoma, constituem organizações relevantes do ponto de vista da política criminal,
tanto por constituir ambiente no qual, justamente, tendem a surgir as situações para as
quais o direito penal tradicional – focado na responsabilidade individual – se mostra
inadequado, como também por constituir uma possível forma de evasão da incidência
da responsabilidade penal por parte das pessoas jurídicas.
Especialmente se o foco da regulação penal forem os aspectos viciados das
organizações, a eficácia da intervenção penal pode depender de sua aplicação ao
conjunto de pessoas jurídicas que atuam unidas.
Além disso, tendo em vista que as pessoas jurídicas podem ser criadas
livremente e que o poder de controle de uma pessoa jurídica pode em realidade ser
detido por outra pessoa jurídica, existe a possibilidade de utilização de pessoas jurídicas
controladas como meio de praticar ilícitos em favor da sociedade controladora. Existe
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
51
mesmo a possibilidade de criação de pessoas jurídicas controladas especificamente para
esse fim.
Diante disso, é necessário que a lei penal leve em conta os fenômenos
associativos não personificados (grupos societários e consórcios) na regulação dos
ilícitos das pessoas jurídicas.
II.4. Algumas questões processuais penais relativas à figuração da pessoa
jurídica no pólo passivo de ações penais
A despeito da regulamentação constitucional, ao editar Lei de Crimes
Ambientais o legislador infraconstitucional deixou de estabelecer mecanismos e
procedimentos adequados para a aplicação da responsabilização penal da pessoa
jurídica.39 Alguns dos problemas decorrentes dessa lacuna legislativa foram
identificados na análise das decisões judiciais dos Tribunais Regionais Federais e
Superior Tribunal de Justiça. Como vimos, parte dos casos que chegam aos Tribunais
envolve justamente questionamentos sobre a aplicabilidade das regras processuais
tradicionais e pouquíssimos logram chegar à análise de mérito. Tal dado indica a
urgência de uma reflexão também no campo processual penal, sob pena de tornarem
inócuos todos os esforços de se construir um sistema de responsabilização adequado e
eficiente.
Embora a aplicação do instituto possa se dar imediatamente a partir das regras
processuais penais vigentes, complementadas subsidiariamente pelo Código de Processo
Civil, considerando o permissivo do artigo 3º do Código de Processo Penal, uma série
de questões ficam ainda em aberto, as quais passaremos a mencionar apenas
exemplificativamente.
Os problemas relativos à ação penal em face da pessoa jurídica começam já na
citação, na definição de quem deve receber em seu nome o mandado de citação,
estendendo-se à falta de previsão na legislação penal sobre a representação da pessoa
jurídica durante a persecução penal. Em ambos os casos, é possível encontrar soluções
39
No que diz respeito à matéria processual, a regulamentação trazida pela Lei n.º 9.605/98 resume-se a
três artigos, quais sejam: art. 26 – Trata-se da ação penal, dispondo que sempre será pública
incondicionada, em relação às infrações elencadas no próprio texto; art. 27 – Aborda a aplicação da Lei
n.º 9.099/95, sempre que os crimes ambientais sejam de menor potencial ofensivo, relativamente à
conciliação cível e à transação penal; art. 28- disciplina a incidência do art. 89 da Lei n.º 9.099/95, em se
tratando de crimes de menor potencial ofensivo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
52
utilizando regras processuais gerais já existentes40, mas mesmo assim há questões que
ficam sem definição. Por exemplo, a evasão do representante legal da empresa após a
realização da citação implica revelia também da pessoa jurídica? Quando o
representante legal da pessoa jurídica for denunciado como co-réu, a confusão entre o
réu pessoa física e o réu pessoa jurídica não acarretaria conflito de interesses ou
cerceamento de defesa de ambos?41
Outra questão problemática a ser considerada é a vinculação de diversos
instrumentos processuais e prazos à pena restritiva de liberdade. A fixação de alguns
benefícios - como a suspensão condicional do processo, a transação penal e a suspensão
condicional da pena - e a determinação de prazos prescricionais são exemplos de
institutos processuais penais cujas regras de aplicação dependem necessariamente da
pena de prisão cominada em lei, fixada em número de anos. O fato de a pena das
pessoas jurídicas não poder ser fixada temporalmente gera uma lacuna legislativa e,
conseqüentemente, incertezas com relação à aplicação de tais institutos.
As medidas cautelares que visam à proteção da persecução penal e a garantia do
fim útil do processo têm como parâmetro a pessoa física. Caberia, portanto, refletir
sobre a conveniência de se regular a aplicação de medidas cautelares também às pessoas
jurídicas, em casos em que haja necessidade de se evitar que esta atue de forma a
impedir ou dificultar a investigação ou a futura execução da pena, que cometa novos
ilícitos ou prejudique terceiros. Um leque de possibilidades se abre na discussão sobre
restrições cautelares. Podemos mencionar, a título de exemplo, possíveis medidas
ligadas à proibição temporária de atuar em local específico ou comercializar
determinado produto, de realizar alterações no contrato social, de liquidar o patrimônio
ou alienar bens de produção durante o processo, de participar de licitações ou ainda a
suspensão temporária dos contratos com o poder público.
Com relação às medidas assecuratórias existentes na legislação processual penal
brasileira com o objetivo de garantir o ressarcimento da vítima, a execução da pena e/ou
o perdimento dos objetos e frutos do crime - o seqüestro, o arresto e a hipoteca legal 40
ESTELITTA (2008, p. 225) faz referência ao art. 37 do CPP, que lista as pessoas legitimadas para
exercer a ação penal em nome da pessoa jurídica, e que estaria em harmonia com o art. 12 do CPC, fonte
subsidiária no procedimento penal. GRINOVER (2004, p. 09), com relação à representação afirma que
não haveria grandes problemas, uma vez que é possível importar a regulamentação do artigo 12, incisos
VI e VIII, CPC.
41
ESTELITTA (2008, p. 229) indica a possibilidade de ser interessante à pessoa jurídica demonstrar que
o representante-acusado agiu de forma contrária à determinação do órgão colegiado. No entanto, caso o
co-réu pessoa física seja chamado como representante da pessoa jurídica durante o interrogatório, haveria
uma diminuição na capacidade defensiva da pessoa jurídica diante do claro conflito de interesses.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
53
não há a princípio problemas processuais em sua aplicação à pessoa jurídica que figurar
no pólo passivo. Questão que possivelmente surge nesses casos refere-se à possibilidade
de o juiz criminal desconsiderar a personalidade jurídica e decretar uma dessas medidas
contra bens de sócios, representantes e administradores da pessoa jurídica quando
houver indícios de desvios ou fraudes, hipóteses trazidas pelo art. 4º da Lei n.º 9.605/98.
De acordo com a legislação vigente isso não seria possível, dada a ausência de previsão
legal para tanto.
Com relação à execução da pena imposta à pessoa jurídica, uma vez que não
existe norma penal que a regule especificamente, deverá ser aplicada a Lei de
Execuções Penais (Lei n.º 7.210/1984), que trata da execução das penas para pessoas
físicas. Entretanto, as peculiaridades da pessoa jurídica podem fazer com que as regras
de execução atual se tornem inócuas. Para mencionar algumas das questões em aberto:
i) após o trânsito em julgado da condenação, nada impede que a pessoa jurídica
condenada seja liquidada – de forma fraudulenta ou não – e as pessoas físicas por ela
responsáveis criem nova pessoa jurídica para atuar no mesmo ramo que a anterior; ao
mesmo tempo, como obrigar o empresário a manter em funcionamento uma empresa
somente para que fosse possível executar uma pena? ii) o quantum da pena,
principalmente nas penas de multa e restritivas de direito que envolvam pecúnia,
deveria ser calculado de forma apurada, de modo que não inviabilize a continuidade da
pessoa jurídica, caso contrário seus efeitos em longo prazo seriam semelhantes à
suspensão definitiva das atividades. Nestes casos, seria possível ao juiz da execução
redefinir valores para as penas quando a condição financeira da empresa fosse alterada
para pior? iii) como proceder em caso de falência ou recuperação judicial da pessoa
jurídica condenada? Qual a preferência da execução da pena sobre os outros credores?
Quem representaria o poder público na assembléia de credores?
Por fim, mencione-se que no levantamento jurisprudencial realizado no âmbito
dos TRFs e STJ foi possível perceber o entendimento majoritário dos juízes defendendo
a imputação necessária de co-réu pessoa física em qualquer procedimento penal com
pessoa jurídica no pólo passivo. No entanto, a adoção deste entendimento levanta uma
série de questionamentos. Por exemplo: i) devem ser denunciados, como co-réu pessoa
física, os representantes legais ou diretores que atuavam no momento do cometimento
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
54
do crime42 ou aqueles que exercem a função no momento da denúncia? Caso a opção
seja pelo segundo grupo, como continuaria o processo caso houvesse substituição do
controle ou do corpo diretivo da pessoa jurídica durante a persecução penal? ii) extinta a
punibilidade da pessoa física, também deve ser extinta a da pessoa jurídica? Se, por
exemplo, ocorre a morte do co-réu pessoa física durante o processo, o processo contra a
pessoa jurídica deve continuar ou deve este ser extinto? iii) citada a pessoa física por
edital e esta não comparecendo nem constituindo advogado, também deve ser suspenso
o processo contra a pessoa jurídica ou o processo pode ser cindido? iv) caso o co-réu
pessoa física aceite a proposta de transação ou suspensão condicional do processo, o que
deve ser feito com o processo contra a pessoa jurídica, uma vez que nenhum dos dois
institutos resulta em assunção de culpa pelo aceitante?
A aceitação de um destes
institutos pelo co-réu pessoa física geraria a ilegitimidade passiva da pessoa jurídica? v)
se a pessoa jurídica for condenada e houver o trânsito em julgado da decisão, caso o coréu seja absolvido em sede de apelação ou tenha extinta sua punibilidade, deverá ser
revista de ofício a pena contra a pessoa jurídica?
Diante destes problemas, sugere-se, caso a escolha legislativa seja pela
imputação necessária de co-réu, esclarecer quem deve atuar como co-réu necessário e os
limites desta relação de obrigatoriedade.
Estes são exemplos dos problemas que podem surgir no processamento de ações
penais em face de pessoas jurídicas. Um aprofundamento da discussão acerca da criação
de regras processuais penais específicas nos parece imprescindível para oferecer
segurança jurídica e garantir efetividade na aplicação do instituto.
II.5. Alternativas à responsabilidade penal
Embora este trabalho esteja estruturado em torno da responsabilidade penal de
pessoas jurídicas, não se deve extrair a conclusão de que acreditamos ser a
responsabilidade penal a única ou melhor forma de lidar com os mais recentes
fenômenos de infrações cometidas no âmbito das pessoas jurídicas.
42
E ao considerar que o crime seja continuado, seria necessário que todos os representantes legais que
tenham exercido esta função durante o período do cometimento do crime sejam denunciados juntamente
com a pessoa jurídica?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
55
Ao contrário, é importante ponderar que, muito embora o debate público esteja
centrado na responsabilização penal, a necessidade de criação de uma política pública
de responsabilização de pessoas jurídicas não pressupõe que isso deva ser feito por meio
do sistema de direito criminal.
A doutrina dominante costuma pensar a responsabilidade em cada um dos ramos
como algo absolutamente independente, isto é, como fenômenos naturalmente distintos
(PIRES, 1998, p. 12). Com isso, o que se verifica usualmente é uma
compartimentalização da reflexão jurídica, que se torna isolada em cada uma das áreas
jurídico-dogmáticas já existentes.
Entretanto, para poder superar tal problema e abrir espaço para a criatividade na
reflexão sobre a regulação de ilícitos praticados no âmbito de coletividades, acreditamos
ser importante afastar a idéia de que existam diferenças ontológicas entre os ilícitos de
cada uma das esferas. Isso não significa obscurecer as especificidades de cada área, mas
apenas evidenciar que aquilo que muda de caso para caso são as regras de imputação,
isto é, os critérios para se estabelecer quando determinado fato deverá – e quando não
deverá – ser atribuído a alguém como resultado de ação ou omissão sua. Com relação a
isso, não só se diferenciam, por exemplo, as responsabilidades penal e civil, mas
também os vários casos de responsabilidade dentro de cada um desses ramos: a
responsabilização
civil
de
um
particular
obedece
a
critérios
diversos
da
responsabilização civil de um fornecedor de produtos ou serviços, por exemplo.
Tendo isso em mente, acreditamos que um estudo profícuo sobre a
responsabilidade penal da pessoa jurídica deve necessariamente partir do pressuposto de
que esta é uma entre tantas outras possibilidades de desenho institucional de
responsabilização e, portanto, apenas é possível considerá-la como um mecanismo
satisfatório se as suas vantagens e desvantagens em relação a outras esferas do Direito
forem cuidadosamente ponderadas.
Para que este juízo seja feito de forma consistente, dois passos fundamentais
foram tomados em nossa pesquisa. Em primeiro lugar, realizamos pesquisa empírica
que buscou averiguar o potencial dissuasório das sanções aplicadas por distintos ramos
do nosso ordenamento. Os resultados a que chegamos, ainda que com limites para
generalizações, nos permite fazer algumas inferências sobre o comportamento dos
agentes econômicos diante da possibilidade de incidência de mecanismos sancionatórios
de diferentes tipos.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
56
Em seguida, traçamos um quadro geral comparativo entre as regras de
imputação de cada uma das esferas do Direito que poderiam regular este tipo de
situação, de forma a verificar, com base em seus diferentes procedimentos e requisitos
internos de responsabilização, quais são os pontos fundamentais a serem observados
pelos formuladores de políticas públicas quando da escolha do melhor desenho
regulatório para os problemas em questão. É preciso alertar o leitor que, por não se
tratar do escopo desta pesquisa, limitamo-nos a indicar as linhas mais gerais que
caracterizam as distinções entre o direito civil e o administrativo em relação ao penal,
sendo certo, contudo, que um estudo aprofundado sobre a relação entre esses sistemas
no Direito brasileiro, embora fundamental quando se trata de discutir distintas
estratégias de regulação, é um empreendimento jurídico-dogmático que está ainda por
fazer.
II.5.i. Pesquisa empírica: o potencial dissuasório das sanções atualmente
vigentes no ordenamento jurídico brasileiro
Buscamos verificar nesse estudo empírico se a ameaça da sanção penal, tal como
percebida pelo agente potencial, é mais intensa do que sanções não penais que se
impõem sobre condutas substancialmente semelhantes à que recebe a sanção penal. Ao
enfocarmos as escolhas do agente potencial, propomos uma reflexão em linha com a
teoria de incentivos utilizada pela Law and Economics.
Não foi objetivo do estudo oferecer um modelo concreto e passível de juízo de
eficiência a respeito de qual deva ser a norma mais adequada para solucionar o
problema dos ilícitos praticados no âmbito da atividade das pessoas jurídicas. Não
obstante, acreditamos que os dados colhidos referentes às preferências do agente
potencial são úteis para avaliarmos a eficácia da aplicação das normas penais em vigor,
assim como para pensarmos as possíveis conseqüências associadas a determinados
modelos de responsabilização.
Dado que à pessoa jurídica não é passível a aplicação da pena privativa de
liberdade, e considerando que sanções dirigidas à suspensão das atividades das pessoas
jurídicas podem gerar custos sociais indesejáveis, as seguintes questões devem ser
enfrentadas: (i) é conveniente que a sanção aplicável à pessoa jurídica se dê como perda
reputacional? (ii) a sanção penal implica perda reputacional superior àquela imposta
pela sanção civil?; (iii) será que as próprias pessoas jurídicas prefeririam um sistema
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
57
que as responsabilizasse penalmente por ilícitos praticados no seu âmbito no lugar da
responsabilização penal de pessoas naturais? O experimento empírico que passaremos a
expor nos permitiu ao menos nos aproximar de alguns aspectos que estas questões
encerram.
A situação-problema utilizada é a seguinte. Considerando empresas que, por
quaisquer razões, tenham optado por deixar de pagar credores num determinado período
de tempo, sendo que: (i) o conjunto de credores é composto por particulares e pelo
INSS (credor da contribuição devida quanto à parcela do empregado); (ii) o
inadimplemento ao INSS é caracterizado como apropriação indébita, sujeita à sanção
penal; (iii) a empresa deve fazer escolha por prioridade em relação a quais de seus
credores serão pagos e quais não serão pagos; (iv) um dos credores não-pagos é o INSS,
pela contribuição devida quanto à parcela do empregado; pergunta-se: qual é o regime
de prioridades usualmente feito por empresas em tais condições?
Se constatarmos que os agentes usualmente preferem pagar outros credores a
pagar o INSS, então em princípio podemos concluir que a sanção penal aplicável ao
agente condenado por apropriação indébita tem baixo potencial de dissuasão em relação
a outras sanções.
A pesquisa foi desenvolvida mediante coleta de dados quantitativos e dados
qualitativos: (i) quantitativo: informações referentes ao período de 1988 e 2008
extraídas de processos judiciais relativos a 50 (cinqüenta) empresas acusadas de
apropriação indébita por não-recolhimento do pagamento de INSS-empregado, e que no
mesmo período foram acionadas por outros credores; (ii) qualitativo: entrevistas com 10
(dez) advogados de três especialidades diversas que trabalham em escritórios de
advocacia de primeira linha em São Paulo, com um membro do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica e com um Procurador do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS).
Considerando a limitação de representatividade da amostra, não podemos
generalizar os perfis de priorização observados para o universo de empresas brasileiras
que passam pelo mesmo dilema objeto do estudo.
A pesquisa realizada não permite inferir se uma eventual imposição de sanção
penal a pessoas jurídicas implicaria custo maior ou menor à sua reputação do que aquele
decorrente de sanções de outras naturezas que podem recair sobre a pessoa jurídica.
Não obstante, os dados obtidos pela pesquisa permitem inferências e oferecem
algumas hipóteses que merecem ser exploradas em futuras pesquisas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
58
A partir da pesquisa quantitativa, constatamos que a esmagadora maioria das
empresas prefere situar seja o INSS-empregado, seja o Fisco, no topo das preferências
negativas (último lugar de pagamento). O topo das preferências positivas para
pagamento do Grupo Outros Credores-Particulares aparece em qualquer cenário. Ou
seja, a maioria das empresas da amostra opta por preservar ao máximo seus credores
particulares e por preterir o Fisco e o INSS, quanto à contribuição pelo empregado.
Um ponto relevante é a hipótese de inversão de prioridades, que parece plausível
tendo-se em vista que, em algum momento, a grande maioria das empresas da amostra
aparentemente quita o INSS-empregado, mas acaba sofrendo ações de execução,
cobrança ou possessórias por parte do Grupo Outros Credores-Particulares após o
período de quitação do INSS. Então a pergunta é: por que a empresa inadimplente acaba
quitando? Uma hipótese plausível é a ocorrência de pagamento para suspender a
pretensão punitiva ou para extinguir a punibilidade pelo crime de apropriação indébita,
possibilidades oferecidas pela legislação aplicável. Os empresários esperariam até a
última oportunidade possível para pagarem o INSS-empregado e então evitar a
responsibilização penal.
A parte qualitativa oferece uma leitura interessante para os dados quantitativos.
Até onde pudemos constatar por meio das entrevistas, prevalece opinião no sentido de
que gestores e funcionários de empresas não teriam motivos para se opor à
responsabilização penal da pessoa jurídica. Os que manifestam essa visão sugerem que
as sanções penais às pessoas naturais são por estas percebidas como produtoras de
danos à sua reputação em grau maior do que o de outras sanções a pessoas naturais ou
sanções a pessoas jurídicas.
Para as empresas que enfrentam o dilema colocado no estudo, auto-confiança e
custo reputacional do gestor podem exercer impacto relevante. Se o custo reputacional
associado à apropriação indébita for alto para o gestor da empresa (independentemente
de condenação), então é mais provável que o gestor tenha como topo de suas
prioridades positivas manter a empresa adimplente com o INSS. O que se pode afirmar
é que, para a amostra considerada, esse custo reputacional é muito baixo. Prevalece a
auto-confiança do gestor em sua capacidade de gerir o fluxo de caixa da empresa e
pagar o INSS apenas no momento da ameaça crível, que é o da incidência de
responsabilidade penal, o que acarretaria a extinção (ou suspensão) da punibilidade
penal. Se a ameaça de sanção penal à pessoa natural não chega a inibir os gestores de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
59
empresas, não haveria razão para depositar altas expectativas quanto ao potencial
intimidatório da aplicação de sanção penal a pessoas jurídicas.
Dentre o leque de sanções aplicáveis em caso de prática de ilícito no âmbito da
pessoa jurídica, é importante considerar múltiplas alternativas de sanções à própria
pessoa jurídica. Mas tais sanções dificilmente substituem o poder intimidatório da
sanção penal de reclusão para o gestor da empresa. Esta parece constituir a ameaça
crível que engaja uma decisão da gestão da empresa. Faria mais sentido considerar um
pacote de sanções à pessoa natural e à pessoa jurídica, sendo que as primeiras, pelas
informações que colhemos a partir dos dados qualitativos, parecem a princípio mais
promissoras em termos de desempenho da função intimidatória. As segundas não
necessariamente devem ser sanções penais, salvo se lhes for atribuída função retributiva
ou por algum imperativo prático em termos de reunião de provas a respeito do
cometimento do ilícito.
A análise não estaria, porém, completa sem que algumas nuances fossem
apresentadas. As entrevistas revelam que o que os entrevistados identificam com “ter
problema na esfera penal” não é necessariamente a pena privativa de liberdade, porém
todo o constrangimento de ter que tomar contato com o sistema de justiça criminal, “ter
ficha”, perder a primariedade etc.. Isso é algo importante a ser destacado, especialmente
levando em conta que a pessoa jurídica não pode ser alvo de pena privativa de
liberdade. Assim, em que pese a sanção penal realmente desempenhar um papel
importante na tomada de decisão, não se pode afirmar que apenas aquela privativa de
liberdade teria esse efeito. Em sendo a apropriação indébita delito passível de ter sua
pena substituída por restritiva de direitos (vide artigos 44 e seguintes do Código penal),
pode-se afirmar que os empresários temem a sanção penal ainda que saibam que a
chance de serem efetivamente presos é remota. O cruzamento do que seja “problema no
penal” com as sanções concretamente impostas nos permitem concluir que há um temor
de uma resposta do sistema de justiça criminal com traços infamantes (perder a
primariedade, ter ficha, comparecer a Delegacia de Polícia), sem que isso implique
forçosamente em prisão. Ou seja, ao que parece, há um elemento simbólico ou
reputacional sendo considerado no momento em que se considera a atuação da esfera
penal. Um estudo que pretenda ponderar as vantagens e desvantagens da
responsabilidade penal da pessoa jurídica deve, portanto, levar em conta este tipo de
dado empírico.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
60
II.5.ii. Alternativas à responsabilidade penal: responsabilidade a administrativa
As tentativas tradicionais de justificar a escolha pela intervenção da esfera
administrativa ou penal para lidar com certa constelação de casos estiveram ligadas à
busca de uma diferença constitutiva ou “de natureza” entre ilícitos administrativos e
penais. Tais esforços estão ainda presentes no debate dogmático e têm, contudo, cada
vez mais dificuldade em explicar a conformação do que atualmente vem sendo regulado
por cada uma dessas áreas. Isso porque, em primeiro lugar, não justificam o fato de, na
maior parte dos casos, a mesma conduta sofrer regulação de ambos os campos. Além
disso, algumas distinções não resistem ao progressivo movimento do Direito penal de se
aproximar do que antes era tido como o escopo e o modus operandi do Direito
administrativo: intervir antes do dano, proibir condutas que não geram resultados, a fim
de gerir riscos em determinado setor de regulação. (e.g. crimes de perigo abstrato ou
incriminações que visam evitar condutas que apenas cumulativamente poderiam tornarse arriscadas)43.
Neste momento em que diferenças ontológicas apresentam-se insustentáveis e
distinções com base em funções pré-atribuídas a cada esfera também apresentam zonas
de obscuridade, preferimos não insistir em tentar traçar distinções normativas entre
ambas as áreas. Trabalhamos com as distinções de funcionamento que ainda se podem
identificar como características de uma ou outra área.
Ainda assim, é preciso considerar que a forma de funcionar, bem como os
instrumentos que estão à disposição de cada esfera para intervir em um determinado
conflito são também características que podem ser alteradas no âmbito de uma rediscussão de definição de políticas públicas.
Além disso, um estudo aprofundado comparando o funcionamento dos sistemas
penal e administrativo dependeria de uma análise específica em relação a cada área de
regulação. Isso porque, embora haja uma lei federal conferindo alguma unidade aos
processos administrativos federais (Lei n.º 9.784/99), há uma difusão de regimes
jurídicos sobre a responsabilização administrativa, que se acentua na esfera
regulamentar, por meio do exercício do poder normativo de agências reguladoras.
Assim, tendo em vista que o presente estudo não está vinculado à regulação de um
campo ou um conflito específico, nem tinha como escopo se aprofundar nesta
43
Silvia Sánchez chegou a denominar esse movimento de “administrativização do direito penal”. Cf.
SILVA-SÁNCHEZ, 2006, p. 131-136.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
61
comparação, limitamo-nos a apontar elementos gerais e que nos parecem importantes de
serem considerados para subsidiar a reflexão sobre as vantagens e desvantagens de
regulamentar este tema por meio do direito administrativo somente, por meio do Direito
penal ou por ambos simultaneamente.
Com relação à forma de funcionamento de cada um desses ramos, podemos
destacar algumas distinções em termos de procedimento aplicável; garantias; autoridade
competente; instrumentos de produção de prova e medidas cautelares; critérios de
imputação; sanções e seu potencial simbólico na comunicação social.
No que diz respeito ao tipo de sanção aplicada, a distinção tradicionalmente feita
entre as duas áreas tem por base a pena de privação de liberdade, que, de acordo com a
forma tradicional de definir o Direito penal, o caracterizaria. Entretanto, no caso de
pessoas jurídicas, estamos em um campo em que não há qualquer distinção entre os
tipos de sanções que podem ser aplicadas pela esfera administrativa e pela esfera penal.
Tendo em vista a impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade a pessoas
jurídicas, os instrumentos sancionatórios que ambas as esferas têm disponíveis são,
como vimos, rigorosamente os mesmos – penas de multa, restrição de direitos, limitação
de atividades, submissão a controles especiais etc.
Argumenta-se, nesse ponto, que haveria uma distinção em termos de força
simbólica entre cada uma delas, mais especificamente que a eficácia preventiva da
sanção administrativa seria “sem dúvida menor” (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 364).
Esse parece ser um ponto relevante de distinção.
Como indicamos acima na
apresentação do estudo empírico realizado sobre o potencial dissuasório de sanções, a
idéia de evitar qualquer envolvimento com a esfera penal, independentemente da
privação de liberdade é algo mencionado por diversos dos atores entrevistados.
Entretanto, não nos parece que esse deva ser considerado como um dado fixo.
Ou seja, não nos parece correto afirmar, a priori, a falta de impacto simbólico das
sanções administrativas. Na medida em que o significado das manifestações das
instituições formais encarregadas de aplicar o Direito, bem como o das sanções por elas
determinadas, passam por um processo social de atribuição de sentido, não nos parece
possível desde logo desprezar a possibilidade de as decisões proferidas pela
Administração Pública alcançarem impacto simbólico-preventivo. Como exemplos
desse fenômeno, podemos mencionar o respeito e o efeito simbólico que têm atualmente
os pronunciamentos de dois órgãos da esfera administrativa: a CVM e o CADE. O que
queremos com isso dizer é que o potencial simbólico é contingente e depende de uma
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
62
série de circunstâncias sociais, podendo, portanto, ser construído também quando se tem
em mãos a possibilidade de responsabilização administrativa. Assim, é possível
relativizar esse fator ou pelo menos pensá-lo como contingente.
Com relação às diferenças que freqüentemente são traçadas em termos de
requisitos e critérios de imputação, temos que o Direito penal, em seu modelo
tradicional, estaria vinculado à imputação de culpa individual, enquanto o Direito
administrativo teria mais flexibilidade de levar em consideração outros critérios para
imputar. Segundo ADÁN NIETO, por meio deste ramo, tratar-se-ia de chegar à
responsabilidade não por meio da culpabilidade, mas por meio da capacidade de
suportar a sanção. Aproximar-se-ia, de acordo com esse autor, mais da responsabilidade
civil do que da penal (NIETO MARTÍN, 2008). Por este motivo, na esfera
administrativa não se enfrenta, a princípio, qualquer dificuldade em imputar
responsabilidade a pessoas jurídicas.
Entretanto, ainda que os limites impostos pelos conceitos tradicionais da
dogmática penal estruturados a partir da reprovação imposta ao indivíduo tenham um
forte peso no debate dogmático e efetivamente venha influenciando decisões políticolegislativas, não nos parece possível naturalizá-los como se fossem definitórios da
forma de funcionar do direito penal. Desse modo, não excluiriam a priori a
possibilidade de responsabilizar a pessoa jurídica por meio dessa esfera, a partir da
articulação de outros critérios de imputação. Com efeito, vimos que o debate
contemporâneo em sede de dogmática penal vem se distanciando das definições
ontológicas dos conceitos e, a partir de pressupostos normativos, abrindo espaço para
uma discussão mais ampla sobre os critérios de imputação. Além disso, como
apontamos, há esforços consistentes voltados à criação de modelos de responsabilidade
para pessoas jurídicas, não se justificando, desse modo, que a definição dos critérios de
imputação amarre o modelo de imputação a uma esfera específica de atuação do Direito.
Se as distinções entre as sanções e seus efeitos e critérios de imputação
mostram-se mais relativizáveis, devem ainda ser consideradas questões relativas à
institucionalização da forma de intervenção de cada uma das esferas. É nesse campo que
se colocam alguns pontos que nos parecem ter um impacto considerável na
conformação do modelo de responsabilização: como cada uma das esferas é capaz de
lidar, de um lado, com a especialização requerida da autoridade judicante para atuar em
determinados problemas e, de outro, com o equilíbrio entre garantias e eficiência.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
63
Uma das vantagens normalmente atribuída à esfera administrativa diz respeito à
especialização dos agentes. Principalmente no campo da criminalidade econômica, a
matéria tratada requer alta capacitação técnica dos funcionários responsáveis pelo seu
processamento. Em relação à responsabilização de entes coletivos, uma série de
questões específicas vem à tona, não apenas ligadas à matéria em questão (concorrência,
tributação, mercado financeiro etc.), mas também relacionada à própria realidade da
empresa. A imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas pode envolver a cognição
de questões ligadas, por exemplo, a um possível déficit organizativo da empresa, à
compreensão de sua estrutura e de seus mecanismos de controle de ilícitos e, mais
importante, à necessidade de dosar a medida da sanção e ao mesmo tempo alcançar um
equilíbrio entre dano causado, potencial dissuasório, mas também a manutenção da sua
viabilidade econômica. Ou seja, as especificidades do ator envolvido são tantas e de tal
maneira decisivas para que o processo de responsabilização não só seja bem sucedido,
mas também não agrave ainda mais os custos sociais do problema, que se pode
considerar que estamos diante da necessidade de uma outra forma de especialização.
A possibilidade de conformação de instituições especializadas é uma das
características do Direito administrativo, o que não significa necessariamente que essa
questão deva ser tratada nessa esfera. O ponto que, a nosso ver deve ser considerado, é
que, ainda que se decida pela regulação da questão pela via do sistema penal, ter-se-ia
que pensar sobre formas de colocar à disposição do juiz penal não só treinamento
adequado, mas também auxílio técnico para melhor se aproximar da questão (por
exemplo, perícias especializadas em avaliações econômicas, auditorias etc.).
No que diz respeito à comparação propriamente dita entre os procedimentos,
mostra-se central considerar os instrumentos que estão à disposição para investigar e
produzir provas e os fatores que influenciam na celeridade e eficiência do
procedimento, sempre em relação às garantias processuais presentes em cada um deles.
Ao modelo de Direito Administrativo Sancionador costuma-se associar, além da
vantagem da especialização, a da celeridade, com sacrifício de algumas garantias; ao
Direito penal, a vantagem de maior rigidez em termos de garantias, com sacrifício da
celeridade. O Direito penal, contudo, disporia de instrumentos processuais mais
incisivos para a obtenção de provas, como a interceptação das comunicações telefônicas
e as escutas ambientais.
É de se considerar, entretanto, que o processo administrativo é também dotado
de instrumentos de investigação e instrução, que se ampliam consideravelmente, sob a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
64
exigência apenas de que seja observada a necessidade de reserva de jurisdição. Quer
dizer, medidas com impactos significativos na intimidade dos investigados são
admitidas atualmente na esfera administrativa, desde que se efetive mediante ordem
judicial, independentemente de ser o caso abrangido também pela lei penal44. Em alguns
casos, contudo, esses mecanismos podem ser considerados insuficientes ou menos
eficazes, como acontece nos casos em que as investigaçoes dependem de interceptação
telefônica ou escutas ambientais, instrumentos exclusivos do sistema penal, segundo
nosso ordenamento jurídico.
Em contrapartida, o procedimento seria, a princípio, menos exigente no que diz
respeito às garantias individuais e admitiria, portanto, mecanismos que não se admitem
no processo penal. Esses instrumentos variam em relação às previsões de cada setor de
regulação, mas a título de ilustração, citamos a possibilidade de requisitar informações e
documentos aos investigados sob pena de multa; realizar inspeções e celebrar acordo de
leniência.
Evidente que o processo administrativo também tem previsões de forma e de
garantias processuais, como o contraditório e a ampla defesa, constitucionalmente
assegurados (CF, art.5º, LV). Além disso, previstos no art. 2º da Lei n.º 9.784/99, os
princípios que regem o procedimento administrativo são: legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório e
segurança jurídica. Entretanto, trata-se de um instrumento a princípio dotado de maior
flexibilidade que o procedimento penal, principalmente porque, ao lado desses
princípios que citamos acima, rege-se também pelos princípios do interesse público e da
eficiência.
44
Segundo o STF, em jurisprudência que se desenvolveu a partir do tema dos poderes de investigação das
CPIs, algumas matérias estão compreendidas pela reserva de jurisdição, quais sejam: inviabilidade
domiciliar (art. 5, inc. XI), interceptação das comunicações telefônicas (art. 5, inc. XII) e decretação de
prisão (art. 5, inc. LXI). Em comum, a redação dos respectivos preceitos constitucionais indicaria que
apenas o juiz detém competência para restringir tais direitos. Em recente manifestação acerca dos limites
ao exercício do poder de fiscalização pelo Banco Central, a maioria do STF entendeu pela
impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas pela atuação fiscalizatória do BACEN
(RE 461.366-2). Com relação à busca e apreensão, o STF suspendeu liminarmente o art. 19, inc. XV, da
LGT que conferia à Anatel competência para realizar busca e apreensão de bens (ADI 1.668). Segundo o
Min. Marco Aurélio (relator), "se de um lado à Agência cabe a fiscalização da prestação dos serviços, de
outro não se pode compreender, nela, a realização de busca e apreensão de bens de terceiros. A
legitimidade diz respeito à provocação mediante o processo próprio, buscando-se alcançar, no âmbito do
Judiciário, a ordem para que ocorra o ato de constrição, que é o de apreensão de bens. O dispositivo acaba
por criar, no campo da administração, figura que, em face das repercussões pertinentes, há de ser
sopesada por órgão independente e, portanto, pelo Estado-juiz". Dessa forma, essas medidas são cabíveis
no âmbito do processo administrativo, desde que previamente autorizadas pelo Judiciário.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
65
Essa distinção em termos de garantias vem sendo questionada recentemente. De
um lado, temos posições como a de Silva Sánchez, que compreende a exigência de
garantias mais rígidas como contrapartida à gravidade da pena de prisão. Ou seja, a
rigidez das garantias formais do processo penal não corresponderia a uma inspiração
ontológica do sistema, tendo-se firmado, na verdade, apenas como um contrapeso ao
extraordinário rigor das sanções impostas (cf. SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 167-171).
Nesse raciocínio, vislumbra-se a possibilidade de que haja alguma relativização de
garantias – inclusive no âmbito do processo penal - desde que as sanções previstas para
os ilícitos não incluíssem a privação da liberdade .
Apontando também para uma relativização da distinção entre as áreas em termos
de garantias processuais, está a discussão em torno da caracterização do ius puniendi
geral estatal, do que decorreria a extensão das garantias do Direito penal ao âmbito
administrativo. Essa tese, hoje em dia bastante forte na doutrina, considera que a
prerrogativa sancionatória constitui, ao lado do poder punitivo exercido pelo Judiciário,
o poder geral do Estado de reprimir condutas contrárias ao ordenamento jurídico,
qualquer que seja a esfera de responsabilização. Como conseqüência, haveria um
regime jurídico comum para disciplinar a responsabilização penal e administrativa,
devendo-se transplantar as regras do direito penal para o direito administrativo. Essa
tese desconsidera a autonomia do direito administrativo sancionador e sua conformação
própria, construída à luz da Constituição Federal e das normas legais e infra-legais que
conformam o processamento específico da potestade punitiva da administração.
O que nos parece importante considerar são as conseqüências de se transportar
todas as garantias da esfera penal para a administrativa para a discussão sobre a
construção do regime de responsabilização de pessoas jurídicas. Isso provavelmente
impactaria a regulação via Direito Administrativo, pois este ramo do direito perderia em
celeridade e em flexibilidade sem, no entanto, ter incrementadas as suas possibilidades
de buscar evidências e produzir provas.
Trata-se de um debate ainda em aberto, que não se sedimentou em nossos
Tribunais, mas que a nosso ver é um dado que deve ser levado em consideração na
estruturação do modelo de responsabilização e na escolha da área a intervir, uma vez
que elimina aquilo que seria, em alguns casos, uma das vantagens de utilização do
Direito administrativo.
O dado relativo à celeridade do procedimento administrativo deve ser analisado
conjuntamente também com a possibilidade de as decisões administrativas serem
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
66
revistas pelo Judiciário. Afinal, a Constituição Federal garante a inafastabilidade do
acesso ao Judiciário, sempre que algum cidadão tiver lesado seu direito. Isso significa, a
princípio, que o Judiciário poderia revisar as decisões administrativas em alguma
medida.
Um dos principais debates que se colocam hoje na agenda teórica do Direito
Administrativo corresponde justamente aos limites do controle judicial dos atos
administrativos. Não há uma posição fechada a esse respeito nem na doutrina, nem na
jurisprudência brasileiras. Pode-se localizar uma certa tendência na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal no sentido de que todo e qualquer ato administrativo pode ter
sua legalidade apreciada pelo Judiciário, não se podendo, porém, adentrar seu mérito .
Na prática, porém, a pretexto de se aferir a legalidade (sobretudo a constitucionalidade
material), envereda-se muitas vezes no campo do conteúdo da decisão administrativa.
De qualquer modo, a revisão dos casos pelo Judiciário tem tido impacto no que diz
respeito à demora da execução das sanções aplicadas pela esfera administrativa.
Por fim, outra constelação de questões a serem consideradas ao se cogitar da
criação de um modelo de intervenção é a possibilidade de intervenção dupla, ou seja,
um modelo segundo o qual se impute responsabilidade pelo mesmo fato por via de
ambas as esferas. Surgem aí questões relacionadas ao bis in idem e à conveniência de se
conduzir dois processos dispendiosos, para ao final se chegar a sanções semelhantes.
Outro tema importante é o da utilização da prova emprestada. Provas
emprestadas são aquelas que não foram produzidas no mesmo processo em que estão
sendo utilizadas. Badaró (2008, p. 201) afirma categoricamente que provas produzidas
em processos administrativos não podem ser trasladadas para processos penais, pois a
prova emprestada, para ser utilizada em um segundo processo, deve ter sido produzida
perante o juiz natural. Assim, para que o judiciário possa avaliar questões de mérito
decididas em procedimentos administrativos ou utilizar elementos ali constantes, seria
necessária nova realização da mesma prova produzida durante a instrução em âmbito
administrativo, o que eliminaria por completo a utilidade da primeira produção da
prova.
O Supremo Tribunal Federal, em decisões sobre o tema45, fixou o entendimento
de que é inadmissível que a decisão de pronúncia se dê apenas com base em prova
45
Neste sentido, ver STF, HC 67.707, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 14.8.1992; STF,
RMS 25485/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 14.3.2006; STF, HC 89468/SP, Primeira
Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j. 15.5.2007; STF, HC 91973/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo
Lewandowski, j. 4.3.2008.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
67
emprestada. Com efeito, as decisões recentes tendem a aceitar a prova produzida fora do
processo penal, desde que observado o contraditório no procedimento administrativo
disciplinar. O inverso também é verdadeiro na Suprema Corte: provas produzidas no
processo penal podem ser emprestadas a procedimentos administrativos, inclusive com
base no princípio da proporcionalidade46 .
Todos esses problemas estariam presentes também caso se chegasse a uma
conformação da responsabilização por ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas
em que, pelo mesmo fato, a punição dos indivíduos se desse pela via penal e a da pessoa
jurídica pela via administrativa.
II.5.iii. Alternativas à responsabilidade penal: responsabilidade civil
Em primeiro lugar, é importante notar que não é necessário instituir regra
especial para existência de responsabilidade civil por ilícitos praticados por pessoas
jurídicas.
As normas gerais de responsabilidade civil aplicam-se a quaisquer ilícitos civis e
a quaisquer pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas.
A necessidade de regulação especial existe na medida em que se queira
estabelecer regime jurídico diferenciado da regulação geral do direito brasileiro,
especificamente os regimes dos arts. 186 e 927 (responsabilidade por ato ilícito próprio)
CC e do art. 932, III CC (responsabilidade do empregador por ato ilícito praticado por
empregado ou preposto).
Pode haver interesse na criação de regulação especial por várias razões. Em
primeiro lugar, para o estabelecimento de responsabilidade objetiva, uma vez que a
responsabilidade prevista pelo art. 186 CC é subjetiva.
Em segundo lugar, para o estabelecimento de responsabilidade própria da pessoa
jurídica ou coletividade uma vez que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932,
III do CC – embora seja objetiva para o empregador – depende da imputação de
responsabilidade subjetiva ao empregado ou preposto.
Esta última característica da responsabilidade por fato de outrem pode
representar um obstáculo especialmente importante à sanção de ilícitos praticados no
46
Neste sentido, ver STF, Inq. 2575 QO, Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, j. 25.6.2008 e STF, Inq. 2424
QO/RJ, Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 25.4.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
68
âmbito de organizações complexas, pois, justamente a complexidade dessas
coletividades tende a dificultar a identificação dos agentes e condutas individuais.
Por outro lado, a noção de preposição é bastante ampla para abarcar não apenas
as pessoas vinculadas por relação de emprego propriamente dita, mas quaisquer relações
em que haja subordinação. Além disso, em nossa tradição reconhece-se a possibilidade
de responsabilização até mesmo por quem não seja realmente empregado ou preposto,
com base na teoria da aparência.
Em terceiro lugar, o estabelecimento de regulação especial é necessário caso se
queira permitir a responsabilização de entes não personificados.
Além disso, a regulação especial é necessária caso se queira atribuir à
responsabilidade civil uma função punitiva, pois seria preciso permitir o cálculo da
sanção com base em critérios voltados à dissuasão – a exemplo do que já acontece com
a jurisprudência sobre o cálculo de danos morais. Regulação especial seria
especialmente necessária para o estabelecimento de responsabilidade punitiva em
relação a danos materiais e em casos de violação de direitos sem produção de danos de
nenhum tipo.
Uma solução desse tipo contrariaria a tradição brasileira de compreensão do
instituto da responsabilidade civil e de suas funções, mas não nos parece haver
impossibilidade de adoção dessa solução do ponto de vista constitucional ou legal.
A opção pela adoção de um sistema de responsabilidade civil punitiva
levantaria, no entanto, certas questões importantes.
A primeira diz respeito à sua cumulação com a responsabilização penal e/ou
administrativa, uma vez que a atribuição de uma função punitiva central à
responsabilidade civil faz com que seus objetivos passem a ser semelhantes aos das
outras formas de responsabilização.
Entendemos que, em princípio, havendo responsabilidade penal e/ou
administrativa para certo ilícito, a criação de responsabilidade civil punitiva seria
supérflua e exagerada, pois resultaria em dupla ou tripla sanção punitiva pelo mesmo
ato.
Além disso, é preciso notar, uma vez que a responsabilidade civil seja punitiva,
torna-se problemática a sua previsão na forma objetiva, já que a punição tem por escopo
reprimir condutas reprováveis. A reprovabilidade da conduta está ligada à culpa por
parte de quem a pratica, ao passo em que o estabelecimento de responsabilidade
objetiva está ligado à tradição da responsabilidade civil como instrumento de reparação
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
69
e distribuição de danos, focado no prejuízo da vítima e não na conduta do autor do
ilícito.
Por outro lado, não haveria obstáculos à criação de uma noção de culpa
específica para os entes coletivos, isto é, que não dependa de se estabelecer a culpa de
algum indivíduo.
Além disso, para evitar a objeção do enriquecimento sem causa da vítima, no
caso da previsão de responsabilidade civil punitiva seria conveniente prever uma
destinação diferenciada para a parcela paga pelo responsável a título de punição. Uma
possível solução seria criar um fundo, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública.
Por fim, tendo em vista que os objetivos perseguidos pelas sanções punitivas são
essencialmente públicos e não se relacionam diretamente com os prejuízos sofridos pela
vítima do ilícito, seria conveniente prever alterações processuais, especialmente para
permitir legitimidade ativa mais ampla para a sua propositura, a exemplo da Lei de
Ação Civil Pública.
A grande vantagem do estabelecimento de responsabilidade civil em relação à
responsabilidade penal nos parece ser a possibilidade de evitar todos os problemas
decorrentes da aplicação da estrutura penal – pensada para o indivíduo – a pessoas
jurídicas e outras coletividades. Do ponto de vista da responsabilidade civil, a
responsabilização de pessoas jurídicas e mesmo de coletividades não personificadas não
representa problema. Além disso, evita-se a expansão da criminalização de condutas.
A desvantagem principal em relação ao direito penal consiste na perda do caráter
simbólico que tem a condenação criminal. No entanto, é possível pensar que certos
modelos mistos, como a conjugação de responsabilidade civil punitiva para pessoas
jurídicas e outras coletividades, com a manutenção de responsabilidade criminal para os
indivíduos minimize tal perda.
Além disso, do ponto de vista processual, o direito penal admite a interceptação
de comunicações telefônicas e escutas ambientais, o que não é possível no processo
civil.
Com relação à responsabilidade por infração administrativa, a principal
diferença diz respeito ao fato de que a responsabilidade civil é imputada por meio de
processo judicial, ao passo que a responsabilidade administrativa se imputa por meio de
processo administrativo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
70
Sendo assim, a previsão da reparação como sanção administrativa apresenta os
riscos decorrentes da possibilidade de revisão judicial das decisões administrativas, bem
como a limitação decorrente do fato de não eliminar a necessidade de execução judicial.
Tais aspectos são especialmente relevantes se considerarmos que no atual
cenário teórico há duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos
atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato
administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV da CF, e aqueles que
buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do
Judiciário às decisões administrativas, de modo que não há clareza acerca dos critérios
para controle judicial dos atos administrativos. Lembre-se, ademais, que, no que tange
ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande judicialização das
sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita reflexões sobre o
esvaziamento da autoridade da Administração Pública.
III. CONCLUSÕES
A discussão em torno das formas de responsabilização de pessoas jurídicas
é contemporaneamente um dos temas mais relevantes quando se discutem
sobretudo políticas públicas de controle e repressão de condutas ilícitas com
impacto nas relações econômicas e financeiras e nos chamados bens coletivos ou
difusos, tais como meio ambiente e saúde dos consumidores. Com efeito, há um
consenso nos mais variados campos de discussão de que os mecanismos de
imputação individual apresentam um déficit significativo de prevenção no que diz
respeito aos delitos praticados no âmbito das organizações.
Uma das respostas a cenários como esse, que caracterizam o que os teóricos
contemporâneos chamam de “irresponsabilidade organizada”, estaria na adoção de
formas de responsabilização da pessoa jurídica. Mas essa decisão é apenas o início
do debate acerca dos distintos modelos de institucionalização de sistemas de
responsabilidade coletiva e de suas conexões com o sistema de responsabilização
individual. Mostrar o amplo leque de possibilidades nesse sentido foi um dos
objetivos do presente trabalho.
Desse modo, esta pesquisa buscou ampliar o espectro de questões
implicadas no debate, que, a nosso ver, revelou-se excessivamente limitado no
Brasil, onde a questão está, há anos, singelamente colocada em termos de aceitação
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
71
ou não da responsabilidade de pessoas jurídicas no Direito penal, sua
compatibilidade ou não com o princípio da individualização da culpa e as
categorias da teoria do delito, restando ainda pouco exploradas, além das questões
político-criminais, outras variáveis que, a nosso ver, são fundamentais para a
configuração de um modelo eficiente de responsabilização de condutas praticadas
no âmbito de pessoas coletivas.
Este trabalho é, portanto, uma primeira tentativa de indicar os problemas de
ordem normativa a serem considerados na decisão sobre o tipo de regulação a ser
adotado. Assim, a abordagem ao problema sobre qual norma jurídica deve
sancionar e prevenir ilícitos praticados no âmbito das pessoas jurídicas precisa ser
capaz de lidar explicitamente com as relações e o equilíbrio entre a carga de
responsabilização do indivíduo e da organização; a função que deve desempenhar a
sanção; seus impactos individuais e sociais; o tipo de sanção mais adequado à
fenomenologia do problema a que se pretende responder; e ainda qual a área do
direito – civil, penal ou administrativo - seria mais apta a oferecer a resposta
adequada, e por meio de quais instrumentos.
Estas questões, apesar de inter-relacionadas, não devem ser confundidas: se
estivermos convencidos de que a responsabilização e o sancionamento do
indivíduo (pessoa natural) é suficiente para dissuadir e remediar os danos causados
a partir dos ilícitos praticados no âmbito da pessoa jurídica, devemos então
concluir que a responsabilização desta não é uma boa política. Nessa decisão,
devemos refletir também sobre uma série de questões que está no âmbito das
conseqüências e custos da responsabilização coletiva (possível prejuízo a
funcionários, sócios ou acionistas que estavam alheios à decisão de praticar o
ilícito, bem como impactos na continuidade das atividades da empresa sancionada
etc.).
No que diz respeito a esse dilema – responsabilidade individual ou coletiva
– há uma série de argumentos no sentido de que, como fórmula para gerir o
problema global de crimes praticados no âmbito de pessoas jurídicas, a
responsabilidade individual em muitos casos é inefetiva. Dentre as razões que
conduzem a essa conclusão, mencione-se, em primeiro lugar, o fato de que pessoas
físicas suportam a função punitiva (via encarceramento ou outra medida de
privação de liberdade), mas geralmente não dispõem de capacidade financeira para
responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar, pessoas físicas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
72
poderão negociar junto a outros agentes da empresa mecanismos que a compensem
por sua exposição ao risco por prática de crimes e que funcionem, portanto, como
um seguro privado que beneficia o agente potencial ligado à pessoa jurídica, desde
que lhe seja possível obter da empresa quantia suficiente que compense o risco de
ser investigado e condenado. A responsabilização da pessoa jurídica, por outro
lado, faz com que esta internalize os custos do ilícito, o que pode ser desejável do
ponto de vista da prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa
jurídica estaria mais bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar
que o crime seja cometido ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua
prática. Por fim, não é de se desprezar o fato concreto de que, considerando a
dinâmica fragmentária e coletiva das atividades empresariais e dos processos
decisórios das pessoas jurídicas, a observância do princípio da individualização
das condutas criminais dificulta a persecução e punição de perpetradores de
ilícitos, quando tais atos são cometidos por meio de pessoas jurídicas.
Ainda que se conclua haver motivos que justifiquem a responsabilização da
pessoa jurídica, e considerando o conjunto de instituições incumbidas da aplicação
do direito no Brasil, resta indagar que sanções deveriam ser empregadas, bem
como qual sistema se mostra mais apto para oferecer um marco regulatório sobre a
responsabilização da pessoa jurídica. Essas questões aparecem muitas vezes
misturadas no debate público de especialistas, embora se refiram a distintas
decisões político-jurídicas.
Somente se concluirmos que a responsabilização penal da pessoa jurídica é
desejável é que deveremos então nos preocupar com o tipo de regime jurídico a
agasalhar tal decisão e, ainda, com a questão de reconciliar o instituto com o
princípio geral da individualização das condutas em direito penal e as categorias da
teoria do delito. Ao estudar o debate no âmbito da doutrina brasileira, mostramos
que, embora tenhamos introduzido tal instituto no ordenamento jurídico desde
1998, um esforço sistemático de reinterpretar e re-significar as categorias penais
não foi empreendido e isso vem tendo impacto na aplicação do instituto pelos
tribunais.
É preciso aqui fazer notar ainda a pouca tradição no Brasil em pensar a
atividade legislativa e a produção teórica a partir de dados da realidade. Isso se
reflete na escassa oferta de dados e na dificuldade mesma de acessá-los. Um ponto
importante a ser ressaltado, resultado de nossa experiência em campo ao longo
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
73
desta pesquisa, é a falta de dados públicos a respeito da realidade das empresas e a
insuficiência dos bancos de dados existentes, que trazem as informações de modo
totalmente fragmentado, não permitem a realização de cruzamentos entre
informações (por exemplo, informações constantes em varas cíveis e penais) e,
fundamentalmente, estão construídos para a realização de consultas processuais
para advogados e não para a realização de pesquisa.
Apesar de tais dificuldades, realizamos no âmbito desta pesquisa, na forma
de estudos de casos e entrevistas qualitativas, levantamento de elementos
empíricos que foram importantes para iluminar a nossa reflexão sobre o caráter
preventivo da sanção penal e suas relações com o momento de decisão empresarial.
O tema da demonstração empírica da sanção é de difícil aferição, como tantas
vezes já apontado pela criminologia e pela própria discussão no campo da teoria da
pena. Além disso, o estudo que realizamos neste trabalho é limitado e trabalha com
um universo pequeno de empresas e atores. Entretanto, ainda que de modo
aproximativo, os dados empíricos permitiram que extraíssemos elementos
relevantes para a discussão.
Da análise da amostra de 50 empresas e das entrevistas com advogados, a
inferência mais autorizada é a de que o potencial intimidatório da sanção penal só
é intenso ou é mais intenso do que o de sanções de outras naturezas, se
considerarmos tratar-se de sanção penal que recaia sobre a pessoa natural e cuja
aplicação seja crível. Neste ponto, independentemente de outros fatores que
justificam sanções penais à pessoa jurídica, o estudo empírico permite inferir que
eventual sanção penal sobre pessoa jurídica não parece ter potencial de exercer a
função de prevenção geral negativa de modo privilegiado em relação a outras
sanções.
No que diz respeito às possibilidades de articular a regulação por meio da
esfera penal, administrativa ou civil, este trabalho buscou levantar alguns dos
pontos favoráveis e problemáticos de cada uma delas. Uma comparação
aprofundada entre a atuação das esferas não foi o foco desta pesquisa e demandaria
estudos específicos para cada campo de regulação. De todo modo, as indicações
trazidas apontam, em primeiro lugar, para a necessidade de superar a
compartimentalização da discussão nos ramos do direito e circular entre direito
penal, civil e administrativo, a fim de discutir a melhor forma de regulamentar o
problema e seus melhores instrumentos, sem amarrar previamente as soluções a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
74
limites e construções dogmáticas prévios.
A partir desse pressuposto, uma solução de política criminal não
necessariamente precisa seguir trabalhando com as divisões tradicionais de áreas.
Por exemplo, a partir dos elementos que levantamos, pode-se concluir que a
punição seja desejável, mas por algum motivo, não deva ser feita pelo aparato
penal (ramo tradicionalmente vinculado a essa função), e sim pelo aparato civil e/
ou administrativo, ou mesmo por formas novas, que combinem essas tradições.
Esse tipo de análise apenas pode ser feito quando a reflexão não se limita a um
único campo do direito e quando o horizonte da pesquisa seja a definição da
melhor forma de regulação. A construção da regulação deve olhar em primeiro
lugar para o problema e não escolher de antemão a esfera à qual o encaminhará.
De um ponto de vista geral e pressupondo não haver distinções de caráter
ontológico entre ilícitos penais, administrativos e civis, indicamos algumas das
variáveis que nos parecem devam ser levadas em conta na comparação entre as
esferas. Nesse sentido, as questões que nos pareceram mais relevantes foram
aquelas relativas à forma de funcionamento dessas esferas.
Se considerarmos que a pessoa jurídica não está sujeita à privação de
liberdade, não há qualquer distinção em termos de possibilidade de pena aplicável
entre as sanções disponíveis na esfera penal e administrativa. Embora muitos
autores considerem ainda um efeito simbólico superior da sanção penal, esse dado
nos parece contingente. É possível identificar sanções de caráter administrativo,
que, pelo seu rigor, têm também impacto simbólico relevante. Além disso, em
alguns âmbitos especializados, como por exemplo o do mercado de capitais ou o
da proteção da concorrência, a sanção administrativa vem adquirindo cada vez
mais potencial preventivo. Ou seja, podemos considerar que o potencial simbólico
diferenciado atribuído às sanções penais em relação às administrativas não é um
dado a priori ou estático e deve ser avaliado levando-se em consideração o
funcionamento das instituições em sociedades concretas em um dado momento, o
ramo de atividade em questão, bem como a atuação e a reputação do órgão
administrativo. Além disso, é preciso considerar que o significado e o impacto
simbólico das comunicações e sanções de um determinado órgão (jurisdicional ou
administrativo) é algo que pode ser trabalhado e construído no âmbito do
funcionamento das instituições públicas e de sua cultura organizacional.
As distinções mais relevantes entre as esferas administrativa e penal
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
75
referem-se
principalmente
às
características
do
procedimento
e
mais
especificamente ao potencial que cada uma das esferas tem de investigar casos e
obter elementos instrutórios. Alguns instrumentos importantes (como escutas
telefônicas e ambientais) são atualmente restritos ao Direito penal e, dependendo
da constelação de casos que se tenha em mãos e o modus operandi mais freqüente
das condutas implicadas, tais instrumentos são fundamentais à administração na
elucidação dos casos. O Direito administrativo, por sua vez, também tem
instrumentos para investigar casos – por exemplo, a recém regulamentada busca e
apreensão, o acordo de leniência no âmbito do CADE, as inspeções e a
possibilidade de sancionar aqueles que não contribuem com a investigação. Tratase, assim, de avaliar se tais instrumentos seriam suficientes para lidar com
determinado tipo de conduta ilícita ou se os métodos de atuação do penal se fazem
cruciais. Possivelmente esta seja uma decisão que pode variar de acordo com o tipo
de conduta e realidade que se queira regular.
Na ponderação desse equilíbrio, não é possível deixar de considerar que
parte da doutrina vem defendendo, como expusemos, a transposição ao Direito
administrativo das mesmas garantias presentes no processo penal, o que certamente
teria impacto nas vantagens apresentadas por aquele ramo, já que possivelmente
perderia em celeridade e em flexibilidade e, ao mesmo tempo, não teria
incrementadas suas possibilidades de buscar evidências e produzir provas (que é
maior no processo penal).
Além disso, é necessário considerar em que medida as decisões
administrativas vêm sendo revistas pelo Poder Judiciário, o que certamente teria
impacto no quesito celeridade para se resolver o problema social em questão e
influiria na decisão de regular via Direito administrativo. A realização de pesquisa
empírica sobre o comportamento e o índice de revisão judicial das decisões
administrativas em relação a cada área regulada, bem como o tempo pelo qual a
revisão judicial se prolonga até que seja possível chegar à execução da sanção
administrativa seria, nesse sentido, fundamental para a tomada de decisão.
Por fim, e para indicar uma questão que deve ser incluída em agendas de
pesquisas futuras, é preciso indicar que na ponderação implicada na escolha entre
as áreas, outra forma de observar o comportamento das diferentes esferas do
direito é considerar o espaço que cada uma delas deixa para a auto-regulação, o
que, sob determinados aspectos e em algumas áreas, pode ser importante.
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76
Dado que o instituto que organizou toda a reflexão foi a responsabilização
penal de pessoas jurídicas, buscamos indicar que há ainda uma série de questões a
serem consideradas e decisões a serem tomadas quando se trata se definir o modelo
de responsabilidade penal e os critérios de responsabilização.
Podemos a princípio identificar duas grandes clivagens entre os modelos de
responsabilização
penal
adotado:
os
de
responsabilidade
derivada
da
responsabilidade individual e os que tentam inferir uma culpa própria da pessoa
jurídica.
Dentro do modelo de responsabilidade derivada há uma série de fatores que
podem ser determinantes no desenho do sistema de responsabilização, como por
exemplo, a definição de quem pode agir em nome da pessoa jurídica, ou melhor,
quem, com sua ação ilícita, é capaz de irradiar responsabilidade à pessoa jurídica.
É interessante notar como uma decisão sobre um aspecto aparentemente pontual
tem um impacto significativo na determinação da carga de responsabilidade que a
pessoa jurídica deverá suportar: ela pode ser muito grande e eventualmente
indesejada, se se decidir que a pessoa jurídica será responsabilizada por ato de
qualquer funcionário, mas ela pode ser demasiadamente reduzida (e de difícil
aplicação na prática) se se decidir que a pessoa jurídica apenas será
responsabilizada quando houver a ação de um administrador formalmente
constituído. Ficaria de fora, neste último caso, por exemplo, as condutas daqueles
que representam o administrador, agem a seu mando ou ocupam posições de
administração ou representação de fato.
Tendo em vista que um dos problemas centrais da regulação da
criminalidade praticada no âmbito de organizações complexas é justamente a
dificuldade de apuração de responsabilidade individual – devido à fragmentação de
condutas, de decisões e de informações decorrentes da própria divisão do trabalho
– modelos que partam da ação própria da coletividade, que não dependam da
identificação de ação individual e de culpabilidade também própria e específica
das coletividades tendem a fornecer respostas mais adequadas do que os modelos
de ação e culpabilidade individuais.
Além disso, modelos de responsabilidade derivada vêm atualmente sendo
considerados insuficientes por uma série de outras razões, dentre elas, o fato de
não estimularem que as organizações adotem medidas para melhorar sua estrutura
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77
organizacional, seus sistemas internos de vigilância e suas regras de compliance. A
discussão mais atual, diante disso, aponta para vantagens dos modelos que buscam
aferir a responsabilidade da organização a partir de critérios que dizem respeito à
própria pessoa jurídica.
O modelo de responsabilização adotado é especialmente relevante para a
discussão brasileira, pois, conforme apuramos em levantamento jurisprudencial, os
tribunais têm sido avessos à aceitação da denúncia sempre que a pessoa física tida
como responsável não é citada como co-réu, ao lado da pessoa jurídica. Apontam,
assim, para uma interpretação do modelo brasileiro atual - previsto na lei
ambiental - como um modelo de responsabilidade pelo fato de outrem com
culpabilidade individual. Diante desses resultados, é fácil enxergar um paradoxo.
A idéia de responsabilizar as pessoas jurídicas teria por escopo eliminar a
necessidade de demonstração de culpa ou culpas individuais, com ou sem dolo. A
adoção desse modelo remete novamente a essa dificuldade.
Não obstante, observamos que não se empreendeu até hoje no Brasil
qualquer esforço no sentido de avaliar o desempenho do modelo de
responsabilização penal da pessoa jurídica adotado e sua eficácia em eliminar os
obstáculos criados pelo princípio da responsabilidade individual.
A operacionalização do regime de responsabilização requer sejam levadas
em consideração, além da definição de seus limites, questões ligadas ao
funcionamento do instituto e sua harmonização com o sistema penal em vigência.
Indicamos em nosso trabalho uma série de problemas resultantes de lacunas
de regulamentação, especialmente de ordem processual penal. A falta de definição
dessas questões nos ajuda a compreender o significativo número de recursos ou
ações impugnativas, encontrados em nosso levantamento jurisprudencial, que se
referem a pedidos de extinção, trancamento ou recebimento das ações penais em
fases muito iniciais do procedimento e a baixa ocorrência de casos em que os
Tribunais chegaram a analisar o mérito da imputação de responsabilidade à pessoa
jurídica.
Além dos problemas que se manifestaram em nossas cortes, indicamos,
também, a necessidade de se criarem previsões específicas e regras de adaptação
do sistema penal às peculiaridades do instituto, tais como a criação de parâmetros
para o cálculo prescricional, aplicação de benefícios, realização de atos
processuais, critérios para determinação das sanções, formas de sua execução etc.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
78
A simples adoção do instituto sem que se proceda a adequações e regulamentações
desse tipo pode acabar minando completamente a eficácia de sua aplicação. Com
isso, todas as considerações que possivelmente tenham sido feitas acerca da
necessidade da responsabilidade coletiva e do potencial simbólico e preventivo da
sanção penal terão sido infrutíferas.
Por fim, mostramos que a discussão sobre a configuração do modelo de
responsabilização penal de pessoas coletivas, se for esta a via eleita, ainda assim
não deve restringir-se à esfera penal e deve necessariamente ser travada em
consórcio com outras áreas do Direito. Alguns fenômenos societários como a
transformação de pessoas jurídica e a organização em grupos empresariais trazem
conseqüências importantes para a responsabilização da organização e são
raramente tratados pelos penalistas. Um desenho de regulação eficaz não poderia
deixar de considerar tais hipóteses, sob risco de criar uma disciplina jurídica
inadequada à realidade a ser regulada. As pessoas jurídicas e outras coletividades
têm características muito distintas dos indivíduos, as quais, se não levadas em
consideração, podem resultar em normas inócuas – pela possibilidade que as
coletividades têm de contorná-las – ou com efeitos sociais negativos, no que se
refere ao desenvolvimento da atividade econômica. É preciso, por exemplo, regular
a responsabilidade nos casos de transformações das pessoas jurídicas – fusões,
cisões e incorporações – bem como os casos de atuação conjunta de pessoas
jurídicas que formam coletividades mais complexas, mas não personalizadas, como
os grupos societários.
Vale notar que nem a legislação vigente, nem os projetos de leis analisados
levam em consideração adequadamente as questões societárias e tampouco os
problemas de adaptação do instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica à
dinâmica já consolidada do sistema penal. Isso quer dizer que, mesmo no que diz
respeito à discussão de questões de ordem pragmática, há uma lacuna importante
no debate brasileiro, que, no limite, tende a perpetuar um sistema de
responsabilização pouco aplicado.
Outro ponto importante a ser destacado é a necessidade de discussão sobre
os tipos e as medidas de sanções adequadas ao fim social que se pretende atingir.
Há um equilíbrio delicado a ser obtido na escolha da forma de sanção à
pessoa jurídica e sua dosimetria. Se, de um lado, pretende-se que o agente repare o
dano, cesse a prática e que, de alguma forma, sejam obtidos efeitos de prevenção
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79
especial e geral; de outro, a sanção deve ser pensada de modo que o impacto
desejado seja obtido sem prejuízo aos demais interesses juridicamente relevantes,
como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de seus reflexos
positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja
dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Ou seja, em não se tratando de
casos de empresa puramente “de fachada”, esta questão não pode ser desprezada,
já que há também um interesse público relevante na observância do princípio da
preservação da empresa.
Entretanto, apesar da falta de estudos e discussões sobre o tema, o fato de se
tratar de um instituto completamente novo, em que necessariamente alternativas à
pena de privação ou restrição de liberdade deveriam ser pensadas, encontramos nos
projetos de leis analisados (ainda que em alguns casos a previsão devesse ser
aperfeiçoada) algumas previsões de sanções interessantes, como a sanção de
publicidade da sentença condenatória às expensas do condenado ou sanções que
abrem mão da finalidade retributiva ou repressiva e passam a trabalhar com a idéia
de prevenção direta. Pareceu-nos especialmente promissor aprofundar a discussão
acerca desse tipo de sanção que consideramos como medidas de prevenção direta,
pois buscam influenciar diretamente a conduta futura da empresa, sem a mediação
da inflição de um mal (como a determinação de adoção mecanismos de controle,
submissão a auditoria externa e adoção de regras de compliance, etc.). O sucesso
de tais medidas, contudo, parece depender de sua boa articulação, haja vista que
também impõem desafios de implementação.
De qualquer modo, vale chamar a atenção, em primeiro lugar, para a
necessidade de se travar um debate mais aprofundado, primeiro, sobre os fins que
se pretende alcançar com as sanções aplicadas a pessoas jurídicas e as alternativas
de institucionalização que se colocam atualmente à disposição do legislador. Em
segundo lugar, é preciso considerar também que a concretização da decisão de
aplicação da pena pelo juiz passa a enfrentar, no caso de pessoas jurídicas, novas
dificuldades e exige conhecimentos especializados que permitam compreender, por
exemplo, a dinâmica da atividade empresarial e a saúde econômica da empresa. É
preciso pensar em formas de incorporar tais questões e tais conhecimentos ao
processo penal tradicional e aos atores que não necessariamente os dominam e, no
geral, não estão habituados a lidar com esse tipo de realidade ou manejar todas as
variáveis nela envolvidas. Tais questões estão longe de ser supérfluas e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
80
negligenciá-las pode colocar a perder todos os esforços de construção de um
sistema adequado de responsabilização. Ademais, um sistema cego a essas
preocupações, que se coloque simplesmente a serviço de fins retributivos, poderá
inviabilizar ou mesmo afastar um ente produtivo da economia do país, com
prejuízo para a comunidade de trabalhadores, consumidores e credores e
conseqüentes perdas de bem-estar social.
Em suma, a presente pesquisa foi capaz de mostrar que, não obstante o
Brasil tenha adotado a responsabilidade penal de pessoas jurídicas há mais de dez
anos em um campo importante de aplicação do Direito penal (o direito penal
ambiental) e existam em tramitação propostas legislativas para ampliação do
âmbito de aplicação do instituto no Congresso Nacional, a jurisprudência sobre o
tema é pouco sólida e - o que é ainda mais preocupante - falta reflexão não
somente sobre a própria experiência pregressa na aplicação do instituto, como
também sobre questões relevantes que dizem respeito a formas alternativas de
configuração do sistema de responsabilidade coletiva, de modo a torná-lo mais
eficiente.
Este texto cumpre a função, que diante deste cenário nos parece de
extrema relevância, de apontar as lacunas de discussão e regulação e chamar a
atenção para a urgência de se incluí-las na agenda de pesquisas e discussões. Além
disso, mostramos que o conjunto complexo de fatores e variáveis envolvidos no
desenho da política pública de responsabilização de condutas praticadas no âmbito
de pessoas jurídicas e sua boa institucionalização demanda um olhar transversal e
interdisciplinar.
A nosso ver, o estreitamento do debate nos termos em que descrevemos
vem atrapalhando a imaginação institucional. É justamente na eliminação de
obstáculos cognitivos muitas vezes impostos pelo próprio campo teórico ao debate
público e aos formuladores de políticas públicas que está a principal contribuição
deste estudo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
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ANEXO 1 – PESQUISA EMPÍRICA
1. PARTE QUANTITATIVA
A decisão pela responsabilização penal da pessoa jurídica parte de várias
assunções discutidas neste trabalho. Uma delas é que a sanção penal é mais grave
que sanções de outras naturezas. É o objeto desta assunção que pretendemos
questionar na pesquisa empírica conduzida.
Buscamos verificar no presente estudo se a ameaça da sanção penal, tal
como percebida pelo agente potencial, é mais intensa do que sanções não penais
que se impõem sobre condutas substancialmente semelhantes à que recebe a
sanção penal.
Para os fins desta pesquisa empírica, é irrelevante o aspecto retributivo
associado à sanção penal. Isto não significa que os autores deste trabalho
desconsiderem a retributividade como função adequada à sanção penal, mas que,
no recorte utilizado, optou-se por um outro aspecto relevante. Este outro aspecto é
a perspectiva do agente potencial enquanto agente provido de racionalidade
limitada, maximizador de utilidades.
Ao enfocarmos as escolhas do agente potencial, propomos uma reflexão em
linha com a teoria de incentivos utilizada pela Law and Economics. Não é objetivo
desta pesquisa oferecer um modelo concreto e passível de juízo de eficiência a
respeito de qual deva ser a norma mais adequada para solucionar o problema dos
ilícitos praticados no âmbito da atividade das pessoas jurídicas. Não obstante,
acreditamos que os dados colhidos referentes às preferências do agente potencial
são fundamentais para avaliarmos a eficácia da aplicação das normas penais em
vigor, assim como para pensarmos as possíveis conseqüências associadas a
determinados modelos de responsabilização.
Dado que a pessoa jurídica não é passível de aplicação da pena de reclusão, e
considerando que sanções dirigidas à suspensão das atividades das pessoas jurídicas
podem gerar custos sociais indesejáveis, surgem as questões: (i) é conveniente que a
sanção aplicável à pessoa jurídica se dê como perda reputacional? (ii) a sanção penal
implica perda reputacional superior àquela imposta pela sanção civil?; (iii) será que as
próprias pessoas jurídicas prefeririam um sistema que as responsabilizasse penalmente
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
89
por ilícitos praticados no seu âmbito no lugar da responsabilização penal de pessoas
naturais?
Os pontos acima são objeto de controvérsia entre autores como Fisse e
Braithwaite, de um lado, e, de outro, autores filiados à Law and Economics. Os
primeiros não apenas defendem que a perda reputacional deve ser imposta a pessoas
jurídicas, como entendem que a sanção penal é superior a sanções de outras naturezas
em sua capacidade de impor tal perda. Nesta pesquisa, retomamos tais questões e as
integramos à análise dos dados coletados.
A pesquisa realizada não permite inferir se uma eventual imposição de sanção
penal a pessoas jurídicas implicaria custo maior ou menor à sua reputação do que aquele
decorrente de sanções de outras naturezas que podem recair sobre a pessoa jurídica. Até
onde pudemos constatar dos dados coletados entre os entrevistados, prevalece uma
opinião que confirmaria a hipótese de Brown, apresentada na Parte II, item 4.1.4, no
sentido de que gestores e funcionários de empresas não teriam motivos para se opor à
responsabilização penal da pessoa jurídica. Os que manifestam essa visão sugerem que
as sanções penais às pessoas naturais são por estas percebidas como produtoras de
danos à sua reputação em grau maior do que o de outras sanções a pessoas naturais ou
sanções a pessoas jurídicas.
A situação-problema utilizada é a seguinte:
Considerando empresas que, por quaisquer razões, tenham optado por deixar
de pagar credores num determinado período de tempo, sendo que:
• o conjunto de credores é composto por particulares, pelo Fisco e pelo INSS
(credor da contribuição devida quanto à parcela do empregado);
• o inadimplemento ao INSS é caracterizado como apropriação indébita, sujeita
à sanção penal;
• a empresa deve fazer escolha por prioridade em relação a quais de seus
credores serão pagos e quais não serão pagos;
• um dos credores não-pagos é o INSS, pela contribuição devida quanto à
parcela do empregado.
Pergunta-se: qual é o regime de prioridades usualmente feito por empresas em
tais condições?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
90
Se constatarmos que os agentes usualmente preferem pagar outros credores
a pagar o INSS, então em princípio podemos concluir que a sanção penal aplicável
ao agente condenado por apropriação indébita tem baixo potencial de dissuasão em
relação a outras sanções.
1.1 Descrição dos pressupostos para escolha da situação-problema
Como discutido na presente pesquisa, tradicionalmente reputa-se à sanção
penal as funções: (i) de intimidação ou prevenção geral (especial ou geral); (ii)
retributiva (inflição de um mal ou expressão de reprovação pública); (iii) de
reforço simbólico a valores, instituições, normas ou sistemas normativos
(prevenção geral positiva).
O tema da demonstração empírica da eficácia da sanção, em suas diferentes
funções, é de difícil aferição, como tantas vezes já apontado pela criminologia 47 e
pela própria evolução da teoria do delito. 48 Do ponto de vista normativo, este
trabalho não assume nenhuma posição com relação à função que a pena deve
exercer na sociedade. Assume, apenas, que ela pode produzir efeitos cognitivos
sociais.
Diante das sabidas dificuldades de uma demonstração empírica de tais
47
A psicologia moral, notadamente por meio dos estudos empreendidos por Lawrence Kohlberg, buscou
aferir os níveis de desenvolvimento moral, a partir dos quais poder-se-ia analisar o papel que uma
eventual sanção venha a desempenhar nas decisões morais. O resultado desse confronto, porém, só teria
serventia na hipótese de todas as normas penais conterem conteúdos morais, o que não é o caso. Além dos
casos evidentes de delitos esvaziados de conteúdo moral, como os de criminalização de infrações
administrativas, até mesmo no homicídio podem colidir direito e moral: basta pensar em que comete
eutanásia, inspirado na generosidade, um dos valores morais por excelência: age conforme a moral e
contrário ao Direito. Assim, as únicas aproximações conhecidas são aquelas relacionadas ao papel da
sanção penal em fenômenos amplamente considerados. É o caso da queda do número de abortos, na
Alemanha, após a descriminalização da conduta e da ineficiência do endurecimento dos crimes
hediondos, no tocante à prevenção do delito. No primeiro caso, demonstrou-se que a sanção penal
impedia que a gestante fosse esclarecida pelo Estado dos impactos de saúde de sua decisão, bem como
dos serviços que a ela estariam disponíveis, caso ela optasse pela manutenção da gravidez (vide, por
todos, FAÚNDES et al., 2007). No segundo, a conclusão foi obtida a partir de estudos de projeção e de
evolução, demonstrando que o aumento de punição não gerou diminuição de condutas (ILANUD, 2007).
48
Basta ver como a crise do finalismo, vivida na década de 1970, na Europa, deu-se ao redor da
impossibilidade de demonstração do livre arbítrio e, via de conseqüência, à aludida capacidade inata de o
sujeito escolher entre o prazer potencialmente obtido por meio da infração e o desprazer consubstanciado
na pena. Ainda em 1970, Gimbernat Ordeig em seu famoso Hat die Strafrechtsdogmatik eine Zukunft?
(1970, p. 379-410) propunha o fim da culpabilidade, idéia desenvolvida, em 1976, por Günther Jakobs em
Schuld und Prävention . Claus Roxin buscou contornar a questão a partir do alinhamento políticocriminal da dogmática à necessidade preventiva da pena, como defendeu em Kriminalpolitik und
Strafrechtssystem (1973).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
91
efeitos, propomo-nos a nos aproximar da questão a partir da observação de alguns
dados empíricos, que trazem alguns dos aspectos envolvidos na discussão sobre
sanções. Não obstante tais limitações, conforme apresentaremos a seguir,
consideramos que as observações feitas a partir de tais dados trazem pontos
fundamentais à discussão do problema.
Tendo em vista as dificuldades em se trabalhar empiricamente com a
prevenção geral positiva, esta pesquisa escolheu tratar apenas de dois tipos de
efeitos tradicionalmente reputados a ela: as idéias de intimidação e de retribuição.
Nesse sentido, consideramos o seguinte:
Quanto à função de intimidação: é preciso contrastar o grau de intimidação
da sanção penal com o grau de intimidação de outras sanções não penais. Para
tanto, é necessário partir da perspectiva daquilo que o agente potencial percebe
como quadro de ameaças de sanções que pode sofrer por condutas análogas.
Devemos tomar dilemas verossímeis (situações que colocam ao agente a decisão
entre proposições contemporâneas e de igual valor) e com registro de aceitação de
uma das proposições. Assim, devemos excluir os falsos dilemas, os dilemas
inexistentes e os dilemas não inferíveis.
Falso dilema: trata-se de submeter um quadro de opções ou proposições à
escolha do agente, sendo que tais proposições são ou acarretam conseqüências não
comensuráveis. Como exemplo, bastaria considerar que um indivíduo possa
enfrentar um dilema entre praticar um homicídio e estacionar um veículo em local
proibido. Não faria sentido compararmos o grau de intimidação percebido por um
agente diante de tal dilema, pois se trata de um falso dilema.
Dilema inexistente: trata-se de supor a necessidade de escolha entre duas
proposições, sendo que falta a motivação primordial para a escolha. Apesar de
parecer bastante trivial, o problema do dilema inexistente muitas vezes não é
compreendido, pois é confundido com o dilema não inferível. Como exemplo,
considere exigir de um indivíduo abastado, que valoriza mais o ócio do que o
trabalho, que decida entre furtar e trabalhar. Falta-lhe a motivação primordial para
a escolha e, portanto, o dilema inexiste.
Dilema não-inferível: trata-se de uma situação em que não se conhece nem
as preferências (motivações primordiais) dos agentes potenciais, nem se sabe se
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
92
enfrentaram um dilema, pois não há registro da decisão por uma das proposições.
Para ilustrar, tome-se a seguinte situação: sabe-se que numa comunidade de 10
milhões de habitantes, 2 mil habitantes cometeram o crime de furto num
determinado período. Pergunta-se: o que deve ser inferido em termos de grau
intimidatório da sanção ao crime de furto a respeito dos demais 9.998.000
habitantes? A resposta correta é que nada pode nem deve ser inferido a respeito
desta população, pois não se tem qualquer dado a respeito de sua motivação
primordial para o cometimento (ou para o não-cometimento) do crime de furto e
não se sabe se o dilema foi enfrentado por aqueles que não o cometeram. Aqui,
somente seria possível inferir dilema a partir do registro quanto à ocorrência do
furto ou de tentativa de furto. Mas se o agente cogita cometer o furto e desiste de ir
em frente, não temos como obter registro de enfrentamento do dilema. Supor, sem
dados, que tais habitantes teriam motivação para cometer o crime de furto e que só
se abstiveram de cometê-lo em função da percepção quanto ao risco de sofrerem a
sanção seria equivocado.
Análise relevante (dilemas com registro): deve ser feita apenas sobre o
conjunto de indivíduos em relação aos quais há registro de ter enfrentado o dilema
e optado pela exposição à ameaça de sofrer sanção penal. Ao compreendermos
como as proposições foram valoradas pelos agentes que praticaram o crime,
podemos com base na realidade (e não numa suposição infundada sobre a
realidade) reformular o conjunto institucional que compõe tais valores e então
desenhar políticas públicas vinculadas a uma determinada expectativa de efeito
sobre a realidade.
Quanto à função retributiva: em sua concepção tradicional, a função
retributiva justifica-se pela vontade do grupo social que sustenta sua imposição e
não pela expectativa de reação a ela por parte do agente potencial (embora possa
estar presente). Embora seja legítimo e necessário ponderar a respeito do grau de
mal infligido pela sanção, a decisão coletiva a respeito de expressar reprovação a
uma conduta satisfaz a moralidade do próprio grupo que deseja manifestar tal
expressão. Assim, não faria sentido buscar a mensuração da eficácia da função
retributiva. Ela se impõe ou não por força de uma convenção social, mediante ato
de força concretizado na normatização.
Nosso problema primordial é verificar o grau de dissuasão da sanção penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
93
Na situação-problema selecionada, temos os quesitos necessários para uma
aproximação quanto à percepção dos agentes potenciais a respeito do grau de
intimidação penal.
Esses quesitos são: (i) um dilema real, geralmente ocasionado pela escassez
de recursos do agente potencial e a necessidade de distribuí-los entre diferentes
atores com os quais o agente potencial deve lidar; (ii) condutas substancialmente
análogas que geram sanções de diferentes naturezas; e (iii) a ameaça de sanção
penal presente na hipótese de inadimplemento da contribuição devida ao INSS pela
parcela do empregado.
1.2 Ressalvas quanto à validade e utilidade da hipótese escolhida
Quanto à função da sanção penal: como colocado acima, não cabe
questionar o grau de eficácia da sanção penal em sua função retributiva. Ou seja,
se o principal motivo da opção pela responsabilização penal for o retributivo, então
o presente estudo mostra-se irrelevante.
Contudo, se o propósito de utilização da sanção penal for de prevenção
geral negativa, torna-se imperativo partir dos dados da realidade (e não de meras
suposições ou apostas) para então tomar uma decisão informada a respeito da
expectativa real que se quer ter com a opção pela utilização da via penal.
Quanto à escolha do crime de apropriação indébita: (e exclusão do crime
de sonegação fiscal): na apropriação indébita é razoável assumir que a
probabilidade do agente ser autuado é mais alta do que no crime de sonegação
fiscal, já que não é preciso provar fraude na apropriação indébita. Basta o
inadimplemento. O agente que pratica este crime provavelmente experimenta
dificuldade econômico-financeira, o que não necessariamente se verifica para
quem comete sonegação fiscal. A situação de crise caracteriza um domínio de
perda o que reduz as variáveis a serem consideradas e propicia uma melhor
aproximação ao dilema: os credores inadimplidos relevantes procurarão satisfazer
seus créditos contra a devedora e, exceto em caso de dependência em relação à
devedora, suspenderão relações. Se tomarmos a metáfora de jogos e considerarmos
como jogadas as decisões tomadas pelas empresas e seus credores, temos que as
empresas em crise tipicamente se encontram em cenário de finitude de jogadas
(diferentemente do que acontece numa empresa solvente). As decisões têm que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
94
visar ao aumento do número de jogadas (continuar no jogo), sendo que qualquer
aumento marginal (em termos de número de dias em funcionamento) é percebido
como um benefício. Todo este quadro é menos complexo em termos de variáveis e
incentivos percebidos pelo agente do que o quadro de sonegação.
Quanto ao fator “suspensão da punibilidade mediante pagamento”: A
possibilidade de pagar a contribuição previdenciária devida e extinguir a
punibilidade é um fator que pode amenizar o caráter intimidatório da sanção, mas
não o elimina.49 Cabem aqui duas assunções relevantes:
(a)
Excesso de auto-confiança por parte do gestor: para retomarmos a
metáfora das jogadas exibida no item anterior, devemos considerar que a suspensão da
punibilidade mediante pagamento pode ser tratada apenas como uma “segunda chance”
ou “segunda rodada” oferecida ao particular em relação ao INSS. Isso não anula a
existência de caráter intimidatório da sanção penal associada à apropriação indébita,
pelo seguinte: caso o agente queira apostar na “segunda rodada”, necessariamente terá
que partir de uma das duas “estratégias”: (i) reservar caixa para pagamento pela
suspensão da punibilidade e arcar com encargos ou (ii) apostar na capacidade de
geração de receita futura capaz de pagar pela suspensão de punibilidade. As duas
exibem excesso de auto-confiança por parte do gestor, sendo que na segunda esse fator
é ainda mais intenso;
49
Legislação e jurisprudência quanto à possibilidade de extinguir a punibilidade pelo crime de
apropriação indébita previdenciária sofreram várias alterações nas últimas décadas. O crime de
apropriação indébita previdenciária vem tipificado no art. 1º da Lei 9.983/2000, que acrescentou ao
Código Penal um Art. 168-A, o qual define apropriação indébita previdenciária como “deixar de pagar à
previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional”
e prescreve a pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. O §2º de tal dispositivo estabelece
que “é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das
contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma
definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”. Até 2003, só haveria extinção da
punibilidade por apropriação indébita previdenciária com pagamento integral e anterior ao recebimento
da denúncia. O PAES – Programa de Parcelamento Especial (ou REFIS II), criado pela Lei 10.684/2003,
passou a admitir a “suspensão da pretensão punitiva do Estado” referente à apropriação indébita
previdenciária durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente do crime estivesse
incluída no regime de parcelamento (art. 9º). Pela lei instituidora do PAES, uma vez feito pagamento
integral dos débitos, a punibilidade pelo crime de apropriação indébita previdenciária seria extinta (art. 9º,
§2º). Como esses dispositivos não fazem referência ao recebimento ou não de denúncia para fins de
suspensão e extinção de punibilidade, passou-se a interpretar a Lei 10.684/2003 como autorizadora da
suspensão (mediante inscrição no programa de parcelamento) e da extinção de punibilidade (pelo
pagamento total) independentemente de oferecimento de denúncia. Já o REFIS III, criado pela Medida
Provisória No 303, de 29 de junho de 2006, exclui do respectivo programa de parcelamento os débitos
relativos a impostos e contribuições retidos na fonte ou descontados de terceiros e não recolhidos à
Fazenda Nacional ou INSS (art. 2º, I).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
95
(b)
Custo reputacional independente de condenação: embora decorram da
sentença condenatória com trânsito em julgado inúmeras conseqüências relevantes para
o condenado (a própria imposição da sanção, a perda da primariedade, etc), dependendo
do valor da imagem do agente e do respectivo grau de suscetibilidade a abalos, a
condenação é desnecessária para afetar a imagem. Como se sabe, há muitos casos em
que a mera publicização da autuação e da investigação produzem abalo substancial
sobre a reputação do agente.
1.3 Dados coletados
A pesquisa foi desenvolvida mediante coleta de dados quantitativos e dados
qualitativos.
Tipos de dados quantitativos e qualitativos
(i) quantitativo: informações referentes ao período de 1988 e 2008 extraídas de
processos judiciais relativos a 50 (cinqüenta) empresas acusadas de apropriação indébita
por não-recolhimento do pagamento de INSS-empregado, e que no mesmo período
foram acionadas por outros credores. Estas informações foram reunidas no gráfico
reproduzido abaixo (cuja versão detalhada consta dos Anexos 1 e 2) e no banco de
dados em tabela Excel (Anexo 3) . Descrição detalhada quanto à coleta destes dados
segue abaixo.
(ii) qualitativo: entrevistas com 10 (dez) advogados de três especialidades
diversas que trabalham em escritórios de advocacia de primeira linha em São Paulo,com
um membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e com um Procurador
do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). O objetivo da parte qualitativa é auxiliar
possíveis interpretações dos dados extraídos da parte quantitativa. Uma compilação
organizada das informações obtidas nas entrevistas, bem como descrição detalhada
quanto à coleta destes dados segue abaixo.
Limitações de representatividade:
(i) quanto à parte quantitativa: considerando a dificuldade na coleta de dados
para a parte quantitativa, nossa amostra de 50 empresas é muito pequena para permitir
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
96
generalização de comportamento em relação a empresas não compreendidas na amostra,
que enfrentaram situação análoga.
(ii) quanto à parte qualitativa: não assumimos relação de Proxy entre as
declarações dos entrevistados e a realidade de conduta de seus clientes. Como explicado
na seção própria, os dados obtidos nas entrevistas servem para alimentar a análise da
parte quantitativa.
1.4 Método de coleta de dados para a parte quantitativa:
Para o desenvolvimento da pesquisa empírica, selecionamos decisões
proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) que versassem
sobre o crime de apropriação indébita (art. 168-A do Código Penal).
Este
levantamento foi feito no banco de dados disponível na página web do Tribunal
(http://www.tj.sp.gov.br), por meio da referência legislativa “CP-40 e 168-A”,
entre os dias 15 e 23 de fevereiro de 2009. Do resultado de 768 decisões,
consultamos 230 acórdãos que atenderam aos seguintes critérios: (i) sede de
apelação criminal; (ii) condenação proferida pelo TRF3; (iii) origem da Seção
Judiciária de São Paulo e (iv) valor consolidado de não recolhimento de INSS
superior a 40 salários-mínimos (aproximadamente 18 mil reais).
Do nosso universo inicial de 230 acórdãos, somente 128 acórdãos
atenderam aos critérios supra mencionados. A partir destas decisões extraímos o
nome da empresa que deixou de repassar os valores descontados de verbas
trabalhistas à Previdência, e verificamos se havia execuções cíveis e fiscais em seu
nome na primeira instância do estado de São Paulo. Para esta investigação
utilizamos o sistema de “Consulta das informações relativas à tramitação dos
processos de Primeiro e Segundo Grau” disponível no portal eletrônico do
Tribunal
de
Justiça
do
Estado
de
São
Paulo
–
TJSP
(http://www.tj.sp.gov.br/consulta/Processos.aspx).
As empresas sediadas fora da capital do Estado foram consultadas em seus
respectivos foros distritais, que indicam tanto processos de execução cível quanto
fiscal. Já as empresas paulistanas foram objeto de investigação nos Foros
Regionais (Santana, Santo Amaro, Jabaquara, Itaquera, Vila Prudente, Ipiranga,
Pinheiros, Nossa Senhora do Ó, Lapa, São Miguel Paulista, Penha de França,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
97
Tatuapé e Parelheiros) e o Foro central (Fórum João Mendes), na busca por
execuções cíveis; as execuções fiscais foram pesquisadas somente no âmbito
estadual, disponíveis no sistema da Companhia de Processamento de Dados do
Estado de São Paulo (PRODESP), também disponível na página da web do TJSP.
Todas as empresas que eram rés em quaisquer processos foram selecionadas
e tabeladas no software Excel ®, conforme os seguintes critérios: (i) número do
processo no TRF3, (ii) nome da empresa; (iii) tipo penal presente na condenação;
(iv) período de não-recolhimento de INSS; (v) sede da empresa, (vi) data da
distribuição do processo nas varas (cíveis, fiscais ou da Fazenda Pública) e (vii)
tipo de ação processual.
Considerando o período de não recolhimento de INSS, selecionamos, nas 50
empresas registradas, ações de execução que foram distribuídas até um ano antes
do início do não recolhimento e seis anos após o fim do último débito
previdenciário. Este intervalo de tempo visa abarcar os processos ajuizados dentro
do prazo prescricional de cinco anos para propositura de ações, e de mais um ano,
como tempo para o Fisco ajuizar a execução fiscal após a inscrição na dívida
ativa.A abrangência destes períodos permite-nos observar a escala de prioridades
eleita pelo agente para estipular o tratamento dispensado a cada um dos grupos de
interesses na empresa com os quais lida
Optamos por este caminho para o levantamento empírico em razão da
inexistência de bancos de dados de acesso público e/ou gratuito sobre a saúde
financeira das empresas no Brasil e de processos judiciais em que atuem no pólo
passivo. Ao longo da pesquisa, percebemos que o cruzamento de dados
relacionados a informações para crédito, como protesto de títulos, ou ações
judiciais cíveis e as criminais com as respectivas empresas inexiste, uma vez que
cada tipo de informação, quando disponível em meio eletrônico, pertence a um
banco de dados independente. Por exemplo, as principais informações sobre
crédito de empresas estão disponíveis nos bancos de dados do Serasa
(Centralização de Serviços de Bancos S.A), cujo acesso é restrito e pago, enquanto
que as ações judiciais podem ser consultadas pela página eletrônica do TJSP, cujo
banco, apesar de público, é incompleto.
Diante das dificuldades encontradas para a obtenção de dados, optamos pela
utilização de fontes públicas (bancos de dados do TRF3 e do TJSP) para o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
98
levantamento de empresas nas quais seu administrador foi réu em um processo
criminal e o posterior cruzamento destas informações com eventuais processos
cíveis, para então identificarmos a situação financeira da empresa. Assim,
conseguimos utilizar fontes de acesso público e gratuito, atribuindo maior
transparência metodológica à pesquisa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
99
1.5 Gráficos com organização dos dados coletados:
A) Gráfico para Cenário 1:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
100
B) Gráfico para Cenário 2:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
101
1.6 Tratamento e análise dos dados coletados na pesquisa quantitativa
Dados de natureza distinta para grupos de credores
Doravante utilizaremos a denominação de “Dado A” para dado de evento de
inadimplemento e “Dado B” para evento de ajuizamento de ação de cobrança ou
execução.
A)
Dados referentes à dívida INSS-empregado (doravante denominados
“Grupo de Dívida INSS”): quanto a estes, referem-se ao período de inadimplemento.
Este período consta nas faixas indicadas no gráfico.
B)
Dados referentes a outras dívidas (doravante denominados “Grupo
Outros Credores”): quanto a estes, referem-se às datas de ajuizamento de ações judiciais
de conhecimento, cobrança e execução individual e coletiva (pedido de falência). Não
levantamos execuções na Justiça do Trabalho. O Grupo de Outros Credores subdividese em “Outros Credores-Fisco” (triângulo preto) e “Outros Credores-Particular”
(triângulos azul, vermelho e cinza). Triângulos vermelhos, que representam ajuizamento
de pedido de falência, necessariamente referem-se a credores particulares, pois nem o
Fisco nem o INSS têm legitimidade para requerer falência. Além disso, quanto às
dívidas perante o Fisco, os dados levantados não nos permitem saber quantas são as
execuções relativas a dívidas declaradas pelo contribuinte e dívidas não-declaradas pelo
contribuinte (sonegação). Observamos que:
B.1)
Os Dados B relevantes para a análise referem-se a ações que
implicam cobrança ou que de qualquer forma implicam constrição ao patrimônio, como
execução, busca e apreensão, possessórias, etc. (triângulos azul, preto, vermelho e
cinza). Embora constem no gráfico, desprezamos na análise dados referentes a ações no
grupo indicado pelo triângulo amarelo, pois estas têm por objeto requerer o
reconhecimento de um direito e então apurar sua liquidez. Interessam-nos apenas os
casos em que há exigibilidade e liquidez do crédito, pois estes criam o dilema para o
devedor.
B.2)
O custo de acesso a dados quanto à data precisa de
inadimplemento do crédito executado ou cobrado nestas ações (Dados A) seria
proibitivo para a realização desta pesquisa. Por isso a diferença da natureza de dados
entre os Grupos A e B.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
102
(i)
Tratamento dos dados, considerando a natureza distinta para
os Grupos A e B: Inferência de A (inadimplemento) em função de B (ajuizamento): se
quisermos seguir literalmente a hipótese lançada no estudo, teríamos que comparar
dados com a mesma natureza. Já observamos que isto seria inviável em termos de
custos associados à obtenção de dados referentes à data de inadimplemento para o
Grupo B. Os dados do Grupo B nos permitem inferir o dado obtido para o Grupo A.
Esta inferência é função do prazo prescricional para ajuizamento de ações de cobrança e
de execução, que é de cinco anos para os sub-grupos B. Assim, em princípio qualquer
dado relativo ao Grupo B necessariamente se refere a eventos de inadimplemento
ocorridos entre o dia anterior ao dia D do ajuizamento menos cinco anos.
(ii)
Assunção do Dado A para o Grupo “Outros Credores-
Particulares”: não obstante o prazo prescricional de cinco anos indicado no item acima
para propositura de ações, advogados especializados em litígios cíveis afirmam que, na
maior parte dos casos, tratando-se de credor não financeiro, este leva em média entre
um e dois meses para ajuizar uma ação de execução contra o devedor, depois de
notificá-lo extrajudicialmente do inadimplemento; tratando-se de instituição financeira,
esta costuma levar em média entre dois e quatro meses para ajuizar uma ação de
execução contra o devedor após a notificação extrajudicial para pagamento. Assim,
assumimos que o Dado A é contemporâneo ao Dado B para o Grupo “Outros CredoresParticular”.
(iii)
Assunção do Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco”:
Se soubéssemos para cada dado dentro do Grupo “Outros Credores-Fisco” qual se refere
a uma dívida declarada e qual se refere a uma dívida sonegada, poderíamos isolar o
subconjunto das declaradas, para as quais poderíamos trabalhar a assunção de
simultaneidade entre o Dado B e o Dado A. Já para as não-declaradas, precisaríamos
proceder a uma análise combinatória abrangendo cada um dos eventos distribuídos entre
o ano um ao ano cinco, para então construirmos todos os cenários possíveis de
priorização do agente. Isto porque:
• Quanto ao Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco” tratandose de dívida declarada pelo contribuinte: não obstante o prazo prescricional de cinco
anos indicado no item acima para propositura de ações, advogados especializados em
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
103
execuções fiscais afirmam que o Fisco costuma levar entre seis meses e um ano para
ajuizar a execução fiscal após a inscrição na dívida ativa.
• Quanto ao Dado A para o Grupo “Outros Credores-Fisco” tratandose de dívida não declarada pelo contribuinte (sonegação): a execução fiscal relativa
a dívidas não declaradas depende de fiscalização da autoridade competente. Ao
conduzirem a fiscalização, os agentes do Fisco procuram checar todos os dados
relativos aos últimos cinco anos, justamente em função da prescrição para a ação
executiva. Assim, uma ação de execução fiscal referente à dívida não-declarada pode
referir-se a um evento de inadimplemento ocorrido no máximo cinco anos antes do
ajuizamento.
• Tratamento para o problema indicado no item (iii) acima: ao invés de
procedermos a uma análise combinatória de todas as possibilidades referentes à
assunção do Dado A para o Dado B no que respeita os “Outros Credores-Fisco”,
optamos por construir dois cenários hipotéticos quanto aos dados obtidos. No Cenário 1,
trabalhamos com um Dado A simultâneo aos Dados B referentes aos “Outros CredoresFisco”. No Cenário 2, trabalhamos com um Dado A que se assume ocorrido cinco anos
antes dos Dados B referentes aos “Outros Credores-Fisco”. Assim, para obtermos o
Dado A neste Cenário 2, deslocamos para a esquerda do gráfico todos os Dados B
referentes aos “Outros Credores-Fisco” por empresa num espaço correspondente a cinco
anos.
Controle de contemporaneidade do dilema – corte temporal anterior e
posterior ao período de inadimplemento perante o INSS:
Desprezamos da análise todos os eventos de cobrança, execução, possessórias,
etc. ajuizados pelo Grupo Outros Credores, situados antes dos cinco anos anteriores ao
marco inicial do período de inadimplemento ao INSS. Desprezamos também os eventos
ocorridos a partir do 6º ano posterior ao termo final do período de inadimplemento,
ressalvando-se a análise do Cenário 2. Isto porque assumimos que os eventos que ficam
de fora destes marcos temporais podem não estar relacionados com as mesmas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
104
circunstâncias de crise que motivam o dilema (o dilema só existe se as proposições
forem razoavelmente contemporâneas).
1.7 Resultado da análise de dados quantitativos por construção de cenários
Cenário 1: Assunção de simultaneidade entre os Dados A e os Dados B para
o Grupo “Outros Credores”
Das 50 empresas analisadas, 34 optaram por deixar de recolher o INSSempregado em primeiro lugar, isto é, antes de inadimplirem qualquer outro credor
que tivesse ingressado com uma medida de cobrança, executiva ou possessória. O
não pagamento de INSS-empregado foi, portanto, selecionado como topo em
priorização negativa para 68% da amostra (Grupo de Empresas I).
A leitura mais minuciosa do gráfico deve interpretar a freqüência e
distribuição temporal dos Dados B relativos ao Grupo Outros Credores em
contraste com o período de não recolhimento de INSS-empregado. Se aplicarmos
esta perspectiva de leitura quanto às remanescentes 17 empresas (executadas ou
cobradas por pelo menos um credor antes de inadimplirem o INSS-empregado),
temos que:
Dentro das remanescentes 17 empresas, 13 empresas têm a maior parte de
eventos de execução ou cobrança pelo Grupo Outros Credores majoritariamente
concentrada posteriormente ao início do não recolhimento do INSS. Isto significa
que tais empresas mantiveram-se solventes com a maioria de seus outros credores
no momento em que deixaram de recolher o INSS-empregado, mas, após um
determinado período em que já estavam inadimplentes com INSS e com uma
minoria de seus outros credores, não conseguiram mais satisfazer os créditos
relativos à maioria do Grupo Outros Credores.
Essa dinâmica de priorização é indicada no gráfico pela esmagadora
incidência de eventos de cobrança, execução e possessórias do Grupo Outros
Credores situada na zona à direita do gráfico, isto é, à direita da indicação dos
termos iniciais do período de inadimplemento de INSS-empregado. O perfil de
priorização deste sub-grupo de 13 empresas (Grupo de Empresas II) alinha-se ao
perfil do Grupo de Empresas I.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
105
Devemos ainda tentar interpretar a relação entre encerramento do período
de
inadimplemento
de
INSS-empregado
e
eventuais
eventos
ocorridos
posteriormente a este termo final. Uma leitura plausível é a de ocorrência de
inversão de prioridades, eventualmente ocasionada pela necessidade de pagar o
INSS-empregado para suspender a punibilidade. Numa aproximação quanto à
dinâmica provável do regime de priorização, teríamos que determinados
empresários primeiro deixam de pagar o INSS-empregado e enquanto isso,
continuam pagando todos ou a maioria do Grupo Outros Credores; posteriormente,
surge a “segunda chance” ou “última rodada” na interação com INSS, em que se
coloca ao empresário o dilema “pague o INSS-empregado ou sofra as
conseqüências da responsabilização penal”. Nesta ocasião, muitos empresários
aparentemente conseguem pagar o INSS-empregado, e continuam funcionando.
Isto se infere pela existência de eventos de cobrança, execução, possessórias, etc.,
posteriores ao termo final do período de inadimplemento ao INSS. Uma
interpretação possível é que se trata de inversão de prioridade. Esta interpretação,
no entanto, só se sustenta se, depois de pagarem o devido a título de INSSempregado, tais empresas não voltaram a inadimplir a contribuição no período
analisado. Se elas voltaram a inadimplir o INSS-empregado, mas o dado apenas
não aparece no gráfico por não terem sido fiscalizadas pelos agentes do INSS ou
não terem sido condenadas judicialmente, então a hipótese de inversão de
prioridades não se aplica ou é mitigada. Caso aplicável, o movimento de inversão
de prioridades pode ser percebido para 44 empresas, das 50 do gráfico, ou seja,
88% da amostra. Consideremos agora as três empresas remanescentes, excluídos os
Grupos de Empresas I e II (estes exibem perfil de priorização substancialmente
idêntico): destas, duas deram prioridade mediana ao pagamento do INSS. A
empresa indicada na linha “3” do gráfico fez a seguinte prioridade positiva: 1º
Outros Credores-Particulares, 2º INSS e 3º Outros Credores-Fisco. A empresa
indicada na linha “40” teve dois pedidos de falência pouco antes de deixar de
pagar o INSS-empregado. É razoável supor que tenha elidido tais pedidos e
continuado solvente em sentido jurídico. Se ela de fato elidiu os pedidos, é porque
cedeu às pressões do Grupo Outros Credores-Particulares e logo inverteu sua
prioridade inicial. Passou a primeiro deixar de pagar o INSS-empregado, para
depois de alguns anos deixar de pagar credores do Grupo Outros CredoresParticulares. O que prevalece para a análise é a estratégia de prioridade inicial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
106
Apenas uma estabeleceu topo de prioridade positiva ao pagamento ao INSSempregado (empresa indicada na linha “12” do gráfico).
O resultado final para o Cenário 1 é o seguinte:
• 94% das empresas da amostra preferem priorizar o pagamento da maioria
do Grupo Outros Credores ao pagamento de INSS-empregado;
• 68% das empresas da amostra deixam de pagar o INSS-empregado antes
de qualquer outra dívida;
• 88% das empresas da amostra provavelmente adotam a estratégia de
inversão de prioridades, para extinguirem ou suspenderem a punibilidade da
apropriação indébita;
• 4% das empresas da amostra atribuem prioridade mediana ao pagamento
de INSS-empregado;
• 2% das empresas da amostra priorizam totalmente o pagamento de INSSempregado sobre quaisquer outras dívidas.
Cenário 2: Para o Grupo Outros Credores-Fisco, o Dado A ocorre 5 anos
antes do Dado B; para o Grupo Outros Credores-Particulares, o Dado A é
simultâneo ao Dado B.
Das 50 empresas analisadas, 20 optaram por deixar de recolher o INSSempregado em primeiro lugar, isto é, antes de inadimplirem qualquer outro credor
que tivesse ingressado com uma medida de cobrança, executiva ou possessória. O
não pagamento de INSS-empregado foi, portanto, selecionado como topo em
priorização negativa para 40% da amostra (Grupo de Empresas I).
Das remanescentes 30 empresas deduzido o grupo acima, 24 optaram por
deixar de pagar o Fisco em primeiro lugar. Nestas, o padrão de prioridade de
pagamento é o seguinte: 1º Outros Credores Particulares; INSS e por último o
Fisco. Supõe-se que se trate de casos relacionados à sonegação fiscal detectada por
fiscalização.
Provável inversão de prioridade: 44 empresas.
Das seis empresas remanescentes, deduzidos os conjuntos acima, há dois
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
107
perfis claramente distintos: quatro empresas dão alta, porém não total prioridade
negativa ao INSS-empregado, o que se infere pela concentração maior de dívida ao
Grupo Outros Credores-Particular após o inadimplemento com o INSS. Para três
destas quatro, inexiste dívida fiscal ou não houve autuação. Uma das quatro
priorizou positivamente a dívida fiscal em relação à de INSS-empregado, mas, de
modo geral, apresentou topo de prioridade de pagamento para o Grupo Outros
Credores-Particulares.
Quanto às 2 empresas remanescentes, deduzidos os conjuntos acima, temos
o caso das empresas indicadas nas linhas “5” e “40” do gráfico, para as quais as
inferências presentes no Cenário 1 não se alteram. Para tais empresas inexistiu
dívida fiscal no período considerado ou não houve a respectiva autuação.
O resultado final para o Cenário 2 é o seguinte:
• 40% das empresas da amostra deixam de pagar o INSS-empregado antes
de qualquer outra dívida;
• 48% das empresas da amostra estabelecem a seguinte prioridade positiva:
1º Grupo Outros Credores-Particulares; 2º INSS-empregado; e 3º Fisco;
• 88% das empresas da amostra provavelmente adotam estratégia de
inversão de prioridades;
• 8% das empresas da amostra atribuem prioridade mediana ao pagamento
do INSS-empregado (embora não no topo de negativa), priorizando positivamente o
Grupo Outros Credores-Particulares;
• 4% das empresas da amostra priorizam totalmente o pagamento de INSSempregado sobre quaisquer outras dívidas.
1.8 Conclusão sobre os dados quantitativos
A conclusão a partir destes dados é que, tendo ocorrido ou não a inversão de
prioridades, a maioria dos agentes na amostra preferiu a condenação penal a sanções
não penais. Isto porque sabemos que houve condenação penal por apropriação indébita
em todas as 50 empresas da amostra. O ponto era identificar se as empresas tinham
deixado de pagar seus redores particulares antes ou depois de terem deixado de pagar o
INSS. Como sabemos que a maioria das empresas, em qualquer cenário, preferiu deixar
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
108
de pagar o INSS antes de deixar de pagar seus credores particulares, então podemos
concluir que a sanção não penal, nestes casos, é percebida como mais ameaçadora do
que a sanção penal.
2.
PARTE QUALITATIVA
2.1
Método de coleta de dados para a parte qualitativa:
O fio condutor das entrevistas foi a proposição aos entrevistados de um
hipotético caso prático submetido ao seu aconselhamento, em que o empresário
teria de honrar três grupos de dívidas: comerciais (títulos extrajudiciais), tributária
próprias e tributárias em regime de substituição (INSS-empregado), mas não tem
recursos bastantes para todas elas.
Procurou-se,
por
meio
desta
abordagem,
diminuir
o
impacto
de
considerações morais (o dilema deixa de ser devo/quero versus não devo/quero
pagar, porém posso versus não posso pagar) e dispensar qualquer elemento de
fraude. Com isso, tem-se em vista o delito de apropriação indébita previdenciária
(168-A do Código penal), para cuja configuração, de maneira simplificada,
bastaria o não-repasse ao INSS da contribuição retida na fonte correspondente à
parcela do empregado.
Buscou-se atender às características previamente esboçadas no projeto, a
saber: (i) que o ilícito devesse ser capaz de gerar apenas dano patrimonial à
sociedade como um todo e decorresse típica e diretamente de uma decisão
empresarial; (ii) que o agente potencial administrasse recursos escassos e devesse
portanto
selecionar
qual
titular
de
interesses
enfeixados
pela
empresa
(fornecedores, clientes, trabalhadores, sócios, Estado, difusos, etc.) seria
privilegiado e qual seria preterido pela decisão; (iii) que o agente conhecesse as
naturezas das sanções – jurídicas ou sociais – que pudessem ser utilizadas por
parte de cada um dos grupos de interesses com os quais lida, sendo que o Estado
seria aquele que, “preterido”, iria se utilizar da sanção penal e (iv) que o agente
fosse capaz de associar uma taxa de probabilidade ao risco de ser responsabilizado
e de sofrer a sanção imposta em decorrência de ter preterido algum dos titulares de
interesses na empresa.
Apresentado o caso prático, o entrevistador iniciava a entrevista com a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
109
seguinte pergunta: “quando o cliente expõe essa situação ao advogado, quais
perguntas são essenciais para que se possa dar o aconselhamento desejado?”.
2.2 Considerações quanto à escolha do perfil dos entrevistados:
(i) Razões para exclusão de empresários: dificilmente os filtros morais
deixariam de exercer um papel decisivo na resposta, caso fosse dirigida a empresários.
Seria ainda preciso entrevistar gestores de empresas de diversos ramos de atividade
econômica e porte de empresas.
(ii)
Razões para opção por advogados: preferiu-se a abordagem de
um técnico que, além de dominar com o devido distanciamento os riscos associados às
escolhas presentes na escolha da situação-problema, tem experiência em acompanhar
casos análogos. Supõe-se que antes de tomar a decisão que compõe o núcleo do caso
prático, os agentes buscariam aconselhamento jurídico para levar em consideração todas
as variáveis importantes.
(iii)
Profissionais escolhidos: Foram entrevistados advogados das
seguintes áreas: 4 (quatro) criminalistas, 4 (quatro) falencistas e 2 (dois) tributaristas50.
Ainda foram entrevistados um membro do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica – CADE – e um Procurador do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS.
Total de entrevistados: 12 (doze).
2.3 Qualificações às respostas dos entrevistados
(i) Seletividade: Exceto pelos entrevistados do CADE e do INSS, todos os
advogados entrevistados trabalham em escritórios de advocacia de primeira linha,
situados em São Paulo. Portanto, deve-se assumir que o recorte de realidade no qual
baseiam suas experiências refere-se a empresários e gestores de empresas de grande e
médio portes. Para estes, deve-se assumir que o custo reputacional seja superior ao de
gestores de outras empresas, já que a imagem das de maior porte recebe maior
publicidade em casos de crime tributário do que se verifica para empresas de menor
porte.
50
A referência aos entrevistados será feita a partir das seguintes siglas: AC, para advogado criminalista;
AT, para tributarista, AF, para falencista e PI1 para o Procurador do INSS
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
110
(ii)
Representatividade:
a
questão
colocada
aos
advogados
entrevistados tem como foco o aconselhamento que tais profissionais costumam
oferecer quando consultados por seus clientes em dilema semelhante ao da situaçãoproblema objeto desta pesquisa. Como registrado, alguns dos entrevistados relatam que
muitos de seus clientes têm forte aversão a qualquer probabilidade de responsabilização
penal individual. Não se julgou cabível, no entanto, indagar aos advogados
entrevistados qual é o comportamento que efetivamente acabam tomando seus clientes,
depois do aconselhamento. Os relatos dos entrevistados, portanto, não servem e não se
procurou fazer com que servissem como Proxies para a realidade.
2.4 Tratamento dos dados coletados na pesquisa qualitativa
Como afirmado, os dados coletados na parte qualitativa não servem como
Proxy para a realidade, mas são utilizados para empreender a análise dos dados
quantitativos.
2.5 Síntese das respostas às entrevistas
A partir das respostas mais comuns, organiza-se- a síntese do material
colhido, abaixo.
3.
DIMENSÃO DO PROBLEMA FINANCEIRO
A primeira variável importante para enfrentar o caso prático seria
compreender se aquilo que se nomeou, no caso prático, de “problema financeiro” é
uma dificuldade transitória, de liquidez, ou seja, a empresa está cronicamente
endividada, com um cenário provável de falência ou de recuperação judicial. “A
primeira pergunta [a se fazer ao cliente, no caso pratico] é: escuta, você acha que o
negócio é viável? Justifica a gente ficar pensando o que pagar? É o caso de a gente
procurar uma solução para a sua empresa ou a gente tem que pensar em como que
vai sair para a liquidação?” (AF2).
No cenário de falta de liquidez, o foco do empresário deverá ser o de se
“financiar”. Tendo como horizonte o caso prático, esse “financiamento” poderia se
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
111
dar apenas por meio do inadimplemento de um dos grupos de dívidas apontados
(credores, impostos próprios e impostos em substituição tributária). Há relativo
consenso, entre os entrevistados, no sentido de que o financiamento por meio do
inadimplemento dos tributos devidos em regime de substituição deve ser evitado,
pois “dá problema no penal”.51 O segundo critério empregado para definir o
inadimplemento é o seguinte: evite deixar de pagar o credor que pode emperrar o
processo produtivo.
O caminho mais viável é o financiamento por meio do inadimplemento dos
tributos próprios, “porque é o que mais demora para cobrar, é o que é mais lento na
execução, é então onde ele consegue obter um ‘financiamento’: ao invés de dar
aquele dinheiro para o Fisco ele usa no giro das atividades dele e aquilo vai
aparecer depois de muito tempo, tendo a oportunidade de aparecer um Refis ou
alguma coisa” (AF1).
Inserido dentro do discurso da liquidez há um sub-registro: o da
composição, instituto totalmente natural à tradição de Common Law, mas a que se
oferece muita resistência no Brasil (AT1 chama atenção para Projeto de Lei que
pretende estatuir a composição no âmbito tributário). O pano de fundo é o de que
ao credor interessa muito pouco que a empresa quebre, de sorte que um cenário
negociado (a exemplo da recuperação judicial) pode ser bom para ambas as partes:
“Está cheio de recuperações judiciais aprovadas pelos credores com deságio de
40%, 50%, para pagar em 15 anos, em 20 anos e aí pode ser que com isso a
empresa se viabilize” (AF1). Também, o entrevistado AT1 apontou como solução
buscar
discutir
administrativamente
os
tributos
devidos,
quando
houver
fundamento jurídico para tanto, lembrando-se sempre que a quantidade “de tributos
considerados inconstitucionais ou cujas alíquotas foram alteradas por decisões
judiciais”. O risco, pondera AF2, é que a recuperação judicial, quando malsucedida, caminha para uma falência.
No cenário que ora se denominará, sem rigor técnico, de pré-falimentar, ou
seja, “constatado que o negócio é inviável” (AF1), o foco deve se voltar para a
responsabilidade pessoal do empresário. Dito de outra maneira, há que tomar
cuidados para que a responsabilidade da pessoa jurídica não respingue para o
51
Deixaremos de atribuir essa expressão a um ou mais entrevistado por ter ocorrido na quase totalidade
das entrevistas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
112
campo pessoal. Assim, o primeiro grupo de despesas a ser contemplado é o de
tributos em substituição, nomeadamente os retidos na fonte, pelo fato de “dar
problema no penal”. Nesses casos, recomenda-se que se transformem os ativos em
“patrimônio para pagar isso” (AF1).
Em seguida, seria mister atentar às verbas trabalhistas, mormente após a
criação da penhora on-line. Também “por meio da execução fiscal se chega
relativamente fácil ao patrimônio do administrador” (AF1). Por fim, aponta AF4,
há que atentar para obrigações pessoais (aval, fiança) e algumas circunstâncias no
âmbito do Direito do consumidor e do ambiental que podem redundar em
responsabilidade dos sócios.
No tocante aos credores, aqueles com maiores relações pessoais com o
empresário serão preferidos, embora o recomendável fosse que um Administrador
fosse contratado e deixasse de pagar a todos os fornecedores, construindo um
cenário conjunto de recuperação judicial (AF1). O Estado é o último credor a ser
levado em consideração, no que tange aos tributos próprios.
3.1 Critério econômico de definição do inadimplemento
Há relativo consenso em torno da idéia de que deve ser priorizado em
pagamento o credor com condições de obstar o processo produtivo da empresa
devedora. A lógica é a seguinte: abstraídas discussões morais, é do interesse de
todos que a empresa supere a crise, o que se torna impossível na hipótese de
interrupção do processo produtivo. Logo, o credor mais importante é aquele com
maior potencial de parar as atividades da empresa. “O papel do advogado é tentar
arranjar soluções jurídicas para um raciocínio que é econômico”, ou seja,
“primeiro deixar de pagar dívidas não essenciais à sua atividade” (AT1). Trata-se,
segundo o AF4, de “eleição de prioridades”.
O primeiro grupo, a que se vai buscar privilegiar, é composto pelos
fornecedores dos insumos essenciais à produção: matéria prima, energia elétrica,
etc. Um segundo grupo reúne outros credores relativamente substituíveis tais como
fornecedores de produtos empregados em procedimentos não produtivos (materiais
de escritório, produtos de limpeza etc.) ou cuja suspensão de relacionamento não
interrompa imediatamente a produção, a exemplo dos bancos. Nesse grupo,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
113
pondera AF3, o relacionamento pessoal ou comercial do administrador com o
fornecedor tem impacto decisivo.
O Estado, todavia, pode figurar em posição privilegiada quando a empresa
necessitar de Certidão Negativa de Débitos (CND) para, fundamentalmente,
participar de licitações públicas. “Por exemplo, uma empresa que forneça para
entidades públicas serviços ou bens e precise, para ter o recebimento do seu
pagamento, do faturamento do mês ou do período, ou do semestre, enfim, para que
ele possa receber ele tem que estar adimplente com as obrigações tributárias,
através da CND, por exemplo, - e existem muitos casos assim -”, tem, no Estado,
“um credor essencial” (AT1). Essa característica, a propósito, é dos poucos
incentivos concretos que o ordenamento jurídico oferece, na opinião de PI1 para
que as empresas não se financiem por meio da sonegação fiscal.
De maneira geral, porém, aconselha-se sacrificar o pagamento dos tributos
próprios, dado que entre o inadimplemento e o pagamento transcorrem alguns
anos. É o que AF2 denomina de “possibilidade de se administrar” tal dívida “ao
longo do tempo”. AT1 pondera que a estratégia pode variar de Estado para Estado
a depender da velocidade e da eficiência do funcionamento dos procedimentos
administrativos. Ademais, há - embora cada vez menos - a chance de sequer vir a
ser autuado ou de se dar prescrição/decadência.
Um fator muito levado em consideração nessa forma de “financiamento” é
que “a cada x período de tempo há um programa de parcelamento” (AF2), cujas
condições muito provavelmente mostrar-se-ão mais vantajosas do que qualquer
outro meio de financiamento. O inadimplemento poderia mostrar-se um recurso
“eficiente” (AF2). AF3 afirma que o empresário, nessa situação, usa o
inadimplemento tributário como substitutivo do banco.
Um outro aspecto vantajoso do inadimplemento tributário em relação ao de
credores comerciais está relacionado com o protesto, “primeiro sinal aparente de
uma situação falimentar” (AF1), após o quê minguaria o acesso a financiamento
pelos meios costumeiros. Já no campo tributário, o lapso temporal entre o
inadimplemento e um “sinal externo” é muito maior, raramente inferior a dois
anos.
Há que acrescentar, por fim, o que se denominou de “componente cultural
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
114
ou sociológico”. O brasileiro, afirma AF3, tem a sensação de que o imposto é
“esbulho estatal”, na medida em que o cidadão não sente a contrapartida daquilo
que contribui. Assim, o peso moral de uma decisão de inadimplir tributos é muito
menor, por exemplo, do que de inadimplir uma obrigação assumida para com um
fornecedor com quem o empresário trava uma relação comercial sólida.
Uma síntese desse pensamento pode ser encontrada na afirmação do AF2:
“não se preocupe com o pagamento dos tributos: eles não vão acabar com o seu
negócio”. “O Fisco não colabora em nada em sua atividade econômica, ao
contrário de um fornecedor, de um banco, que quando pára de te fornecer recursos
ou matéria-prima você passa a ter problemas; então, a situação com o Fisco é ‘mais
confortável’”.
Registre-se apenas um contraponto. AT2 lembra que as multas tributárias
são altíssimas, discordando que se trate de um meio eficiente de financiamento.
Faz, porém, ele mesmo uma ressalva: “isso pressupondo o nosso perfil de clientes,
isto é, empresários sérios comprometidos com a lisura de seus empreendimentos”.
3.2 Critério supletivo: a sanção penal
Elemento comum a todas as respostas é a importância de pagar os tributos
recolhidos como substituto, na medida em que o mero inadimplemento pode ser
suficiente para configurar o delito de apropriação indébita previdenciária.
“Não importa o cenário, eu diria para o meu cliente: se preocupe primeiro
com os tributos fonte, por que isso dá ação de apropriação indébita.” (AF2). “Você
jamais deixe de pagar os tributos que não são seus” (AT2). “Esse dinheiro não é
seu; portanto, se você deixar de pagar vai caracterizar apropriação indébita”
(AC3).
AF3 chega mesmo a afirmar que se o empresário não puder pagar os
impostos retidos na fonte ele “vai procurar gerar caixa. Isso eu posso te dizer que é
claro”. “Ele deixa inclusive de honrar dívidas que teriam impacto mais direto nas
finanças da empresa, a exemplo de um fornecedor”.
O “problema no penal” é sentido, empregando as palavras do AF3, entre os
empresários mais conservadores, já na mera possibilidade de virem a ser intimados
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
115
para comparecer a uma Delegacia de Policia; para os mais arrojados, o problema
surge quando uma privação efetiva de liberdade assume probabilidade maior do
que 50%. O entrevistado AC1 relatou o seguinte caso: ele teve de impetrar um
habeas corpus preventivo para que seu cliente, cujo nome sequer havia sido
apontado em inquérito policial como alguém a ser eventualmente ouvido, não
viesse a receber uma intimação em sua residência. Nesse caso, prossegue, foi de
nenhum impacto o argumento de que o remédio seria exagerado em face da
baixíssima probabilidade de que ele viesse a ser intimado. Para o cliente, porém,
seria demais a humilhação de a esposa vê-lo recebendo tal intimação das mãos de
um policial. Em tempo: esse administrador sequer integrava a empresa na época
dos fatos.
Eu vivi uma situação parecida em dois casos. O primeiro deles é um caso de
uma empresa que se viu envolvida em um Inquérito Policial, relacionado com
questões tributárias, e diante da perspectiva de que outras ações pudessem
gerar outros inquéritos, sem se ter um porquê ou um quando, simplesmente
pensando na hipótese de que um novo inquérito pudesse surgir, o presidente
queria um habeas corpus preventivo. Contra o que fosse. Como se fosse um
salvo conduto contra qualquer investigação criminal. Dá para ter? Não, não
existe isso. (...) O segundo deles já aconteceu três vezes: o cliente chega e
pede uma medida judicial que impeça a instauração de inquérito policial
contra ele. E eu perguntei: existe algum indício de que haja alguma
investigação em curso? ‘Não, mas eu não posso ser (investigado). Eu não
quero que chegue na minha casa uma equipe da Policia Federal às seis horas
da manha’. Mas tem algum motivo que te leve a crer nessa possibilidade?
‘Não, mas eu não posso ser (intimado) (AC4).
AC4 confirma esse diagnóstico, afirmando que mesmo após reiteradas
advertências de que o pagamento tem o condão de extinguir a punibilidade no
delito de apropriação indébita, o empresário continua com medo “do penal”. “O
medo nasce da própria investigação. Eu vivencio situações em que o recebimento
de uma intimação da Policia Federal ou da Policia Civil, por um empresário, por
um ex-presidente de uma determinada companhia, por um atual diretor, já gera
turbilhões de movimentos dentro da companhia para ver como é que soluciona
aquele problema”.
AT1 denomina de psicológico o fator “sanção penal”, porque embora a
decisão de não pagamento seja puramente econômica, a pena entra como um fator
que não pode ser traduzido em termos econômicos. “O administrador da empresa”,
ilustra AC1, “lida diariamente com situações tais como ‘a Receita Federal veio
aqui e ficou dois anos e a empresa foi autuada em dez milhões’; ele pensa assim: ‘é
a empresa’, entendeu? Quando chega o penal ele fala assim ‘bom, estou sendo
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
116
acusado de sonegação de imposto, estou sendo acusado (está super na moda, a
propósito) de não pagar contribuição previdenciária do meu funcionário’; nesses
casos, ele sente que é com ele, pessoa física, então aí que incide um fator
psicológico muito grande”.
Perguntados se o emprego do termo psicológico devia-se a seu caráter
subjetivo ou a seu caráter infundado, responderam que é por ser subjetivo. “Só de
imaginar a intimação chegando pelo correio, ele não quer” (AC1). Seria verdadeira
sanção social: “a persecução penal já um constrangimento social muito grande”
(AT1).
A percepção
ecoa junto
a entrevistado funcionário do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica – CADE: “A pena de prisão, o empresário
algemado, isso sim complica. Há um senso comum de que o empresário tem medo
do processo penal, mas do que ele tem medo mesmo é do sistema penal americano
[estadunidense], porque lá o empresário vai mesmo pra cadeia”.
A perda da primariedade também compõe esse cenário. “Eu vejo vários
empresários que me procuram e dizem: eu nunca tive um processo, eu nunca tive
nada, meu nome está limpo e eu não quero perder a primariedade. Esse é um medo.
Principalmente quando perguntado sobre as conseqüências que a perda da
primariedade acarreta, e quando se explica que há uma série de institutos ou de
benefícios penais que são admissíveis ao primário, mas que reincidente não tem
possibilidade de utilizar, como alternativas de pena, ou como alternativas
consensuais ao processo, eles percebem não só a importância moral, como a
importância também legal ou jurídica da manutenção da primariedade” (AC2).
Concretamente, aponta AC2 que há empresas que operam, por exemplo, no ramo
de transportes que têm de oferecer aos clientes comprovação regular de idoneidade
de seus sócios, incluindo a folha de antecedentes criminais; o mesmo se diga de
empresas de blindagem em razão de exigências do Exército.
A sanção penal tem, todavia, um caráter que transcende o psicológico. Os
entrevistados AC3 e AT2 afirmaram que a Administração é muito mais ágil na
apuração dos delitos tributários do que há uma década e que a autoridade policial,
assim como o Ministério Público enxergam, na representação fiscal para fins
penais, materialidade suficiente para o oferecimento de denúncia. É crescente a
percepção de que os delitos tributários podem sim ocasionar penas privativas de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
117
liberdade.
Outro elemento a compor o medo relacionado à sanção penal é o renome da
empresa no mercado. “Não é só a cadeia. Eu acho que é a questão no nome
relacionado à questão criminal, o que pode gerar, né, em termos de imagem, tanto
pessoal quando da própria empresa; então a investigação em si já é capaz de gerar
um mal estar tão grande, que pode virar um pânico, nem medo” (AC4).
Um aspecto que foi nomeado de penal e merece registro é o da prisão do
depositário infiel, superado pela decisão recente do Supremo Tribunal Federal. O
AF1 relata que esse era um problema sério, sobretudo na hipótese em que o
depósito recaia sobre bens fungíveis, a exemplo de papel ou grãos.
Registrem-se duas exceções ao padrão de respostas. Um dos advogados
criminalistas arriscaria sustentar que o sacrifício dos tributos em substituição seria
preferível, por uma combinação de razões de experiência. Primeiramente, acredita
que a tese de inexigibilidade de conduta diversa por dificuldade econômica tem
eco nos Tribunais. Em segundo lugar, em virtude de o empresário, ao inadimplir
uma obrigação tributária, ter dificuldades de escriturar corretamente, isto é, a
tentação de lançar o valor efetivamente pago como se correspondente ao que se
devia, é grande. Nesses casos, por haver falsidade, a tese da inexigibilidade não
socorreria o empresário.
Já o entrevistado AC4 pondera que o inadimplemento de quaisquer das
dívidas apontadas pode gerar, ainda que indiretamente, em repercussões penais. “A
questão dos credores, dependendo de como aquela situação – vamos dizer assim –
de inadimplência chegou a existir na empresa, isso pode gerar, sem dúvida
nenhuma, ou uma briga de pessoas que vão estar apontando o dedo para aquela
pessoa para dizer : ‘olha, ele não me pagou, porque ele fraudou, ou porque ele
desviou, ou porque ele criou uma situação artificial para deixar de me pagar e isso
pode gerar uma investigação criminal; a gente vê muito isso em questão de
concordata, falência, em que acaba gerando isso”. Assim, contrariando as posições
anteriores, privilegiaria o pagamento dos credores, pois, em virtude do número de
interessados, o empresario estaria lidando “com um universo desconhecido”. A
aparente contramão é prontamente explicável: as sanções penais atinentes aos
delitos tributários são evitáveis por meio do pagamento.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
118
3.3 Pagamento e extinção da punibilidade
Os advogados entrevistados sabem que o pagamento do tributo devido, a
qualquer tempo, tem o condão de extinguir a punibilidade do agente, pairando,
excepcionalmente, dúvidas quanto à extensão da regra aos tributos em substituição.
Explorou-se então o seguinte cenário: se o pagamento extingue a pena,
fazendo sumir o “problema no penal”, por que então esse tributo não é tratado
como mais uma dívida de valor?
O primeiro problema é que a empresa pode, de repente, deixar de ter
dinheiro para pagar o montante devido ao INSS, fazendo com que a extinção da
punibilidade se mostre, por circunstâncias práticas (esgotamento dos recursos
necessários ao pagamento para extinguir a punibilidade), uma hipótese incerta. “O
problema” aqui “é até quando o sujeito vai ter o controle do caixa, porque ... chega
uma hora que não dá mais... não tem mais dinheiro e aí não consegue pagar”
(AF1). Quem quiser assumir o risco de se financiar por meio da apropriação
indébita previdenciária deve sempre reservar o montante correspondente ao valor
devido, de sorte que antes de quebrar possa honrar com essa dívida (AF2).
A colidência de padrões de responsabilidade gera o terceiro aspecto a ser
considerado. Na medida em que o pagamento é um ato da pessoa jurídica que
extingue a punibilidade de uma pessoa física, na hipótese de a última não mais
fazer parte da empresa, não haveria porque pagar essa dívida (ao menos no que
toca à sanção penal). Assim, o administrador não se fia na possibilidade de um
pagamento futuro, pois sabe que poderá não mais integrar os quadros da pessoa
jurídica quando uma eventual questão penal vier a se colocar. “O novo diretor que
chega não vai estar muito preocupado com a responsabilidade penal de seu
antecessor” (AC3).
3.4 A multa como sanção penal
A análise se completa quando se pergunta quanto à pena de multa, sem a
possibilidade de conversão em pena privativa de liberdade. Embora o tema da
multa não guarde, do ponto de vista da teoria do delito, relação direta com a
extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, insere-se essa
discussão nesse momento, pois, em termos de percepção do empresário, a extinção
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
119
da punibilidade pelo pagamento é uma dívida de valor que se ele não conseguir
pagar, pode ser preso; a multa é uma dívida de valor que, se ele eventualmente não
vier a pagar, não vai ocasionar prisão.
Os entrevistados, em sua esmagadora maioria, afirmam que, no caso de a
sanção patrimonial penal não poder ser convertida em privativa de liberdade, será
tratada como uma dívida de valor ordinária.
Exemplo patente disso seria a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Segundo AC3, o administrador equipara a sanção penal pecuniária (multa) a
qualquer outra responsabilidade civil e administrativa. “Para ele o que dói
diferente é a sanção penal pessoal. Como as sanções são patrimoniais, ele consegue
lidar bem com isso”. “Não se iluda com a responsabilidade penal da pessoa
jurídica”. No mesmo sentido a opinião de AC2: Se o resultado fosse o mesmo, ou
seja, o pagamento de uma quantia, só que fora do sistema policia-justiça criminal,
o efeito não seria tão grande. “A ameaça penal gera um peso maior na decisão do
empresário”.
AC4 discorda frontalmente: “Acho que ao contrário. Primeiro porque, de
novo, quando você lida com a área criminal, você atinge um aspecto fundamental
para as empresas que é a imagem. Então, a empresa X, processada por crime
ambiental, é uma coisa que já gera repercussão. Se você falar que tem questões
tributárias, que não sejam da área criminal, faz parte do dia-a-dia da empresa. A
área criminal não faz”. Em segundo lugar por motivos puramente empresariais:
“Como é que você explica isso para a sua matriz? Eu tive um caso, por exemplo,
que era de uma época em que houve muitos inquéritos instaurados em Santos,
porque havia muitos problemas com os despachantes aduaneiros. Era um sistema
que possibilitava a algumas pessoas falsificar guias. Então a empresa contratava
um despachante aduaneiro, pagava para ele os valores dos impostos a serem
recolhidos e mais uma porcentagem x; o despachante apresentava uma guia
comprovando o pagamento. E a mercadoria chegava. Depois de um tempo,
descobriu-se que o esquema era fraudulento”. “O primeiro problema da empresa
brasileira é explicar a necessidade de se contratar um despachante – que é uma
característica brasileira. E o segundo problema era explicar que, depois de
contratado, o despachante deu um golpe. E que, embora já tivesse gasto o valor do
imposto, ia ter de gastar três vezes mais para corrigir aquela situação”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
120
Essa percepção, todavia, parece ser isolada, inclusive quando se
acrescentam entrevistados relacionados ao poder público. Funcionário do CADE
afirma claramente que “nos casos de cartel, cuja sanção é meramente pecuniária,
quem paga no final das contas? É o próprio consumidor, pois ela entra como custo
para o empresário. Às vezes, o empresário faz até um jogo de custo-benefício, pois
ele pensa ‘qual o benefício que eu terei?’. O cartel gera muito benefício.” “O
empresário pensa ‘qual o risco que eu vou ter com este cartel? Ah, vou ganhar
tantos milhões. Qual o risco de eu ser condenado? É X. Se eu for pego qual o valor
da multa máxima? É 30%’ então ele faz um cálculo e toma uma decisão
empresarial para ver se vale a pena” “Se a única pena for multa, tanto faz se é
CADE ou o juiz penal, é um custo, entra na conta... qual a vantagem que eu vou
aferir em comparação ao risco que eu corro? É uma análise racional e econômica.”
3.5 A tese de inexigibilidade de conduta diversa por dificuldades financeiras
A imposição de pena a um empresário que deixou de repassar tributos fonte
por não ter caixa é injusta, afirma AF2, “pois terá sido preso por um crime que ele
não cometeu. Eu acho que seria terrível se um empresário, na hora de pagar o
salário, de fato descontasse o valor do INSS e pusesse no próprio bolso. Mas não é
isso que ele faz; na verdade ele nunca teve esse dinheiro. Ele nunca existiu. Então,
quando ele consegue pagar o salário, ele paga o que ele tem que pagar para o
funcionário, isto é, entre pagar para o INSS e pagar para o funcionário, ele vai
pagar para o funcionário. Então esse dinheiro, ele não reteve, nunca aconteceu
isso, ele nunca teve esse dinheiro para reter”.
Na opinião de AC2, a apropriação, nesses casos, funciona como uma ficção
jurídica: “a verdade é que há um caixa único e um grupo de despesas que o
empresário tem que pagar naquele dia; ele não vai ter carimbado na conta dele:
‘isso é o dinheiro que entrou daquilo; essa outra parte é aquele dinheiro que eu
deixei de, que eu descontei do meu trabalhador e que...’; enfim, é o dinheiro que
ele tem no caixa para fazer frente às despesas do dia”.
Na busca de entender o alcance do que seria um grau suficiente de
dificuldade a ponto de configurar a inexigibilidade, perguntou-se: “se o empresário
paga a folha de pagamentos e um fornecedor, poder-se-ia dizer que o INSS
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
121
deveria ter sido preferido ao fornecedor?”.
AF2 respondeu que a única hipótese de haver dinheiro, no mês seguinte,
para honrar o salário é a continuidade da produção, o que é impossível quando os
fornecedores deixam de ser pagos. E prossegue: “eu aposto que se o administrador
só tinha caixa para a folha de pagamentos e para um fornecedor, que ele não tirou
nada para ele [para si próprio] naquele mês. Nem um centavo”.
A tese, afirma AC2, vinga nos Tribunais. “A tese é boa. A dificuldade é a
prova”.
Um critério para aferir a tese de inexigibilidade seria a retirada do
empresário: “se ele tinha que pagar R$ 100.000,00 para o INSS, não o fez e tirou
R$ 40.000,00 para ele [para si próprio], então não se aplica a inexigibilidade; se
ele tirou o suficiente para o seu sustento, digamos, R$ 3.000,00, então sim” (AF2).
AC2 confirma a validade do critério.
AC2 oferece outra hipótese: se uma empresa depende basicamente do Poder
Público e deixa de pagá-lo, por qualquer motivo, fica clara a penúria da empresa.
Balanço da empresa endossado por um relatório de auditoria, “demonstrando que a
tomada da decisão de não pagar decorre diretamente do fato de não ter dinheiro” é
uma prova forte na opinião de AT2.
3.6 “Financiamento” por meio do inadimplemento das obrigações tributárias
Houve a oportunidade, com alguns entrevistados, de se indagar: “as
respostas mudariam caso a empresa tivesse caixa suficiente e mesmo assim
inadimplisse obrigações. O papel da sanção penal muda?”.
AC2 afirma já ter visto os seguintes cenários: “há quem faça uma aposta,
fique com o dinheiro em caixa, até porque hoje, com uma tese mais ou menos
assente de que o pagamento extingue a punibilidade, então tem muita gente que
trabalha e que tem uma boa estrutura e também tem uma assessoria na área
tributária e que vai fazendo um acompanhamento de como está a coisa, ele fala:
‘eu posso ir acompanhando, dependendo da situação eu faço uma auto-denúncia e
com isso eu já livro uma série de multas tributárias’; eu acredito que tenha
empresários que façam uma conta de qual é o dinheiro mais barato para ele se
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
122
‘financiar’”.
O PI1 afirma, nesse sentido, que há no Brasil “um planejamento tributário
institucionalizado em que as empresas se dedicam voluntariamente a não pagar
tributos”.
A percepção dos entrevistados AF4, AT2 e AC3, todavia, é um pouco
diversa, pois há multas de 300% no âmbito federal ou de 100% da operação, no
estadual, tornando o financiamento por meio do inadimplemento uma estratégia
pouco eficiente.
3.7 Considerações de política criminal (o Estado criminógeno)
Há a clara percepção de que o próprio Estado engendre parte da
criminalidade empresarial, notadamente em matéria tributária.
Primeiramente, pelo fato de a dimensão administrativo-tributária funcionar
mal. “Se o tributário funcionasse melhor não precisaria do Direito penal”, afirma
AT1, salvo para os fraudadores propriamente ditos. Houve consenso, nesse
particular, entre todos os advogados entrevistados. Mesmo o PI1 compartilha a
percepção de que o sistema tem gargalos sérios, sobretudo no campo da execução
fiscal, cuja estrutura é arcaica e desestruturada (para ele, a propósito, há uma certa
leniência do judiciário para com os devedores públicos, que recebem tratamento
muito mais suave do que os devedores privados).
O círculo vicioso teria mais ou menos a seguinte dinâmica: os fiscais fazem
lançamentos abusivos, impugnáveis por meio de procedimentos muito lentos. O
assunto assume cores especiais no campo das fraudes, pois a interpretação do que
tenha sido fraudulento ou não é sempre muito conflituosa. AC3 menciona um
exemplo interessante: uma empresa servia refeições a seus funcionários. A
fiscalização previdenciária considerou essa modalidade de alimentação uma forma
indireta de remuneração, sobre a qual, portanto, deveriam incidir determinados
tributos. Autuou e agravou a multa por fraude. Na opinião de AC3 e AT2, tratarse-ia de uma divergência plausível de interpretação do quanto fosse “salário”,
sendo abusiva a aplicação de multa a título de fraude. “Sobretudo quando se pensa
que uma ação de repetição de indébitos, no Brasil, dura cerca de dez anos” (AT2).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
123
Quando o Direito penal se alia ao tributário, os abusos aumentariam. É o
que se chama de emprego arrecadatório do Direito penal. AC2 afirma que o
Ministério Público Federal assume que faz o papel da Procuradoria da Fazenda.
“Os procuradores sabem que o objetivo não é tanto punir, mas fazer recursos
entrarem nas contas da União”. “O que se tem visto é o uso do Direito penal como
instrumento de coação, de cobrança” (AC1, AC3). Com isso, tem-se o emprego da
sanção penal como meio de coagir os empresários a pagarem logo e desistirem de
discutir a legalidade ou justiça dos lançamentos. O medo da sanção penal é
combustível
dessa política de
arrecadação.
“Em
grandes
empresas,
em
multinacionais, a opção pelo pagamento (de tributos devidos) é determinado muito
mais pela questão criminal do que por outras questões comerciais ou tributarias”
(AC4).
Esse sistema “convidaria” o empresário a assumir determinados riscos,
como
por exemplo algumas
condutas
consideradas típicas. Até mesmo
determinadas posturas jurisprudenciais corroboram esse quadro. Veja-se o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto aos efeitos da auto-denúncia:
“Se um contribuinte deixou de pagar um tributo, confessa espontaneamente e paga,
está isento das multas. Mas, para que tenha direito a isso, ele não pode ter
declarado esse tributo; porque, se ele declarou, a denúncia espontânea (consistente
na própria declaração) não foi seguida do pagamento. Aí o cliente chega para a
gente e fala: ‘espera aí, você está querendo dizer que se eu não declarar hoje que
eu devo um tributo, mas daqui seis meses eu declarar, confessar e pagar eu estou
zerado da multa?’. Sim, está. ‘Então você está me dizendo que, de acordo com o
STJ, é melhor eu não fazer nada, correr o risco de um processo criminal, mas se eu
tiver caixa daqui seis meses, eu confesso, faço a declaração e pago, e tudo bem?’
Mas como a idéia parece ser a de não aplicar a sanção penal, cria-se uma
figura não usual no Direito penal, já discutida acima: a extinção da punibilidade
pelo pagamento do tributo devido. AT1: Se instituem crimes para que haja
persecução criminal, para que quem deve seja justa seja injustamente, pague.
Logo, se pagar está tudo bem”. Tal situação, porém, privilegia o sonegador
contumaz, que aposta nisso quando da fraude tributária. Afinal, afirma AC2, quem
está com dificuldades financeiras sequer escolheu deixar de repassar ao INSS. “É
instrumento de arrecadação de um lado”, pois acelera o pagamento; de outro,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
124
porém, pode servir de “financiamento”, justamente para o sonegador contumaz.
AC4: “Há hoje uma contradição: chegam no criminal questões que, por
serem desprovidas de fraude, deveriam ser resolvidas apenas no tributário. Todavia
chegam. Então, a extinção da punibilidade serve como uma medida de correção. O
ideal, porém, seria que sequer chegasse e, quando chegasse, em virtude da
falsidade, que essa modalidade de extinção deixasse de existir”. “Só deveria virar
objeto de inquérito policial o crime de fato, já que no Brasil não é assim. O mero
não-pagamento é suficiente para instaurar o inquérito” (AC1); “o mero emprego
errado de alíquota de ICMS”, vale dizer, lastreado em interpretações diversas da
complexa regulamentação do ICMS já dá ensejo a inquérito policial.”
A questão assume contornos ainda mais vivos quando o Ministério Público
e o Judiciário tornam-se homologadores da Administração, isto é, a Administração
fixa que houve fraude e essa decisão não é revista, no mérito, nem quando do
oferecimento, tampouco quando do recebimento da denúncia (AC3 e AC4).
A conclusão é de que não há uma política criminal no Brasil, no que toca
aos delitos tributários. “A Maíra Machado fala um pouco sobre isso: tem a política
econômica no Brasil, tem a política monetária no Brasil, mas não tem uma política
criminal. Para o nosso cliente estrangeiro é muito esquisito o fato de que se ele
sonegar imposto e pagar o que deve, acaba o crime. Ele fala: o Brasil é o paraíso!”
(.AC1)
3.8 Percepções quanto ao agente econômico
“Eu tive pouquíssimas experiências de clientes empresários que fossem
malandros.
Em
regra,
os
agentes
econômicos
querem
arcar
com
suas
responsabilidades”. “Quando um cliente chega e fala: não dá mais, minha empresa
acabou, e eu pergunto: tá, mas o que você ainda tem de bens, 99% das vezes eles
respondem: nada. E ele não está mentindo. Ele não tem para pagar os honorários.
‘Eu não tenho nada; o que eu tinha, eu pus na empresa”. Eles põem até o último
centavo, como se fosse um vício”. É assim que AF2 enxerga a média dos
empresários brasileiros.
AF3 chega mesmo a empregar a expressão latina bonus pater familiae. E
arrisca: minha longa experiência de vida e de advogado me permitem arriscar que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
125
1 em 10 empresários são malandros; se fixarmos na proporção de 2 para 10 “eu
nado de costas”.
3.9 Síntese das conclusões dos próprios entrevistados
Os empresários terão como pano de fundo decisório a situação financeira de
sua empresa, mudando a estratégia a ser adotada, no caso prático, conforme se
trate de um problema de liquidez ou de inviabilidade do negócio.
No cenário de inviabilidade, a preocupação será blindar o empresário da
responsabilidade individual em face daquelas da pessoa jurídica. A primeira a ser
evitada é a sanção penal por força do inadimplemento dos tributos-fonte. Em
seguida, as dívidas trabalhistas e as execuções fiscais que facilmente atingem o
patrimônio do administrador, sobretudo após o advento da penhora online. Há,
ainda, que atentar para as obrigações pessoais (aval, fiança) e algumas de Direito
consumerista ou ambiental.
No cenário de falta de liquidez, há que buscar “financiar” a atividade
empresária, evitando o inadimplemento dos tributos-fonte, pois isso resulta em
“problema no penal”.
O critério da eleição de prioridades, afastada a sanção penal, é o de
essencialidade para a manutenção da produção. Via de regra, há que adimplir as
dívidas para com credores que têm o poder de fazer o negócio parar.
Os impostos próprios costumam ser o último grupo de despesas que
mereçam atenção (considerando sempre o caso prático), salvo na hipótese de a
empresa necessitar de certidões negativas de débito para suas atividades rotineiras.
Os motivos para isso são, principalmente: (i) a incerteza da autuação; (ii) a
demora entre o inadimplemento e o efetivo pagamento; (iii) a probabilidade de que
venha a surgir um programa de parcelamento, com condições muito melhores que a
de um empréstimo bancário.
De qualquer sorte, restam pouquíssimas dúvidas de que há que privilegiar o
pagamento dos tributos-fonte. Isso porque é generalizada a percepção de que esse
inadimplemento resulta repercussões penais.
Essas repercussões vão desde a intimação para comparecer em uma
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
126
Delegacia de Policia até a efetiva privação da liberdade. O empresário teme a
sanção penal.
A extinção da punibilidade pelo pagamento desempenha papel mitigado
como contra-estímulo. Primeiramente, pelo fato de não se poder saber até quando
vai haver caixa para o referido pagamento. Em segundo lugar, pois se a pessoa
física deixar de fazer parte da pessoa jurídica, haverá muito pouco interesse nos
efeitos que o pagamento poderão gerar.
No campo da política criminal, compartilha-se a opinião de que o delito
tributário deveria ser reservado às hipóteses de fraudes propriamente ditas e não a
meras discordâncias entre a Administração e contribuinte.
No campo das sanções, caso a pena privativa de liberdade seja substituída
pela de multa, o efeito diminui sensivelmente, entrando na lógica geral das dívidas
de valor. O mesmo se diga da sanção imposta à pessoa jurídica.
4. CONCLUSÕES DA PARTE EMPÍRICA
Considerando a limitação de representatividade da amostra, não podemos
generalizar os perfis de priorização observados para o universo de empresas
brasileiras que passam pelo mesmo dilema objeto do estudo.
A dificuldade de acesso à informação quanto ao perfil de priorização na
situação-problema estudada, no entanto, nos dá uma dimensão do quão dramática é
a necessidade de aprimoramento institucional para incremento do acesso a tais
informações.
O dado bruto eventualmente detido pelo INSS quanto ao total de
inadimplentes não serve a um juízo sobre a expectativa de ponderação do agente
potencial entre gravidade de ameaças carregadas pela sanção. Para isto, é
necessário o cruzamento de dados que dizem respeito a sanções de naturezas
diversas, associadas a relações de distintas naturezas com cada credor.
Caso fosse possível generalizar perfis de priorização entre sanções para a
situação-problema estudada, poderíamos com segurança transpor o perfil para
outras situações análogas de ilicitude penal no âmbito da pessoa jurídica.
Não obstante, os dados obtidos pela pesquisa permitem inferências e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
127
oferecem algumas hipóteses interessantes.
A diferença marcante entre os dois Cenários é que, no Cenário 1 há opção
majoritária por situar o INSS-empregado no topo das preferências negativas
(último lugar de pagamento). Já no Cenário 2 é o Grupo Outros Credores-Fisco
que ocupa a preferência por último lugar de pagamento das empresas. O topo das
preferências positivas para pagamento do Grupo Outros Credores-Particulares
aparece nos dois cenários, já que se assumiu simultaneidade entre Dado A
(inadimplemento) e Dado B (data de ajuizamento da ação de cobrança, execução,
possessória, etc) para tais credores.
Um fator bastante relevante é a hipótese de inversão de prioridades, cuja
interpretação parece plausível tendo-se em vista que, em algum momento, a
esmagadora maioria das empresas da amostra aparentemente quita o INSSempregado, mas acaba sofrendo ações de execução, cobrança ou possessórias por
parte do Grupo Outros Credores-Particulares após o período de quitação do INSS.
Então a pergunta é: “por que quitou?”. Uma hipótese plausível é o pagamento para
suspender a punibilidade da apropriação indébita. Isto é, chegada a segunda e
última “rodada” com o INSS, expressa em termos de “pague ou sofra
responsabilização penal”, aí sim os empresários teriam motivação maior para pagar
a contribuição.
A interpretação inferida da quantitativa não é necessariamente contraditada
pela pesquisa qualitativa. Um dos dados mais interessantes levantado nas
entrevistas diz respeito ao fator reputacional associado à imagem no nível da
pessoa física do gestor.
Como colocado no item “ressalvas quanto à validade e utilidade da hipótese
escolhida – quanto ao fator suspensão da punibilidade mediante pagamento”, é
plausível considerar incidência de dois fatores que eventualmente se excluem
mutuamente: a auto-confiança do gestor em sua capacidade de gestão de caixa e o
custo reputacional independente de condenação.
Para as empresas que enfrentam o dilema colocado no estudo, autoconfiança e custo reputacional podem exercer impacto relevante. Se o custo
reputacional associado à apropriação indébita for alto para o gestor da empresa
(independentemente de condenação), então é mais provável que o gestor tenha
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
128
como topo de suas prioridades positivas manter a empresa adimplente com o INSS.
O que se pode seguramente afirmar é que, para a amostra considerada, esse custo
reputacional é muito baixo. Prevalece a auto-confiança do gestor em sua
capacidade de gerir o fluxo de caixa da empresa e pagar o INSS apenas no
momento da ameaça crível, que é o da incidência de responsabilidade penal.
É ainda possível que outros empresários na mesma situação exibam forte
aversão a qualquer perspectiva de responsabilização penal sobre sua pessoa (alto
custo reputacional) e que, ao enfrentarem o dilema, coloquem o pagamento de
INSS-empregado no topo de suas prioridades positivas ou nem sequer cheguem a
tornar a empresa inadimplente com o INSS pela parcela do empregado (é o caso do
empresário que decide liquidar a empresa quando percebe que ela é inviável em
termos econômico-financeiros). Mas essa hipótese não é testável. Trata-se de um
dilema não-inferível, pois não deixa registro.
Como colocado, o objetivo de uma política pública de responsabilização é
focar um problema real e agir sobre ele de modo a minorá-lo. Assim, é inútil
raciocinar em termos de dilemas não-inferíveis. Ou seja, para nossa análise, é
relevante a hipótese de inversão de prioridades ante a perspectiva de sanção penal.
Isso nos conduz à hipótese maior para o estudo, que é a seguinte: dentre o
leque de sanções aplicáveis em caso de prática de ilícito no âmbito da pessoa
jurídica, é importante considerar múltiplas alternativas de sanções à própria pessoa
jurídica. Mas tais sanções dificilmente substituem o poder intimidativo da sanção
penal de reclusão para o gestor da empresa. Esta parece constituir-se na ameaça
crível que engaja uma decisão da gestão da empresa. Faria mais sentido considerar
um pacote de sanções à pessoa natural e à pessoa jurídica, sendo que as primeiras
parecem mais promissoras em termos de desempenho da função intimidativa. As
segundas não necessariamente devem ser sanções penais, salvo se lhes for
atribuída função retributiva ou por algum imperativo prático em termos de reunião
de provas a respeito do cometimento do ilícito.
A análise não estaria, porém, completa sem que algumas nuances fossem
apresentadas. As entrevistas revelam que o “problema no penal” não é
necessariamente a pena privativa de liberdade, porém todo o constrangimento de
ter que tomar contato com o sistema de justiça criminal, “ter ficha”, perder a
primariedade etc. Assim, em que pese a sanção penal realmente desempenhar um
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
129
papel importante na tomada de decisão, não se pode afirmar que apenas aquela
privativa de liberdade teria esse efeito. Em sendo a apropriação indébita delito
passível de ter sua pena substituída por restritiva de direitos (CP, art. 44 e ss.),
pode-se afirmar que os empresários temem a sanção penal ainda que saibam que a
chance de serem efetivamente presos é remota.
O cruzamento do que seja “problema no penal” com as sanções
concretamente impostas nos permitem concluir que há um temor de uma resposta
do sistema de justiça criminal com traços infamantes (perder a primariedade, ter
ficha, comparecer a Delegacia de Polícia), sem que isso implique forçosamente em
prisão.
Assim, razoável supor que no caso de o delito de apropriação indébita
previdenciária vir a ser punido com a pena de prestação de serviços à comunidade
(como pena principal e não substituída) ou com uma pena privativa de liberdade
pequena (por exemplo de seis meses a dois anos) também nesse cenário o
“problema no penal” influenciaria com igual peso e importância a decisão
empresarial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
130
5. PROCESSO DISTRIBUÍDOS EM RELAÇÃO AO PERÍODO DE DÍVIDA
DE INSS|
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
131
5.1 Legenda
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
132
ANEXO 2 - ALTERNATIVAS À RESPONSABILIDADE PENAL
1. INTRODUÇÃO
O vocábulo “responsabilidade” aparece relacionado a institutos jurídicos de
diferentes áreas do direito, cada qual ligado a uma tradição dogmática distinta. Ao nos
propormos a refletir sobre a responsabilidade de pessoas jurídicas e outras coletividades,
uma dúvida que surge é, portanto, o que se pretende dizer com este termo.
Serão as diferentes responsabilidades jurídicas fenômenos totalmente distintos,
ou haverá algo comum a todas elas? Pensá-las como fenômenos distintos teria como
conseqüência uma compartimentalização da reflexão, de acordo com cada uma das
categorias jurídico-dogmáticas já existentes. Para poder superar tal problema e abrir
espaço para a criatividade na reflexão sobre a regulação de ilícitos praticados no âmbito
de coletividades, seria preciso achar o elemento comum a esses vários fenômenos, isto é,
algo que possibilite a comunicação entre as tradições jurídico-dogmáticas dos vários
campos do direito.
Podemos encontrar o caminho para tal comunicação na noção de
responsabilidade proposta por Klaus Günther. Para este autor, todas as hipóteses de
responsabilidade têm em comum uma determinada estrutura formal, bem como uma
função social que dela decorre. Nas palavras do autor:
Em primeiro lugar, elas têm em comum uma certa
estrutura formal. ‘Responsabilidade’ é um termo complexo.
Trata-se sempre da responsabilidade de uma pessoa por uma
ação (ou omissão) ou conseqüência de uma ação perante outras
pessoas. Tais ações, omissões ou conseqüências são atribuídas à
pessoa para que esta se responsabilize, devendo prestar contas
desses fatos a outras pessoas (GÜNTHER 2009, p. 5-6).
De tal estrutura formal decorre a função social própria da responsabilidade, que
consiste na estruturação do fluxo infinito dos acontecimentos, de modo a que
determinados fatos sejam atribuídos a uma pessoa como conseqüência de uma ação tida
como sua. Novamente, nas palavras de Günther:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
133
Entre os diversos fatores que envolvem todo
acontecimento, o complexo e obscuro novelo de relações de
causalidade e de probabilidade é reduzido a um ponto escolhido
de modo mais ou menos arbitrário: a uma pessoa agente
(GÜNTHER 2009, p. 6).
Essa estrutura formal e a sua conseqüente função social estão presentes tanto na
responsabilidade penal, quanto na responsabilidade civil e na responsabilidade por
ilícitos administrativos.
O que muda de caso para caso de responsabilidade são as regras de imputação,
isto é, os critérios para se estabelecer quando determinado fato deverá – e quando não
deverá – ser atribuído a alguém como resultado de ação ou omissão sua. Com relação a
isso, não só se diferenciam as responsabilidades penal, civil e administrativa, mas
também os vários casos de responsabilidade dentro de cada um desses ramos: a
responsabilização
civil
de
um
particular
obedece
a
critérios
diversos
da
responsabilização civil de um fornecedor de produtos ou serviços, por exemplo.
Os variáveis critérios de imputação, por sua vez, nos propõem a questão da sua
legitimidade. Com relação a isso, partiremos do princípio de que tais critérios não são
dados, mas sim definidos politicamente, e que sua legitimidade depende, portanto, de
sua definição no âmbito de um processo democrático de decisão.
Em outras palavras, embora o fio condutor deste trabalho seja a responsabilidade
penal da pessoa jurídica – devido ao modo como a questão dos ilícitos praticados no
âmbito de pessoas jurídicas e outras organizações tem sido apresentada no debate
brasileiro – pensamos que compartimentar a reflexão é contraproducente. É preciso
levar a sério a idéia de que não existem distinções ontológicas entre os ilícitos penais,
civis e administrativos, abrindo a possibilidade de uma solução do problema que não se
limite necessariamente ao direito penal.
Embora essa afirmação possa parecer trivial, é preciso lembrar que, ainda que os
fundamentos dos esforços de naturalização do crime e do criminoso já tenham sido
questionados e superados do ponto de vista teórico, é comum, ainda hoje, que os juristas
ajam como se houvesse diferenças naturais separando os âmbitos das responsabilidades
(PIRES, 1998, p. 12).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
134
Uma última questão fundamental que se coloca a partir concepção de
responsabilidade apresentada acima, especialmente do caráter contingente e
politicamente determinado dos critérios de imputação, é a questão da opção entre
responsabilização individual e coletiva.
A imputação se faz sempre sobre o pano de fundo de alternativas: ao se
determinar o ponto onde deve ser interrompido o novelo de relações causais e de
probabilidade mencionado acima, pode-se fazê-lo para imputar um fato a uma pessoa, a
várias pessoas, ao azar, à sociedade etc. (GÜNTHER, 2009, p. 7).
Nesse processo, em vez de ser atribuído a um indivíduo que age, o
acontecimento poderia ser atribuído também a circunstâncias ou entidades supraindividuais e, nesse caso, “a comunicação social acerca desse acontecimento dar-se-ia
de maneira diversa da que ocorre quando o acontecimento é imputado a uma pessoa
responsável” (GÜNTHER, 2009, p. 7).
Klaus Günther identifica nas sociedades ocidentais contemporâneas uma
tendência crescente à individualização da responsabilidade, com conseqüências
ambivalentes para a liberdade dos indivíduos (GÜNTHER, 2009, p. 7-12).
No entanto, a individualização não é um fenômeno natural, mas sim o resultado
de opções políticas de cada sociedade. É assim que deve ser encarada a discussão sobre
a conveniência do estabelecimento de responsabilidade penal (ou de outro tipo) para as
pessoas jurídicas e outras coletividades.
Diante dessas considerações, apresentamos abaixo uma reflexão sobre
responsabilidade por ilícitos administrativos e responsabilidade civil, em comparação
com a responsabilidade penal, de modo a fornecer elementos para a elaboração de uma
política pública que não se limite necessariamente à criminalização como meio para
lidar com o problema dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras
organizações.
Como a responsabilidade administrativa nos parece ter grande potencial para
compor uma política pública adequada para regular o problema em análise, além do
capítulo abaixo, há - em outro anexo- também um panorama sobre o funcionamento da
responsabilidade por ilícitos administrativos no ordenamento jurídico brasileiro.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
135
2. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA52
As tentativas tradicionais de justificar a escolha pela intervenção da esfera
administrativa ou penal para lidar com certa constelação de casos estiveram ligadas
à busca de uma diferença constitutiva ou “de natureza” entre ilícitos
administrativos e penais.
Decisiva, nesse sentido, a contribuição teórica de GOLDSCHMIDT, de
grande influência no desenvolvimento dogmático das duas áreas, a qual estabelecia
que o ilícito penal teria um caráter de lesão eticamente reprovável a um bem
jurídico, enquanto o direito administrativo seria um ato de desobediência éticovalorativamente neutro. Nelson HUNGRIA sintetiza os principais contrastes entre
os ilícitos penal e administrativo, no pensamento de GOLDSCHMIDT: (i) O
Direito Penal Comum (Justizstrafrecht) visa ao indivíduo como vontade ou
personalidade
autônoma,
ao
passo
que
o
Direito
Penal
Administrativo
(Verwaltungsstrafrecht) “o encara como membro ou elemento sinérgico da
sociedade e, portanto, adstrito a cooperar com a administração pública”; (ii) a
ilicitude administrativa, portanto, seria mera “omissão do dever de auxiliar
administração no sentido do bem público ou estatal (die Unterlassung der
Unterstützung der auf Forderung des ‘offentlichen oder Staatswohls gerichteten
Staatsverwaltung’)”, cujas normas seriam antes “normas de serviço” do que
propriamente normas jurídicas; (iii) a missão do Direito Penal Administrativo não
seria, conseqüentemente, proteger a ordem pública como bem jurídico, porém
como “objeto de atenção ou de cuidado (Fürsorgeobjekt) da Administração”; (iv)
os ilícitos administrativos seriam sempre omissivos; (v) a conseqüência desses
ilícitos seria sempre simples obrigação ex delicto de direito administrativo.
(GOLDSCHMIDT, 1902, p. 539, 548 e 576, e HUNGRIA, 1945, p. 16 e ss.).
Eis as críticas de HUNGRIA ao pensamento de GOLDSCHMIDT: (i) as
normas de Direito Penal Administrativo são normas jurídicas tais como as de
Direito Penal Comum, sendo a ordem pública um interesse por elas protegido,
52
O Anexo 3 deste relatório trata, de forma pormenorizada, sobre o modelo brasileiro de direito
administrativo sancionador.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
136
assumindo forma de bem jurídico (e não mero objeto de interesse); (ii) logo, o
ilícito administrativo é lesão efetiva ou potencial de um bem jurídico, que pode ser
cometida de forma comissiva, na medida em que podem tais normas exigire uma
omissão; (iii) “não há falar-se em direito penal subjetivo da justiça, em
contraposição a um direito penal subjetivo da administração, mas tão somente em
direito penal subjetivo do Estado” (HUNGRIA, 1945, p. 16 e ss.). Sustentava,
portanto, que a ilicitude jurídica é uma só e rechaçava qualquer tentativa de
localizar diferenças substanciais entre os ilícitos administrativo e penal.
A punição de certos ilícitos na esfera do direito
administrativo”, afirmava, “ao invés de o ser na órbita do
direito penal comum, não obedece, como já frisamos, senão
a razões de conveniência política: para o direito penal
comum é transportado apenas o ilícito administrativo de
maior gravidade objetiva ou que afeta mais diretamente o
interesse público, passando, assim, a ilícito penal” (1945, p.
18).
Em épocas mais recentes, localizam-se, em sede dogmática, ambas as
tendências. É o caso, por exemplo, da posição de Manuel Gómez TOMILLO, para
quem “o Direito Penal se ocupa da proteção de bens jurídicos (...). O Direito
Administrativo Sancionador, pelo contrário, persegue ordenar, de modo geral,
setores de atividade, isto é, reforçar, mediante sanções, um determinado modelo de
gestão setorial, é o esforço da gestão ordinária da Administração”. Reconhece,
porém, que “a falta de clareza quanto aos critérios leva precisamente ao atual
fenômeno de administrativização do Direito Penal” (2000, p. 80). Assumindo
postura intermediária está ZUÑIGA RODRIGUEZ, ao menos no tocante ao bem
jurídico: ao Direito Penal Comum caberia a proteção dos bens jurídicos
fundamentais, ao passo que ao Administrativo Sancionador incumbiria a tutela de
bens jurídico não fundamentais ou o perigo abstrato ou hipotético a bens jurídicos
fundamentais (2001, p. 1442).
Solução curiosa encontra-se no Tribunal Constitucional Espanhol que
formou uma linha jurisprudencial no sentido de que “a diferença entre a infração
administrativa e o delito jaz precisamente no plano subjetivo, de forma que
enquanto a sede correta para o tratamento da comissão dolosa é a criminal, para a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
137
culposa, há que se valer da Administração” (TOMILLO e ALVAREZ, 2000, p.
76).
Registre-se, por fim, a posição de PALIERO (1994), para quem a principal
(e talvez única) forma de distinção entre a sanção administrativa e a sanção penal é
a natureza estigmatizante que a última possui.
As tentativas de diferenciação essencialistas têm cada vez mais dificuldade
em explicar a conformação do que atualmente vem sendo regulado por cada uma
dessas áreas. Em primeiro lugar, não justificam o fato de, na maior parte dos casos,
a mesma conduta sofrer regulação de ambos os campos. Além disso, a definição de
GOLDSCHMIDT não resiste ao progressivo movimento do Direito Penal de
proteger bens jurídicos coletivos, por meio da criminalização de condutas que não
necessariamente geram resultados.
53
Neste momento em que diferenças ontológicas apresentam-se insustentáveis
e distinções com base em funções também apresentam zonas de obscuridade,
preferimos não insistir em tentar traçar distinções normativas entre ambas as áreas.
Trabalharemos, a princípio, com as distinções de funcionamento que ainda se
podem identificar como características de uma ou outra área.
Veremos que mesmo adotando tais distinções práticas, encontraremos
dificuldades de caracterizar definitivamente cada uma das áreas, na medida em que
a adoção de uma determinada postura quanto à natureza do ilícito administrativo,
em confronto com o penal, permite divergências quanto aos procedimentos. Para
quem considere, por exemplo, haver mera diferença quantitativa entre os ilícitos,
eis que todos são manifestações do poder punitivo, pode-se advogar, como
conseqüência, que o Direito Administrativo Sancionador, por impor sanção menos
grave, possa ter menos garantias (SILVA SANCHEZ, 2006); à conclusão diversa,
porém partindo do mesmo ponto, chega ZUÑIGA RODRIGUEZ, para quem é
justamente o fato de ser manifestação do poder punitivo que as garantias do núcleo
duro do Direito Penal devem, na medida do possível, ser incorporadas pelo Direito
Administrativo Sancionador (2001, p. 1441 e ss.).
53
Por isso, sobre esse fenômeno, fala-se em administrativização do Direito Penal (v. SILVA SÁNCHEZ,
2006, p. 131 e ss., bem como MACHADO, 2005, p. 115, 143).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
138
Embora este tema seja bastante complexo e uma análise aprofundada fuja ao
escopo do presente estudo, abordaremos abaixo essas questões na medida em que
elas se apresentarem importantes na discussão sobre a regulamentação da
responsabilidade penal da pessoa jurídica.
O escopo da nossa análise é, a princípio, apontar elementos que deverão ser
considerados pelo formulador de política pública a refletir sobre as vantagens e
desvantagens de regulamentar este tema por meio do direito administrativo
somente, por meio do Direito Penal ou por ambos simultaneamente.
Com relação à forma de funcionamento de cada um desses ramos, podemos
destacar algumas distinções em termos de (i) sanções; (ii) potencial simbólico da
comunicação social; (iii) autoridade competente; (iv) critérios de imputação; (v)
procedimento aplicável; (vi) instrumentos de produção de prova e medidas
cautelares; e (vii) garantias.
No que diz respeito ao tipo de sanção aplicada, a distinção tradicionalmente
feita entre as duas áreas tem por base a pena de privação de liberdade, que, de
acordo com a forma tradicional de definir o Direito Penal, o caracterizaria. Ainda
que questionemos tal caracterização do penal, fato é que a possibilidade de
utilização das penas privativas de liberdade é possível atualmente apenas nesta
esfera do Direito. De fato, ao contrário do que se evidencia na esfera penal, as
únicas modalidades de sanções admitidas no Direito Administrativo Sancionador
são as de natureza pecuniária ou de constituir o sancionado em obrigação de fazer
ou de não fazer (art. 68 da Lei 9.784/99). Apesar da pluralidade de sanções, as
mais comumente previstas nas normas administrativistas correspondem à
advertência, multa, caducidade do contrato celebrado com a Administração Pública
e cassação de licença ou de autorização. Entretanto, no caso de pessoas jurídicas,
estamos em um campo em que não há qualquer distinção entre os tipos de sanções
que podem ser aplicadas pela esfera administrativa e pela esfera penal. Tendo em
vista a impossibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade a pessoas
jurídicas, os instrumentos sancionatórios que ambas as esferas têm disponíveis são
rigorosamente os mesmos – penas de multa, restrição de direitos, limitação de
atividades, submissão a controles especiais etc. Em suma, com relação ao tipo de
sanção passível de ser aplicada à pessoa jurídica, não haveria distinção entre a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
139
punição aplicada pela esfera administrativa54 ou pela esfera penal.
Argumenta-se, nesse ponto, que haveria uma distinção em termos de força
simbólica entre cada uma delas, mais especificamente que a eficácia preventiva da
sanção administrativa seria “sem dúvida menor” (SILVA SÁNCHEZ, 2006, p.
364). Embora o pronunciamento de ambas as esferas possa ser compreendido como
a comunicação de reprovação de um comportamento e afirmação da norma violada,
a princípio, fala-se em um potencial simbólico mais acentuado do Direito Penal 55.
Há, entretanto, alguns fatores a serem considerados que podem relativizar essa que
seria uma vantagem dessa área em termos de impacto preventivo.
Em primeiro lugar, as sanções administrativas, dependendo do caso, podem
ser mais graves que a penal56. Manuel Gómez TOMILLO, analisando a sanção de
inabilitação para o exercício de uma profissão ou ofício, pondera que “em uma
sociedade em que o trabalho representa um bem muito escasso, tal sanção pode ser
quase tão grave como a de perda da liberdade, sobretudo se se leva em conta que
no sistema do código a pena de inabilitação especial implica a perda definitiva do
mesmo” (2000, p. 83).
Além disso, embora seja necessária a realização de pesquisa empírica
específica a esse respeito, seria possível ao menos colocar em questão se a força
simbólica do Direito Penal não estaria justamente ligada à ameaça da prisão. Dessa
forma, ausente a possibilidade de prisão, perderia também força persuasiva a
54
Juliana de PALMA (PALMA, 2008) diz que a sanção administrativa é “ato administrativo unilateral,
pois aplicada independentemente da aquiescência do sujeito passivo considerado infrator ao final de
processo regulatório sancionatório, e imperativo na medida em que se impõe ao administrado com quem
termina por travar uma relação vertical de autoridade” e que tem por finalidade “a repressão do infrator, a
recomposição da legalidade, a prevenção de infrações, o revestimento de eficácia às políticas regulatórias
pela afirmação do regulador perante os regulados e a persuasão nos acordos consensuais”.
55
Alguns autores fazem distinção entre os dois tipos de comunicação, afirmando que a confirmação de
uma norma penal não poderia ser feita por via da esfera administrativa. Nesse sentido, Mercedes ARÁN
defende a intervenção do Direito penal para a responsabilização da pessoa jurídica e se posiciona
contrariamente ao seu deslocamento para o Direito Administrativo, pois acha que os tipos do Código
Penal – que expressam um programa de proteção a bens-jurídicos – não devem ficar vazios de conteúdo
nos casos em que quem atua em sentido social e econômico é a pessoa jurídica, ou porque as categorias
tradicionais não servem, ou porque não seria possível localizar um ator individual (GARCIA ARÁN,
1988, p. 55-56).
56
“Ainda que as sanções administrativas possam ser economicamente muito mais gravosas que as penais,
o certo é que cabe contabilizá-las no balanço, com o que acabam sendo mais lesivas para a empresa; em
contrapartida, a sanção penal tem um valor simbólico inegável e de máxima relevância negativa para a
empresa, o que determina que sua eficácia preventiva seja sem dúvida menor” (TIEDEMANN, 1985, p.
168).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
140
atividade da esfera penal. 57
É possível, ainda, identificar um “déficit crônico de realização prática” do
Direito Penal (HASSEMER, 1999, p. 26) que, segundo HASSEMER, decorre tanto
da falta de emprego enérgico dos instrumentos penais pelas instituições, mas
também seria resultado de um problema estrutural: a esfera penal não estaria
conformada para lidar com os novos problemas e as exigências dos novos ramos de
regulação.58 A esse respeito, podemos nos reportar ao resultado da pesquisa
empírica realizada por nós em acórdãos relacionados à responsabilidade penal da
pessoa jurídica na esfera ambiental, em que observamos um grande número de
casos extintos e um baixo número de casos que efetivamente lograram chegar a
termo59. Podemos aqui apontar que o déficit de aplicação do Direito nesta área está
ligado de algum modo à falta de preparo e adaptação do sistema a esse novo
instituto. Assim, é preciso atentar ao fato de que o pressuposto potencial simbólico
do Direito Penal em um cenário de déficit de aplicação tende a se esvaziar
progressivamente.
Por fim, não nos parece correto afirmar a priori a falta de impacto
simbólico das sanções administrativas. Na medida em que o significado das
manifestações das instituições formais encarregadas de aplicar o Direito, bem
como das sanções por elas determinadas não estão definidas previamente, mas
passam por um processo social de atribuição de sentido, não nos parece possível
desde logo desprezar a possibilidade de as manifestações e decisões de um órgão
administrativo alcançarem impacto simbólico-preventivo. Até porque a própria
doutrina administrativista acaba incorporando as finalidades da sanção penal para
aquelas disciplinares, por exemplo, impondo no âmbito administrativo a mesma
57
Pode servir com intuição para uma futura pesquisa empírica, a forma como se consolidou o
debate brasileiro acerca do crime de uso de entorpecentes na nova lei de tóxicos. Não estando
sujeito a pena de prisão, é corrente encontrar na esfera pública especializada e não especializada
afirmações sobre uma possível descriminalização desta conduta, o que não é correto. Os casos
aqui seguem sendo processados pela esfera penal, mas apenas não estão mais sujeitos à pena de
prisão.
58
Segundo HASSEMER: “los déficits de realización demuestran hasta qué punto el derecho penal
se utiliza em sectores que non son los suyos, haciendo cumplir funciones que les son extrañas, lo
que produce su desnaturalización permanente y no meramente transitória. De estos datos de
hecho se deriva el dato normativi que nos dice que el derecho penal y sus posibilidades
estabilizadoras se está utilizando indebidamente” (HASSEMER, 1999, p. 26 e 27).
59
Dos 45 casos analisados, apenas cinco chegaram até a decisão de mérito e, desta parcela, dois já haviam
prescrito.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
141
lógica que impera no campo da pena em sentido forte. Mencione-se o
entendimento de Elbert da Cruz HEUSELER, que vislumbra quatro finalidades
básicas no processo administrativo disciplinar: (i) “em primeiro lugar, a punição é
nota característica de norma jurídica”; (ii) “em segundo lugar, a punição também
preenche uma outra finalidade, que é a de satisfação social”; (iii) “em terceiro
lugar, a sanção deve também, no mundo da Psicologia, com reflexo no mundo
jurídico, funcionar como um preventivo”; (iv) “e, por último, a aplicação da sanção
tem que haver com o efeito que se pode denominar como educativo ou
recuperador” (2003, p.134-135). Reconhecem-se, com facilidade, as posições
retributiva e preventiva, seja geral, seja individual.
Como exemplos desse fenômeno, podemos mencionar o respeito e o efeito
simbólico que têm atualmente os pronunciamentos de dois órgãos da esfera
administrativa: a CVM e o CADE. O que queremos com isso dizer é que o
potencial simbólico é mutável e depende de uma série de circunstâncias sociais,
podendo, portanto, ser construído também quando se tem em mãos a possibilidade
de responsabilização administrativa. Durante uma das entrevistas que conduzimos,
um representante do CADE afirmou que considera a mensagem da sanção
administrativa no mundo empresarial semelhante à mensagem da sanção penal,
dizendo que “quando sai uma notícia no jornal ‘Justiça condena empresa A por
cartel’ ou ‘CADE condena empresa A por cartel’ é a mesma coisa”.60
Outro ponto que foi tocado pelo entrevistado foi o efeito deterrence
(preventivo) que algumas decisões de órgãos administrativos possuem. E, para
exemplificar, disse: “o CADE toma uma decisão como ‘Nestlé, você precisa
vender a Garoto’. A Nestlé entra na justiça, alega alguma sutileza jurídica e
consegue uma liminar bloqueando durante 14 anos a decisão do CADE. Efeito
60
Contrário ao que afirma parte da doutrina européia. Fermín Javier Echarri CASI (CASI, 2003, p. 141),
na Espanha, e Carlo Enrico PALIERO (PALIERO, 1994), na Itália, colocam como diferencial entre a
sanção penal e a administrativa o efeito estigmatizante da primeira. Casi afirma categoricamente que a
sanção penal “acarrea un reproche ético-moral y un valor de intimidación ausente en la aplicación de la
sanción administrativa”. Contrária a esta posição, Juliana de PALMA (2008) considera que “além de
repercutir diretamente sobre o infrator, a sanção administrativa aplicada pela Administração torna-se
exemplar à sociedade em decorrência de seu efeito simbólico, de forma que parcela significativa dos
administrados termina por reconhecer a força da autoridade administrativa no manejo do poder
sancionador em uma pontual situação. Conseqüentemente, a aplicação de sanções administrativas gera
incentivos negativos (custos) à tomada de decisões contrárias ao ordenamento jurídico pelos demais
agentes (efeito preventivo)”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
142
prático desta decisão [do CADE] teve quase nenhum, a eficácia da decisão é
baixíssima. No entanto, hoje as empresas consultam a CVM se podem fazer uma
operação ‘assim ou assado’ e, se a CVM responde opinativamente ‘não’, a empresa
não realiza a operação, pois ninguém ousa fazer a operação e correr o risco da
sanção administrativa”. Para o entrevistado, o efeito da opinião da CVM tem uma
força preventiva maior do que as decisões judiciais ou do CADE porque são feitas
anteriormente ao fato e, portanto, o empresário sabe de antemão que aquela
conduta certamente gerará “uma dor de cabeça” e um custo maior, como a
necessidade de contratação de advogados e a possibilidade de ver desfeito o
negócio.
Se nossa hipótese estiver correta, de que diferenciar as duas esferas com
base na sanção e seus efeitos parece ser atualmente uma distinção bastante relativa,
então podemos afirmar que as distinções mais relevantes dizem respeito à forma de
funcionamento dessas duas esferas em termos de procedimento adotado,
especialmente distinções que se referem ao equilíbrio entre garantias e eficiência e
à especialização requerida da autoridade judicante para lidar com determinados
problemas.
61
Apesar de a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/99)
conferir certa unidade de tratamento da atividade administrativa na Administração
Pública federal, necessário ressaltar a difusão de regimes jurídicos sobre a
responsabilização administrativa, o que se acentua na esfera regulamentar. De fato,
o poder sancionador é cada vez mais disciplinado por meio de regulamentos
expedidos pela Administração Pública no exercício do poder normativo,
impulsionado com a criação das Agências Reguladoras no contexto da Reforma do
Estado.
As vantagens normalmente atribuídas à esfera administrativa dizem
respeito, em primeiro lugar, à especialização dos agentes. Principalmente no
campo da criminalidade econômica, a matéria tratada requer alta capacitação
técnica dos funcionários responsáveis pelo seu processamento. Em relação à
61
No mesmo sentido, ZUÑIGA RODRIGUEZ argumenta que a distinção não deve ser apenas uma
questão quantitativa. O debate atual deveria ter em conta outros fatores como: garantias aplicáveis;
princípios de imputação para declarar a responsabilidade; especialidade e complexidade da matéria que
requer uma regulação pormenorizada; o fim preventivo da utilização de um ou outro; e tipo de sanção.
Além disso, os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade deveriam ser também considerados nessa
decisão (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 194 e ss.).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
143
responsabilização de entes coletivos, uma série de questões específicas vem à tona,
não apenas ligadas à matéria em questão (concorrência, tributação, mercado
financeiro etc.), mas também relacionada à própria realidade da empresa. A
imputação de responsabilidade a pessoas jurídicas pode envolver a cognição de
questões ligadas, por exemplo, a um possível déficit organizativo da empresa, à
compreensão de sua estrutura e seus mecanismos de controle de ilícitos e, mais
importante, à necessidade de dosar a medida da sanção e ao mesmo tempo alcançar
um equilíbrio entre dano causado, potencial dissuasório, mas também a
manutenção da sua viabilidade econômica. Ou seja, as especificidades do ator
envolvido são tantas e são de tal maneira decisivas para que o processo de
responsabilização não só seja bem sucedido mas também não agrave ainda mais os
custos sociais do problema, que se pode considerar que estamos diante da
necessidade de uma outra forma de especialização.
Em face dessas questões, ainda que se decida pela regulação da questão pela
via do sistema penal, ter-se-ia então que pensar sobre formas de colocar à
disposição do juiz penal não só treinamento adequado, mas também auxílio técnico
para melhor se aproximar da questão (por exemplo, perícias especializadas em
avaliações econômicas, auditorias etc.).
Em segundo lugar, no que diz respeito aos requisitos de imputação, o
Direito Penal, em seu modelo tradicional, estaria vinculado à imputação de culpa,
enquanto o Direito Administrativo poderia levar em consideração outros critérios
para imputar. Segundo ADÁN NIETO, por meio desse ramo, trata-se de chegar à
responsabilidade não por meio da culpabilidade, mas por meio da capacidade de
suportar a sanção. Aproximar-se-ia, de acordo com esse autor, mais da
responsabilidade civil do que da penal (NIETO MARTÍN, 2008)
Na esfera administrativa não se enfrenta qualquer dificuldade em imputar
responsabilidade a pessoas jurídicas, pois essa possibilidade já está prevista em seu
sistema de funcionamento tradicional. Ao passo que coadunar o conceito de culpa
penal, tradicionalmente ligado ao indivíduo e com raízes na reprovação moral, vem
exigindo um esforço de renovação da dogmática penal. Não nos parece, entretanto
que esse seja um argumento capaz de excluir a priori a possibilidade de
responsabilizar a pessoa jurídica por meio do Direito Penal. Como vimos, há uma
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
144
larga produção teórica no sentido de repensar as categorias penais para esse
propósito
e
não
nos
parece
que
critérios
de
imputação
baseados
na
responsabilização individual seja algo imutável no Direito Penal.
No que diz respeito à comparação entre os procedimentos, há dois pontos
centrais no confronto entre os dois âmbitos: (i) os instrumentos que estão à
disposição para investigar e produzir provas; (ii) o equilíbrio entre celeridade,
flexibilidade e garantias processuais.
Ao modelo de Direito Administrativo Sancionador costuma-se associar as
vantagens da celeridade e da especialização, com sacrifício de garantias; ao Direito
Penal comum, a vantagem do devido processo legal, com sacrifício da eficiência.
Outra desvantagem é o efeito negativo advindo da sanção penal em sentido forte
(ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 1421-1422). Com efeito, os críticos da
aplicação das garantias do Direito Penal Comum para o Administrativo
Sancionador, sinteticamente, apontam que “implicaria uma reprodução em sede
administrativa do processo jurisdicional, com o que se perderiam as vantagens de
atribuir poder sancionador à Administração” (TOMILLO, 2000, p. 82).
Os instrumentos exclusivamente processuais penais para a obtenção de
provas têm muitas vezes impacto em alguns direitos fundamentais dos investigados
– principalmente a intimidade – e, em razão dessa atuação incisiva, só podem ser
autorizados por um juiz competente. São eles:
•
Busca e apreensão
Prevista nos arts. 240 a 250 do CPP, esta medida, na verdade, compreende
uma medida cautelar e um meio de obtenção de prova (LOPES JR., 2007, p. 653).
A busca seria o instrumento pelo qual se visa encontrar coisas ou pessoas,
enquanto a apreensão é uma medida para resguardar a prova e garantir sua
restituição a terceiro ou perda ao final do processo. Cleunice PITOMBO
(PITOMBO, 2008, p. 87) afirma que é possível “busca sem apreensão, apreensão
sem busca e busca seguida de apreensão”.
A busca possui um rol definido no §1º, art. 240, e só pode ocorrer após a
expedição de mandado judicial que delimite o objeto e a finalidade da busca (art.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
145
CPP, 243). Também é possível a busca e apreensão sem mandado judicial, mas ela
só pode ocorrer quando consentida pelo morador 62 ou quando o crime é
permanente e a situação de flagrância é constante.
No entanto, é possível conciliar a atividade do órgão administrativo com a
realização de buscas e apreensões. Desde 2000, a Secretaria de Direito Econômico
(SDE), órgão responsável pela investigação e acusação perante o CADE, pode
requisitar à Advocacia-Geral da União que solicite uma busca e apreensão a um
juiz cível63, de acordo com o art. 35-A da lei 8.884/94 64. Esta busca e apreensão
segue os moldes do Código de Processo Civil (art. 839 a 843) e não é necessária
propositura de ação para que o mandado seja concedido.
O Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade,
suspendeu liminarmente o artigo 19, XV, da Lei 9.472/97, que concedida à
Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) a competência de realizar
busca e apreensão no âmbito de seus processos administrativos de investigação
(ADI 1668 MC, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio)65. A apertada maioria de seis
Ministros abraçou a tese de que a legitimidade da Administração de apreender bens
afetos a seus interesses “diz respeito à provocação mediante o processo próprio,
buscando-se alcançar, no âmbito do Judiciário, a ordem para que ocorra o ato de
constrição, que é o de apreensão de bens. O dispositivo acaba por criar, no âmbito
da administração, figura que, em face das repercussões pertinentes, há de ser
sopesada por órgão independentes e, portanto, pelo Estado-juiz” (Voto do Ministro
Relator). Os vencidos alinharam-se à divergência inaugurada pelo Ministro Nelson
Jobim, para quem a busca e apreensão “caracteriza tipicamente o poder de polícia,
62
Utiliza-se morador, porque o código utiliza a expressão „busca domiciliar“, mas a expressão domicílio
abrange um leque muito maior de locais, incluindo estabelecimentos comerciais (BADARÓ, 2008, p.
272).
63
A quantidade de mandados de busca e apreensão expedidos vem aumentado significativamente nos
últimos anos. Entre 2003 a 2005, 11 mandados foram cumpridos; em 2006, 19 mandados foram
cumpridos; e, em 2007, 84 mandados foram cumpridos (fonte: Programa de Leniência, Ministério da
Justiça e Secretária de Direito Econômico, 2008.
64
Um exemplo de busca e apreensão procedida pelo SBDC corresponde à “Operação Fanta”, considerada
a maior já realizada no sistema antitruste brasileiro. Com um efetivo de aproximadamente 100 pessoas,
dentre as quais técnicos da SDE, agentes da Polícia Federal, Oficiais de Justiça e Advogados da AGU,
foram recolhidos 30 sacos de 100 litros contendo computadores, disquetes, CPUs e documentos diversos.
65
O Superior Tribunal de Justiça tem acompanhado o entendimento: RE 551449/CE, Segunda Turma,
Rel. Min. Herman Benjamin, j. 25.11.2008; RE 951892/CE, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão,
j. 16.8.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
146
restrito ao seu mister, ou seja, aquele que tiver exercido ilegalmente a sua
atividade terá os bens apreendidos. A discussão, depois, da ilegalidade ou não
desse ato será no Poder Judiciário”.
Também tem sido consideradas ilícitas as provas obtidas pelos servidores da
Receita Federal, em busca e apreensão, quando desacompanhadas de mandado
judicial (HC 93050/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10.6.2008).
•
Interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais
Regulada pela Lei nº. 9.296/96, a interceptação telefônica se caracteriza
pela intervenção de terceiro sem o conhecimento daqueles que conversam
(BADARÓ, 2008, p. 279), sendo possível a gravação do diálogo 66. Sua realização
depende de autorização judicial, como consta no art. 5º, inciso XII, da CF.
O rol de cabimento da interceptação está no art. 2º da Lei nº. 9.296/96 67 e
não define quando ela é permitida, mas a partir de quando ela é proibida. E neste
ponto surge um problema em relação à responsabilização penal da pessoa jurídica.
O inciso III veta a interceptação telefônica quando o fato investigado for punido
com, no máximo, pena de detenção. Esta vinculação à pena restritiva de liberdade
impede a utilização deste instrumento caso a interceptação se destine a obter prova
somente contra a pessoa jurídica. Isto porque não há previsão de pena de reclusão
para a pessoa jurídica.
Para a realização da interceptação, não é necessário que haja inquérito
instaurado contra os investigados, sendo possível, inclusive, que a escuta se dê
durante o procedimento administrativo 68, caso o fato investigado preencha os
66
Neste caso é necessária a transcrição do material em auto apartado. BADARÓ (2008, p. 279) questiona
a validade da interceptação sem a gravação e transcrição da conversa, uma vez que se impossibilitaria o
contraditório pleno por falta de acesso à prova por parte da defesa.
67
Art. 2°. “Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das
seguintes hipóteses: I - não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal; II - a
prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III - o fato investigado constituir infração penal
punida, no máximo, com pena de detenção”.
68
Como decidiu o STF nos Embargos de Declaração do Recurso Extraordinário 449.206/PR:
“EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO OPOSTOS À DECISÃO DO RELATOR:
CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL: ART. 3º,
II, DA LEI 9.296/96. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO REQUERIDA AO JUÍZO PELO
MINISTÉRIO PÚBLICO. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL ADMINISTRATIVA: POSSIBILIDADE. I. Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
147
requisitos constantes no art. 2º da lei (BADARÓ, 2008, p. 289).
Já a escuta ambiental está regulada no art. 2º, inciso IV, lei nº. 9.034/95,
que trata dos crimes praticados por organizações criminosas. Ela é definida como a
captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou
acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial.
Portanto, é vedada a sua utilização quando o delito investigado não for
cometido por “quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de
qualquer tipo” (Lei nº 9.034/95, art. 1º) ou sem autorização judicial, o que impede
sua utilização em procedimentos administrativos que não tenham implicação penal
posterior.
Além disso, e mesmo que se vencessem os problemas anteriores, resta ainda
a questão de saber se o simples fato de o ilícito ser praticado no âmbito da
organização da pessoa jurídica, poderia ser enquadrado na definição “quadrilha ou
bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.
•
Quebra de sigilo bancário
Prevista no §4º, art. 1º, Lei Complementar nº. 105/01, a quebra de sigilo
bancário só pode ocorrer durante o inquérito ou processo penal quando autorizada
por juiz competente e necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito –
no entanto, a lei dá preferência a um rol específico de crimes 69. Em recente
manifestação acerca dos limites ao exercício do poder de fiscalização pelo Banco
Central, com intenso debate entre os Ministros, a maioria do STF entendeu pela
impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas pela atuação
fiscalizatória do BACEN, o que afrontaria o direito ao sigilo previsto no art. 5º,
Embargos de declaração opostos à decisão singular do Relator. Conversão dos embargos em agravo
regimental. II. - Não há óbice legal que impeça o Ministério Público de requerer à autoridade
judiciária a quebra de sigilo telefônico durante investigação criminal administrativa. III - Agravo
não provido”. (grifo nosso)
69
Lei Complementar 105/01, art. 1º, §4º. “A quebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária
para apuração de ocorrência de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e
especialmente nos seguintes crimes: I – de terrorismo; II – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes
ou drogas afins; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra o sistema financeiro nacional; VI – contra a
Administração Pública; VII – contra a ordem tributária e a previdência social; VIII – lavagem de dinheiro
ou ocultação de bens, direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
148
inc. XII, da CF. 70
Compreendidos no conceito de reserva de jurisdição desenvolvido pela
jurisprudência do STF quando da análise dos poderes de investigação das
Comissões Parlamentares de Inquérito, os referidos mecanismos cautelares
condicionam-se à prévia autorização judicial para serem empregados no âmbito do
processo administrativo. Embora próprios do Direito Processual Penal, estes
instrumentos são também úteis à Administração Pública, cuja prática conta com
variados precedentes, a exemplo do CADE nos casos em que a conduta investigada
no âmbito administrativo também é tipificada criminalmente. Principalmente nos
crimes de cartel71, quando, explicou-nos o representante da autoridade antitruste
entrevistado, o CADE atua, em conjunto com a Polícia Federal e o Ministério
Público, requisitando a execução de diligências tipicamente penais.
Por outro lado, o procedimento administrativo, apesar de não contar
diretamente com estes instrumentos, possui elementos que são estranhos ao
processo penal, os quais, a princípio, são mais flexíveis no que diz respeito às
garantias individuais. Esses instrumentos variam em relação às previsões de cada
setor de regulação. A título de ilustração, citamos os seguintes mecanismos 72:
•
Requisitar informações e documentos aos investigados sob pena de
multa.
70
RE 461.366-2/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. 03/08/2007.
71
Cf. Entrevista de Paulo Furquim de AZEVEDO, conselheiro do CADE, no qual o entrevistado diz:
“Vale a pena destacar três elementos em que o Brasil se destaca e que são muitas vezes tomados como
referência pelas demais jurisdições (...) o programa de combate a cartéis, com o uso de mecanismos de
busca e apreensão, acordo de leniência e interceptação de comunicação coloca o Brasil na fronteira na
dissuasão desse tipo de ilícito”. Disponível em < http://www.cade.gov.br/news/n019/entrevista.htm>.
72
Não ignoramos que uma análise mais cuidadosa dos instrumentos presentes no procedimento
administrativo deveria dar conta das especificidades de cada ente administrativo. No caso da Agência
Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), por exemplo, a Resolução 442/04 aprova o regulamento de
disciplina do processo administrativo para apuração de infrações a aplicação de penalidades, cujo art. 12
apresenta a seguinte redação: Art. 12. No curso do procedimento de averiguações preliminares, as
Superintendências poderão: I – requisitar das empresas envolvidas, de seus administradores e acionistas,
do autor de representação ou de terceiros interessados informações, esclarecimentos e documentos; II –
requerer a outros órgãos e entidades públicas informações, esclarecimentos e documentos; III – realizar
inspeções e diligências; IV – adotar medidas cautelares preventivas; V – suspender o procedimento de
averiguações, determinando a instauração de processo administrativo; e VI – adotar quaisquer outras
providências, administrativas ou judiciais, que considerar necessárias”. No entanto, tal aprofundamento
foge ao escopo deste trabalho.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
149
O art. 10, inciso II, da portaria nº 327/77, da CVM, e o art. 9º, lei 6.835/77,
inciso II, obrigam os intimados73 durante a instrução administrativa a comparecer
para esclarecimento ou prestação de informações. Caso o intimado não atenda ao
chamado da CVM, é possível a aplicação de multa. No procedimento penal isto
não é permitido em relação ao réu, já que há previsão expressa do direito ao
silêncio. O mesmo acontece com o pedido para apresentação de documentos.
•
Inspeção
Tanto o CADE quanto a CVM possuem a liberdade de investigar quaisquer
documentos que interessem ao processo. A lei 8.884/94 (CADE) e a lei 6.835/77
(CVM) possuem disposições semelhantes, que permitem ao órgão inspecionar e
extrair cópias de documentos, arquivos eletrônicos, livros contábeis etc. Além
disso, o art. 35, lei 8.884/94, permite que a SDE, quando considerar necessário,
inspecione qualquer empresa investigada, devendo para isso intimar o investigado
da decisão com antecedência de vinte quatro horas do início da diligência. Durante
esta inspeção, a SDE pode examinar a sede social, estabelecimento, escritório,
filial ou sucursal de empresa investigada e inspecionar estoques, objetos, papéis de
qualquer natureza, assim como livros comerciais, computadores e arquivos
magnéticos, podendo extrair ou requisitar cópias de quaisquer documentos ou
dados eletrônicos. Nosso entrevistado do CADE afirmou, entretanto, que esse
instrumento é pouco útil, pois a perda do elemento surpresa normalmente dificulta
a descoberta de evidências.
•
Acordo de leniência
Prevista no arts. 35-B e 35-C da Lei nº. 8.884/94, a aceitação do acordo de
leniência pelo investigado resulta na “extinção da ação punitiva da administração
pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável”. A celebração do
acordo de leniência gera a suspensão do prazo prescricional penal e a
73
A definição de quem pode ser intimado aparece no inciso anterior. São eles a) as pessoas naturais e
jurídicas que integram o sistema de distribuição de valores mobiliários; b) as companhias abertas; c) os
fundos e sociedades de investimento; d) as carteiras e depósitos de valores mobiliários; e) os auditores
independentes; f) os consultores e analistas de valores mobiliários; g) quaisquer outras pessoas, naturais
ou jurídicas, que participem no mercado, ou de negócio no mercado, quando houver suspeita
fundamentada de fraude ou manipulação, destinada a criar condições artificiais de demanda, oferta ou
preço dos valores mobiliários.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
150
impossibilidade de oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Após o seu
cumprimento fica extinta também a punibilidade penal, além da administrativa.
Para isso, o investigado precisa confessar a prática da infração, não ser o líder da
operação, ser o primeiro a comparecer perante a administração, apresentar provas
que impliquem os outros empresários envolvidos, ajudar durante a o curso da
investigação para facilitar o trabalho do Estado e parar de praticar o ato
infracional. Além disso, é necessário que a infração não seja de conhecimento da
SDE e que não fosse possível à SDE descobrir a conduta sem a ajuda do
informante.
O acordo de leniência, como afirmou o representante do CADE, é um
instrumento próximo da delação premiada do âmbito penal, no entanto ela é muito
melhor regulada e com benefícios maiores para o delator, o que resulta em um
incentivo para a sua celebração74. Isto porque a delação premiada só é aplicada
pelo juiz penal no momento da sentença, o que gera incerteza de sua aplicação ao
delator e a conseqüente redução no número de delações; não é necessário que a
pessoa confesse a prática do crime, mas somente que incrimine os comparsas; e o
crime delatado normalmente já está sendo investigado ou já está na fase
processual, enquanto o acordo de leniência serve para que a SDE descubra cartéis
que sequer sabia que existiam.
•
Medidas preventivas
O procedimento administrativo também possui, atualmente, medidas
preventivas (ou cautelares) que não estão previstas para o procedimento penal. A
lei 8.884/94 – que regula o funcionamento do CADE –, por exemplo, prevê em seu
art. 52 a imposição de medida restritiva para impedir a continuidade de ato do
representado que possa causar lesão irreparável ou de difícil reparação ao mercado.
74
No entanto, Castello Branco (CASTELLO BRANCO, 2008, p. 143 e 159) discorda desta posição e
destaca que “a incerteza gerada ao denunciante [em razão da subjetividade na avaliação, pelo SDE, dos
elementos extintivos da punibilidade], motivando-o à não-celebração do acordo, conseqüentemente,
coloca em risco a eficácia do instituto, prejudicando substancialmente a elucidação dos crimes de cartel”
e que a “eficácia do acordo de leniência depende, necessariamente, da implementação de regras claras e
confiáveis, capazes de seduzir e encorajar o delator a quebrar o ‘pacto de silêncio’ que norteia a prática de
cartel”. No entanto, o acordo de leniência tem efetividade pois, entre 2000 e 2003, 10 acordos de
leniência foram firmados e “o CADE já reconheceu em diversas ocasiões que o Programa de Leniência é
o instrumento de investigação mais efetivo para se prevenir e punir cartéis” (fonte: Programa de
Leniência, Ministério da Justiça e Secretária de Direito Econômico, 2008).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
151
No processo penal ainda não há nenhum instrumento similar a este, visto que a lei
dos crimes ambientais, a única que regulou a responsabilidade penal da pessoa
jurídica até o momento, é silente em relação a esta matéria.
Uma análise mais cuidadosa dos instrumentos presentes no procedimento
administrativo deveria dar conta das especificidades de cada órgão administrativo,
o que, entretanto, foge ao escopo deste trabalho. Cumpre-nos observar que uma das
questões centrais a serem consideradas na comparação e eventual escolha sobre a
área que regulará o problema está na possibilidade que cada procedimento oferece
para buscar elementos investigatórios e instrutórios. Vimos que o processo penal é
dotado de mecanismos, a princípio, mais invasivos da intimidade do investigado,
mas também mais eficientes, como as escutas telefônicas e ambientais. Em
contrapartida, há, a princípio, muito menos flexibilidade em termos de observância
de garantias processuais. O processo administrativo é também dotado de
instrumentos de investigação e instrução, que, entretanto, são considerados em
alguns casos menos eficazes. Para ilustrar esse dilema, mencione-se a opinião do
representante do CADE por nós entrevistado que afirmou que a ausência destes
instrumentos, próprios do procedimento penal, dificultaria enormemente o trabalho
de investigação do CADE75. Castello Branco (CASTELLO BRANCO, 2008, p. 142
e s.) também considera essencial para o trabalho de investigação realizado pelo
CADE a busca e apreensão, as escutas telefônicas e as captações ambientais.
Outra diferença muitas vezes mencionada em relação a esses dois tipos de
procedimento estaria na maior celeridade do procedimento administrativo em
relação ao processo penal76. Trata-se de um dado a princípio correto, mas que deve
ser analisado conjuntamente com pelo menos uma variável: a possibilidade de as
decisões administrativas serem revistas pelo Judiciário.
75
Opinião que é corroborada pelo informativo nº 15 do CADE, no qual se lê: “O caso do Cartel das Britas
é um marco na história da defesa da concorrência do Brasil. Trata-se do primeiro cartel condenado pelo
CADE, em 45 anos de história, em que a Secretaria de Direito Econômico (SDE) usou sofisticada
análise econômica associada a poderosos instrumentos de investigação, até então inéditos no Brasil,
como
a
busca
e
apreensão”
(grifo
nosso).
Disponível
em:
<http://www.cade.gov.br/news/n015/noticias.htm>.
76
Segundo ZUÑIGA RODRIGUEZ (ZÚÑIGA RODRIGUEZ, 2001, p. 194), as vantagens do Direito
Administrativo no campo econômico estariam ligadas aos seguintes pontos: necessidade de alta
capacitação técnica de seus funcionários, celeridade do procedimento e mobilidade da matéria que
requerem sistemas de regulação mais flexíveis que o penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
152
A CF garante a inafastabilidade do acesso ao Judiciário, sempre que houver
lesão ou ameaça de lesão a direito (CF, art. 5º, inc. XXXV). Ao contrário do que se
evidencia nos sistemas de dualidade de jurisdição, cuja principal característica
reside na existência de um Tribunal especializado para lidar com os litígios
envolvendo a Administração Pública, o modelo de unidade de jurisdição adotado
pelo Estado brasileiro determina a concentração dos questionamentos públicos no
mesmo órgão jurisdicional para apreciar litígios privados. Dessa forma, juízes
podem invalidar a decisão da Administração Pública com fundamento na
legalidade.
Um dos principais debates que se apresentam hoje na agenda teórica do Direito
Administrativo corresponde aos limites do controle judicial dos atos administrativos. O
atual cenário teórico dá conta de duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no
controle dos atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do
ato administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV, CF, e aqueles que
buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do
Judiciário às decisões administrativas. Com relação a esta segunda corrente, alguns
critérios têm sido levantados para conter o controle judicial dos atos administrativos,
como o estabelecimento de standards que determinariam um nível mais ou menos
incisivo do controle judicial77 e a razoabilidade da decisão da Administração, que
predicaria uma postura de deferência do Judiciário frente ao ato administrativo. 78
Em pesquisa de jurisprudência realizada por Daniel WANG,
Juliana PALMA e Daniel COLOMBO, na qual foram analisadas 321 decisões
proferidas pelo STF, STJ e TRFs com a finalidade de verificar o comportamento
do Poder Judiciário frente a pedidos de revisão de atos regulatórios 79, os autores
constataram a tendência de a primeira instância rever os atos regulatórios, ao passo
que os Tribunais analisados mostraram-se mais deferentes, dado que 75% dos
julgados em que a segunda instância reviu a decisão de primeira foi no sentido de
77
Cf. Gustavo BINENBOJM, 2007, p. 235-235.
78
Cf. Alexandre Santos de ARAGÃO, 2003, p. 350-351.
79
Foram analisados os atos regulatórios das seguintes Agências Reguladoras: ANP, ANATEL, ANEEL,
ANTAQ, ANTT e ANAC.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
153
manter ato de Agência Reguladora que o juízo a quo tinha invalidado.
80
Quanto ao
tipo de ato mais revisado, a pesquisa constatou que os atos de fiscalização e sanção
foram os mais revisados pelo Poder Judiciário, embora os atos normativos tenham
sido os mais judicializados.
Na prática, a pretexto de se aferir a legalidade (sobretudo a
constitucionalidade material), envereda-se no campo do conteúdo da decisão
administrativa.
Entretanto, mesmo restrita a essa matéria, a revisão dos casos pelo
Judiciário tem tido impacto no que diz respeito à demora da execução das sanções
aplicadas pela esfera administrativa. O tema é especialmente sensível com relação
à principal sanção que o Poder Público emprega para reprimir infrações
administrativas, dados os recorrentes questionamentos sobre a legalidade e a
proporcionalidade da medida levados pelos sancionados ao Judiciário. Ademais,
deve-se ressaltar as dificuldades na execução judicial das multas administrativas.
As multas aplicadas pela autoridade administrativa não são autoexecutáveis, o que importa na necessidade de cobrança judicial via ação de
execução fiscal (Lei nº. 6.830/80) caso o sancionado não pague espontaneamente o
valor arbitrado na multa, que acarreta na inscrição do devedor no Cadastro
Informativo dos Créditos Não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (CADIN).
A judicialização da execução das multas administrativas repercute diretamente
sobre a efetividade do sistema sancionador administrativo, pois as multas, embora
aplicadas, não são cumpridas. Uma vez que a multa consiste em uma das sanções
administrativas mais aplicadas pela Administração Pública federal, senão a sanção
mais aplicada, tem-se o quadro de ineficácia do sistema de responsabilização
administrativa, agravado pelo fato de a demora de processamento das ações de
execução fiscal, dentre outros fatores, determinarem o baixo recolhimento das
multas aplicadas.
A outra faceta da celeridade diz respeito às exigências de garantias em cada
tipo de procedimento. Evidente que o processo administrativo também tem
80
Revisão Judicial dos Atos das Agências Reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira, p. 27
(mimeo).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
154
previsões de forma e de determinadas garantias processuais, como o contraditório e
a ampla defesa, constitucionalmente assegurados (CF, art.5º, LV). Além disso,
previstos no art. 2º da lei 9.784/99, os princípios que regem o procedimento
administrativo
são:
legalidade,
finalidade,
motivação,
razoabilidade,
proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica,
interesse público e eficiência. Entretanto, trata-se de um instrumento dotado de
mais flexibilidade que, a princípio, o procedimento penal, principalmente porque,
ao lado dos dois princípios já citados, estão também os princípios do interesse
público e da eficiência.
Silva Sánchez, ao tratar dessa questão, indica que a exigência de garantias
mais rígidas no Direito Penal estaria ligada à gravidade da pena de prisão. Ou seja,
a rigidez das garantias formais desse modelo não corresponderia a uma inspiração
ontológica do sistema. Firmou-se, na verdade, apenas um contrapeso ao
extraordinário rigor das sanções impostas (Cf. SILVA SÁNCHEZ, 2006, p. 167171).
A partir da constatação de que o conjunto de garantias seria muito mais o
reverso da pena de prisão do que algo inerente à identidade do modelo, Sánchez
estabelece uma relação direta entre as garantias de determinado sistema e a
severidade das sanções por ele infirmadas. Com isso, vê-se apto a concluir que
seria admissível a absorção de novas áreas de tutela menos garantistas dentro do
Direito Penal, desde que as sanções previstas para os ilícitos não incluíssem a
privação da liberdade. 81
Desse modo, no caso das pessoas jurídicas, em que se teria um
procedimento penal no qual não cabe a pena privativa de liberdade, não seria a
81
É nesse sentido também a posição de Antônio Magalhães GOMES FILHO (GOMES FILHO, 1997, p.
55), ao explicar a razão das garantias previstas no direito processual penal, afirma que “no Estado
democrático de direito, em que a liberdade individual é reconhecida como premissa fundamental para a
justa organização da sociedade, é evidente que as decisões penais, que incidem exatamente sobre o status
libertatis do cidadão, só podem ser legitimadas por um saber resultante de procedimentos que permitam
esclarecer os fatos sob a dupla ótica do indivíduo e da sociedade: é preciso que as hipóteses acusatórias
sejam verificadas, pois sem a existência de provas concludentes não se poderá superar a presunção de
inocência do acusado; mas é igualmente necessário que essas mesmas provas sejam produzidas com a
participação e o controle da defesa e, ainda, que possa haver contraprova. Em outras palavras, um
verdadeiro modelo cognitivo de justiça penal pressupões não apenas que a acusação seja confirmada por
provas (nulla acusacione sine probatione), mas também o reconhecimento de poderes à defesa do
acusado no procedimento probatório”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
155
princípio inaceitável, ainda que no interior da esfera penal, pensar em alguma
medida na flexibilização de critérios de imputação e na relativização de alguns
princípios de garantias. A dificuldade estaria, aqui, em casos nos quais estivesse
em discussão simultaneamente responsabilização da pessoa jurídica e de pessoas
físicas, pois se estas últimas estiverem sujeitas à pena de prisão, então qualquer
tipo de flexibilização de garantias deverá se circunscrever à pessoa jurídica. Ou
seja, a denúncia teria de ser deduzida somente contra a pessoa jurídica e a
condenação desta não poderia gerar efeitos negativos às pessoas físicas – por
exemplo, impedindo a possibilidade de empréstimo das provas produzidas durante
a persecução penal em que a pessoa jurídica figura no pólo passivo a processos nos
quais a ré é pessoa física.
A nosso ver, podemos, a princípio, pensar que não estamos diante de
procedimentos com critérios fixos ou ontológicos, mas que os critérios e regras de
imputação estariam, dentro de certos limites, sujeitos a mudança, em razão de
decisões legítimas no âmbito de um do Estado Democrático de Direito.
Sobre a caracterização dos dois ramos em face das garantias processuais, e
apontando para uma posição que diverge da que acaba de se expor, mencionamos
os desenvolvimentos recentes que defendem a extensão das garantias do Direito
Penal ao âmbito administrativo.
O Tribunal Constitucional espanhol em julgamentos ocorridos nos anos de
1987 e 199182 sustentou que estaríamos diante de um ius puniendi geral que se
expressa indistintamente no Direito Administrativo sancionador e no Direito Penal.
A tese favorável ao jus puniendi do Estado, hoje prevalecente na doutrina
brasileira, considera que a prerrogativa sancionadora constitui, ao lado do poder penal
punitivo exercido pelo Judiciário, o poder geral do Estado de reprimir condutas
contrárias ao ordenamento jurídico, qualquer que seja a esfera de responsabilização.
Como conseqüência, o jus puniendi estatal determinaria um regime jurídico comum
para disciplinar a responsabilização penal e administrativa, servindo como efetivo meio
de transplante de princípios e regras do Direito Penal para o Direito Administrativo.
82
STC n.º 18/1987 (RTC 1987, 18) e STC n.º 246/1991, RTC 1991, 246.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
156
Seguindo esta tese, Miguel REALE JR., no Brasil, em parecer apresentado
perante o CADE em 2006, defendeu a existência de um jus puniendi geral. Para o
autor, a escolha do legislador pela via penal ou administrativa é uma “escolha com
base na conveniência política deste ou daquele caminho, com vista a alcançar os
fins preventivos e retributivos”. Em razão desta unidade do direito de punir, que
abarcaria o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, afirma REALE
JR. que as duas áreas devem se submeter “aos mesmos princípios de proteção do
sujeito sancionado, normas essas comuns, estabelecidos no capítulo das garantias
individuais de nossa Constituição Federal”. Assim, certas garantias e princípios
que aparentam ser aplicáveis somente na esfera penal também devem ser aplicados
no procedimento administrativo sancionador. Como exemplo, REALE JR. cita o
princípio da legalidade, da irretroatividade das disposições desfavoráveis, da
segurança jurídica e da proporcionalidade. E assevera que também os princípios
previstos no art. 5º da Constituição como o princípio da anterioridade (inc.
XXXIX); princípio da irretroatividade (inc. XL); princípio da presunção de
inocência (inc. LVII); princípio do contraditório e da ampla defesa 83 (inc. LV); e
princípio da licitude das provas (inc. LVI) devem ter aplicação integral no
procedimento administrativo. 84
Ainda que, como dissemos acima, entendamos que as regras que guiam a
imputação estão em disputa e podem ser redefinidas, é preciso considerar as
conseqüências de transportar todas as garantias da esfera penal para a
administrativa. Isso provavelmente inviabilizaria a regulação, pois este ramo do
Direito perderia em celeridade e em flexibilidade e, ao mesmo tempo, não teria
incrementado as suas possibilidades de buscar evidências e produzir provas.
83
No entanto, decisão recente do STF afastou a necessidade de defesa técnica em procedimento
administrativo.
“EMENTA: Recurso extraordinário. 2. Processo Administrativo Disciplinar. 3. Cerceamento de defesa.
Princípios do contraditório e da ampla defesa. Ausência de defesa técnica por advogado. 4. A falta de
defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. 5.
Recursos extraordinários conhecidos e providos”. (grifo nosso) (RE 434.059/PR, Pleno, rel. min. Gilmar
Mendes).
84
Posição também defendida por Fermin CASI ao afirmar que “el único camino para evitar una elusión
de las garantias del Convenio de Roma, es la aplicación al injusto administrativo, de los princípios
penales materiales y atenuando así a potestad sancionadora de la Administración. Y entre ellos el
principio de imparcialidad, el derecho de defensa y la interdicción de la indefensión, la presunción de
inocencia, el derecho a un proceso sin dilaciones indebidas y garantía de motivación de las resoluciones
judiciales, como salvaguardas de índole procesal y constitucional frente a esa potestad sancionadora”
(2003, p. 143).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
157
Para Alejandro NIETO, a tese do jus puniendi estatal surge da necessidade
prática de viabilização da atividade sancionadora na seara administrativa: faltavalhe o ferramental necessário para disciplina da prerrogativa sancionadora, o qual
fora, então, fornecido pelo Direito Penal, com o aproveitamento de regras de
processamento e princípios garantistas próprios desta esfera. Porém, passado o
estágio inicial de afirmação da autonomia do Direito Administrativo e de formação
de seu regime jurídico, ainda assim o conhecimento do jus puniendi estatal
continuou forte nos sistemas administrativos, sendo elevado à “categoria de
dogma inquestionável”.
85
A ausência de disciplina normativa do exercício da prerrogativa
sancionadora, i.e., de suas infrações e sanções administrativas e do seu processo
sancionador, também se manifestou no Direito Administrativo brasileiro.
86
Até a
edição das leis de processo administrativo no final de década de 1990, a
Administração Pública brasileira não contava com normas gerais de regramento
processual, quanto mais do tipo sancionador, ressalvadas as legislações especiais.
Esse cenário viabilizou o emprego de mecanismos próprios do Direito Penal para
disciplina da atuação administrativa sancionatória, corroborado pelo fato de o
período pré-redemocratização ensejar o recurso a mecanismos de garantia de
direitos individuais frente à Administração Pública ditatorial.
No entanto, é de se verificar hoje a alteração do panorama histórico-político
que determinou a recepção da tese do jus puniendi estatal.
Primeiramente, sucessivas alterações do regime jurídico-administrativo com
a constitucionalização de garantias dos indivíduos oponíveis à Administração
Pública – a exemplo dos princípios da legalidade, do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal – e com a edição das leis de processo
administrativo, as quais também prevêem direitos substantivos e adjetivos aos
administrados, conformam um Direito Administrativo garantista. Em outros
85
“El enorme éxito de tal postura – elevada ya a la categoría de dogma incuestionable – se debe en parte
a razones ideológicas, ya que así se atempera el rechazo que suelen producir las actuaciones
sancionadoras de la Administración, de corte autoritario, y, en parte, a razone técnicas, en cuanto que
gracias a este entronque con el Derecho público estatal se proporciona al Derecho Administrativo
Sancionador un soporte conceptual y operativo que antes carecia”. Alejandro NIETO, 1993, p. 20.
86
Para uma descrição do cenário de ausência de normas específicas para reger a atuação administrativa
sancionatória, cf. Carlos Ari SUNDFELD, 1987, p.102-103.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
158
termos, esgota-se a necessidade de transplante de garantias da esfera penal para o
Direito Administrativo, que possui seus próprios mecanismos de defesa de direitos.
Pelo reconhecimento da autonomia do Direito Administrativo (Sancionador)
e, por conseqüência, de seu peculiar regime jurídico, mostra ser descabida a tese
do jus puniendi estatal no atual cenário administrativista. Não é o poder punitivo
estatal o fundamento da competência sancionatória detida pela Administração
Pública, mas é a prerrogativa sancionatória que confere à autoridade estatal a
faculdade de aplicar sanções administrativas. A prerrogativa administrativa
sancionadora deve ser trabalhada de forma autônoma não apenas em razão de seu
fundamento jurídico próprio, correspondente à prerrogativa imperativa, mas
principalmente porque seu exercício está lastreado em um regime jurídico peculiar,
com regras e princípios específicos.
Dessa forma, a prerrogativa sancionadora deve ser contemplada à luz da
Constituição Federal e das normas, legais e infra-legais, que conformam o regime
de
processamento
específico
desta
potestade
pública.
Ao
contrário
do
processamento penal, a Lei nº. 9.784/99 determina ser um dos deveres do
administrado no processo administrativo “expor os fatos conforme a verdade” (art.
4º, inc. I). Questão central seria, por exemplo, a proibição de produção de provas
contra si mesmo, garantia ligada ao Direito Penal e que tradicionalmente não vige
no Direito Administrativo, eis que é característico dessa área normas de obrigam
os investigados a apresentarem documentos ou de alguma forma franquearem
acesso a agentes ou órgãos administrativos, sob pena de sanção. Isso se daria
justamente porque a esfera administrativa é dotada de meios investigativos e de
produção de prova menos eficientes. Estender o princípio que veda a proibição de
prova contra si mesmo, sem ampliar a capacidade de intervenção das autoridades
administrativas afetaria justamente tal equilíbrio e, no limite, poderia inviabilizar a
investigação e instrução de casos por essa esfera.
Outra constelação de questões a serem consideradas é a que decorre da
intervenção dupla, ou seja, da possibilidade de se imputar responsabilidade e
determinar sanções pelas duas esferas ao mesmo fato.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
159
A primeira delas é a utilização de provas emprestadas. Provas emprestadas
são aquelas que não foram produzidas no mesmo processo em que estão sendo
utilizadas87. BADARÓ (2008, p. 201) afirma categoricamente que provas
produzidas em processos administrativos não podem ser trasladadas para processos
penais, pois a prova emprestada, para ser utilizada em um segundo processo, deve
ter sido produzida perante o juiz natural.
88
Assim, para que o Judiciário possa
avaliar questões de mérito decididas em procedimentos administrativos ou utilizar
elementos ali constantes, é necessária nova realização da mesma prova produzida
durante a instrução em âmbito administrativo, o que elimina por completo a
utilidade da primeira produção da prova.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão paradigmática para o tema, fixou
o entendimento de que é inadmissível que a decisão de pronúncia se dê apenas com
base em prova emprestada (HC 67.707, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello,
j. 14.8.1992; posteriormente, RMS 25485/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos
Britto, j. 14.3.2006; HC 89468/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, j.
15.5.2007; HC 91973/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j.
4.3.2008). Decisões recentes tendem a aceitar a prova produzida fora do processo
penal, eis que foi observado o contraditório no procedimento administrativo
disciplinar (MS 24803/DF, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 29.10.2008; em
sentido semelhante: RE 328138/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, j. 16.9.2003; HC 78749/MS, Primeira Turma, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, j. 25.05.1999.).
O inverso também é verdadeiro na Suprema Corte: provas produzidas no
processo penal podem ser emprestadas a procedimentos administrativos,89
87
Cópias de documentos públicos ou não sigilosos constantes em outro processo não são consideradas
provas emprestada. Seria uma prova emprestada, a cópia do depoimento de testemunha prestado perante
um juiz diverso e sobre outro caso ou cópia de extratos bancários conseguidos a partir da quebra de sigilo
decretada em outro processo.
88
Não significa o mesmo juiz, mas um juiz com a mesma competência daquele que vai analisar a prova
emprestada.
89
O mesmo não ocorre na situação inversa. O STF já decidiu ser lícito o uso de provas produzidas
durante o procedimento penal em procedimentos administrativos. Ementa: “PROVA EMPRESTADA.
Penal. Interceptação telefônica. Documentos. Autorização judicial e produção para fim de investigação
criminal. Suspeita de delitos cometidos por autoridades e agentes públicos. Dados obtidos em inquérito
policial. Uso em procedimento administrativo disciplinar, contra outros servidores, cujos eventuais
ilícitos administrativos teriam despontado à colheita dessa prova. Admissibilidade. Resposta afirmativa a
questão de ordem. Inteligência do art. 5º, inc. XII, da CF, e do art. 1º da Lei federal nº 9.296/96.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
160
inclusive com base no princípio da proporcionalidade, como no caso de
compartilhar com o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado provas
obtidas por meio de interceptação telefônica (Inq. 2575 QO, Pleno, Rel. Min.
Carlos Britto, j. 25.6.2008; em sentido semelhante, Inq 2424 QO/RJ, Pleno, Rel.
Min. Cezar Peluso, j. 25.4.2007).
Além disso, há a questão do bis in idem, já que, em se tratando de pessoa
jurídica, as sanções aplicáveis à condenada pelos dois ramos do Direito são
semelhantes. Conduzir dois processos dispendiosos, para ao final se chegar à
mesma sanção, não está de acordo com o princípio da economia processual e pode
gerar situações em que o Direito Administrativo, que possui menos garantias
processuais, imponha penas superiores ao Direito Penal.
Todos esses problemas estariam presentes caso se chegasse a uma
conformação em que pelo mesmo fato, a punição dos indivíduos se desse pela via
penal e a da pessoa jurídica pela via administrativa.
Por fim, é preciso notar que há um debate importante no âmbito
internacional para que as recomendações feitas pelos órgãos internacionais no
sentido de que os Estados adotem medidas de incremento da responsabilidade das
pessoas jurídicas não os vinculem especificamente à sanção penal.
Uma série de diretivas no âmbito da EU que viraram Direito comunitário
vigente (à exceção do criticado dispositivo do Corpus Iuris) falam em “medidas
necessárias para garantir que as pessoas jurídicas possam ser responsáveis”.
90
Precedentes. Voto vencido. Dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas,
judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução
processual penal, bem como documentos colhidos na mesma investigação, podem ser usados em
procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às
quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à
colheita dessas provas”. (grifo nosso) Questão de Ordem na Petição 3683, Pleno, rel. min. Cézar Peluso
90
Carlos Gómez-Jara DÍEZ analisa esse processo: “interesa destacar que dicho cambio – SC. el paso de
una propuesta de responsabilidad penal de las personas jurídicas a una responsabilidad de naturaleza
indeterminada de dichos entes – muy probablemente se haya debido a las duras críticas que recibió
dicha propuesta legislativa no pasado. Así, uno de los puntos más criticados de la redacción del Corpus
Júris fue la introducción de la responsabilidad penal empresarial, dado que ésta se mostraba
incompatible com el principio de culpabilidad” (GOMES JARA DÌEZ, 2005, p. 61).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
161
A OCDE adota também posição flexível em relação a esse ponto, ou seja,
ressalta o fato de que suas recomendações não estão vinculadas à esfera penal, mas
sim à eficiência do sistema de responsabilização, que pode ser diferente de acordo
com o ordenamento jurídico de cada país parte.
91
Tais posições conferem, portanto, ao legislador a liberdade de escolher
sobre a área do Direito e sob qual conformação isso será mais adequadamente
tratado, tornando bastante atual e relevante a discussão sobre as vantagens e
desvantagens que caracterizam a regulação por cada um dos ramos do Direito.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL
Este parágrafo sintetiza as observações esparsas feitas no trabalho92 acerca da
responsabilidade civil, de modo a facilitar a análise do potencial desse instituto para
cuidar do problema dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras
coletividades.
É importante advertir que, no estágio atual da pesquisa, não é possível avançar
para além da discussão do potencial da responsabilidade civil para cumprir esse papel,
pois a conveniência da sua aplicação, bem como o desenho do modelo de
responsabilidade civil mais adequado depende das características concretas dos ilícitos
que se pretenda regular, não sendo possível posicionar-se em abstrato sobre um modelo
geral.
91
“O artigo 2º da Convenção exige que cada parte ‘tome as medidas necessárias ao
estabelecimento das responsabilidades de pessoas jurídicas pela corrupção de funcionário público
estrangeiro, de acordo com seus princípios jurídicos’. Embora uma Parte seja capaz de adotar seu
próprio método para implantar o Artigo 2 da Convenção (i.e. de acordo com seus princípios
jurídicos), as Partes estão sujeitas a duas limitações. Primeiro, uma Parte não está obrigada a
estabelecer responsabilidade criminal para suborno estrangeiro se, de acordo com seu sistema
jurídico, a responsabilidade criminal não for ‘aplicável’ a pessoas jurídicas. Segundo, de acordo
com o Artigo 3(1) da Convenção, as pessoas jurídicas devem estar sujeitas a sanções criminais
efetivas, proporcionais e dissuasivas contra o suborno estrangeiro, e de acordo com o Artigo 3(2),
caso a responsabilidade criminal, sob o sistema jurídico da Parte, não se aplique a pessoas
jurídicas, a Parte deverá assegurar que estarão sujeitas a sanções não criminais efetivas,
proporcionais e dissuasivas, inclusive sanções financeiras” (Cf. OCDE. 2007, p. 58).
92
Além de organizar as referências esparsas feitas à responsabilidade civil neste trabalho, o presente
capítulo reproduz trechos da obra: Flavia Portella Püschel. Responsabilidade. In: José Rodrigo Rodriguez
(org.). Dicionário de Direito e Desenvolvimento, São Paulo: Saraiva, no prelo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
162
Responsabilidade civil: definição e funções
Na tradição jurídica brasileira a responsabilidade civil é entendida como o dever
de reparar um dano93.
O ato ilícito é entendido, nesse contexto, como uma fonte de obrigação, pois
constitui o fato jurídico que dá origem a uma relação jurídica obrigacional, na qual a
vítima figura como credor e o autor do ilícito como devedor, sendo a prestação o dever
de reparar o dano (entre outros: CAVALIERI FILHO, 2008, p. 3; GOMES, 2000, p.
31).
Esse modo de definir a responsabilidade civil deixa clara a importância da noção
de dano na responsabilidade civil94 e permite deduzir, a partir da própria definição de
responsabilidade, o que se considera ser a função precípua desse instituto: a reparação
dos danos sofridos pela vítima95.
Além dessa função principal, reconhecem-se à responsabilidade civil outras
funções, secundárias: a prevenção (por dissuasão) e a distribuição de riscos e danos
(PÜSCHEL, 2005, p. 92-95).
A prevenção feita pela responsabilidade civil é de um tipo peculiar: dá-se pela
dissuasão. Isso significa que se presume ser possível desestimular as pessoas a
praticarem atos ilícitos por meio da imposição (ou ameaça de imposição) de uma
sanção. A idéia é que a perspectiva ou a experiência de sofrer algo desagradável (o
dever de reparar) faça com que as pessoas prefiram não praticar os atos ilícitos. Pode-se
93
Veja-se, a título de exemplo, a definição de Cavalieri Filho, para quem, em sentido jurídico, o vocábulo
responsabilidade “designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um
outro dever jurídico” (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 2).
94
Veja-se a afirmação de J. de Aguiar Dias: “...a unanimidade dos autores convém em que não pode
haver responsabilidade sem a existência de um dano, e é verdadeiro truísmo sustentar esse princípio,
porque, resultando a responsabilidade civil em obrigação de ressarcir, logicamente não pode concretizarse onde nada há que reparar” (AGUIAR DIAS, 1994, p. 9).
95
A função de reparação da responsabilidade civil é amplamente reconhecida pela doutrina. Muitas vezes
não é sequer discutida, mas pressuposta pelos autores. Cf., entre outros: (SILVA PEREIRA, 2001, p. 10);
(DINIZ, 2002, p. 6-8); (GOMES, 2000, p. 278); (CAVALIERI FILHO, 2008, p.2). Neste ponto é preciso
notar que a responsabilidade não tem o poder de desfazer o acontecido: uma vez ocorrido um dano, não é
possível eliminá-lo. O que as regras de responsabilidade fazem é determinar quem deve arcar com o
prejuízo ocorrido, se a vítima que o sofreu ou outra pessoa. É essa a função que a tradição jurídicodogmática brasileira denomina função de reparação. A reparação está, portanto, no fato de que quando o
direito estabelece responsabilidade civil, desloca-se o prejuízo da vítima para outra pessoa, a qual deverá
reparar o prejuízo daquela, colocando-a, em princípio e na medida do possível, na situação em que estaria
caso o prejuízo não tivesse acontecido. Essa mesma função poderia ser descrita de outro modo, em termos
de alocação de riscos e danos. Nesse sentido, a função primordial da responsabilidade civil seria a
alocação de riscos e danos na sociedade, com sua atribuição à vítima ou a outra(s) pessoa(s).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
163
aqui fazer um paralelo com as teorias da pena (uma vez que o caráter preventivo
atribuído à sanção penal pressupõe igualmente uma noção de dissuasão): espera-se que
a responsabilidade civil seja capaz de produzir um efeito de “prevenção geral” e de
“prevenção especial” negativas (PÜSCHEL, 2007, p. 24).
O caráter secundário desta função da responsabilidade civil na nossa tradição
evidencia-se pelo fato de não ser controlável. Ela consiste antes em um efeito preventivo
– eventual – do que propriamente em objetivo perseguido diretamente pela
responsabilidade civil.
Isso se deve ao fato de que em nosso ordenamento, via de regra, não é possível
alterar o valor da sanção de reparação com vistas a atingir o objetivo dissuasório.
Aplica-se à responsabilidade civil o “princípio da restituição”, na expressão de Aguiar
Dias (AGUIAR DIAS, 1994, p. 736), segundo o qual o valor a ser pago pelo
responsável deve consistir no valor do dano.
Trata-se de princípio atualmente consagrado de modo expresso pelo art. 944,
caput, do CC. No entanto, mesmo na vigência do CC anterior – o qual não continha
regra equivalente –, o princípio da restituição já era considerado essencial à noção de
responsabilidade civil (PÜSCHEL, 2007, p. 18).
A exceção expressa que encontramos na legislação está no parágrafo único do
mesmo art. 944, o qual permite, no entanto, apenas a redução do valor da indenização, e
não o seu incremento. Para que o efeito dissuasório possa ser considerado propriamente
um objetivo perseguido diretamente pela responsabilidade civil, é preciso que seja
possível o aumento do valor da sanção conforme critérios diversos do simples valor do
dano. Pois, se o efeito dissuasório decorre da inflição de um mal ao autor do ilícito, é
preciso que o responsável de fato experimente o dever de reparar como um mal. Se o
responsável é especialmente rico, por exemplo, ou se a prática do ilícito lhe traz
vantagens que superam o valor do dano causado, o efeito dissuasório fica perdido, a não
ser que se admita o aumento da sanção.
Como veremos abaixo, a visão tradicional da responsabilidade civil foi
modificada com relação aos danos morais, hipótese em que grande parte da
jurisprudência admite a quantificação da sanção com base em critérios punitivos.
Responsabilidade por fato próprio e por fato de outrem
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
164
As pessoas jurídicas e as coletividades em geral agem necessariamente por meio
de indivíduos. Além disso, é possível que fatos ocorram, os quais, embora não possam
ser considerados como atos de nenhum indivíduo em particular, constituem efeito da
atividade da pessoa jurídica ou da coletividade. Sendo assim, a questão fundamental que
se apresenta é determinar em que circunstâncias o ato de um ou vários indivíduos, ou
mesmo certo acontecimento, o qual não se pode atribuir à ação de nenhum indivíduo, se
deve considerar como ação de uma pessoa jurídica ou de uma coletividade não
personalizada.
Relacionada a essa questão, há a necessidade de determinar como se deve apurar
o elemento da culpabilidade em relação aos atos das pessoas jurídicas e demais
coletividades.
Quando nos referimos à responsabilidade civil, é preciso lembrar que o direito
brasileiro não faz distinção entre a responsabilidade de pessoas físicas ou jurídicas: as
regras são as mesmas, independentemente do tipo de pessoa.
O direito civil brasileiro conhece a responsabilidade por fato de outrem. O art.
932 do CC a prevê em várias hipóteses, dentre as quais há uma que interessa
diretamente às pessoas jurídicas, embora não se aplique, como dito acima, apenas a
elas96.
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
96
É interessante notar que a responsabilidade pelo fato de terceiro prevista no art. 932, III do CC é
objetiva, isto é, independe da existência de culpa por parte do empregador ou comitente, conforme
estabelece o art. 933 do CC. José de Aguiar Dias, relaciona a própria idéia de responsabilidade civil por
fato de outrem ao caráter objetivo dessa responsabilização, ao afirmar que “no sistema de
responsabilidade civil fundado na culpa, o dano só pode acarretar obrigação de reparos para aquele que o
pratica. Cada um responde pessoalmente por seus atos” (AGUIAR DIAS 1983, 553).
Antes da aceitação pacífica da responsabilidade sem culpa no direito civil, partidários da responsabilidade
por culpa entendiam que o fundamento da chamada responsabilidade por fato de outrem era, em última
análise, uma culpa própria, a qual consistia na seleção ou na vigilância inadequadas dos subordinados
(culpa in eligendo e culpa in vigilando, respectivamente) (AGUIAR DIAS 1983, 571). Na vigência do
CC de 1916, o qual não trazia norma expressa quanto à responsabilidade sem culpa do empregador ou
comitente, esta era presumida, na forma de culpa in eligendo, conforme a súmula 341 do STF (Cf. a
respeito, CAVALIERI FILHO 2008, 38). Ainda há autores que vêem na responsabilidade por fato de
terceiro uma responsabilidade por fato próprio, neste caso, por uma omissão (CAVALIERI FILHO 2008,
25). No entanto, a exigência de que a conduta do empregado, serviçal ou preposto constitua ato ilícito e o
fato de que o empregador ou comitente pode reaver o que pagou daquele que causou o dano (CC, art.
934) parece indicar seu caráter de responsabilidade por fato de terceiro, e não por fato próprio.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
165
(...)
III – o empregador ou comitente, por seus empregados,
serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes
competir, ou em razão dele;
O fundamento dessa norma está na idéia de subordinação e de substituição. A
responsabilidade do empregador ou comitente em relação aos ilícitos praticados por
seus empregados serviçais e prepostos está em que estes realizam alguma atividade por
sua conta e sob sua direção (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 193; AGUIAR DIAS, 1983,
p. 569). A isso se relaciona a idéia de substituição, isto é, a idéia de que, ao agir, o
empregado, serviçal ou preposto atua como instrumento do patrão, substituindo-no no
exercício de funções que ele não tem como exercer pessoalmente (CAVALIERI
FILHO, 2008, p. 191; AGUIAR DIAS, 1983, p. 572).
Exige-se que o ato danoso tenha sido praticado no exercício do trabalho ou em
razão dele, mas admite-se responsabilidade do empregador ou comitente, mesmo em
casos nos quais o empregado, serviçal ou preposto tenha praticado o ilícito com abuso
ou desvio de suas atribuições, desde que o prejudicado esteja de boa-fé (CAVALIERI
FILHO, 2008, p. 194-195).
Trata-se de manifestação da teoria da aparência, segundo a qual, considera-se
como existente uma situação que na verdade não existe, desde que haja circunstâncias
externas que a tornem verossímil e que a pessoa que agiu confiando na aparência esteja
de boa fé. Seu fundamento é a necessidade social de garantir segurança às operações
jurídicas, bem como a proteção aos agentes que procedem com correção (BORGHI,
1999, 41-43). Como afirma S. Cavalieri Filho em relação à hipótese do art. 932, III do
CC, “o terceiro não tem obrigação nem condições de saber os limites das funções do
empregado, reputando-se legítimos (...) todos os atos praticados na esfera de suas
aparentes atribuições” (CAVALIERI FILHO, 1983, 195).
Para o que nos interessa neste trabalho, importa notar que a responsabilidade por
fato de outrem do art. 932, III do CC perdeu quase todo seu campo de aplicação, por ter
sido substituída por mecanismos de responsabilidade própria do empregador ou
comitente (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 192).
Assim é que o art. 37, § 6º, da CF estabeleceu a responsabilidade direta (e sem
culpa) do Estado e dos prestadores de serviços públicos pelos atos de seus agentes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
166
Nesse caso, não é necessário que o agente tenha praticado ilícito próprio (pelo qual o
Estado ou patrão responderia de modo vicário). O ilícito é próprio do Estado ou do
prestador de serviço público e se funda na idéia do risco da atividade, segundo a qual os
efeitos indesejáveis de determinada atividade se atribuem àquele que criou o risco, o
controla e dele tira proveito (CAVALIERI FILHO, 2008, p. 191; sobre o
desenvolvimento da teoria do risco e suas justificativas no direito civil, cf. PÜSCHEL,
2005, p. 95-100).
O mesmo ocorreu com relação à responsabilidade do fornecedor, estabelecida
pelo CDC. Nesse caso, a lei nem sequer menciona o empregado, serviçal ou preposto
(CDC, arts. 12, 14, 18 e 20). O critério para imposição de responsabilidade ao
fornecedor é a ocorrência de dano causado por produto ou serviço seu, viciado ou
defeituoso, colocado no mercado. Também aqui se considera que a justificativa para a
atribuição de responsabilidade ao fornecedor é a assunção de um risco ligado ao
exercício de sua atividade.
No mesmo sentido, pode-se mencionar o art. 927, parágrafo único, do CC, o
qual estabelece uma responsabilidade direta para quem exerce atividade que implique,
por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
No direito civil, a passagem da responsabilidade por fato de outrem para uma
responsabilidade própria se deu de modo vinculado ao abandono do requisito da culpa.
No entanto, não nos parece que esse fato exprima uma relação necessária. É
possível imaginar o estabelecimento de uma responsabilidade própria de alguém que
exerça certa atividade – no sentido de uma responsabilidade por atos eventualmente
praticados por outras pessoas, como empregados, comitentes, etc., mas que não
dependa da apuração de responsabilidade dessas pessoas – baseada na culpa (também
própria). É o que fazem, no campo do direito penal, as teorias que enxergam uma forma
própria de culpa dos entes coletivos em um defeito de organização. Um exercício de
imaginação pode explicitar a idéia: o CDC, em seu art. 12 prevê responsabilidade sem
culpa do fornecedor por danos resultantes de seus produtos defeituosos. Nesse caso, a
responsabilidade é própria porque não importa quem foram concretamente as pessoas
que trabalharam na linha de produção, de controle de qualidade, de embalagem, de
distribuição, etc., nem em que fase ou por obra de quem o defeito surgiu. Trata-se
simplesmente de algo que se entende estar no âmbito do exercício da atividade daquele
fornecedor. Por outro lado, a responsabilidade é objetiva, sem culpa, o que significa que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
167
ela existe ainda que o fornecedor consiga provar que seu processo de produção se deu
de forma irrepreensível. Nesse caso, portanto, temos a conjugação (recorrente na
responsabilidade civil atual) entre responsabilidade própria do fornecedor e
responsabilidade objetiva.
Podemos, no entanto, imaginar um sistema que exigisse para a responsabilização
do fornecedor, além da existência do defeito no produto colocado no mercado, que se
comprovasse que seu processo de produção está organizado de maneira inadequada.
Nesse caso imaginário, a responsabilidade continuaria sendo própria, mas exigiria uma
falha de organização do fornecedor. 97
Do ponto de vista da questão da atuação, abandonada a idéia de uma
responsabilidade vicária, permanece a questão dos critérios pelos quais se deve
considerar um acontecimento como ato de uma dada pessoa jurídica ou coletividade.
Em primeiro lugar, é interessante notar que abandonar a responsabilidade vicária
não implica necessariamente abandonar também o critério dos atos praticados por
empregados ou prepostos, uma vez que um ato pode ser considerado como praticado
pela pessoa jurídica ou coletividade quando praticado por empregado ou preposto no
exercício de trabalho que lhe competir ou em razão dele, independentemente de este ato
constituir um ilícito individual do próprio empregado ou preposto.
Pode-se incluir, ao lado desse critério, outros, não diretamente relacionados à
atuação de indivíduos, mas ligados diretamente à própria atividade da pessoa jurídica
ou coletividade, a exemplo do que faz o CDC quando estabelece responsabilidade civil
pelo defeito do produto ou serviço.
Aproximações entre responsabilidade civil e responsabilidade penal
No âmbito da responsabilidade civil, verifica-se desde algum tempo uma
transformação na sanção, que a aproxima da responsabilidade penal. Trata-se da
responsabilidade civil punitiva.
97
No campo da responsabilidade civil, a preocupação com a reparação das vítimas, entre outros fatores,
faz com que um sistema desse tipo não seja desejável. O exemplo destina-se apenas a demonstrar que a
responsabilidade própria do fornecedor não implica necessariamente a adoção de um modelo de
responsabilidade sem culpa, mas apenas um modelo de culpa voltado à própria organização da atividade.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
168
Além disso, também o direito penal tem passado por mudanças que o
aproximam da responsabilidade civil. Por um lado, discute-se a possibilidade de
aceitação da reparação como sanção penal (imposta pela prática de ilícito penal, como
resultado de condenação em processo criminal). Por outro lado, a própria compreensão
dos fins da imputação criminal e da pena tem se alterado com as teorias da função
comunicativa.
Trata-se de fenômenos que aproximam os dois tipos de responsabilidade e
podem ser interessantes para pensar o formato de uma política pública relativa aos
ilícitos praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades.
Nos casos de responsabilidade civil punitiva, o autor do ilícito civil é condenado
a pagar à vítima não simplesmente um valor correspondente ao dano causado, mas,
além disso, um valor calculado para garantir que a sanção seja sentida como um mal
pelo imputado. Com isso, procura-se atingir objetivos semelhantes a alguns dos fins
perseguidos pela pena enquanto sanção penal: retribuição, prevenção especial negativa e
prevenção geral negativa (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 29).
A responsabilidade civil punitiva é um dos temas mais polêmicos da
responsabilidade civil, e sua aceitação em nosso sistema está longe de ser pacífica entre
os doutrinadores. Apesar disso, ela é bastante difundida na jurisprudência nos casos de
responsabilidade civil por danos morais98.
De todo modo, não há impedimento a que legislação nova introduza
expressamente esse tipo de sanção punitiva como modo de regular a prática de ilícitos
no âmbito de pessoas jurídicas e coletividades e essa é, portanto, uma ferramenta que
pode ser levada em consideração.
Pode-se imaginar, inclusive a admissão expressa de responsabilidade com fim
exclusivamente punitivo, isto é, responsabilidade civil mesmo na ausência de dano, com
o objetivo exclusivo de atingir um objetivo ligado à punição do autor do ilícito
(prevenção especial negativa, prevenção geral negativa, etc.). Naturalmente, a aceitação
de responsabilidade civil punitiva propõe suas próprias questões, entre elas, o problema
do enriquecimento sem causa da vítima, uma vez que os valores pagos a título de
98
Para uma explicação mais detalhada sobre a aceitação da responsabilidade civil punitiva pela doutrina e
jurisprudência brasileiras, v. PÜSCHEL, 2007, p. 17-23.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
169
responsabilidade civil destinam-se à vítima. No entanto, trata-se de problema que se
pode solucionar, estabelecendo destino alternativo aos valores pagos a título punitivo.
Isso significa que, se a opção legislativa for pela resposta sancionatória punitiva,
é preciso lembrar que tal via pode ser tomada tanto por meio do direito penal ou do
direito administrativo, quanto do direito civil. As principais diferenças relevantes nesse
caso seriam relativas não à sanção em si, mas a outros aspectos do sistema, como
diferenças processuais, simbólicas, etc.
Com relação às modificações do direito penal, uma primeira modificação
relevante diz respeito à pena.
A pena, ou seja, a sanção no direito penal, tem como nota característica –
pelo menos tradicionalmente – o consistir na inflição de um mal ao autor do delito.
Esta característica da pena constitui um dos principais e mais assentados
critérios da distinção entre as responsabilidades penal e civil: entende-se que o
direito civil tem por objetivo a reparação do dano causado à vítima, enquanto ao
direito penal cabe buscar a punição dos culpados (PÜSCHEL e MACHADO, 2008,
p. 20).
As justificativas para a sanção penal assim entendida encontram-se nas
várias teorias da pena, as quais estabelecem vários objetivos possíveis para a lei
penal: proteger a sociedade, dar o exemplo do castigo, fazer pagar o mal pelo mal,
readaptar o culpado ou neutralizá-lo, mas que têm em comum o fato de que,
qualquer que seja o objetivo que se atribua ao direito penal e à pena, tal objetivo se
pretende atingir por meio da inflição de um mal (PÜSCHEL e MACHADO, 2008,
p. 20-21).
A idéia de pena como inflição de um mal está tão assentada na
responsabilidade penal que se afirma com freqüência que “negar que a pena tenha
caráter de mal seria o mesmo que negar o próprio conceito de pena” (JESCHECK,
1993, p. 57).
Apesar disso, nota-se que a evolução recente do direito penal tem sido no
sentido de admitir também certos tipos de sanção as quais já não se encaixam na
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
170
idéia de inflição de um mal. É o caso da aceitação da reparação como sanção
penal99.
Conforme se disse acima, a distinção entre as sanções é um dos mais
assentados critérios para distinguir a responsabilidade penal da civil – cuja sanção
característica é a reparação dos danos. Sendo assim, a aceitação da reparação como
uma resposta possível do sistema penal representa de certo modo uma revisão das
fronteiras entre o direito civil e o direito penal, com uma aproximação entre os
dois campos do direito.
No direito brasileiro temos a sanção penal de reparação em alguns diplomas
legais. É o caso do Código de Trânsito (Lei n.º 9.503/97) que prevê em seu artigo
297100 a imposição de multa reparatória em favor da vítima como modalidade de
pena a ser aplicada para crimes cometidos na direção de veículos automotores.
Além dessa, a Lei dos Crimes ambientais (Lei n.º 9.605/98) também prevê,
dentre as penas restritivas de direito, aplicáveis de maneira autônoma em
substituição à privativa de liberdade, a prestação pecuniária à vítima ou a entidade
pública ou privada com fim social, consistente em pagamento de importância
fixada pelo juiz não inferior a 1 salário mínimo nem superior a 360 (arts. 8º, IV e
12).
A mesma pena de prestação pecuniária à vítima e seus dependentes aparece
também no rol das possibilidades das penas restritivas de direito introduzidas pela
Lei nº. 9.714/98, que modificou o Capítulo das Penas do Código Penal. Com isso,
99
Além da sua aceitação como sanção penal, a reparação também tem sido introduzida no sistema penal
de outras formas, notadamente como elemento capaz de afastar a aplicação de sanções propriamente
penais. No direito brasileiro, temos exemplo disso na Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº.
9.099/95), a qual estabeleceu que, para os casos de menor potencial ofensivo, o juiz deve, sempre que
houver dano, buscar a composição civil entre o autor e a vítima (arts. 72-74). Neste caso, a adoção da
solução negociada implica renúncia de queixa ou representação e, portanto, o fim da possibilidade de
persecução e imposição de sanção penal. Outro exemplo no direito brasileiro é encontrado no campo dos
delitos tributários desde a Lei 4729/65, a qual previa a extinção de punibilidade para crimes tributários
nos casos de pagamento do débito antes do início da ação fiscal, solução que foi ampliada por leis
posteriores e pela jurisprudência (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 21-23).
100
"Art. 297. A penalidade de multa reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em
favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º do art. 49 do
Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime.. § 1º A multa reparatória não
poderá ser superior ao valor do prejuízo demonstrado no processo. § 2º Aplica-se à multa reparatória o
disposto nos arts. 50 a 52 do Código Penal.§ 3º Na indenização civil do dano, o valor da multa reparatória
será descontado".
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
171
a prestação pecuniária poderá substituir a pena de prisão, a critério do juiz (que
ponderará condições do condenado e circunstâncias dos fatos), sempre, nos crimes
culposos e nos crimes dolosos cometidos sem violência ou grave ameaça, quando a
pena fixada na sentença não superar quatro anos (CP, arts. 43, 44 e 45).
É verdade que tal movimento em curso propõe uma série de questões
dogmáticas nada simples, especialmente em relação às teorias da pena. Apesar
disso, há autores que enxergam positivamente a possibilidade de inclusão da
reparação como sanção penal, de modo compatível com algumas finalidades da
pena.
É o caso de C. Roxin. Segundo esse autor, a reparação seria compatível com
a idéia de justa retribuição e compensação da culpabilidade, já que com ela dar-seia - de maneira até mais perfeita que com a prisão - uma autêntica compensação e
anulação do ato ilícito (ROXIN, 1999, p. 09).
Além disso, de acordo com Roxin, a reparação também pode contribuir para
o fim preventivo especial da pena. A obrigação de se ocupar pessoalmente do dano
produzido e de se esforçar para uma reconciliação com a vítima, diz Roxin, pode
influir de maneira muito positiva na atitude social do autor (ROXIN, 1999, p.10).
No que tange às formas de prevenção geral, Roxin considera que a
obrigação de reparar o dano sofrido pela vítima é capaz de criar na generalidade o
sentimento de que a fratura ao Direito foi curada e que a perturbação da paz
jurídica produzida pelo delito está superada. Seria, portanto, compatível com uma
função de prevenção geral positiva.
A reparação seria insuficiente apenas em seus efeitos intimidatórios ou de
prevenção geral negativa (ROXIN, 1999, p. 11), pois, funcionando sozinha, a pena
de reparação sinaliza que o máximo que poderia acontecer ao autor seria a
restituição do status quo ante, o que não representaria nenhum risco para o autor.
Isso não aconteceria, entretanto, se ela viesse associada a outra sanção, daí a
necessidade de se discutir também as possibilidades de combinação com outras
formas de pena, sem invalidar de plano a possibilidade de a reparação funcionar
como pena.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
172
De acordo com a sua própria teoria sobre os fins da pena em um Estado
Social de Direito, que deve conciliar da melhor forma possível a prevenção geral, a
prevenção especial orientada à integração social e a limitação da pena, Roxin
chega a afirmar que a reparação no Direito penal, embora não seja a única via, é
um modelo de política criminal voltado a atingir esses fins de forma integrada
(ROXIN, 2000, p. 34-36).
Diante disso, é possível incluir a sanção de reparação – como sanção penal
– na discussão sobre a regulação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas e
outras coletividades.
O potencial da responsabilidade civil para a proteção de interesses públicos
Uma crítica que se faz à regulação por meio da responsabilidade civil refere-se à
privatização da questão regulada. Como o direito e o processo civil estão voltados à
proteção de interesses privados, ficaria a cargo da vítima, titular de um direito violado,
decidir se quer ou não mover a ação, fazer um acordo, renunciar ao direito, etc. Além
disso, a possibilidade de sanção na responsabilidade civil se limita ao pagamento em
dinheiro, o que seria excessivamente limitado.
Mesmo deixando em aberto a questão sobre se a responsabilidade civil poderia
ou não ser um recurso interessante para a regulação dos ilícitos praticados no âmbito de
coletividades, seja de modo isolado ou combinado com outros instrumentos, é preciso
dizer que as críticas acima não procedem.
A afirmação relativa à privatização da questão parte de uma noção tradicional,
segundo a qual, ao direito civil cabe a proteção de interesses privados, ficando a
proteção de interesses públicos a cargo do direito penal. Trata-se de um clássico critério
com o qual se traça a distinção entre os campos civil e penal (PÜSCHEL e
MACHADO, 2008, p. 29). Nas palavras de Basileu Garcia: “o Direito penal, como se
vê pela sua evolução histórica, surgiu tutelando interesses particulares, não há dúvida,
mas elevou-se à defesa e conservação da sociedade. Resguardando os homens, que
formam a comunidade, as leis penais protegem precipuamente a segurança e a
tranqüilidade coletivas. É em função desses dois conceitos – interesse individual e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
173
interesse público – que se trata a distinção entre o ilícito civil e o ilícito penal”
(GARCIA, 1982, v.1, p. 18).
No entanto, essa descrição já não corresponde perfeitamente ao direito brasileiro
e certamente não constitui uma distinção ontológica entre os ilícitos civil e penal. No
que se refere ao direito brasileiro atual, embora seja verdade que por meio da
responsabilidade civil se busca primordialmente a reparação de um prejuízo e que isso
normalmente constitui um interesse privado da vítima, a admissão em nosso direito da
responsabilidade civil por danos a interesses difusos demonstra que o direito civil pode
também proteger diretamente interesse público (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 3032).
Os direitos difusos são direitos transindividuais, cujos titulares são pessoas que
não se podem determinar. Além disso, os direitos difusos são indivisíveis, o que
significa que não podem ser quantificados ou divididos entre os membros da
coletividade interessada. Direitos difusos como o direito ao meio ambiente (CF, art.
225, § 3º) não podem ser considerados interesses privados. O ato do qual resulta a
poluição de um rio ou a destruição de uma floresta prejudica não apenas as pessoas
diretamente atingidas em sua saúde ou em seus bens, mas a todos e até mesmo as
gerações futuras (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32).
O direito brasileiro prevê a responsabilidade civil pela lesão a interesses difusos,
por meio de ação civil pública (Lei nº. 7.347/1985), com possibilidade de condenação
do responsável a cumprir obrigação de fazer ou não fazer ou a reparar o prejuízo em
dinheiro. Trata-se, portanto, de exemplo em que a responsabilidade civil protege
diretamente um interesse social e não um interesse privado (PÜSCHEL e MACHADO,
2008, p. 32).
Por outro lado, na responsabilidade civil punitiva - conforme se viu acima -,
perseguem-se as mesmas finalidades normalmente atribuídas ao Direito penal. Sendo
assim, é possível dizer que, também nesses casos, os interesses protegidos pelo Direito
civil são os mesmos que o Direito penal normalmente protege, isto é, diretamente
interesses públicos (PÜSCHEL e MACHADO, 2008, p. 32).
No que se refere à limitação de sanções, note-se que a Lei de Ação Civil Pública
(Lei nº. 7.347/1985) admite não apenas a condenação a pagar certa quantia em dinheiro,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
174
mas também a uma obrigação de fazer ou não fazer (PÜSCHEL e MACHADO, 2008,
p. 32).
Fica claro, portanto, que existem várias possibilidades de sanção dos ilícitos
praticados no âmbito de pessoas jurídicas e outras coletividades. Em primeiro lugar,
coloca-se a possibilidade de optar entre sanções punitivas ou não punitivas. Além disso,
há a possibilidade – tanto no caso da opção pela sanção punitiva quanto pela sanção
reparatória – de optar entre as vias penal, administrativa e civil para a realização da
imputação de responsabilidade e sanção.
Considerações sobre o processo civil
A imputação de responsabilidade civil é feita pelo Poder Judiciário, por
meio do processo civil. Tendo em vista que questões processuais são relevantes na
determinação do potencial de cada tipo de responsabilidade para regular adequadamente
o fenômeno de que tratamos, é importante observar algumas características do processo
civil que podem influir sobre a adequação da responsabilidade civil como instrumento
de política pública para lidar com a questão dos ilícitos praticados no âmbito de pessoas
jurídicas e outras coletividades, em comparação com as responsabilidades penal e
administrativa, sujeitas a regras processuais diversas.
Aspectos especialmente sensíveis são a legitimidade ativa para
propositura da ação de responsabilidade civil, a destinação de valores pagos a título de
punição (se houver), os instrumentos cautelares do processo civil e aqueles para
obtenção de provas. As duas primeiras questões já foram apontadas acima, de modo que
resta fazer algumas considerações sobre medidas cautelares e mecanismos de obtenção
de provas.
Selecionamos mecanismos de produção de provas que, parece-nos,
tendem a ser mais relevantes no caso da imputação de responsabilidade a pessoas
jurídicas e outras organizações.
a) Interceptação das comunicações telefônicas e as escutas ambientais
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
175
Conforme Alexandre de Moraes (MORAES, 2008, p. 59-61), está claro no
preceito constitucional constante no art. 5º, inc. XII da CF que a interceptação das
comunicações telefônicas deve ser feita para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal. Nesse sentido, não é possível a autorização judicial para decretar a
interceptação telefônica no âmbito do processo civil.
Todavia, a limitação constitucional não alcança a possibilidade de sua utilização
no processo civil como prova emprestada, ou seja, a menos que seja verificado desvio
de finalidade, simulação ou conduta fraudulenta, nada obsta que algo trazido aos autos
via interceptação telefônica em investigação criminal ou instrução processual penal
sirva de prova em demandas ou procedimentos de outras áreas.
A respeito de escutas ambientais, a Lei nº. 9.034/95 prevê que tal tipo de
produção de prova está somente atrelado aos ilícitos decorrentes de ações praticadas por
quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo. Ainda
que assim não fosse, analogamente à interceptação telefônica, à luz do já mencionado
art. 5º inc XII da CF, só é possível vislumbrar as provas obtidas por escutas ambientais
como prova emprestada em procedimentos que não o da investigação criminal ou
instrução processual penal.
b) Quebra de sigilo bancário
O sigilo bancário, bem como o sigilo fiscal, é consagrado como direito
individual constitucionalmente protegido. Somente poderão ser excepcionados por
decisões judiciais ou em Comissões Parlamentares de Inquérito (MORAES, 2008,
p. 71-74).
A despeito de outras características específicas sobre este tema, vale
ressaltar que o sigilo bancário pode ser devassado tanto pela Justiça Penal como
Civil, além das Comissões Parlamentares de Inquérito e pelo Ministério Público
(MORAES, 2008, p. 71-74).
Está expressamente previsto no art. 1º, §4º da Lei Complementar nº. 105/01
que a quebra do sigilo bancário pode ser feita para apuração de ocorrência de
qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, sem
prejuízo da previsão especial para alguns tipos de crimes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
176
c) Requisição de informações e documentos aos investigados sob pena de multa
Os artigos 355 a 363 do Código de Processo Civil tratam da “Exibição de
documento ou coisa”. A exibição de coisa ou documento certamente pode ser
caracterizada como uma técnica de se obter um meio de prova (documento ou
coisa). Caso a exigência não seja cumprida, o juiz deverá avaliar qual o significado
e a relevância desta não-produção e, também, em que medida o ônus de provar foi
afetado, ou seja, a não-produção não vincula algo ao que se está sendo apurado,
apenas pode ter o cunho de modificar a convicção do intérprete a respeito do
julgamento da causa (BUENO, 2009, p. 268-271)
Nem a doutrina, nem a Jurisprudência vislumbram a hipótese de imposição
de multa no caso de não apresentação da coisa ou documento, por entender que há
uma incompatibilidade com a sanção e o procedimento da exibição de documento
ou coisa. Tal entendimento foi consolidado com a edição da Súmula 372 do STJ:
“Na ação de exibição de documentos não cabe à
aplicação de multa cominatória.”
É importante notar, no entanto, que na hipótese da requisição ser feita em
face da parte contrária e esta não cumprir a exigência (quando o pedido de
exibição de documento ou coisa é deferido), são previstas consequências como a
busca e apreensão com utilização de força policial se preciso, sem prejuízo da
imputação de responsabilidade por crime de desobediência (CPC, art. 839 a 843).
d) Inspeção de livros contábeis e documentos
A inspeção judicial está prevista no Código de Processo Civil entre o art. 440 e
443.
Tal meio de prova pode ser provocado pela ou determinado de ofício pelo Juiz.
A inspeção judicial pode recair sobre coisas ou pessoas.
Assim sendo, pode-se inferir que os livros e documentos contábeis, se for
preciso, podem ser objeto de inspeção judicial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
177
À luz do princípio da identidade física do juiz, é necessário que o juiz que tenha
realizado a inspeção judicial seja aquele a proferir a decisão judicial, salvo se tiver
ocorrido algumas da hipóteses do art. 132 do Código de Processo Civil ( convocação,
promoção, aposentadoria etc.).
Quanto às medidas cautelares, os procedimentos cautelares específicos em
matéria processual civil estão regulados no Livro III, Cap. II, do Código de
Processo Civil. Apesar da previsão destes procedimentos (ou medidas) específicos,
qualquer pessoa, nos ditames do rito processual cautelar, pode pleitear referida
tutela, que por sua vez será concedida se forem reconhecidos os pressupostos
legais: fumus bonis iuris e periculum in mora.
Ademais, a regulação processual civil a respeito da concessão deste tipo de
tutela jurisdicional sofreu alterações dentro da chamada “Reforma do Código de
Processo Civil”. A Lei nº. 8.952/94 introduziu no ordenamento a chamada tutela
antecipada, ampliando as hipóteses em que podem ser proferidas tutelas
preventivas e de urgência.
Para Cássio Scarpinella Bueno (BUENO, 2009, p. 21-24), a tutela
antecipada e a cautelar são espécies do mesmo gênero. Ambas são previstas para
que a tutela jurisdicional chegue ao jurisdicionado em tempo hábil reforçando o
preceito constitucional resguardado no art. 5º, inc. XXXV, da Constituição
Federal:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Posto isso, vale dizer que, após a Lei nº. 8.952/94, o diploma processual
civil passou a possuir um poder geral de antecipação (art. 273) e um poder geral de
cautelaridade (art. 796).
O que deve ficar claro é que, em matéria processual civil, é possível
conceder tutelas preventivas ou de urgência tanto em processos cautelares (tutela
cautelar), como em processos ordinários ou até em procedimentos especiais (tutela
antecipada), diferentemente de tempos passados, quando dependendo do rito
escolhido para pleitear a tutela jurisdicional, a prevenção ou a urgência podiam ou
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
178
não ser asseguradas.
Podemos concluir, portanto, que atualmente o Judiciário é muito mais
flexível no que toca à concessão de tutelas de urgência ou preventivas, haja vista
elas poderem ser concedidas em qualquer tipo de demanda.
Finalmente, para efeitos comparativos entre as espécies de responsabilidade,
indica-se que não há acordos de leniência na esfera processual civil. Algo semelhante a
tais acordos, mas com muito mais limitações, é o Termo (ou Compromisso) de
Ajustamento de Conduta “TAC”. Tais instrumentos têm qualidade de título executivo
extrajudicial, e já são celebrados há mais de uma década, principalmente no âmbito do
Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor, ou seja,
nas relações de consumo, e no que toca os interesses difusos ou coletivos.
Quanto aos direitos difusos e coletivos, vale dizer que as ações que buscam a
tutela desses direitos possuem representação extraordinária, não podendo o autor, a
princípio, dispor sobre o conteúdo material da lide. Todavia, tal indisponibilidade
começou a ser mitigada já na década de 1980, quando se firmou o entendimento de que
excepcionalmente a disponibilidade de certo direito pode vir a melhorar à ultimação do
interesse coletivo ou difuso.
Nesse sentido, os TACs foram criados para dar a oportunidade a causadores de
dano assumir certas obrigações, buscando uma situação que melhor atendesse os
interesses difusos ou coletivos.
Posto isso, vale ressaltar que nem todos legitimados ativos à ação civil pública
ou coletiva podem tomar o TAC, pois somente podem celebrar tais termos os órgãos
públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva.
Há controvérsia doutrinária acerca de quais seriam, exatamente, os órgãos
públicos legitimados à ação civil pública ou coletiva. É certo que a controvérsia não
recai sobre o Ministério Público, a União, os Estados e Municípios, o Distrito Federal e
os órgãos públicos, pois estes certamente são legitimados a tomar os TACs.
Analogamente não há controvérsia quanto a impossibilidade do TAC ser tomado por
Associação Civil, Sindicato e Fundação Privada. De modo que o problema está na
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
179
possibilidade ou não das fundações públicas, autarquias, empresas públicas e sociedades
de economia mista celebrarem tal compromisso.
No que toca sua natureza jurídica, o TAC é “um título executivo extrajudicial,
por meio do qual um órgão legitimado toma do causador do dano o compromisso de
adequar sua conduta às exigências da lei” (MAZZILLI, 2006, p. 366).
Suas principais características podem ser assim definidas: (i) é celebrado por
alguns dos órgãos públicos legitimados à ação pública; (ii) não constam do documento
concessões de direito feitas pelo órgão público legitimado, mas sim uma assunção, por
parte do causador do dano, de obrigações de fazer e/ou não fazer; (iii) não há
necessidade nem de testemunhas, nem de advogados; (iv) é título executivo
extrajudicial; (v) não há necessidade de ser acolhido ou homologado em juízo.
Conclusões:
Em primeiro lugar, é importante notar que não é necessário instituir regra
especial para existência de responsabilidade civil por ilícitos praticados por pessoas
jurídicas.
As normas gerais de responsabilidade civil aplicam-se a quaisquer ilícitos
civis e a quaisquer pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas.
A necessidade de regulação especial existe na medida em que se queira
estabelecer regime jurídico diferenciado da regulação geral do direito brasileiro,
especificamente os regimes dos arts. 186 e 927 (responsabilidade por ato ilícito próprio)
CC e do art. 932, III, do CC (responsabilidade do empregador por ato ilícito praticado
por empregado ou preposto).
Pode haver interesse na criação de regulação especial por várias razões.
Em primeiro lugar, para o estabelecimento de responsabilidade objetiva, uma vez que a
responsabilidade prevista pelo art. 186 do CC é subjetiva.
Em segundo lugar, para o estabelecimento de responsabilidade própria da pessoa
jurídica ou coletividade uma vez que a responsabilidade por fato de outrem do art. 932,
III do CC – embora seja objetiva para o empregador – depende da imputação de
responsabilidade subjetiva ao empregado ou preposto.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
180
Esta última característica da responsabilidade por fato de outrem pode
representar um obstáculo especialmente importante à sanção de ilícitos praticados no
âmbito de organizações complexas, pois, justamente a complexidade dessas
coletividades tende a dificultar a identificação dos agentes e condutas individuais.
Por outro lado, a noção de preposição é bastante ampla para abarcar não
apenas as pessoas vinculadas por relação de emprego propriamente dita, mas quaisquer
relações em que haja subordinação. Além disso, em nossa tradição reconhece-se a
possibilidade de responsabilização até mesmo por quem não seja realmente empregado
ou preposto, com base na teoria da aparência.
Em terceiro lugar, o estabelecimento de regulação especial é necessário
caso se queira permitir a responsabilização de entes não personificados.
Além disso, a regulação especial é necessária, caso se queira atribuir à
responsabilidade civil uma função punitiva, pois seria preciso permitir o cálculo da
sanção com base em critérios voltados à dissuasão – a exemplo do que já acontece com
a jurisprudência sobre o cálculo de danos morais. Regulação especial seria
especialmente necessária para o estabelecimento de responsabilidade punitiva em
relação a danos materiais e em casos de violação de direitos sem produção de danos de
nenhum tipo.
Como já dito, uma solução desse tipo contrariaria a tradição brasileira de
compreensão do instituto da responsabilidade civil e de suas funções, mas não nos
parece haver impossibilidade de adoção dessa solução do ponto de vista constitucional
ou legal.
A opção pela adoção de um sistema de responsabilidade civil punitiva
levantaria, no entanto, certas questões importantes.
A primeira diz respeito à sua cumulação com a responsabilização penal
e/ou administrativa, uma vez que a atribuição de uma função punitiva central à
responsabilidade civil faz com que seus objetivos passem a ser semelhantes aos das
outras formas de responsabilização.
Entendemos que, em princípio, havendo responsabilidade penal e/ou
administrativa para certo ilícito, a criação de responsabilidade civil punitiva seria
supérflua e exagerada, pois resultaria em dupla ou tripla sanção punitiva pelo mesmo
ato.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
181
Além disso, é preciso notar, uma vez que a responsabilidade civil seja
punitiva, torna-se problemática a sua previsão na forma objetiva, já que a punição tem
por escopo reprimir condutas reprováveis. A reprovabilidade da conduta está ligada à
culpa por parte de quem a pratica, ao passo em que o estabelecimento de
responsabilidade objetiva está ligado à tradição da responsabilidade civil como
instrumento de reparação e distribuição de danos, focado no prejuízo da vítima e não na
conduta do autor do ilícito.
Por outro lado, não haveria obstáculos à criação de uma noção de culpa
específica para os entes coletivos, isto é, que não dependa de se estabelecer a culpa de
algum indivíduo.
Além disso, para evitar a objeção do enriquecimento sem causa da
vítima, no caso da previsão de responsabilidade civil punitiva seria conveniente prever
uma destinação diferenciada para a parcela paga pelo responsável a título de punição.
Uma possível solução seria criar um fundo, a exemplo da Lei de Ação Civil Pública.
Por fim, tendo em vista que os objetivos perseguidos pelas sanções
punitivas são essencialmente públicos e não se relacionam diretamente com os prejuízos
sofridos pela vítima do ilícito, seria conveniente prever alterações processuais,
especialmente para permitir legitimidade ativa mais ampla para a sua propositura, a
exemplo da Lei de Ação Civil Pública.
A grande vantagem do estabelecimento de responsabilidade civil em
relação à responsabilidade penal nos parece ser a possibilidade de evitar todos os
problemas decorrentes da aplicação da estrutura penal – pensada para o indivíduo – a
pessoas jurídicas e outras coletividades. Do ponto de vista da responsabilidade civil, a
responsabilização de pessoas jurídicas e mesmo de coletividades não personificadas não
representa problema. Além disso, evita-se a expansão da criminalização de condutas.
A desvantagem principal em relação ao direito penal consiste na perda do
caráter simbólico que tem a condenação criminal. No entanto, é possível pensar que
certos modelos mistos, como a conjugação de responsabilidade civil punitiva para
pessoas jurídicas e outras coletividades, com a manutenção de responsabilidade criminal
para os indivíduos minimize tal perda.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
182
Além disso, do ponto de vista processual, o direito penal admite a
interceptação de comunicações telefônicas e escutas ambientais, o que não é possível no
processo civil.
Com relação à responsabilidade por infração administrativa, a principal
diferença diz respeito ao fato de que a responsabilidade civil é imputada por meio de
processo judicial, ao passo que a responsabilidade administrativa se imputa por meio de
processo administrativo.
Sendo assim, a previsão da reparação101 como sanção administrativa - conforme
apontado no item 5.1 - apresenta os riscos decorrentes da possibilidade de revisão
judicial das decisões administrativas, bem como a limitação decorrente do fato de não
eliminar a necessidade de execução judicial.
Tais aspectos são especialmente relevantes se considerarmos que no atual
cenário teórico há duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos
atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato
administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV da CF, e aqueles que
buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do
Judiciário às decisões administrativas, de modo que não há clareza acerca dos critérios
para controle judicial dos atos administrativos. Lembre-se, ademais, que, no que tange
ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande judicialização das
sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita reflexões sobre o
esvaziamento da autoridade da Administração Pública.
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101
Tratando-se da função punitiva, a sanção pecuniária na esfera administrativa já não seria uma sanção
de reparação, mas a multa, propriamente.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
183
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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
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ANEXO 3 - O DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
1. O MODELO BRASILEIRO
SANCIONADOR
DE
DIREITO
ADMINISTRATIVO
Tradicionalmente, o Direito Administrativo brasileiro tem analisado o tema da
responsabilização administrativa no item correspondente poder de polícia, então
compreendido como um desdobramento do exercício do controle das atividades
econômicas e sociais pela Administração Pública. Por grande influência dos trabalhos
de administrativistas italianos e espanhóis, o cenário muda a partir da década de 1990,
momento em que o estudo do Direito Administrativo Sancionador passa a ser
compreendido de forma autônoma ao poder de polícia e ganha espaço nos debates
acadêmicos brasileiros com algumas das principais publicações sobre implicações do
poder sancionador ou do próprio Direito Administrativo Sancionador.102
Apesar da valorização teórica que o Direito Administrativo Sancionador
recentemente recebeu, mostra-se imprescindível a análise do atual estágio de disciplina
jurídica, organização e funcionamento do poder sancionador pela Administração
Pública. Essa necessidade surge especialmente da nova configuração que o Estado
brasileiro revestiu-se após a Reforma Gerencial do Estado – que possui como marco
institucional a Emenda Constitucional 19/98 –, assim como de um interesse
fundamentalmente pragmático de evidenciar a realidade da atuação sancionatória
estatal.
Trata-se, portanto, do reconhecimento do modelo brasileiro de Direito
Administrativo Sancionador por meio da identificação das normas constitucionais,
legais e infra-legais que conformam o sistema de responsabilização administrativa pelo
estabelecimento dos procedimentos sancionatórios e previsão dos entes da
Administração Pública envolvidos no manejo do poder sancionador. O objetivo deste
item é reconstruir o modelo de responsabilização administrativa a partir do panorama
normativo e de elementos recolhidos no Direito Administrativo Sancionador, sem
prejuízo dos esclarecimentos teóricos que se fizerem necessários no decorrer da
exposição.
102
Cf. OSÓRIO (2006); FERREIRA (2001); MOREIRA (2004); VITTA (2003); MELLO (2007).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
188
2. AUTONOMIA DA PRERROGATIVA SANCIONADORA E JUS
PIUNIENDI ESTATAL
Um pressuposto comum às doutrinas de Direito Administrativo consiste na
assertiva de que o Direito Administrativo, ramo do Direito notadamente exorbitante à
esfera privada, é composto por normas derrogatórias do Direito Comum – o regime
jurídico-administrativo. Segundo essa linha de entendimento, a principal particularidade
do regime jurídico-administrativo reside na existência de privilégios administrativos
exorbitantes à esfera privada conferidos à Administração Pública, que terminam por
colocá-la em posição de superioridade em relação ao administrado, e, em contrapartida,
de sujeições à Administração para tutela dos direitos dos administrados103.
Compreendidas como uma decorrência do poder de autoridade estatal, as prerrogativas
públicas se apresentam nos mais diferentes campos de atuação administrativa, razão
pela qual os exemplos são vastos: auto-executoriedade dos atos administrativos,
prerrogativa expropriatória, poder de polícia, poder disciplinar e a prerrogativa
sancionadora.
Exorbitância e instrumentalidade são os traços caracterizadores das prerrogativas
públicas no Direito Administrativo. Uma vez que a Administração Pública detém
monopolisticamente tais privilégios em detrimento do administrado, com o qual termina
por estabelecer relação de sujeição especial verticalizada, as prerrogativas públicas são
compreendidas como exorbitantes à esfera particular. Ainda, são consideradas
instrumentais porquanto servem para alcançar um determinado fim, sendo essa
instrumentalidade o fator de legitimação das mesmas. Depreende-se considerável
esforço legitimador das prerrogativas públicas pelos administrativistas brasileiros por
meio da identificação de suas funcionalidades, que, resumidamente, podem ser
indicadas em três assertivas: (i) as prerrogativas públicas existem para tutela do
interesse público; (ii) as prerrogativas públicas existem para afirmar o princípio da
103
A caracterização do regime jurídico-administrativo em prerrogativas e sujeições enseja da
“bipolaridade do Direito Administrativo” entre autoridade do Estado e liberdade dos indivíduos apontada
por DI PIETRO: “[d]aí a bipolaridade do Direito Administrativo: liberdade do indivíduo e autoridade da
Administração; restrições e prerrogativas. (...) Isto significa que a Administração Pública possui
prerrogativas ou privilégios, desconhecidos na esfera do direito privado, tais como a autoexecutoriedade, a autotutela, o poder de expropriar, o de requisitar bens e serviços, o de ocupar
temporariamente o imóvel alheio, o de instituir servidão, o de aplicar sanções administrativas, o de
alterar e rescindir unilateralmente os contratos, o de impor medidas de polícia. Goza, ainda, de
determinados privilégios como a imunidade tributária, prazos dilatados em juízo, juízo privativo, processo
especial de execução, presunção de veracidade de seus atos”. (DI PIETRO, 2009. p. 61) (grifos nossos).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
189
supremacia do interesse público sobre o interesse privado e (iii) as prerrogativas
públicas existem para melhor consecução da finalidade pública.
A prerrogativa pública por excelência é a prerrogativa imperativa, a prerrogativa
genérica originada da soberania estatal (imperium) que se apresentaria em qualquer
atividade administrativa compreendida como o poder de a Administração Pública impor
de forma unilateral a sua decisão sobre o administrado.
104
Dessa forma, fica evidente a
autoridade do Estado manifestada no exercício das competências administrativas que dá
ensejo à clássica dicotomia autoridade – liberdade do Direito Administrativo: na mesma
medida que o regime administrativo confere prerrogativas públicas à Administração
Pública, também a sujeita a diversos deveres e responsabilidades, especialmente fortes
no que tange ao controle da atuação administrativa.
É nesse cenário teórico que se insere a prerrogativa sancionatória. Na qualidade
de prerrogativa pública, o poder sancionador também se mostra exorbitante e
instrumental, sendo concebido como a faculdade de a Administração Pública aplicar
imperativamente sanções administrativas.105 Quando exercida pela autoridade
administrativa, a prerrogativa sancionadora estabelece uma relação verticalizada entre
Administração-sancionadora e administrado-sancionado, formalizando-se na figura da
sanção administrativa. Seu fundamento é a própria prerrogativa imperativa, a qual, por
decorrer diretamente da soberania estatal, detém como uma de suas finalidades a
fundamentação dos demais poderes administrativos imbuídos de materialidade.
Conforme
se
verifica,
trata-se
de
uma
perspectiva
eminentemente
administrativista de caracterização da prerrogativa sancionadora, bastante diferente
daquela que encontra no jus puniendi estatal o fundamento único de aplicação de
sanções administrativas e de imposição de penas. A tese favorável ao jus puniendi do
Estado, hoje prevalecente na doutrina, considera que a prerrogativa sancionadora
constitui ao lado do poder penal punitivo exercido pelo Judiciário o poder geral do
Estado de reprimir condutas contrárias ao ordenamento jurídico, qualquer que seja a
esfera de responsabilização. Como conseqüência, o jus puniendi estatal determinaria um
regime jurídico comum para disciplinar a responsabilização penal e administrativa,
104
“La potestad imperativa, o de mando, es la facultad que tiene la Administración de dar órdenes y de
obligar a su cumplimiento. Esta facultad es la expressión más directa del principio de autoridad en el
ejercicio del Poder Ejecutivo”. (MARIENHOFF, 1965, p. 575).
105
Cf. VERA, 2003. p. 245.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
190
servindo como efetivo meio de transplante de princípios e regras do Direito Penal para o
Direito Administrativo.
Para Alejandro NIETO, a tese do jus puniendi estatal surge da necessidade
prática de viabilização da atividade sancionadora do Estado: faltava-lhe o ferramental
necessário para disciplina da prerrogativa sancionadora, o qual fora, então, fornecido
pelo Direito Penal. A tese do poder punitivo geral do Estado serviria de ponte entre
Direito Penal e Direito Administrativo, fundamentando a passagem dos institutos
daquele sistema para o regime jurídico-administrativo. Porém, passado o estágio inicial
de afirmação da autonomia do Direito Administrativo e de formação de seu regime
jurídico-administrativo, ainda assim o conhecimento do jus puniendi estatal continuou
forte nos sistemas administrativos, sendo elevado à “categoria de dogma
inquestionável”. 106
A ausência de disciplina normativa própria do exercício da prerrogativa
sancionadora, i.e., de suas infrações e sanções administrativas e do seu processo
sancionador, também se manifestou no Direito Administrativo brasileiro107. Até a
edição das leis de processo administrativo no final de década de 1990, o Direito
Administrativo não contava com normas de regramento geral do processo
administrativo, quanto mais do tipo sancionador, ressalvadas as legislações especiais.
Esse cenário viabilizou o emprego de mecanismos de Direito Penal para disciplina da
atuação administrativa sancionatória, corroborado pelo fato de o período préredemocratização ensejar o recurso a mecanismos de garantia de direitos individuais
frente à Administração Pública ditatorial.
No entanto, é de se verificar hoje a alteração do panorama histórico-político que
determinou a recepção da tese do jus puniendi estatal.
Primeiramente, sucessivas alterações do regime jurídico-administrativo com a
constitucionalização de garantias dos indivíduos oponíveis à Administração Pública – a
exemplo dos princípios da legalidade, do contraditório, da ampla defesa e do devido
106
“El enorme éxito de tal postura – elevada ya a la categoría de dogma incuestionable – se debe en
parte a razones ideológicas, ya que así se atempera el rechazo que suelen producir las actuaciones
sancionadoras de la Administración, de corte autoritario, y, en parte, a razone técnicas, en cuanto que
gracias a este entronque con el Derecho público estatal se proporciona al Derecho Administrativo
Sancionador un soporte conceptual y operativo que antes carecia” (1993, p. 20).
107
Para uma descrição do cenário de ausência de normas específicas para reger a atuação administrativa
sancionatória, cf. SUNDFELD, 1987, p.102-103.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
191
processo legal – e com a edição das leis de processo administrativo, as quais também
prevêem direitos substantivos e adjetivos aos administrados, conformam um Direito
Administrativo garantista. Em outros termos, não há mais a necessidade de transplante
de garantias da esfera penal para o Direito Administrativo, que possui seus específicos
mecanismos de defesa dos direitos dos particulares oponíveis à Administração Pública.
Nesse sentido, o vasto sistema de controle interno e externo da Administração Pública
corrobora à verificação do regime jurídico-administrativo como suficientemente
garantista.
De fato, é o reconhecimento da autonomia do Direito Administrativo
(Sancionador) e, por conseqüência, de seu peculiar regime jurídico que demonstra ser
descabida a tese do jus puniendi estatal no atual panorama administrativista. Não é o
poder punitivo estatal o fundamento da competência sancionatória detida pela
Administração Pública, mas é a prerrogativa sancionatória que confere à autoridade
estatal a faculdade de aplicar sanções administrativas. A prerrogativa administrativa
sancionadora deve ser trabalhada de forma autônoma não apenas em razão de seu
fundamento jurídico próprio, correspondente à prerrogativa imperativa, mas
principalmente porque seu exercício está lastreado em um regime jurídico peculiar, com
regras e princípios específicos. Dessa forma, a prerrogativa sancionadora deve ser
contemplada à luz da Constituição Federal e das normas, legais e infra-legais, que
disciplinam esta potestade pública. 108
A tese do jus puniendi estatal é, portanto, refratária à autonomia do Direito
Administrativo e reducionista da potestade sancionadora exercida pela Administração
Pública e de toda a recente construção garantista do regime administrativo. Nas palavras
de Alejandro NIETO:
En definitiva, contra viento y marea hay que afirmar que el Derecho
Administrativo Sancionador es, como su mismo nombre indica, Derecho
Administrativo engarzado directamente en el Derecho Público estatal y no
un Derecho Penal vergonzante; de la misma manera que la potestad
administrativa sancionadora es una potestad aneja a toda potestad atribuida
a la Administración para gestión de los intereses públicos. 109
108
Um exemplo marcante da diferença entre garantias penais e administrativas corresponde ao dever de
veracidade. Ao contrário do processamento penal, a Lei nº. 9.784/99 determina ser um dos deveres do
administrado no processo administrativo “expor os fatos conforme a verdade” (art. 4º, inc. I).
109
Idem, ibidem, p. 21.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
192
3. DISCIPLINA DO EXERCÍCIO DO PODER SANCIONADOR
Na teoria do Direito Administrativo, o princípio da legalidade assume um papel
de destaque ao ser amplamente concebido como a diretriz estruturante do sistema
jurídico-administrativo (MELLO, 2008, p. 99).
Dentre os mais tradicionais debates teóricos no Direito Administrativo, a
legalidade se apresenta como um dos conceitos de permanente reflexão e estudo. Um
primeiro fator que explica a importância da legalidade na agenda teórica do Direito
Administrativo é meramente prático: discute-se a noção de legalidade na medida em que
a atuação administrativa delimita-se e conforma-se pelas normas jurídicas que a
disciplinam. Porém, a alteração do cenário institucional que a Administração Pública se
insere e as renovadas interpretações acerca do papel do Direito na conformação do agir
administrativo, em especial quanto ao grau de vinculação da atividade administrativa ao
ordenamento jurídico, demandam constantes revisitações sobre o conteúdo da
legalidade.
Para compreender a atual disciplina do exercício da prerrogativa sancionatória
pela Administração Pública, faz-se necessário expor duas recentes tendências que
impactam a tradicional noção de legalidade, quais sejam, o crescimento da esfera
regulamentar como fonte de disciplina da ação administrativa e a especialização da
disciplina jurídica em subsistemas. No âmbito do Direito Administrativo Sancionador,
ambos os aspectos mostram-se de extrema relevância, pois, como se indicará mais
adiante, cada vez mais são os regulamentos as verdadeiras normas de disciplina do
exercício da prerrogativa sancionatória pela Administração Pública, disciplina essa
variável conforme a área em que está compreendida.
A partir da segunda metade do século XIX, passou-se a entender a legalidade
como o dever de a Administração Pública atuar em estrita observância à lei formal,
editada pelo Parlamento, de forma que à Administração estaria autorizado fazer apenas
aquilo que a lei expressamente autorizasse (secundum lege), ao contrário da esfera
privada, cuja autonomia da vontade conferiria às pessoas liberdade para fazer tudo
aquilo que a lei não proibisse.
Felice GIUFFRÈ aponta que o Estado Legislativo, fundado no postulado de que
a lei oriunda do Parlamento se coloca como fonte do Direito Administrativo por
excelência, entra em declínio com a configuração do Estado Democrático-Pluralista,
caracterizado pela pluralidade de fontes normativas (GIUFFRÈ , 1999, 179). Como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
193
decorrência do aumento das competências administrativas, houve o engrandecimento da
burocracia estatal e, em igual medida, das atividades administrativas a ela cometidas.
Embora tal transformação da Administração Pública acompanhe o modelo de Estado
Social, em que são cometidos ao Estado deveres de prestação positiva, a opção estatista
do legislador em preferir a prestação estatal direta dos serviços públicos afeta
significativamente a conformação da Administração Pública e, por conseqüência, o
Direito Administrativo (GIUFFRÈ , 1999, 202).
O aumento das atividades estatais voltadas à prestação de utilidades públicas aos
administrados colocou um dilema à legalidade: a Administração Pública deve agir em
conformidade à lei formal, mas esta passa a não mais conseguir disciplinar todas as
situações fáticas e minúcias da atuação administrativa. As limitações da lei emanada do
Parlamento ficam ainda mais evidentes com o incremento das atividades técnicas que a
Administração Pública tem por dever legal desempenhar.
O colapso da legalidade formal atrela-se diretamente à denominada crise da lei
formal. Sistematicamente, Gustavo BINENBOJM apresenta cinco fatores que
propiciaram a crise da lei formal: (i) inflação legislativa, (ii) “dessacralização da lei”
como elemento de legitimação, (iii) declínio da concepção de lei como a mais
importante forma de manifestação da vontade geral, (iv) proliferação de atos normativos
infraconstitucionais hábeis a fundamentar a ação administrativa e (v) prevalência do
Poder Executivo sobre o Poder Legislativo (BINENBOJM, 2006, 125).
Dessa forma, o atual Direito Administrativo se defronta com pluralidade de
fontes normativas, muitas delas decorrentes da própria atividade administrativa do
Poder Público, como é o caso dos regulamentos. No exposto cenário de crise da lei
formal e exigências de prontas respostas técnicas e promocionais da Administração
Pública, constata-se a valorização do poder regulamentar. A disciplina normativa da
competência sancionatória do Estado também é expressa no bloco de legalidade, i.e., o
conjunto de preceitos normativos ao qual a Administração Pública se vincula pelo dever
de legalidade formado, no caso da atividade administrativa sancionadora, por
Constituição Federal, leis que disciplinam especificamente a atividade administrativa
sancionadora, a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/99) no âmbito da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
194
União ou a lei estadual de processo administrativo, caso o ente federado a possua, atos
normativos infra-legais e contratos administrativos110.
Disciplina normativa da competência sancionatória estatal (federal)
3.1
Disciplina constitucional do poder sancionador
Os principais preceitos constitucionais de regramento da prerrogativa
sancionatória
do
Estado
correspondem
àqueles
relativos
ao
processamento
administrativo, com previsão nos artigos 5º e 37, caput, da Constituição. O art. 5º, inc.
XXXIV, alínea a, por exemplo, garante o direito de petição aos administrados face à
Administração para garantia de seus direitos111.
Todavia, são os princípios do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, inc.
LV) os preceitos constitucionais correspondentes ao processo administrativo mais
debatidos no Direito Administrativo brasileiro, com aplicação imediata ao processo
110
A Resolução Normativa 63/04 da ANEEL assim dispõe sobre o regime de responsabilização
administrativa em sua esfera de competência, em compasso ao conceito de bloco de legalidade: “art. 1º,
parágrafo único: as penalidades previstas nesta Resolução aplicam-se sem prejuízo das sanções
administrativas específicas previstas na legislação e regulamentação setorial vigentes, incluindo normas
editadas ou homologadas pela ANEEL, desde que não impliquem mais de uma sanção disciplinar para
um mesmo fato gerador”. Nesse sentido, também o art. 65 da Resolução 987/08 da ANTAQ: “as
infrações às Leis n. 8.630, de 1993, 9.432, de 1997, e 10.233, de 2001, a outros dispositivos legais, às
normas regulamentares emitidas pela ANTAQ e o descumprimento dos deveres estabelecidos nos
contratos de concessão, atos de autorização e instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil,
sujeitarão o responsável às penalidades previstas nesta Norma, aplicáveis pela ANTAQ, observado o
devido processo legal, sem prejuízo de natureza civil ou penal”.
111
In verbis: “São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de
poder”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
195
administrativo sancionador.
112
Outro preceito constitucional de relevante destaque nas
discussões de Direito Administrativo corresponde ao princípio do devido processo legal
(art. 5º, inc. LIV)113.114
Além dessas, o art. 5º em comento possui outras regras de processamento
relevantes ao exercício da prerrogativa sancionatória. Seu inciso LVI veda a admissão
de provas ilícitas para instrução de processo administrativo; na medida em que o termo
“processo” é expressamente empregado pelo dispositivo para indicar serem
“inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, entende-se que o
preceito alcança também o processo administrativo, ao lado do processo judicial.
No que tange ao exercício dos poderes fiscalizatórios, que geralmente precedem
o processo administrativo sancionador, duas garantias constitucionais incidem no
exercício da prerrogativa sancionatória, quais sejam, a inviolabilidade domiciliar (CF,
art. 5º, inc. XI) e o direito ao sigilo (CF, art. 5º, inc. XII). Necessário ressaltar que a
mesma construção jurisprudencial que se estabeleceu em torno da reserva de jurisdição
no Supremo Tribunal Federal nos casos envolvendo os poderes de investigação das
Comissões Parlamentares de Inquérito aplica-se à atividade de fiscalização das
autoridades administrativas. Dessa forma, a autoridade administrativa não pode adentrar
em residência domiciliar ou profissional para fiscalizar por deliberação própria.
115
Ainda, é vedada a interceptação de comunicação telefônica ou telemática no
desenvolvimento da atividade administrativa de fiscalização sem a correspondente
decisão judicial, pois o ato encontra-se amparado no conceito de reserva de jurisdição.
116
Em recente manifestação acerca dos limites ao exercício do poder de
fiscalização pelo Banco Central, com intenso debate entre os Ministros, a maioria do
STF entendeu pela impossibilidade de haver quebra do sigilo bancário dos correntistas
112
In verbis: “Aos litigantes , em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
113
In verbis: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
114
Cf. MOREIRA (2007).
115
Cf. MS 23.452-1/RJ. Rel. Min. Celso de Mello. 16.09.1999.
116
Cf. MS 23.652-3/DF. Rel. Min. Celso de Mello. 16.09.1999.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
196
pela atuação fiscalizatória do BACEN, o que afrontaria o direito ao sigilo previsto no
art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal. 117
O princípio da eficiência, constitucionalizado no caput do art. 37 pela Emenda
Constitucional nº. 19/98, determinou a valorização dos efeitos da atuação administrativa
e, nessa medida, instituiu à Administração Pública o dever de adotar a solução ótima ao
caso concreto. Embora o critério para mensuração desta “decisão ótima” seja objeto de
intenso debate nos artigos acadêmicos que versam sobre a eficiência administrativa, há
forte tendência de considerar a decisão administrativa eficiente quando os meios
empregados para satisfação da competência sejam os menos onerosos (critério utlitarista
de análise de custo-benefício). 118
Porém, o fator tempo cada vez mais é apontado como uma variável da
eficiência, uma vez que rápidas respostas institucionais caracterizam decisões eficientes,
consideradas outras variáveis como efetividade e custos. Projetado no âmbito do
processo administrativo sancionador, o dever de celeridade processual do art. 5º, inc.
LXXVIII, inserido pela Emenda Constitucional nº. 45/04, determina a duração razoável
do processo sancionador, com sua rápida resolução119. Além da simplificação dos
trâmites processuais, na medida do indispensável à garantia dos direitos dos
administrados, o preceito constitucional pode servir de estímulo à adoção de
instrumentos consensuais substitutivos de sanção administrativa.
Por fim, o art. 5º, XXXV, fundamenta a revisão judicial dos atos
administrativos. Compreendido como “uma seqüência predeterminada de atos, entre si
relacionados por vínculos lógicos, em que o exaurimento da etapa anterior é pressuposto
de instauração da etapa posterior e cujo resultado final deve guardar compatibilidade
lógica com os atos antecedentes” (JUSTEN FILHO, 2009, p. 236), cada ato do processo
administrativo pode ser impugnado judicialmente pela parte ou por terceiro prejudicado.
Todavia, é o ato final do processo administrativo o objeto de maior judicialização.
Como se verá mais adiante (cf. item 4.4.), o processo administrativo sancionador é, via
de regra, finalizado por meio (i) de sanção administrativa, quando verificada a
responsabilidade administrativa da pessoa física ou jurídica que tenha praticado alguma
117
RE 461.366-2/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. 03.08.2007.
118
Para a descrição dos debates colocados em torno do princípio da eficiência, cf. ÁVILA, 2009.
119
In verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
197
infração administrativa, (ii) de ato administrativo que exclua a responsabilização
administrativa ou (iii) de acordo administrativo entre Administração e administrado,
quando se verifica a terminação consensual do processo sancionador. Os três meios
terminativos do processo podem, conforme o princípio da inafastabilidade do Poder
Judiciário, ser judicializados e invalidados pelo Judiciário.
Além
dos
mencionados
preceitos
constitucionais
que
disciplinam
o
processamento para a responsabilização administrativa, a Constituição Federal possui
ainda outras normas que estabelecem competências fiscalizatória e sancionatória,
normas de delegação de competência e normas que prevêem algumas sanções
constitucionais.
No que tange às normas constitucionais que estabelecem competências de
fiscalização e sanção, mencione-se o art. 21, VI, que atribui à União o dever de
fiscalizar a produção e a comercialização de material bélico por ela autorizado120, a
competência de o Sistema Único de Saúde de fiscalizar procedimentos, produtos e
substâncias de interesse para a saúde (CF, art. 200, I) e alimentos (CF, art. 200, VI) e a
competência atribuída à autoridade ambiental para aplicar sanções administrativas
independentemente da obrigação de reparar danos (CF, art. 225, §3º). O art. 174, porém,
merece particular destaque por indicar a fiscalização como uma das formas de o Estado
proceder a regulação da atividade econômica, nos seguintes termos:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica,
o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para
o setor privado.
Em algumas passagens a Constituição determina obrigação ao legislador de
disciplina as funções de fiscalização e sanção, o que denota o regime especial
determinado constitucionalmente em certas matérias, como as empresas estatais121, as
120
Nesse sentido, o art. 21, inc. XI, confere competência à União para fiscalizar as concessões de direitos
de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios.
121
“Art. 173. 1. A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista
e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de
prestação de serviços, dispondo sobre:
I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade (incluído pela Emenda
Constitucional n 19, de 1998);”
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
198
empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos122 e os serviços de
saúde.
123
Em comum, o exercício da atividade fiscalizatória nestas áreas deve, por
imposição constitucional, ter uma disciplina jurídica peculiar às demais em atenção às
respectivas particularidades, disciplina jurídica essa definida nas leis específicas que a
Constituição incumbiu o legislador ordinário de editar. A Lei nº. 8.987/95 disciplina o
exercício das atividades de fiscalização e sancionamento das empresas concessionárias e
permissionárias de serviço público. Apesar de intensos debates e a edição de pontuais
estatutos jurídicos legais, como é o caso da Petrobrás, não foi ainda editada lei para
estabelecer o estatuto jurídico das empresas estatais e suas subsidiárias.
Ademais, a Constituição Federal determina algumas sanções administrativas (as
denominadas sanções constitucionais), quais sejam: no art. 243, caput, a expropriação
da propriedade privada em razão do cultivo ilegal de plantas psicotrópicas124, e, nos
artigos 103-B, §4º, III, e 130-A, a remoção, disponibilidade ou aposentadoria com
subsídios e proventos proporcionais ao tempo e serviço dos membros do Poder
Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça e dos membros do Ministério Público da
União e dos Estados pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
Conforme se verifica, a Constituição Federal apresenta relevantes preceitos de
aplicabilidade imediata ao sistema de responsabilização administrativa, notadamente a
respeito dos mecanismos de defesa do administrado frente ao exercício dos poderes
administrativos pela autoridade estatal, que devem ser necessariamente considerados
para a elaboração de lei que discipline a responsabilização da pessoa jurídica.
122
“Art. 175. Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de
seu contrato e sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da
concessão ou permissão;”
123
“Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor,
nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita
diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
Art. 198. “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual,
distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional 29, de 2000)”.
124
In verbis: “As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas
psicotrópicas serão mediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos,
para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e
sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
199
3.2
Disciplina legal do poder sancionador
Existem atualmente dois modelos de disciplina do poder sancionador. Um
primeiro modelo corresponde à disciplina geral do exercício do poder sancionador em
lei, vigente no Estado de São Paulo com a Lei nº. 10.177/98, a lei paulista de processo
administrativo. Após dispor sobre os aspectos gerais do processo administrativo, como
os princípios aplicáveis ao procedimento, o regime de formação e invalidação dos atos
administrativos e o processamento propriamente dito, a Lei nº. 10.177/98 trata dos
procedimentos em espécie, dentre eles, o procedimento sancionatório.
A proposta de inserir o procedimento sancionatório em uma lei de natureza
geral, vinculante a toda a Administração Pública paulista, funda-se na necessidade de
padronizar em um processamento uniforme os diversos tipos de processos
sancionatórios que cada ente da Administração possuía. Carlos Ari SUNDFELD,
redator da lei paulista de processo administrativo, esclarece a finalidade uniformizadora
da Lei nº. 10.177/98:
“(...) buscou-se obter uniformidade de comportamento no interior da
máquina estatal, em nome da necessidade de sujeição do Estado a preceitos
fundamentais da ordem jurídico-administrativa, sobretudo aos princípios e
regras constitucionais. (...) Antes, inexistindo uma disciplina universal
imposta em lei, cada órgão ou ente adotava, em relação a cada um desses
itens, posturas ou soluções diferentes, algumas vezes aplicando regras
administrativas próprias, em outras agindo por hábito ou costume, em tantas
mais segundo os critérios variáveis dos dirigentes. A Lei objetivou
justamente eliminar essa disparidade de atitude em face e problemas
semelhantes, a crença de que isso é danoso para o efetivo respeito, seja dos
limites dos poderes de autoridades, seja dos direitos das pessoas a eles
sujeitos” (SUNDFELD & MUÑOZ, 2006, p. 25).
Segundo o modelo estabelecido pela Lei nº. 10.177/98, o processo sancionador
se volta à apuração de infração administrativa. Ele é instaurado pela autoridade
competente ante a verificação de ocorrência de infração administrativa com o ato de
instauração, o qual deve indicar os fatos e as normas correspondentes à infração
averiguada e à possível sanção aplicável (normas de responsabilização administrativa).
O acusado possui quinze dias após a citação ou intimação para apresentar sua defesa e
relacionar as provas que pretende produzir, Concluída a instrução, será intimado a
apresentar no prazo de sete dias suas alegações finais. É obrigatório o parecer da
consultoria jurídica previamente à decisão final, que deverá ser motivada e proferida
dentro de, no máximo, vinte dias. O processo administrativo sancionador paulista é
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
200
sigiloso – ressalvado em relação ao acusado, seu procurador e terceiro que demonstre
legítimo interesse –, cabendo a adoção pela Administração de medidas cautelares
indispensáveis à eficácia do ato final.
O procedimento da Lei nº. 10.177/98 deve ser seguido pelos entes da
Administração Pública que não possuírem leis formais específicas para disciplinar seu
processo sancionador. Caso o ente conte com lei que o discipline, o procedimento terá,
então, aplicação subsidiária no que não lhe for conflitante.
Um segundo modelo é verificado no âmbito federal, em que, ao contrário do
caso paulista, a lei federal de processo administrativo (Lei nº. 9.784/98) não dispõe
especificamente sobre o processo sancionador. Há diversas leis que tratam de alguns
aspectos da responsabilização administrativa (i) por matéria – como o processo
sancionador nas contratações comuns (Lei nº. 8.666/93) ou nas concessões comuns (Lei
nº. 8.987/95) e nas concessões patrocinadas ou administrativas (Lei nº. 11.079/04) – ou
(ii) por ente da Administração federal – como a Lei nº. 8.884/94, que cria o CADE e
dispõe sobre o processo sancionador antitruste, e a Lei nº. 9.472/97, a Lei Geral de
Telecomunicações (LGT) que cria a Agência Nacional de Telecomunicações
(ANATEL) e apresenta diretrizes gerais para a responsabilização administrativa por esta
Agência. A lei federal de processo administrativo, nestes casos, tem aplicação
subsidiária.
Sem a pretensão de exaurir as previsões legais relativas ao processo
administrativo sancionador, a tabela abaixo indica as principais leis federais que versam
sobre algum elemento do tema:
LEI
DISPOSIÇÃO
AD MINISTRAÇÃO
DISCIPLINA SANCIONATÓRIA
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê infrações;
• Define os critérios de sopesamento das sanções;
8.884/94
PAS antitruste
CADE
• Comina sanções;
• Dispõe sobre o procedimento sancionador;
• Prevê acordos administrativos;
• Prevê a forma de execução das sanções.
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê infrações;
Lei
8.112/90
Processo disciplinar
Administração federal
• Define os critérios de sopesamento das sanções;
• Comina sanções;
• Dispõe sobre o procedimento sancionador.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
201
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê infrações;
Lei
4.942/03
PAS previdência
complementar
Lei
8.666/93
Licitações e contratos
administrativos
Administração federal
Lei
8.987/95
Concessão comum
Administração federal
Lei
11.079/04
PPP
Administração federal
Lei
9.427/96
Lei de criação da ANEEL
ANEEL
Lei
9.472/97
Lei de criação da ANATEL
INSS
• Comina sanções;
• Dispõe sobre o procedimento sancionador.
• Prevê infrações;
• Comina sanções.
• Prevê infrações;
• Comina sanções.
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê a forma de execução das sanções.
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê infrações;
• Comina sanções.
• Atribui competências sancionatórias;
ANATEL
• Prevê infrações;
• Define os critérios de sopesamento das sanções;
• Comina sanções.
• Atribui competências sancionatórias;
• Prevê infrações;
Lei
9.605/98
PAS ambiental
Administração federal
• Define os critérios de sopesamento das sanções;
• Comina sanções;
• Dispõe sobre o procedimento sancionador;
• Prevê acordos administrativos.
Conforme se depreende da breve listagem das leis que versam sobre o processo
sancionador, as leis variam significativamente quanto ao grau de tratamento do processo
sancionador. A Lei nº. 8.884/94, por exemplo, possui uma disciplina muito mais extensa
da responsabilização administrativa que a proposta pela Lei de PPPs, voltada à
disciplina contratual da responsabilização administrativa. No entanto, é de se notar que,
no geral, essas leis passam por três itens comuns: (i) previsão da competência para
decisão do processo sancionador, (ii) definição de algumas infrações administrativas e
(iii) previsão das sanções administrativas aplicáveis pela autoridade competente.
Para clarificar o exposto, toma-se o exemplo da ANATEL. A competência para
aplicação de sanções administrativas está prevista no art. 19, incs. XI e XVIII, da LGT,
de seguinte redação:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
202
Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o
atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das
telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade,
legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:
(...)
XI – expedir e extinguir autorização para prestação de serviço no regime
privado, fiscalizando e aplicando sanções;
(...)
XVIII – reprimir infrações dos direitos dos usuários.
De forma genérica, o art. 137, LGT determina a infração administrativa nas
telecomunicações por descumprimento de obrigações, com a seguinte redação: “o
descumprimento de condições ou de compromissos assumidos, associados à
autorização, sujeitará a prestadora às sanções de multa, suspensão temporária ou
caducidade”.
Por fim, as sanções administrativas estão estabelecidas no art. 173, LGT. Sem
exclusão das sanções civis e das penas da esfera penal, a ANATEL poderá aplicar
sanções de advertência, multa, suspensão temporária, caducidade ou declaração de
inidoneidade caso seja apurada a infração administrativa à LGT, às normas
regulamentares ou às cláusulas contratuais após regular tramitação do processo
administrativo sancionador, garantido o contraditório e a ampla defesa.
Apesar de a lei federal de processo administrativo conferir certa unidade de
tratamento da atividade administrativa na Administração Pública federal, necessário
ressaltar a difusão de regimes jurídicos sobre a responsabilização administrativa, o que
se acentua na esfera regulamentar. De fato, é uma característica marcante do Direito
Administrativo brasileiro a pluralidade de regimes jurídicos para aplicação de sanções
administrativas, mesmo no plano estadual paulista, cuja lei de processo administrativo
reserva uma parte para disciplina do processo sancionador. Esse ponto será melhor
trabalhado no item a seguir, em que será estudada a seara regulamentar e seus aspectos
correlatos, como a reserva de lei no Direito Administrativo Sancionador e a
especialidade cada vez maior dos subsistemas administrativos.
3.3
Disciplina regulamentar e contratual do processo sancionador
Diz-se disciplina regulamentar do processo sancionador o conjunto de atos
normativos (regulamentos) editados pela Administração Pública no exercício de sua
competência normativa para estabelecer diretrizes jurídicas da forma de desempenho da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
203
prerrogativa sancionadora pela autoridade administrativa. Dentro dos limites de sua
competência normativa, a Administração Pública edita atos de caráter geral e abstrato
nos quais dispõe sobre o procedimento sancionatório, especifica a aplicação de sanções
e institui infrações administrativas.
De fato, o poder sancionador é efetivamente disciplinado na seara regulamentar.
A especialidade material evidenciada na Administração Pública – cujos órgãos e entes
administrativos se especializam no controle de determinadas matérias – determina um
regramento mais técnico e próximo às especificidades do objeto regulado.
Paralelamente à exposta crise da lei formal, a especialidade própria da esfera
regulamentar enseja a criação pela Administração Pública de atos normativos voltados
ao regramento pormenorizado e técnico do procedimento sancionador.
A atual dinâmica normativa no Direito Administrativo Sancionador é, então,
composta por leis formais que estabelecem standards (parâmetros gerais) para a
regulamentação pela Administração Pública do exercício da prerrogativa sancionatória.
Tais standards correspondem, em linhas gerais, à definição da competência para
tramitação do processo sancionador e decisão, à previsão das infrações administrativas
que o legislador ordinário reputar relevantes e ao estabelecimento das sanções
administrativas que a Administração poderá aplicar caso constatada a responsabilização
administrativa ao término do processo125. Dessa forma, as leis standartizadas são
integradas à categoria de leis-quadros, marcadamente abertas e que delegam à
Administração Pública, expressa ou implicitamente, o dever de precisar o conteúdo
normativo de seus termos. O item anterior demonstrou este cenário por meio de
exemplos legais.
Toda a disciplina dos demais aspectos fica, então, a cargo da Administração
Pública para que assim proceda por meio de atos normativos que formalmente podem se
apresentar na figura de (i) regulamentos para aplicação de sanções administrativas, (ii)
processos administrativos sancionadores ou (iii) atos normativos esparsos. Embora
recebam nomenclatura diversa, esses atos possuem o escopo comum de definir o trâmite
125
ARAGÃO chama a atenção para a atual tendência de as leis formais terem baixa densidade normativa
em prestígio à seara regulamentar: “[a]s leis atributivas de poder normativo às entidades reguladoras
independentes possuem baixa densidade normativa, a fim de propiciar o desenvolvimento de
ordenamentos setoriais aptos a, com autonomia e agilidade, regular a complexa e dinâmica realidade
social subjacente. Ademais, recomenda-se que propiciem à Administração a possibilidade de, na medida
do possível, atuar consensualmente, com alguma margem de negociação, junto aos agentes econômicos e
sociais implicados” (2003, p. 13).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
204
do processo sancionador com todas as correspondentes minúcias, como a delimitação
das fases processuais, dos prazos e recursos cabíveis.
Diante da valorização do processo administrativo como arena de participação
administrativa por meio de audiências e consultas públicas e, principalmente, como
meio racional de formação da decisão administrativa, o foco de atenção dos publicistas
desloca-se do ato administrativo final para todo o processo administrativo, de forma que
administrar passa a ser compreendido como realizar processos. Uma vez que os
processos sancionadores passam a ser cada vez mais conformados por atos normativos,
verifica-se a valorização da seara regulamentar na disciplina do exercício da
prerrogativa sancionatória pela Administração Pública, razão que permite afirmar com
confortável segurança que a disciplina da prerrogativa sancionadora se procede
efetivamente na esfera infra-legal.
Ademais, a regulamentação do exercício da prerrogativa sancionatória pela
autoridade administrativa também adquire outras funcionalidades ao sistema, dentre as
quais se destacam (i) a definição dos critérios de sopesamento da sanção administrativa
a ser aplicada no caso concreto, (ii) o estabelecimento de outras infrações
administrativas mais consentâneas às especificidades do subsistema administrativo
(ambiental, energético, antitruste etc.) e (iii) a previsão de acordos integrativos ou
substitutivos de sanções administrativas, como o termo de compromisso ou o termo de
ajustamento de conduta.
A disciplina regulamentar do poder sancionador ganhou grande impulso com a
criação das Agências Reguladoras, cujas leis lhes conferem expressamente poder
normativo para regular o desenvolvimento de atividades econômicas pelos particulares.
É de se notar que a valorização da seara regulamentar, evidenciada com a proliferação
de atos normativos e a alteração da estrutura da lei formal para o modelo de standards
legais, ocorre exatamente no momento de afirmação das Agências Reguladoras no
Brasil na segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. Sem se restringir
ao cenário regulatório126, é de se evidenciar que a prática da regulamentação é
notadamente forte no âmbito das Agências Reguladoras.
126
Matérias como meio ambiente, antitruste e mercado de capitais são intensamente reguladas por atos
normativos.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
205
A questão dos limites ao exercício do poder normativo pela Administração
Pública127 se reveste de contornos peculiares no Direito Administrativo Sancionador e
suscita duas relevantes ordens de questionamento: (i) ato normativo pode estabelecer
infrações administrativas ou elas devem necessariamente ser previstas em lei oriunda do
Parlamento? (ii) há reserva de lei para estipulação de sanções administrativas?
Novamente, a doutrina divide-se conforme a compreensão de legalidade que se adote.
De acordo com uma primeira linha interpretativa, mais tradicional no Direito
Administrativo brasileiro, apenas a lei formal pode determinar infrações e estabelecer
sanções administrativas nos casos em que não sejam estabelecidos vínculos de sujeição
especial do administrado frente à Administração Pública128. Como pressuposto, essa
linha de entendimento concebe a legalidade administrativa como a vinculação da
Administração Pública à lei formal, o que limita imediatamente o alcance do poder
normativo.
Todavia, uma segunda vertente entende que as infrações administrativas podem
ser estabelecidas na seara regulamentar ao passo que a previsão das sanções
administrativas está compreendida no conceito de reserva legal, embora o ato normativo
possa especificar a aplicação das sanções definidas em lei pela previsão de critérios de
sopesamento ou pela determinação de agravantes e atenuantes, por exemplo. Esse é o
posicionamento adotado por Marcelo Madureira PRATES, para quem
(...) ao contrário da reserva legal rígida vigente no domínio penal, a
exigir que a lei defina, ela mesma e por completo, a descrição das condutas
ilícitas e a sanção aplicável a cada uma delas, no direito administrativo
sancionador, maxime quando esteja em causa o exercício de poder
sancionador no plano das relações administrativas especiais, tende-se a
interpretar de maneira mais flexível a regra da reserva legal, admitindo-se
que a lei em sentido formal apenas inicie a regulação substantiva da matéria,
por meio da fixação (1) das condutas puníveis, ainda que de modo aberto e
genérico, permitindo posteriores preenchimentos (“normas sancionadoras em
branco”); e (2) das espécies e dos limites das sanções aplicáveis. Portanto, a
descrição definitiva e pormenorizada das infrações administrativas e a
fixação específica das sanções administrativas relativamente a cada ilícito
127
Para reconhecimento das principais facetas do questionamento sobre os limites ao exercício do poder
regulamentar, cf. ARAGÃO (2006).
128
“(...) tanto infrações administrativas como suas correspondentes sanções têm que ser instituídas em lei
– não em regulamento, instrução, portaria e quejandos. Ressalvem-se, entretanto, as hipóteses retro
referidas, atinentes à chamada ‘supremacia especial’, em que a Administração extrai seus poderes não
diretamente da lei, mas de um vínculo específico travado com o particular – como, por exemplo, de uma
concessão de telecomunicações ou do ato de admissão de alguém a uma biblioteca pública”. (MELLO,
2009, p. 838).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
206
poderiam ser legitimamente remetidas para o poder regulamentar (2005, p.
107).
A afirmação dos atos normativos como relevante fonte do Direito
Administrativo contribui para a relativização do princípio da reserva de legal típica do
Direito Penal, que mesmo nesse ramo do Direito encontra questionamentos e
experiências práticas de flexibilização. A especialização de órgãos e entes
administrativos incumbidos por ordenar uma parcela específica da sociedade determina
a proximidade da Administração com o administrado e, conseqüentemente, com a
dinâmica própria ao setor analisado, de forma que as normas infra-legais relativas à
responsabilização administrativa podem se mostrar mais adequadas e eficazes que
aquelas estabelecidas em lei formal, de caráter aberto e pouco pormenorizado. Algumas
das infrações estipuladas na Resolução Normativa nº. 63/04 da ANEEL bem
exemplificam o exposto:
Infrações administrativas na Resolução Normativa 63/04 – ANEEL
Art. 3º. Constitui infração, sujeita à imposição de penalidade de advertência:
VI – deixar de proceder à organização e atualização de cadastro por unidade consumidora, com informações que permitam a
identificação do consumidor, sua localização, valores faturados, histórico de consumo, bem como quaisquer outros dados
exigidos por lei ou pelos regulamentos dos serviços delegados;
(...)
XII – operar e manter as suas instalações elétricas sem dispor de desenhos, plantas, especificações e/ou manuais de
equipamentos devidamente atualizados;
Art. 4º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo I:
(...)
VII – deixar de apresentar, nos prazos previstos e segundo as diretrizes da ANEEL, os Programas Anuais de Incremento à
Eficiência no Uso e na Oferta de Energia Elétrica, bem como os relativos à Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Setor
Elétrico;
Art. 5º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo II:
X – deixar de instalar medidores de energia elétrica e demais equipamentos de medição nas unidades consumidoras, salvo nos
casos específicos excepcionados na regulamentação aplicável;
(...)
XII – operar centrais geradoras ou instalações da rede básica sem a instalação de medidores de energia elétrica e demais
equipamentos de medição exigidos;
Art. 6º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo III:
(...)
XV – provocar o desligamento ou permitir a sua prorrogação no sistema elétrico em decorrência de falha de planejamento ou
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
207
de execução da manutenção ou operação de suas instalações.
Art. 7º. Constitui infração, sujeita à imposição da penalidade de multa do Grupo IV:
(...)
V – discriminar unidades consumidoras da mesma classificação, atendidas em igual tensão de fornecimento, quanto à cobrança
de qualquer natureza ou quando da comercialização de energia elétrica excedente, temporária ou de curto prazo, excetuando-se
os consumidores livres;
É a possibilidade de uma disciplina minuciosa e consentânea às peculiaridades
do setor regulado que estabelece a preferência dos atos normativos na determinação das
infrações administrativas e na especificação da forma de aplicação das sanções
administrativas. Nesse sentido, os contratos administrativos nos quais os vínculos de
sujeição especial são formalizados também podem determinar infrações administrativas
de aplicação restrita ao contratado por atos relacionados ao desenvolvimento do objeto
contratual, bem como o critério de aplicação das correspondentes sanções. De fato, em
um cenário de crescente desenvolvimento de funções públicas por particulares – as
parcerias público-privadas em sentido amplo –, é notável o aumento de preceitos legais
dispositivos das cláusulas obrigatórias dos contratos administrativos e, dentre eles, as
cláusulas de disciplina da responsabilização administrativa129.
As cláusulas contratuais que delimitam o regime de responsabilização
administrativa
129
de
uma
determinada
pessoa
jurídica
devem
ser,
portanto,
Lei nº. 8.666/93: “Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
VII – os direitos e as responsabilidades das partes, as penalidades cabíveis e os valores das multas;
VIII – os casos de rescisão;”
Lei nº. 8.987/95: “Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas:
VII – à forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do
serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la;
VIII – às penalidades contratuais e administrativas que se sujeita a concessionária e sua forma de
aplicação;
IX – aos casos de extinção da concessão;”
Lei nº. 11.079/04: Art. 5º. As cláusulas dos contratos de parceria público-privada atenderão ao disposto
no art. 23 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, no que couber, devendo também prever:
II – as penalidades aplicáveis à Administração Pública e ao parceiro privado em caso de inadimplemento
contratual, fixadas sempre de forma proporcional à gravidade da falta cometida, e às obrigações
assumidas.
X – a realização de vistoria dos bens reversíveis, podendo o parceiro público reter os pagamentos ao
parceiro privado, no valor necessário para reparar as irregularidades eventualmente detectadas”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
208
obrigatoriamente consideradas para fins de determinação do bloco de legalidade que irá
ditar a específica forma de exercício da potestade sancionadora pela Administração
Pública. Como exemplo representativo da disciplina contratual da responsabilização
administrativa, transcreve-se abaixo as cláusulas contratuais desta natureza recolhidas
do contrato de concessão comum da rodovia BR-116/RJ celebrado entre o DNER e a
Concessionária Rio-Teresópolis S/A:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
209
4. A RESPONSABILIZAÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Exposta a disciplina normativa do exercício da prerrogativa sancionadora pelo
Poder Público, com a explicitação dos principais debates teóricos a respeito do exercício
do poder normativo no Direito Administrativo Sancionador e as principais característica
que decorrem da adoção do modelo de Agências com a Reforma do Estado, passa-se ao
estudo detido do processo administrativo sancionador. Este item volta-se à descrição
dos principais aspectos procedimentais relacionados à apuração da irregularidade
administrativa e sua correspondente resposta pela Administração Pública.
Saliente-se,
novamente,
que
existem
outros
diversos
regimes
de
responsabilização administrativa conforme o ente da Administração Pública incumbido
de manejar os poderes de fiscalização e sanção e, também, o seu correspondente regime
jurídico ditado pelas leis-quadros, decretos, atos normativos e eventuais contratos de
concessão, permissão ou atos de outorga. Ademais, a tramitação processual também
será diferente de acordo com o sujeito passivo do processo administrativo e a natureza
do vínculo que estabeleça com a Administração Pública, o qual poderá ditar exercício
mais ou menos incisivo dos poderes administrativos.
No entanto, deve-se reconhecer que a lei geral de processo administrativo
determina uma disciplina mínima comum a toda a Administração Pública federal, além
de os regulamentos de Direito Administrativo Sancionador disporem de semelhante
forma sobre diversos aspectos do processo sancionatório. Por esses motivos, é adequada
a descrição do atual estágio de disciplina do processo administrativo sancionador a
partir da Lei nº. 9.784/99 – que terá importância primeira no desenvolvimento desse
panorama processual – e dos pontos comuns de tratamento jurídico encontrados nas
diversas espécies normativas que dispõem sobre o tema.
4.1
Fiscalização e sanção: seus processos administrativos
Um esclarecimento prévio à análise do procedimento de responsabilização
administrativa se faz necessário para fins de harmonização dos conceitos técnicos
adotados neste item. Da análise dos modelos de responsabilização administrativa
constata-se a verdadeira imprecisão normativa sobre a funcionalidade do processo de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
210
fiscalização e do processo sancionador. Como conseqüência desse impasse, há
significativas disparidades processuais sobre a responsabilização administrativa: afinal,
fiscalização e sancionamento ensejam procedimentos específicos?
A Resolução nº. 987/2008 da ANTAQ, que disciplina a responsabilização
administrativa no âmbito desta Agência Reguladora, aparta o “procedimento de
fiscalização” do “processo administrativo para apuração de infrações e aplicação de
penalidades”. Compreendido como um dos procedimentos preliminares, o processo de
fiscalização na ANTAQ se destina a verificar o cumprimento das obrigações
determinadas ao administrado nas leis, nos atos normativos e nos instrumentos de
outorga (contratos de concessão ou permissão ou atos de autorização) mediante
exercício do poder de fiscalização. Sua conclusão é formalizada no relatório de
fiscalização que enseja três ordens de prosseguimento: (i) celebração de termo de ajuste
de conduta, (ii) lavratura de auto de infração se “estiver plenamente constatada a
autoria e a materialidade da irregularidade” ou (iii) instauração de “processo
administrativo contencioso”, i.e., de processo sancionador. O processo sancionador não
se resume pela Resolução 987/2008 da ANTAQ a aplicar a sanção administrativa; pelo
contrário, é neste processo que haverá a apuração das infrações investigadas no
processo fiscalizatório e, caso seja constatada a infração administrativa, o regulador
procederá aos critérios de sopesamento para estabelecer a sanção aplicável, bem como
sua intensidade.
Posicionamento diverso tem a ANATEL em relação à funcionalidade do
processo de fiscalização e do processo sancionador, embora também ambos sejam
tratados de forma autônoma, inclusive com regulamentos específicos (respectivamente
Resolução nº. 441/2006; e nº. 344/2003 e Regimento Interno), ao contrário do que se
verifica na ANTAQ, cujos procedimentos são regrados por um mesmo ato normativo
(Resolução nº.
987/2008). Segundo o art. 10 da Resolução nº.
441/2006, os
procedimentos de fiscalização objetivam, além de outras finalidades, constatar o
descumprimento, ou não, de obrigações e “avaliar a extensão de uma infração,
considerando seus efeitos para o serviço, para os usuários e para toda a população, a
eventual vantagem auferida pelo infrator e outras circunstâncias agravantes ou
atenuantes” (art. 10, inc. II). Seu processo de fiscalização contempla tanto o exercício
do poder de fiscalização quanto a apuração da responsabilidade administrativa.
Ademais, o “processo administrativo para apuração de descumprimento de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
211
obrigações” (PADO) previsto no Regimento Interno da ANATEL especifica a forma de
apuração da inobservância de obrigações pelos regulados em procedimento próprio. Por
essa razão, a ANATEL dispõe de um último procedimento específico para determinar
os critérios de sopesamento da sanção a ser aplicada ante a constatação da infração
administrativa no processo de fiscalização ou no curso do PADO, o “processo de
aplicação de sanções administrativas”.
O modelo de responsabilização administrativa proposto pela ANATEL adota a
técnica de especialização das funções para tratar cada etapa da responsabilização
administrativa de forma fragmentada, restando menos nítida a separação fiscalização –
sancionamento. Não se trata, porém, de limitação do processo sancionador, mas sim de
uma forma diferenciada de disciplina da responsabilização administrativa.
Para que as considerações deste item propiciem diálogos com outros estudos
acadêmicos sobre o tema e proponham reflexões diretamente relacionadas às análises
dos elementos de Direito Administrativo Sancionador que se encontram na doutrina,
adota-se um posicionamento próximo ao prevalecente na doutrina que compreende
fiscalização (ou sindicância) e aplicação de sanções como funções diferentes, com
regras de processamento diversas. Pela interpretação adotada, enquanto o processo de
fiscalização corresponde à etapa de averiguação da regularidade da atividade
desenvolvida pelo administrado pelo exercício de técnicas investigativas, o processo
sancionador apura a responsabilidade administrativa e trabalha os critérios para
aplicação e sopesamento da sanção, se for configurada infração administrativa. Por essa
delimitação, o enfoque de análise restringe-se ao processo sancionador não sem antes,
porém, tecer considerações pertinentes sobre a fiscalização administrativa.
A fiscalização administrativa corresponde à efetivação da prerrogativa
fiscalizatória detida pela Administração Pública no plano concreto por meio de atos
administrativos voltados a averiguar a adequação do desenvolvimento das atividades
econômicas e sociais pelo administrado às prescrições normativas. Alguns dos
principais atos de fiscalização correspondem à requisição de informações, que é
especialmente cara na Comissão de Valores Mobiliários e sua correspondente regulação
por informação, requisição de documentos e vistoria de instalações. Em algumas
normas, verifica-se a exemplificação dos possíveis atos fiscalizatórios que a
Administração Pública editar, como na Resolução nº. 442/04 da ANTT, que aprova o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
212
regulamento de disciplina do ‘processo administrativo para apuração de infrações e
aplicação de penalidades’:
Art. 12. No curso do procedimento de averiguações preliminares, as
Superintendências poderão:
I – requisitar das empresas envolvidas, de seus administradores e acionistas,
do autor de representação ou de terceiros interessados informações,
esclarecimentos e documentos;
II – requerer a outros órgãos e entidades públicas informações,
esclarecimentos e documentos;
III – realizar inspeções e diligências;
IV – adotar medidas cautelares preventivas;
V – suspender o procedimento de averiguações, determinando a instauração
de processo administrativo; e
VI – adotar quaisquer outras providências, administrativas ou judiciais, que
considerar necessárias.
Mencione-se que no julgamento da liminar ADI 1.668-5, a ação direta de
inconstitucionalidade contra a Lei Geral de Telecomunicações (ADI contra LGT), o
STF firmou entendimento no sentido da inconstitucionalidade de a Administração
Pública efetivar busca e apreensão de bens quando da fiscalização ao suspender a
aplicabilidade do art. 19, inc. XV, da LGT. 130
Assim como os atos normativos e os atos sancionatórios, também os atos de
fiscalização são atos administrativos, submetidos ao regime ordinário de controle
interno e externo. Nesse sentido, cabe mandado de segurança contra ato de fiscalização
de autoridade administrativa que viole algum direito detido pelo administrado ou exerça
sua competência de forma desproporcional, incorrendo em abuso de poder131.
Com relação aos limites à fiscalização, Carlos Ari SUNDFELD admite a
aplicabilidade de determinados direitos ainda na fase inquisitória caso o exercício deles
no processo sancionador possa ser comprometido pela atuação investigatória da
Administração Pública:
130
Essa é a redação do preceito: “Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o
atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando
com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e, especialmente:
XV – realizar busca e apreensão de bens no âmbito de sua competência”.
131
Art. 1º, caput, Lei nº. 1.533/51. “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e
certo, não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, alguém sofrer
violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for ou sejam
quais forem as funções que exerça”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
213
A jurisprudência tem afirmado que, nas sindicâncias preliminares, os
investigados ainda não são protegidos por todos os direitos decorrentes do
princípio da ampla defesa. A oportunidade para exercer esses direitos em sua
plenitude só surge com a instauração do processo punitivo. Mas, sob pena de
comprometimento à substância desses direitos, o investigado não pode ser
obrigado a, no procedimento prévio, praticar atos contrários aos interesses de
sua futura defesa. Por isso, a jurisprudência tem conhecido com tranqüilidade
a incidência, ainda na fase de investigações, do privilégio contra a autoincriminação e do direito ao silêncio (CF, art. 5º, LXIII) (SUNDFELD, 2001,
p. 576).
De uma forma geral, os atos de fiscalização são previamente estabelecidos em
agenda anual de fiscalização dos entes administrativos132 e, formalizados em processo
fiscalizatório, desenvolvem-se em compasso com a programação prevista e nos termos
do documento formal que delimita o objeto da fiscalização e o agente responsável. Ao
final, relatório de fiscalização é elaborado para registrar o objetivo, a metodologia e as
técnicas de fiscalização, a descrição do procedimento adotado, as informações
levantadas e as conclusões que o ente administrativo alcançou com a fiscalização.
No decorrer do processo de fiscalização, é possível a celebração de acordo
administrativo entre a Administração Pública e o administrado para suspender uma
determinada prática objeto de investigação mediante contrapartida de prestações
positivas ou negativas pelo investigado. Essa dinâmica é verificada no CADE, que
dispõe como instrumento consensual o termo de compromisso de cessação (TCC) por
meio do qual o compromitente cessa a ação investigada e se obriga a adotar certos
comportamentos para suspensão do processo de fiscalização ou do processo
sancionador. 133
Geralmente o agente competente para fiscalizar também é competente para
aplicar sanções, de forma que a autoridade administrativa que fiscaliza também é
incumbida de sancionar caso se verifique a responsabilização administrativa. A
competência comum de fiscalizar e sancionar detida pela autoridade administrativa
132
É o exemplo da Resolução 441/06, que dispõe sobre o procedimento de fiscalização no âmbito da
ANATEL e obriga a previsão da fiscalização no Plano Operacional de Fiscalização em seu art. 11.
133
Art. 53, caput, Lei 8.884/94: “Em qualquer das espécies de processo administrativo, o CADE poderá
tomar do representado compromisso de cessação da prática sob investigação ou dos seus efeitos lesivos,
sempre que, em juízo de conveniência e oportunidade, entender que atende aos interesses protegidos por
lei”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
214
justifica-se pela potencialidade de a decisão desta autoridade ser mais adequada ao caso
concreto pelo conhecimento mais detido da prática objeto de processamento.
A aplicação de sanção condiciona-se à realização de prévio processo
administrativo com garantia de todos os meios de defesa do administrado, a exemplo
dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mas também de
direitos mais específicos, como o direito de não ter cobrada despesas processuais134 e o
direito de vista e cópia do processo135. A lei federal de processo administrativo possui
todo um Capítulo destinado à previsão expressa de alguns dos principais direitos dos
administrados oponíveis à Administração Pública no âmbito do processo administrativo,
além de outros dispersos no texto legal. O art. 3º, que compõe o Capítulo II intitulado
“Dos direitos dos administrados”, possui a seguinte redação:
Art. 3º. O administrado tem o seguintes direitos perante a Administração,
sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
I – ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão
facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a
condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos
neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III – formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais
serão objeto de consideração pelo órgão competente;
IV – fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando
obrigatória a representação, por força de lei.
Para a Administração Pública, os direitos dos administrados consistem em
efetivas sujeições administrativas, i.e., deveres que o Poder Público tem de
necessariamente
observar
quando
do
cumprimento
de
suas
competências
administrativas. Conforme analisado, da mesma forma que o regime jurídicoadministrativo confere prerrogativas exorbitantes à esfera privada para o ente
administrativo, também determina deveres inescusáveis na tentativa de alcançar o
almejado equilíbrio entre prerrogativas e sujeições. O confronto entre autoridade e
liberdade corresponde a uma das questões teóricas de maior projeção no Direito
Administrativo e, quando projetada no processo administrativo, determina garantias
processuais ao administrado e ônus processuais à Administração Pública.
134
Art. 2º, inc. XI, Lei nº. 9.784/99.
135
Art. 46, Lei n.º 9.784/99.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
215
Embora a função garantista do processo administrativo (sancionador) seja a mais
difundida nos estudos de direito administrativo (SILVA, 2006, p. 38), deve-se enfatizar
a função de conformação racional das decisões administrativas. O processo
administrativo consiste na arena de participação administrativa previamente à tomada de
decisão pela Administração Pública e de análises ponderativas acerca das possíveis
decisões que o Poder Público tem à sua disposição para aplicar no caso concreto e,
assim, findar um determinado problema ou regular uma específica atividade econômica.
Em relação ao exercício da prerrogativa sancionatória, é no processo administrativo
sancionador que a Administração irá negociar com o administrado eventual termo de
compromisso para substituição da sanção administrativa ou suspensão do processo.
Também é no processo administrativo sancionador que há a deliberação do tipo de
sanção aplicável, bem como o seu sopesamento considerando todos os elementos
levantados no decorrer da instrução processual. Dessa forma, o processo sancionador
confere racionalidade à tomada de decisões pela Administração Pública acerca do
exercício da prerrogativa sancionadora, além de facilitar o controle do ato
administrativo final, inclusive social, pois todas as etapas de formação da decisão
administrativa estão formalizadas no processo administrativo. Pelos expostos motivos, o
processo sancionador mostra-se como o elemento central do Direito Administrativo
Sancionador e imprescindível à aplicação de sanções ou à celebração de acordos
administrativos.
Pela relevância do processo sancionador, diversos atos normativos dispõem
sobre procedimentos específicos de disciplina do exercício da prerrogativa
sancionadora. A tendência atual verifica na esfera infra-legal é a criação por cada ente
administrativo de seu específico procedimento sancionador com atenção às
especificidades institucionais, que podem ser determinantes à definição dos prazos e da
repartição de competência, e finalidades materiais correspondentes ao setor de atividade
ao qual esteja atrelado. Sem deixar de indicar eventuais particularidades, e já advertindo
sobre a existência de regimes de processamento específicos, o próximo item busca
indicar o modelo básico de processo sancionador a partir da lei federal de processo
administrativo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
216
4.2
Instauração do processo administrativo sancionador
Três formas básicas de instauração do processo administrativo sancionador,
possuem ampla previsão normativa: (i) instauração de ofício, tanto por meio de auto de
infração lavrado após o processo de fiscalização quanto pelo agente público que toma
conhecimento de infrações administrativas, ou (ii) por denúncia formulada à autoridade
administrativa em reclamações, pedidos de providências ou petições diversas136.
O atributo da auto-executoriedade fundamenta a instauração de ofício do
processo administrativo sancionador pela Administração Pública. A Administração
Pública detém autonomia em relação aos demais Poderes e competência para dar início
ao processo de apuração da responsabilidade administrativa. Para tanto, a instauração de
ofício de processo sancionador pela Administração pode ser precedido de fiscalização
que aponte para indícios de irregularidade administrativa ou do conhecimento da prática
de infrações administrativas pela própria autoridade administrativa.
Neste último caso, é comum que as normas prevejam o dever inescusável de a
Administração Pública averiguar a ocorrência de infração administrativa constatada por
seu agente público, o qual também possui o dever de reportar o ilícito administrativo à
autoridade competente para fiscalização e/ou sancionamento o infrator. 137
Por sua vez, a denúncia se verifica nas hipóteses em que a Administração toma
conhecimento da prática de eventual irregularidade por terceiros, especialmente diante
da formulação de reclamações, pedidos de providência ou petições diversas à autoridade
administrativa incumbida de fiscalizar a apurar a responsabilidade administrativa
daquele que tenha incorrido em alguma infração administrativa. Recebida a denúncia, a
136
Lei nº. 9.784/99, art. 5º. “O processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de
interessado”.
137
É o caso da Resolução n.º 442 na ANTT, que estabelece o processo administrativo para apuração de
infrações e aplicação de sanções administrativas:
“Art. 2º. A autoridade que tiver ciência de infrações legais ou contratuais, ou de indícios de sua prática, é
obrigada a promovera sua apuração imediata, mediante instauração de procedimento de averiguações
preliminares ou de processo administrativo, assegurados, nesta hipótese, o contraditório e a ampla
defesa”.
Nesse sentido, também a Lei n.º 9.790/99, que rege os termos de parceria firmados entre Administração
Pública e as sociedades civis de interesse público (OSCIPs):
“Art. 12. Os responsáveis pela fiscalização do Termo de Parceria, ao tomarem conhecimento de qualquer
irregularidade ou ilegalidade na utilização de recursos ou bens de origem pública pela organização
parceira, darão imediata ciência ao Tribunal de Contas respectivo e ao Ministério Público, sob pena de
responsabilidade solidária”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
217
Administração Pública possui a faculdade de instaurar processo sancionador para
averiguar a regularidade da prática reportada.
A instauração do processo administrativo sancionador visa a estabelecer
procedimento formal, com garantias constitucionais e legais ao administrado, para
apuração da responsabilidade administrativa por infração, esta compreendida em sentido
amplo, contemplando leis formais, atos normativos regulamentares e cláusulas
contratuais. Essa ampla compreensão da infração administrativa se coaduna com o
conceito anteriormente desenvolvido de bloco de legalidade e o próprio comando da lei
geral de processo administrativo de obediência da Administração Pública ao critério de
atuação conforme a “lei e o Direito138”. Eventual inobservância de preceito contratual
enseja, portanto, a instauração de processo administrativo sancionador.
Esse é o entendimento explicitado em diversas passagens normativas, o art. 1º da
Resolução n.º 987/2008 da ANTAQ, que disciplina o procedimento sancionador nesta
Agência Reguladora, de seguinte redação:
Art. 1. Esta norma tem por objeto disciplinar, no âmbito da ANTAQ, o
procedimento de fiscalização e o processo administrativo para apuração de
infrações e aplicação de penalidades nos casos de condutas que infrinjam
disposição legal, regulamentar ou contratual relativas à prestação de serviços
de transportes aquaviários, de apoio marítimo e de apoio portuário e à
exploração da infra-estrutura aquaviária e portuária, regendo-se pelo disposto
nas Leis 9.784, de 1999, e n 10.233, de 2001, com redação dada pela Medida
Provisória n 2.217-3, de 2001, do Decreto n. 4.122, de 2002, pelas regras e
demais disposições legais pertinentes.
No que tange aos legitimados para integrar o processo administrativo, a Lei n.º
9.784/99 apresenta três grandes categorias em seu artigo 9º: (i) as pessoas físicas e
jurídicas que iniciem o processo na qualidade de titulares de direitos ou interessadas
mediante representação, (ii) as pessoas que não iniciaram o processo, mas detêm
direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão administrativa final ou (iii)
“as pessoas ou associações legalmente constituídas quanto a direitos e interesses
difusos”. Conforme se verifica da apresentação destas categorias de pessoas legitimadas,
o Direito Administrativo trabalha com uma concepção mais flexível de legitimação
138
Art. 2º, parágrafo único, Lei 9.784/99. “Nos processos administrativos serão observados, entre outros,
os critérios de:
I – atuação conforme a lei e o Direito;”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
218
processual, a qual envolve tanto o titular do direito quanto os interessados no
provimento final, de forma que ambos podem integrar ativamente o processo
administrativo.
Não há explícita menção ao instituto da “intervenção de terceiros”, no entanto, é
de se reconhecer que o interessado pode figurar em um dos pólos processuais desde que
demonstrado o interesse processual. O formalismo verificado no processo civil em
relação à integração de partes no processo é mitigado no âmbito do Direito
Administrativo, tanto que a própria Lei n.º 9.784/99 garante ao titular de direitos ou
interessado o direito de figurar na relação processual, independentemente de
procedimento especial para sua integração no processo. Todavia, na sua atividade
normativa a Administração Pública pode editar atos normativos para regrar a forma de
composição dos pólos processuais, desde que não importe em supressão do direito, mas
apenas ordene o seu exercício.
Enquanto lei de disciplina geral de todas as modalidades de processo
administrativo na Administração Pública Direta e Indireta, a Lei n.º 9.784/99 e seu
mencionado art. 9º aplica-se ao processo sancionador, o que importa no reconhecimento
de que a aplicabilidade de determinada sanção administrativa ou a celebração de acordo
pode se dar em uma relação processual plurilateral, e não apenas bilateral entre
Administração Pública e administrado. Interessados podem integrar o processo para
auxiliar uma empresa privada regulada a defender alguma tese se essa decisão gerar
alguma orientação vinculante à Administração Pública sobre a prática de determinada
infração administrativa, por exemplo. De semelhante forma, entidades de defesa
ambiental estão legitimadas a participar da instrução processual e, assim, apresentarem
provas quando a aplicação de sanção envolver interesses difusos.
Pretende-se com essa ampla participação processual conferir efetividade à
decisão administrativa, porquanto a integração das pessoas diretamente relacionadas ao
objeto do processo permite que a Administração receba mais informações sobre o caso
concreto e reconheça o contexto em que a questão se insere, bem como os diferentes
interesses e preocupações relacionados. Com isso, a decisão administrativa tem o
potencial de ser mais adequada ao caso e acomodar os interesses expostos, o que
confere efetividade à decisão na medida em que ela tenderá ser espontaneamente
cumprida pelos administrados e ser menos questionada, em especial no Judiciário.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
219
Há nessa proposta, porém, um efeito nefasto correspondente à possível
ineficiência do processo administrativo no qual participem múltiplos interessados ante a
demora na tramitação do processo. Um ponto importante para garantia da dinâmica
processual minimamente eficiente consiste em delimitar na esfera infra-legal a categoria
de “interessado” conforme as particularidades que decorrem do tipo de serviço público
prestado, bem como a forma de os interessados integrarem o pólo processual com o
menor impacto possível ao bom andamento do processo. Ademais, a organização
normativa da forma de exercício dos direitos conferidos pela lei em seu art. 38 aos
interessados, como juntada de documentos e pareceres e requerimento de diligências,
contribui à manutenção da funcionalidade do processo administrativo.
Uma peculiaridade do processo administrativo sancionador corresponde ao fato
de haver, via de regra, relação de sujeição especial entre o órgão ou ente administrativo
competente para sancionar e a pessoa, física ou jurídica, sujeito passivo da prerrogativa
sancionatória. Trata-se de uma decorrência diretamente relacionada com a espécie de
norma em que as infrações administrativas são previstas; dado que atos normativos e
contratos ou atos de outorga passam a se apresentarem como a fonte primeira de
previsão das infrações administrativas em detrimento da lei formal, a relação de
sujeição especial se mostra cada vez mais pressuposto do processo sancionador.
Atualmente, a maioria dos processos sancionadores é protagonizada por Administração
contratante e administrado contratado ou regulador e regulado.
Por fim, a Lei n.º 9.784/99 estipula em seu art. 10 a capacidade administrativa:
“são capazes, para fins de processo administrativo, os maiores de 18 (dezoito) anos,
ressalvada previsão especial em ato normativo próprio”.
4.3
Instrução do processo administrativo sancionador
A instrução consiste em uma das etapas mais relevantes do processo
administrativo sancionador não apenas porque é nessa fase que os elementos de prova
que devem necessariamente ser considerados na decisão administrativa139 são
constituídos, mas principalmente por ser o momento de análise das implicações da
atuação sancionatória do Estado a partir do reconhecimento do contexto no qual a
sanção irá se inserir. A instrução permite identificar, ou ao menos obter mais
139
Art. 38, Lei n.º 9.784/99.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
220
informações sobre, os interesses e conflitos envolvidos, bem como o ambiente
econômico-institucional no qual a decisão administrativa será proferida. A atuação
administrativa conseqüencialista, que considera os efeitos decorrentes da adoção de uma
ou outra forma de decidir, amplia a funcionalidade da instrução para além do
levantamento de provas na apuração da responsabilidade administrativa.
As atividades de instrução podem ser realizadas de ofício pelo Poder Público140,
mediante impulsão oficial141, ou diretamente pelos interessados na aplicação da sanção
administrativa142. Quanto à impulsão do órgão responsável pelo processamento
administrativo, a Lei n.º 9.784/99 estabelece o critério de menor onerosidade dos atos de
instrução. Segundo o seu art. 29, §2º, “os atos de instrução que exijam a atuação dos
interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes”. Pode a
Administração Pública requisitar do acusado informações e documentos para compor a
instrução do processo sancionador, desde que o ato de requisição não inviabilize o
direito de defesa detido pelo administrado (SUNDFELD, 2001, p. 580).
A instrução no processo sancionador é ampla e admite diversos meios de
prova143. Esta interpretação é extraída da própria Lei n.º 9.784/99 que além de não fixar
as atividades instrutórias, assegura ao administrado o direito de formular alegações e
apresentar documentos antes da decisão em seu art. 3º, inc. III, e, ainda, proíbe a recusa
imotivada do recebimento de documentos (art. 6º, parágrafo único). Trata-se de uma
característica geral ao processo administrativo, qualquer que seja o seu objeto, mas que
ganha especial relevância no processo sancionador pela inerente importância dos meios
de defesa.
Se a Lei n.º 9.784/99 não delimita a instrução do processo administrativo de
ofício ou por impulsão da Administração Pública, ensejando a interpretação pela ampla
instrução probatória, as atividades de instrução do interessado, em contrapartida, são
140
Cf. art. 2º, inc. XII, Lei n.º 9.784/99.
141
MARQUES NETO aponta uma diferença substancial entre processo administrativo e processo judicial
quanto ao princípio da oficialidade: “a oficialidade no processo administrativo é muito mais ampla do que
o impulso oficial no processo judicial. Ela compreende o dever-poder de instaurar, fazer andar e rever de
ofício a decisão” (2004, p. 3510).
142
Cf. art. 29, caput, Lei n.º 9.784/99.
143
“(...) assegura-se à pessoa privada a prerrogativa processual de propor e realizar provas, demonstrando
o porquê de sua real necessidade para o caso concreto. Todos os fatos relevantes (principais e acessórios)
em que se funda o ato administrativo ou o pedido inicial, bem como a defesa, podem (devem) ser objeto
de instrução processual”. MOREIRA, 2004, p. 3798.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
221
estabelecidas em seu art. 38: “o interessado poderá, na fase instrutória e antes da
tomada de decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem
como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo”. Pela positivação dos
poderes instrutórios detidos pelo interessado, a Lei 9.784/99 tanto garante o efetivo
direito de participar da condução do processo administrativo, evitando que a
Administração Pública discipline normativamente um exercício aquém do minimamente
estabelecido em lei, quanto o delimita, conformando o papel da figura do interessado,
bastante incipiente no Direito Administrativo brasileiro.
A afirmação do interessado na estrutura processual é reiterada no parágrafo 2º
do art. 38, que impede a recusa pela Administração Pública das provas propostas pelos
interessados, ressalvadas aquelas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias
mediante decisão fundamentada. Ao tomar essas medidas, a Lei n.º 9.784/99 assegura
um papel relevante ao interessado na construção da tomada de decisão administrativa.
Independentemente da pessoa que apresente provas – parte ou interessado – são
inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, nos termos do art. 30 da Lei n.º
9.784/99 e do art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal.
Para realizar diligências mediante impulso oficial, o administrado deve ser
intimado no prazo mínimo de três dias se importar em seu comparecimento (art. 26,
caput e 2º). Nesse sentido é o teor do art. 41 da Lei n.º 9.784/99: “os interessados serão
intimados de prova ou diligência ordenada, com antecedência mínima de 3 (três) dias
úteis, mencionando-se data, hora e local de realização”. No entanto, o desatendimento
da intimação não gera o efeito de reconhecimento da verdade dos fatos e nem renúncia a
direito pelo administrado, ao contrário do que se verifica no âmbito do processo civil
(art. 27, caput, Lei n.º 9.784/99).
Ressalvados os casos em que a lei disponha sobre a formalidade específica para
realização de um determinado ato de instrução, os atos de instrução não demandam uma
forma específica (art. 22, Lei n.º 9.784/99). Essa orientação se coaduna com a proposta
de simplificação do processo administrativo, um dos critérios de regência dos
procedimentos administrativos determinado no art. 2º da lei federal de processo
administrativo144. De acordo com o critério de simplificação, o processo administrativo
deve ser simples o suficiente para garantia das duas funcionalidades essenciais do
144
Art., 2º, incs. VIII e IX, Lei n.º 9.784/99.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
222
processo administrativo145 – atendimento dos direitos dos administrados e útil decisão
administrativa – com o mínimo de formalidade, mínimo esse correspondente apenas ao
indispensável à garantia dos direitos dos administrados146.
Interessante ressaltar a faculdade que o art. 32 da Lei n.º 9.784/99 confere à
Administração Pública de abrir o processo administrativo em que se discuta questão
relevante para apreciação geral por meio da realização de audiência pública previamente
à decisão administrativa. Embora essa prática esteja diretamente relacionada ao
processo administrativo normativo, destinado à elaboração de normas de disciplina do
funcionamento interno do ente administrativo ou de regulação das atividades privadas,
nada obsta a realização de audiências públicas no processo sancionador, especialmente
se deste processo resultar alguma interpretação vinculante ao ente administrativo.
4.4
Decisão administrativa no processo sancionador
Encerrada a instrução, o administrado possui no máximo dez dias para se
manifestar (art. 44, Lei n.º 9.784/99). Também no Direito Administrativo prevalece a
regra do non liquet, que comina à Administração Pública o dever de decidir nos
processos administrativos147 e, em reforço ao comando legal, fixa o prazo de trinta dias
para que a autoridade administrativa competente emita a decisão, nos termos do art. 49
da Lei 9.784/99, preceito este que admite prorrogação por igual período devidamente
motivada.
Para a decisão, todos os elementos de prova constituídos na fase instrutória
devem ser considerados, inclusive aqueles produzidos pelos interessados. Neste último
caso, a Lei n.º 9.784/99 possui preceito que expressamente impõe o dever de a
Administração considerar os elementos probatórios na motivação do relatório e na
decisão em si considerada (art. 38, §1º). Para deliberar acerca da aplicação, ou não, de
145
A única exigência formal mais explícita que se verifica na Lei 9.784/99 corresponde à formalização
dos atos processuais. Esse é o teor do art. 22, §1º: “[o]s atos do processo devem ser produzidos por
escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura da autoridade responsável”.
146
Mencione-se é bastante comum a previsão nos atos normativos de “modelos” para prática de
determinado ato pela Administração Pública. A ANTT dispõe em sua Resolução 442/04 de modelos de
notificação de infração e de representação, tanto para pessoas físicas quanto para pessoas jurídicas, de
intimação, de termo de vista, de retirada de processo e de termo de audiência. Essa prática de
simplificação da burocracia administrativa encontra respaldo na lei federal de processo administrativo, em
seu art. 7º: “os órgãos e entidades administrativas deverão elaborar modelos ou formulários padronizados
para assuntos que importem pretensões equivalentes”.
147
Art. 48, Lei 9.784/99.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
223
sanção administrativa no processo sancionatório, as informações internalizadas e os
elementos de prova amplamente produzidos no decorrer da instrução devem ser
empregados como subsídios de análise (i) do tipo de decisão administrativa e (ii) da
conformação quanto à sua abrangência e profundidade148.
Ao término do processo administrativo sancionador, as seguintes decisões
podem ser verificadas: (i) ato administrativo declaratório da inexistência de infração
administrativa, (ii) ato administrativo declaratório que negue a responsabilidade
administrativa da pessoa que figura no pólo passivo do processo sancionador, (iii) ato
administrativo que declare a prescrição da pretensão sancionatória da Administração
Pública, (iv) sanção administrativa ou (v) acordo administrativo que substitua a sanção
administrativa ou a torne mais branda mediante satisfação de obrigações positivas e
negativas estabelecidas no ato consensual.
As duas primeiras tipologias encerram a absolvição do sujeito passivo no
processo sancionador seja porque a sua prática não incide na tipificação de uma infração
administrativa, seja porque o ato infracional não é de responsabilidade deste
administrado. Em ambos os casos, os elementos de prova são ponderados e a
Administração profere decisão material, cuja motivação deve contemplar as conclusões
alcançadas com a instrução processual.
A prescrição da pretensão punitiva pela Administração Pública federal, direta e
indireta, é regida pela Lei n.º 9.873/99. Esta lei não se aplica, no entanto, aos processos
administrativos disciplinares e aos processos administrativos tributários que possuem
disciplina legal própria, respectivamente pela Lei n.º 8.112/90 quanto aos agentes
públicos estatutários e pelo Decreto n.º 70.235/72.
Quanto aos prazos para exercício da prerrogativa sancionadora pelo Poder
Público federal, portanto, o processo administrativo sancionador não é disciplinado
pelos correspondentes preceitos da Lei n.º 9.784/99, mas sim pela mencionada lei de
prescrição da pretensão punitiva da Administração Pública federal, a qual estipula o
prazo prescricional de cinco anos. Segundo o art. 1º da Lei n.º 9.873/99, o prazo é
ordinariamente contado na data da prática do ato, mas deve ser contado no dia em que
tenha sido cessado o ato permanente. Se o fato objeto de apuração administrativa
também puder constituir crime, o §2º do art. 1º da Lei n.º 9.873/99 determina que o
148
Cf. MARQUES NETO.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
224
prazo da prescrição punitiva penal deve ser estendido à esfera administrativa e ser
aplicado no processo sancionador em detrimento do prazo comum de cinco anos149.
Além de estabelecer as regras de cômputo do prazo de prescrição da pretensão
sancionatória pela Administração federal, a Lei n.º 9.873/99 ainda define os casos de
interrupção da prescrição, quais sejam, (i) pela intimação do administrado, (ii) pelo
início da apuração do fato, qualquer que seja o tipo de ato que inicie a averiguação
administrativa e (iii) pela decisão condenatória recorrível (art. 2º).
Outra possibilidade de decisão no processo sancionador consiste na celebração
de acordos substitutivos ou integrativos da sanção administrativo. Algumas normas
prevêem expressamente tais acordos administrativos, em sua maioria sob a
nomenclatura de “termos de compromisso”150 ou “termos de ajuste de conduta”151, ao
passo que outras são exclusivamente voltadas à disciplina da atuação administrativa
concertada no Direito Administrativo Sancionador. Como decorrência do influxo
normativo, está na pauta da agenda de debates teóricos no Direito Administrativo a
consensualidade. 152
O tradicional modelo de desenvolvimento das atividades administrativas por
meio de atos administrativos imperativos e unilaterais sobre o qual as linhas teóricas do
Direito Administrativo foram erigidas passa a ser cada vez mais questionado em razão
de suas disfuncionalidades práticas – em especial a demora para provimento
administrativo, a ineficácia das decisões verticalizadas e os custos relacionados – e
pelas dúvidas acerca da legitimidade do exercício da autoridade do Estado de forma
unilateral e arraigada nas prerrogativas públicas exorbitantes à esfera privada. Em
defesa da atuação administrativa concertada, alguns administrativistas indicam que o
desenvolvimento da atuação por meio de acordos administrativos pode se apresentar
mais célere, menos custosa e seu conteúdo decisório pode ser mostrar mais adequado às
demandas colocadas no caso concreto por viabilizar “decisões mais criativas” por se
estruturar na negociação da imperatividade estatal.
149
Art. 1º, §2º, Lei n.º 9.873/99. “Quando o fato objeto da ação punitiva da Administração também
constituir crime, a prescrição reger-se-á pelo prazo previsto na lei penal”.
150
Cf. Decreto-Lei n.º 6.385/76 da CVM, por exemplo.
151
Cf. Resolução n.º 442/04 da ANTT, Resolução Normativa 63/04 da ANEEL e Resolução Normativa
48/03 da ANS, por exemplo.
152
Cf. MOREIRA NETO (2001).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
225
No plano do Direito Administrativo Sancionador, o exercício da prerrogativa
sancionatória pode ser negociada entre Administração e administrado. Dessa forma, os
acordos administrativos podem prever uma forma específica de aplicação da sanção
administrativa, com termos mais adequados ao administrado ou em menor intensidade
(multas mais brandas, por exemplo) pelo comprometimento deste em realizar
obrigações positivas ou negativas, quando então são denominados de acordos
integrativos. De fato, os acordos administrativos deste jaez não substituem a sanção
administrativa e nem suspendem o processo sancionador, mas o integram na qualidade
de ato processual e conformam a decisão unilateral final (sanção administrativa). Por
outro lado, os acordos substitutivos tomam o lugar da sanção administrativa no
momento final do processo sancionador ou suspendem o processo sancionador até que
haja cumprimento das obrigações pactuadas entre Administração Pública e
administrado.
Dentre os efeitos decorrentes da celebração dos acordos substitutivos, deve-se
mencionar o efeito de suspensão do prazo prescricional previsto no art. 3º da Lei n.º
9.873/99. Embora o preceito se refira apenas aos termos de compromisso de cessação
(TCC) no âmbito do CADE e aos termos de compromisso (TC) da CVM, este efeito
deve ser estendido por analogia a todos os acordos administrativos que possuam a
mesma funcionalidade dos supramencionados acordos administrativos, quais sejam,
substituir a sanção administrativa ou suspender o processo sancionador até o advento do
cumprimento das cláusulas comprometidas no termo.
Conforme se verifica, o processo sancionador não se destina apenas à apuração e
aplicação de sanções administrativas. Ao lado da função garantista que desempenha, o
processo sancionador exerce a função de seara de conformação da decisão
administrativa mais adequada ao caso concreto, considerando o contexto identificado na
fase de instrução e os efeitos da sanção e do acordo administrativo, ambos instrumentos
fungíveis à satisfação das competências administrativas. No entanto, o novo modelo de
atuação administrativa ensejado pela consensualidade não afasta, por óbvio, a decisão
sancionatória do processo sancionador. A aplicação de sanções continua sendo uma das
finalidades do processo sancionador, porém, ela passa a coexistir com o ato consensual.
De um modo geral, a sanção administrativa consiste no ato administrativo
aplicável pela autoridade competente ao término de processo administrativo
sancionador com todos os meios de defesa a ele inerentes, como o contraditório e a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
226
ampla defesa, no qual tenha sido reconhecido o descumprimento de lei, ato normativo
ou cláusula contratual.
Na qualidade de ato administrativo, a sanção administrativa deve atender ao
regime geral dos atos administrativos, ditado pelos seus elementos imprescindíveis –
competência, objeto, forma, motivo e finalidade –, formas de invalidação e controle, em
especial o controle procedido pelo Poder Judiciário. Trata-se do resultado do exercício
da prerrogativa sancionadora pela autoridade administrativa competente para tanto, do
qual decorrem expressivos efeitos práticos da aplicação da sanção: recomposição da
legalidade, afirmar a autoridade administrativa e servir de incentivo negativa à prática
de infrações administrativas.
Ao contrário do que se evidencia na esfera penal, não há no Direito
Administrativo Sancionador sanções que não pecuniárias ou de constituir o sancionado
em obrigação de fazer ou de não fazer. Esse entendimento já consolidado foi positivado
no art. 68 da Lei n.º 9.784/99:
Art. 68. As sanções, a serem aplicadas por autoridade competente, terão
natureza pecuniária ou consistirão em obrigação de fazer ou de não fazer,
assegurando sempre o direito de defesa.
Apesar da pluralidade de sanções administrativas evidenciadas no Direito
Administrativo Sancionador, as sanções mais comumente previstas nas leis formais são
a multa na fiscalização de uma determinada atividade privada, a caducidade do contrato
celebrado com a Administração Pública e a cassação de licença ou de autorização.
Para sua aplicação, a sanção administrativa passa por um procedimento de
sopesamento a partir de critérios definidos na Lei n.º 9.784/99, em leis formais e em
atos normativos residuais para determinar a medida da sanção mais adequada à infração
apurada no processo administrativo sancionador. De uma forma geral, os critérios de
sopesamento seguem a regra da relação de sujeição especial, ou seja, quanto mais
próximo e relacional for o vínculo jurídico estabelecido entre Administração Pública e
administrado, maiores serão os critérios para disciplinar a força da sanção e, também,
mais incisivo poderá ser o exercício da prerrogativa sancionadora pela autoridade
administrativa. Uma empresa que detenha um contrato de prestação de serviço de
transporte público com a União, por exemplo, conterá em sua disciplina jurídica desde
normas constitucionais até específicas cláusulas contratuais que prevejam infrações
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
227
administrativas ou critérios específicos de sopesamento da sanção administrativa a ser
aplicada no caso de inobservância das normas.
Um dos critérios mais relevantes de sopesamento da sanção administrativa
encontra-se na Lei n.º 9.784/99, em seu artigo 2º, parágrafo único, inc. VI, o qual
impede que a Administração Pública imponha sanções em medida superior à
minimamente necessária para atendimento do interesse público, nos seguintes termos:
Art. 2º, parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados,
entre outros, os critérios de:
VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,
restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao
atendimento do interesse público.
Apesar da vagueza desse critério, o preceito indica a orientação geral de mínimo
exercício da prerrogativa sancionatória, de forma que a autoridade administrativa não
pode se valer de sanções demasiadamente gravosas ao administrado que não
acompanhem a dimensão dos efeitos gerados pela infração objeto de sancionamento.
Qualquer que seja a decisão terminativa do processo sancionador, esta deve
necessariamente ser motivada, i.e., com indicação dos fundamentos jurídicos do ato
final, nos termos do art. 50 da Lei n.º 9.784/99, e dos elementos de fato recolhidos no
processo.
4.5
Revisão da decisão administrativa
A decisão da Administração Pública em processo sancionador é passível de
revisão pela via administrativa ou judicial.
Na esfera administrativa, a revisão se procede por meio da interposição de
recurso à autoridade que proferiu a decisão para retratar-se dentro de cinco dias.
Transcorrido esse prazo estabelecido no art. 56 da Lei n.º 9.784/99 sem que se verifique
a retratação, o recurso é encaminhado à autoridade superior para que aprecie o pedido
formulado pelo recorrente. Segundo a lei federal de processo administrativo, o prazo
para interposição de recurso administrativo é de dez dias, devendo ser decidido no prazo
máximo de 30 dias (art. 59). O recurso administrativo, que possui somente efeito
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
228
devolutivo, ressalvada hipótese de lei que o confira efeito suspensivo (art. 61),
independe de caução para ser protocolizado (art. 56, §2º).
Importa ressaltar que o recurso administrativo interposto em processo
sancionador possui uma dinâmica diferenciada em relação aos recursos verificados nos
demais tipos de processos administrativos determinada pelo art. 65 da Lei n.º 9.784/99,
de seguinte redação:
Art. 65. Os processos administrativos de que resultem sanções poderão ser
revistos, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando surgirem fatos
novos ou circunstâncias relevantes suscetíveis de justificar a inadequação da
sanção aplicada.
Parágrafo único. Da revisão do processo não poderá resultar agravamento da
sanção.
A norma transcrita configura uma garantia conferida ao administrado
diretamente interessado na aplicação da sanção administrativa de que o exercício da
prerrogativa sancionadora pela Administração Pública acompanha o efetivo prejuízo
decorrente da infração administrativa. Dessa forma, a instrução probatória não se
resume ao momento intermediário do processo administrativo sancionador, prévio à
conformação da decisão administrativa, mas acompanha toda a fase executória da
sanção aplicada, de forma que fatos novos ou circunstâncias relevantes podem ensejar a
revisão do tipo e da medida da sanção aplicada.
A ampla possibilidade de revisão administrativa das sanções se coaduna com a
orientação geral de proporcionalidade estabelecida no art. 2º, parágrafo único, VI, da
Lei n.º 9.784/99 que dispõe sobre o dever de observância pela Administração Pública da
“adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções
em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse
público”. O dever de proporcionalidade das respostas administrativas à infração da
legalidade, tomada aqui em sentido amplo para abarcar também as cláusulas de
contratos administrativos, exige constante atenção ao contexto no qual o ato
sancionatório fora emitido.
Para fins de revisão da sanção administrativa, devem ser considerados, além de
outros, todos os elementos de prova que permitam caracterizar a prática como
infracional, as circunstâncias atenuantes e agravantes, os efeitos decorrentes da prática
sancionada e a medida do benefício originado aos sancionados ou terceiros pela infração
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
229
administrativa. Quando verificados após a aplicação da sanção administrativa, tais
elementos ensejam a reavaliação do ato administrativo quanto (i) à caracterização da
infração administrativa, (ii) à adequação do tipo de sanção aplicada e (iii) ao peso da
sanção. Para tanto, a sanção aplicada deve ser revisitada à luz dos critérios de
sopesamento determinados na Lei n.º 9.784/99 e nos demais atos normativos. Como
resultado do recurso administrativo, a autoridade administrativa poderá, nos termos do
art. 64 da Lei n.º 9.784/99, “confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou
parcialmente, a decisão recorrida, se a matéria for de sua competência”.
No entanto, é defeso o agravamento da sanção por expressa previsão legal na lei
federal de processo administrativo (art. 65, parágrafo único). Mostra-se relevante
salientar que a regra de abertura do direito de defesa do administrado para formulação
de alegações caso a revisão do ato importe em gravame à situação do recorrente previsto
no art. 64, parágrafo único, não é, portanto, aplicável ao processo sancionador.
Além da revisão administrativa, a sanção aplicada ao término de processo
sancionador pode ser contestada judicialmente para que o Poder Judiciário invalide a
decisão administrativa ilegal. Segundo o princípio constitucional da inafastabilidade do
Poder Judiciário (CF, art. 5º, inc. XXXV), os atos administrativos, do qual é exemplo a
sanção administrativa, podem ser levados à apreciação do Poder Judiciário para garantia
do estado de legalidade. Ao contrário do que se evidencia nos sistemas de dualidade de
jurisdição, cuja principal característica reside na existência de um Tribunal
especializado para lidar com os litígios envolvendo a Administração Pública153, o
modelo de unidade de jurisdição adotado pelo Estado brasileiro determina a
concentração dos questionamentos públicos no mesmo órgão jurisdicionado para
apreciar litígios privados. Dessa forma, juízes podem invalidar a decisão da
Administração Pública com fundamento na legalidade.
Um dos principais debates que se colocam hoje na agenda teórica do Direito
Administrativo corresponde aos limites do controle judicial dos atos administrativos,
debate esse reforçado com a criação das Agências Reguladoras, que predicam
independência e autonomia decisória para regular determinado setor. O atual cenário
teórico dá conta de duas correntes interpretativas do papel do Judiciário no controle dos
atos administrativos: os administrativistas que defendem amplo controle do ato
153
Cf. CASSESE, 1994, p. 44 e ss.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
230
administrativo pela interpretação máxima do art. 5º, inc. XXXV, CF e aqueles que
buscam estabelecer critérios para uma postura de maior ou menor deferência do
Judiciário às decisões administrativas154.
Sem clareza acerca dos critérios para controle judicial dos atos administrativo, o
momento é de reflexão sobre quais seriam as circunstâncias que predicariam um
controle mais ou menos incisivo do Judiciário sobre a atividade administrativa.
No que tange ao controle judicial dos atos sancionatórios, verifica-se grande
judicialização das sanções aplicadas pelas autoridades administrativas, o que suscita
reflexões sobre o esvaziamento da autoridade da Administração Pública na medida em
que a competência sancionatória que detêm são deslocadas para o Poder Judiciário
mediante o questionamento judicial da validade do ato administrativo proferido ao final
do processo sancionador.
Além da judicialização das sanções administrativas pela ação do administrado,
que discute a legalidade de sua aplicação ou a proporcionalidade entre a infração
administrativa e a medida da sanção, outra hipótese de aproximação do processo
sancionador ao Judiciário corresponde à execução judicial das multas aplicadas pela
autoridade administrativa. Esse ponto é especialmente sensível para a afirmação da
Administração Pública frente ao administrado.
As multas aplicadas pela autoridade administrativa não são auto-executáveis, o
que importa na necessidade de cobrança judicial via ação de execução fiscal (Lei
6.830/80) caso o sancionado não pague espontaneamente o valor arbitrado na multa, que
acarreta na inscrição do devedor no Cadastro Informativo dos Créditos Não Quitados de
Órgãos e Entidades Federais (CADIN). A judicialização da execução das multas
administrativas repercute diretamente sobre a efetividade do sistema sancionador
administrativo, pois as multas, embora aplicadas, não são cumpridas. Uma vez que a
multa consiste em uma das sanções administrativas mais aplicadas pela Administração
Pública federal, senão a sanção mais aplicada, tem-se o quadro de ineficácia do sistema
de responsabilização administrativa, agravado pelo fato de a demora de processamento
das ações de execução fiscal, dentre outros fatores, determinarem o baixo recolhimento
das multas aplicadas. Os dados apresentados pelo CADE bem explicam o exposto:
154
Cf. WANG, PALMA & COLOMBO (p. 5, mimeo).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
231
Fonte: Relatório de Gestão do CADE (exercício de 2008)
155
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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
2008.
Disponível
em
234
ANEXO 4 - A DISCUSSÃO DO PROBLEMA DA
RESPONSABILIZAÇÃO POR ILÍCITOS PRATICADOS NO
ÂMBITO DE PESSOAS JURÍDICAS NO CAMPO DA DOGMÁTICA
PENAL
1.
INTRODUÇÃO
A estrutura individual de imputação, sobre a qual a dogmática tradicional de
Direito Penal foi construída, vem se mostrando cada vez mais ineficiente diante da
proliferação de práticas delitivas que ocorrem no âmbito de organizações altamente
hierarquizadas e funcionalmente diferenciadas.
De fato, as ações tomadas no âmbito de um ente coletivo são, muitas vezes,
de difícil averiguação para aqueles que não participam dele. Além disso, em tal
estrutura organizacional, um resultado lesivo ao bem jurídico geralmente é
provocado pela ação conjunta de muitos sujeitos, de diversas posições hierárquicas
e com um grau diferenciado de informação, sendo muito difícil identificar todos os
participantes da ação e delimitar a contribuição de cada um para o evento.
Nestes contextos, a estrutura tradicional de imputação historicamente
consolidada em nosso Direito Penal acaba apresentando um forte déficit
regulatório156. Isso porque tal estrutura, pensada para lidar com casos simples
como o de um homicídio doloso individual, pressupõe que um único autor
disponha fundamentalmente de três capacidades: capacidade de realização de uma
ação, capacidade de compreensão da ilicitude do ato e capacidade de decisão. O
problema surge quando este modelo tradicional e individual de imputação (em que
estas três capacidades estão concentradas sobre uma única pessoa) precisa dar
156
Esta estrutura individualista de imputação no Direito Penal clássico (“das individualistische
Zurechnungskonzept des klassischen Strafrechts”) é denunciada por Bernd Schünemann como uma das
causas do déficit regulatório sobre a chamada “criminalidade econômica”. Segundo este autor, o
paradigma individualista (individualstrafrechtliches Paradigma) adotado tradicionalmente pelo Direito
Penal não conseguiria dar conta de delitos realizados através de um complexo de ações interligadas, isto
é, de padrões de comportamento coletivos (kolletive Verhaltensmusters), já que teria sido pensado,
originariamente, para combater e regular ações individuais, cuja realização pudesse, facilmente, ser
imputada à vontade e à ação de uma só pessoa. Neste sentido, ver SCHÜNEMANN, 1994, p. 267 e
seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
235
conta de fenômenos complexos, ocorridos no âmbito de organizações hierárquica e
funcionalmente
estruturadas.
Nestes
casos,
estas
capacidades
não
estão,
necessariamente, condensadas em uma única pessoa. Isso porque, em uma
empresa, é freqüente que a ação seja executada por pessoas que não são
verdadeiramente responsáveis ou não têm exclusiva responsabilidade pelo ato e
que, muitas vezes, nem sequer se dão conta das conseqüências de sua atuação.
Pode-se até mesmo afirmar que a maioria das condutas é executada por setores
inferiores da estrutura empresarial, que, normalmente, não dispõem nem de uma
alta compreensão da eventual ilicitude de seus atos, nem da capacidade de decidir
se eles serão ou não levados a cabo. Os setores intermediários da organização, por
sua vez, costumam dispor de uma capacidade relativa de compreensão da eventual
ilicitude dos atos realizados nas baixas instâncias, mas não detêm nem o poder de
decidir se o ato deve ou não ser realizado, nem a competência para sua execução.
Finalmente, os setores superiores da empresa, apesar de disporem da capacidade de
decidir ou não pela execução do ato, não participam diretamente deste e, em alguns
casos, nem sequer conseguem reconhecer a eventual ilicitude de todos os atos
praticados no âmbito da complexa rede de relações por eles liderada. 157. Há de
modo geral certa obscuridade na divisão de funções, na distribuição de
competências e nos fluxos de informação que determinam os comandos a serem
executados, resultando extremamente complicado determinar quais são os atores
envolvidos em uma eventual infração cometida no âmbito da organização
(SCHÜNEMANN, 1982, p. 42-43). Na maior parte dos casos não é possível
encontrar os três componentes fundamentais à responsabilização – ação, decisão e
conhecimento – em um único indivíduo, o que bloqueia o processo de imputação
individual.
Essas condições delineiam as dificuldades de determinação normativa de
competências e de responsabilidades dentro da estrutura da empresa, que vem se
apresentando nas dificuldades de prova do ato ilícito e suas circunstâncias
157
Neste sentido, Schünemann nos dá um interessante exemplo: um simples operário de uma empresa
química pode estar encarregado de, tarde da noite, despejar no rio um determinado conteúdo a ele
entregue; dos efeitos maléficos de sua ação ele não sabe. O engenheiro que dá ordens ao operário, por sua
vez, pode ter adquirido tal prática de seus antecessores e, portanto, também não saber da relação que estes
atos podem ter com eventuais danos ambientais. O diretor da empresa, por fim, pode não dispor de todas
as informações relevantes acerca da prática quotidiana de sua empresa, acreditando apenas e tão-somente
que sua atual configuração é não somente rentável como também completamente lícita. SCHÜNEMANN,
1994, p. 272.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
236
(COSTA, 1992).
158
Diante deste cenário, surgem algumas propostas de solução para este problema,
sendo a responsabilização penal das pessoas jurídicas uma dentre as possíveis
respostas político-criminais ao fenômeno da criminalidade empresarial.
Uma das alternativas dogmáticas de se abordar a problemática da criminalidade
da empresa e as insuficiências da imputação pessoal por atos comissivos é pensar em
estruturas alternativas para a imputação individual, que tentem desviar das
dificuldades enfrentadas pelo processo tradicional de imputação. Esse conjunto de
propostas está voltado principalmente à responsabilização daqueles que ocupam cargos
de direção ou são superiores aos executores materiais, papéis estes que normalmente
não são alcançados pelas regras tradicionais da autoria159.
Nesse sentido, verificamos tentativas de redefinir dogmaticamente o instituto da
autoria, por meio do conceito de “autoria mediata”; além disso, é possível observar
também a construção de tipos penais que imputam responsabilidade por omissão ou por
não-cumprimento do dever, utilizados em sua maioria na modalidade culposa; por fim,
também encontramos regras que definem a possibilidade de “atuação em lugar do
outro”, voltadas a solucionar as lacunas de imputação que ocorriam em casos de crimes
de mão própria, em que o autor responsável não age, mas quem o faz é um representante
formal ou informal seu.
Embora uma análise mais ampla dessas formas de regulação não seja objeto do
presente estudo, apresentaremos brevemente tais soluções a seguir, pois nos parece que,
do ponto de vista da formulação de estratégias legislativas para lidar com o problema da
criminalidade de empresas, estas alternativas podem ser consideradas conjuntamente
com a opção de responsabilizar a pessoa jurídica.
158
Analisando esse fato, Faria Costa concluiu que “tornam-se patentes e indiscutíveis as enormes
dificuldades de prova – bastas vezes intransponíveis – com que deparamos sempre que se começa a
percorrer reversamente o fio da cadeia hierárquica sustentadora da decisão que levou à prática de um acto
penalmente ilícito”.
159
Em alguns casos, inclusive, defende-se a impunidade dos executores imediatos por razões de política
criminal: “La escasa capacidade de resistência frente a La actitud pro-delictica Del grupo por parte de
quien, como regra general, esta obligado a obedecer dentro de uma escala jerarquizada; la eficacia
auto-exculpatoria de quien siempre puede alegar que actúa de um modo altruísta em interés de la casa;
La alta fungibilidad de los miembros que ocupan las escalas inferiores de la organización, etc.”
(SCHÜNEMANN, 1988, p. 531). No mesmo sentido, SILVA SÁNCHEZ, 1997.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
237
Em seguida, entraremos no tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica
propriamente dita, tratando, primeiramente, das resistências que esse instituto enfrenta
diante da dogmática penal tradicional, especialmente no caso da corrente finalista. Por
fim, trataremos das tentativas contemporâneas de repensar as categorias penais e
incorporar as novidades do instituto à teoria do delito.
2. ALTERNATIVAS À RESPONSABILIDADE COLETIVA PARA LIDAR
COM CRIMES EMPRESARIAIS
Uma decisão sobre a responsabilização penal da pessoa jurídica não pode ser
levada adiante sem se considerar que uma posição em relação a esse instituto terá,
possivelmente, conseqüências em relação às demais formas de imputação de
responsabilidades dentro da empresa e vice-versa. Por exemplo, a não-aceitação do
instituto da responsabilidade penal na pessoa jurídica pode eventualmente acentuar
decisões que responsabilizem individualmente administradores. Da mesma forma, o
incremento dos tipos omissivos, ou mesmo a consolidação de uma posição dogmática
em relação à autoria que permita imputar com maior tranqüilidade responsabilidade aos
administradores, podem mudar o cenário em que a decisão político-criminal de
responsabilizar a empresa deverá ser tomada. Parece-nos, portanto, que tais opções
devem ser analisadas conjuntamente sob dois pontos de vista: por um lado, o da
conveniência político-criminal, especialmente no que diz respeito às conseqüências que
cada uma dessas formas tem no âmbito da empresa; por outro, o do tipo de intervenção
e de limitação de liberdade pessoal que cada uma destas formas traz consigo.
A forma direta e tradicional de imputação em direito penal, como apontamos, se
aplicaria sem maiores problemas no âmbito empresarial a casos em que um agente
identificável com sua ação produz imediatamente um resultado típico. Há nestes casos,
entretanto, uma dificuldade inicial, que já indicamos acima, no que diz respeito à
individualização de responsabilidades dentro da empresa. Mais ainda, se o que se
pretende é imputar responsabilidade ao administrador, a tarefa é ainda mais difícil, já
que casos em que há decisões expressas e atuações imediatas deste são dificilmente
produzidos neste ambiente. O mais comum é que condutas lesivas sejam imediatamente
causadas pela ação de subordinados, ainda que aqueles que ocupem posições de
administradores estejam ou envolvidos ativamente na elaboração ou estruturação de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
238
estratégias de atuação da empresa que tenham resultado lesivas ou que tenham ao
menos agido de forma negligente em relação a seus deveres de cuidado de observar o
resultado.
Algumas figuras dogmáticas vêm sendo utilizadas para dar conta da decisão
político-criminal de imputar responsabilidade aos administradores que se encontram em
uma dessas duas posições: a imputação por autoria mediata, a comissão por omissão
imprudente e, complementarmente, a regra de atuação em lugar do outro.
2.1 Responsabilidade dos órgãos diretivos por infração de dever
Uma das soluções comuns no âmbito dos delitos empresariais é a imputação de
responsabilidade pessoal a determinadas pessoas que ocupam posições dentro da
empresa – normalmente àqueles que exercem a função de órgão diretivo ou ao titular da
empresa – com base na idéia de infração de dever160.
A imputação aqui se refere às ações que uma pessoa que ocupa determinada
posição no âmbito da empresa deveria ter praticado para que não se chegasse a produzir
lesões a bens-jurídicos.
Justamente em razão do tipo de conduta que se pretende atingir por intermédio
do Direito Penal é que tais omissões são geralmente imputadas na forma imprudente.
Ou seja, a exigência de dolo nesse tipo de imputação as tornaria supérflua e, dessa
forma, trata-se de imputar pelo caráter descuidado da ação que deixou de evitar o risco.
A princípio, imputar por dolo mostrar-se-ia factível na modalidade de dolo eventual,
quer dizer, o sujeito, sabendo que sua ação voluntária seria capaz de criar determinado
risco, assume a possibilidade da concretização do resultado.
Como define Zuñiga Rodriguez, trata-se, no fundo, de uma decisão políticocriminal de estabelecer onde se considera que são infringidos os mandatos da norma
penal, um assunto de determinação da posição do dever jurídico (ZUÑIGA
RODRIGUEZ, 2000, p. 176). Ou seja, esse tipo de incriminação pode ser entendido, em
última instância, como responsabilização por ter assumido certo papel na empresa e não
pelo que concretamente realizou.
160
Há legislações que trazem disposições expressas sobre a violação do dever de garante dos titulares da
empresa por delitos/faltas praticadas pelos subordinados, cf. Parágrafo 130 da OwiG alemã e o artigo 130
da Lei de infrações ou sanções administrativas espanhola (lei 30/1992).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
239
No que diz respeito à estrutura da imputação, a omissão pode ser caracterizada
de duas formas – a omissão própria e a imprópria. Na omissão própria, a conduta
diretamente descrita no próprio tipo penal é uma conduta omissiva (eg. omissão de
socorro). Pode haver o resultado, mas ele não faz necessariamente parte do tipo, não se
liga com o dever dirigido ao omitente. Os delitos de omissão imprópria, por sua vez, são
construídos a partir dos tipos de ação, mediante sua combinação com a regra geral que
imputa a omissão daqueles que ocupam a posição jurídica de “garante”.
Embora existam tipos formulados diretamente na forma omissiva, os casos
freqüentes de omissão a que nos referimos nos parágrafos anteriores são os de omissão
imprópria (também chamados de “delitos de comissão por omissão”). Estes se
diferenciam dos tipos de omissão própria também por não se esgotarem no nãocumprimento de um mandato exigido por lei e envolverem a realização de um resultado.
O resultado é um dos elementos chave para o estabelecimento do vínculo entre
indivíduo e imputação. O indivíduo é convertido em “garante” e isso significa que ele
tem o dever de evitar o resultado. O garante que infringe esse dever é imputado pelo
resultado. A conduta passiva é subsumível a tipos penais pensados para condutas ativas,
por meio de um raciocínio que a considera equivalente à ação.
Para abarcar essa modalidade de omissão, a explicação dogmática sobre a
estrutura básica do tipo teve de ser modificada. Os requisitos da imputação ao tipo pela
omissão imprópria são, além da não-evitação do resultado, a fixação do círculo de
garantes que podem vir a ser considerados autores. Isso quer dizer que, para imputar
uma lesão (originalmente tipo de ação positiva) a uma pessoa que não agiu para evitá-la,
não basta simplesmente constatar que ela poderia ter evitado o resultado com a sua ação
(causalidade hipotética). Nem todos podem ser autores de um delito de omissão
imprópria, pois “não existe um dever de ajudar em todo momento que seja necessário,
cujo descumprimento seja punível”. (JESCHECK, 1996, p. 668). Assim, a equivalência
de uma omissão em relação a uma ação pressupõe – além da causalidade hipotética –
um “fundamento jurídico especial”, um dever jurídico especificamente dirigido a um
determinado sujeito, que o faça responder como garante da evitação do resultado161.
Nos crimes omissivos em geral, não há desde logo um vínculo entre conduta e
resultado. A estrutura que guia a imputação, nesses casos, nunca é diretamente uma
161
O parágrafo 13, I, do CP alemão define como autor do delito de omissão imprópria aquele que tenha
de se “responsabilizar juridicamente” para que o resultado não ocorra.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
240
relação de causalidade. Há, em primeiro lugar, o juízo de causalidade hipotética, mas é
principalmente o conteúdo normativo de um dever de ação não-cumprido que
determinará a imputação. É sempre uma norma que liga a conduta ao resultado. Nos
delitos omissivos próprios, essa norma preceptiva é descrita no próprio tipo penal. É
exatamente porque isso não acontece no caso dos delitos comissivos por omissão (que
se utilizam do mesmo tipo de ação para imputar a omissão) que há um grande debate
dogmático sobre a definição desses deveres de ação. 162
Pode-se dizer que a doutrina chegou, majoritariamente, a um acordo em relação
à seguinte formulação: atribui-se o resultado a uma omissão (imprópria) a partir de um
nexo de causalidade hipotético (não se poderá falar em certeza, nem em exame com
base em curso real) de que, com a execução da ação omitida, o resultado teria sido
evitado com uma probabilidade muito próxima da certeza. (JESCHECK, 1996, p. 656 e
667). Assim, definiu-se o primeiro requisito da evitabilidade. 163
O problema maior ainda estaria por conta da definição dos deveres dos garantes
(segundo requisito). A construção dogmática tradicional apóia-se no reconhecimento de
causas que originam deveres jurídicos e reconhece como tais: a lei, o contrato e o atuar
precedente perigoso ou ingerência (acrescentando-se posteriormente o dever derivado
das “estreitas relações de vida”)164.
162
Desde o início da sua formulação dogmática, a fraca definição sobre as circunstâncias que ligam uma
omissão a um resultado e que atuam na definição das posições de garante foi marca permanente dos
delitos de omissão imprópria. Jescheck chega a afirmar que esses delitos trouxeram uma debilitação do
mandato de certeza do Direito. (JESCHECK, 1996, p. 656) Os critérios de imputação a esses tipos foram
objeto de contínua discussão e elaboração pela dogmática penal, além de sucessivos esforços tanto do
legislador quanto da jurisprudência. As tentativas de lhe dar concretude, entretanto, nunca resultaram
plenamente satisfatórias, ainda que se tenha chegado a fórmulas dogmáticas relativamente estáveis.
163
Sob o ponto de vista da imputação objetiva, a teoria tradicional exige ainda que se estabeleça o vinculo
da causalidade hipotética. Ou seja, a idéia de que uma ação positiva dos administradores teria evitado o
dano. Como se trata de uma pergunta bastante difícil de se responder, ela tende a ser respondida com base
em um juízo de razoabilidade. O que, ao final de contas, não deixa de ser uma mera suposição. E isso
significa, em suma, que a imputação objetiva se dá fundamentalmente pela violação de um dever típico
do cargo ou função, que ganha status penal nos crimes de resultado na medida em que se produz o
resultado típico. Para que não se tratasse de responsabilidade objetiva, haveria que se requerer, no campo
da responsabilidade subjetiva, pelo menos uma omissão por imprudência, ou seja, a previsibilidade que a
omissão possa aumentar o risco a bens jurídicos.
164
Essa enumeração foi reformulada por Armin Kaufmann, que criticou esses critérios por não oferecer
nenhuma fundamentação de conteúdo para o reconhecimento dos deveres de garante. Ele passa então a
distinguir entre deveres de garante que desenvolvem uma proteção ao bem jurídico determinado (esses
deveres de custódia podem ser de diferentes tipos: vínculo natural, relações estreitas de comunidade,
assunção voluntária) e deveres que obrigam o garante à supervisão de uma fonte de perigo (dever de
garante derivado de um atuar precedente perigoso, dever de garante para o controle de fontes de perigo e
responsabilidade como garante da atuação de terceiros). Discute esses critérios: JESCHECK, 1996, p.
668-677.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
241
No caso de administradores ou órgãos de uma sociedade, está-se diante de
papéis regulamentados em relação aos quais a gama de deveres está a princípio definida
em lei, estatuto ou contrato.
A previsibilidade em relação ao tipo de responsabilidade a que o administrador
está sujeito nesses casos depende do tipo de previsão legislativa existente ou do grau de
consolidação dos precedentes nos Tribunais. É possível regulamentar a atividade do
administrador por meio do estabelecimento de deveres específicos e determinados ou
por meio de normas gerais de boa administração. Ou ainda pelo primeiro modelo,
complementado pelas normas gerais. Ainda que não se possa antever o momento de
aplicação da norma, a possibilidade de o administrador vir a ser responsabilizado por
crime omissivo tende a ser melhor definida e circunscrita em sistemas em que a
atividade do administrador está regida por normas mais específicas. Normas gerais que
estabelecem deveres de zelar pela boa administração ou bom funcionamento da
empresa, a menos que se tenha uma jurisprudência consolidada a esse respeito, tendem
a dar menos previsibilidade à atividade do administrador e sua condição de garante.
Dessa forma, a definição do âmbito de imputação penal, nesses casos, depende
da combinação entre estratégia legislativa e consolidação do âmbito de responsabilidade
dos administradores pelos tribunais.
No Brasil, a configuração da responsabilidade societária está disposta de modo
fragmentário, mas podem-se indicar como principais dois diplomas legais: a Lei n.º
6.404/76, que dispõe sobre sociedades por ações e o Código Civil, que regula os demais
tipos societários, em especial, a sociedade limitada.
A par de algumas previsões específicas, encontramos nesses diplomas normas
gerais de diligência.
165
Os administradores de sociedades por ações, tanto os membros
do Conselho de Administração quanto os da Diretoria, têm de observar os deveres de
diligência (Lei n.º 6.404/76, art. 153), de lealdade (art. 155) e de informação e
confidencialidade (art. 157). Ademais, respondem se agirem em conflito de interesses
(art. 156 e 254), com violação à lei ou ao estatuto ou se, dentro das suas atribuições ou
poderes, atuarem com culpa ou dolo, causando prejuízos à companhia (art. 158).
165
Para uma descrição mais detalhada dessa regulamentação, bem como de sua aplicação pelos Tribunais
superiores, cf. MACHADO e MÜLLER, 2009 (prelo).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
242
Quanto aos administradores das sociedades limitadas, também se aplica no que
couber o regime jurídico incidente aos administradores de sociedades por ações. O
Código Civil dispõe que o administrador deverá ter, no exercício de suas funções, o
cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na
administração de seus negócios (CC, art. 1011) e responde por perdas e danos
decorrentes de atos praticados em discordância com a maioria dos sócios (CC, art. 1013,
§2º.). Como regra geral, os administradores respondem solidariamente perante a
sociedade e terceiros prejudicados quando desempenha as suas funções com culpa (CC,
art. 1.016).
Diante da abrangência de tais deveres gerais de diligência, é possível pensar que
a possibilidade de imputação de responsabilidade ao administrador de sociedades é
bastante ampla: ele será responsabilizado por qualquer conduta ativa de funcionários no
âmbito da pessoa jurídica, sempre que se puder demonstrar que poderia ter agido com
mais diligência na evitação desse resultado.
Não bastasse isso, há ainda no âmbito dos delitos comissivos por omissão uma
figura que também pode trazer problemas delicados sob o ponto de vista da
indeterminação do preceito: é a do garante com base na ingerência.
Para definir o que seja o garante por ingerência, é preciso olhar para as
características do comportamento anterior; como ele deve se apresentar para ter como
conseqüência a criação de deveres de ação. Há, na doutrina, distintas possibilidades de
definição da ingerência: uma conduta que simplesmente cria um perigo maior que o
habitual ou uma conduta que cria um perigo e ocorre mediante a infração de um dever
jurídico relevante.
A primeira definição, mais corrente, é a que traria mais problemas, pois a
posição do garante deriva simplesmente de um atuar precedente considerado perigoso.
Isto é, não se exige que esse comportamento anterior seja também contrário a um dever,
ainda que culposamente. A conduta anterior deveria simplesmente caracterizar-se como
uma atuação perigosa ao bem-jurídico, ainda que desenvolvida mediante atividade
lícita. E muitas vezes é justamente essa relação de causalidade entre o comportamento
anterior e a realização do risco que pode ficar pouco clara e gerar incerteza para a
atividade do empresário. Situações problemáticas envolvendo a falta de clareza sobre as
conseqüências do comportamento realizado anteriormente deram-se especialmente em
casos envolvendo responsabilidade pelo produto (MACHADO, 2007).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
243
Esse foi o caso – que ficou bastante famoso na Alemanha como leading case da
responsabilidade pelo produto – da imputação de responsabilidade aos diretores da
fábrica pelos danos à saúde atribuídos ao spray para limpeza de couros Lederspray. Os
diretores da fábrica foram condenados pelas lesões à saúde de consumidores, em
omissão imprópria por ingerência, por não terem retirado o produto defeituoso de
circulação (apenas suspenderam a distribuição futura). O BGH entendeu que eles
ocupavam a posição de garantes, que decorreria automaticamente dos riscos de sua
própria atividade, sem pressupor infração de dever; mais especificamente, dos riscos
inerentes ao produto que comercializavam. O BGH considerou comportamento prévio
perigoso (ingerência) o exercício da própria atividade empresarial, tida pelo Tribunal
como arriscada em si. 166 A mera condição de diretores de uma sociedade que fabricava
um produto que se mostrou – posteriormente – um foco de perigo foi suficiente para
exigir deles que tivessem feito tudo o que estava a seu alcance para que não
incrementassem objetivamente os perigos da vida cotidiana, sob pena de
responsabilização criminal da omissão. Não era necessário que essa conduta tivesse
envolvido a violação de deveres específicos, bastando o primeiro critério de
periculosidade.
De qualquer forma, exigiu-se deles que tivessem se comportado como garantes,
o que significa dizer: que tivessem tomado medidas mais incisivas para reverter o
possível dano iniciado à saúde dos consumidores. A controvérsia em relação ao caso em
questão é agravada, ainda, na medida em que não era clara desde o início a condição
perigosa do produto nem da atividade. Isso determinou também falta de clareza em
relação à situação de garante que seria atribuída aos diretores e aos deveres que lhes
seriam exigidos a esse título. Situações como esta, contudo, nos parece cada vez mais
prováveis de acontecer, especialmente quando se trata de ramos de atividade que
envolvam forte uso de tecnologia.
166
“La conduta previa de los cuatro acusados que originó el peligro consistió em que, como directivos de
las empresas, introdujeron em el mercado los sprays cuyo uso normal podía causar daños en la salud de
los usuarios. Que se trataba de productos peligrosos para la salud (...) se deduce de las consideraciones
que han sido realizadas con la prueba de la relación de causalidsad entre el uso del spray y la
producción de los daños (....) Y tampoco es admisible el argumento del recurrente de que la impresión de
la peligrosidad del spray en todo caso sólo se confirmó después de la reunión de los directivos y que sólo
la distribuiciónn posterior a esse momento o el mantenimiento del producto en el mercado es lo que
puede parecer ‘contrario al deber’. La contrariedad a deber objetiva de la conduta previa no requiere
que el agente infrinja ya sus deberes de cuidado y que se haya comportado, por tanto, de modo
imprudente (...) Es suficiente com la desaprobación jurídica del resultado peligro” (BGH, 117/118 –
tradução HASSEMER, MUNOZ CONDE, 1995).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
244
Seguindo essa forma de configurar a ingerência, o que se tem é o
estabelecimento de uma responsabilidade especial ou um dever geral daqueles que
ocupam órgãos diretivos da empresa de excluir todos os perigos derivados da
exploração do negocio, da configuração da empresa e de seu procedimento produtivo167.
Encontramos na doutrina alemã uma série de posições que, no mesmo sentido da
decisão do BGH, defendem a colocação do garante com base na ingerência e a
fundamenta no reconhecimento da função de mando inerente ao cargo de
administradores (cf. HERZBERG, 1972, p 321). Ou seja, a posição de garante se
apoiaria no estabelecimento de uma relação de trabalho fática e limitada no espaço pelo
empresário e nas relações de autoridade.
168
No mesmo sentido, BOTTKE (1996, p.
142) defende que todo dever de garante pressupõe como “momento real” para sua
fundamentação, ao lado do momento normativo, uma organização fática de um círculo
vital do garante.
Esse tipo de solução, como argumenta Frisch, seria o mais justo, pois teria como
fundamento a submissão do âmbito de responsabilidade ao espaço de liberdade
previamente existente169. O componente fático da responsabilidade do órgão no âmbito
167
Para uma análise mais detalhada desse caso, cf. MACHADO, 2007.
168
São por causa das relações de autoridade que a comunidade pode confiar no controle de pessoas
perigosas pelos superiores (LK-JESCHECK, 1985, § 13, n. 45); cf. NOLL, 1972, p. 20 e ss. para quem, a
responsabilidade justifica a competência, a competência justifica a responsabilidade; também LAMPE é a
favor de um dever de garante geral dos superiores, (cf. LAMPE, 1976, p 48). Há proposta de basear a
posição de garante para evitar delitos nas faculdades de mando, no domínio sobre a causa do resultado –
domínio da organização sobre pessoas perigosas (RUDOLPHI, 1992). BOTTKE critica essa posição: não
é possível fundamentar no ser (do exercício do poder de mando) o dever de paralisar perigos (p. 135).
Sobre as posições heterogêneas acerca do fundamento da posição de garante, v. BOTTKE 1996, p. 132 ss.
A posição de Jakobs restringe o fundamento da posição de garantes a deveres: os deveres de garante
devem ser fundamentado na responsabilidade em virtude de uma competência institucional. Ou seja, a
possível posição de garante dos administradores ou titulares e deveria estar fundamentada em seus
deveres em virtude da competência de organização. (JAKOBS, 1991, p. 29/26 e ss. 29 e ss.).
169
“el auténtico fundamento normativo de la posición de garante estriba en la ponderación de intereses.
Dicha ponderación pretende responder a la pregunta acerca de quién es especialmente competente, de
acuerdo con los princípios de distribución adecuada de libertades y de cargas (y aparte de lo que
constituya deberes de solidadriedad general), para evitar que se produzcan determinados cursos causales
peligrosos para bienes jurídicos de terceros. El caso más simple de dicha responsabilidad especial es el de
la competência atribuída para excluir los peligros que pudieran derivarse de la própria actuación: quién
ejerce la libertad de configurar su conducta de forma autônoma y excluyendo la intromisión de terceras
personas debe, a cambio, preocuparse de que su acción no implique peligros. Esta no es solo la solución
más simple y oportuna desde el punto de vista de los bienes jurídicas (puesto que el sujeto actuante es
quien mejor puede conocer y suavizar el potencial de peligro inherente a sua acción), sino que, sobre
todo, se trata de la distribuición de cargas más adecuada y justa: no se pueden ejercer las libertades (y las
ventajas que resultan de las mismas) y esperar que sean los terceros quienes se preocupen de reducir las
posibles dificultades que dicho ejercício de las libertades pueda causar (FRISCH, 1996, p. 112-113).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
245
das omissões negligentes parece ser, neste ponto, o componente ligado à garantia da
culpa penal, pois evita a imputação de responsabilidade a órgãos ou diretores que não
tenham tido conhecimento da situação fática e possibilidade de atuar.
Em suma, a colocação do administrador na posição de garante é, como se vê, um
tema bastante controvertido e da maior importância, sendo que deles muitas questões
problemáticas podem ser levantadas.
Em primeiro lugar, nos parece problemática a falta de clareza em relação aos
deveres de cuidado do administrador e conseqüentemente quanto à possibilidade de
virem a ser imputados por crimes, na modalidade omissiva, por condutas praticadas por
terceiros. Zuñiga Rodriguez chama justamente a atenção para o problema da falta de
consenso na doutrina em relação aos critérios que devem ser utilizados para definir a
posição de garante e suas conseqüências que, no limite, atingem o princípio da
culpabilidade: “se corre el riesgo de ‘flexibilizar’ los conceptos de la omisión para
resolver supuestos complejos en los que el peso está en la salvaguarda del deber
jurídico, convirtiendo la norma penal en un mero delito de infracción del deber’
(Pflichtsdelikte) extra-penal. No existe consenso en la doctrina penal en donde recae la
posición de garante, en el titular, en los directivos, en los administradores, en los
asesores, etc.., por lo que imputar responsabilidad en este campo puede conculcar el
principio de culpabilidad que tanto se pretende salvaguardar” (ZUÑIGA
RODRIGUEZ, p. 187 e 188).
Em segundo lugar, para além da idéia de incerteza com relação ao âmbito de
aplicação do tipo, percebemos que prever deveres de diligência gerais aproximam, em
muito, essa forma de imputação da chamada “responsabilidade objetiva”170. É preciso
atentar para a seriedade dessa decisão. A criação de tipos comissivos por omissão, ainda
mais em sua modalidade culposa, tem impactos significativos sobre a liberdade do
indivíduo, pois não se trata de imputar responsabilidade penal apenas no caso em que o
administrador de alguma forma deu pessoalmente causa a um resultado lesivo, mas
também quando não evitou a realização do resultado. Afinal, deve-se notar que um
excesso de imputação nesse sentido poderia sobrecarregar o administrador e
170
Neste sentido, Schüneman critica essa forma de imputação, afirmando se tratar de mera transposição
das figuras da responsabilidade civil para o âmbito do Direito Penal. Ou seja, tratar-se-ia de sancionar
com penas criminais a violação de deveres de cuidado estabelecidos no âmbito civil (SCHÜNEMANN,
2002, p 141).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
246
possivelmente tornar demasiado pesado o fardo que acompanha o exercício de funções
no âmbito da empresa171.
No Brasil, este tema foi raramente abordado pela dogmática e também não existe
qualquer estudo que revele como os nossos Tribunais vêem aplicando tal instituto. Uma
discussão mais profunda sobre esse instituto se faz necessária e deveria incluir a
rediscussão da determinação da Parte Geral do Direito brasileiro, que prevê a posição de
garante por ingerência, sem qualquer definição acerca do critério para definir a
ingerência, desafiando, assim, o mandato de determinação do direito penal e afetando a
segurança jurídica.
2.2 Autoria mediata em virtude do domínio da organização
Outra possibilidade dogmática, defendida por uma corrente de autores172,
pretende fundamentar a atribuição de responsabilidade ao administrador ou membro de
órgão na empresa por atos cometidos por seus subordinados pela via da reinterpretação
do conceito de autoria. A discussão sob essa chave não pressupõe apenas imputar
administradores e órgãos por omissão, mas imputar a título de co-autores (em delitos
comissivos e omissivos).
A partir do conceito tradicional de autoria, que considera autor aquele que
participa dos atos executórios, seria impossível cogitar a co-autoria em boa parte dos
casos envolvendo crimes empresariais, pois é comum que administradores e membros
de órgãos diretivos não executem diretamente os atos descritos pelo tipo penal. Diante
disso, muitos autores passam a sugerir uma reformulação das bases tradicionais do
conceito de autoria, de forma a aplicá-lo também a casos de criminalidade organizada.
A tentativa de resolver este problema de imputação de responsabilidade dentro
da empresa por meio do próprio conceito de autoria utiliza principalmente a figura da
autoria mediata. Desenvolvida primeiramente por Claus Roxin para tratar de casos
171
A decisão sobre o Habeas Corpus n° 83.554/PR, relatada em 15/08/2005 pelo Min. Gilmar Mendes,
aborda essa questão. Ao julgar ação penal impetrada contra o então diretor da Petrobrás Henri Philippe
Reichstul, acusando-o de ser responsável pelos danos causados por um grande vazamento de óleo
praticado pela empresa, o Supremo Tribunal Federal sustentou a inviabilidade de imputar a Reichstul a
posição de garante de toda a atividade da empresa, responsabilização essa que configuraria “um exagero”.
172
Cf. JESCHECK e WEIGEND, 1996, p. 670; JAKOBS, 1997, p. 750 ss; MUÑOZ CONDE, 1999, p.
157; GRACIA MARTIN, 1993.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
247
envolvendo aparatos organizados de poder173, ela vem sendo utilizada para lidar
também com fenômenos ligados à criminalidade empresarial. A partir dessa doutrina,
são considerados autores mediatos os ocupantes de altos cargos que dão ordens, não
intervindo diretamente na execução do ato, mas, entretanto, dominando sua realização
através de um aparato organizado de poder estatal. Seriam também co-autores, neste
sentido, não apenas o chefe máximo de uma organização, mas também todo aquele que
no âmbito da hierarquia transmite a instrução delitiva com poder de mando autônomo.
Ou seja, situações em que é possível a formação de uma cadeia de co-autores,
incluindo-se o executor imediato. O critério para diferenciar co-autores e partícipes é o
chamado “domínio do fato” (Taterschaft) no âmbito da organização. O denominado
“homem de trás” controla o resultado típico por meio da estrutura de poder, sem levar
em consideração aqueles que atuam diretamente como executores, que se caracterizam
por sua fungibilidade e por sua atuação automática no âmbito da organização.
As características dos aparatos organizados de poder seriam, segundo esse
esquema, a pluralidade de sujeitos ativos, a estrutura organizada hierarquicamente com
divisão de trabalho, o mecanismo funcional da organização, que funciona de maneira
automática, a fungibilidade do executor e que o aparato esteja à margem da lei.174
Alguns autores defendem que esse mesmo esquema pode ser aplicado à estrutura e ao
funcionamento interno de uma empresa, ainda que a empresa não cumpra o último
requisito da ilegalidade, na medida em que é uma organização formalizada pelo
Direito.175 Afirma-se que os delitos praticados no âmbito de empresas compartilhariam,
no essencial, das características que permitiriam o reconhecimento da autoria mediata:
há ações que envolvem um grande número de sujeitos, que graças ao pertencimento ao
grupo sentem-se em geral respaldados para adotar condutas de maior risco; há
indeterminação dos sujeitos passivos; há complexidade no nexo causal, em razão da
complexidade da organização e dos seus processos, da divisão do trabalho e da
fragmentação das decisões; há distribuição de funções geralmente vertical dentro da
173
Roxin desenvolveu tal teria em 1963, quando procurou tratar do famoso caso Eichmann, na Alemanha.
174
Cf. MUÑOZ CONDE, 2000, p. 104ss e CEBALLOS, 2002, p. 65. Há uma disputa doutrinária sobre a
imprescindibilidade desses critérios para a imputação do autor mediato. Assim, ROTSCH considera que a
fungibilidade não é imprescindível (cf. ROTSCH, 1998, p. 492). AMBOS considera que não é
imprescindível que o aparato organizado de poder esteja à margem do ordenamento jurídico. Ver
AMBOS, 1998, p. 50. Esses dois autores, entretanto, por outras razões são críticos à aplicação da teoria
de Roxin a empresas.
175
Nesse sentido SCHÜNEMANN, 1979, p. 102 e SILVIA SÁNCHEZ, 1997, p. 40; SILVIA
SÁNCHEZ, 1995, p 368.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
248
empresa e os subordinados são geralmente fungíveis (CEBALLOS, 2002, p. 66-68). A
respaldar tal transposição, o próprio Supremo Tribunal alemão, no obter dictum de uma
de suas decisões, aplicou esta teoria recentemente176.
Entretanto, um setor relevante da doutrina alemã e espanhola, bem como o
próprio Roxin, é crítico e faz uma série de restrições à aplicação desse conceito à
realidade das empresas. Por exemplo, Rotsch afirma que a teoria de Roxin supõe uma
situação de fungibilidade dos executores e de funcionamento automático da
organização, o que não estaria presente no caso de empresas. Para Kai Ambos, em
empresas organizadas de modo hierárquico, não se poderia pressupor a existência de
executores intercambiáveis, no sentido do critério da fungibilidade (AMBOS, 1998, p.
45).
Para além desta crítica interna, que nega a possibilidade de transposição desta
idéia para a realidade das organizações empresárias, há também quem afirme que o
próprio conceito de domínio de fato seja insuficiente. Isso porque ele seria sempre
definido de modo naturalista, quer dizer, em termos de aportes naturalísticos no sentido
da execução do ato. Entretanto, vão afirmar alguns autores, quando se pensa na
realidade que se pretende alcançar, vê-se que a operação da categoria se dá muito mais
em termos de definições normativas, ligada à competência do autor. Tratar-se-ia, por
isso, de verificar a quem se atribui competência sobre as conseqüências de realização do
ilícito (GÓMEZ- JARA DÍEZ, 2006, p. 195 e JAKOBS, 1993, p. 612), abstraindo-se a
questão acerca dos aportes naturalistas e das relações psíquicas entre autor e fato. Em
outras palavras, esta concepção estaria de acordo com uma visão global da imputação
que decorre de decisões normativas sobre os critérios de imputação, tornando-se
necessário que se defina normativamente em que condições administradores e órgãos
devem ser responsabilizados como co-autores. Não estaríamos, portanto, muito
distantes da solução em que abordamos anteriormente, em que se definem
normativamente os deveres dos administradores e órgãos da empresa e em que
circunstâncias sua omissão é relevante para o Direito Penal. Em outras palavras, quando
176
O Tribunal Supremo alemão chegou a afirmar expressamente no obter dictum de sua decisão no
chamado “caso Krenz” que também os problemas ligados à responsabilidade no âmbito da empresa se
deixam solucionar por meio a autoria mediata, cg. BGH, 40, p. 237. Interessante notar, entretanto, que o
próprio Roxin, ao tratar da responsabilização dos administradores e diretores adota posição distinta,
considerando que tais pessoas devem ser responsabilizadas por indutores e não co-autores. (Cf. ROXIN,
2000, p. 682). Há outras opiniões que colocam os administradores em outras posições, como por exemplo
a de FRISH, para quem a intervenção do diretor que planeja e dá ordem é meramente acessória, cf.
FRISCH, 1996 , p. 108.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
249
se trata de adotar uma postura normativa as distinções entre ação e omissão deixam de
ser relevantes. Desse modo, Jakobs, bem como autores que, como ele, defendem a
normativização dos critérios da dogmática penal enfrentam menos problemas para
solucionar a questão da imputação aos dirigentes a título de autores.
A partir deste panorama, percebe-se que a possibilidade de resolver problemas
de imputação por meio da ampliação do conceito de autoria vem sendo intensamente
discutida na doutrina estrangeira. A princípio, não haveria óbices no sistema brasileiro
de reinterpretar o conceito de autoria nesses termos. O debate a esse respeito na doutrina
nacional é, entretanto, bastante incipiente. Além disso, não há estudos específicos que
indiquem como os nossos Tribunais vêem aplicando o conceito de autoria, o que parece
indicar para a necessidade de aprofundar, em vários sentidos, a reflexão acerca das
formas de se solucionar o déficit de regulação representado pelas infrações praticadas
no âmbito de entes coletivos.
2.3 Cláusula de atuação em lugar de outro
No plano da responsabilização individual de administradores, órgãos e
representantes surge como questão relevante a imputação em casos de “delitos de mão
própria”. Formulação comum no âmbito do direito penal econômico, os crimes próprios
exigem (expressa ou implicitamente177) que a ação típica (ou a atuação com domínio do
fato) seja realizada por um sujeito específico, alguém que esteja em determinada
posição (ex. empresário; o gerente; o administrador, o proprietário etc...). Em outras
palavras, nem todo sujeito pode ser considerado autor deste tipo de infração.
A situação apontada por problemática pela doutrina que trata dos delitos
empresariais refere-se a casos em que tais condutas, formuladas a princípio como
crimes próprios, são realizadas (com realização da ação típica ou domínio do fato) no
âmbito da empresa, ambiente em que geralmente vigoram sistemas complexos de
divisão de tarefas, por pessoas (ou conjunto de pessoas) que não necessariamente
ocupam tal posição. Ou seja, a qualidade de sujeito especial não estava presente naquele
que se comportou efetivamente como autor (mediato ou imediato).
177
A exigência implícita se dá em casos em que só a partir de determinada posição é possível realizar
uma determinada ação.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
250
De outro lado, imputar o sujeito qualificado pelo fato realizado pelo sujeito nãoqualificado seria uma imputação por fato alheio, o que violaria o princípio da
culpabilidade. Nesse caso, a solução tradicional determinaria que ninguém fosse
imputado (nem por autoria, nem por participação). Ocorreria uma cisão dos elementos
do tipo entre os atores e seria, assim, produzida uma lacuna de punibilidade (nas
palavras de GRACIA MARTIN, 1995, p. 93).
Para enfrentar situações como essas, alguns ordenamentos jurídicos têm
positivado regras especiais autorizando a extensão da autoria formal dos delitos
próprios àqueles que atuaram no lugar do sujeito qualificado. É o caso da legislação
espanhola, que adotou uma disposição geral a esse respeito. O artigo 15 introduzido
pela Ley Orgánica de Reforma Parcial y Urgente del Código Penal de 25 de junho de
1983 tem a seguinte redação: “el que actuare como directivo u órgano de una persona
jurídica o en representación legal o voluntária de la misma, responderá personalmente,
aunque no concurran en él y si en la entidade en cuyo nombre obrare, las condiciones,
cualidades o relaciones que la correspondiente figura de delito requiera para poder ser
sujeto activo del mismo”. No mesmo sentido, funcionam o parágrafo 14 do Código
Penal
alemão,
o
parágrafo
9°
da
Lei
alemã
de
Contravenções
(Ordnungwiedrigkeitsgesetz), bem como o artigo 12 do CP português. Tais dispositivos
ampliam a autoria nos delitos próprios, incluindo o representante no rol dos seus
possíveis autores.
Ao passo que resolve algumas questões, tal ampliação implica, no entanto, no
surgimento de novos problemas. Do ponto de vista da solução do caso concreto, tais
dispositivos deixam ainda por resolver o problema daquele que atua como
administrador, órgão ou representante de fato, circunstância bastante comum no dia a
dia das empresas. Nesses casos, a lacuna de punibilidade só seria efetivamente resolvida
com a imputação do elemento especial de autoria, não apenas aos que agem
formalmente como representantes daqueles que detém a qualidade especial, mas
também aos representantes de fato.
Surge, assim, uma discussão dogmática importante a esse respeito, a partir das
teorias da representação. A jurisprudência e parte importante da doutrina alemã têm
aceitado um método de “interpretação fática” dos conceitos de órgão e representante, ou
seja, uma interpretação dita “material” dos elementos de autoria. Na doutrina espanhola,
Gracia Martin é o autor que destacadamente defende esta posição: quem assumiu a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
251
tarefa de cumprimento de deveres de outros, deveres estes garantidos com pena, se
colocou na mesma posição do sujeito idôneo e no caso de infringir tais deveres, terá
realizado o mesmo ilícito (GRACIA MARTIN, 1995, p. 98). Tal interpretação fática, no
entanto, parece deixar sempre à análise do caso concreto a decisão sobre a autoria e a
responsabilidade penal pelo fato, o que implica em aceitar um critério altamente fluido e
indeterminado para o processo de imputação. Por este e por outros motivos, questionase a viabilidade de solucionar os problemas regulatórios acima mencionados por meio
da idéia de atuar em lugar de outro, o que nos leva à necessidade de refletir sobre um
novo parâmetro de responsabilização, não mais estruturado na aferição de atos
estritamente individuais para determinação de culpa, mas sim em um padrão coletivo de
condutas, com base na admissão da responsabilização penal da própria pessoa jurídica.
3. O DEBATE DOGMÁTICO EM TORNO DA RESPONSABILIDADE PENAL
DE PESSOAS JURÍDICAS: A RESISTÊNCIA AO INSTITUTO POR PARTE
DA DOUTRINA TRADICIONAL.
Do exposto até aqui, percebe-se que as soluções que procuraram dar conta
da criminalidade econômica apenas flexibilizando os critérios de imputação
individual apresentam sensíveis dificuldades dogmáticas, seja por falta de clareza,
seja por implicarem uma determinação casuística quando da aferição de
responsabilidade. Para além destas deficiências, tais soluções recebem ainda uma
série de críticas em relação à própria conveniência de se responsabilizar
individualmente nestes casos.
Neste registro, costuma-se, por um lado, criticar a ampliação excessiva da
responsabilidade individual e a conseqüente sobrecarga do indivíduo (GÜNTHER,
2000, p. 503), que pode ser observada pelo uso exagerado dos chamados crimes
omissivos impróprios. Por outro lado, questiona-se ainda a eficácia preventiva
deste padrão individual de responsabilização, dado que, em primeiro lugar, ainda
que as pessoas físicas possam suportar a pena (via encarceramento ou outra medida
de privação de liberdade), elas geralmente não dispõem de capacidade financeira
para responder pelo dano causado por suas condutas. Em segundo lugar, não se
pode subestimar a possibilidade de pessoas físicas negociarem junto a outros
agentes da empresa mecanismos que a compensem por sua exposição ao risco por
prática de crime, criando-se, assim, uma espécie de seguro privado que beneficia o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
252
agente potencial ligado à pessoa jurídica, desde que lhe seja possível obter da
empresa quantia suficiente que compense o risco de ser investigado e condenado.
Em suma, há uma larga reflexão crítica acerca da responsabilidade
individual no campo dos ilícitos empresariais e, diante dela, vem crescendo em
importância propostas que buscam adotar padrões de responsabilização coletiva, da
própria pessoa jurídica. Em oposição ao modelo individual, a responsabilização da
pessoa jurídica guardaria algumas vantagens, pois faria com que o ente coletivo
internalizasse os custos do ilícito, o que poderia ser desejável do ponto de vista da
prevenção. Além disso, muitos autores consideram que a pessoa jurídica estaria
mais bem posicionada do que o Estado ou as vítimas para evitar que o crime seja
cometido ou para identificar os indivíduos responsáveis por sua prática.
Não obstante as vantagens apontadas e os diversos argumentos a favor do
instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica178, a adoção desse instituto
mantém-se como um dos assuntos mais polêmicos da atualidade. Ele trás consigo
grandes dificuldades teóricas e, mais ainda, coloca em xeque conceitos tradicionais
da teoria do delito, tais como (e especialmente) os conceitos de ação e de culpa.
Neste registro, torna-se fundamental a reflexão a respeito de se e de como
as categorias da dogmática penal poderiam ser aplicáveis a um modelo coletivo de
responsabilização. Isso porque tal possibilidade de aplicação é vista como um
requisito básico da própria admissibilidade deste instituto nas ordens jurídicas de
cada Estado.
A exemplo disso, uma parte da discussão teórica sobre o tema na Alemanha
aponta para dois caminhos opostos: de um lado, parte dos autores questiona se as
categorias tradicionais de ação e culpa podem servir de parâmetro à análise do
comportamento das pessoas jurídicas; de outro lado, parte da doutrina procura
sustentar que tais categorias devem ser reformuladas, de forma a que possam ser
178
Aqueles a favor da responsabilização penal da pessoa jurídica chamam atenção para o relevante papel
social que tais organizações representam na atualidade, bem como para o crescente aumento do número
de casos onde a pessoa jurídica se apresenta como o autor próprio do delito. A possibilidade de uma
empresa transferir a punição de si para um ou mais indivíduos que a compõem é fortemente criticada.
Mais ainda, costuma-se fazer referência à dificuldade, dados o tamanho e a complexidade de algumas
organizações, de se identificar e individualizar as condutas das pessoas naturais que participam do ato
delituoso. Por fim, mesmo nos casos em que tais condutas podem ser cuidadosamente individualizadas, é
necessário para tanto um longo e demorado procedimento, o que oferece à empresa tempo hábil para
evadir as eventuais vantagens patrimoniais aferidas ilicitamente. Neste sentido, ver HIRSCH, 1995, p.
287-288.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
253
aplicadas não apenas às pessoas naturais, mas também às pessoas coletivas.
O primeiro caminho pressupõe os critérios dogmáticos desenvolvidos pela
escola finalista179 de Direito Penal. No que concerne à ação, esta escola a define
ontologicamente, como uma “alteração do mundo exterior, condicionada pela
vontade de um ser consciente e direcionada a um determinado fim”. Por sua vez,
no que tange à noção de culpa, define-se esta a partir de critérios psicológicos,
afirmando-se que a atribuição de culpa consiste em “uma objeção levantada a uma
pessoa que voluntariamente decidiu-se por um comportamento ilícito, apesar de ter
o dever de se comportar conforme o Direito”.
A análise da responsabilidade penal de pessoas jurídicas a partir desta
perspectiva, que parte das categorias tradicionais de ação e culpa para analisar o
comportamento dos entes coletivos, acaba sendo infrutífera. Isso porque, a partir
de uma concepção ontológica de delito, tudo o que se toma como comportamento
do ente coletivo é, na verdade, uma ação de um ou mais homens que o compõem,
na medida em que apenas pessoas naturais se encontram em condições de decidir
livre e conscientemente a favor ou contra o Direito.
Por esta razão, pensar nas possibilidades dogmáticas de processamento da
responsabilidade penal da pessoa jurídica é algo que vem sendo perseguido,
fundamentalmente, por outro caminho, a nosso ver mais frutífero. Como veremos
mais adiante, este caminho consiste em modificar as categorias de ação e de
culpa180 de tal forma que toda ação tomada em nome da pessoa jurídica passe a ser
179
A Escola Finalista, desenvolvida fundamentalmente por Hans Welzel, pode ser considerada a principal
escola de Direito Penal no século XX. Para tal escola, que encontra grande aceitação até os dias de hoje,
trata-se de perceber que a regulação jurídica da vida em sociedade está determinada por categorias a
priori, isto é, que determinadas estruturas humanas definem necessariamente a forma pela qual uma
conduta poderá ser juridicamente avaliada e regulada. Assim, exemplarmente, Hans Welzel vai afirmar
que o conceito jurídico-penal de Ação não pode prescindir do fato de que todo agir humano é um agir
orientado finalisticamente, ou seja, um comportamento dotado de sentido e de uma orientação final.
Quando se transpõe esta premissa para a análise da possibilidade de responsabilização das pessoas
jurídicas, torna-se necessário, segundo os finalistas, “perceber que os modos de organização e o processo
de atividades reais das pessoas jurídicas constituem para a regulação jurídica dados previamente
estabelecidos (...), no sentido de que os elementos estruturais de tal realidade previamente dada traçam,
por si só, limites à possibilidade de sua valoração e, portanto, ao estabelecimento de possíveis
conseqüências jurídicas”. Cf. GRACIA MARTÍN, 1996, p. 38.
180
Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem um processo
de funcionalização e de desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e
desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser
tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo:
dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão –
também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
254
concebida como ação própria do ente coletivo, e que a sua responsabilização possa
ser fundada em uma culpa própria da organização, diferente da culpa de seus
membros (TIEDEMANN, 1998, p. 1172).
3.1 Sobre a capacidade de ação (em sentido jurídico-penal) das pessoas
jurídicas.
Tradicionalmente concebe-se a ação - enquanto base elementar da teoria do
delito - de forma estritamente ligada às leis naturais. Inicialmente, tal conceito
pressupunha apenas e tão-somente a existência de um nexo causal, e desta forma
servia para afastar da imputação penal aqueles fatos que não podem ser vistos
como causa de um resultado de alteração no mundo exterior. Em um segundo
momento, percebe-se as dificuldades que tal formulação enfrenta para explicar
fenômenos como a tentativa e os crimes de perigo; por essa razão, introduz-se à
exigência de prova de um nexo causal também a verificação da finalidade do autor,
isto é, se o comportamento delituoso foi provocado por um agir finalisticamente
orientado ao ilícito (WELZEL, 1969, p. 33)181.
Partindo-se desta fórmula de ação, na qual tanto o nexo causal
empiricamente verificável quanto a orientação ou finalidade da ação são de suma
importância, é praticamente impossível conceber uma regulação penal sobre o
comportamento das pessoas jurídicas. Isso porque esta formulação parte de uma
perspectiva ontológica, centrada no ser humano enquanto pessoa natural e,
portanto, não pode aceitar uma coletividade dando origem a um nexo causal e,
assim, alterando o mundo exterior a partir de seu próprio comportamento. Mais
ainda, tal perspectiva acaba por não conceber que uma pessoa jurídica possa
orientar seu agir finalisticamente, pois não seria ela que tomaria as decisões de
tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem
re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em
seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática
penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca
extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser
definidos como um Sistema imputável”. Cf. JAKOBS, Günther. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Berlim,
Walter de Gruyter, 1993. Pág. 149. Por estas e outras formulações, parece contraditória a posição que o
próprio Jakobs desenvolve anos mais tarde (JAKOBS, 2002, p. 570) negando a possibilidade de
responsabilização penal da pessoa jurídica. Esta contradição é indicada, pro exemplo, em ALVARADO,
2007, p. 426.
181
Neste sentido, Welzel vai afirmar que “a ação deve ser definida como exercício da atividade finalista
e a omissão como a não-realização de uma ação finalista”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
255
seguir determinados fins, mas sim seus membros (GRACIA MARTÍN, 1996, p. 4041)182. Apenas estes seriam capazes de, finalisticamente, dar origem a um nexo
causal e, assim, de criar alterações no mundo exterior capazes de violar bens
jurídicos relevantes. Vista nestes termos, a conduta (ação ou omissão), pedra
angular da teoria do crime, seria produto exclusivo do homem e a capacidade de
ação exigiria a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da
pessoa individual. A partir desta perspectiva, portanto, costuma-se negar às
pessoas jurídicas capacidade de ação em sentido penal e, conseqüentemente,
possibilidade de estas serem penalmente responsabilizadas (JESCHECK, 1988, p.
204) (ROXIN, 1992, p. 154) (MUÑOZ CONDE, 1989, p. 276).
Esta conclusão, no entanto, não deve ser encarada como necessária, na
medida em que vale apenas e tão-somente se partimos do pressuposto de que a
dogmática penal deve sempre construir seus conceitos com base nos princípios das
ciências naturais e de fundamento ontológico, como é o caso do conceito de causa
e de finalidade da ação.
Partindo de uma perspectiva normativa, segundo a qual o delito não é um
fenômeno meramente físico-natural, mas sim um constructo humano que apenas se
dá em sociedade183, então podemos admitir que a responsabilização de uma pessoa
não pressupõe necessariamente a existência de um nexo causal ou a comprovação
da orientação psicológica de uma ação humana.
A partir da normativização da teoria do delito, percebe-se que o que torna
um comportamento relevante para o Direito Penal não é apenas o fato de ser aquele
182
Segundo Gracia Martín, “às pessoas jurídicas faltam a consciência e a vontade em sentido psicológico,
e com isso a capacidade de autodeterminação”. Mais ainda, afirma que, “no caso das pessoas jurídicas,
sujeito de imputação e sujeito da ação não coincidem, pois elas só podem atuar através de seus órgãos e
representantes, isto é, de pessoas físicas (sujeitos da ação) (...) O elemento portador da possibilidade de
responsabilização penal é sempre e apenas o exercício da vontade, bem como o seu processo de
formação”.
183
“Em sua maioria, as tentativas de reformulação dos conceitos da teoria do delito procedem a uma
funcionalização e desmaterialização de categorias como ação e culpa. Por funcionalização e
desmaterialização entende-se, em linhas gerais, o processo pelo qual estas categorias deixam de ser
tomadas como categorias regidas por leis naturais (por exemplo: causa-efeito) e psíquicas (por exemplo:
dolo), para então serem tomadas normativamente por sua função e significado sociais. Esta visão –
também chamada de “funcionalismo radical” – foi desenvolvida pelo penalista Günther Jakobs, que é
tomado como base para todos que, no debate sobre responsabilidade penal da pessoa jurídica, pretendem
re-descrever a compreensão do que se entende por “pessoa”. Nestes termos, o autor chegou a afirmar em
seu Tratado: “Não se pode aceitar a idéia de que a definição de Sujeito com que trabalha a dogmática
penal pressuponha sempre ingredientes extraídos das pessoas naturais (como corpo e psique), mas nunca
extraídos das pessoas jurídicas (como constituição e membros). Pelo contrário, também estes podem ser
definidos como um sistema imputável”. Cf. JAKOBS, 1993, p. 149.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
256
causa de um resultado ilícito, nem de ser tal ação orientada finalisticamente, mas
sim o fato de tal comportamento representar a violação de um dever jurídico. Se
assim não o fosse, um boxeador que fere seu oponente em uma luta ou um
cirurgião plástico que opera uma paciente deveriam ser imputados por lesão
corporal. Se isso não ocorre é porque, no âmbito de seus papéis sociais, eles não
estão, a partir destes comportamentos, violando quaisquer de seus deveres e,
conseqüentemente, não podem ser responsabilizados. O que interessa ao Direito
Penal, portanto, são apenas os comportamentos que podem ser interpretados como
violações de deveres condensados em normas penais.
Esta nova perspectiva deixa claro que a “humanidade” não é a característica
essencial que define um ente como autor de um delito. Para se cometer um crime, é
necessário que tenha se realizado uma violação de um dever pertencente a um
determinado âmbito de atividade social. Portanto, quando se avaliam os
pressupostos de processo de imputação penal, deve-se levar em conta não o fato de
o autor ser um ser humano (capaz de dar início a um nexo causal e de orientar sua
psique em vista de um resultado ilícito), mas sim o rol de deveres sob
responsabilidade de um ente, cuja violação é o verdadeiro objeto da regulação
penal.
Nessa perspectiva, o Direito não trabalha com um conceito ontológico, mas
sim com um conceito normativo de pessoa, como portadora de direitos e deveres
(KELSEN, 1960, p. 160), que deve ser capaz de organizá-los e defini-los conforme
as regras contingentes de uma dada sociedade. O status de pessoa, nestes termos,
apenas pode ser definido e modulado dentro do sistema social. A punibilidade por
omissão mostra-se como exemplo claro de que o Direito Penal não se interessa
simplesmente por comportamentos que iniciam um nexo causal e culminam em um
resultado ilícito, mas sim, e principalmente, por fenômenos que representam a
violação de um dever por parte de uma pessoa. Nos delitos omissivos, evidencia-se
o fato de que o delito deve ser compreendido normativamente, enquanto violação
das normas penais.
A partir destas considerações, percebe-se que o conceito penal de ação não
precisa necessariamente ser compreendido como comportamento que dá início a
um nexo causal e psicologicamente orientado a um determinado fim. Pelo
contrário, a ação pode ser entendida simplesmente como o comportamento
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
257
realizado por um portador de direitos e deveres socialmente determinados
(“pessoa”). Assim sendo, não apenas as pessoas naturais (seres humanos) seriam
capazes de agir em sentido penal. Na medida em que também as pessoas jurídicas
são “seres sociais”, às quais direitos e deveres são atribuídos e que são
correntemente tratadas como portadoras de papeis sociais, pode-se afirmar que,
segundo tal perspectiva, quando uma associação viola um dever com a poluição
das águas de uma reserva, ela está, de fato, agindo. Ao violar as normas de
proteção ao meio-ambiente, a pessoa jurídica passa a ser objetivamente imputável.
Contra esta concepção costuma-se argumentar que não são as pessoas
jurídicas, mas sim seus membros que realizam de fato o comportamento delitivo e,
portanto, apenas estes últimos devem ser tomados como responsáveis. Com essa
argumentação, que parte de bases ontológicas para afirmar que apenas pessoas
naturais podem realizar qualquer comportamento, pretende-se combater a
formulação de um conceito de ação próprio à pessoa jurídica, independente de seus
membros.
184
No entanto, esse argumento só tem força se for aceito o conceito de
ação como alteração no mundo exterior finalisticamente orientada.
Ao compreender comunicativamente o mecanismo do processo de
imputação penal, parte da doutrina alemã tem afirmado a possibilidade de se
responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica. Isso significa aceitar uma nova
fórmula para o conceito geral de ação, para o qual também pessoas jurídicas
podem ser tomadas como autores de um delito, reconhecimento este derivado da
existência comunicativa de uma “ação complexa”, diferente das contribuições
parciais de cada indivíduo que participou do nexo causal do crime imputado.
A avaliação de um comportamento como delitivo, portanto, não depende de
critérios ontológicos, mas sim do sentido social que se atribui para um fenômeno
que se apresenta como violação de um dever normativo. Partindo destes novos
termos, torna-se possível sustentar, dogmaticamente, que também uma pessoa
jurídica pode ser sujeita à imputação penal, na medida em que também ela pode ser
tomada como portadora de direitos e deveres e que a ela pode ser atribuída a
responsabilidade pelo complexo de ações de seus membros, cujo significado
184
Tentativas de formulação de um conceito de ação próprio às pessoas jurídicas podem ser verificadas,
guardadas as diferenças pontuais entre cada proposta, em EHRHARDT, 1994, p. 239; HIRSCH, 1995,
289; TIEDEMANN, 1998, 1172; HEINE, 1996, p. 211.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
258
normativo-social condensa-se em uma “ação” violadora de um rol de deveres.
3.2 Sobre a capacidade de culpa das pessoas jurídicas
A capacidade de culpa dos entes coletivos também é um tema polêmico no
âmbito dogmático e tem importância fundamental quando da reflexão acerca dos
fundamentos da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Ainda que se aceite que a responsabilidade penal coletiva é uma boa
solução institucional para lidar com a criminalidade praticada no âmbito das
pessoas jurídicas, torna-se indispensável definir como atribuir tal responsabilidade.
Da mesma forma que a criação de um conceito “normativo” de ação levanta a
necessidade de se determinar em que circunstâncias o ato de um ou vários
indivíduos deve ser considerados como ação de uma pessoa jurídica, a
possibilidade de pensar em uma capacidade de culpa dos entes coletivos aponta
para a necessidade de se determinar como se devem apurar os elementos que irão
embasar a culpabilidade em relação aos atos das pessoas jurídicas e demais
coletividades.
Um dos possíveis fundamentos para imputar a pessoa jurídica pode ser visto
na idéia de responsabilidade por fato de outrem, cujas origens remontam ao
Direito civil. Em termos esquemáticos, pode-se dizer que, segundo este modelo,
para que a empresa possa ser responsabilizada por atos de seus empregados, seria
necessário observar fundamentalmente três requisitos. Em primeiro lugar, deve-se
verificar, logicamente, que houve um crime cometido por um empregado da
empresa. Em segundo lugar, a ação deve ocorrer no exercício de sua função, sendo
que uma ação fora deste quadro não poderia ser tomada como sendo de
responsabilidade do ente coletivo. Finalmente, deve haver o propósito de agir em
favor da empresa, sendo irrelevante a existência do propósito de favorecimento de
si próprio ou de terceiros, bem como a questão sobre se tal favorecimento de fato
ocorreu (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 547 – 548).
Desenhada desta forma, a responsabilidade penal do ente coletivo torna-se
absolutamente dependente da responsabilidade penal da pessoa física que cometeu
o ato, de modo que ele vem a responder penalmente mesmo que o subordinado não
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
259
tenha permissão para agir ou ainda tenha contrariado uma proibição expressa nesse
sentido, escusando-se, em contrapartida, quando a pessoa física não se fizer
punível (KREMNITZER/ GHANAYIM, 2001, p. 542-543).
Trata-se, portanto, de um modelo que leva em consideração, tanto para a
atribuição da conduta à pessoa jurídica, quanto para apuração de culpabilidade
apenas o indivíduo (partindo, assim, da conjugação de um modelo de ação
individual com um modelo de culpabilidade individual). Por ser fundado na
atuação individual, este sistema trás consigo uma série de dificuldades. Segundo
Günther Heine, tal modelo teria utilidade somente no âmbito de empresas de
pequeno porte, mostrando-se insuficiente quando se tem em consideração a
complexidade atual da organização empresarial, que não permite a identificação da
pessoa física responsável, nem dos representantes hierarquicamente superiores
responsáveis pelo crime (HEINE, 2001, p. 58). Mais ainda, seria possível
identificar um efeito colateral de ampliação da responsabilidade das pessoas físicas
no Direito penal (já que quanto maior a extensão da responsabilidade do indivíduo,
maior a dos entes coletivos), bem como uma equiparação da responsabilidade
individual com a coletiva e uma dificuldade em se controlar toda a coletividade por
meio do controle da ação de um indivíduo isoladamente (HEINE, 2001, p. 59).
Tais dificuldades ficam claras quando analisamos a aplicação da
responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil. Em nosso país, embora a regra
geral de responsabilidade penal seja construída com base em um sistema de culpa
própria e de imputação individualizada consagrado na Parte Geral do nosso Código
Penal185, nos casos em que se admite a responsabilização penal da pessoa
jurídica186, vem se partindo claramente de um sistema de responsabilidade por fato
185
Fazendo com que, na maioria das infrações praticadas em âmbitos coletivos, o administrador ou
funcionário da pessoa jurídica responda criminalmente apenas em razão de sua própria ação ou omissão
(quando a omissão for imputável), e apenas na medida da sua culpabilidade, conforme Arts. 13 e 29 do
Código Penal.
186
A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições relativas à
responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173, §5° determina que “a lei, sem
prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade
desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem
econômica e financeira e contra a economia popular”. O art. 225, § 3°, por sua vez, dispõe que “as
condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos
causados”. Para regulamentar estes dispositivos, surge em 1998 a Lei nº. 9.605 (mais conhecida como Lei
dos Crimes Ambientais), que passa a prever, em nível infraconstitucional, a responsabilidade penal da
pessoa jurídica. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa jurídica foi estabelecida da seguinte
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
260
de outrem. A comprovar esta tese, estudo empírico desenvolvido recentemente em
acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores (STF e STJ) julgados entre 2005 e
2007, sobre o tema da responsabilidade de administradores de empresas 187 mostra
que a maioria das decisões em matéria penal versa sobre o trancamento de ações
penais, tendo predominância as decisões que determinam o encerramento da ação
penal com base em falta de prova para autoria ou ausência de individualização da
conduta. O entendimento predominante nos Tribunais vem sendo proferido no
sentido de que é necessária a imputação do co-réu pessoa física para que se possa
processar criminalmente a pessoa jurídica. No âmbito do processo penal esta regra
se desdobra na necessidade de que as condutas sejam bem descritas e
particularizadas já no momento da dedução de acusação (CPP, art. 41) e,
evidentemente, que a condenação seja expressão da verificação da culpa individual
do acusado, recebendo este também uma pena determinada a partir de
circunstâncias judiciais individualizadoras (CP, art. 59).
Disto extrai-se a conclusão de que, por exigir a identificação da pessoa
física para figurar como co-réu, o modelo de responsabilidade por fato de outrem
cai novamente diante da extrema dificuldade de individualizar condutas e de
provar a autoria em
âmbitos
altamente diferenciados
e funcionalmente
estruturados. Desta forma como vem sendo entendida a responsabilidade da pessoa
jurídica, qual seja, de forma estritamente ligada à culpabilidade de um indivíduo
forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o
disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou
contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a
responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes
do mesmo fato”. Nestes termos, a responsabilidade de entes coletivos é atualmente aplicável, portanto,
somente a casos envolvendo crimes contra o meio-ambiente.
187
A pesquisa “Responsabilidade dos administradores de sociedades empresariais na jurisprudência do
STJ e STF”, coordenada por Marta Machado e Viviane Muller Prado foi desenvolvida com o apoio da
Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, com o objetivo de verificar a concretização do regime
jurídico de responsabilização civil e penal de administradores de sociedades empresariais a partir da
análise quantitativa e qualitativa da jurisprudência dos Tribunais Superiores do Brasil – Supremo Tribunal
Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). O levantamento jurisprudencial foi realizado com
base nos instrumentos de busca disponibilizados nos sites dos Tribunais e seus respectivos bancos de
dados, por meio de palavras-chave que fossem capazes de abranger as decisões acerca da
responsabilidade dos administradores de empresa, a saber: “responsabilidade e administrado$”,
“responsabilidade e gerent$”, “responsabilidade e direto$”, “responsabilidade e conselheir$”,
“responsabilidade e gesto$”, “denúncia e administrado$”, “denúncia e gerent$”, “denúncia e direto$”,
“denúncia e conselheir$” e “denúncia e gerent$”. O levantamento teve como limite temporal 01.01.05 a
01.04.07. Após a exclusão manual de decisões que não se aplicavam à pesquisa, foram analisados 276
acórdãos, sendo 270 casos julgados pelo STJ e 6 julgados pelo STF. No que diz respeito à matéria, 224
acórdãos versam sobre matéria não penal e 52 acórdãos são de matéria penal. Para informações mais
detalhadas, cf. MACHADO, M.; MÜLLER, V.; GANZAROLLI, M.; MARQUES, L. 2009.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
261
que a ela pertence, o modelo de responsabilidade coletivo, tal qual aplicado hoje
em nosso país, pouco consegue enfrentar e superar as dificuldades derivadas de um
modelo de imputação estritamente individual.
Diante destas dificuldades, um outro caminho dogmático, através do qual
torna-se possível pensar no fundamento da responsabilidade penal da pessoa
jurídica, é aquele que não depende da apuração de responsabilidade de seus
membros mas sim de uma culpa própria dos entes coletivos (KREMNITZER/
GHANAYIM, 2001, p. 560).
Neste contexto, a possibilidade de se conceber a pessoa jurídica como um
ente capaz de culpabilidade torna-se uma discussão fundamental, se o que se
pretende é oferecer instrumentos dogmáticos adequados para tratar do déficit de
regulação vivenciado hoje frente às infrações praticadas no âmbito de entes
coletivos.
Tal reflexão sobre a capacidade de culpa da pessoa jurídica, da mesma
forma que ocorre com a discussão sobre sua capacidade de ação, também enfrenta
obstáculos dogmáticos significativos. Da perspectiva da dogmática tradicional, não
apenas a categoria da ação é tida como instransponível aos entes coletivos, sendo
que também o conceito de culpabilidade costuma ser usado para negar a
possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas.
A doutrina tradicional toma os entes coletivos como seres sem capacidade
de
culpa.
Apoiada
nos
dogmas
“societas
(HUNGRIA/FRAGOSO, 1978, p. 628-631)
188
delinquere
non
potest”
e “nulla poena sine culpa”, afirma-
se que o conceito penal de culpa não pode ser aplicado a entes diferentes das
pessoas
em
sentido
natural
(EHRHARDT,
1994,
p.
45).
Isso
porque,
tradicionalmente, a noção de culpa pressupõe a existência de um ente com
capacidade
de
livre
auto-determinação
moral
(freie
und
sittliche
Selbstbestimmung), capacidade esta que apenas seres humanos poderiam ter
(GRACIA MARTIN, 1995, p. 66).
188
Já a assertiva de Nelson Hungria e Heleno Fragoso expressavam este entendimento tradicional. Neste
sentido, a emblemática assertiva de Hungria-Fragoso de que “no direito brasileiro, o princípio ‘societas
delinquere non potest’ é regra absoluta”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
262
No entanto, tal forma de considerar o conceito de culpa vem sendo criticada
por muitos autores, que procuram reformular este conceito, colocando-o em termos
normativos. Tal perspectiva levanta a objeção de que, em muitos casos, também os
entes coletivos são considerados portadores de direitos e deveres, deveres estes
que, se violados, têm por conseqüência a atribuição de sanções.
Segundo essa perspectiva normativa, a atribuição de culpa a um sujeito deve
ser sempre analisada a partir da conformação contingente de uma dada sociedade,
composta de portadores de direitos e deveres. Nestes termos, a característica
fundamental de uma pessoa não é o seu status de ser humano, mas sim o fato de
esta pertencer a uma sociedade que depende de normas que atribuem direitos e
deveres a seus membros. É esta atribuição de direitos e deveres, portanto, que
caracteriza uma pessoa no mundo jurídico, permitindo que esta participe da
sociedade.
É a partir desta normativização da própria idéia de pessoa que a noção de
culpa vem sendo reformulada. Esta não é mais entendida nem como nexo psíquico
entre a ação e o autor, nem como reprovação por um uso desviante da liberdade de
ação do homem. O que vem sendo afirmado, assim, é que o desvalor promovido
pela atribuição de culpa não é dirigido à simples consciência de se agir
ilicitamente189, muito menos ao exercício reprovável do livre-arbítrio, isto é, à
liberdade de se escolher entre um comportamento lícito e um ilícito. Pelo
contrário, o desvalor da culpa se relaciona com a possibilidade de organizar seu
próprio comportamento dentro das fronteiras da norma (JAKOBS, 1993, p. 24).
Para estas teorias mais recentes, portanto, a compreensão do conceito de
culpabilidade não deve se restringir à existência ou não de uma vontade humana e
livre; o que deve ser analisado é se uma pessoa – enquanto portadora de direitos e
deveres – possui a capacidade de organizar seu comportamento de forma a
observar as normas que regram a vida em sociedade.
Já que as normas jurídicas apenas fixam fronteiras, dentro das quais os
comportamentos dos seres sociais podem se mover, a tarefa de uma pessoa passa a
ser organizar seu círculo de comportamentos de forma que isso não atinja esferas
189
Afinal, isso significaria, no limite, aceitar que há culpabilidade tanto nos crimes por culpa inconsciente
quando nos casos em que se verifica um erro de proibição vencível. O argumento é de JAKOBS, 1993. p.
25.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
263
de liberdade alheias. Nestes termos, pelo fato da noção de culpa não mais depender
de elementos puramente psicológicos (HIRSCH, 1995, p. 292) (como a consciência
do ilícito, por exemplo), mas sim da capacidade de organização das próprias
esferas de liberdade atribuídas pelas normas jurídicas, percebe-se que o conceito
penal de culpabilidade não está necessariamente ligado à idéia de ser humano, mas
sim e apenas à idéia de pessoa, enquanto portadora de direitos e deveres.
Esta mudança radical de perspectiva tem profundos efeitos sobre a
discussão a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Se o alvo
legítimo da reprovação feita pela atribuição de culpa é a pessoa enquanto portadora
de direitos e deveres, e não apenas o ser humano concebido ontologicamente, então
todos os entes dotados daquele status podem ser capazes de agir com culpa. Isso
significaria atribuir capacidade de culpa também às pessoas jurídicas, na medida
em que também elas, e não apenas os homens, seriam dotados da capacidade de se
organizar dentro das fronteiras estabelecidas pelas normas jurídicas.
190
Da mesma forma que a ação da pessoa jurídica não deve ser identificada à
ação executada por um ou mais de seus membros, também a culpa daquela não
deveria ser tratada como a culpa destes. Pelo contrário, a culpabilidade dos entes
jurídicos deveria ser entendida como decorrente de uma organização defeituosa da
ação complexa por eles executada, independente das ações individuais que a
compõem. Em vários países onde uma pessoa jurídica tem o dever de criar
programas de execução lícita de suas ações, fala-se de um dever imputável ao ente
coletivo em si, e não às pessoas naturais que dele fazem parte; se este programa de
execução lícita das ações coletivas não é formulado, ou mesmo se a pessoa jurídica
age reiteradamente por vias ilícitas que culminam no cometimento de delitos, falase da responsabilização da própria pessoa jurídica, e não de seus membros. Tal
imputação tem por fundamento o fato de que os comportamentos no âmbito
coletivo não foram organizados dentro das fronteiras estabelecidas pelas normas
jurídicas; em poucos termos: fundamenta-se na culpabilidade da pessoa jurídica.
Se o reconhecimento de capacidade de culpa depende da possibilidade que
um ente tem de organização seu comportamento dentro das fronteiras normativas,
190
É neste sentido que se afirma que o conceito de culpa deve, sim, estar vinculado à noção de liberdade,
que, no entanto, não deve fazer referência ao livre-arbítrio, mas sim à “liberdade de organizar
autonomamente os próprios comportamentos” (Cf. JAKOBS, 1993, p. 34).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
264
então se deve reconhecer que, se tal possibilidade não existe, a este ente não pode
se atribuir um agir com culpa. Nesta perspectiva a capacidade de culpa não
depende simplesmente da consciência da antijuridicidade do ato cometido (como
afirmava a doutrina tradicional), mas sim da condição de organizar o próprio
comportamento de acordo com o Direito. Se tal capacidade inexiste no caso
concreto, então a “pessoa” não age com culpabilidade e, portanto, não pode ser
alvo de uma reprovação penal. Isso significa que não apenas os entes naturais, mas
também os entes coletivos podem ser considerados incapazes de culpa; este seria,
por exemplo, o caso da empresa que pratica atos considerados crimes, que não
seria sequer dotada de status de pessoa jurídica, e que, portanto, não é alvo regular
da atribuição do dever de organização lícita de seus próprios comportamentos.
Diante destes pressupostos, alguns modelos de culpabilidade própria se
desenham nos últimos tempos, como forma dogmática de fundamentar uma
responsabilidade independente daquela que por ventura possa haver em relação ao
indivíduo.
A culpabilidade por defeito de organização (“Organizationsverschulden”)
Uma primeira perspectiva a ser mencionada no sentido de um modelo de
imputação baseado na responsabilidade subjetiva da própria empresa (culpabilidade por
defeito de organização) encontra-se na proposta de Klaus Tiedemann, que busca
reformular o tradicional princípio da culpabilidade, adaptando-o às relações internas das
pessoas jurídicas e fundamentando sua responsabilidade com base em categorias sociais
e jurídicas.
Conforme o autor, a 2ª Lei Alemã para Luta Contra a Criminalidade
Econômica191, datada de 1986, reformou o § 30 da Lei de Infrações Administrativas
(Ordnungswiedrigkeitsgesetz), introduzindo como sanção contra empresa uma espécie
de multa (“Bebußung”), que deixou então de ter caráter meramente acessório. A partir
deste momento, teria surgido uma forte discussão acerca da natureza jurídica dessa
sanção (TIEDEMANN, 1988, 1171).
191
“2. Gesetz zur Bekämpfung der Wirtschaftskriminalität, 1986“.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
265
Ao interpretar a nova redação do § 30 da Ordnungswiedrigkeitsgesetz,
Tiedemann procede a uma re-elaboração do conceito de culpabilidade para as pessoas
jurídicas. Tal artigo, ao prever a aplicação de multa direta a um ente coletivo,
evidenciaria que os destinatários da norma penal são as próprias pessoas jurídicas
mencionadas neste texto legal (e não os membros que delas fazem parte). Por prever a
imposição de multa à pessoa jurídica também nos casos em que seus membros cometem
ilícitos penais, o dispositivo traria implícito o fato de que os entes coletivos podem ser
destinatários de normas penais. Esta constatação, afirma Tiedemann, permitiria afirmar
que estaria, a partir de então, aberta a possibilidade de imputação penal de uma ação
praticada pela pessoa natural como ação própria da pessoa jurídica (TIEDEMANN,
1988, 1171) (EHRHARDT, 1994, p. 186-187), isto é, de responsabilização referente a
uma ação própria da pessoa jurídica, ainda que esta tenha sido, in concreto, executada
por um de seus membros (TIEDEMANN, 1988, p. 1172)192.
Como se percebe, Tiedemann parte do pressuposto de que as pessoas jurídicas
possuem capacidade de ação em sentido penal. No entanto, para que se possa
responsabilizá-las pela comissão de delitos, é necessário que estas sejam, também,
capazes de culpa, isto é, culpáveis.
Ao analisar este ponto, Tiedemann afirma que a exigência de culpabilidade que a
nova redação do § 30 da Ordnungswiedrigkeitsgesetz traz consigo seria inferior à
exigida no âmbito do Direito Penal tradicional. Isso porque a multa prevista nesta lei
poderia ser alocada entre as sanções administrativas e as sanções penais
(TIEDEMANN, 1988, 1172). Neste sentido, este autor afirma que seria possível
formular, para os casos de delitos cometidos por entes coletivos, um conceito de
culpabilidade diverso do usado em casos de delitos cometidos por pessoas naturais: se
nestes a noção de culpabilidade está fundamentalmente vinculada a uma “reprovação
192
Discutível é até que ponto uma ação cometida por pessoa natural dentro do âmbito da empresa deve
ser tomada como ação própria do ente coletivo. O problema é trabalhado por SCHROTH, 1993, p. 189 e
seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
266
ética frente ao agir individual contra a norma” (TIEDEMANN, 1988, 1172)193, naqueles
tal noção deveria ser orientada por “categorias sociais e jurídicas”194.
Esta nova orientação do conceito de culpa, capaz de fundamentar a
responsabilidade penal das pessoas jurídicas, pode ser chamada de “culpabilidade por
defeito de organização”. Segundo Tiedemann, a pessoa jurídica seria responsável pelos
fatos realizados por seus membros sempre que ela e seus órgãos não tenham tomado as
medidas de cuidado ou vigilância necessárias à garantia de uma atividade não-delitiva
(TIEDEMANN, 1988, p. 1172)195. No âmbito da pessoa jurídica (como uma empresa,
por exemplo), todo delito ou infração administrativa dos seus órgãos representantes
surgiria como um erro do próprio ente coletivo, a não ser que se esteja frente a um caso
de “excesso de representação”196. Nestes termos, o ato individual deveria ser tomado
como ato próprio do ente coletivo, na medida em que este tenha se omitido em tomar
medidas de prevenção necessárias ao desenvolvimento lícito de suas atividades. Como
se percebe, esta responsabilização não se dá por conta do fato individual, cometido pela
pessoa natural, mas sim por conta da falta de cuidado do ente coletivo, que em um
momento anterior poderia ter evitado a ocorrência do delito (TIEDEMANN, 1988, p.
1173). Este fator omissivo, afirma Tiedemann, seria o elemento capaz de fundamentar a
reprovação penal frente a pessoas jurídicas.
O princípio de imputação que está por trás deste raciocínio não seria novo para o
Direito Penal. Pelo contrário, seria possível, segundo Tiedemann, reconhecê-lo
193
Tiedemann fala de um “agir pessoal moralmente defeituoso” (“eine als persönliche sittliche
Fehlleistung”).
194
“einer an sozialen und rechtlichen Kategorien ausgerichteten Schuldbegriff”. Cf. (TIEDEMANN,
1988, 1172). Neste texto, Tiedemann ainda não deixa claro o que entende por essa expressão.
Posteriormente, no entanto, o autor a clarifica um pouco mais, afirmando que se trata de interpretar de
estender e interpretar o conceito de culpabilidade “no sentido de uma responsabilidade social”. Cf.
TIEDEMANN, 1993, p. 233.
195
Neste mesmo sentido, Schroth afirma que a culpabilidade da pessoa jurídica não deve ser vista como
sendo puramente vinculada ao órgão autor do delito; pelo contrário, ela deve ser tomada como
culpabilidade funcional (funktionale Organschuld), isto é, como fruto da imputação de um
comportamento culposo do órgão à pessoa jurídica que ele representa. Tratar-se-ia de uma culpa por
defeitos de organização do ente coletivo. Cf. SCHROTH, 1993, p. 203-204.
196
Com este termo se designa todo ato ou conjunto de atos que, embora tomado dentro do âmbito da
pessoa jurídica, constitua abuso funcional por parte da pessoa natural que dela faz parte. Neste caso,
logicamente, a pessoa jurídica não deveria arcar com a responsabilidade pelo delito cometido, pois a ela
não pode ser imputado um dever de evitar comportamentos que excedam as funções internamente
distribuídas para persecução de sua atividade. Apontamentos críticos sobre os limites estabelecidos pela
idéia de “excesso de representação” podem ser encontrados em SCHÜNEMANN, 1994, p. 284-285.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
267
claramente na fundamentação de punibilidade nos casos de actio libera in causa
(TIEDEMANN, 1989, p. 170). Aqui, como na previsão do § 30 da OWiG, haveria uma
espécie de responsabilização por um ato cometido em momento de ausência de
culpabilidade, ou em que a aferição desta é irrelevante para a imputabilidade197. A
aferição de culpabilidade referente ao ato praticado pela pessoa natural seria, assim,
irrelevante na medida em que a responsabilidade pelo ato se baseia num comportamento
reprovável anteriormente ocorrido (no caso, na omissão de organização por parte da
pessoa jurídica) (TIEDEMANN, 1988, 1173). Seria a violação, por omissão, de um
dever de vigilância (Aufsichtspflichtverletzung)198 que fundamentaria a culpabilidade do
ente coletivo, com base em um defeito de organização a ele imputável.
O modelo de Tiedemann foi uma das primeiras tentativas profícuas de
desenvolvimento e re-elaboração da categoria de culpabilidade, de modo a que se
pudesse aplicá-la também às pessoas jurídicas. Com a idéia de culpabilidade por defeito
de organização, Tiedemann introduziu no debate dogmático o entendimento de que há
casos em que os entes coletivos têm uma posição de garante sobre as ações de seus
membros, estando obrigados por tal posição a se organizarem corretamente. Ainda que
muitos de seus argumentos tenham sido posteriormente criticados (GÓMEZ-JARA
DÍEZ, 2005, p. 156-159), fato é que muitos autores seguiram Tiedemann no intento de
novas formulações de categorias dogmáticas, buscando adaptar a teoria do delito
tradicionalmente individual às novas tendências e necessidades político-criminais da
criminalidade coletiva. Nos próximos itens, a fim de ilustrar a discussão sobre a criação
de modelos de imputação próprios para a pessoa jurídica, escolhemos dois autores que
buscaram repensar sistematicamente essa questão: Ernst-Joachim Lampe e Günther
Heine. Não pretendemos, entretanto, por fugir ao escopo do presente estudo, esgotar o
panorama dessa discussão, devendo-se mencionar que há outros autores que também
articularam propostas também consistentes (por exemplo, GÓMES JARA DÍEZ, 2006;
SCHROTH, 1993; e EHRHARDT, 1994).
197
É o caso, por exemplo, do indivíduo que se alcooliza propositalmente, sabendo que neste estado
cometeria um delito. Pelo princípio da actio libera in causa, tal indivíduo deve ser penalmente
responsabilizado, ainda que seu estado psíquico esteja alterado pelo consumo de álcool a ponto de afetarlhe a capacidade de consciência de ilicitude (o que pode levar a se atestar uma incapacidade de
culpabilidade). A idéia norteadora de tal princípio consiste na noção de que ninguém deve se beneficiar
de uma auto-colocação em estado de inconsciência, isto é, ninguém deve poder ser tomado como incapaz
de culpa se este estado foi artificial e intencionalmente promovido.
198
Tiedemann engloba neste conceito “deveres e medidas de cuidado, de controle e de organização,
exigíveis na estruturação de uma pessoa jurídica que pretende exercer sua atividade licitamente”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
268
A culpabilidade referente ao injusto de sistema (“Systemsunrecht”)
Diante das correntes que intentam a reformulação das categorias dogmáticas a
fim de adaptar a teoria do delito à responsabilidade penal dos entes coletivos, parte da
doutrina entende que uma re-interpretação das categorias tradicionais não pode ser
procedida sem que se corrompa a lógica interna do sistema de delito, sendo necessário
desenvolver e fundamentar por completo um novo sistema especial de responsabilidade
penal, próprio para os entes coletivos.
Partindo do reconhecimento da necessidade político-criminal de responder
penalmente a condutas delitivas praticadas no âmbito das pessoas jurídicas, a única
solução factível seria o desenvolvimento de um Direito Penal especial, que estivesse
apto a combater estes fenômenos.
Um modelo dogmático engenhoso, que procurou levar a cabo este projeto, foi
desenvolvido por Ernst-Joachim Lampe, em seu texto “Systemunrecht und
Unrechtssysteme” (LAMPE, 1994), onde fundamenta uma culpabilidade referente ao
injusto de sistema (“Systemsunrecht”).
Neste artigo, Lampe afirma que, até aquele momento, não se teria elaborado nem
uma teoria unitária do injusto no sistema penal (eine Theorie des Systemsunrechts), nem
uma teoria da responsabilidade dentro dos sistemas de injusto penal (eine Theorie der
Verantwortung innerhalb von Unrechtssysteme). A razão para isso consistiria no fato de
que as construções dogmáticas tradicionais apenas tomariam como ponto de partida o
indivíduo, deixando de lado considerações sobre as chamadas estruturas sistêmicas do
injusto199 (LAMPE, 1994, p. 683). Dado que em nossa sociedade a criminalidade
sistematicamente organizada apresentaria uma grande periculosidade, seria necessário
repensar as categorias dogmáticas tradicionais - baseadas na responsabilização
199
O termo usado é “Systemstrukturen des Unrechts“.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
269
individual de pessoas naturais - para que se possam preencher os déficits de regulação
dos delitos de organização200 (LAMPE, 1994, p. 683).
A questão fundamental, portanto, se centraria no diagnóstico de que a dogmática
tradicional de Direito Penal seria capaz, apenas e tão-somente, de reagir frente à
delinqüência sistemática a partir de um instrumentário baseado sobre um padrão de
autor individual201 (LAMPE, 1994, p. 684). O problema, afirma Lampe, estaria no fato
de que este instrumentário não se adaptaria mais à complexidade das circunstâncias
fáticas que se apresentam na atualidade, já que a participação de várias pessoas em um
fato punível não consegue ser explicada a partir de um paradigma de autor individual.
Assim, este autor propõe que a dogmática com base em “ações injustas”
(Unrechtshandlungen) seja complementada por uma dogmática com base em “sistemas
de injusto” (Unrechtssysteme) (LAMPE, 1994, p. 687)202.
Sistemas de injusto são, na definição de Lampe, “relações de pessoas
organizadas com fins ilícitos”203 (LAMPE, 1994, p. 687), que devem ser vistos como
sistemas sociais compostos de indivíduos relacionados comunicativamente entre si204.
Tal comunicação interna e tal interação são baseadas em modelos relativamente
interativos que estruturam uma dada organização.
200
O exemplo dado é das carências práticas no âmbito do Direito Penal Econômico, que apenas
conseguiria reconhecer, dentro da organização econômica, a responsabilidade individual das pessoas
naturais que dela fazem parte (seja como órgão, seja como representante).
201
“Nosso Direito Penal é, tradicionalmente, um Direito Penal Individual“ (Individualstrafrecht). O autor
típico pressuposto neste modelo seria um indivíduo, que deve responder apenas pelo seu ilícito pessoal e
pela sua culpa individual (conforme § 29 do Código Penal Alemão).
202
Deve se notar que a investigação de Lampe se centra fundamentalmente no injusto dos sistemas, e não
simplesmente em sua culpabilidade. Isso porque o projeto deste autor busca formular uma nova estrutura
para teoria do delito, de forma a que esta dê conta dos problemas trazidos nos casos de criminalidade
organizada. Exemplar, neste sentido, é a afirmação de que “o conteúdo da culpabilidade depende, antes de
tudo, do conteúdo dado ao próprio injusto – que por sua vez deve ser entendido enquanto culpabilidade
realizada (zu verwirklichen Schuld). Neste sentido, ver LAMPE, 1994, p. 732. A mesma observação pode
ser encontrada em GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2005, p. 180-181.
203
“Auf Unrechtsziele hin organisierte Beziehungen von Menschen“. Cf. LAMPE, Ernst-Joachim. Op.
cit. Pág. 687.
204
Foge do escopo deste trabalho explorar exaustivamente todos os conceitos trabalhados na obra de
Lampe. Importante é apenas ressaltar que este autor parte de pressupostos da Teoria dos Sistemas
(fundamentalmente desenvolvida pelo sociólogo Niklas Luhmann) para, a partir dela, desenvolver uma
teoria do delito que seja operacional à compreensão dos delitos cometidos por entes coletivos. Para uma
análise aprofundada das interações internas a uma organização, nos termos da Teoria dos Sistemas, ver
LUHMANN, 2006.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
270
Existiriam, nestes termos, dois tipos diversos de sistemas de injusto: a) os
sistemas de injusto simples (einfache Unrechtssysteme) e b) os sistemas de injusto
constituídos (verfaßte Unrechtssysteme). Ambos têm por característica o fato de serem
constituídos de relações entre indivíduos destinadas à realização de um ou mais delitos.
No entanto, ao passo que os primeiros se baseiam em relações pessoais entre seus
membros205, os segundos se caracterizam pela existência de regras de pertencimento que
desconsideram as relações pessoais entre seus elementos206. Dos três tipos207 de
sistemas de injusto constituídos citados por Lampe, interessa-nos fundamentalmente os
chamados “sistemas potencialmente criminosos” (kriminell anfällige Systeme), pois são
em relação a eles que se encontram as principais questões sobre culpabilidade e
responsabilidade das pessoas jurídicas. Neste ponto, a figura da Empresa é dotada de
grande relevância.
Lampe define empresa pode ser definida como uma “unidade organizada, cujo
titular é um sujeito de direito que serve a um dado fim econômico” (LAMPE, 1994, p.
697). A relação entre esta unidade sistêmica e seu entorno, seu ambiente, exigiria
adaptações recíprocas – daquela em relação a este e deste em relação àquela. Em outras
palavras, se a sociedade deve se adaptar à necessidade de busca por lucro da empresa,
esta, por sua vez, deve se adaptar à necessidade social de que tal busca seja realizada
responsavelmente (LAMPE, 1994, p. 699).
Partindo deste pressuposto, Lampe diferencia o injusto que tem lugar dentro do
âmbito empresarial contra a empresa mesma (Betriebsbereich) daquele que tem lugar no
âmbito da própria organização empresarial (Organizationsbereich). Ao passo que os
primeiros constituem – a partir do ponto de vista da empresa – delitos especiais,
205
O exemplo principal deste sistema simples são as associações fundadas sobre os fenômenos de
participação e de co-autoria, em que se verifica uma relação relativamente forte de conhecimento pessoal
entre os envolvidos na prática delituosa.
206
Por exigirem um baixo grau de conhecimento entre seus componentes, os chamado “sistemas
constituídos” admitem um maior grau de complexidade e são dotados, assim, de uma comunicação e de
uma interação organizadas em termos de distribuição funcional hierarquizada (“Kommunkationen und
Interkationen, die meistens hierarchisch, selektiert sind”). Cf. LAMPE, 1994, p. 694. Por não
dependerem de um profundo conhecimento recíproco entre seus membros, afirma-se que estes são, em
certa medida, fungíveis, na medida em que, por exemplo, empregados de uma empresa podem ser
substituídos sem que esta altere significativamente sua existência social.
207
A) “Sistemas com finalidade criminal” (por exemplo, as organizações criminosas de tráfico); B)
“sistemas potencialmente criminosos” (por exemplo, as empresas que cometem reiteradamente delitos
contra seu entorno); e C) “sistemas criminalmente pervertidos” (por exemplo, as instituições estatais
ilícitas).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
271
imputáveis ao indivíduo autor208, os segundos são delitos que ocorrem devido a uma
organização deficiente da empresa; neste sentido, estes últimos são injustos que
apresentam, ademais de uma dimensão individual, também uma dimensão sistêmica, e,
portanto, devem poder ser imputados à própria empresa209.
Neste sentido, injustos de dimensão sistêmica seriam todos aqueles
comportamentos que lesionam bens jurídicos com base em certa filosofia da empresa210
ou com uma dada forma de sua organização (LAMPE, 1994, p. 709). A
responsabilidade penal com base na filosofia da empresa dar-se-ia quando seu caráter
delitivo encontra expressão no comportamento lesivo de um de seus membros. A
responsabilidade com base na estrutura de organização da empresa, por sua vez, seria
um injusto sistêmico quando favorecesse seus membros no cometimento de delitos211.
Concretamente, existiriam quatro causas fundamentais que constituiriam um injusto de
sistema de responsabilidade da empresa: a) o potencial perigo utilizado pela empresa
para realizar uma dada prestação; b) a estrutura deficitária de sua organização
(defiziente Organisationsstruktur), que neutralizaria erroneamente a periculosidade
deste potencial; c) uma filosofia empresarial criminógena, que ofereceria aos membros
da organização a tentação de levar a cabo ações delitivas; d) a erosão de
responsabilidade interna à empresa, nos casos em que esta não possui regras claras e
eficientes de responsabilização de seus membros em caso de desvios funcionais
(LAMPE, 1994, p. 709).
208
O exemplo dado é do empregado que causa um grande dano ambiental, sem que este fato seja
desejável ou possivelmente valorizado e incentivado pela empresa em que trabalha. O fato de que ele
tenha se utilizado do instrumental técnico da empresa não altera nada em sua responsabilidade individual,
pois, neste caso, o delito não é dotado de qualquer “dimensão sistêmica”. Cf. LAMPE, 1994, p. 708.
209
Este seria o caso quando alguém realiza ações que, normalmente, ocorrem sem qualquer risco de dano,
mas que, na combinação com outras ações, ligadas àquelas com base em uma determinada organização ou
em um plano empresarial, acabam por trazer consigo conseqüências ilícitas; verificar-se-ia, nestes casos,
um patente déficit organizatório (eine organisatorische Defizite), imputável à empresa responsável pelo
planejamento e combinação das interações internas a ela. Cf. LAMPE, 1994, p. 708.
210
Por “filosofia da empresa“ entende Lampe a totalidade da orientação e da concepção de valores que
direcionam a empresa, principalmente em relação a sua posição em seu contexto social, econômico e
ecológico. Cf. LAMPE, 1994, p. 708.
211
Exemplos disso seriam casos em que a organização da empresa não se preocupa com a criação de
normas de internas de controle, ou mesmo quando não desenvolve regras de responsabilização individual
por atos de seus empregados. Nestes casos, quando surge uma lesão de bem-jurídico praticada com base
nesta organização deficiente da empresa, produz-se um injusto sistêmico, cuja responsabilidade deve ser
arcada pelo ente coletivo, e não pelos seus membros. Neste sentido: LAMPE, 1994, p. 727 e seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
272
A partir disto, fica claro que para Lampe, também a uma empresa – enquanto
sistema social – pode-se formular uma reprovação ético-social212. Em concreto, pode-se
afirmar que “a culpabilidade de uma empresa – de seu management – consiste no fato
de esta ter criado ou mantido uma filosofia criminógena e/ou certas deficiências
organizativas” (LAMPE, 1994, p. 732). A culpabilidade da empresa seria expressão de
um caráter empresarial defeituoso, na medida em que esta, na hora de fixar seus
objetivos e organizar seu instrumental para a perseguição dos mesmos, o faz de tal
modo reprovável que passe a ser visto como um sistema que não está à altura de suas
responsabilidades (LAMPE, 1994, p. 724)213.
Do exposto fica claro que a construção do delito em Lampe vincula a categoria
da culpabilidade à noção de caráter, que, por sua vez, nada mais é que uma alusão a um
determinado status da pessoa jurídica214. Nestes termos, o chamado “injusto de sistema”
(Systemsunrecht) seria, inicialmente, um mero estado de injusto, que pode ocorrer por
meio de ações, mas não necessariamente o deve. Se nos injustos cometidos por pessoas
naturais a predisposição contrária ao Direito não constitui, por si, um fato punível, no
que tange às pessoas jurídicas tal predisposição seria, desde já, um injusto. No entanto,
ao contrário do que afirmam seus críticos, Lampe não formula uma teoria com base
única e exclusivamente no caráter do autor. Pelo contrário, seu conceito de
culpabilidade mantém, em certa medida, a referência à reprovabilidade de um ato.
212
Lampe afirma que a responsabilidade penal se pode atribuir a toda unidade que participa da vida
social, seja ela uma pessoa natural, seja ela uma pessoa jurídica. “A esta, ainda que possa ser tomada
como uma ficção, não podem ser negados sua relevância e sua existência social”. A reprovação que se faz
aos entes coletivos não é, de forma alguma, ético-individual, mas sim ético-social, referente, por exemplo,
ao não cumprimento de seus deveres para com o contexto no qual a pessoa jurídica atua. Cf. LAMPE,
1994, p. 723.
213
Por partir da idéia de que se está, nestes casos, frente a um “caráter defeituoso da empresa”, Lampe
sugere, em uma de suas obras recentes, que a própria sanção que se aplica às pessoas jurídicas deve ter
como objetivo combater e alterar estas características deficitárias do “caráter empresarial criminógeno”.
Neste sentido, afirma que somente se pode atingir justiça se a sanção penal contra a pessoa jurídica
trouxer consigo uma modificação de tal existência: “a filosofia criminógena ou a estrutura organizativa
deficitária da empresa deve ser modificada de modo a que esta deixe de fomentar lesões a bens-jurídicos.
Para tanto, são necessários outros meios de sanção, para além das penas privativas de liberdade e das
multas.”. E completa: “a intervenção no caso das empresas econômicas pode, inclusive, conduzir para sua
liquidação e seu desmantelamento”. Cf. LAMPE, 1999, p. 74 e 183.
214
Tal construção é usualmente criticada em dois sentidos. Primeiro, seria impossível pensar seriamente
em um caráter próprio das pessoas jurídicas, já que este seria um conceito necessariamente vinculado à
expressão de personalidade e de livre-arbítrio. Em segundo lugar, a culpabilidade com base no caráter de
uma pessoa consistiria em um retrocesso ao chamado “Direito Penal do Autor” (“Täterstrafrecht”), para o
qual a responsabilização de um ente deve ser basear não no ato cometido, mas sim nas características
pessoais do autor que o cometeu; em outros termos, a construção de Lampe pecaria por não poder se
integrar às concepções da dogmática jurídico-penal moderna. Tal argumento é reconstruído em GÓMEZJARA DÍEZ, 2005, p. 183-184.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
273
E isso por dois motivos. Primeiramente porque o próprio conceito de ato
jurídico-penal é ampliado por Lampe, passando a ser considerada como causa de um
resultado injusto não apenas a ação individual executada por uma pessoa natural, mas
também a existência (sistêmica) de uma estrutura social (ein Sozialgebild) que fomente
ou garante que o injusto venha a se realizar (LAMPE, 1999, p. 74). Neste sentido, a
própria existência de uma pessoa jurídica com organização defeituosa pode ser
compreendida, em princípio, como “ato”, na medida em que deveria ser pensada em seu
sentido para o sistema social (LAMPE, 1999, p. 74).
Em segundo lugar, porque Lampe frisa que a culpabilidade empresarial não deve
ser pensada sem se fazer alusão à relação entre o injusto de sistema e o injusto pessoal a
ele vinculado. “A responsabilidade da empresa não pode (...) se apoiar em um injusto
alheio à ação” (LAMPE, 1994, p. 733). Neste modelo, nem a filosofia criminógena nem
a organização empresarial defeituosa seriam suficientemente capazes de gerar
responsabilidade penal, sendo necessário, ainda, que dita filosofia ou deficiência se
realize por meio do comportamento de um dos membros da pessoa jurídica (LAMPE,
1994, p. 734). Em poucos termos, a responsabilidade penal requer, nestes casos, a
ocorrência adicional de um delito de resultado (LAMPE, 1994, p. 734). Portanto, a
responsabilidade penal de um sistema de injusto se fundamenta, por um lado, na
existência não suficientemente adaptada às exigências ético-sociais de uma comunidade
e, por outro, nas ações realizadas pelos membros do ente coletivo, sempre que tais ações
se baseiem em uma certa filosofia da empresa ou que sejam favorecidas por uma
estrutura de organização deficiente. Tais ações, que não precisam ser por si reprováveis,
são imputadas ao sistema social como delito de resultado (Erfolgsunrecht)215, sempre
que for possível relacioná-lo com o próprio injusto de sistema (LAMPE, 1994, p. 744).
É neste ponto que se introduz uma das principais inovações colocadas pelo
modelo de Lampe. Para este autor, junto à responsabilidade própria da pessoa jurídica
deve existir também a possibilidade de responsabilização penal de alguns indivíduos
internos ao sistema de injusto. Neste sentido, seriam responsabilizáveis aqueles
215
Nisto consiste a principal diferença da responsabilização desenvolvida por Tiedemann, para quem a
responsabilização da empresa deve ser pensada por conta de um delito de ação (Handlungsunrecht), e não
como delito de resultado (Erfolgsunrecht). Outra diferença importante consiste no fato de que, em Lampe,
a figura da “filosofia empresarial criminógena” detém grande relevância, sendo necessária para a
responsabilização a existência de um nexo entre o resultado ilícito e o conjunto de valores propagado
internamente pela pessoa jurídica. Neste sentido, BACIGALUPO, 1998, p. 190.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
274
membros cujo comportamento tenha culminado na proliferação de uma filosofia
empresarial criminógena ou que tenha permitido atitudes criminais no âmbito interno da
organização216. Em termos concretos, poderiam ser responsabilizados “aqueles
membros obrigados a determinar o espírito da empresa ou, em última instância, que
deveriam - com base numa posição de garante - ter impedido infiltrações de
mentalidade criminógena” (LAMPE, 1994, p. 733); este seria o caso, por exemplo, dos
membros responsáveis pelo controle e pela estruturação da organização empresarial 217.
Do exposto, resta claro que a proposta de Lampe procura estabelecer uma teoria
geral da responsabilidade do sistema, elaborada a partir da própria estrutura dos
chamados “sistemas de injusto”. Com tal objetivo, este autor estabeleceu dois princípios
fundamentais.
Primeiramente, afirma-se que, se um sistema social comete um injusto, então a
responsabilidade penal deve ser imputada, em primeiro lugar, ao próprio sistema. Tal
responsabilidade penal fundamenta-se, por um lado, em uma certa filosofia criminógena
adotada pelo ente coletivo e, por outro, em uma organização deficitária que favorece
e/ou incentiva o cometimento de um ou mais delitos. A culpa da pessoa jurídica, nestes
termos, é vista em seu sentido social: neste sentido, a culpabilidade empresarial seria a
expressão última de um caráter empresarial defeituoso. Adicionalmente, ainda que a
própria configuração defeituosa constitua, per se, um injusto sistêmico, é necessário
para a responsabilização penal que uma ação praticada por um dos membros da empresa
gere danos a bens–jurídicos socialmente relevantes; tal ação, se puder ser tomada como
reflexo e conseqüência do injusto de sistema, é imputada à pessoa jurídica como delito
de resultado (Erfolgsunrecht) de sua autoria.
Em segundo lugar, Lampe afirma que, ao lado da responsabilidade social,
também deve ser formulada a responsabilidade individual de alguns membros centrais
216
Esta concepção trás consigo dificuldades práticas, na medida em que o próprio Lampe aceita que a
filosofia da empresa não corresponde necessariamente com as idéias de seus diretores, expressando, pelo
contrário, uma espécie de “espírito supraindividual” (corporate culture) que domina a empresa.
217
Como exemplos significativos Lampe cita, por um lado, aqueles que, como órgão responsável ou como
representante, têm como tarefa fixar os objetivos e as tarefas da empresa e, por outro, aquele grupo de
personalidades que conformam o management empresarial, pertencendo à chamada “brain área” da
pessoa jurídica e que devam, portanto, se preocupar com a adaptação desta frente a seus ambientes social,
econômico e ecológico. Nestes casos, afirma Lampe, todos os membros responderiam em co-autoria por
eventuais delitos. Cf. LAMPE, 1994, p. 733 e seguintes.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
275
ao sistema. Tal responsabilidade pelo sistema (Systemverantwortung) deveria ser
imputada aos membros de um ente coletivo com potencial criminal, sempre que sua
posição diretiva (na chamada “brain area”, por exemplo) componha e determine de
forma criminógena a chamada filosofia empresarial, ou que estruture de
deficitariamente a organização empresarial (LAMPE, 1994, p. 744).
Este modelo, ainda que não difundido na doutrina contemporânea (GÓMEZJARA DÍEZ, 2005, p. 187), é considerado uma das tentativas mais aprofundadas e
conseqüentes de superar os pressupostos individualistas da dogmática penal tradicional
(BACIGALUPO, 1998, p. 192 e seguintes) e criar uma nova base teórica para a
responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Culpabilidade pela condução da atividade empresarial
Outra proposta que merece nossa atenção é o modelo de imputação defendido
por Günter Heine. Conforme esse autor, a concepção de responsabilidade originária da
empresa teria sido desenvolvida inicialmente pela jurisprudência a partir dos modelos
de transferência de responsabilidade da pessoa física, a qual seguia os objetivos de
reforço da auto-responsabilidade da empresa e do seu estímulo no controle de riscos
futuros, realizando-se desta forma a “neutralização” de culturas empresariais defeituosas
(HEINE, 2006, p. 36).
A partir dessa idéia, Heine toma em consideração a noção da empresa como um
“garante de supervisão”, ou seja, que se faz responsável por meio da criação de perigos
empresariais em função de sua estrutura deficitária ou de déficits existentes em sua
organização, como substrato para a imputação de responsabilidade dos entes coletivos
pela prática de crimes (HEINE, 2006, p. 37).
A estrutura deficitária da empresa como fundamento da responsabilidade própria
da empresa se encontraria presente na idéia de uma “cultura corporativa” (corporate
culture) do direito penal australiano, isto é, o desenvolvimento dentro da empresa por
meio de sua postura, regras e procedimentos no sentido de encorajar o cometimento de
crimes em seu âmbito ou ainda de não se evitar a sua realização quando podia tê-lo
feito. Nos Países Baixos idéia análoga se encontra no desenvolvimento jurisprudencial
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
276
de uma “autoria funcional” da empresa, na qual se tem em consideração a política e a
práxis desenvolvida pela mesma, essenciais no aferimento do poder de organização da
empresa sobre o comportamento ilícito da pessoa física e a sua aceitação ou não do
mesmo (HEINE, 2006, p. 37-38).
Por sua vez, a organização deficitária da empresa consistiria fundamentalmente
na responsabilidade por vigilância, cabendo a ela deveres de supervisão e evitação de
riscos (HEINE, 2006, p. 38).
Dogmaticamente a imputação da empresa deveria ocorrer de maneira
independente da responsabilidade penal da pessoa física e em um sistema paralelo ao
aplicado aos indivíduos. Assim, Heine fala na “transposição” para as empresas das
“categorias de imputação do direito penal individual - desde a ação, o domínio do fato e
a causalidade até os elementos subjetivos e a culpabilidade” (HEINE, 2006, p. 47).
Dessa forma, a culpabilidade da empresa seria baseada na condução da
atividade empresarial, apurada a partir de uma análise do comportamento da empresa
ao longo do tempo. Ela não se configuraria como culpabilidade pelo fato concreto, mas
pela condução defeituosa da atividade da empresa no que respeita a prevenção dos
riscos empresariais (“responsabilidade das empresas pela investigação, planificação,
desenvolvimento, produção e organização”). Trata-se de uma análise que em última
instância considera um aspecto “subjetivo” de imputação, pois não seria possível
determinar uma organização deficitária sem se considerar uma “mentalidade de
empresa” ou cultura empresarial defeituosa (HEINE, 2006, p. 47- 48).
Todavia, o autor chama atenção para o fato de que não pretende fundamentar a
culpabilidade da empresa a partir de sua equiparação com a culpabilidade das pessoas
físicas, baseando-se em um desenvolvimento antropomórfico de imputação. O que se
teria em apreço seria na verdade o esboço de uma categoria que preenche uma função
análoga à categoria da culpabilidade existente no sistema penal individual e que aprecia
um desenvolvimento sistêmico defeituoso, ao invés de um comportamento
previsivelmente defeituoso (HEINE, 2006, p. 49).
Uma vez resolvida a questão em torno da culpabilidade própria da empresa, não
haveria de acordo com Heine maiores problemas na determinação dos demais elementos
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
277
subjetivos do injusto (dolo, culpa, consciência da ilicitude) relativamente à imputação
penal das empresas, os quais deveriam igualmente ser determinados coletivamente.
Segundo o autor, tais elementos encerrariam atualmente não o real conhecimento do
autor, mas as suas representações sociais, o que seria inclusive muito mais simples de se
constatar no âmbito da imputação coletiva do que no individual (HEINE, 2006, p. 54).
Nessa linha, mesmo a noção de autoria comportaria um correspondente próprio
de um sistema específico para as empresas, que ele denomina de autoria por “domínio
da organização”, que ocorreria quando, por exemplo, a empresa opta por não realizar as
medidas preventivas mais adequadas no tempo oportuno. Tratam-se de medidas
tomadas tanto em plano vertical como horizontal que representam um managment
inadequado dos riscos empresariais (HEINE, 2006, p. 51).
3.3 Balanço provisório: o caminho da normativização dos conceitos
A virada da dogmática penal no sentido da normativização dos conceitos da
teoria do delito trás consigo uma nova forma de considerar as questões envolvendo
a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por tomar o conceito de “pessoa” não
de forma ontológica (isto é, não o vinculando necessariamente aos aspectos
naturais do ser humano), mas sim normativamente, a pessoa é vista como
portadora de direitos e deveres, o que torna impossível avaliar tal status sem que se
considere o contexto social no qual ele se insere.
Nestes termos, a ação passa a poder ser avaliada não como comportamento
puramente naturalístico, mas sim como um complexo dotado de significado social.
Por este motivo torna-se também aceitável a idéia de que uma pessoa jurídica pode
agir propriamente, bastando para isso que as diversas ações individuais executadas
por seus membros possam ser avaliadas como uma ação complexa em seu
significado global. Esta “ação complexa”, por sua vez, é conseqüência de uma
vontade coletiva, que ontologicamente considerada é fruto de diversas vontades
humanas, mas que socialmente e comunicativamente avaliadas ganham status de
vontade própria ao ente coletivo.
Finalmente, a perspectiva normativa do conceito de culpa abre a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
278
possibilidade de fundamentar a imputação penal de um ente não simplesmente
sobre a consciência que este teria de estar agindo ilicitamente. Pelo contrário, a
noção normativa de culpa exige para imputação que a pessoa jurídica seja dotada
da capacidade de organizar seus comportamentos de acordo com o Direito.
Se uma pessoa tem a possibilidade de organizar seus comportamentos de
acordo com a medida das regras de convivência social e, por sua vez, não o faz,
então a ela pode ser atribuída uma reprovação de culpabilidade. E o fato de que,
normalmente, as pessoas jurídicas possuem a capacidade de organizar licitamente
suas atividades conforme padrões de licitude permite imputar àquelas que agem de
modo desviante uma reprovação penal. Diante disso, surge todo um novo campo de
reflexão a respeito de quais são os possíveis critérios para se aferir se uma pessoa
jurídica se organiza ou não de maneira culpável. Os modelos de Tiedemann,
Lampe e Heine, acima expostos, são apenas exemplos do tipo de disputa dogmática
que deve ser travada e do tipo de imaginação institucional que deve ser fomentada
neste registro.
Estas novas teorias, que buscam concepções de ação e de culpa que possam
ser vistas a partir de uma perspectiva social e não apenas ontológica, constituem a
base para se afirmar, no interior da dogmática jurídica e para os
fins de
reconhecimento do potencial comunicativo e da necessidade de imputação, que
pessoas físicas e pessoas jurídicas são noções aproximáveis do ponto de vista de
uma teoria da imputação e que, portanto, também estas últimas podem ser
penalmente responsabilizáveis. É no âmbito dessa linha de pensamento que se
situam as tentativas mais bem sucedidas de adaptar o instituto da responsabilidade
penal da pessoa jurídica aos conceitos da teoria do delito.
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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
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ANEXO 5 – CARACTERÍSTICAS DAS PESSOAS JURÍDICAS
RELEVANTES PARA SUA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL
1.
INTRODUÇÃO
A responsabilidade penal de pessoas jurídicas e outras coletividades traz
questões novas para o direito penal, pois o coloca diante de centros de imputação de
responsabilidade com características essencialmente distintas dos indivíduos.
Para que a responsabilidade das pessoas jurídicas e outras coletividades possa
ser um mecanismo eficaz na persecução dos fins do direito penal é preciso, portanto,
que este leve em consideração as características peculiares desses novos sujeitos e as
circunstâncias em que desenvolvem suas atividades.
Naturalmente, uma vez que as regras gerais sobre formação e funcionamento das
pessoas jurídicas e demais coletividades está no direito civil, um primeiro passo
fundamental para a criação de um direito penal adaptado a esses novos sujeitos é a
compreensão de como eles estão regulados por esse ramo do direito.
Não necessariamente para que o direito penal se curve ao direito civil, pois a
adaptação dos institutos do direito civil aos objetivos da responsabilização penal quando
necessário deve ser considerada sempre uma possibilidade, mas, principalmente porque
as pessoas jurídicas e outras coletividades exercem papel socialmente relevante,
especialmente no exercício da atividade econômica e terão, portanto, sempre essa
dimensão a ser levada em conta.
Nesse sentido, trataremos a seguir de conceitos e características do direito civil
que possuem relevância no que toca a responsabilidade penal da pessoa jurídica e outras
coletividades, a saber: a noção de pessoa jurídica, sociedade, empresário e empresa; as
peculiaridades da transformação e união das pessoas jurídicas; e os fenômenos da sua
atuação em coletividades mais complexas e não personificadas.
2.
NOÇÃO DE PESSOA JURÍDICA, SOCIEDADE, EMPRESÁRIO E
EMPRESA
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
286
A conceituação destes institutos de direito civil é de suma importância na
medida que evita confusão e delimita com precisão nosso tema.
No direito brasileiro, pessoa jurídica, sociedade, empresário e empresa são
conceitos intimamente relacionados, mas que não se sobrepõem completamente.
As pessoas são entes dotados de personalidade, um atributo jurídico (GOMES,
1971, p. 133) consistente na aptidão para ser o centro de imputação de direitos e deveres
jurídicos. No direito brasileiro, tal atributo cabe tanto aos indivíduos quanto a certas
coletividades, estas denominadas pessoas jurídicas218.
Deixando de lado a antiga discussão a respeito da natureza da pessoa jurídica,
fato é que o direito brasileiro a reconhece como sujeito de direito, uma das duas
espécies de pessoas, ao lado das pessoas físicas ou naturais (CC, art. 40).
Empresário, por sua vez, pode ser definido como alguém que participa do
sistema econômico exercendo atividade de produção ou circulação de bens ou serviços
no mercado, com o objetivo de obter uma remuneração, o lucro219, o qual consiste na
diferença entre o que ele gasta para oferecer os bens e serviços em questão e o que
outras pessoas pagam por eles (FARACO, 2007, p. 124).
Nessa definição, podemos perceber os elementos essenciais da idéia de
empresário: o exercício de uma atividade (i) econômica (ii), de modo autônomo (iii) e
profissional (iv). 220
(i) Atividade pode ser definida como um conjunto de atos ordenados em função
de um determinado objetivo (ASQUINI, 1996, p. 117); (ASCARELLI, 1962, p. 147);
218
Do atributo jurídico da personalidade, decorre a chamada capacidade de direito, isto é, a capacidade de
ser sujeito de direito, de ser titular de direitos e deveres. Sendo assim, toda pessoa (física ou jurídica) é
sujeito de direito. No entanto, nem todo sujeito de direito é necessariamente uma pessoa no direito
brasileiro. O direito reconhece a certos entes despersonalizados a capacidade de ser titular de direitos e
deveres em situações especiais. Exemplos de tais casos são a massa falida e o espólio.
219
Como se verá abaixo, o requisito do objetivo de obtenção de lucro para a caracterização do empresário
é polêmico. No entanto, parece ser esta a posição do CC.
220
Com relação a esses elementos fundamentais do conceito de empresa (ou mais precisamente, de seu
conceito funcional, que nos interessa aqui) a doutrina é bastante pacífica, embora haja discordância com
relação a certos aspectos do significado de alguns desses elementos. Sobre o conceito de empresa, cf.,
entre outros: (ASQUINI, 1996, p. 109-126); (ASCARELLI, 1962, p. 158); (FERRI, 1976, p. 43-45);
(BESSONE, 1957, p. 25-36); (BULGARELLI, 1985, p. 206); (MELLO FRANCO, 1993, p. 62-63).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
287
(BULGARELLI, 1985, p. 175-176); (MELLO FRANCO, 1993, p. 59). Distingue-se,
portanto, da prática de meros atos isolados.
(ii) A atividade é econômica quando seu objetivo é a criação de riqueza, isto é, a
produção ou distribuição de bens ou serviços (ASCARELLI, 1962, p. 162);
(BULGARELLI, 1985, p. 193).
(iii) A autonomia pode ser definida de forma negativa, em contraposição à
subordinação. Atividade subordinada, segundo Tulio Ascarelli (ASCARELLI, 1962, p.
157), é aquela que, simultaneamente, desenvolve-se na dependência de outrem e cujos
resultados referem-se a bens alheios ou a serviços depois fornecidos por outrem.
(iv) O profissionalismo, por sua vez, caracteriza-se pela habitualidade, o objetivo
de satisfação de necessidade alheia e o propósito de obter um ganho (ASQUINI, 1996,
p. 110-117); (ASCARELLI, 1962, p. 164-204); (FERRI, 1976, p. 45-53);
(BULGARELLI, 1985, p. 194-196).
A habitualidade é o exercício constante e estável da atividade, não sendo
profissionais, portanto, as atividades ocasionais. Naturalmente, a avaliação da
habitualidade deve levar em conta as características de cada atividade. Assim, devem-se
considerar habituais as atividades sazonais, por exemplo.
O elemento da satisfação de necessidade alheia indica que para que se considere
uma atividade como profissional deve-se produzir para o mercado e não para si próprio
(FERRI, 1976, p. 45-46); (ASCARELLI, 1962, p. 165)221.
Quanto ao que se deve compreender como propósito de obter um ganho, a
doutrina diverge. Alguns autores entendem que tal requisito deve ser entendido em
sentido estrito, como finalidade de lucro, abarcando, portanto, apenas atividades cujo
objetivo é a obtenção de um incremento patrimonial e não um simples objetivo egoísta
qualquer, como evitar gastos (FERRI, 1976, p. 53); (ASCARELLI, 1962, p. 189).
Outros autores defendem um entendimento mais amplo do objetivo de ganho,
considerando suficiente que a atividade tenha por objetivo buscar o reembolso dos
fatores de produção empregados ou evitar perdas e gastos (BULGARELLI, 1985, p.
194-195); (MELLO FRANCO, 1993, p. 62).
221
Asquini e Bulgarelli igualmente consideram a necessidade de satisfação de necessidade alheia como
um requisito do conceito de empresário, mas a relacionam não ao profissionalismo, mas ao caráter
econômico da atividade (ASQUINI, 1996, p. 110); (BULGARELLI, 1985, p. 193).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
288
Com relação a esse aspecto, o Código Civil parece ter optado pela posição mais
estrita, pois, embora não se refira expressamente ao lucro na definição de empresário do
art. 966, atribui o caráter de empresário (quando se trata de pessoas jurídicas) apenas às
sociedades, cuja definição legal (CC, art. 981) inclui o objetivo de partilha de
resultados, ou seja, de obtenção de lucro em sentido estrito. Sobre o conceito legal de
empresário, trataremos em seguida.
É importante observar, portanto, que os empresários não são os únicos a exercer
atividade econômica. Em primeiro lugar, há agentes que o fazem sem ter como objetivo
a obtenção de lucro. É o caso das fundações e associações, de que trataremos adiante
(FARACO, 2007, p. 127).
Além disso, conforme o Código Civil, há casos em que se exerce atividade
econômica com finalidade lucrativa sem, no entanto, haver atividade empresarial. Tratase do caso dos profissionais liberais (CC, art. 966, parágrafo único), como médicos e
advogados. Nesses casos, considera-se que o exercício da atividade econômica difere da
atividade do empresário em razão da forma como é exercida: na prática da atividade
empresarial, o aspecto central é a capacidade do empresário de organizar de modo
eficiente os fatores de produção, ao passo que nas profissões liberais prepondera a
capacidade intelectual do profissional. Além disso, a concorrência entre profissionais
liberais se dá de modo diferenciado em relação à concorrência entre empresários, uma
vez que a conduta de profissionais liberais é geralmente regida por um código de ética
próprio (FARACO, 2007, p. 128).
O Código Civil dedica um livro específico ao empresário e à atividade
empresarial (Parte Especial, Livro II: Do Direito de Empresa) e traz uma definição legal
de empresário em seu art. 966, o qual estabelece:
Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
O conceito de empresa pode ser derivado do conceito de empresário. Assim,
empresa pode ser definida como a atividade econômica organizada para a produção de
bens ou de serviços exercida profissionalmente pelo empresário. Nesse sentido, é
importante notar que a empresa consiste em uma situação fática, da qual o empresário é
titular. O empresário é uma pessoa, um sujeito de direito, já a empresa, enquanto tal,
não pode ser considerada sujeito de direito. (FARACO, 2007, p. 130, n.12).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
289
O empresário pode ser um indivíduo ou uma coletividade. O desenvolvimento
de atividades empresariais, quando feito coletivamente, se dá por meio das sociedades.
A sociedade é um contrato pelo qual duas ou mais pessoas se reúnem para
perseguir um objetivo comum, consistente no exercício de uma atividade econômica e
na partilha entre si dos resultados dessa atividade (CC, art. 981) (FARACO, 2007, p.
132).
O direito brasileiro prevê vários tipos de sociedade: a sociedade em conta de
participação (a), a sociedade em nome coletivo (b), a sociedade em comandita simples
(c), a sociedade limitada (d), a sociedade anônima (e), a sociedade em comandita por
ações (f), a sociedade cooperativa (g) e a sociedade simples (h) (CC, arts. 991 a 1096).
Nem toda a sociedade é considerada empresária pela lei brasileira. Dependendo
da atividade exercida (empresarial ou não, nos termos do art. 966, CC) ou do tipo
societário adotado, a sociedade será considerada empresária ou não-empresária, esta
última denominada sociedade simples pela lei (CC art. 982, 983).222
Conforme o art. 44, II, CC, as sociedades são um tipo de pessoa jurídica de
direito privado, ao lado das associações (CC, art. 44, I), fundações (art. 44, III),
organizações religiosas (CC, art. 44, IV) e partidos políticos (CC, art. 44, V).
Isso não significa, no entanto, que todas as sociedades sejam pessoas jurídicas.
Em primeiro lugar, é preciso notar que no direito brasileiro o surgimento da pessoa
jurídica exige o registro, conforme o art. 45, CC, caput, o qual estabelece:
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a
inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando
necessário de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no
registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
O CC especifica essa norma para o caso das sociedades em seu art. 985:
A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro
próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos.
Antes da realização do registro, a sociedade é uma sociedade não-personificada,
denominada sociedade em comum pela lei (CC, art. 986 a 990). Isso significa que a
sociedade existe juridicamente, mas sua atividade é exercida diretamente pelos sócios,
pois não surgiu ainda para o direito um centro de imputação de normas jurídicas
diferente dos sócios. Nesse caso, a lei determina que o patrimônio social constitui um
222
A expressão “sociedade simples” é usada em dois sentidos diferentes pelo CC: em contraposição à
expressão “sociedade empresária” (art. 982) e para designar um tipo societário específico (art. 997-1038).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
290
patrimônio especial, de titularidade comum dos sócios (CC, art. 988) e que todos os
sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 990).
A existência de um patrimônio especial não significa que haja um patrimônio
autônomo em relação ao patrimônio dos sócios, mas apenas que uma parte do
patrimônio de cada um dos sócios está afetada ao exercício da atividade social. O
conjunto de direitos e deveres relacionados ao exercício da atividade social é de
titularidade de todos os sócios e constitui uma parcela identificável do patrimônio
pessoal de cada um. É apenas com a personificação da sociedade, pelo registro, que tais
direitos e deveres passam a integrar um patrimônio diverso do patrimônio dos sócios e
autônomo em relação a estes, qual seja, o patrimônio próprio da sociedade, pessoa
jurídica (FARACO, 2007, p. 142-143).
Além das sociedades em comum, também as sociedades em conta de
participação carecem de personalidade jurídica. A diferença, nesse caso, é que,
enquanto a sociedade em comum é uma sociedade ainda não personificada (podendo vir
a sê-lo), a sociedade em conta de participação é uma sociedade não-personificada (não“personificável”) por definição legal (CC, art. 991, caput e 993, caput).
Nesse caso, a situação patrimonial é análoga àquela das sociedades em comum
(CC art. 994). Já a responsabilidade pelas obrigações sociais perante terceiros é
exclusiva do sócio que exerce a atividade social (sócio ostensivo). A responsabilidade
dos demais sócios existe apenas perante o sócio ostensivo (CC, art. 991, parágrafo
único).
Como mencionado acima, além das sociedades, as associações e fundações
também são espécies de pessoas jurídicas de direito privado. Ao contrário das
sociedades, no entanto, elas não exercem atividade empresarial.
As associações consistem na união de pessoas para a persecução de fins não
econômicos (CC, art. 53), ao passo que as fundações são conjuntos de bens destinados à
persecução de fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (CC, art. 62).
Diferentemente das sociedades, as associações e fundações não podem ter fim
econômico. Isso não significa, no entanto, que associações e fundações não possam
exercer atividades econômicas, mas simplesmente que o exercício de atividade
econômica por essas pessoas jurídicas deve ser feito com objetivo de desenvolver seus
fins estatutários e não com o objetivo de obter lucro.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
291
Ao exercer atividade econômica, associações e fundações podem fazê-lo com
resultados positivos, isto é, com lucro, mas o lucro não pode ser apropriado pelos
associados, diretores ou conselheiros. No caso dessas pessoas jurídicas, o lucro precisa
ser reinvestido na própria associação ou fundação como meio para a realização de seus
objetivos estatutários. É isso que as distingue dos empresários (FARACO, 2007, p. 127128, n. 7).
Para sintetizar a relação entre os conceitos de pessoa jurídica, sociedade,
empresário e empresa no direito brasileiro, podemos dizer que: (a) nem toda pessoa
jurídica é empresária (além das associações e fundações, há sociedades nãoempresárias); (b) nem todo empresário é pessoa jurídica (é possível exercer atividade
empresarial individualmente ou por meio de coletividades não personificadas); (c) a
empresa, consistindo na atividade exercida pelo empresário, não é pessoa para o direito,
ou seja, não tem personalidade e não pode, portanto, ser titular de direitos e deveres.
Essas distinções e relações são fundamentais para a delimitação do fenômeno
que se pretenda regular juridicamente: o problema são os ilícitos praticados por pessoas
jurídicas ou por organizações coletivas em geral, sejam elas personificadas ou não?
Trata-se de regular ilícitos relacionados ao exercício da atividade econômica
empresarial – nos termos da legislação civil existente - ou da atividade econômica em
geral? Como tratar os indivíduos que exercem atividade empresarial?
Neste ponto, já é possível notar que o recorte feito pela legislação e pelo debate
jurídico criminais, a partir da noção de pessoa jurídica, pode deixar de abarcar uma
parte das atividades ilícitas praticadas no âmbito de organizações que exercem
atividades econômicas223.
Essa é uma questão a ser levada em conta na elaboração de políticas públicas e,
principalmente, na redação de textos normativos.
223
Como afirma Zuñiga Rodriguez, la abstracción PERSONA JURÍDICA no comprende las mismas
agrupaciones de personas en los mismos países, ni se refiere a todas las organizaciones com potencial
poder criminógeno. Es una construcción jurídica que depende de cada legislación y no comprende las
asociaciones de hecho. En términos económicos - funcional a los delitos socioeconómicos - la definición
que prima es EMPRESA, en tanto unidad económica del mercado constituida para producir bienes y
servicios. Pero también hay asociaciones de personas que no tienen fines de lucro como las empresas,
que también pueden ser agentes criminógenos, como puede ser un partido político, o una simple
asociación sin fines lucrativos, por lo que conviene ampliar el espectro conceptual A LOS DELITOS
QUE SE COMETEN EN UNA ORGANIZACIÓN DE personas, al margen de su personería jurídica.
En suma, si buscamos un denominador común en este tipo de criminalidad es sin duda LA
ORGANIZACIÓN (ZUÑIGA RODRIGUEZ, 2004, p. 262 e 263).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
292
Um exemplo do direito brasileiro pode deixar mais claro o que significa manter
em aberto a possibilidade de atacar o problema da ilicitude relacionada a organizações
por meios outros que não a responsabilidade (penal) de pessoas jurídicas. Trata-se do
modo como se estabeleceu o âmbito de aplicação do CDC (Código de Defesa do
Consumidor).
Embora grande parte dos problemas surgidos com o desenvolvimento do
mercado de produção e consumo em massa esteja relacionada ao modo como se
desenvolve atualmente a atividade econômica empresarial, de modo que, possivelmente,
a maior parte dos problemas os quais o CDC se destina a atacar seja resultado do
exercício de atividade empresarial por pessoas jurídicas, a definição do âmbito de
aplicação da lei com base nas idéias de pessoa jurídica ou de empresa representaria um
risco de que seu objetivo fundamental de proteção ao consumidor não fosse atingido,
tendo em vista a possibilidade de prejuízos ao consumidor serem causados por pessoas
jurídicas não empresariais (fundações que prestam serviços no mercado, cooperativas,
etc.) ou por entes coletivos sem personalidade jurídica (sociedades não-personificadas,
grupos de sociedades, etc.). Diante disso, o CDC estabelece seu âmbito de aplicação por
meio de um conceito novo, especificamente voltado a servir aos propósitos dessa lei,
qual seja, o conceito de fornecedor, definido pelo art. 3º., caput da lei do seguinte modo
(sobre o conceito de fornecedor, v. PÜSCHEL, 2006, p. 57-94):
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou
estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem
atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação,
importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou
prestação de serviços.
Portanto, uma primeira conclusão a que podemos chegar é que o debate acerca
da regulação jurídica de ilícitos praticados no âmbito de organizações que exercem
atividade econômica não deve assumir a priori que a pessoa jurídica seja o melhor meio
para definir o alcance da legislação.
Além disso, pode-se concluir também que qualquer que seja o recorte que se
pretenda adotar, a clareza com relação aos termos usados para expressar essa escolha é
fundamental para a correta delimitação do âmbito da responsabilidade.
A importância da clareza acerca do fenômeno que se pretende regular, bem
como quanto ao sentido jurídico da expressão “pessoa jurídica” ou quaisquer outras que
venham a ser utilizadas na legislação penal pode ser percebida pelas conseqüências da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
293
confusão feita em um acórdão do Tribunal Regional da 4ª. Região224, o qual merece por
isso um comentário mais detido neste ponto.
Conforme se lê no relatório da decisão:
O Ministério Público Federal denunciou ENIO NELCI SILVA FLORES,
dando-o como incurso no art. 55 da Lei nº 9.605/98 c/c art. 15, II, alíneas a,
b, e, i, em concurso formal com o delito previsto no art. 2º da Lei nº 8.176/91
e denunciou ENIO NELCI SILVA FLORES - FI, pessoa jurídica, pela
prática do delito previsto no art. 55 c/c art. 15, II, alíneas a, e, i, n, da Lei nº
9.605/98, sujeitando-se às penalidades aplicáveis, conforme disposto nos
artigos 21 a 24 da legislação ambiental citada, pelos seguintes fatos
delituosos:
" 1. 0 acusado ENIO NELCI SILVA FLORES agindo no interesse próprio e
em beneficio da pessoa jurídica "ENIO NELCI SILVA FLORES - FI", no dia
23 de outubro de 2003, por volta das 23h30min, utilizando-se da embarcação
denominada "XENA", inscrição nº 462-078827-9 , de propriedade de
"ADÃO NUNES DE SOUZA", CNPJ 87.602.389/0001-23, em área de
preservação ambiental, explorou matéria prima pertencente à União sem
autorização legal do Departamento Nacional de Produção Mineral- DNPM,
na área do Parque Estadual Delta do Jacuí, coordenadas geográficas Lat.
22J0465292 e Long. UTM6684451 (GPS 12 garmin, nº 36159387- fl. 19),
extraindo o volume de cerca de vinte (20) metros cúbicos de areia do Rio
Jacuí.
2. Na mesma oportunidade e local, o acusado ENIO NELCI SILVA FLORES
e a empresa denunciada "ENIO NELCI SILVA FLORES - FI", utilizando-se
da draga "XENA", agindo no interesse próprio e em benefício da pessoa
jurídica, executaram extração de recursos minerais sem a competente licença
ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental - FEPAM,
provocando degradação ambiental dentro dos limites do Parque Estadual
Delta do Jacuí, considerado por lei como área especialmente protegida.
3. Conforme constatado pela Patrulha Ambiental (fls. 06/13), a draga de
sucção "XENA", sem possuir a necessária autorização do DNPM e sem
licença da FEPAM, foi flagrada executando mineração clandestina de areia
durante a noite, no intuito de fraudar a fiscalização, por ordem do
denunciado, o qual determinou a mineração em local no qual sabia ser
proibida tal atividade, por tratar-se do Parque Estadual Delta do Jacuí.
(...)
A denúncia foi recebida em 25/06/2004 (fl. 02).
Regularmente processado o feito, foi proferida sentença, publicada em
17/10/2005, julgando procedente a denúncia para: (a) CONDENAR o réu
ÊNIO NELCI SILVA FLORES, pela prática dos delitos enunciados nos arts.
2º da Lei 8.176/91 e 55 da Lei 9.605/98, c/c o art. 70 do CP, às penas de 1
(um) ano e 02 (dois) meses de detenção e 10 (dez) dias-multa, no valor
unitário de 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente ao tempo dos
fatos, devidamente atualizado (concurso formal entre os crimes de usurpação
do patrimônio público e extração de recursos minerais sem autorização).
Substituiu a pena privativa de liberdade aplicada ao réu ÊNIO NELCI
SILVA FLORES por duas restritivas de direitos, consistente em prestação
pecuniária, no valor de 02 salários mínimos e prestação de serviços à
comunidade; e (b) CONDENAR a pessoa jurídica ÊNIO NELCI SILVA
FLORES - FI, pela prática do delito tipificado no artigo 55 c/c artigo 15, II,
224
TRF 4ª. Região – Apelação Criminal no. 2004.71.00.024695-3/RS – Rel.Luiz Carlos Canalli – j.
14/08/2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
294
alíneas a, b, i, n, c/c artigos 21 a 24, todos da Lei 9.605/98, cumulativamente,
à pena restritiva de direito de suspensão definitiva de suas atividades e à pena
de prestação de serviços à comunidade consistente na manutenção de um
espaço público, a ser determinado pelo Juízo da Execução Penal, pelo prazo
de 01 (um) ano.
O réu apela requerendo a reforma parcial da sentença, no que diz respeito à
pessoa jurídica do recorrente quanto a suspensão definitiva das atividades da
empresa, que se efetivada ficará privado das atividades que mantém o seu
sustento e de sua família.
O Ministério Público Federal também apela requerendo: a) aplicação da regra
do concurso formal impróprio; b) a majoração da pena aplicada ao art. 2º da
Lei 8.176/91, em razão da culpabilidade, dos antecedentes e das
conseqüências do delito, bem como a incidência das agravantes do art. 61 do
CP, I "a" (motivo torpe) e "c" (mediante dissimulação); c) necessidade de
aumento da pena em patamares superiores a 1/6, pela incidência do concurso
formal; d) inaplicabilidade da substituição da pena privativa de liberdade por
penas restritivas de direito; e) necessidade de elevação da pena de prestação
pecuniária.
O Ministério Público Federal opinou pelo parcial provimento do recurso da
acusação e da defesa (fls.367/384).
Resultado foi o provimento parcial dos recursos, com alteração apenas das
sanções aplicadas.
A questão problemática que se percebe nesse caso é que os réus são, na verdade,
a mesma pessoa, uma vez que Ênio Nelci Silva Flores, pessoa física, é empresário
individual. Portanto, embora desde a denúncia o caso tenha sido tratado como tendo
dois réus, havia apenas um.
Ocorre que a constituição de uma coletividade, bem como a personificação dessa
coletividade para o exercício de uma atividade econômica empresarial constituem uma
possibilidade, mas não uma obrigação ou necessidade no direito brasileiro. Como se
disse acima, nem todo empresário é pessoa jurídica.
Em grande parte dos casos, os indivíduos que desejem exercer uma atividade
econômica terão interesse em constituir pessoas jurídicas para tanto. A criação de
coletividades permite juntar esforços e o incentivo clássico para a constituição de
pessoas jurídicas é a possibilidade de limitar os riscos relacionados ao exercício da
atividade empresarial.
Ainda assim, é possível, como no caso julgado, que um indivíduo (pessoa física)
opte por exercer uma atividade empresarial individualmente. Nesse caso, uma parte do
seu patrimônio será destinada ao exercício da empresa, sem constituir, no entanto,
patrimônio autônomo. O que ocorre é apenas a afetação de uma parte do patrimônio do
indivíduo ao exercício de sua atividade empresarial e uma distinção dos atos que ele
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
295
pratica enquanto empresário, isto é, os atos relacionados ao exercício da empresa, dos
atos que pratica, digamos assim, em sua vida privada (atos não-relacionados com o
exercício da empresa).
Portanto, nesse caso, há um empresário (o indivíduo, pessoa física), há uma
empresa, mas não há pessoa jurídica. Não há, portanto, nenhum centro de imputação
diverso do próprio indivíduo, seja para a responsabilidade civil, para a responsabilidade
administrativa ou para a responsabilidade penal.
Embora não haja no acórdão nenhuma argumentação expressa nesse sentido, é
possível supor que o propósito do tribunal tenha sido aplicar uma sanção penal que
estivesse voltada e atingisse diretamente o exercício da atividade empresarial.
Para que isso fosse possível, no entanto, o âmbito de aplicação da lei penal teria
que ser definido de outra forma, com base no exercício de atividade empresarial, e não
com base na figura da pessoa jurídica.
Tem-se a impressão de um descompasso entre o que o Tribunal entende ser o
objetivo da lei penal e o modo como a própria lei definiu seu âmbito de aplicação. Esse
caso nos mostra, portanto, como a falta de clareza sobre os objetivos da chamada
“responsabilidade penal da pessoa jurídica” e o descompasso entre o que se consideram
serem seus objetivos e a técnica legislativa empregada para atingi-los pode levar a
resultados problemáticos.
3. TRANSFORMAÇÃO DE PESSOAS JURÍDICAS
O fato de as pessoas jurídicas não terem uma base biológica como as pessoas
físicas faz com que tenham certas peculiaridades, as quais precisam ser consideradas
quando da regulação de sua responsabilidade, seja ela penal, administrativa ou civil.
Diferentemente dos indivíduos (pessoas físicas) as pessoas jurídicas podem
transformar-se, passando por modificações do seu contrato social ou estatuto, bem como
cindir-se, fundir-se, incorporar ou ser incorporadas por outras. Trata-se de situações em
que a identidade da pessoa jurídica original é afetada.
Nos casos de responsabilidade civil, tendo em vista que a sanção consiste em um
débito (o qual é em princípio transferível), a possibilidade de adaptação da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
296
responsabilidade às transformações da pessoa jurídica é relativamente simples do ponto
de vista jurídico-dogmático. Já no âmbito da responsabilidade penal, no entanto, o
princípio de que a pena não deve ultrapassar a pessoa do condenado – talhado para lidar
com indivíduos – tende a constituir um obstáculo jurídico-dogmático para tratar com as
pessoas jurídicas nessas situações.
Diante disso, existe o risco de que a aplicação da lei penal à pessoa jurídica seja
elidida – inclusive por ma fé – diante do desaparecimento da pessoa jurídica no âmbito
da qual se praticou o ato delituoso ou da sua transformação em pessoa diversa.
Exporemos abaixo os casos de transformações de pessoa jurídicas, uma vez que
tais fenômenos, a nosso ver, devem ser levados em consideração quando da formulação
da regulamentação sobre responsabilização.
Incorporação
A incorporação é um negócio jurídico por meio do qual uma ou mais sociedades
são absorvidas por outra (CC, art. 1116; Lei nº. 6.404/1976, art. 227). Como resultado
da incorporação, todo o patrimônio da sociedade incorporada integra-se ao patrimônio
da sociedade incorporadora e a sociedade incorporada é extinta (CC, art. 1.118; Lei nº.
6.404/1976, art. 227, § 3º.).
Há sucessão universal, transferindo-se todo o patrimônio da incorporada à
incorporadora, tanto o ativo quanto o passivo. Sendo assim, os débitos da incorporada
passam a ser de titularidade da incorporadora, o que significa que, do ponto de vista da
responsabilidade civil, a sanção – consistente no dever de reparar – é transferida para a
sociedade incorporadora.
Com relação à sanção penal, é preciso levar em conta o fato de que existe a
possibilidade de que a pessoa jurídica imputada deixe de existir em virtude de
incorporação, sendo preciso refletir sobre se, e em quais hipóteses faria sentido aplicar a
sanção penal à incorporadora, bem como sobre o modo de impedir que a incorporação
venha eventualmente a servir de expediente para escapar à imputação penal ou à
execução da sanção penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
297
Fusão
A fusão é um negócio jurídico por meio do qual duas ou mais sociedades se
unem para formar sociedade nova. Como resultado da fusão, todas as sociedades
originais são extintas e substituídas por uma sociedade nova, que as sucede
universalmente (CC, art. 1.119; Lei nº. 6.404/1976, art. 228).
Com relação ao patrimônio, portanto, a situação da nova sociedade resultante da
fusão é a mesma da incorporadora em relação à incorporada: ela se torna titular do
patrimônio – ativo e passivo – das sociedades que se fundiram.
Com relação ao direito penal, o problema que se apresenta também é o mesmo: o
que fazer diante da extinção da pessoa jurídica a ser imputada ou apenada e da nova
pessoa jurídica que resultou da fusão?
Cisão
A cisão é o negócio jurídico por meio do qual uma sociedade transfere parcelas
do seu patrimônio a outras sociedades. As sociedades que recebem o patrimônio da
sociedade cindida podem ser tanto sociedades já anteriormente existentes quanto
sociedades criadas especialmente para este fim. Embora o capítulo X do subtítulo II, do
Título II do livro “do direito da empresa” do CC se chame “da transformação, da
incorporação, da fusão e da cisão das sociedades” (grifo nosso), não se encontra aí
regulação expressa sobre a cisão, a não ser no art. 1122, § 3º. que trata da hipótese de
falência da sociedade cindida. Já a Lei n.º 6404/1976 possui regulação expressa sobre a
cisão, em seu art. 229.
A cisão pode ser total ou parcial, conforme se transfira parte ou a totalidade do
patrimônio da sociedade cindida. No caso de cisão total, a sociedade cindida extingue-se
(Lei n.º 6404/1976, art. 229).
Com relação à responsabilidade civil, determina o art. 229, § 1º:
Art. 229§ 1º. sem prejuízo do disposto no art. 233, a sociedade que absorver
parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e
obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as
sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
298
sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos
direitos e obrigações não relacionados.
Por sua vez, o referido art. 233 estabelece:
Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que
absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas
obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que
absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas
obrigações da primeira anteriores à cisão.
Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades
que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão
responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem
solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer
credor anterior poderá opor-se à estipulação, em relação ao seu crédito, desde
que notifique a sociedade no prazo de 90 (noventa) dias a contar da data de
publicação dos atos de cisão.
Com relação à responsabilidade penal, assim como nos casos anteriores, é
preciso ponderar uma solução para o caso de extinção da pessoa jurídica cindida.
Transformação de tipo societário
As sociedades podem converter-se de um tipo em outro. Nesses casos, sem que
haja extinção prévia da sociedade que se transforma, ela sofre uma alteração de seus
atos constitutivos (CC, art. 1113; Lei n.º 6404/1976, art. 220). Isso altera
qualitativamente a pessoa jurídica que pode passar, por exemplo, de sociedade limitada
a sociedade anônima, ou vice-versa (RIZZARDO, 2007, p. 954).
As razões empresariais para tais transformações relacionam-se normalmente à
necessidade de adaptar a estrutura da sociedade à expansão dos negócios, ao aumento de
seu capital, à necessidade de simplificar sua estrutura, entre outras (RIZZARDO, 2007,
p. 954).
Todos os tipos societários são, em princípio, aptos a transformarem-se uns nos
outros (RIZZARDO 2007, 956).225
A transformação não extingue obrigações da pessoa jurídica (CC, art. 1115; Lei
n.º 6404/1976, art. 222). Sendo assim, e tendo em vista que a sanção na
225
Segundo A. Rizzardo (RIZZARDO, 2007, p. 956), associações, fundações e cooperativas não podem
transformar-se em sociedades empresárias, em virtude de sua natureza peculiar. Nesses casos, seria
necessário primeiro dissolver e liquidar a pessoa jurídica, constituindo-se posteriormente a nova
sociedade.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
299
responsabilidade civil consiste no dever de indenizar, este tipo de responsabilidade não
é abalado.
Do ponto de vista da imputação penal, esse tipo de alteração das pessoas
jurídicas é, dentre todos, o que traz menos problemas, uma vez que não há extinção da
pessoa jurídica. Ainda assim, é preciso notar que haverá alteração do nome da pessoa,
conforme as regras dos arts. 1155 a 1662, CC.
Além disso, a transformação de tipo societário, ao levar à alteração também da
organização da sociedade pode ter efeitos relevantes para a aplicação de sanções penais
voltadas a regular tal organização.
4. UNIÃO DE PESSOAS JURÍDICAS
Além das possibilidades de transformação da pessoa jurídica, é preciso levar em
conta que pessoas jurídicas podem unir-se por vários meios para criar organizações mais
complexas, não personificadas.
Também essa situação é relevante do ponto de vista da imputação penal. Em
primeiro lugar, trata-se de fenômenos associativos que, sem configurar pessoa jurídica
autônoma, constituem organizações relevantes do ponto de vista da política criminal,
tanto por constituir ambiente no qual, justamente, tendem a surgir as situações para as
quais o direito penal tradicional – focado na responsabilidade individual – se mostra
inadequado, como também por constituir uma possível forma de evasão da incidência
da responsabilidade penal por parte das pessoas jurídicas.
Especialmente se o foco da regulação penal forem os aspectos viciados das
organizações, a eficácia da intervenção penal pode depender de sua aplicação ao
conjunto de pessoas jurídicas que atuam unidas.
Além disso, tendo em vista que as pessoas jurídicas podem ser criadas
livremente e que o poder de controle de uma pessoa jurídica pode em realidade ser
detido por outra pessoa jurídica, existe a possibilidade de utilização de pessoas jurídicas
controladas como meio de praticar ilícitos em favor da sociedade controladora. Existe
mesmo a possibilidade de criação de pessoas jurídicas controladas especificamente para
esse fim.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
300
Diante disso, é necessário que a lei penal leve em conta os fenômenos
associativos não personificados (grupos societários e consórcios) na regulação dos
ilícitos das pessoas jurídicas.
Grupos societários
A existência dos chamados grupos societários está ligada a estratégias usadas
pelas sociedades para a expansão de suas atividades e para o controle de riscos.
Dentre as possibilidades para expansão das atividades da sociedade está a
expansão externa, isto é, o crescimento da empresa por meio da utilização ou agregação
de estrutura organizacional ou meios de produção alheios (MULLER PRADO, 2006, p.
39).
Do ponto de vista jurídico, tal expansão pode ser feita de vários modos: por
operações de fusão ou incorporação; por formas de associação e colaborações de longo
prazo, como o consórcio, o licenciamento de tecnologia, a subcontratação, contratos de
gerenciamento, franchising e joint ventures; e a aquisição de propriedade e participação
no capital de outra sociedade (MULLER PRADO, 2006, p. 40).
Quando a expansão externa resulta na situação em que uma pessoa jurídica passa
a ter influência determinante no desenvolvimento da atividade de outra, pode-se dizer
que estamos diante de um grupo societário. Nesses casos, forma-se uma unidade
econômica de pessoas que se mantêm juridicamente autônomas (MULLER PRADO,
2006, p. 40-41).
Sendo assim, os grupos empresariais são formados por pessoas jurídicas
economicamente dependentes de outra pessoa jurídica, mas que não perdem sua
personalidade jurídica própria, mantendo, portanto, cada uma suas próprias estruturas
organizacionais e patrimônios independentes (MULLER PRADO, 2006, p. 41).
Por sua vez, o conjunto das pessoas jurídicas ligadas desse modo, isto é, o grupo
empresarial, não possui personalidade jurídica própria. Trata-se de uma organização
despersonalizada.
O fenômeno dos grupos é bastante difundido entre as grandes empresas
brasileiras e a manutenção da personalidade jurídica própria de cada membro do grupo,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
301
com a conseqüente independência patrimonial e não confusão de responsabilidades
entre o controlador e as pessoas jurídicas controladas, é um importante fator que torna o
grupo empresarial uma forma atraente para a expansão dos negócios, permitindo o
controle e a redução de riscos226 (MULLER PRADO, 2006, p. 41).
O direito brasileiro regula sistematicamente os grupos empresariais na Lei das
S.A. (Lei n.º 6.404/1976). Essa lei define critérios legais para a configuração dos grupos
empresariais, além de trazer também algumas regras voltadas a proteger certos
interesses relacionados aos grupos. (MULLER PRADO, 2006, p. 47).
Além disso, encontra-se tratamento específico das sociedades coligadas no CC
(arts. 1097 a 1101). No entanto, o CC apenas descreve situações de ligação entre
sociedades, sem estabelecer uma disciplina específica para os casos de participação de
uma sociedade no capital de outra (MULLER PRADO, 2006, p. 47).
Por fim, encontram-se referências diretas ou indiretas aos grupos empresariais de
maneira esparsa em diversos diplomas legais: CLT (Dec.-lei n.º 5.452/1943), art. 2º., §
2º.; Lei n.º 8.884/1994, art. 17 e art. 20; CDC (Lei n.º 8.078/1990), art. 28; Lei n.º
9.605/1998, art. 4º.
O art. 2º., § 2º da CLT estabelece a responsabilidade solidária de empresas que
“estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo
industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica”.
O art. 17 da Lei n.º 8.884/1994 prevê a responsabilidade solidária de “empresas
ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, que praticarem
infrações da ordem econômica. Além disso, no art. 20, a mesma lei determina que o
grupo de empresas também é considerado agente econômico.
226
Além desse aspecto, a formação de grupos apresenta também a vantagem da flexibilidade, pois sua
estruturação depende da simples participação no capital social, o que facilita tanto a aquisição do controle
quanto o desfazimento do investimento, pela compra e venda das ações ou quotas (MULLER PRADO,
2006, p. 42).
Do ponto de vista da gestão empresarial, a flexibilidade dos grupos, também constitui uma vantagem,
pois possibilita a gestão tanto concentrada quanto descentralizada e a atuação em locais diversos,
permitindo, por exemplo, a atuação internacional, com formação de empresas multinacionais ou
transnacionais (MULLER PRADO, 2006, p. 42 e 44).
Por fim, os grupos apresentam em geral a vantagem de permitir a expansão da sociedade com menores
custos, pois normalmente a aquisição de controle por meio da aquisição de participação societária envolve
investimentos menores do que iniciar uma nova atividade ou realizar a expansão interna dos negócios
(MULLER PRADO, 2006, p. 42-43).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
302
O art. 28 do CDC, por sua vez, estabelece responsabilidade subsidiária para as
“sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas”.
Finalmente, o art. 4º. da Lei n.º 9.605/1998, embora não se refira expressamente
aos grupos, prevê a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica sempre
que esta “for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos à qualidade do meio ambiente”,
permitindo a responsabilização civil de diferentes membros de um grupo de empresas.
Com relação aos critérios para configuração dos grupos empresariais, a doutrina
costuma distinguir, com base na sistemática da Lei das S.A., entre grupos de direito e
grupos de fato (MULLER PRADO, 2006, p. 53).
Os grupos de direito são aqueles constituídos por meio de uma convenção entre
sociedades controladora e controladas, conforme o art. 265 da Lei das S.A.
Segundo Fábio Konder Comparato (COMPARATO, 1978, p. 205), o grupo de
direito seria uma sociedade de sociedades, ou uma sociedade de segundo grau, não
personificada.
Já Viviane Muller Prado (MULLER PRADO, 2006, p. 60, n. 85) entende que
não haveria propriamente uma sociedade, pela ausência de um fim comum, mas o grupo
de direito seria, antes, um meio para legitimar a subordinação da atividade das empresas
do grupo à direção unitária da controladora.
Apesar da previsão legal, os grupos de direito são, no entanto, praticamente
inexistentes no Brasil227 (MULLER PRADO, 2006, p. 69).
Os grupos societários são muito difundidos no Brasil na modalidade grupos de
fato. Os grupos são de fato quando constituídos simplesmente pela aquisição do
controle societário de uma sociedade sobre outras.
Segundo a Lei das S.A., art. 243, § 3º., “considera-se controlada a sociedade na
qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas é titular de direitos de
227
Viviane Muller Prado aponta como possíveis razões para o baixo número de grupos de direito no
Brasil, entre outras, a artificialidade do modelo importado, a facultatividade de formação de grupos
convencionais – permanecendo a possibilidade de constituir os grupos de fato - e o alto custo, decorrente
do direito de recesso dos sócios minoritários da estrutura administrativa do grupo. O interesse em
legitimar a relação de subordinação entre controladas e controladora seria incentivo insuficiente para
levar o empresário a optar por incorrer no alto custo que a criação de grupos de direito implica (MULLER
PRADO, 2006, p. 71).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
303
sócios que lhe assegurarem, de modo permanente, preponderância nas deliberações
sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”.
A Lei das S.A. prevê algumas regras próprias para os grupos de fato, referentes à
responsabilidade de administradores, demonstrações financeiras, reparação de danos
pela controladora à controlada, etc. Mas, fora tais previsões legais específicas, aplica-se
às sociedades que compõem um grupo de fato as mesmas regras que se aplicam às
sociedades isoladas em geral (MULLER PRADO, 2006, p. 55).
No âmbito da responsabilidade civil, a lei e os tribunais têm recorrido
freqüentemente ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica para lidar com
os grupos societários.
O instituto da desconsideração da personalidade parte da própria idéia de
personalidade das pessoas jurídicas, isto é, pressupõe que existe uma separação entre os
direitos e deveres da pessoa jurídica e os direitos e deveres das pessoas que os compõem
(sejam estas pessoas físicas ou outras pessoas jurídicas) e consiste, justamente, na
previsão de hipóteses em que tal separação será pontualmente posta de lado
(ZANITELLI, 2007, p. 220).
Tratando-se de responsabilidade civil, isso significa que, em um determinado
caso, o patrimônio dos membros do grupo será tratado como se fosse único, podendo a
vítima do dano satisfazer-se a partir de qualquer um deles.
Seria possível imaginar-se solução assemelhada para o direito penal.
Naturalmente, tendo em vista que o objetivo não será mais em primeira linha a
reparação do dano sofrido pela vítima do ilícito, seria necessário adaptá-lo aos objetivos
da responsabilidade penal.
Uma possibilidade, por exemplo, seria permitir a responsabilidade penal da
controladora (ainda que não de todas ou de qualquer uma das sociedades do grupo)
quando o ilícito for praticado no âmbito de uma sociedade controlada. Fundamento para
isso seria o fato de que as decisões acerca da administração da sociedade controlada
podem se considerar tomadas, em última análise, no âmbito da controladora e em seu
benefício.
Outra possibilidade seria responsabilizar todos os membros do grupo, no caso
em que se configure um problema de organização que seja geral. Fundamento para isso
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
304
seria a unidade organizacional e tal posição se justificaria na medida em que a
responsabilidade penal e sua sanção sejam voltadas a corrigir problemas de organização.
Seria necessário, no entanto, – assim como também se faz no âmbito da
responsabilidade civil – ponderar que quanto mais ampla a admissão da
desconsideração da personalidade, menor serão os efeitos positivos da personificação de
coletividades do ponto de vista empresarial. Seu papel como instrumento de
organização e de limitação de riscos da atividade empresarial fica diminuído quando se
ampliam as possibilidades de desconsiderar a personalidade dos membros do grupo.
Trata-se de uma ponderação de interesses entre o estímulo à atividade econômica e os
objetivos da imputação penal. 228
Consórcios
Os consórcios são um tipo de associação empresarial paritária, isto é, a união de
sociedades em que não se estabelece uma relação de controle de um membro sobre o
outro. Os participantes de um consórcio se unem para colaboração temporária ou
permanente, sem a formação de uma sociedade. Existe uma direção unitária, mas esta
não implica controle ou influência dominante de um participante sobre o outro
(MULLER PRADO, 2006, p. 57-58).
Dentre decisões judiciais levantadas no âmbito desta pesquisa, há um caso
envolvendo consórcio (TRF da 4ª. Região – MS n. 2002.04.01.054936-2/SC – Rel.
Vladimir Freitas – j. 25/02/2003). A decisão reconheceu a impossibilidade de imputação
de responsabilidade criminal com fundamento na Lei n.º9605/98 ao consórcio, pelo fato
de este não ter personalidade jurídica.
Conforme se lê na ementa:
Os consórcios são mera união de pessoas jurídicas e, por não
terem personalidade jurídica, não respondem por crimes
ambientais praticados por suas componentes, seus representantes
ou empregados.
E conforme o voto do relator:
228
Conforme Leandro Martins Zanitelli, a jurisprudência brasileira tem tendido a aplicar o instituto da
desconsideração da personalidade jurídica de forma bastante ampla aos grupos empresariais em casos de
responsabilidade civil quando se trata de proteger terceiros diante dos grupos, indicando uma tendência
dos tribunais a favorecer a proteção de terceiros em detrimento ao estímulo que a personificação
representa para a atividade econômica (ZANITELLI, 2007, p. 240)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
305
Assim, consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para alcançar
um propósito. Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por via
contratual, cabendo a responsabilização penal decorrente de crime ambiental
ser atribuída a cada empresa, individualmente, em conformidade com suas
atribuições dentro do pacto celebrado. Isso porque cada participante do
consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos nos contratos,
respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato, não há
como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem
jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente.
Conseqüentemente, não responde o consórcio por crime ambiental.
Aqui, assim como no caso dos grupos societários, é preciso ponderar o interesse
em se regular a organização em si, caso em que pode ser necessário responsabilizar
todos os participantes do consórcio.
Isso seria importante, por exemplo, se o objetivo da imputação penal e de sua
sanção for a correção de vícios na estrutura organizacional.
4
BIBLIOGRAFIA
ASCARELLI, Tullio. Corso di diritto commerciale – Introduzione e teoria
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ASQUINI, Alberto. Profili dell’impresa. Rivista del Diritto Commerciale 41, 1943.
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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
307
ANEXO 6 - DIAGNÓSTICO DA DISCUSSÃO E APLICAÇÃO DA
RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS NO
CENÁRIO BRASILEIRO
Neste texto, trataremos de descrever o cenário brasileiro em relação ao instituto
da responsabilidade penal de pessoas jurídicas: 1) o arcabouço normativo: sua
introdução na Constituição de 88 e sua regulamentação para o caso de crimes
ambientais; 2) o debate doutrinário que se seguiu a essa inovação; 4) um diagnóstico da
aplicação do instituto, colhido a partir de pesquisa empírica de jurisprudência nos
Tribunais Regionais Federais e Tribunais Superiores; e, por fim, 3) uma breve análise
dos projetos de lei em tramitação, que visam a ampliar o alcance do instituto.
1.
DESCRIÇÃO DO ARCABOUÇO NORMATIVO
A Constituição Federal de 1988 trouxe, em dois de seus artigos, disposições
relativas à responsabilidade da pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos. O art. 173,
§5° determina que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da
pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições
compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e
financeira e contra a economia popular” (grifos nossos). O art. 225, § 3°, por sua vez,
dispõe que “as condutas e as atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
independentemente da obrigação de reparar os danos causados” (grifos nossos). Por
trazerem, pela primeira vez na história do Direito brasileiro, a previsão de
responsabilidade penal da pessoa jurídica, tais dispositivos tornaram-se objeto de grande
discussão dogmática em nosso país, não apenas por parte da doutrina penalista, mas
também da doutrina constitucionalista.
Estas discussões se intensificaram ainda mais quando, a despeito dos
questionamentos
sobre
a
constitucionalidade
do
estabelecimento
dessa
responsabilização pela Constituição, surge a Lei n.º 9.605/98, que passa a prever, em
nível infraconstitucional, a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
308
Fundamentada pelo supracitado art. 225, §3°, CF, esta lei foi resultado do
projeto de lei n° 1.164-E de 1991 da Câmara dos deputados, modificado pela versão do
substitutivo 62 no Senado Federal. Em seu art. 3º, a responsabilidade penal da pessoa
jurídica foi estabelecida da seguinte forma: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a
infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu
órgão colegiado, no interesse ou no benefício da sua entidade. Parágrafo único: a
responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato”.
Nos itens a seguir, buscaremos retratar o debate doutrinário brasileiro acerca do
tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica, tratando de seus aspectos
propriamente dogmáticos, bem como dos questionamentos levantados a respeito da
constitucionalidade deste instituto.
2.
UM RETRATO DO DEBATE DOUTRINÁRIO BRASILEIRO ACERCA
DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS
Um retrato do debate jurídico brasileiro acerca da responsabilidade penal das
pessoas jurídicas pode ser analisado e exposto a partir de três diferentes perspectivas.
Inicialmente, podemos enquadrar o debate sob uma perspectiva constitucional, isto é,
expor a parcela dos argumentos que, quando da análise deste modelo de
responsabilização, levantou questões acerca de sua constitucionalidade. Trata-se, neste
ponto, de apresentar os argumentos que se dedicaram a pensar i) se, em um primeiro
nível, as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF, seriam compatíveis com os demais
princípios consolidados na constituição, e ii) se, em um segundo nível, as previsões da
Lei de Crimes Ambientais seriam, por sua vez, eivadas de inconstitucionalidade e,
portanto, deveriam ser tidos como inválidos.
Sob uma segunda perspectiva, o debate doutrinário brasileiro pode ser analisado
sob o ponto de vista da dogmática penal propriamente dita. Neste ponto, serão expostos
os argumentos que, de um ponto de vista interno à teoria do delito, procuraram pensar
se a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é compatível com os elementos
estruturantes do conceito de delito, tais como o conceito de ação, de culpabilidade, entre
outros.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
309
Por fim, a partir de uma terceira perspectiva, o debate pode ser exposto a partir
de discussões sobre política criminal. Neste momento, o foco está em argumentos de
ordem pragmática, a respeito da necessidade e da viabilidade concreta da instituição da
responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
2.1
A polêmica acerca da adoção do instituto pela Constituição Federal
As normas constitucionais supramencionadas, em parte por constituírem uma
novidade em matéria constitucional, em parte pela falta de clareza de sua redação,
despertaram não apenas entre os penalistas, mas também entre os constitucionalistas,
grandes embates.
Em um primeiro momento, a discussão a respeito da responsabilização penal da
pessoa jurídica no direito brasileiro passou pelo enfrentamento da seguinte questão:
teria a Constituição Federal, de fato estabelecido tal tipo de responsabilização? Se
não, seria, de qualquer forma, possível e constitucional a instituição da
responsabilidade penal das pessoas jurídicas em nosso ordenamento jurídico? Para
responder tais perguntas, os teóricos se ocuparam, além da exegese dos artigos 173, §5°
e 225, §3, da análise da compatibilidade do instituto com princípios constitucionais,
como os princípios da pessoalidade da pena (CF, art. 5 °, XLV), da sua individualização
(CF, art. 5°, XLVI) e da culpabilidade (CF, art. 5°, LVII).
Neste debate acerca da constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa
jurídica, encontram-se tanto interpretações que a afirmam como entendimentos que a
negam229, encontrando-se alguns autores que não oferecem um posicionamento claro a
respeito do assunto230.
229
Há quem afirme que, além daqueles que reconhecem e daqueles que negam a previsão constitucional
deste instituto, haveria aqueles que não tomariam partido a respeito. Como exemplo deste último caso,
costuma-se citar José Afonso da Silva, que, ao comentar as medidas repressivas estabelecidas pela
Constituição a cargo do Poder Público no que tange à tutela penal ao Meio Ambiente, teria deixado de se
posicionar a respeito do tema. No entanto, não nos parece ser correta esta avaliação. Isso porque muitos
daquelas “faltas de posicionamento a respeito” devem ser analisadas como aceitações tácitas da
constitucionalidade da previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica. O próprio José Afonso,
Invocando o art. 173, § 5°, afirma que este “prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas
jurídicas independentemente de seus dirigentes, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza,
nos atos praticados contra a ordem econômica, que tem como um de seus princípios a defesa do meio
ambiente” (SILVA, 2007, p. 848). O fato deste autor não problematizar a questão e, mais ainda, partir
dela como um dado, parece evidenciar sua concordância com a mesma.
230
Um posicionamento nebuloso pode ser encontrado na formulação de Celso Ribeiro Bastos e Ives
Gandra Martins. Estes autores, ao analisarem o art. 225, § 3° da CF, aceitam, por um lado, como dado o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
310
Aqueles que se colocam contra a recepção da responsabilidade penal da pessoa
jurídica pela Constituição o fazem formulando argumentos de diversaz ordens. Podemos
enxergar três principais pilares que sustentam a argumentação a favor da
inconstitucionalidade do instituto: a) um de ordem estritamente dogmática, b) um que
se funda sobre interpretações literal e sistemática do texto constitucional, e c) um que
se refere ao contexto histórico dos debates constituintes.
a) A defesa da inconstitucionalidade do instituto com base em argumentos
dogmáticos será analisada de forma pormenorizada no ponto 2.2 infra, quando
exporemos o debate travado pelos penalistas brasileiros em torno das principais
categorias da teoria do delito que entrariam em conflito com o instituto em questão. Por
hora, no entanto, cabe citar aqueles que, embora não sendo teóricos do direito penal,
sustentam a incompatibilidade da responsabilidade da pessoa jurídica com a Carta
Magna, com base em argumentos dogmáticos.
Este é o caso de José Cretella Júnior, que, entre os constitucionalistas que negam
a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, é o que melhor
desenvolve sua argumentação. Ao analisar o art. 225, § 3°, da Constituição Federal de
1988, este autor afirma contundentemente: “o dispositivo é bem claro ao fixar, de início,
os dois tipos de responsabilidades, a responsabilidade individual – civil ou criminal –
dos dirigentes, pessoas físicas, e a responsabilidade civil, tão-só, da pessoa jurídica”
(CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4028, grifos nossos). Para justificar sua opinião,
Cretella Júnior sustenta que “a fonte primária ou remota – ato gerador, a causa
determinante – da responsabilidade, pública ou privada, é sempre, em última análise, o
homem”. “’Agir’ ou ‘deixar de agir’, afirma, seria traço típico do homem, da pessoa
física, que se expande ou se retrai no mundo”. (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4030).
Com base nesta premissa, este autor entende, então, que “a pessoa jurídica não tem
vontade”, sendo que, ainda que o Direito lhe atribua direitos e deveres, em definitivo se
fato do constituinte não ter excluído qualquer tipo de pessoa da possibilidade de responsabilização. Por
outro, no entanto, seu posicionamento parece mal formulado. Isso porque, ao afirmarem que “são
puníveis tanto as pessoas físicas quanto as pessoas jurídicas, estas pecuniariamente, e seus diretores, se
tipificada a infração, penalmente.” (BASTOS/MARTINS, 1998, p. 925, grifos nossos), não fica claro se,
neste ponto, há uma negação da possibilidade de responsabilização penal da própria pessoa jurídica ou
se, de fato, o que há é apenas uma falta de clareza conceitual por parte destes autores, ao criarem uma
oposição artificial entre “sanção pecuniária” e “sanção penal”. Do trecho supracitado, podem-se extrair
dois entendimentos diversos: a) que os autores admitem responsabilidade penal apenas às pessoas físicas,
cabendo às pessoas jurídicas apenas a responsabilização não-penal (“pecuniária”); ou b) que os autores
usam “sanção penal” e “sanção privativa de liberdade” como sinônimos, reduzindo, erroneamente, aquela
a esta.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
311
trataria sempre de uma ou várias pessoas físicas que cometeram o ato prejudicial
imputado à pessoa jurídica231 (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p. 4039-4040).
Conseqüentemente, a responsabilidade da pessoa jurídica seria “necessariamente
patrimonial, a única compatível com sua natureza”232 (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.
4044).
b) À análise propriamente dogmática acerca da capacidade de ação dos entes
coletivos, costuma-se acrescer um argumento que parte da análise literal do texto
constitucional para afirmar a inexistência da responsabilidade penal da pessoa jurídica
em nosso sistema. Partindo da letra do Art. 225, § 3º, CF, costuma-se afirmar que o
constituinte nunca teria recepcionado a responsabilidade penal das pessoas jurídicas,
pois teria colocado, “de um lado, a pessoa física, a quem se aplica o termo conduta, de
outro lado, a pessoa jurídica, à qual se aplica o vocábulo atividade, cominando, aos atos
lesivos das primeiras, sanções penais, e, às atividades das segundas, sanções
administrativas e econômicas, independentemente da obrigação de reparação dos danos
causados” (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.4045. No mesmo sentido, ver SANTOS,
2006, p. 428; PRADO, 1992, p. 32-33).
Há também autores que buscam fazer uma análise sistemática dos dispositivos
em questão. Nestes termos, levantando objeções acerca da compatibilidade deste
instituto com outros valores protegidos pela Constituição, autores como Luiz Régis
Prado afirmam que à luz dos princípios penais ínsitos na própria Constituição e no
sentido tradicional das categorias jurídico-penais a elas adstritas, a responsabilidade
penal da pessoa jurídica seria impossível (PRADO, 1992, p. 32-33). Isso porque uma
análise isolada dos dispositivos constitucionais supracitados seria insuficiente, sendo
necessário interpretá-los de maneira sistemática. É neste sentido que autores como Luis
Luisi, Luiz Vicente Cernicchiaro e René Ariel Dotti sustentam que, dado que haveria
princípios ordenamento constitucional que deveriam prevalecer no caso de conflitos,
uma análise isolada do dispositivo dos artigos 173, §5º e 225, § 3°, admitindo a
231
Sobre a discussão dogmática sobre os conceitos de ação e de culpabilidade no âmbito da
responsabilidade penal da pessoa jurídica, ver o item III.3, infra.
232
Este autor chega mesmo a literalmente afirmar que “o adágio romano societas delinquere non potest
tem aplicação, ainda hoje, não havendo responsabilidade penal das pessoas jurídicas”. (CRETELLA
JÚNIOR, 1988, p. 4044). No entanto, admite como possível a responsabilização penal da pessoa jurídica
por ocasião de legislação que regule o art. 173, § 5° da CF, desde que excluída a pena de privação ou
restrição de liberdade, já que “totalmente incompatível com a sua natureza” (CRETELLA JÚNIOR, 1988,
p. 4045).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
312
responsabilidade penal da pessoa jurídica, entraria em conflito com valores básicos
protegidos pela própria Constituição, a dizer, os princípios da pessoalidade da pena (CF,
art. 5 °, inc. XLV), da culpabilidade (CF, art. 5°, inc. LVII) e da individualização da
pena (CF, art. 5°, inc. XIII) (PRADO, 2001, p. 108; LUISI, 2001, p. 90-93; DOTTI,
1995, p. 189; DOTTI, 2001, 152; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143)233.
c) Por fim, em um terceiro nível de objeção, alguns autores que buscaram na
reconstrução histórica do processo constituinte uma justificativa para negar a adoção
constitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Miguel Reale Jr., por
exemplo, considerando a importância da interpretação histórica em matéria
constitucional, sustenta que não teria sido intenção do constituinte admitir a
responsabilidade penal da pessoa jurídica. Na votação do primeiro turno do processo
constituinte, afirma, teria sido suprimido o termo “criminal”, contido na fórmula
“responsabilidade criminal desta”, o que, por si só, demonstraria que o legislador
originário tivera a intenção de manter somente as pessoas físicas como passíveis de
responsabilização penal. Usando deste argumento, sustenta-se que o art. 225, §3° da
Constituição deveria ser interpretado no sentido de que as pessoas físicas e jurídicas
devam se sujeitar, respectivamente, a sanções penais e administrativas (REALE
JÚNIOR, 2001, 138).
Com um posicionamento diametralmente oposto àqueles que negam a
constitucionalidade e a recepção da responsabilidade penal da pessoa jurídica por nosso
ordenamento, diversos teóricos marcaram também suas posições. Neste grupo podem
ser incluídos tanto aqueles que não apenas defendem a constitucionalidade, mas
aprovam a opção tomada pelo constituinte, quanto aqueles que, embora a considerem
um equívoco de lege ferenda, admitem-na como inquestionável de lege lata. 234
233
Neste mesmo sentido, Cernicchiaro defende que é imperativo entender a Constituição como um
sistema ao se analisar os dispositivos relativos à responsabilidade da pessoa jurídica. Para este autor, o art.
173, § 3° determinaria o modo com o qual se deve interpretar o art. 225, § 5°, já que ele deixa explícita a
necessidade de adequar o tipo de sanção com o tipo de pessoa a quem ela se aplica (CERNICCHIARO,
1991, p.141). Encontrando-se a sanção penal, por força do art. 5°, XLV da CF, vinculada à
responsabilidade da pessoa física, então a sanção compatível com as pessoas jurídicas apenas poderia ser
outra que não a penal (CERNICCHIARO, 1991, p. 144; BITENCOURT, 1999, p. 68). Sustentando a
violação do princípio da culpabilidade por parte da responsabilização penal dos entes coletivos, ver
SANTOS, 2006, p. 429.
234
Este é o caso, por exemplo, de autores como José Carlos de Oliveira Robaldo e René Ariel Dotti, que,
embora admitam que a interpretação literal desses dispositivos constitucionais represente o
estabelecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, se posicionam por uma compreensão
teleológica dos dispositivos constitucionais em questão, a fim de se evitar esse tipo de responsabilização
no direito brasileiro, a qual se deveria restringir a sanções de ordem civil e administrativa apenas (é o caso
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
313
Parece-nos que os teóricos de Direito Constitucional que se colocaram a favor da
constitucionalidade da previsão de responsabilidade penal das pessoas jurídicas não
formulam seus argumentos de forma pormenorizada.
Ou seja, diante dos artigos
citados, não se dedicam a defender largamente sua recepção constitucional A título de
exemplificação, Pinto Ferreira se limita a afirmar que a Constituição de 1988 introduziu
a responsabilidade penal por danos ao meio ambiente para as pessoas jurídicas,
entendendo caber ao legislador a regulação correspondente da matéria a partir da
criação de tipos penais e através do direito administrativo (FERREIRA, 1995, p. 302;
SHECAIRA, 2003, p. 133). Da mesma forma, Walter de Moura Agra afirma apenas que
com a inovação trazida pela Constituição em matéria ambiental “não apenas os
administradores das empresas poderão sofrer sanções penais pela prática de crimes
contra o meio ambiente, mas as próprias empresas, na condição de pessoas jurídicas,
poderão ser responsabilizadas criminalmente (CF, art. 225, § 3°)” (AGRA, 2007, p.
697). 235
Dada a reduzida elaboração argumentativa dos constitucionalistas que defendem
a adoção desta forma de responsabilidade pela Constituição de 1988, parece-nos que a
tarefa de fundamentação de sua constitucionalidade ficou mesmo a cargo dos teóricos
do Direito Penal. É neste campo que serão formuladas as mais elaboradas objeções
frente aos três pilares que defendem a inconstitucionalidade deste instituto, tais como
expostos acima. Nos parágrafos a seguir236, procuraremos expor as principais tentativas
de objeções frente àqueles que se colocaram contra a constitucionalidade da
responsabilização penal dos entes coletivos.
de ROBALDO, 1998, p. 1-2, e DOTTI, 1995, p. 187). Da mesma forma, Zaffaroni e Pierangeli, apesar de
admitirem que o instituto foi incorporado ao ordenamento brasileiro, se posicionam contrariamente à
imputação penal da pessoa jurídica, pois esta implicaria em uma infração ao nullum crimen sine conducta,
afirmando, in verbis: “a Constituição admitiu a responsabilidade desses entes no que respeita a ordem
econômica e financeira (art. 173, §5°) e ao meio ambiente (art. 225, §3°)” (ZAFFARONI/ PIERANGELI,
2007, p. 356). Ressalvadas as particularidades de seu pensamento, também Luis Paulo Sirvinkas
argumenta que, apesar de ser “tormentoso” admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica no direito
penal, esta fora admitida tanto pela Constituição Federal (art. 225, § 3°) quanto pela legislação
infraconstitucional (art. 3°, Lei nº. 9.605/98) (SIRVINKAS, 1998(b), p.22).
235
O mesmo padrão argumentativo pode ser visto, ainda, em Paulo Affonso Leme Machado, ao afirmar
que “a responsabilidade penal da pessoa jurídica é introduzida no Brasil pela Constituição Federal de
1988, que mostra um dos seus traços inovadores” (MACHADO, 2006, p. 687), bem como em Galvão da
Rocha, ao mencionar que a Constituição Federal expressamente admitiu a responsabilidade penal da
pessoa jurídica (ROCHA, 1998, p. 27).
236
As objeções frente aos argumentos de ordem dogmática que defendem a inconstitucionalidade da
responsabilidade penal da pessoa jurídica (letra “a)” supra) serão mais bem expostas no item V.2.2 infra.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
314
b) Procurando refutar os resultados da interpretação literal da Constituição
procedida por autores como Régis Prado e Cretella Júnior, autores como Sérgio
Salomão Shecaira e Vladmir Passos de Freitas extraem outras conclusões da leitura do
Art. 225, §3° da Constituição. Para Shecaira, a diferenciação entre conduta e atividade,
formulada por Cretella Júnior e Régis Prado, seria insustentável, pois desconsideraria o
fato de que não existe precisão matemática no processo de determinação do sentido de
uma proposição jurídica (SHECAIRA, 2003, p. 136). Para este autor, o termo atividade,
usado pelo dispositivo em questão, não seria atribuível somente às pessoas jurídicas,
devendo também o ser às pessoas físicas. Neste sentido, os termos conduta e atividade
teriam sido usados como sinônimos, fato que afastaria o argumento de que aos entes
coletivos apenas caberia sanções de ordem administrativa ou civil. Mais ainda, ao usar a
conjunção “e” entre as palavras “penais” e “administrativas”, o constituinte teria tido a
intenção expressa de incluir a pessoa jurídica não só como alvo de sanções
administrativas, mas também de sanções penais (FREITAS, 1999, p. 213). Neste
sentido, tanto pessoas físicas como jurídicas poderiam praticar condutas (ou atividades)
que lesassem o meio ambiente, e por isso poderiam ser punidas (SHECAIRA, 2003, p.
136-137).
Também o argumento de inconstitucionalidade fundado em uma interpretação
sistemática da Constituição é alvo de críticas. Segundo alguns autores, a idéia de que a
responsabilização penal da pessoa jurídica afrontaria diretamente valores constitucionais
como o princípio da culpabilidade237 e o da responsabilidade pessoal238 não seria
sustentável.
Em primeiro lugar, porque as previsões dos arts. 173, §5° e 225, § 3°, CF não
afrontariam diretamente o princípio constitucional de nullun crime sine culpa239. Apesar
237
O argumento, em linhas gerais, seria o de que, por ser dirigida a um ente sem autonomia moral, a
sanção penal contra a pessoa jurídica violaria o princípio de que não pode haver pena sem culpabilidade.
238
A idéia geral pressuposta aqui é de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, por envolver
conseqüências maléficas para todos os membros do ente coletivo (e não apenas para aqueles que
realizaram efetivamente o ato típico), vai contra o princípio de que nenhuma pena deverá passar do autor
(e, eventualmente, do partícipe) do ato ilícito.
239
Neste ponto de nosso relatório, focaremos apenas e tão-somente os argumentos estritamente
constitucionais que se referem ao princípio de culpabilidade, isto é, apenas aqueles que procuram refletir
acerca da compatibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica com a norma constitucional que
afirma ser impossível a imposição de pena sem que haja culpabilidade. Neste sentido, os diversos
conteúdos que a noção de culpabilidade pode assumir, bem como a possibilidade de se pensar modelos de
culpabilidade adequados à imputação do ente coletivo, não serão analisados neste momento, mas sim no
anexo n° 4 desta pesquisa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
315
de a Constituição ter firmado a responsabilidade em decorrência da culpa como regra
geral (“princípio da culpabilidade”, cf. art. 5, LIII, LIV, LV e LVII), ela teria fixado
também uma outra forma de responsabilidade nos capítulos sobre a “Ordem Econômica
e Financeira” e “do meio ambiente”. Neste sentido, autores como Shecaira afirmam que,
ainda que o método sistemático seja necessário e fundamental para evitar antinomias e
contradições internas ao sistema normativo, ele não poderia servir de pretexto para
excluir todo e qualquer tratamento diferenciado para determinados casos. (SHECAIRA,
2003, p. 139-140). Em outros termos, a necessidade de se interpretar sistematicamente
as normas jurídicas não deve fazer com que se ignore o fato de que em um ordenamento
se verificam freqüentemente normas que operam no esquema regra/exceção.240 A
Constituição, enquanto diploma normativo, apresenta inúmeros exemplos de regras que
operam neste esquema.241 A Constituição firmou, de fato, a responsabilidade penal em
face da culpa como regra geral. Isto seria inquestionável. No entanto, questiona-se, por
que haveria ela de, novamente, fixá-la quando da redação dos capítulos “da ordem
econômica e financeira” e “do meio ambiente”? Precisaria um texto de lei afirmar a
mesma coisa três vezes? Autores como Shecaira sustentam que não, que “uma
Constituição apenas aborda novamente o que dispôs como regra em vista de modificála” (SHECAIRA, 2003, p. 142). Em poucos termos, o que se trataria era de um caso de
regra/exceção, não havendo, portanto, que se falar em uma oposição que representasse
uma genuína contrariedade entre a responsabilidade penal derivada de culpa e a
responsabilidade penal não-derivada de culpa (SHECAIRA, 2003, p. 142-143). 242
240
O sentido de tal argumento pode ser mais bem verificado levando-se em conta que “nas disposições de
direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita
diretamente à norma particular ou especial. De um lado, tem-se o princípio afirmador da regra geral; de
outro, como dispositivo de exceção, aquele que particulariza um pensamento, tornando-o específico para
a aplicação de um tema. O que estritamente não cabe neste, deixa-se para a esfera de abrangência
daquele” (SHECAIRA, 2003, p. 141). De qualquer forma, ainda que aceito este argumento, é interessante
mencionar a ponderação de Régis Prado, para quem tal esquema de regra-exceção exigira a presença, em
nosso sistema, de normas harmonizadoras que propiciassem uma perfeita convivência entre uma (geral) e
outra (excepcional) formas de responsabilidade (PRADO, 2005, p. 181).
241
A responsabilidade civil, por exemplo, decorre em regra de culpa do causador do dano (como na
previsão de responsabilidade civil por dano material, moral ou à imagem, cf. Art. 5º, V, CF e Art. 159 do
Código Civil). No entanto, a própria Carta Magna excepciona tal regra, quando em seu Art. 37, § 6º prevê
a responsabilidade objetiva (independente de dolo ou culpa) do Estado. Estaríamos, aqui, diante de um
claro caso de regra/exceção: uma pessoa jurídica de direito privado só responde civilmente por culpa,
exceto se prestar serviços ao poder público.
242
A crítica de Cirino dos Santos a este argumento não nos parece consistente. Segundo este autor, “se o
constituinte tivesse pretendido instituir exceções à regra de responsabilidade penal derivada de culpa,
teria ele utilizado linguagem clara e inequívoca” (SANTOS, 2006, p. 426). Cirino dos Santos parece,
aqui, cometer o erro de exigir uma aplicação absoluta do princípio da legalidade, isto é, de exigir que cada
exceção feita no sistema seja feita de maneira expressa. Ora, a tarefa de dotar o ordenamento de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
316
Em segundo lugar, o argumento de inconstitucionalidade fundado em uma
interpretação sistemática da Constituição não seria sustentável também porque os
supracitados
dispositivos
não
afrontariam
o
princípio
da
pessoalidade
(“responsabilidade pessoal, cf. CF, art 5º, XLV). Afinal, este princípio vedaria apenas
que a responsabilização de alguém que não contribuiu pessoalmente para a realização
do ato típico. Nestes termos, ao reconhecer a responsabilidade penal de uma empresa
por ato praticado, por exemplo, contra o meio ambiente, se estaria apenas e tão-somente
reconhecendo sua própria responsabilidade243; apenas haveria violação deste princípio
se, por exemplo, uma empresa fosse responsabilizada por ato praticado no âmbito de
outra empresa (SHECAIRA, 2003, p. 143). Além do mais, existiriam, no Direito
brasileiro, determinadas hipóteses em que se admite que os danos causados pela pena
repercutam para além da pessoa que tenha cometido o crime.
244
Quanto aos efeitos que
a responsabilidade do ente coletivo gera para os membros que dele fazem parte, esta
parte da doutrina entende que não há, de fato, senão um efeito secundário da
responsabilidade
própria
da
pessoa
jurídica
(CABETTE,
2003,
p.
65-66;
ROTHENBURG, 1998, p. 63). Neste sentido, Galvão da Rocha afirma que, muito
embora outras pessoas (como sócios, fornecedores, empregados, consumidores) venham
consistência e de operacionalidade não é de competência exclusiva do legislador; pelo contrário, é
também tarefa do intérprete refletir sobre a compatibilidade entre as normas, bem como de superar as
incongruências sistêmicas das chamadas “falsas antinomias”. Se o argumento de Cirino dos Santos
procedesse, teríamos de admitir que o sistema jurídico pode apenas ser consistente e coerente se o for
assim formulado pelo legislador, o que significaria, no limite, um retorno à simplista concepção de que a
interpretação correta de uma norma é apenas aquela que se refere à voluntas legislatoris, não havendo,
conseqüentemente, qualquer caráter construtivo e constitutivo nas interpretações feitas pela dogmática e
pelos operadores do direito.
243
Diante deste contexto, é interessante ressaltar ponderações como a de Rothenburg, segundo as quais,
sendo a pessoa jurídica composta por indivíduos, não seria possível que seus membros não viessem
igualmente a sofrer as conseqüências de qualquer tipo de sanção a ela imputada, seja ela civil,
administrativa ou penal. Em outros termos, a extensão negativa dos efeitos de uma condenação a
terceiros não-envolvidos no ilícito (que integrem os membros da pessoa jurídica), seria, na verdade, um
mau resultante de qualquer tipo de condenação (ROTHENBURG, 1998, p. 63). A nosso ver, ainda que se
admita que tais efeitos são correntes, eles devem ser, no entanto, mitigados ao máximo, principalmente
quando houver grande probabilidade de repercussões sociais negativas - como, por exemplo, o
desemprego decorrente da interdição de atividades da empresa (cf. item II.4 supra deste relatório)
244
A Lei nº. 3.807/60 em seu art. 43 previa e auxílio reclusão para os beneficiários (mulher, filhos) do
beneficiário detento ou recluso, caso este não recebesse nenhuma espécie de remuneração da empresa e já
tivesse contribuído no mínimo com 12 contribuições mensais. O benefício se mantinha enquanto
houvesse a prisão do segurado e deveria ser provado trimestralmente por meio de atestados reconhecidos
por autoridade competente. O auxílio reclusão se encontra previsto atualmente no art. 80 da lei 8.213 e
tem por objetivo substituir os meios de subsistência do segurado e de sua família, tendo por base o fato o
desamparo ao qual fica deixada a família do preso. (PINTO MARTINS, 2006, p. 387). Seria justamente
esta a razão de ser do auxílio-reclusão oferecido quando o pai de família é apenado com pena privativa de
liberdade e sua mulher e filhos perdem sua forma de sustento. O instituto do auxílio-reclusão
demonstraria, segundo o autor, que, mesmo em hipóteses de penalização de pessoas físicas, há a infração
ao princípio da pessoalidade das penas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
317
a ser atingidas com a condenação da pessoa jurídica, tal se daria de maneira apenas
indireta, não se tratando da aplicação de uma pena a quem não tenha agido ilicitamente
(ROCHA, 1998, p. 28).
245
Assim, “não se poderia falar propriamente em violação de
um princípio norteador do direito penal” (SHECAIRA, 2003, p. 143).
Deste modo, afirmam estes autores, a interpretação sistemática da Constituição
não pode ser usada para negar a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa
jurídica, dado que nenhum princípio alegado – nem o da culpabilidade, nem o da
pessoalidade da pena – seriam maculados com a previsão deste novo modelo de
responsabilização.
c) Finalmente, foram formuladas críticas também às interpretações históricas
que, como desenvolvidas por autores como Miguel Reale Júnior e expostas acima,
procuravam sustentar a inconstitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa
jurídica. Embora partindo do mesmo pressuposto, isto é, embora concordando que
nenhum acontecimento surge isolado e que explicar sua origem é fundamental para sua
compreensão, alguns autores chegaram a conclusões diametralmente opostas a de Reale
Júnior. Para Shecaira, por exemplo, uma interpretação histórica não pode apenas
comparar as diferenças entre as redações de projetos de lei, sendo necessário também
refletir sobre as concepções reinantes à época da constituinte. Citando um daqueles
deputados que teria tido um papel importante na redação do capítulo “do meio
ambiente”, este autor evoca a figura do relator deste capítulo, o Deputado Federal Fábio
Feldmann. Por ter, anos mais tarde, integrado a comissão de juristas para a elaboração
do Código Ambiental, e por ter, nesta oportunidade, se mostrado inequivocamente
favorável à responsabilização penal dos entes coletivos, Feldmann seria a prova clara de
que as concepções reinantes à época da constituinte foram postas afirmando a
importância desta nova modalidade de responsabilidade das pessoas jurídicas. Desta
forma, também uma adequada interpretação histórica dos artigos 173, §5° e 225, § 3°,
CF dariam base para se concluir pela constitucionalidade deste polêmico instituto
(SHECAIRA, 2003, p. 143-144).
245
Para esta linha de argumentação, apenas haveria uma efetiva responsabilização dos membros do ente
coletivo, para além dos meros efeitos secundários sobre eles, caso a pessoa natural pratique de alguma
forma o ato delituoso, seja como co-autor, seja como partícipe (SHECAIRA, 2003, p. 143).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
318
2.2
Adequação da responsabilidade penal de pessoas jurídicas às categorias
da teoria penal
Para além das divergências que se relacionam à constitucionalidade da
responsabilidade penal da pessoa jurídica, juristas brasileiros também se debruçaram
sobre os problemas de ordem dogmática que esta implica, principalmente no âmbito da
teoria do delito tradicional, ainda bastante presente no Brasil.
Há menos de um século, possuíam ainda grande força em nosso país as idéias
oriundas do positivismo naturalista italiano, de maneira que, para se determinar a
responsabilidade penal do indivíduo, fazia-se decisiva a análise de suas “inclinações
naturais” para a vida criminosa. Mais recentemente, a partir da década de 80, em
especial com a promulgação da reforma da parte geral do Código Penal, a doutrina
brasileira passa a ser fortemente influenciada pelas idéias do finalismo alemão, o qual,
conforme explicamos mais detalhadamente do item III.3.1 supra, avoca ao direito penal
a investigação da natureza da ação, que somente se verificaria quando um indivíduo
modificasse finalisticamente a realidade à sua volta. Em certa medida, esta visão acabou
por implicar em uma concepção psicológica da ação, que por sua vez determinou as
demais categorias estruturantes do conceito de delito (como a tipicidade, a
antijuridicidade e a culpabilidade).
Diante deste contexto, a responsabilidade penal da pessoa jurídica representa
uma ruptura na lógica que predominantemente foi adotada no direito penal brasileiro,
uma vez que o ente coletivo consiste em uma espécie de personalidade que não encontra
um correspondente no mundo sensível (tal como as pessoas físicas - que além de serem
sujeitos de direitos, existem concretamente, com sentimentos, consciência e locomoção
a elas inerentes). Isto dado, a inclusão da atividade de um ente abstrato (que existe
“somente” no mundo jurídico), em um sistema que foi, em princípio, desenvolvido em
torno do comportamento do ser humano, provoca inevitavelmente problemas de
compatibilidade com a teoria do delito246. Nesses termos, as correntes mais tradicionais
da ciência jurídico-penal brasileira vêm concluindo que a pessoa jurídica não se encaixa
como centro de imputação penal, já que ela não age nem se motiva como uma pessoa
natural. A idéia aqui defendida é a de que “as determinações do ser (a organização
246
No anexo n° 4 deste relatório, tratamos com maiores detalhes os obstáculos que uma “dogmática
ontologicizada” representa para a formulação de modelos de responsabilidade penal de entes coletivos.
Do que se trata, neste momento, é de retomar os argumentos do debate nacional sobre o tema, para que se
possa pensar se e em que medida o debate brasileiro está eivado de vícios de fundamentação e de
naturalizações equivocadas quando da reflexão sobre esta nova modalidade de responsabilização.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
319
psicossomática do ser humano) constituem o limite intransponível das proposições do
dever ser” (SANTOS, 2006, p. 424).
Ainda que este entendimento não possa ser considerado absolutamente
hegemônico, pode-se afirmar consistentemente que ele marca fortemente a grande
maioria dos trabalhos nacionais sobre o tema. Nos parágrafos que seguem procuraremos
expor como o debate dogmático nacional tem se posicionado a respeito da
compatibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica com cada uma das
categorias estruturantes da teoria do delito (principalmente com as categorias de ação e
de culpabilidade).
Capacidade de ação
No Brasil, como dissemos, a dogmática penal é fortemente influenciada pela
chamada escola finalista de Direito Penal247. Tomando esta vertente como ponto de
partida, a grande maioria dos penalistas nacionais define a ação como “exercício da
atividade finalista, no desenvolvimento de uma atividade dirigida pela vontade à
consecução de um determinado fim” (PRADO, 2001, p. 106), “como atividade
consciente dirigida a um fim” (DOTTI, 2001, p. 155-156; BITENCOURT, 1999, p. 5960; JESUS, 1985, p. 197; FRAGOSO, 1985, p. 152).
Entendida desta forma, a ação em sentido jurídico-penal representaria o
“fundamento psicossomático do conceito de crime” (SANTOS, 2006, p. 432)248, sem o
qual este não poderia ser pensado. Ao vincular o conceito de ação à noção de vontade
247
A escola finalista tem como seu principal teórico o alemão Hans Welzel, que fundou seu sistema de
pensamento em oposição à escola causalista, afirmando que a ação em direito penal deve ser entendida
como “exercício da atividade finalista”, atrelando ao mero resultado causal da pessoa a necessidade de
este ser orientado por uma vontade que lhe atribui um fim (WELZEL, 1969, p. 33). Mais detalhes sobre o
tema podem ser encontrados no anexo n° 4 deste relatório.
248
Interessante notar a posição de Cirino dos Santos, que defende que a ação como “fundamento
psicossomático do conceito de crime” estaria pressuposta em todas as vertentes da dogmática de direito
penal, desde o modelo causalista até o modelo funcionalista (“social”). Não podemos concordar com este
entendimento, pois ele nos parece retratar de modo equivocado o desenvolvimento teórico das últimas
décadas. Ao fazer referência a modelos funcionalistas, Cirino dos Santos cita autores como Jescheck,
Weigend e Roxin. Não obstante a enorme importância destes pensadores, eles não são, em definitivo, as
únicas posições funcionalistas que teorizam sobre o conceito de ação. Autores do chamado
“funcionalismo radical”, inspirados fundamentalmente na obra de Günther Jakobs (ver anexo n° 4 deste
relatório), não são citados por Cirino dos Santos, o que leva este a afirmar, de modo equivocado, que toda
a dogmática penal vincula a ação a elementos psicológicos de seus autores.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
320
que dirigiria a conduta para um determinado fim, a maioria dos teóricos brasileiros
acabam por “psicologizar” esta categoria, fazendo com que ela se remeta,
necessariamente, às características de comportamento que apenas os seres humanos
poderiam realizar249. Neste sentido, afirmações como a de Pierangelli deixam claro este
entendimento majoritário, ao sustentarem que “a conduta é voluntária quando nela
existe uma decisão da parte do agente, por outras palavras, quando não é um simples
resultado mecânico, automático. A conduta é voluntária ainda quando a decisão do
agente não tenha sido tomada livremente, ou quando o agente a tome motivado por
coação ou por circunstâncias extraordinárias.” (PIERANGELLI, 2004, p. 432).
As conseqüências que tal concepção traz para a análise da responsabilidade
penal da pessoa jurídica são sensíveis. Se se admite que o conceito de ação utilizado
pelo direito penal está necessariamente atrelado à noção de vontade livre250, então aos
entes coletivos faltaria, invariavelmente, capacidade de ação. De acordo com isso,
costuma-se afirmar, no Brasil, que a própria noção de tipo subjetivo seria constituída
com base nas funções do aparelho psíquico humano (SANTOS, 2006, p. 433; PRADO,
2001, p. 104; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143; BITENCOURT, 1999, p. 61).
Assim, a doutrina nacional majoritária entende que, ainda que se admitisse a formação
de uma vontade coletiva no seio da pessoa jurídica, o dolo que dirigiu a realização do
ilícito continuaria se referindo, no limite, aos aparelhos psíquicos das pessoas físicas
que a compõem (PRADO, 2001, p. 102; SANTOS, 2005, p. 15).
Por esta ser a pedra fundamental da estrutura do delito251, faltando à pessoa
jurídica capacidade de ação, seria conseqüentemente impossível admitir que um ente
coletivo possa ser passível de responsabilidade penal (PIERANGELLI, 2004, p. 430;
SANTOS, 2006, p. 432; PRADO, 2001, p. 105-106; MIRABETE, 1987, p. 106;
CONSTANTINO, 1999, p. 1). É neste sentido que a maioria dos penalistas brasileiros
249
Neste sentido, um finalista como Régis Prado vai afirmar que a idéia de ação é dotada,
invariavelmente, de um “coeficiente de humanidade” (PRADO, 2001, p. 104). Da mesma forma, ainda
que partindo de outras premissas teóricas, negando a ontologização promovida pelo finalismo, a
conclusão de que a ação em sentido jurídico penal é fenômeno humano também pode ser encontrada em
autores como Juarez Tavares, que a define como “toda conduta conscientemente orientada em função de
um objeto de referência e materializada tipicamente como expressão da prática humano-social”. Cf.
TAVAREZ, 2007, p. 154 e seguintes.
250
Entendida por esta parte da doutrina como “energia psíquica individual produtora da ação típica”
(SANTOS, 2006, p. 433).
251
Basta pensar que as categorias centrais da dogmática penal (tipicidade, antijuridicidade e
culpabilidade) têm por função sistêmica atribuir predicados a um determinado objeto. Por exemplo, uma
um comportamento só pode ser típico e antijurídico se for entendido como ação (típica e antijurídica).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
321
vai afirmar que, sendo a ação um produto exclusivo do homem, o poder de escolha que
a determina, por ser dirigido a um fim, somente seria atribuível às pessoas físicas
(DOTTI, 2001, p. 155-156). As pessoas jurídicas careceriam de vontade em sentido
psicológico e não teriam por essa razão capacidade de conduta em seu sentido
ontológico,
não
podendo,
assim,
figurar
no
pólo
ativo
de
delitos.
(ZAFFARONI/PIERANGELI, 2007, p. 355).
Dado que esta visão confere à natureza da ação humana (enquanto conduta
orientada a fins) o papel de determinar as categorias jurídico-penais, seu caráter préjurídico é inegável. Por entenderem que “a ação não é criação da ciência jurídica”, e que
“o direito apenas a toma do mundo real e lhe atribui uma valoração” (assim, por
exemplo, PIERANGELLI, 2004, p. 430), a teoria majoritária no Brasil acaba tratando
os conceitos penais como conceitos fixos, naturalmente determinados e dotados de uma
referência pré-jurídica, fazendo com que a valoração procedida pelo direito tenha
apenas caráter de mero reconhecimento, mas nunca de constituição de sentido.
Levando em conta este tipo de crítica, alguns autores brasileiros vêm
questionando as concepções psicologicistas do finalismo nacional, afirmando que seria,
sim, possível pensar em uma vontade e, conseqüentemente, em uma ação própria dos
entes coletivos. A concepção que começa a ser discutida procura analisar a complexa
realidade interna às pessoas jurídicas, para dar novos contornos ao conceito de ação
jurídico-penal. Nesse sentido, Rothenburg argumenta que, quando se trata de um ente
coletivo, pode acontecer dos sentimentos dos homens que dele fazem parte se
dissolverem na totalidade do sentimento do grupo (ROTHENBURG, 1998, p. 62), o
qual seria, necessariamente, diferente das partes que o compõem. Este amálgama de
vontades e sentimentos individuais, assim, passa a constituir um sentimento e uma
vontade próprios, que, muitas vezes, chegam mesmo a contradizer as vontades
individuais de seus elementos constituintes252. Deste modo, a partir desta vontade
252
A crítica feita pro aqueles que negam a responsabilidade penal das pessoas jurídicas acaba sendo, neste
ponto, circular. Ao enfrentar o argumento de que há casos em que a ação institucional – fundada em uma
vontade coletiva – chega mesmo a contradizer a vontade dos indivíduos que compõem o ente coletivo, a
doutrina de viés finalista acaba tendo de se apoiar sob o dogma de a responsabilidade está
necessariamente fundada na ação e na vontade humanas. Este tipo de circularidade pode ser notado, por
exemplo, em Cirinos dos Santos, quando este afirma que “a chamada vontade coletiva – simulacro de
espinha dorsal da ação institucional da pessoa jurídica – não pode ser confundida com a vontade
consciente do conceito de ação da pessoa física: a vontade coletiva da ação institucional não contém os
requisitos internos da ação humana, como base psicossomática do conceito de crime, que fundamentam a
natureza pessoal da responsabilidade penal (SANTOS, 2006, p. 431). No mesmo sentido, ver DOTTI,
1995, p, 191
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
322
coletiva, poder-se-ia falar também de uma ação coletiva, resultante não da motivação
psicológica do ser humano, mas sim de sua “realidade sociológica” (SHECAIRA, 2003,
p. 110).
Ao reconduzir a categoria de ação jurídico-penal para um plano pragmático, o
que esta vertente crítica visa é uma interessante “despsicologização” do conceito de
ação, tal qual formulado pelos finalistas253. De fato, ela não nega que o ser humano tem
papel fundamental tanto na tomada de decisão quanto na execução da vontade
institucional. No entanto, esta parte minoritária da doutrina nacional questiona o fato de
que isso seja justificativa suficiente para afastar a possibilidade de imputação do ente
coletivo (SMANIO, 2001, p 169- 171). Isso porque o componente individual não
poderia ser desvinculado de seu papel dentro do complexo social, pois isso implicaria
em ignorar que, quando pertencente a um amálgama institucional, a ação individual
perde sua particularidade e passa a integrar um complexo distinto (ROTHENBURG,
1988, p. 62-63). Partindo, portanto, de uma ação institucional (SHECAIRA, 2003, p.
110-111) que seria fundada em uma vontade própria da pessoa jurídica (ARAÚJO
JÚNIOR, 1999, p. 89-90; CABETTE, 2003, p. 64), expressa por seus órgãos e
independente da vontade daqueles que a compõe (SMANIO, 2001, p. 169), esta parte
minoritária da dogmática penal brasileira tem defendido, nos últimos anos, a capacidade
de ação das pessoas jurídicas.
253
O potencial crítico deste intento, no entanto, não exime de críticas a consistência de sua
fundamentação. Ainda que afirme a necessidade de analisar a realidade sociológica para se pensar a
responsabilidade penal dos entes coletivos, a postura de Shecaira nos parece excessivamente eclética, ao
menos no que concerne ao uso que faz das categorias da teoria do delito. Em sua tese sobre o tema,
Shecaira usa da idéia de “vontade coletiva” para afirmar a necessidade de revisão do argumento segundo
o qual as pessoas jurídicas seriam incapazes de culpabilidade. Ora, se este autor fosse conseqüente com a
idéia de que “se deve partir da realidade social” para analisar este problema, então não poderia usar de um
conceito psicologizado como “vontade” para a definição de culpabilidade. Isso porque, como procuramos
expor no item III.3.2 supra, uma perspectiva sociológico-normativa (como parece ser a da proposta de
Shecaira) procuraria exatamente superar a idéia de que a culpabilidade se define como nexo psíquico
entre autor e resultado, ou mesmo como reprovação por um uso desviante da liberdade individual. Em
poucos termos, se Shecaira parte realmente de uma perspectiva normativa-sociológica (“da realidade
social”), então o desvalor da culpabilidade deveria, para ele, se relacionar com a possibilidade de
organizar seu próprio comportamento dentro das fronteiras da norma, não devendo se restringir à
existência ou não de uma vontade livre, ainda que “institucional”. Basta se pensar, por exemplo, que uma
empresa age quando um simples funcionário seu comercializa um de seus produtos, não sendo necessário,
para tanto, que uma assembléia seja organizada para cada ato realizado para a pessoa jurídica; em poucos
termos, de uma perspectiva normativa-sociológica conseqüente, seria necessário pensar em ações
coletivas para além do paradigma psicologista da vontade, o que não é feito. Este tipo de incongruência
pode ser vista, por exemplo, quando Shecaira cita os modelos de culpabilidade própria de ente coletivo
formulados por Hirsch e Tiedemann, para, com isso, afirmar a possibilidade de se falar de uma “vontade
coletiva” (SHECAIRA, 2003, p. 110-112). O que Shecaira esquece, no entanto, é que o que estes autores
citados procuram fazer é precisamente negar à vontade o caráter definidor das categorias da teoria do
delito.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
323
Capacidade de culpabilidade
A depender da concepção de ação em sentido jurídico-penal da qual se parte, a
discussão sobre uma possível adequação do conceito de culpabilidade pode mesmo ser
considerada inócua. Isso porque, pela própria estruturação da teoria do delito, a
discussão sobre os predicados que uma conduta pode ter, quando da análise a respeito
de seu caráter penalmente ilícito, depende, antes de tudo, da possibilidade de entendê-la
como ação. Neste sentido, para aqueles que entendem que a pessoa jurídica é incapaz de
agir em sentido jurídico-penal, argumentos como a incapacidade de culpabilidade ou a
infração ao princípio da pessoalidade da pena seriam desnecessários para se demonstrar
a inviabilidade desse instituto, posto que, antes de tudo, os entes coletivos não teriam
sequer capacidade penal de ação (ZAFFARONI / PIERANGELI, 2007, p. 355). Não
obstante isso, apesar da grande maioria dos penalistas no Brasil afirmar a incapacidade
de ação dos entes coletivos, verifica-se que a capacidade de culpabilidade das pessoas
jurídicas ainda é um dos pontos mais debatidos no cenário nacional. 254
Em termos gerais, da mesma forma como ocorre com a ação, também a
categoria da culpabilidade é, no Brasil, fortemente marcada pelo pensamento finalista.
Nos termos tradicionalmente colocados, o princípio da culpabilidade – também
expresso na fórmula nullum crimen sina culpa – seria um conceito complexo, composto
pelos seguintes elementos: a) capacidade de culpabilidade (também conhecido como
imputabilidade), b) real ou possível conhecimento da antijuridicidade da conduta, e c)
exigibilidade de conduta adversa (DOTTI, 2001, p. 164; SIRVINSKAS, 1998, p.21;
BITENCOURT, 1999, p. 63). 255
Para a maioria dos penalistas brasileiros, este é o único conceito de culpabilidade
aplicável atualmente pelo Direito Penal. Definido-a necessariamente como “juízo de
254
Isso porque o conceito de culpabilidade acaba sendo trabalhado tanto por aqueles que defendem a
responsabilidade penal da pessoa jurídica (e por isso, precisam fundá-la sobre algum modelo de
culpabilidade próprio a elas), quanto por aqueles que, além de afirmar a incapacidade de ação dos entes
coletivos, acabam sustentando também a incapacidade culpabilidade destes, como argumento subsidiário
para rechaçar este modelo de responsabilização.
255
A exigência de ocorrência destes três elementos se justifica para indicar se o autor do ilícito sabe o que
faz (imputabilidade e conhecimento da antijuridicidade, bem como se teria o poder de não fazer o que fez
(exigibilidade de conduta adversa) – fatos necessários à fundamentação do juízo de reprovação que
caracteriza a culpabilidade (FRAGOSO, 1985, p. 202).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
324
reprovação a um sujeito imputável que realiza, com consciência de antijuridicidade e
em condições de normalidade de circunstâncias”, a doutrina nacional majoritária
entende que a pessoa jurídica não é passível de agir com culpa (PRADO, 2001, p. 106;
SANTOS, 2006, p. 440; ROBALDO, 1998, p. 1; BITENCOURT, 1999, p. 62).
Em primeiro lugar, porque a pessoa jurídica não seria imputável (i.e., seria
incapaz de culpabilidade), na medida em que noções como a de maturidade e sanidade
mental, que seriam a base da imputabilidade, a ela não se aplicariam. Estes requisitos
seriam necessariamente relacionados às pessoas físicas, e não poderiam, portanto, ser de
forma alguma verificados na vontade produzida em reuniões deliberativas de um ente
coletivo. A imputabilidade, por partir de critérios de capacidade bio-psicológica
(DOTTI, 2001, p. 165), seria algo impossível de ser pensado de forma independente
para as pessoas jurídicas (PRADO, 2001, p. 106-107).256
Em segundo lugar, porque a consciência de ilicitude do injusto, enquanto
conhecimento da antijuridicidade concreta do ato (SANTOS, 2005, p. 228), que
permitiria ao sujeito imputável saber o que faz, apenas poderia ser verificada no
aparelho psíquico individual das pessoas físicas (DOTTI, 2001, p. 165-166). Neste
sentido, “a vontade coletiva formadora da ação pragmática [seria] incapaz de
representar a natureza proibida da ação típica” (SANTOS, 2006, p. 441). 257
256
Segundo Cirino dos Santos, admitir o contrário implicaria na aceitação de situações “absurdas”, como
no caso em que é considerável imputável uma vontade coletiva formulada em assembléia constituída por
dois sócios esquizofrênicos - e, portanto, inimputáveis (SANTOS, 2006, p. 440-441). Este tipo de
argumento, no entanto, é fundamentalmente falho sob dois aspectos. Primeiramente, porque não leva em
conta o fato de que as ações coletivas não se remetem necessariamente a uma vontade formulada no
âmbito de uma reunião deliberativa; acreditar nisso significa, no limite, psicologizar a ação coletiva ,
ignorando a própria forma de funcionamento da estrutura hierárquica da pessoa jurídica, no âmbito da
qual poderes e atribuições estão altamente pulverizados e muitas ações são tomadas sem que possam ser
reconduzidas a cernes decisórios como uma assembléia. Em segundo lugar, é falho porque, ainda que se
admita que as ações coletivas se remetem ao “cérebro” da assembléia, no exemplo citado não se poderia
nunca falar de uma ação da pessoa jurídica, já que qualquer decisão tomada por dois esquizofrênicos
seria, desde o início, nula já do ponto de vista civil (cf. CC, art. 166, I c/c art. 3º II). Ou seja, mesmo que
fosse correto conduzir toda ação coletiva a uma decisão tomada por instâncias deliberativas, isso não
acarretaria em aceitar como culpável uma “ação” fundada na decisão de dois homens (não apenas
penalmente, mas também) civilmente incapazes.
257
A principal conseqüência para tal impossibilidade de verificação da consciência da ilicitude restaria na
impossibilidade de aplicação do chamado erro de proibição. Ao não se poder pensar se e em que medida a
pessoa jurídica conhecia a ilicitude de seu ato, a exclusão de culpabilidade de seus atos não poderia ser
realizada com base na figura do erro de proibição, em nenhuma de suas modalidades (vencível ou
invencível). Como se verá em seguida, e como se colocou também no anexo n°4 desta pesquisa, este
diagnóstico pressupõe que a culpabilidade necessariamente estaria vinculada à noção de livre-arbítrio e à
capacidade humana de decidir por uma ação conforme o Direito (assim ver, entre outros, PRADO, 2001,
p. 106-107 e DOTTI, 2001, p. 166). Este pressuposto, no entanto, pode ser colocado em questão, ao se
abrir espaço para formulações alternativas do conceito de culpabilidade, aplicáveis também às estruturas
complexas dos entes coletivos.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
325
Por fim, as situações de exculpação fundadas na inexigibilidade de conduta
diversa também seriam inaplicáveis à pessoa jurídica. Isso porque, segundo esta parte
da doutrina, as situações de exculpação legais (coação irresistível, obediência
hierárquica, excesso e legítima defesa real ou putativa) e supralegais (provocação de
legítima defesa, conflito de deveres e desobediência civil) pressuporiam a sensibilidade
a pressões ou perturbações emocionais, sensibilidade esta que apenas poderiam ser
verificada no aparelho psíquico humano (PRADO, 2001, p. 107; CERNICCHIARO,
1991, p. 142-143; BITENCOURT, 1999, p. 64).
Com base nestes argumentos, de matriz fortemente finalista, a maioria dos
penalistas no Brasil estabelece uma relação necessária entre o juízo de reprovação de
culpabilidade e as capacidades psico-biológicas do ser (humano). Nestes termos, a
reprovabilidade, característica do moderno conceito de culpabilidade, é entendida como
juízo formulável exclusivamente sobre as pessoas físicas. A nosso ver, tais pressupostos
tendem a matizar o debate e forjá-lo sob bases naturalizantes, transformando os
conceitos da teoria do delito em categorias ontológicas necessárias e empobrecendo a
discussão sobre as mais adequadas formas de regulação em cada sociedade. Este
procedimento fica claro em dois breves exemplos: quando os finalistas se posicionam,
em relação a modelos alternativos de culpabilidade, se apoiando sempre sobre a
necessariedade da categoria culpabilidade se referir ao juízo de reprovação sobre o
livre-arbítrio daquele ser humano que decide agir contra o Direito, embora pudesse não
o fazer258; e quando, em caráter mais geral, afirmam que a incompatibilidade da
258
A título de exemplo, Luiz Régis Prado e Juarez Cirino dos Santos fazem as seguintes avaliações acerca
do modelo de culpabilidade própria proposto por Klaus Tiedemann (ver anexo n° 4 deste relatório): “o
modelo analógico de culpabilidade, proposto por Tiedemann para a pessoa jurídica é pura ficção; afinal,
os defeitos ou falhas de organização, que fundamentariam a culpabilidade da empresa, não seriam
atribuíveis à pessoa jurídica, como pretende o modelo, mas às pessoas físicas dirigentes desta” (SANTOS,
2006, p. 442). “A culpabilidade por organização defeituosa decorreria não do ente coletivo por si só, mas
das ações de seus órgãos e representantes. Assim, a fundamentação dessa teoria resultaria na violação do
princípio da responsabilidade penal subjetiva. Com isso, não se teria um Direito Penal autêntico, tendo-se
em vista que não haveria a culpabilidade por um fato típico, mas uma “responsabilidade pelo fato de se
atuar em sociedade” (PRADO, 2001, p. 107). Estas afirmações deixam claro como o debate no Brasil
tende a ser majoritariamente enfrentado: diante de novas formulações dogmáticas, que inclusive levam
em conta aspectos relevantes de política criminal, a doutrina majoritária no Brasil argumenta que “as
categorias da teoria do delito são determinações do ser”, que “a estrutura teológica do ser humano, a sua
vida interior, é algo que legislador algum pode modificar” (PIERANGELI, 2004, p. 431). Deste modo, a
dogmática “ontologicista” acaba por esterilizar o debate acerca de quaisquer novas formas de regulação,
tornando rígida a estrutura categorial do sistema penal e negando qualquer possibilidade (ainda que
fortemente coerente) de se repensar os critérios condutores do processo de imputação penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
326
responsabilidade penal das pessoas jurídicas com as categorias da dogmática de Direito
Penal já é discutida há séculos. 259
Contra este tipo de rigidez analítica, uma parte minoritária do debate dogmático
brasileiro procura, então, forjar uma série de argumentos que colocam em xeque a idéia
de que a capacidade de culpabilidade é exclusiva do ser humano.
Primeiramente, isto é feito a partir do questionamento da própria consistência do
argumento da doutrina majoritária. Exemplarmente, autores como Shecaira e Lecey
sustentam que a culpabilidade fundada na noção de autodeterminação livre e consciente
seria, no limite, um truísmo, pois a noção de livre-arbítrio seria ontologicamente
indemonstrável (SHECAIRA, 2003, p. 109; CABETTE, 2003, p. 58). Neste sentido, o
corolário do conceito finalista de culpabilidade – o “poder agir de outro modo” – seria
inconsistente, constituindo, na verdade, não um elemento constituinte do delito, mas sim
um pressuposto lógico da própria possibilidade de imputação (LECEY, 1998, p. 46).
Visto desta forma – como fundamento da punibilidade – a noção de culpabilidade deixa
de estar vinculada ao livre-arbítrio, passando a ser aplicável, também, aos entes
coletivos (SHECAIRA, 2003, p. 109).
Em segundo lugar, a incapacidade de culpabilidade das pessoas jurídicas é
questionada com um argumento negativo, baseado na comparação com a imputação
formulada em outras esferas do Direito. Aqui, a questão que se coloca é a seguinte:
“como justificar que se possa punir administrativamente, ou mesmo civilmente? Não
seria uma burla de etiquetas permitir a reprovação administrativa e civil por um crime
ecológico, mas não uma reprovação penal?” (ROTHENBURG, 1998, p. 62;
SHECAIRA, 2003, p. 109). De uma perspectiva normativa, a pessoa passa a ser vista
como centro de imputação, como sujeito de direitos e deveres. Assim, se os entes
coletivos podem firmar contratos, ser herdeiros, ser responsabilizados civil e
administrativamente, então também diante de uma infração penal eles poderiam ser tido
259
Neste sentido, César Roberto Bitencourt afirma que “há mais de um século debate-se a
incompatibilidade dos conceitos dogmáticos de Direito Penal com a natureza e a essência da pessoa
jurídica” (BITENCOURT, 1999, p. 52-53). Ora, não apenas o teor literal da frase, mas também suas
implicações teóricas deixam evidente que este autor, assim como muitos outros, parte do pressuposto de
que as categorias dogmáticas são estáveis e necessárias, constituindo hoje parâmetro legítimo de
avaliação da responsabilidade dos entes coletivos da mesma forma como feito há um século atrás. As
diferenças sociais entre estes períodos históricos, bem como as necessidades político-criminais que se
impõem em cada um deles, são, desta forma, postas de lado, dificultando a reflexão a respeito de
possíveis formas mais adequadas de regulação jurídica sobre novos fenômenos. O mesmo raciocínio pode
ser verificado em CERNICCHIARO, 1991, p. 145-146.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
327
como autores do delito (RIBAS, 2002, p. 97). Este argumento, no entanto, não nos
parece sustentável, se proposto de forma isolada. Sem dúvida nenhuma, conceber a
pessoa como sujeito de deveres e direitos, desvinculando-a de análises morais, é
conseqüente com uma teoria normativa de Direito Penal. No entanto, partir deste
pressuposto não deve levar a ignorar as especificidades de funcionamento de cada uma
das esferas do Direito, tomando-as como “mera burla de etiquetas”. Cada ramo pode ter
regras de imputação distintas, sem que isso signifique que sejam ontologicamente
distintos. A responsabilidade no Direito Penal – ao contrário de no Direito Civil, por
exemplo – funciona historicamente vinculada à noção de culpa. Em outros termos:
existe no Direito Penal a impossibilidade de responsabilidade objetiva. Assim sendo, ao
invés de ignorar peremptoriamente a especificidade da responsabilidade penal em nosso
sistema jurídico, afastando a necessidade de haver culpa para se imputar alguém,
parece-nos mais adequado tentar reformular tal conceito, de forma a que ele possa dar
conta também do fenômeno da responsabilização das pessoas jurídicas. 260
É neste sentido que parte minoritária da doutrina nacional vem sustentando,
ainda que a passos lentos, um terceiro tipo de argumento contra a incapacidade de
culpabilidade dos entes coletivos, baseado na adequação deste conceito à realidade da
pessoa jurídica (ROCHA, 1998, p. 28; LECEY, 1998, p. 47). Assim, aceitando a idéia
de que a responsabilização no Direito Penal não pode abrir mão do pressuposto de culpa
do imputado (sob pena de violar o princípio da responsabilidade subjetiva), discute-se
atualmente se, e em que medida, seria possível falar de uma culpa própria da pessoa
jurídica. Isso se justificaria pelo fato de que exigir dos entes coletivos o mesmo que se
exige dos indivíduos para a atribuição de culpa (imputabilidade, consciência de ilicitude
e inexigibilidade de conduta diversa) implicaria não reconhecer a peculiaridade do
fenômeno complexo que é a “pessoa jurídica” (LECEY, 1998, p. 47).
Nestes termos, os modelos nacionais de culpabilidade própria da pessoa jurídica
poderiam ser basicamente divididos em duas vertentes. A primeira acaba por solucionar
a questão por meio da alusão a uma vontade coletiva. Este é, por exemplo, o caso de
Shecaira e de Rothenburg, que sustentam a noção de culpabilidade da pessoa jurídica
sob o fundamento de uma “vontade pragmática”, “institucional”, que, por ser
independente das vontades individuais que a compõem, deveria ser passível de um juízo
autônomo de reprovação (SHECAIRA, 2003, p. 110; ROTHENBURG, 1998, p. 62).
260
Para mais detalhes deste intento em nível internacional, ver anexo n°4 deste relatório.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
328
Esta visão, contudo, parece não conseguir romper totalmente com a concepção
psicologizada de culpabilidade.Uma segunda vertente, por sua vez, ainda que de forma
muito genérica, parece apontar para caminhos mais promissores, procurando
desvincular o conceito de culpabilidade da noção de vontade, afirmando que aquele
deve estar fundado, em relação às pessoas jurídicas, sobre critérios outros que não os
formulados pelo finalismo. Assim, por exemplo, Eládio Lecey e Araújo Júnior afirmam
que, como para as pessoas jurídicas a finalidade da pena não consiste no impacto sobre
a modificação da vontade (i.e. do juízo interno de reconhecimento do erro, como
ocorreria com as pessoas físicas), mas sim na exemplaridade e na retribuição, o juízo de
reprovação poderia legitimamente prescindir da consciência de ilicitude (LECEY, 1998,
p. 47), devendo ser entendida como decorrente de uma organização defeituosa que
estrutura a própria pessoa jurídica (ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 93-94).
A nosso ver, apesar da coerência geral do pressuposto segundo o qual aos entes
coletivos não se pode querer aplicar os mesmos conceitos aplicados às pessoas físicas,
as formulações e os modelos de culpabilidade própria da pessoa jurídica são, no Brasil,
ainda muito pouco elaborados. Não obstante isso, tais modelos mostram que o debate
está aberto a novos desenhos e que os conceitos dogmáticos não são tão unívocos como
a doutrina majoritária afirma. Pelo contrário, eles estão em constante e permanente
disputa, devendo ser avaliados não apenas em termos de coerência interna e teórica, mas
também no que concerne às conseqüências que a adoção de uma ou de outra vertente
trazem consigo. Neste contexto, não apenas a discussão dogmática passa a ser renovada,
mas também um outro campo, pouco explorado no Brasil, passa a ser palco de debates:
o campo da política criminal.
2.3 Discussão no campo da política-criminal
No Brasil, o debate jurídico no campo da política criminal é ainda muito
incipiente. Tradicionalmente limitados a discussões em torno da consistência interna do
sistema de delito, os juristas brasileiros não têm a tradição de trabalhar
aprofundadamente com questões relacionadas à forma mais adequada de se atingir uma
determinada finalidade da pena, aos problemas práticos e às possíveis soluções
concretas para uma efetiva regulação de novos problemas. Os diagnósticos dos quais se
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
329
parte costumam ser pouco fundamentados e estudos empíricos são raros no debate
brasileiro.
No que diz respeito ao tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, a
discussão no campo da política criminal parece, logo de partida, sofrer de uma forte
deficiência de clareza metodológica. As duas principais questões político-criminais – as
dos fins a serem perseguidos pelo sistema penal e a dos meios necessários para tanto –
encontram-se, no Brasil, pouco delimitadas, sendo mesmo possível verificar que, muitas
vezes, as finalidades da regulação penal são discutidas sem que se faça referência a
quais seriam os meios mais adequados e legítimos de sua formulação. Por este motivo, a
seguir, procuramos reconstruir a discussão sobre a responsabilidade penal da pessoa
jurídica, categorizando as linhas argumentativas encontradas em nosso debate. Para
tanto, consideramos fundamental distinguir, de um lado, os argumentos que se dirigem
aos fins que se pretende alcançar com a responsabilização penal dos entes coletivos e,
de outro, os que trataram dos meios adequados para que estes fins possam ser atingidos.
Fenômenos de criminalidade coletiva e a incapacidade de respostas do
Direito Penal tradicional
Em geral, as necessidades político-criminais que motivam a responsabilização
penal das pessoas jurídicas não são abordadas de forma detida pelos teóricos nacionais.
Pelo contrário, a maioria das manifestações sobre o tema costuma ser formulada em
termos exclusivamente dogmáticos, limitando-se a afirmar ou negar a compatibilidade
deste instituto com as categorias tradicionais da teoria do delito ou com os princípios
adotados por nossa Constituição, nos termos expostos nos itens 2.1 e 2.2 supra. Assim,
os reais problemas que esta forma de responsabilização visa combater costumam ficar
geralmente à margem da reflexão teórica realizada pelos juristas nacionais. Quando
trabalhadas, as motivações que induziram o legislador nacional a introduzir, na
Constituição e na Lei de Crimes Ambientais, disposições que regulam a
responsabilidade penal da pessoa jurídica são avaliadas de forma ambivalente.
Por um lado, alguns dos mais renomados penalistas brasileiros tendem a reduzir
a opção do legislador pela responsabilização coletiva a “uma mera necessidade
utilitarista”. É o que se verifica, por exemplo, em Luiz Régis Prado, que acaba
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
330
praticamente por negar a relevância político-criminal da responsabilidade penal da
pessoa jurídica, sem dar maiores fundamentos para tanto. Ao analisar o tema, este autor
afirma que seria “imperiosa a necessidade de proteger a pessoa humana do risco de sua
instrumentalização pelo poder estatal. O homem não pode ser considerado como
simples meio para a persecução de finalidades político-criminais, ainda que de defesa
social” (PRADO, 2001, p. 109 e 110).
Outros autores que abordam o tema sob o prisma
político-criminal dão
relevância aos problemas que a adoção do instituto visa responder. Admitindo-se que as
peculiaridades da vida contemporânea estimulam os indivíduos a abrigarem-se sob o
manto de proteção dos entes coletivos, tem sido largamente aceito o fato de que delitos
contra a ordem econômica, contra o meio-ambiente, contra a fé-pública, entre outros,
são praticados em larga escala por intermédio de pessoas jurídicas (ROCHA, 1998, p.
26; ARAÚJO JÚNIOR, 1999, p. 73; ROTHENBURG, 1998, p. 59; MILARÉ, 2000, p.
355, SHECAIRA, 2003, p. 112). Assim, mesmo autores como Robaldo, Dotti,
Cernicchiaro e Bitencourt, que se posicionam contra a responsabilização penal dos entes
coletivos, admitem que as pessoas jurídicas estão, cada vez mais, sendo usadas como
meio para a realização de atividades ilícitas altamente complexas. Haveria, neste
sentido, uma forte “necessidade por sanções vigorosas para coibir e prevenir que as
pessoas jurídicas transitem impunemente na ilegalidade” (CERNICCHIARO, 1991, p.
142; BITENCOURT, 1999, p. 69), sendo essencial proteger juridicamente valores como
o equilíbrio do meio-ambiente e a higidez do sistema financeiro (ROBALDO, 1998, p.
1; SANTOS, 2006, p. 424).
Frente a este contexto de crescente importância da criminalidade coletiva na
atualidade, são diagnosticadas as dificuldades práticas para combater tal fenômeno,
sendo centrais as que derivariam da inadequação do modelo de imputação individual do
Direito Penal tradicional para combater estes novos fenômenos.
Parte da doutrina identifica que os mecanismos penais tradicionais seriam
insuficientes para controlar as condutas ilícitas vinculadas aos entes coletivos.261 E isso
261
Um claro exemplo deste tipo de situação é citado por Shecaira: “quando em uma grande empresa
utiliza-se um documento falso, é possível – e até provável – que quem com ele vai trabalhar não tenha o
conhecimento de sua origem ilícita. Nestas circunstâncias os funcionários dirão a si mesmos, com toda a
sinceridade, que fizeram algo que estavam obrigado a fazer. Ao mesmo tempo não previram como é que
seriam interpretadas suas decisões por seus subordinados. Estes últimos ignoravam o significado da
atividade global ao qual contribuíram com seus aportes individuais. Na realidade, não estavam obrigados,
tampouco, a conhecer esse significado” (SHECAIRA, 2003, p. 114).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
331
por três principais motivos: a) em primeiro lugar, porque este tipo de ambiente,
altamente hierarquizado e marcado por uma forte divisão de funções, acabaria por
dificultar a produção de provas e a identificação dos possíveis responsáveis individuais
pelos danos (SHECAIRA, 2003, p. 112-113), contribuindo para o estabelecimento de
uma “irresponsabilidade organizada” (LECEY, 1999(a), p. 36; LECEY, 1998, p. 38); b)
em segundo lugar, porque a punição de apenas um ou alguns indivíduos tenderia a não
afetar o ente coletivo em seu ímpeto delituoso, dado que, neste tipo de criminalidade, o
exercício das funções é contingente, sendo absolutamente viável que outro empregado
venha a desempenhar as condutas antes realizadas pelo indivíduo penalizado
(ROTHENBURG, 1998, p. 61; SHECAIRA, 2003, p. 112-113; LECEY, 1999(a), p. 3536); c) por fim, porque a punição que a responsabilidade individual muitas vezes recai
exclusivamente sobre dirigentes ou administradores da pessoa jurídica, resultando, em
alguns casos, em uma forma de responsabilidade objetiva destes, ao fazer com que um
indivíduo responda por todos os ilícitos cometidos em âmbito coletivo (SHECAIRA,
2003, p. 113).
Para
superar
estas
dificuldades
enfrentadas
por
um
Direito
Penal
tradicionalmente formulado sobre o paradigma do homicídio individual262 e ineficaz no
combate de ilicitudes praticadas no âmbito de entes coletivos, é que alguns penalistas
brasileiros sugerem como solução a inclusão da pessoa jurídica como sujeito de
imputação penal. Através da adoção da responsabilidade penal coletiva, afirma esta
vertente, não seria mais necessário enfrentar as dificuldades de individualização dos
autores e das condutas ilícitas, dado que os delitos passam a ser imputados à pessoa
jurídica como um todo.263 Mais ainda, a adoção da responsabilização coletiva evitaria
que a penalização recaísse sobre o último homem da cadeia hierárquica, o qual, por
medo, tende a não incriminar seus superiores. (LECEY, 1999(a), p. 36).
Entretanto, nem sempre as respostas jurídicas para o problema da
individualização da conduta são propostas em termos jurídico-penais. Neste sentido,
diversos juristas brasileiros afirmam que o combate eficaz às infrações coletivas poderia
ser feito por meios outros que não pelo Direito Penal, já que o ordenamento jurídico
262
Para detalhe, ver anexo n° 4 deste relatório.
263
Neste sentido, Lagrasa sustenta que seria inconcebível, tendo-se em vista a complexidade existente
dentro de empresas nacionais e multinacionais, onde há reiterada e intensa transferência de
responsabilidades, admitir-se que o Judiciário se mantenha estático durante anos a fim de aguardar
investigações que venham a aferir quem seria o responsável pelo cometimento de determinado crime
(LAGRASA, 2002, p. 01). Criticamente, ver DOTTI, 2001, p. 168-169.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
332
disporia de uma gama de sanções de outras ordens, quer de Direito Civil, quer de
Direito Administrativo, que poderiam se mostrar mais adequadas (ROBALDO, 1998,
p.1; ESTELLITA/ COSTA, 2003, p. 02). Isso porque, ao se utilizar o Direito Penal para
combater estes novos fenômenos, seria necessário abrir mão de princípios essenciais a
sua esfera (intervenção mínima, culpabilidade, tipicidade estrita, etc), o que não
ocorreria ao se utilizar das esferas civis e administrativas (BITENCOURT, 1999, p. 6567; CERNICCHIARO, 1991, p. 142-143; SANTOS, 2006, p. 424; DOTTI, 2001, p.
149-168). Neste ponto, torna-se fundamental a discussão a respeito de ser ou não a
responsabilidade penal da pessoa jurídica um meio adequado para a consecução da
finalidade de combater eficazmente a criminalidade coletiva.
A responsabilidade penal da pessoa jurídica como um meio adequado para o
combate da criminalidade coletiva
No debate brasileiro, as respostas para esta pergunta são pouco abordadas e os
argumentos encontrados podem ser categorizadas sob três principais pontos. Em
primeiro lugar, discute-se a adequação de se adotar a responsabilidade penal dos entes
coletivos com base no fato de que estes não podem ser alvos de pena privativa de
liberdade. Em segundo lugar, discute-se se, de fato, a responsabilização penal coletiva
favoreceria ou, na verdade, prejudicaria o combate aos verdadeiros culpados pelas
infrações. Em um terceiro e último ponto, discute-se se as finalidades da pena – sejam
de prevenção, sejam de retribuição – poderiam ser alcançadas neste tipo de
responsabilização.
Necessidade de penas privativas de liberdade no Direito Penal
De forma pulverizada e beirando o senso-comum, é possível encontrar, na
doutrina brasileira, manifestações contrárias à responsabilização penal de pessoas
jurídicas com base no argumento de que estas não seriam passíveis de sofrer penas
privativas de liberdade. Na medida em que um ente coletivo não pode ser efetivamente
preso, a regulação penal de suas ações seria um absurdo lógico, uma contradição em
seus próprios termos (SANTOS, 2006, p. 4446; THOMPSON, 2000, p. 220-221).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
333
A nosso ver, este tipo de posicionamento é equívoco sob vários aspectos. Em
primeiro lugar, porque é expressão dos ranços naturalizantes da racionalidade penal
moderna, ao tratar como necessária a relação entre crime e pena de prisão, fazendo desta
a única resposta possível dada pelo Direito Penal. Hoje vem sendo chamada atenção
para o fato de que as sanções penais são de muitos tipos, desde aquelas restritivas de
direito até a imposição de multas pecuniárias (ROTHENBURG, 1998, p. 64). A pena
privativa de liberdade não apenas não é a única forma de resposta penal aos conflitos
como, ainda, pela idéia de intervenção mínima, deve ser utilizada apenas quando não
haja alternativas menos gravosas para se combater o fato delituoso (CABETTE, 2003,
p. 67). Levando-se em conta o fato de ser hoje amplamente aceito que a pena privativa
de liberdade deve ser usada com parcimônia, seria até mesmo contraditório afirmar que
a impossibilidade de prisão dos entes coletivos constitui em um óbice para a sua
responsabilização penal (SHECAIRA, 2003, p. 107).
Além disso, argumenta-se, a pena privativa de liberdade seria inclusive menos
adequada do que outras sanções em muitos casos. A exemplo dos crimes ambientais, a
prisão dos responsáveis por um dano seria muito menos adequada do que medidas como
a suspensão parcial ou total das atividades do ente coletivo por ele responsável, a
prestação de serviços à comunidade, o custeio de projetos ambientais, a publicação da
sentença às expensas da condenada, etc. (SHECAIRA, 2003, p. 107; LECEY, 1998, p.
44).
Em segundo lugar, o posicionamento de que a regulação penal desprovida da
possibilidade de prisão seria um absurdo lógico é equívoco porque desconsidera as
diferenças processuais que a adoção deste modelo de regulação implica. A adoção da
responsabilidade penal das pessoas jurídicas, embora não possa usar da pena de prisão,
não instaura uma responsabilidade análoga à civil ou à administrativa. Isso porque o
Direito Penal é dotado de um procedimento peculiar, com garantias rígidas, de um lado,
mas com instrumentos poderosos na aferição de fatos delituosos. Por este motivo, seria
equivocado pensar que a adoção da responsabilidade penal sem prisão não tem qualquer
sentido, podendo ser óbvia e facilmente substituída pela regulação administrativa ou
civil. Este tipo de consideração, no entanto, não é encontrado no debate brasileiro,
constituindo toda uma nova agenda de pesquisa jurídica ainda a ser conduzida.
O problema da responsabilidade coletiva como forma de acobertar “os
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
334
verdadeiros culpados”.
Um segundo argumento contrário à adoção da responsabilidade penal das
pessoas jurídicas afirma que esta levaria a um acobertamento dos “verdadeiros
culpados” pelas infrações. Segundo autores como Regis Prado, este instituto camuflaria
a vontade de pessoas físicas que controlam e dirigem as ações dos entes coletivos,
impossibilitando a punição daqueles que se aproveitariam da estrutura de uma empresa
a fim de cometer ilícitos (PRADO, 2001, p. 114; CONSTANTINO, 1999, p.1-2).
Assim, partindo da idéia de que “nas grandes e nas pequenas sociedades mercantis
sempre há um número limitado de pessoas, perfeitamente identificáveis, que decidem
tudo à margem dos sócios” (PRADO, 2001, p. 111), esta vertente da doutrina afirma
que seria sobre tais indivíduos, e não sobre a pessoa jurídica que deveria recair a sanção
penal. Neste sentido, só se deveria responsabilizar penalmente quando pudesse ser
identificado e individualizado os autores físicos dos fatos praticados; caso contrário,
correr-se-ia o risco de formular uma “pura penalização formal das pessoas jurídicas”
(BITENCOURT, 1999, p. 68-69). No limite, poderia ocorrer a criação de sociedades de
fachada, de modo que os indivíduos efetivamente responsáveis pelas infrações
deixassem de ser penalmente sancionados. Nestes termos, a atribuição de
responsabilidade própria à pessoa jurídica estimularia a impunidade, fazendo com que a
investigação deixe para segundo plano a identificação dos prepostos dos entes coletivos
(DOTTI, 2001, p. 144). Desta forma, o objetivo de combater a complexa criminalidade
praticada no âmbito destes organismos acabaria não sendo atingido nem mesmo em
caso de dissolução de uma empresa, pois nada impediria que as pessoas físicas
“realmente responsáveis pelo delito” voltem a realizar novas infrações sob o manto de
outra pessoa jurídica (CABETTE, 2003, p. 74-75).
Este tipo de argumento guarda profundas relações com a concepção dogmática
da qual parte seus defensores. Como exposto anteriormente, de uma perspectiva
finalista, a pessoa jurídica nunca poderia agir no sentido próprio do termo, já que a ela
faltaria o componente bio-psicológico básico a qualquer ente penalmente imputável: a
vontade. Ao negar a ação própria do ente coletivo, posições como esta acabam por
negligenciar os problemas concretos da criminalidade praticada no âmbito de
coletividades. Nesse sentido, afirmar que nos entes coletivos “sempre há um número
limitado de pessoas, perfeitamente identificáveis” é um truísmo que não se sustenta
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
335
quando se tem em conta a realidade das sociedades contemporâneas e o problema
concreto de casos penais sem resultado por impossibilidade de individualização
adequada de condutas.
Em segundo lugar, o argumento segundo o qual a responsabilização do ente
coletivo geraria o “acobertamento dos verdadeiros responsáveis” é discutível, primeiro,
porque a princípio (e nos modelos que estudamos) a responsabilidade coletiva não
afasta a responsabilidade individual. Nesse sentido, o principal dispositivo
constitucional a respeito do tema, (CF, art. 173, §5°) determina que “a lei, sem prejuízo
da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a
responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza” (grifos
nossos). Além disso, as relações entre responsabilidade individual e coletiva dependem
do modelo de responsabilização adotado, que pode ser desenhado de diversas maneiras.
Em última análise, a não incidência da regulação penal se dá por um fundamento
de incompatibilidade a priori e não por uma avaliação de política criminal sobre a
adequação ou não da regulação penal.
A adequação para atingir as finalidades da pena.
Por fim, um terceiro argumento político-criminal correntemente levantado se
refere a uma eventual impossibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica para
atingir as chamadas finalidades da pena. Este ponto, no entanto, embora seja
correntemente mencionado no debate político-criminal brasileiro, não é abordado de
forma sistemática. No geral, apenas argumentos genéricos são levantados, sem uma
fundamentação adequada dos posicionamentos. Estudos de ordem empírica são
inexistentes. De qualquer modo, procuraremos reconstruir alguns dos principais pontos
levantados pelos juristas nacionais sobre esta questão, procurando, na medida do
possível, agrupá-los.
Aqueles que se utilizam as posicionam contra a adoção da responsabilidade
penal das pessoas jurídicas sustentam seu posicionamento analisando principalmente
duas finalidades da pena: a de prevenção especial positiva e a de prevenção geral
negativa.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
336
Em primeiro lugar, costuma-se afirmar que a responsabilização penal das dos
entes coletivos não seria adequada para atingir os fins de prevenção especial positiva, na
medida em que elas não teriam capacidade de arrependimento, necessária a sua futura
reintegração na sociedade (PRADO, 2001, p. 108; CONSTANTINO, 1998, p. 1). Por
não poderem sofrer as conseqüências morais da pena, os entes coletivos nunca poderiam
ser reeducados (SANTOS, 2006, p. 446). Neste sentido, costuma-se argumentar que
seria absurdo admitir efeitos de prevenção especial positiva para as pessoas jurídicas,
pois a estas não se aplicariam as idéias norteadoras da execução penal (cf. art. 1º, Lei n.º
7.210/84), cujo objetivo central seria “efetivar as disposições de sentença ou de decisão
criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e
do internado” (DOTTI, 2001, p. 167).
Em segundo lugar e partindo desta mesma chave, a incapacidade psicológica de
sentir a reprovação formulada penalmente seria também um obstáculo à realização da
chamada prevenção geral negativa - caracterizada pelo efeito intimidador da pena
perante possíveis futuros delinqüentes. Na medida em que tal intimidação exigiria a
capacidade de reconhecer a punição de outra pessoa jurídica como “expressão de
sofrimento e tormento”, a responsabilidade penal dos entes coletivos também não seria
adequada para atingir esta finalidade (PRADO, 2001, p. 108; DOTTI, 2001, p. 166).
Como se pode ver, estes argumentos são marcados por uma concepção
fortemente psicologizada do fenômeno do crime. Segundo ela, não apenas os conceitos
de culpabilidade e de ação penal, mas também as próprias finalidades da punição estatal
devem estar fortemente atreladas ao aparelho psíquico do autor do delito. Assim,
quando este inexiste, esta vertente acaba por negar não apenas a possibilidade de
construção dogmática de uma responsabilidade penal coletiva, mas também a própria
viabilidade desta para atingir as finalidades do sistema penal.
Levando isso em conta, encontramos posturas críticas a esta concepção
psicologicista das finalidades do Direito Penal, por não se coadunar com o atual
desenvolvimento teórico deste campo (CABETTE, 2003, p. 70-71). Segundo estes
autores, um dos principais objetivos atribuídos modernamente à pena consiste na
chamada prevenção geral positiva, caracterizada pela reafirmação – através da sanção
estatal – da ordem jurídica questionada pelo ato delituoso. Assim, afirmam que pensar
em impor objetivos morais a uma empresa, mais do que um contra-senso, seria ainda
uma forma de reavivar algo que mesmo em relação às pessoas físicas não deveria ser
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
337
aplicado (SHECAIRA, 2003, p. 107; ROTHENBURG, 1998, p. 64). Neste mesmo
sentido, penalistas como Araújo Júnior entendem que a intimidação de infratores ou
possíveis infratores por meio do sofrimento não seria mais um valor em si, pois a idéia
atual do Direito Penal seria o de “reforçar a validade e utilidade das normas dentro da
convivência na sociedade”. Neste contexto, portanto, não seria tão importante o fato de
o infrator da norma ser uma pessoa física ou uma pessoa jurídica (ARAÚJO JÚNIOR,
1999, p. 94).
Para além disto, os autores a favor da responsabilidade penal da pessoa jurídica
ainda questionam a forma pela qual costuma-se negar a capacidade de intimidação dos
entes coletivos. Embora não questionem o fato de que estes não possuem atividade
psicológica, a função preventiva da pena estaria atendida também no caso de punição
das pessoas jurídicas. Isso porque estas realizam suas ações por meio dos indivíduos
que delas fazem parte, que por sua vez podem, enquanto participantes da estrutura
coletiva, sofrer os efeitos intimidatórios de uma intensa sanção dirigida a ela (ROCHA,
1998, p. 28; LECEY, 1999(a), p. 11-12). Neste ponto, não apenas seria possível pensar
em intimidação do ente coletivo, como também esta apenas seria satisfatória se a
responsabilização fosse dirigida a ele, e não às suas pessoas físicas; isso porque, por
exemplo, a imposição de multa destas por um ato que beneficia a empresa tenderia a ser
fixada com base na fortuna do indivíduo, não gerando, portanto, qualquer dissuasão
relevante frente à pessoa jurídica como um todo. Em outras palavras, a prevenção geral
negativa poderia ser bem mais efetiva se uma multa fosse fixada tendo como base o
patrimônio da empresa (SHECAIRA, 2003, p. 109) 264.
Para alem desses argumentos, o debate nacional é bastante pobre diante da
complexidade do tema das sanções mais adequadas às pessoas jurídicas e seus possíveis
efeitos.
De modo geral, resta claro que, no seio da doutrina brasileira, a discussão a
respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica encontra-se ainda limitada.
Do ponto de vista dogmático, a maioria dos penalistas ainda está presa ao
finalismo, o que acaba por naturalizar um modelo de teoria do delito que inviabiliza o
debate; por outro lado, aqueles que se colocam a favor da adoção deste instituto acabam
264
Shecaira e Rothenburg lembram a possibilidade de divulgação na mídia da condenação do ente
coletivo, fato que poderia ter repercussões negativas para a imagem desta no mercado, intimidando-a a
não seguir em suas atividades delituosas (SHECAIRA, 2003, p. 108; ROTHENBURG, 1998, p. 64).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
338
não desenvolvendo consistentemente questões fundamentais sobre o tema, tais como os
termos em que a ação da pessoa jurídica é realizada, qual o modelo de culpabilidade
mais adequado para a imputação de sua responsabilidade, de que maneira devem-se
estabelecer as relações entre as pessoas jurídicas e as pessoas físicas a fim de que estas
possam vinculá-las penalmente.
Do ponto de vista político-criminal, por sua vez, o debate é ainda mais
deficitário. Em primeiro lugar, porque a maioria dos penalistas brasileiros sequer reflete
sobre os problemas que a adoção da responsabilidade penal dos entes coletivos procura
resolver. Quando o fazem, verifica-se uma clara deficiência de estudos empíricos que
fundamentem os posicionamentos colocados. Mais ainda, a discussão sobre os fins da
pena é colocada de forma assistemática, na medida em que nenhum autor reflete
pormenorizadamente sobre cada uma das funções do Direito Penal e sobre como estas
poderiam ser alcançadas através da responsabilidade penal dos entes coletivos.
2.4. Outras questões levantadas pela doutrina acerca da lei dos crimes ambientais.
A despeito das insuficiências formuladas no campo teórico, é possível se
verificar, ainda que muito pontualmente, questionamentos doutrinários relevantes a
respeito da lei dos crimes ambientais, os quais decorreriam, em grande parte, da
omissão do legislador em aspectos considerados essenciais para uma imputação
específica da pessoa jurídica.
Tal omissão fundamentou a reação de alguns autores contra a admissão da
aplicação concreta do instituto. Neste sentido, tem-se afirmado que a Lei n.º 9605/ 98
nada mais teria feito do que enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica,
cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la. Por uma falta de concretude a
respeito dos pressupostos e detalhes da imputação coletiva, esta disciplina normativa
não seria passível de aplicação concreta (ROBALDO, 1999, p. 98). De qualquer forma,
até o presente momento, muitas questões relativas à interpretação desta lei permanecem
em aberto. Poucos juristas se ocuparam realmente da definição de critérios mais
concretos para a imputação penal da pessoa jurídica, bem como da solução das lacunas
e demais problemas existentes nestes diplomas normativos. A seguir, apontaremos
sucintamente os principais aspectos levantados pela doutrina nacional nesse sentido.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
339
Modelo de responsabilização
O art. 3° da Lei n.º 9605/98, supracitado, define as condições para que haja
imputação penal da pessoa jurídica no âmbito dos delitos ambientais. Os critérios de
responsabilização por ele determinados seriam dois.
Primeiramente, a infração precisaria ter sido cometida por decisão do
representante legal, contratual ou órgão colegiado da pessoa jurídica. Isso, no entanto,
parece altamente vago, na medida em que o conteúdo deste preceito não é
absolutamente assentado no debate nacional. Diante disto, na intenção de delimitar o
conteúdo e alcance desse critério, autores como Vladimir Passos de Freitas e Gilberto
Passos de Freitas entendem que o representante legal seria aquele que retira as suas
atribuições da lei. Nesta hipótese, portanto, o representante não seria constituído em
decorrência do ajuste dos sócios, e sim de dispositivo legal. Este entendimento teria
sustentação no então vigente art. 302, inc. III do Código Comercial, que determinava
que, caso haja omissão no contrato, todos serão considerados habilitados a gerir e, desta
maneira,
todos
serão
considerados
representantes
da
pessoa
jurídica.
(FREITAS/FREITAS, 2001, p. 68-69).
Em segundo lugar, seria necessária a presença de um interesse ou benefício da
empresa. Para determinação deste critério, no entanto, as posições são as mais diversas,
e não há até o momento uma definição a esse respeito. Há quem sugira, por exemplo,
que as situações onde existam interesse ou benefício da empresa deveriam ser avaliadas
caso a caso, cabendo à empresa provar o contrário, ou seja, presumir-se-ia sempre que a
atuação dessas pessoas estivesse em jogo que houve para a empresa vantagem
decorrente da mera prática do crime a ela imputado (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 70 e
seguintes).
Outro ponto indefinido se refere à necessidade ou não de se comprovar a
existência de concurso entre a pessoa física e a pessoa jurídica no cometimento do
ilícito durante o curso processual. Por um lado, uma vertente tem afirmado que a lei de
crimes ambientais teria adotado um sistema de dupla imputação. Isso significaria que a
punição de um agente não permitiria deixar de lado a persecução daquele que concorreu
para a realização do crime - seja por meio da co-autoria, seja por meio da participação
(SHECAIRA 2003, p. 145); nestes termos, pelo fato da pessoa jurídica agir
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
340
objetivamente por intermédio de uma pessoa natural, dever-se-ia considerar aquela
como autora mediata. Tratar-se-ia necessariamente de uma situação de co-autoria entre
a pessoa jurídica e a pessoa física. Desta maneira, seria possível aplicar, “com breves
adaptações”, a disposição do concurso de pessoas do Código Penal a fim de se punir
criminalmente a pessoa jurídica (SHECAIRA, 2003, p. 148-149).
Por outro lado, há quem entenda que a denúncia não deva necessariamente
apontar as duas pessoas, podendo ser dirigida apenas ao ente coletivo, caso não se
descubra as pessoas físicas envolvidas – o que se justificaria pelo fato de que justamente
para essas situações é que a responsabilização penal das pessoas jurídicas teria sido
criada (FREITAS/FREITAS, 2001, p. 67).
Penas aplicáveis
As penas aplicáveis às pessoas jurídicas encontram-se previstas nos art. 21 a 23
da Lei n.º 9.605/98. Não acompanham, portanto, cada um dos tipos. Dentre as possíveis
penas se exclui, obviamente, a pena privativa de liberdade, sendo as sanções possíveis
de serem aplicadas, de acordo com a lei, a multa, a pena restritiva de direitos ou a
prestação de serviços à coletividade, cumulativamente ou alternativamente, como
determina o seu art. 21.
A pena de multa, conforme o disposto no art. 18 da Lei nº. 9.605/98, será
calculada de acordo com os critérios do Código Penal, considerando-se o valor da
vantagem obtida com o ato ilícito. Quanto ao cálculo do dia-multa, não foi elaborado
procedimento de cálculo específico para a pessoa jurídica. Deste modo, a pena de multa
será calculada com base no art. 49 do Código Penal e, caso se revele ineficaz, mesmo
que venha a ser aplicada no valor máximo, poderá sofrer aumento de até três vezes,
dependendo do valor que tenha sido auferido pela empresa com a prática do delito e da
situação econômica da empresa (Lei n.º 9.605/98, art. 6° e 18). Logo, a dosagem da
multa, de acordo com Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, deverá
levar em conta ainda a gravidade do delito, o grau de reprovação da conduta, o resultado
do dano causado e o princípio da individualização da pena - art. 5°, XLVI, CF
(FREITAS/FREITAS, 2001, p. 72-73).
As penas restritivas de direitos, por sua vez, estão previstas no art. 22 da lei e
consistem: na suspensão parcial ou total de atividades, na interdição temporária de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
341
estabelecimento, na obra ou atividade e na proibição de contratar com o Poder Público,
obter subsídios, subvenções ou doações.
A prestação de serviços à comunidade se dará com o custeio de programas e
projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas,
manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais
públicas (Lei n.º 9.605/98, art. 23). 265
Além disso, a pena restritiva de direito vem sendo alvo de discussão no que
concerne a sua duração. Isso se deve ao fato de que o art. 55 da lei determina que ela
terá a mesma duração que a pena privativa de liberdade cominada ao crime, de modo
que o legislador não teve o cuidado de converter as penas privativas de liberdade,
endereçadas aos indivíduos, para as respectivas penas aplicáveis às pessoas jurídicas.
No tocante às penas restritivas de direito, não haveria ainda qualquer critério legal que
estabelecesse uma proporção entre o crime e a duração das penas, sem existir também
um limite máximo previsto para os gastos a serem despendidos pela empresa
(ESTELLITA/COSTA, 2003, p. 1-4).
Ausência de regras processuais específicas
Além das questões penais que a Lei dos Crimes Ambientais oferece, existem
ainda problemas de ordem processual que representam grandes desafios para a
aplicação do instituto em tela, uma vez que a lei de crimes ambientais não teria trazido
previsões específicas quanto à pessoa jurídica, a fim de adaptar o direito processual
penal a esse novo centro de imputação da pena.
Diante disso, encontramos algumas tentativas de soluções para esta lacuna.
Neste sentido, há, por exemplo, quem sugira que essa falta de disciplina da Lei n.º
9605/98 seja suprida pelas normas do Código de Processo Penal, com aplicação
subsidiária do Código de Processo Civil. (SICOLI, 1998, p. 1-3). Outros, por sua vez,
sustentam que a solução adotada nacionalmente seja a mesma tomada na França, a
implementação da previsão da responsabilidade penal da pessoa jurídica no Código
Penal fora editada posteriormente a Lei nº. 92-1336, de 16.12.1992, com a finalidade de
265
Neste ponto, interessante levar em conta a crítica feita por Freitas e Freitas no sentido de que, caso a
pessoa jurídica seja condenada, a pena que prevê limite de 1 a 3 anos não poderá ser extrapolada por mais
do que esse período, mesmo que o restabelecimento do dano necessite de mais tempo do que isso
(FREITAS/FREITAS, 2001, p. 72-73).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
342
realizar as modificações necessárias ao Código de Processo Penal, tal qual o modo pelo
qual se dará a citação da empresa e a definição do seu domicílio, entre outras
(SHECAIRA, 1998, p.2).
De modo geral, da mesma forma que a reflexão sobre os aspectos teóricos que
envolvem o instituto em questão, também os problemas pontuais da adoção desta forma
de responsabilização são tratados superficialmente e de modo assistemático. As
possíveis incongruências e as lacunas verificáveis em termos de procedimento e em
termos de determinação e aplicação das sanções penais às pessoas jurídicas constituem,
desta forma, um dos principais desafios das reflexões futuras sobre o tema.
3. PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO
Nesta parte do relatório serão analisados os projetos de lei em tramitação que
tenham como objeto a responsabilização penal da pessoa jurídica. Para tanto, foram
realizadas
pesquisas
nos
sítio
eletrônico
da
Câmara
dos
Deputados
(http://www.camara.gov.br) e do Senado Federal (http://www.senado.gov.br) pelos
seguintes termos: “responsabilidade penal E pessoa jurídica”, “criminal E pessoa
jurídica” e “crime E pessoa jurídica”. Dentre os projetos encontrados, os que
efetivamente estabeleciam a responsabilidade penal da pessoa jurídica são os seguintes:
- Projeto de Lei do Senado n.º 4.842/1998 (“Dispõe sobre o acesso a recursos
genéticos e seus produtos derivados e dá outras providências”). Autora: Senadora
Marina Silva (PT/AC). Data de apresentação: 18 de novembro de 1998. Situação
atual266: aguardando constituição de Comissão Temporária.
- Projeto de Lei da Câmara n.º 27/1999 (“Acrescenta artigo à Lei 7.716, de 5 de
janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, instituindo a responsabilidade penal
de pessoas jurídicas cujos funcionários realizem práticas de racismo”). Autor:
266
Última consulta realizada em 14.06.09.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
343
Deputado Paulo Rocha (PT/PA). Data de apresentação: 03 de fevereiro de 1999.
Situação atual: aguardando parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania267.
- Projeto de Lei da Câmara n.º 1.197/2003 (“Estabelece as áreas ocupadas por
dunas e falésias como espaços territoriais especialmente protegidos e dá outras
providências”). Autor: Deputado João Alfredo (PT/CE). Data de apresentação: 05 de
junho de 2006. Situação atual: pronto para pauta.
- Projeto de Lei da Câmara n.º 1.142/2007 (“Tipifica o crime de corrupção das
pessoas jurídicas em face da Administração Pública”). Autor: Deputado Henrique
Fontana (PT/RS). Data de apresentação: 23 de maio de 2007. Situação atual:
aguardando parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
3.1.Exposição de motivos
Analisaremos, nesse item, as Exposições de Motivos dos Projetos de Lei que
buscam criminalizar condutas da Pessoa Jurídica, focando, principalmente, nos
objetivos propostos e na viabilidade constitucional do projeto. 268
Projeto de Lei n.º 27/1999
O propositor do PL n.º 27/1999, Deputado Paulo Rocha, justifica a propositura
pelo contexto de “crescimento da intolerância expresso pelo assenso [sic] dos grupos
neonazistas, anti-semitas e a crescente xenofobia em países europeus, assusta ao [sic]
mundo contemporâneo”. Dessa forma, o PL “atualiza a legislação, fortalecendo a
proteção a grupos raciais e étnico-religiosos”. A atualização a que se refere à
exposição de motivos se daria com a “adequação” da legislação que criminaliza o
racismo às inovações verificadas nas áreas de Crimes contra o Meio Ambiente e contra
a Ordem Econômica.
267
O projeto já foi objeto de análise da Comissão de Constituição e Justiça, cujo parecer de autoria do
Deputado Bispo Rodrigues, foi pela “inconstitucionalidade, injuricidade e má técnica legislativa, e, no
mérito, pela rejeição”. Em 31 de janeiro de 2007 o projeto foi arquivado com base no art. 105 do
Regimento Interno da Câmara (“Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que
no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em
tramitação...”) e em 06 de março de 2007, o Deputado Paulo Rocha requereu o desarquivamento da
proposição.
268
Em virtude da indisponibilidade da Exposição de Motivos do Projeto de Lei n.º 4.842/1998 nos sites
da Câmara dos Deputados e do Senado, não foi possível analisá-la.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
344
Aponta, além disso, a Exposição de Motivos, a previsão feita pelo projeto de que
as empresas deverão ter programas de formação e prevenção dos atos de preconceito e
discriminação, o que colaboraria “para a diminuição dos casos de discriminação,
livrando as empresas das sanções previstas nesta Lei”. Isso nos permite concluir que
entre as razões para proposição do projeto de lei estaria a idéia de que medidas
diretamente relacionadas com a estrutura e organização das pessoas jurídicas sejam
relevantes para atingir um objetivo de prevenção de ilícitos.
O autor reconhece que os permissivos constitucionais dos arts. 173, §5º e 225,
§3º são excepcionais para uma efetiva responsabilização penal da pessoa jurídica.
Entretanto, não parece haver, na fundamentação legal do projeto, nenhuma
problematização ou, tampouco, referência ao fato de o crime de racismo não estar
claramente abrangido por essas hipóteses.
Projeto de Lei n.º 1.197/2003
A exposição de motivos do PL n.º 1.197, assinada pelo Deputado autor João
Alfredo Telles Melo, procura salientar a importância das dunas e falésias para a
biodiversidade brasileira, alegando ser “imprescindível, pois, que toda e qualquer
atividade antrópica nessas regiões seja adequadamente disciplinada, do ponto de vista
legal, (...) com a previsão, inclusive, de criminalização das condutas contrárias às
normas em vigor, que sejam efetiva ou potencialmente lesivas ao direito das presentes e
futuras gerações ao patrimônio ambiental que lhes servirá de substrato à vida”.
Diante disso, conclui-se, como objetivo do Projeto, “dar adequado embasamento
legal às necessárias medidas preventivas e coercitivas relativas à conservação ambiental
de dunas e falésias, ecossistemas tão relevantes que temos o dever de preservar para as
presentes e futuras gerações”.
Não há qualquer referência ao porquê de se criminalizar as condutas de pessoas
jurídicas e tampouco às especificidades de tal decisão. Isso refletiria a falta de
detalhamento do Projeto sobre a questão, como se observa, por exemplo, na ausência de
previsão de critério para atribuição de certo evento à pessoa jurídica. A exposição de
motivos tampouco indica a justificativa da escolha da via penal para tratar da questão.
Com relação à questão da constitucionalidade, a exposição de motivos não traz
nenhuma reflexão.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
345
Projeto de Lei n.º 1.142/2007
O Deputado Henrique Fontana, na Exposição de Motivos do PL n.º 1.142/2007,
aponta, como objetivo do projeto: “atacar a corrupção nas suas origens, ou seja, nos
focos em que ela se origina: através de representantes políticos; de funcionários
públicos; e de empresários que praticam a corrupção, afinal, todos se beneficiam de
alguma forma indigna dos recursos auferidos com atos ilícitos”. Sendo assim, o objeto
do Projeto de Lei seria “suprir uma lacuna na Lei, a qual não responsabiliza
criminalmente as empresas que praticam a corrupção, bem como seus dirigentes”.
O autor aponta as previsões dos art. 173, §5º e 225, §3º da Constituição Federal,
como uma forma que o constituinte encontrou de lidar com um tipo de criminalidade
específica, em que os agentes se utilizam das estruturas dos entes coletivos para lesar o
patrimônio público.
Após citar defensores da responsabilidade penal da pessoa jurídica, bem como
países que a adotaram, o autor do PL faz breves considerações acerca das sanções
estatuídas pelo Projeto e conclui que “é com esse espírito que apresento essa proposta
legislativa que mune o Estado brasileiro de ferramentas para enfrentar graves
problemas da sociedade e, desse modo (...)”.
Daí se pode concluir que a instituição de responsabilidade da própria pessoa
jurídica atenderia principalmente ao objetivo de dotar o Estado de meios eficazes para
atacar o problema da corrupção diretamente em um de seus pontos de origem: as
pessoas jurídicas.
No que diz respeito à abrangência pelos dispositivos constitucionais do crime de
corrupção, o Deputado reconhece a polêmica da instituição da responsabilidade penal da
pessoa jurídica, mas afirma, em seguida, que isso não o impede de submeter aos pares
“e à sociedade brasileira essa iniciativa inovadora e que certamente ajudará o Estado
brasileiro a enfrentar com armas mais eficazes os atos de corrupção e os desvios e
desperdícios de recursos públicos”.
Não há na exposição de motivos justificativa da escolha da via penal para tratar
da questão. Há apenas a referência a que o PL visa a “suprir uma lacuna na lei” e
referência aos dispositivos constitucionais que tratam da responsabilidade de pessoa
jurídica (CF, art. 173, § 5º. e art.225, § 3º.).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
346
3.2. Constitucionalidade dos Projetos de Lei em virtude de seus objetos
Como já mencionado, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é prevista, na
Constituição Federal de 1988, nos arts. 173, §5º. e 225, §3º., apenas nas hipóteses de
crimes contra a ordem econômica e financeira, crimes contra a economia popular e
crimes contra o meio ambiente. É imperativo, portanto, que se tenha em vista esse
âmbito delimitado pela Constituição Federal ao analisar os Projetos de Lei que buscam
criminalizar novas condutas praticadas no âmbito da pessoa jurídica.
As condutas tipificadas nos quatro Projetos de Lei analisados dizem respeito ao
(i) ao patrimônio genético, (ii) ao racismo, (iii) a lesões ao meio ambiente e (iv) à
corrupção. Assim, tais projetos devem ser discutidos sob a perspectiva de sua
adequação às hipóteses previstas na Constituição.
A constitucionalidade do PL n.º 27/1999, que cuida de racismo, é especialmente
contestável, uma vez que não há ligação direta entre seu objeto e a proteção ao meio
ambiente, à ordem econômica e financeira ou à economia popular.
Em relação ao Projeto n.º 1.197/2003, a harmonização com a hipótese prevista
na Constituição Federal nos parece menos problemática, uma vez que o Projeto visa a
criminalização de condutas que provoquem alterações não-autorizadas em dunas e
falésias - abrangido pela hipótese de crime contra o meio ambiente, do art. 225, §3º.,
CF.
Por fim, no tocante ao Projeto n.º 1.142/2007, que prevê a hipótese de que
pessoas jurídicas respondam por crimes de corrupção, a questão nos parece controversa,
mesmo sob a interpretação mais ampla de ordem econômica, como a adotada por José
Afonso da SILVA (2005, p.395), para quem a previsão constitucional referente à
punição penal da pessoa jurídica abrangeria todos os princípios da ordem econômica
previstos no artigo 170, CF, quais sejam: a soberania nacional; a propriedade privada; a
função social da propriedade; a livre concorrência; a defesa do consumidor; a defesa do
meio ambiente; a redução das desigualdades regionais e sociais; a busca do pleno
emprego; e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob
as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Ainda que se entenda que atos de corrupção ativa praticados por uma empresa
podem atingir a livre concorrência, princípio da ordem econômica, na medida em que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
347
podem eventualmente colocá-la em situação de vantagem em relação a outras empresas
concorrentes, não nos parece que tal compreensão esteja livre de questionamento.
Decorreria desse raciocínio que qualquer prática ilícita de uma empresa que gere algum
tipo de vantagem patrimonial ou concorrencial deveria também ser considerada lesiva à
ordem econômica, solução esta que poderia vir a ser questionada por acarretar
ampliação indevida da abrangência do disposto no §5º, art. 173, CF.
3.3. Requisitos para a responsabilização da Pessoa Jurídica
Feitas as considerações a respeito da compatibilidade do objeto dos Projetos de
Lei com a Constituição Federal, cabe agora analisar os requisitos de cada projeto para
que se impute responsabilidade criminal à pessoa jurídica, tanto no que diz respeito à
conduta descrita, quanto no que se refere ao modo como se considera a realização da
ação típica e como se apura o elemento da culpabilidade da pessoa jurídica.
O PL n.º 1.142/2007 prevê que a pessoa jurídica será responsabilizada
criminalmente por “oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público ou
agente político de quaisquer dos três Poderes da República, para determiná-lo a praticar,
omitir, retardar ou condicionar a prática de ato de ofício, em seu nome, interesse ou
benefício de sua entidade” (art. 2º, caput).
No que diz respeito à pessoa cuja ação possa vir a incriminar a pessoa jurídica, o
projeto dispõe, que constituirão atos de corrupção das pessoas jurídicas apenas aqueles
praticados por “decisão de representante legal ou contratual ou de seu órgão colegiado,
diretor, gerente, procurador ou interposta pessoa”.
Em relação ao Projeto de Lei n.º 1.197/2003, a conduta descrita consiste em
“provocar qualquer alteração nas dunas e falésias, sem licença das autoridades
competentes ou em desacordo com os termos dos licenciamentos ambientais
concedidos, ou deixar de cumprir quaisquer dos deveres estabelecidos por esta Lei”. Na
segunda parte, criminaliza-se o não-cumprimento de quaisquer dos deveres previstos no
PL.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
348
O projeto dispõe que se o crime previsto em seu art. 6º269, “for praticado por
pessoa jurídica, aplicar-se-ão as penas previstas nos arts. 21 a 23 da Lei 9.605, de 12 de
fevereiro de 1998”. O projeto, entretanto, não dá maiores detalhes sobre as
circunstâncias em que a prática dos atos previstos poderá ser considerada como
imputável à pessoa jurídica.
O Projeto de Lei n.º 27/1999, determina que as empresas “cujos funcionários em
serviço praticarem atos de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional” estão sujeitas às penalidades determinadas pela Lei. No artigo seguinte, o
projeto prevê que “para efeitos das penalizações das empresas, nos termos do art. 21,
consideram-se as seguintes situações contra os seus funcionários: I – decisões
“transitadas e julgadas” (sic) nas áreas criminais ou cíveis em favor das vítimas; II –
mais de uma queixa crime em delegacias; III – mais de uma denúncia de crime ou mais
de uma ação ajuizada pelo Ministério Público, estadual ou federal”.
Trata-se do estabelecimento de distintas possibilidades de condicionar a
aplicação de sanção à empresa por conduta de seu funcionário. O inciso I estabelece que
uma das hipóteses de responsabilização é a existência de decisão “transitada e julgada”
(sic) na esfera criminal ou cível. O que teríamos aqui é a imposição de uma espécie de
conseqüência acessória à pessoa jurídica resultado da condenação de seus funcionários
por atos praticados em serviço.
O inciso II parece em alguma medida problemático. Mesmo entendendo que, ao
tratar de “queixa crime em delegacias”, o legislador quis dizer notícia de crime de ato
pretensamente praticado por funcionário, a hipótese não deixa de ser questionável: o
mero registro de uma notícia de crime não requer qualquer averiguação mais séria sobre
a existência de indícios de materialidade do delito e tampouco de autoria, elementos que
serão objeto de análise apenas em momentos posteriores da persecução penal. Nesse
sentido, prever que simplesmente a existência de “mais de uma queixa crime em
delegacia” possa ensejar a responsabilização de uma empresa por ato de seu funcionário
é um requisito demasiadamente frágil e pode suscita problemas que dizem respeito à
violação à presunção de inocência.
269
Art. 6º: Constitui crime provocar qualquer alteração nas dunas e falésias, sem licença das autoridades
competentes ou em desacordo com os termos dos licenciamentos ambientais concedidos, ou deixar de
cumprir quaisquer dos deveres estabelecidos por esta Lei.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
349
Por fim, a última hipótese de responsabilização da empresa por conduta de
qualquer funcionário é a existência de “mais de uma denúncia de crime ou mais de uma
ação ajuizada pelo Ministério Público, estadual ou federal”. Muito embora estejamos
aqui diante de casos que já passaram pelo juízo de delibação para instauração da ação
penal, e, nesse sentido, trata-se de situação com algum nível de certeza, pois exigiu ao
menos a existência de prova da materialidade e indícios de autoria, não deixa de ser
questionável frente ao mesmo princípio da presunção de inocência que a simples
existência das ações penais possa desde logo ensejar a penalização da empresa. Tais
previsões podem significar um âmbito de aplicação de sanções a empresas
demasiadamente amplo, o que poderia acarretar inclusive efeitos contraproducentes no
sentido dos fins preventivos a serem alcançados, pois a empresa pode ser
responsabilizada com base nesses requisitos frágeis, mesmo nos casos em que tenha
adotado uma política de prevenção a tais práticas. Ou seja, já que eventuais medidas
positivas não serão levadas em consideração, trata-se de um desestímulo a sua adoção.
Por fim, o Projeto de Lei n.º 4.842/1998 prevê, em seu art. 54, que “as pessoas
jurídicas serão apenadas conforme o disposto nesta Lei, nos crimes em que a infração
seja cometida por decisão de seus representantes legais ou contratuais, ou de seus
órgãos colegiados, no interesse ou benefício da entidade”. Não difere, portanto, da
regra de responsabilização indireta que já vige no caso dos crimes ambientais.
3.4. Aspectos processuais penais
Outra questão importante a ser considerada diz respeito à lacuna de disposições
nesses projetos de lei acerca de questões processuais. Isso porque, embora se aplique o
Código de Processo Penal a todas as hipóteses, há questões específicas no âmbito das
pessoas jurídicas que devem ser tratadas, debatidas em profundidade no tópico V.5
deste relatório.
Os Projetos de Lei n.º 27/1999 e o PL n.º 4.842/1998 sequer mencionam a
questão procedimental.
Em relação ao PL n.º 1.197/2003, a única disposição a respeito de atos
processuais está em seu art. 6º, §5º, ao dispor que “o processo penal seguirá o rito
ordinário, sendo de 15 (quinze) dias o prazo para contestar a denúncia, que se iniciará
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
350
com a citação da pessoa física acusada ou com a notificação do representante legal da
pessoa jurídica acusada”.
Por fim, o PL n.º 1.142/2007, que tipifica a corrupção praticada pelas pessoas
jurídicas, prevê, em seu art. 10, no que diz respeito à representação que “a pessoa
jurídica será representada por quem a lei ou os estatutos indicarem”, com a exceção do
parágrafo único que determina que, nos casos de conflito de interesse, a pessoa jurídica
deverá ser notificada para designar outro representante. Note-se que a previsão é
ligeiramente diferente tanto do art. 37, CPP, que trata da representação da pessoa
jurídica no pólo passivo da ação penal, como do art. 12, CPC. Estes estabelecem que a
pessoa jurídica deverá ser representada por quem os respectivos contratos ou estatutos
designarem e, em seu silêncio, por seus diretores ou sócios-gerentes. O art. 10 não faz
distinção entre a indicação da lei ou do estatuto.
3.5. Responsabilidade e transformações da pessoa jurídica
Outra preocupação em relação à criminalização de condutas praticadas pela
pessoa jurídica diz respeito à imputação de responsabilidade nos casos de possíveis
alterações societárias na empresa como, por exemplo, modificações formais na estrutura
que busquem isolar a pessoa jurídica acusada de crime.
O único projeto de lei que faz menção a essa questão é o 1.142/2007, que
determina, em seu art. 2º, §2º, que “a responsabilidade penal da pessoa jurídica
permanecerá independentemente das alterações contratuais, fusões ou cisões
societárias havidas antes ou durante o processo criminal”.
O caput do art. 2º articula como critério para responsabilizar a pessoa jurídica ser
o ato ilícito praticado por decisão de representante legal ou contratual ou de seu órgão
colegiado, diretor, gerente, procurador ou interposta pessoa, no nome, interesse ou
benefício da pessoa jurídica. O §2º fixa uma exceção a tal regra, determinando, nessa
perspectiva, espécie de responsabilidade sem culpa própria ou responsabilidade por ato
de terceiro. Eventualmente e, a fim de diferenciar o leque de situações que podem ser
atingidas por essa regra, poder-se-ia pensar em alguns critérios que limitassem sua
abrangência. Para citar alguns exemplos, casos em que o benefício da prática ilícita seja
auferido pela pessoa jurídica sucessora, casos em que haja continuidade delitiva ou em
que se apure a ocorrência de fraude à lei.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
351
Além disso, nota-se que a redação do projeto, ao estabelecer que a
responsabilidade penal da pessoa jurídica permanecerá independentemente das
alterações societárias elencadas, pode dar lugar a incertezas no casos de cisão. A cisão
resulta na formação de diversas pessoas jurídicas e não está claro se a responsabilidade
penal se aplica a todas ou a apenas alguma delas.
De outro lado, merece algumas ponderações de ordem pragmática a previsão
segundo a qual as operações societárias indicadas no texto do projeto, ocorridas
anteriormente ao processo penal, impliquem sucessão de responsabilidade penal. Isso
porque referida norma imporia um ônus grande à empresa “receptora” (aquela, por
exemplo, com a qual venha fundir-se a pessoa jurídica que pratica a corrupção ou
aquela à qual seja destinada parcela do patrimônio em hipótese de cisão parcial). Esse
ônus consistiria em fazer diligência prévia à operação societária, a fim de verificar
ocorrência de corrupção praticada pela empresa “alvo”. Acontece que a empresa alvo
dificilmente revela sua participação em condutas como um crime de corrupção da
Administração Pública. Geralmente nem mesmo funcionários de diversos escalões
internos à organização da pessoa jurídica chegam a ter ciência da prática do ato.
Diferentemente do que ocorre nos casos de sucessão trabalhista e tributária, nos quais a
obrigação está registrada no passivo da empresa ou, caso não esteja, deve, em princípio,
ser passível de apuração e ser então associada a uma taxa de contingência, a prática de
atos de corrupção não é facilmente detectável, seja por indivíduos ou agentes internos
ou externos à empresa. Por esta razão, mostra-se questionável a responsabilização penal
da empresa resultante de um processo de fusão ou cisão, por atos de corrupção
anteriores à operação, cometidos pela empresa “absorvida”.
3.6. Relação entre pessoas jurídicas
Os projetos de lei não prevêem situações que envolvam “triangulação”, isto é, a
prática do ato por parte de uma pessoa jurídica destinada a beneficiar terceiro.
Tampouco dão conta de problemas ligados a grupos empresariais de fato ou de direito,
formas de organizações empresariais que, como observamos, podem suscitar questões
relevantes no que diz respeito à aplicação de regras de responsabilização.
3.7. Penas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
352
Ao se abordar o problema de crimes praticados por pessoa jurídica da esfera
privada, uma questão preliminar é pressupor que, tanto empresas constituídas por meio
de pessoas jurídicas com histórico de desempenho de operações lícitas, quanto empresas
“de fachada”, são sujeitos ativos potenciais da conduta que se quer sancionar.
Se ambos os casos se manifestam na realidade, é preciso considerar qual o
impacto desejado da sanção, tendo em perspectiva os efeitos que podem surtir sobre
cada um dos casos. O impacto desejado da sanção, em linhas gerais, pode ser definido
como dúplice: de um lado, fazer com que o agente repare o dano, cesse a prática e se
previna a sua reincidência; de outro, fazer com que a sanção e sua aplicação sejam um
fator de prevenção da prática de ilícitos por outros agentes potenciais.
Contudo, como já afirmamos neste trabalho, a sanção deve ser pensada de modo
que o impacto desejado seja obtido sem prejuízo à preservação de demais interesses
juridicamente relevantes, como a manutenção da capacidade produtiva da empresa e de
seus reflexos positivos para a sociedade (supondo que a capacidade produtiva não seja
dependente de benefícios gerados por atos ilícitos). Tratando-se de empresa puramente
“de fachada”, esta questão pode ser desprezada, já que não sobrariam atividades lícitas a
serem preservadas.
Entretanto, nem sempre é fácil distinguir, sem maiores apurações, se a empresa
investigada é “de fachada”. No caso de pessoas jurídicas que desempenham atividade
lícita, custeada e remunerada de forma independente do resultado auferido com a prática
do ato ilícito, os efeitos da sanção devem se limitar ao escopo do impacto desejado, e só
a tal escopo. Afinal, é indesejável que as sanções produzam efeitos negativos sobre o
desempenho das atividades lícitas, hipótese em que a sanção ultrapassaria seu fim e
geraria efeitos negativos de difícil mensuração para a sociedade como um todo.
Os Projetos de Lei analisados prevêem as seguintes penas para aplicação às
pessoas jurídicas:
- PL n.º 27/1999 (racismo): multa no valor de 30 salários mínimos no caso de
empresa ré primária, proibição de funcionamento por 6 (seis) meses a 1 (um) ano na
segunda penalização e proibição de funcionamento em penalizações seguintes.
- PL n.º 1.142/2007 (corrupção): multa, no valor de 10 a 50 vezes o montante da
vantagem ofertada ou do proveito econômico almejado, restritiva de direitos (suspensão
parcial de atividades ou dissolução, interdição temporária de estabelecimento ou
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
353
atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios,
subvenções ou doações), prestação de serviços à comunidade (custeio de programas e
projetos contra a corrupção e contribuições a entidades voltadas para o combate à
corrupção), colocação sob vigilância judiciária, perda de bens e publicidade da decisão
condenatória.
- PL n.º 1.197/2003 (alterações não-autorizadas em dunas e falésias): penas
previstas nos artigos 21 a 23 da Lei n.º 9.605: multa, restritivas de direitos (suspensão
parcial ou total das atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou
atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios,
subvenções ou doações) e prestação de serviços à comunidade (custeio de programas e
projetos ambientais, execução de obras de recuperação de áreas degradadas,
manutenção de espaços públicos e contribuições a entidades ambientais ou culturais
públicas).
- PL n.º 4.842/1999 (proteção aos recursos genéticos): embora o projeto
mencione, em seu art. 54, que as “pessoas jurídicas serão apenadas conforme o
disposto nesta Lei”, a Lei não traz nenhuma sanção penal para as empresas, tratando tão
somente de sanções administrativas no art. 57.
A seguir analisaremos alguns potenciais benefícios e desvantagens trazidos pelos
tipos de penas.
Multa
O caráter patrimonial da sanção de multa faz com que ela seja a primeira a ser pensada
quando se trata do estabelecimento de formas de punição para as pessoas jurídicas. No
entanto, o caráter puramente patrimonial da sanção de multa implica em duas questões.
A aplicação de uma multa excessivamente alta poderia inviabilizar a atividade lícita do
agente e, conseqüentemente, prejudicar outros interesses. Por outro lado, a sanção
puramente patrimonial poderia levar ao cálculo de custo/benefício do agente na
comissão de crimes, de forma que, caso a perspectiva de ganho com o ato ilícito supere
o valor da multa e a possibilidade de condenação, não haverá dissuasão, ocorrendo,
inclusive, a prática de provisionar possíveis condenações.
Restritivas de direitos (proibição de funcionamento, suspensão das
atividades, interdição temporária)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
354
O PL n.º 1.142/07 distingue apenas as pessoas jurídicas cuja atividade exclusiva
ou predominante está associada a atos de corrupção da Administração Pública e pessoas
jurídicas que desempenham atividades lícitas, mas que praticam atos de corrupção em
caráter eventual. Essa distinção encontra-se refletida no art. 4º, § 2º do PL n.º 1.142/07 e
vem formulada de modo questionável. Isso porque a referência à sanção de dissolução
(contida art. 4º, I, do PL n.º 1.142/07) seria imprópria.
A dissolução é procedimento destinado à apuração de haveres, o que, em
princípio, interessa apenas aos sócios, já que fazem jus ao eventual saldo patrimonial
depois de pagos todos os credores e o Estado. Supondo um caso de sociedade “de
fachada” (isto é, sociedade sem histórico de atividades lícitas independentes do
resultado dos atos de corrupção), uma sanção que se pode cogitar seja imposta à pessoa
jurídica consistiria não na dissolução, mas na extinção de autorização para funcionar.
Uma vez extinta a sociedade, aí sim teria lugar a dissolução. Isso é conseqüência da
aplicação do art. 1.033, inc. V do Código Civil: “Dissolve-se a sociedade quando
ocorrer: V – a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar”.
Em segundo lugar, o dispositivo condiciona a aplicação da sanção à verificação
de que “os fundadores da pessoa jurídica (...) tenham tido a intenção (...) de por meio
dela, praticar os crimes previstos na lei ou quando a prática reiterada de tais crimes
demonstre que a pessoa jurídica está a ser utilizada para esse efeito, quer pelos seus
membros, quer por quem exerça a respectiva administração.”
Do modo como foi redigido o dispositivo, a sanção (propriamente de extinção de
autorização de funcionamento, e não de dissolução) não poderia ser aplicada em
nenhuma das hipóteses a seguir: (a) caso os fundadores não tenham tido a intenção de
praticar os crimes previstos na lei por meio da pessoa jurídica (mas, por hipótese, os
gestores ou sócios adquirentes das participações dos fundadores tenham tido tal
intenção); (b) caso não seja possível provar a intenção dos fundadores; (c) caso o ato de
corrupção não tenha sido objeto de prática reiterada.
Supondo que a sanção de extinção de autorização para funcionamento seja
desejável, os critérios apresentados no §2º do art. 4º do PL n.º 1.142/07 parecem
problemáticos para a sua aplicação. Não é fácil comprovar a intenção dos fundadores da
pessoa jurídica quanto a um propósito de constituir ou utilizar-se da pessoa jurídica para
praticar atos de corrupção. Na realidade, ainda que deixada de lado a dificuldade prática
de comprovação de intenção, questiona-se qual a utilidade e a necessidade de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
355
condicionar a aplicação de sanção à intenção manifestada já no momento de
constituição da pessoa jurídica. Do mesmo modo, o elemento “prática reiterada” pode
ser mais problemático do que auxiliador no combate a estes delitos.
Mais ainda, é preciso que se compreenda que poderá ser problemática a tentativa
de formulação de critérios que permitam definir a priori quais entidades são “exclusiva
ou predominantemente” dedicadas à corrupção e quais o são apenas secundariamente.
Para determinar a priori se uma sociedade é ou não predominantemente dedicada à
prática de corrupção, uma possibilidade seria pré-estabelecer normativamente algum
referencial como percentual de receita segregada por atividade desempenhada pela
empresa. Todavia, essa estratégia de abordagem pode se mostrar arbitrária e imprecisa.
Um modo relativamente mais confiável para se aferir se há algo que justifique a
continuidade da empresa por meio de determinada pessoa jurídica, isto é, se existe
atividade lícita com custeio e receita independentes do produto da atividade ilícita, seria
submeter a empresa agente da prática a uma avaliação econômico-financeira – custeada
às próprias expensas e por meio de contratação de profissional idôneo nomeado pelo
juiz – , que ateste a viabilidade da empresa num cenário em que não haveria
aproveitamento do benefício produzido pelo
crime. O que se deve almejar é a
expurgação das práticas ilícitas pelas pessoas jurídicas ou em seu benefício, sem,
contudo, comprometer seu funcionamento produtivo.
Neste sentido, as sanções restritivas de direitos previstas nos incisos I a II do art.
4º do PL n.º 1.142/07 devem ser vistas com reserva.
270
Tanto maior deve ser a cautela
quando se tratar de pessoa jurídica que desempenha atividades lícitas, pois é justamente
neste caso que sanções como a extinção ou interdição temporária podem produzir
efeitos danosos à sociedade como um todo. Além de implicar o afastamento de um ente
produtivo da economia do país, com prejuízo para a comunidade de trabalhadores,
consumidores e credores, as sanções podem ainda impedir que a pessoa jurídica produza
receita necessária para reparar o próprio dano derivado do crime de corrupção.
No lugar destes critérios, mereceria ainda reflexão a idéia de que a aplicação da
sanção de extinção da pessoa jurídica (considerando a gravidade da sanção em relação
270
A hipótese prevista no inc. III do mesmo artigo, que consiste na sanção de proibição de contratar com
o Poder Público, é também prevista em outras normas do ordenamento, e há boas razões para sustentar
que seja imposta em qualquer caso em que seja comprovada a utilização da pessoa jurídica para a prática
do ato de corrupção ativa. Deve-se apenas prever um limite temporal de efeitos da sanção, algo que faltou
na redação do PL n. 1.142/07.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
356
aos interesses de terceiros e mesmo do Estado) seria condicionada à determinação a
posteriori de se a pessoa jurídica por meio do qual se praticou o ato de corrupção exerce
atividade lícita que justifique sua preservação.
Por fim, vale notar que o § 3º do art. 4º, que regulamenta a aplicação da pena de
interdição temporária apresentaria problemas. A princípio, parece que os parágrafos
referentes ao art. 4º buscam fornecer critérios para ajudar o juiz a fixar a pena mais
adequada ao caso. Este parágrafo, no entanto, parece criar, de forma sob-reptícia, uma
forma qualificada do tipo de corrupção praticado por pessoas jurídicas, que seria a
prática da conduta ilícita, acrescentada a circunstância de a pessoa jurídica estar
funcionando “sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com
violação de disposição legal ou regulamentar”.
Se o objetivo for criar tal forma qualificada do tipo, seria recomendável que isso
fosse feito explicitamente. Seria necessário, ainda, cotejar tal disposição com a
regulamentação em âmbito administrativo, a fim de verificar se as conseqüências
jurídicas nos dois campos previstas para o funcionamento sem autorização são
compatíveis.
No que tange ao Projeto de Lei n.º 1.197/2007, este remete à Lei de Crimes
Ambientais ao prever as sanções aplicáveis às pessoas jurídicas. Não há, portanto,
qualquer inovação nessa questão, aplicando-se as considerações que fizemos acima
sobre a necessidade de se ponderar sanções que levem em conta o princípio da
preservação da empresa.
O Projeto n.º 27/1999, prevê que, no caso de reincidência, a empresa será
proibida de funcionar temporariamente (de 6 meses a 1 ano) e, nas penalizações
seguintes, será proibida de funcionar definitivamente. Deve-se ressaltar que a proibição
de funcionamento, ainda que temporária, pode acarretar prejuízos permanentes à
empresa.
A respeito dos efeitos das sanções previstas caberia indagar se o ônus imposto às
empresas de terem suas atividades interrompidas por ato de “qualquer funcionário” não
seria desproporcional à sua capacidade de prevenir esses atos. A interrupção de
atividades lícitas de uma empresa produtiva, que gera externalidades positivas à
sociedade traria fortes conseqüências negativas, que poderia suplantar os possíveis
efeitos positivos da aplicação da sanção.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
357
Restritivas de direitos (proibição de contratar com o Poder Público, bem
como dele obter subsídios, subvenções ou doações)
A proibição de contratar com o Poder Público pode ser considerada uma sanção
interessante, pois ela é capaz de atingir um dos principais interesses da pessoa jurídica,
o patrimonial, sem, contudo, incorrer nas questões problemáticas suscitadas no caso da
pena de multa. Apesar do caráter patrimonial da sanção, não é possível quantificar com
exatidão os prejuízos causados pela sua aplicação. Conseqüência disso é o fato de que o
cálculo custo/benefício na comissão do crime não seria tão simples e direto como no
caso da multa.
No que tange às ponderações acerca da preservação de empresas que
desenvolvem atividades lícitas de modo viável, vale considerar que os efeitos negativos
dessa sanção podem ser elevados no caso de empresas que atuam apenas com o Poder
Público, e que teriam sua atividade principal atingida pela proibição.
Prestação de serviços à comunidade
O art. 5º do PL n.º 1.142/2007 e o art. 23 da Lei n.º 9.605/1998, aplicável, por
remissão, ao PL n.º 1.197/2003 cuidam das modalidades de pena de prestação de
serviços. As modalidades de prestação de serviço previstas são (i) “custeio de
programas e projetos contra a corrupção” e (ii) contribuições a entidades voltadas para o
combate à corrupção” no caso do primeiro PL e (i) “custeio de programas e projetos
ambientais”, (ii) “execução de obras de recuperação de áreas degradadas”, (iii)
“manutenção de espaços públicos” e (iv) “contribuições a entidades ambientais ou
culturais públicas”.
Atividades de prestação de serviços à comunidade por pessoas físicas ligadas à
empresa não são previstas, com acerto, provavelmente a fim de evitar situações que
frustrem o escopo da lei ou que pelo menos não tenham impacto sob a pessoa jurídica
como um todo.
Por outro lado, as previsões das penas supracitadas sob a rubrica “prestação de
serviços” parecem ter, na realidade, caráter puramente patrimonial. O fim de
ressocialização supostamente atribuídos à modalidade de pena de prestação de serviço
não é atendido em tais previsões ou, ao menos, não se diferencia em relação à pena de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
358
multa. A especificidade da previsão deste artigo parece dizer respeito apenas à
destinação dos valores envolvidos.
A previsão, aqui, é a de que eles sejam diretamente alocados pela pessoa jurídica
condenada a projetos e entidades voltados ao combate à corrupção ou à proteção do
meio ambiente. Tendo em vista as dificuldades adicionais de fiscalização da destinação
desses recursos (tanto no que diz respeito à correta transferência por parte da empresa,
como no que diz respeito à idoneidade das atividades desenvolvidas pelas entidades
escolhidas), seria mais adequado pensar em alternativas mais seguras, como, a criação
de um fundo público ao qual estariam vinculados os recursos advindos da pena de
multa.
Nesse caso, a escolha das entidades e projetos merecedores de custeio, bem
como sua fiscalização seria feito por gestores públicos. Já existe na organização do
Estado brasileiro previsão de fundo semelhante para o caso de condenações em ações
civis públicas. Trata-se do Fundo de Defesa de Interesses Difusos, criado pelo art. 13 da
Lei da Ação Civil Pública. A criação de algo semelhante ou ainda a possibilidade de
utilização dessa mesma estrutura poderia ser considerada no presente caso.
Vigilância judiciária
Essa forma de sanção nos parece a princípio interessante, pois tende a se voltar
muito mais a fins preventivos e de garantia de cessação da prática ilícita do que
punitivos, no sentido de inflição de um mal à empresa. Além disso, atenderia, ao menos
em tese, às preocupações expostas acima de preservação da empresa como ente
econômico relevante quando atua no desenvolvimento de atividades lícitas.
Contudo, experiências no campo do direito falimentar, relacionadas a
interventores judiciais, mostram que isso pode ser uma fonte de problemas,
especialmente no que diz respeito à formação e adequação dos funcionários
responsáveis por essa tarefa. Sugerimos, dessa forma, que se cogite que a prática de
vigilância seja realizada por meio de avaliações periódicas de suas práticas por
empresas especializadas de auditoria, cuja contratação correria às expensas da empresa
condenada.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
359
Perda de bens
A pena de perda de bens está prevista no art. 3º. do PL n.º 1.142/2007, com
possibilidade de aplicação isolada ou cumulativa, ao lado da multa, da restrição de
direitos, da prestação de serviços à comunidade, da colocação sob vigilância judiciária e
da publicidade da condenação. No Código Penal ela é considerada uma modalidade de
pena restritiva de direitos. Para fins de harmonização, pode ser mais adequado que a
perda de bens figurasse entre as hipóteses do art. 4º do projeto.
A previsão do art. 7º do projeto gera dúvidas. Este dispositivo se insere em uma
seqüencia de artigos que esclarecem e fixam parâmetros para a aplicação das penas
anteriormente previstas e parece estar se referindo à perda de bens, entendida como
pena e prevista no art. 3º, V do projeto.
Se este entendimento estiver correto, sua previsão estaria eivada de um
problema, pois o perdimento em favor da União de produtos ou proveito do crime é um
dos efeitos genéricos da condenação, previsto na Parte Geral do Código Penal e não se
confunde com a pena. A pena de perda de bens deverá sempre recair sobre bens de
origem lícita271, caso contrário é simples efeito da condenação e não pena.
De outro lado, caso o art. 7º pretenda se referir à perda de bens ilícitos, como
efeito da condenação, então ele é supérfluo, pois o tema já está regulamentado pela
Parte Geral do Código Penal.
O art. 9º, por outro lado, parece criar uma ficção: no caso de pessoa jurídica
criada, preponderantemente, para a prática de atividades ilícitas, as empresas de
“fachada” supra-mencionadas, todo o seu patrimônio será considerado produto do
crime. Parece-nos problemático estender o âmbito do instituto do perdimento de bens,
como efeito da condenação, a fim de que atinja também a perda de bens lícitos. Seria
mais adequado, nesta hipótese, caso se pretenda manter a previsão, que a liquidação
forçada de todo o patrimônio tenha a natureza de pena restritiva de direito.
Publicidade da decisão condenatória
271 Nesse sentido, STOCCO E SILVA FRANCO, p. 305: “pode recair sobre bens móveis ou imóveis ou documentos de valor econômico, mas sempre deve
atingir bens de origem lícita, pois não se confunde com os efeitos da condenação dispostos no art. 91 do Código Penal”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
360
Trata-se de uma previsão em princípio interessante, pois altera a lógica do
paradigma punitivo vigente, reforçando a publicidade da imputação de responsabilidade
como uma resposta em si relevante do sistema jurídico para a sociedade. Tal medida
parece transferir para o mercado as decisões sobre eventuais conseqüências negativas da
imputação de responsabilidade, impondo também à empresa condenada a demonstração
da cessação das práticas ilícitas, de sua confiabilidade, solidez, etc.
No que diz respeito à clareza dos dispositivos, a lei talvez devesse ressaltar que a
publicidade da decisão se dá apenas após sentença condenatória transitada em julgado.
3.8. Projeto de Lei do Senado n.º 03/2005: conseqüências da condenação
da pessoa física
Embora não preveja responsabilidade penal da pessoa jurídica, merece menção
neste ponto o Projeto de Lei n.º 03/1005, que prevê o acréscimo ao art. 92, CP, como
efeito da condenação penal, o “pagamento de multa, de cem a mil salários mínimos, por
pessoa jurídica utilizada para a execução do crime de que foi condenado seu dirigente,
podendo ainda ser extinta, com a devida comunicação aos órgãos competentes, ou ter
suas atividades suspensas por até dez anos” (grifamos).
Esclarece, ainda, buscando evitar as questões problemáticas da responsabilidade
penal da pessoa jurídica, que “não se trata, frise-se, de imputabilidade penal da pessoa
jurídica, mas de previsão de pagamento de multa como um dos efeitos da condenação
de seus dirigentes”, sob o fundamento de que “cria-se, assim, mais um fator de
desestímulo ao crime, pois, no mínimo, constrange a geração ilícita de dividendos
financeiros”.
A pessoa jurídica aqui arca com a pena sem que seja necessária a verificação de
critérios de responsabilização a ela relacionados e sem que possa participar do processo
e defender-se.
É possível questionar se a punição automática da pessoa jurídica gera ganhos
preventivos, já que o caráter automático da medida não leva em consideração possíveis
medidas que ela tenha internamente adotado – em termos de organização, cultura
institucional, mecanismos de controle etc. - para evitar a prática de ilícitos. Pode,
portanto, gerar desincentivos.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
361
4. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS
JURÍDICAS: PESQUISA JURISPRUDENCIAL SOBRE A POSSIBILIDADE
DE RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA.
A fim de traçar um diagnóstico mais completo da aplicação do instituto da
responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma das estratégias desta pesquisa foi a de
empreender um estudo sistemático de julgados em casos envolvendo imputação de
crimes ambientais a pessoas jurídicas nos Tribunais Superiores e Tribunais Regionais
Federais. Com isso, foi possível colher dados relevantes acerca de como os Tribunais
vêm entendendo as regras e requisitos para responsabilização de pessoas jurídicas, bem
como os resultados que esses casos vêm alcançando e os principais problemas nele
enfrentados.
Exporemos, a seguir, a metodologia utilizada na coleta e tabulação de dados e os
resultados obtidos. Vale lembrar que, efetivamente, encontramos um número bastante
reduzido de casos que chegaram a ser analisados em seu mérito.
4.1 Introdução
O levantamento jurisprudencial que ora se apresenta foi realizado a partir dos
acórdãos disponíveis no banco de jurisprudência online dos cinco Tribunais Regionais
Federais (TRFs), do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal
(STF)272.
Foram selecionadas todas as ementas que resultaram da busca pela expressão
“responsabilidade penal da pessoa jurídica” e as variações necessárias em razão dos
diferentes sistemas de busca de cada Tribunal ou aquelas que poderiam resultar em
maior número de resultados.273 Somente este termo foi utilizado como entrada (e,
272
A pesquisa foi feita na semana de 01 a 07 de março nos seguintes endereços eletrônicos:
ww.trf1.gov.br; www.trf2.gov.br; www.trf3.gov.br; www.trf4.gov.br; www.trf5.gov.br; www.stj.jus.br;
www.stf.jus.br.
273
Assim, para o STJ foram utilizados os termos “(RESPONSABILID$ ADJ2 PENA$) COM (PESSOA$
ADJ2 JURIDIC$)” e “(PESSOA E RESPONSABILIDADE E JURIDICA E PENAL) NAO
OBJETIVA”; para o STF “responsabilidade e penal e pessoa e jurídica“; para o TRF 1
“RESPONSABILIDADE E PENAL E PESSOA E JURÍDICA”; para o TRF 2
e TRF3
“RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA”; para o TRF 4 “RESPONSABILIDADE E
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362
quando necessário, suas variações), e isso porque este conjunto constitui a expressão
mais ampla referente ao tema, possibilitando, assim, um número maior de retornos.
Nestes termos, esta busca resultou 38 ementas no STF, 63 no STJ, 18 no TRF1, 10 no
TRF 2, 86 no TRF3, 52 no TRF4 e 3 no TRF5, perfazendo um total de 270.
Todas as decisões repetidas ou que não tinham direta relação com a
responsabilidade penal da pessoa jurídica foram descartadas manualmente. Este foi o
caso, por exemplo, de ementas em que a questão da responsabilidade penal da pessoa
jurídica somente era levantada como tese de defesa em crimes para os quais não há
previsão expressa de responsabilização coletiva (estelionato, por exemplo), ou mesmo
quando a discussão girava em torno da responsabilidade dos sócios da empresa em
crimes tributários ou previdenciários.
Ao final, obteve-se um total de 48 acórdãos relativos a crimes ambientais
cometidos por pessoa jurídica, distribuídos da seguinte maneira:
Diante deste quadro, vale observar, de pronto, os poucos recursos encontrados,
fato este que constitui um possível indício de que o oferecimento de denúncias em face
de pessoas jurídicas seja pequeno. Em segundo lugar, é interessante notar que
PENAL E PESSOA E JURÍDICA” e “"RESPONSA*" E PENAL E PESSOA PROX JURÍDICA”; e para
o TRF 5 “RESPONSABILIDADE PENAL PESSOA JURÍDICA”.
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363
encontramos poucas decisões relacionadas a conflitos de competência estadual e
federal.
Em terceiro lugar, de pronto também chama a atenção a discrepância de
acórdãos encontrados em cada um dos Tribunais. Enquanto existe um grande número
de ocorrências nos TRF1 e TRF4, nenhuma decisão foi encontrada no TRF 3. As razões
para tal descompasso podem ser as mais diversas, mas algumas hipóteses podem ser
levantadas. Por um lado, tal diferença poderia ser explicada em razão da incidência
maior de delitos ambientais em determinadas regiões do país, tal como a existência mais
concentrada de atividades exploratórias da fauna e da flora brasileira nos estados
abrangidos pelos TRF1 e TRF4, em detrimento dos demais. Por outro lado, outra
hipótese levantada ao longo da pesquisa é a existência de “filtros institucionais” no
encaminhamento desses casos; isso porque, no âmbito da presente pesquisa, indicamos
que, em entrevista, o advogado criminalista 1 afirmou que a Lei dos Crimes
Ambientais, no que se refere à responsabilidade penal da pessoa jurídica, “não pegou
em São Paulo”, o que pode ser visto como uma possível explicação para a ausência de
decisões sobre a matéria no TRF3. Por fim, devem ser consideradas também diferenças
no que diz respeito a práticas de alimentação dos bancos de decisões disponíveis
eletronicamente, que não são uniformes em todos os Tribunais.
A visão geral do presente levantamento evidenciou que o momento da decisão
de recebimento da denúncia pelo juiz ainda é o mais controvertido, com mais da metade
dos recursos sendo provenientes desta decisão. De fato, em apenas 5 dos acórdãos
analisados houve decisão de mérito, sendo que em tais decisões pode-se ver uma
discussão corrente em relação à aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica
no pólo passivo da ação penal, na medida em que um número elevado de recursos
discutiu a sua validade ou legitimidade. Não obstante tais discussões, em sua maioria
surgidas apenas em referência a decisões de primeira instância, a aceitação da
responsabilidade penal da pessoa jurídica nos acórdãos analisados pareceu pacífica nos
Tribunais. Mostrou-se importante, como veremos, a necessidade de inclusão do co-autor
pessoa física no pólo passivo da ação penal.
4.2 Principais características das decisões
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364
Adentrando na análise dos acórdãos, consideramos importante, de modo a expor
com maior clareza as principais questões aferidas nesta pesquisa jurisprudencial, definir
diversas categorias de análise destes julgados, relevantes para descrever o perfil de caso
encontrado e o tipo de desfecho a que se chegou.
Neste sentido, as categorias que foram utilizadas são: (i) tipo de pessoa jurídica
imputada; (ii) presença de réu pessoa física; (iii) tipo de recurso e ações impugnativas;
(iv) autor do recurso; (v) momento em que foi interposto o recurso ou ação
impugnativa; (vi) tipo de crime; (vii) tipo e modalidade de conduta conforme a
denúncia; (viii) pedidos dos recursos e das ações impugnativas; (ix) andamento da ação
após a interposição do recurso; (x) teor das decisões; (xi) evolução da decisão; (xii)
unanimidade das decisões; e (xiii) decisão e fundamentação.
Tipo de pessoa jurídica imputada
Uma primeira questão importante de se notar consiste no fato de que a forma de
organização societária (sociedades simples, limitada, anônima, etc.) parece ser
indiferente na fundamentação das decisões judiciais, que não se preocupam em
diferenciar um ente coletivo de outro. Pela leitura dos acórdãos analisados, apesar de
haver diversas formas organizativas sob a denominação “pessoa jurídica”, em nenhum
dos julgados encontrados recorreu-se à descrição do tipo empresarial como fator de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
365
delimitação do conceito de pessoa jurídica. A única exceção encontrada foi a de um
mandado de segurança274, cujo réu era um consórcio. Neste caso, o Tribunal decidiu
pelo trancamento da denúncia, pois não considerou possível a responsabilização desta
forma de organização comercial. Assim, foi argumentado que
Consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para
alcançar um propósito. Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por
via contratual, cabendo a responsabilização penal decorrente de crime
ambiental ser atribuída a cada empresa, individualmente, em conformidade
com suas atribuições dentro do pacto celebrado. Isso porque cada participante
do consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos nos contratos,
respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato, não há
como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem
jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente.
Conseqüentemente, não responde o consórcio por crime ambiental
(grifamos).
Presença de co-réu pessoa física
Outro ponto que chamou a atenção, e que também já foi mencionado, consiste
no fato de que, na maior parte dos casos analisados, havia a presença de co-réu pessoa
física concomitantemente a réus pessoas jurídicas (68,75% do total). Se excluírmos do
274
TRF4, Mandado de Segurança n. 2002.04.01.054936-2, Relator Des. Vladimir Passos de Freitas, j.
25.02.2003.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
366
total as decisões em que não há menção sobre a existência de co-réu, este percentual
chega a 80,48%.
A aceitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica verificada nos
Tribunais, no entanto, não implica na admissão de que apenas o ente coletivo seja
sujeito da denúncia. Pelo contrário, predomina o entendimento de que é necessária a
imputação do co-réu pessoa física para que se possa processar criminalmente a pessoa
jurídica, o que nos fornece o claro indício de que os Tribunais brasileiros enxergam,
ainda, este modelo como sendo um sistema de responsabilidade por fato de outrem, e
não um modelo de responsabilidade própria275. Isso se reflete na constatação de que, nos
acórdãos levantados, há uma exigência constante, por parte do Poder Judiciário, de que
a pessoa física que agiu em nome da pessoa jurídica seja denunciada juntamente com
esta. Tal exigência, entretanto, acaba por não superar as dificuldades em se
individualizar pormenorizadamente as condutas em ambientes funcionalmente
diferenciados, o que faz com que, como veremos adiante, nas situações em que não se
consegue identificar a conduta concreta da pessoa física, os casos sejam precocemente
extintos.
Tipo de recursos e ações impugnativas 276
Os recursos encaminhados para análise dos Tribunais são, em grande maioria,
recursos em sentido estrito, Habeas Corpus e mandado de segurança (este últimos
somam 43,7 % do total). Além disso, da análise do gráfico 4, nota-se que existiram
apenas 4 apelações criminais (8,33% do total), ou seja, somente estes recursos tiveram
por objeto uma sentença de mérito em primeira instância. A partir destes dados,
consideramos ser possível formular duas hipóteses explicativas desta situação: a
primeira é a de que casos envolvendo pessoas jurídicas ainda sejam relativamente
275
Para mais detalhes, ver anexo n° 4 desta pesquisa.
Optamos por considerar os recursos em HC e os recursos em MS juntamente com HC e MS
originários, de modo que não haja repetição de informações sobre um mesmo processo. Além disso, os
HC recebidos como MS, em razão da fungibilidade recursal, foram enquadrados na pesquisa como HC,
pois se considerou o tipo de recurso interposto e não sua forma. Nestes casos existia menção nos próprios
acórdãos sobre a possibilidade desta conversão. Assim, alguns HCs foram convertidos, enquanto que
outros impetrados em favor da pessoa jurídica não foram sequer conhecidos. O não-conhecimento de HC
cujo paciente era pessoa jurídica ocorreu nas seguintes decisões: TRF1 HC 2003.01.00.007523-0, Relator
juiz Jamil Rosas de Jesus, j. 17.06.2003; TRF1 HC n. 2003.01.00.042154-7, Relator Des. Carlos Olavo, j.
06.04.2004 e STJ HC 16.762, Relator Min. Hamilton Carvalhido, j. 23.11.2004.
276
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
367
recentes e, por isso, não teria ainda havido tempo suficiente para que um número mais
significativo de ações fossem sentenciadas, apeladas e julgadas em segunda instância; a
segunda hipótese explicativa - que nos parece mais plausível - aponta no sentido de que
haveria diversas questões que prejudicam a continuidade das ações, determinando que
poucas alcancem seu estágio final.
Autor do recurso
A partir desta categoria, foi possível observar que há um padrão constante no
que tange ao autor da ação penal nos casos de responsabilidade da pessoa jurídica.
Como pode ser observado no gráfico 5 (abaixo), considerando-se o grupo de casos
levantados no STJ, o grupo de casos levantados no TRFs e o total das decisões, para
cada 10 recursos interpostos pela defesa, o MP interpõe aproximadamente 8,8 recursos.
Neste contexto, o único recurso realizado de ofício pelo juiz da causa encontrado foi
relativo a um conflito negativo de competência.277
277
STJ, Conflito de Competência negativo n. 37.356, Relator Min. Felix Fischer, j. 12.03.2003.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
368
Momento da interposição do recurso
No gráfico 6 (abaixo), foram distribuídas as informações sobre o momento no
qual as partes (defesa ou MP) interpuseram o recurso dentro do processo penal, sendo
que, no critério “antes da sentença”, foram agrupados os recursos interpostos entre a
decisão do juiz de primeira instância de receber ou não a denúncia e a sentença de
primeira instância. A partir disso, observa-se que a grande maioria destes recursos
foram interpostos antes da sentença. Na categoria “após a sentença”, por sua vez,
encontram-se os recursos interpostos em qualquer momento após a publicação da
sentença de primeira instância278. Vale lembrar que não foi encontrado nenhum recurso
interposto em momentos anteriores ao oferecimento da denúncia.
O gráfico 6 parece ainda reforçar a hipótese de que os casos envolvendo pessoas
jurídicas são extintos precocemente, na medida em que observamos que apenas 12,5%
de todos os recursos foram interpostos após a prolação de uma sentença em primeiro
grau.
278
Também foi enquadrado neste critério um caso de ação criminal de competência originária do TRF 4
(Apelação Criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008), uma
vez que não há apelação possível desta decisão.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
369
Tipo de crime
O gráfico 7 (acima) indica a quantidade de tipos penais que apareceram nas
denúncias dos processos analisados, quando mencionados no relatório do acórdão. Uma
vez que cada acusado pode ter cometido mais de um crime, optou-se pela contagem de
todos os tipos penais presentes no oferecimento da denúncia. Por tal razão, o valor total
da tabela ultrapassa o universo de 48 acórdãos.
Além disso, quando foi imputada à pessoa jurídica mais de uma conduta
referente ao mesmo tipo penal (concurso de crimes ou crime continuado), considerou-se
este fato como apenas uma unidade na tabela. Isto se justifica pelo interesse em
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
370
observar quais condutas levaram a uma quantidade maior de denúncias em face de
pessoas jurídicas.
Ao analisar estes número, percebe-se que a maior diversidade de tipos penais
denunciados refere-se aos crimes contra a flora (arts. 38 a 53), que conta com 6
diferentes crimes e 26 ações denunciadas. A seguir estão os crimes de poluição e afins
(arts. 54 a 61), com 4 diferentes formas delitivas e 31 denúncias realizadas. Em seguida,
encontram-se os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural (arts. 62 a
65) e os crimes contra a fauna (arts. 29 a 37), com respectivamente 2 e 1 tipos de crime
em 4 e 3 denúncias.
No critério “outros” foi incluído um caso em cuja denúncia constava um crime
tipificado na Lei n.º 8.176/91 e não na Lei de Crimes Ambientais. Esta lei define os
crimes contra a ordem econômica, e a conduta em questão é a descrita em seu art. 2º,
caput. 279
Tipo e modalidade de conduta
De acordo com o relatório dos acórdãos, foi ainda possível identificar o tipo e
modalidade de conduta imputada à pessoa jurídica. Do universo analisado, apenas 39
decisões faziam menção à forma de conduta realizada (ação ou omissão) e à modalidade
em que ela ocorreu (dolo ou culpa). Deste conjunto, predominam as condutas
comissivas e dolosas (como se pode ver nos Gráficos 8 e 9, abaixo). Vale ainda ressaltar
que a Lei n.º 9605/98, ao prever mais de 30 tipos penais, reservou somente 12 deles à
modalidade culposa.
279
Art. 2° Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpacão, produzir bens ou explorar
matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas
pelo título autorizativo.
Pena: detenção, de um a cinco anos e multa.
§ 1° Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar,
tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput
deste artigo.
§ 2° No crime definido neste artigo, a pena de multa será fixada entre dez e trezentos e sessenta diasmulta, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.
§ 3° O dia-multa será fixado pelo juiz em valor não inferior a quatorze nem superior a duzentos
Bônus do Tesouro Nacional (BTN).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
371
Pedidos dos recursos
Conforme já visto anteriormente, a maior parte dos recursos são interpostos
previamente à sentença de primeiro grau.
No que diz respeito ao conteúdo destes pedidos, é possível perceber que existem
apenas dois pedidos de absolvição ou redução da pena280, em favor da defesa, e somente
280
TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008 e
TRF4 2003.72.04.013512-0, Relator Des. Néfi Cordeiro, j. 15.05.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
372
dois pedidos de condenação da pessoa jurídica.
281
Entendemos que a carência de
pedidos cujo objeto seja uma decisão de mérito esteja relacionado à extinção precoce de
processos criminais envolvendo pessoas jurídicas.
A leitura do gráfico 10 também evidencia um dado já apontado na análise do
momento de interposição do recurso, qual seja, a predominância de recursos interpostos
antes da sentença de primeiro grau, com pedidos de recebimento da denúncia e de
trancamento da ação penal, que somam quase 80% do total.
Em menor frequência, também surgiram dois pedidos cujo objeto foi a
recolocação da pessoa jurídica no pólo passivo da ação penal, ambos de interesse da
acusação. 282
Evolução da decisão
281
TRF4, Apelação n. 2004.72.04.002610-3, Relator Des. Luis Fernando Penteado, j. 13.06.2007 e TRF4,
Apelação n. 2004.71.00.024695-3, Relator Des. Luis Carlos Canalli, j. 14.08.2007. Em um dos pedidos
de condenação há também o pedido de recolocação da pessoa jurídica no pólo passivo, uma vez que ela
havia sido excluída da relação processual pelo juiz de primeira instância após o recebimento da denúncia
e antes da sentença (TRF1, Apelação 2005.41.00.001244-4).
282
STJ, Recurso Especial n. 847.476, Relator Min. Paulo Galotti, j. 08.04.2008 e STJ, Recurso Especial
564.360, Relator Min. Gilson Dipp, j. 02.06.2005.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
373
A categoria “evolução da decisão” foi criada a fim de observar a manutenção ou
não das decisões do juiz a quo pelos Tribunais, isto é, se e em que medida as decisões
são ou não alterada em juízo de segunda instância. Como mostra o gráfico 11 (abaixo),
os TRFs (61,2% dos casos) alteraram muito mais as decisões de primeiro grau que o
STJ (33,3% dos casos).
Os recursos analisados apresentam relativa uniformidade nos TRFs e STJ quanto
à continuidade da ação, após seu julgamento em sede recursal. Em aproximadamente
65% dos casos, a ação prosseguiu após o julgamento dos recursos. Do exposto, percebese que a quantidade de decisões de primeiro grau alteradas é superior à de decisões
mantidas, indicando que tanto STJ como TRFs reformam mais as decisões para manter
seu prosseguimento. Em geral, é maior o número de ocorrências em que as instâncias
superiores decidem no sentido de reverter a decisão anterior de encerramento do caso.
Por fim, vale esclarecer as duas últimas colunas do gráfico. Por um lado, a
terceira coluna (“Parcialmente alterada a decisão da instância anterior”) procura indicar
a ocorrência de alteração parcial de duas decisões proferidas pelo TRF 4; em uma das
decisões283 houve o trancamento da ação de um dos tipos denunciados, mas manteve a
denúncia em relação aos outros; em outra, o julgamento de uma apelação criminal284
manteve a condenação e alterou a pena de suspensão definitiva das atividades pela de
suspensão temporária das empresas. Por outro lado, a última coluna refere-se à ação de
competência originária do Tribunal Regional Federal, pois trata de denúncia contra
prefeito em exercício. 285
283
TRF4, Habeas Corpus n. 2008.04.00.005931-5, Relator Des. Paulo Afonso Brum, j. 04.06.2008.
284
TRF4, Apelação criminal n. 2004.71.00.024695-3, Relator Des. Luis Carlos Canalli, j. 14.08.2007.
285
TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Braz, j. 15.05.2008.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
374
Detalhamento da decisão final
A partir do gráfico 12 (acima), fica evidente a predominância, nos Tribunais, de
decisões que determinam a continuidade da persecução penal. Somadas as decisões que
determinam seu recebimento e o prosseguimento da ação penal, temos 21 casos de
prosseguimento contra 13 de trancamento ou rejeição da denúnica.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
375
Além disso, aparece novamente o pequeno número de recursos interpostos após
decisão de mérito (absolvição ou condenação) em primeiro grau – apenas 4 casos de 48
casos (8% do total).
Quanto ao não-conhecimento de seis recursos interpostos, quatro Habeas
Corpus não foram conhecidos pela impossibilidade da pessoa jurídica figurar como
paciente neste tipo de ação286. Um deles287 não foi conhecido por tratar de matéria
probatória, o que é vedado. O Recurso Especial288 não foi conhecido por estar em
desacordo com as exigências legais para sua admissibilidade.
Sobre o
conjunto
de acórdãos
analisados,
vale mencionar
algumas
particularidades. Em um dos casos de prosseguimento da ação, designou-se novo
interrogatório, pois se observou a impossibilidade de preposto da pessoa jurídica
representá-la em processo penal, o que só poderia ser feito pelo representante legal. 289
Além disso, a pessoa jurídica acusada foi recolocada no pólo passivo em uma
apelação e um recurso especial. Nos dois casos foram consideradas nulas as decisões
que afastaram a pessoa jurídica do pólo passivo depois do recebimento da denúncia, e
em ambos determinou-se a elaboração de nova sentença que incluísse a pessoa jurídica
no pólo passivo.
286
TRF1, Habeas Corpus n. 2003.01.00.042154-7, Relator Des. Carlos Olavo, j. 06.04.2004; TRF1,
Habeas Corpus n. 2003.01.00.007523-0, Relator juiz federal Jamil Rosa de Jesus, j. 17.06.2003; STJ,
Habeas Corpus n. 93.867, Relator Min. Felix Fischer, j. 08.04.2008; STJ, Habeas Corpus n. 16.762,
Relator Min. Hamilton Carvalhido, j. 26.11.2004.
287
STJ, Habeas Corpus n. 21.644, Relator Min. Gilson Dipp, j. 21.08.2003.
288
STJ, Resp n. 331929, Relator Min. Felix Fischer, j. 17.09.2002.
289
TRF4, Mandado de Segurança n. 2002.04.01.013843-0, Relator Des. Jorge Luíz Borges Germano, j.
10.12.2002.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
376
Unanimidade das decisões
Como mostra o gráfico 13 (acima), nos acórdãos analisados prevalece a
unanimidade das decisões. Somente nos TRF1 (cinco decisões) e TRF4 (uma decisão)
existem casos decididos por maioria. As seis decisões por maioria indicaram no
resultado final a possibilidade de se responsabilizar penalmente a pessoa jurídica. No
TRF1, todas as decisões por maioria foram favoráveis ao autor da ação e somente
versavam sobre o trancamento (três no total) ou o recebimento da ação (duas no total).
O recurso no TRF4, por sua vez, também versava sobre o trancamento da ação, mas este
não foi provido, e determinou-se a realização de nova audiência para saneamento de
nulidade.
Decisão e fundamentação
No extenso gráfico em linhas colocado abaixo, procuramos tratar da decisão e da
fundamentação dos julgados analisados. Na barra lateral esquerda deste gráfico,
encontram-se as diferentes decisões proferidas no âmbito dos acórdãos pesquisados,
enquanto na parte superior encontram-se todas as fundamentações utilizadas nos 48
acórdãos. Dividindo o universo deste modo, é possível observar qual o fundamento
mais utilizado para cada tipo de decisão proferida. Vale lembrar que, como é possível
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
377
mais de um fundamento para cada decisão, a soma total destes resultados ultrapassa o
número de acórdãos analisados.
Da análise feita nestes termos, percebe-se que as combinações mais comuns
entre decisão (d) e fundamentação (f) são:
•
(d) recebimento da denúncia por
responsabilização penal da pessoa jurídica (13 vezes);
(f)
ser
constitucional
a
•
(d) recebimento da denúncia por (f) considerar inadequado o momento
processual em que o juiz de primeira instância excluiu a pessoa jurídica da relação
processual (5 vezes);
•
(d) não-trancamento da ação por
responsabilização penal da pessoa jurídica (5 vezes); e
•
(f)
ser
constitucional
a
(d) trancamento da ação penal por (f) ausência de co-réu pessoa física (5
vezes).
De acordo com os dados desta tabela, parece ser possível afirmar que os
Tribunais estão atualmente sendo chamados para resolver questões “primárias”
quanto à responsabilização penal da pessoa jurídica. Isso porque eles vem sendo
chamados para se pronunciarem sobre temas como a constitucionalidade desta
responsabilização penal, assim como sobre a necessidade de co-existência de réu pessoa
física, análises feitas estas ainda no início do procedimento penal.
Além disso, como exposto abaixo e já mencionado anteriormente, em relação à
individualização da conduta por parte da pessoa física e a sua respectiva persecução
penal, a maioria dos julgados analisados indica a necessidade de fazer tal
individualização. Do universo de casos analisados, 75% das justificativas para
trancamento das ações versavam sobre a inexistência de co-réu pessoa física e falta de
provas da conduta individual concreta, assim como 40% das fundamentações para o
não-recebimento da denúncia cuidam da falta de imputação de crime à pessoa física que
agiu concretamente.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
378
Não há prova de decisão do
Não há a previsão de procedimentos e
Há previsão constitucional e legal Considerado inadequado o momento
representante legal aprovando o A pessoa jurídica não Decisão sobre penas específicas para a pessoa jurídica
para a responsabilização penal da para a exclusão da pessoa jurídica do Há co-réu pessoa física Não há co-réu pessoa física
cometimento do delito em pode ser paciente de HC competência no âmbito penal, o que impede a
pessoa jurídica
pólo passivo
benefício da pessoa jurídica
continuidade da ação
Trancada a ação
0
0
0
5
1
0
0
0
Não trancada a ação
5
0
1
0
0
0
0
0
Recebida a denúncia
13
5
1
0
0
0
0
0
Não recebida a denúncia
0
0
0
2
0
0
0
2
Não conhecido o recurso
1
0
0
0
0
3
0
0
Recolocada a pessoa jurídica no pólo
passivo
2
2
0
0
0
0
0
0
Decisão sobre competência
0
0
0
0
0
0
2
0
Condenada a PJ
3
0
0
0
0
0
0
0
Condenada a PJ, mas reconhecida a
prescrição.
0
0
0
0
0
0
0
0
Reforma parcial da sentença para
diminuir a pena
0
0
0
0
0
0
0
0
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
379
Não é necessário extinguir a
Não é possível
É cabível a modalidade culposa em Há permissão dos órgãos
pessoa jurídica se ela é
reconhecer a
crimes cometidos por pessoas competentes para que a pessoa
primária e o empresário se
responsabilidade
jurídicas.
jurídica agisse daquela forma
comprometeu a reparar os
jurídica de consórcios
danos causados
Precrita a ação contra a pessoa
A responsabilização Não é possível
física, deve também se
penal da PJ é análise de mérito
reconhecer a prescrição da ação
inconstitucional
em HC
contra a pessoa jurídica
Trancada a ação
0
1
1
0
0
0
0
Não trancada a ação
1
0
0
0
0
0
0
Recebida a denúncia
0
0
0
0
0
0
0
Não recebida a denúncia
0
0
0
0
0
1
0
Não conhecido o recurso
0
0
0
0
0
0
1
Recolocada a pessoa jurídica no pólo
passivo
0
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0
0
Decisão sobre competência
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Condenada a PJ
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Condenada a PJ, mas reconhecida a
prescrição.
0
0
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2
0
0
Reforma parcial da sentença para
diminuir a pena
0
0
0
1
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0
0
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
380
4.3 Análise qualitativa das apelações e ação criminal
Como já explicitado acima, o próprio fato de estarem os tribunais tratando, em
sua maioria, de questões “primárias” da responsabilidade penal da pessoa jurídica fez
com que o levantamento jurisprudencial realizado resultasse em apenas cinco decisões
de mérito, em casos julgados no âmbito dos Tribunais Regionais Federais - 4 apelações
e 1 ação criminal. Ainda que em todas as decisões houvesse condenações, em um deles
foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva.
A seguir, promovemos uma análise qualitativa destas decisões, sistematizando as
principais questões e argumentos que foram levantados nestes julgados.
Inicialmente, é interessante notar que, em todas estas decisões, os Tribunais
reconheceram a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, embora
esse ponto tenha sido questionado mais de uma vez. Em um dos acórdãos290, a parte
recorrente alegou ilegitimidade para figurar no pólo passivo por ser inviável a
responsabilização penal da pessoa jurídica. Não obstante isso, ao decidir sobre o caso, o
Tribunal afirmou ser atualmente pacífico, em sua jurisprudência, a imputação de pena à
pessoa jurídica.
Debruçado sobre esta mesma questão, o juiz a quo mencionado na Apelação
criminal n. 2005.41.00.001244-4291 excluiu a pessoa jurídica do processo, sob o
argumento de que:
em atenção ao societas delinquere non potest, o crime é produto
exclusivo do homem, porque ‘dotado de personalidade e vontade próprias,
ostenta aptidão a protagonizar condutas passíveis de censura penal: nullum
crimen sine conducta’, enquanto que ‘a pessoa jurídica é mera ficção,
inexiste por si e, portanto, sozinha, carece de aptidão à prática de crimes.
Tal julgado, no entanto, foi reformado pelo Tribunal, que reintegrou a pessoa
jurídica ao pólo passivo e em seguida, condenou-a. Afirmou-se, em referência à decisão
de primeiro grau, que “as pessoas jurídicas não são somente uma abstração, pois agem
no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de existência (teoria da
realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva, devendo ser equiparadas, em
290
TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 15.05.2008.
291
TRF1, Apelação criminal n. 2005.41.00.001244-4, Relator juiz federal Saulo Casali Bahia, j.
11.12.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
381
regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em direitos como em obrigações”.
Tal decisão é especialmente interessante quando a analisamos sob a ótica do modelo de
responsabilidade que nela está pressuposto. Ao que parece, o Tribunal está, nesta
sentença, fazendo referência ao modelo da responsabilidade própria da pessoa jurídica,
que é vista como “ser que age”; desta forma, parece estar aberto um caminho para a
superação das dificuldades de individualização e para a formulação de um modelo de
responsabilidade que se adéqua melhor a um contexto marcado por uma forte
diferenciação funcional.
Não obstante isso, este acórdão parece nadar na contracorrente. Em todos os
demais julgados, existiam pessoas físicas denunciadas juntamente com a pessoa
jurídica, e as condenações dos entes coletivos foram sempre acompanhadas das
condenações das respectivas pessoas físicas co-autoras. Esta é mais uma demonstração
da exigência jurisprudencial da existência de co-autoria entre a pessoa física e a jurídica,
já mencionada anteriormente.
Para além dos requisitos para a imputação da pessoa jurídica, outro ponto que
merece ser destacado é aquele acerca do modo de aferição da responsabilidade coletiva.
Das apelações analisadas, duas resultaram de sentenças condenatórias em
primeira instância, uma de absolvição e outra de reconhecimento de causa extintiva da
punibilidade. A absolvição em primeira instância foi proferida sob o fundamento da
ausência de indícios de autoria. O Tribunal reverteu tal decisão, reconhecendo a
“autoria” da pessoa jurídica, e se aduz que a própria pessoa jurídica teria “agido” em
busca de determinado benefício. Revelou-se peculiar o critério utilizado para tal
aferição: ter o fato ocorrido dentro de suas instalações:
No que pertine à autoria em relação à empresa Cerâmica Pamil Ltda.,
entendo estar devidamente demonstrada. Apesar de a defesa alegar que a
extração da argila não se deu por ato da pessoa jurídica, nem dentro de sua
propriedade, os documentos elaborados pelas autoridades ambientais deixam
claro exatamente o contrário, que a retirada do mineral deu-se pela Cerâmica
Pamil Ltda., tendo ocorrido o fato dentro de suas instalações, conforme dão
conta os seguintes documentos: - Notícia de Infração Ambiental (fls. 07-12);
- Boletins de Ocorrência Ambiental de nºs 29414 e 29415 (fls. 13 e 14); Autos de Infração de nºs 346188, 346189 e 346190 (fls. 15-17). A área da
empresa, conforme referido nos documentos, é totalmente cercada, o que
afasta possível engano a respeito do local dos fatos. Além disso, os Termos
de Embargo/Interdição de nºs 0280089 e 0280090 (fls. 18 e 19) confirmam a
realização dos fatos pela Cerâmica Pamil Ltda, tanto que teve suas atividades
paralisadas, sendo que a defesa não trouxe qualquer notícia sobre eventual
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
382
impugnação dos atos no âmbito administrativo (TRF 4 – Apelação
2004.72.04.002610-3).
Já no caso em que o juiz a quo reconheceu causa extintiva da punibilidade292
houve afastamento da pessoa jurídica do pólo passivo, alegando-se ser esta mera ficção
e, portanto, parte ilegítima. O Tribunal, também neste caso, reverteu tal decisão,
retomando o argumento de que “as pessoas jurídicas não são somente uma abstração,
pois agem no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de existência
(teoria da realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva, devendo ser
equiparadas, em regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em direitos como em
obrigações”.
Interessante chamar a atenção para os critérios aqui utilizados para a
responsabilização do ente coletivo: “no exame e definição da responsabilidade, na área
ambiental, é imprescindível a separação da ação do seu representante legal, como
pessoa física, devendo o julgador verificar o resultado: se beneficia somente o
representante, apenas este responde; se beneficia a empresa, havendo prova de ter agido
nos seus fins institucionais, responde também esta, ressalvadas as hipóteses de coautoria”. Desta forma, parece haver indícios, na jurisprudência, para uma diferenciação
entre as infrações cometidas a despeito da pessoa jurídica e as infrações cometidas pela
própria pessoa jurídica.
Outro ponto relevante é o tipo de pena a ser aplicado sobre os entes coletivos.
Quando houve condenação de pessoas jurídicas em primeira instância, foram aplicadas
penas restritivas de direito – prestação de serviços à comunidade e, em um dos casos, a
suspensão definitiva das atividades, sem aplicação de penas de multa. O TRF4 aplicou a
pena de multa em um caso, fixando-a em R$ 131.000,00293. Em geral, os TRF1 e TRF4
privilegiaram apenas a pena de prestação de serviço à comunidade, como custeio de
programas e de projetos ambientais, manutenção de espaço público pelo prazo de um
ano, contribuições mensais no valor de um salário-mínimo a entidades ambientais ou
culturais, pelo período de 08 meses, execução de obras de recuperação de áreas
degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6 meses.
292
TRF1, Apelação criminal n. 2005.41.00.001244-4, Relator juiz federal Saulo Casali Bahia, j.
11.12.2007.
293
TRF4, Ação criminal n. 2005.04.01.009770-1, Relator Des. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 15.05.2008.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
383
A segunda instância, por sua vez, alterou todas as decisões apeladas. Dentre as
condenações a quo, no caso em que se determinou a pena de suspensão definitiva das
atividades, esta foi reformada para de suspensão temporária das atividades 294. No
entendimento do Tribunal, “mostra-se mais adequado que a sanção de suspensão parcial
anteceda a pena de suspensão total das atividades da empresa, e que esta penalidade
fique restrita às atividades relacionadas ao dano ambiental causado pela pessoa
jurídica”. Considerou-se também que havia sido firmado pelo co-réu, sócio responsável
pela pessoa jurídica, um compromisso de ajustamento de conduta com o Ministério
Público Estadual.
Em uma das decisões, o TRF4 manteve a condenação, mas reconheceu a
ocorrência da prescrição. De todo modo, a imputação de responsabilização à pessoa
jurídica contida na sentença condenatória não deve ser desprezada295. Na apelação em
razão da absolvição, o Tribunal reformou a decisão de primeira instância para condenar
a pessoa jurídica e aplicou penas de multa e restritivas de direito - contribuições a
entidades ambientais ou culturais. Entretanto, as penas não chegaram a ser executadas,
pois foi reconhecida, de ofício, a prescrição da pretensão punitiva. Esta decisão foi
anulada e os autos foram remetidos ao juiz sentenciante, para que este pronunciasse
nova decisão, desta vez incluindo a pessoa jurídica no pólo passivo. 296
Por fim, merece destaque uma ação criminal de competência originária do TRF,
Ação Penal n. 2005.04.01.009770-1, na qual a pessoa jurídica foi condenada às penas
de multa e prestação de serviços consistentes na execução de obras de recuperação das
áreas degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6 meses. Interessante notar a discussão
do problema da dosimetria da pena aplicada a pessoas jurídicas. Ante a ausência de
limites temporais para as penas aplicáveis, a solução desse acórdão foi considerar os
limites abstratos da pena privativa de liberdade previstos no tipo, como referenciais para
o dimensionamento da sanção.
4.4 Questões que levantam aspectos dogmáticos relevantes
294
TRF4, Apelação criminal n. 2004.71.00.024695-3, Relator Luis Carlos Canalli, j, 14.08.2007.
295
TRF4, Apelação criminal n. 2004.72.04.002610-3, Relator Des. Luiz Fernando Wowk, j. 13.06.2007.
296
TRF4, Apelação criminal n. 2003.72.04.013512-0, Relator Des. Néfi Cordeiro, j. 15.05.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
384
Nos parágrafos que seguem, destacaremos, ainda que de forma sucinta, algumas
situações que se mostraram importantes para uma reflexão dogmática da
responsabilização penal da pessoa jurídica.
Neste sentido, um primeiro caso que revela questões dogmáticas interessantes é
aquele de uma denúncia em face de uma empresa pública por crime contra o meio
ambiente297, empresa esta que, apenas após a privatização, foi denunciada pela prática
do crime ocorrido anteriormente. Este caso mostra-se relevante porque nele, apesar de a
decisão final trancar a ação por ausência de co-réu pessoa física, o relator aborda a
questão da responsabilidade penal por sucessão. Embora não tenha se aprofundado na
discussão do tema, o relator acredita não ser possível a sucessão criminal, em razão da
proibição constitucional de que a pena ultrapasse a pessoa do condenado.
Mencione-se, ainda, um caso298 em que a ausência de procedimentos específicos
para processamento de pessoas jurídicas foi o fundamento da decisão que rejeitou a
denúncia. No âmbito do Recurso em sentido Estrito n. 2001.51.09.000324-1, o Tribunal
rejeitou o pedido de recebimento da denúncia, embora tenha considerado constitucional
a responsabilização penal da pessoa jurídica. O relator do voto vencedor argumentou
pela impossibilidade de se aplicar a responsabilidade penal da pessoa jurídica sem
instrumentos e previsões específicas para lidar processualmente com a pessoa jurídica e
com sua individualização da pena299. Afirmou o relator Abel Gomes que “nosso direito
ainda não se aparelhou, convenientemente, de institutos claros e precisos, necessários a
que se efetive essa punição” e que “a Lei n.º 9.605/98 ainda não foi capaz de
contemplar, completamente, a disciplina infra-legal apta a possibilitar a adoção da
responsabilização penal das pessoas jurídicas”.
4.5 Breve descrição dos casos em que houve análise de mérito
TRF 1 – Apelação 2005.41.00.001244-4
297
TRF5, Mandado de Segurança n. 2006.05.00.058401-4. Relatora Des. Margarida Cantanelli, j.
14.08.2007,
298
TRF2, Recurso em Sentido Estrito n. 2001.51.09.000324-1, Relator Des. Abel Gomes, j. 24.08.2005.
299
Afirmando que “não estão devidamente cominadas as penas que se aplicariam, especificamente, em
cada tipo penal transgredido pela pessoa jurídica, limitando-se, a lei, a tratar da aplicação das penas às
pessoas jurídicas, de forma genérica – artigos 21 a 24 - sem observar princípios constitucionais que
seriam imprescindíveis para a correta utilização deste novo instrumento político-criminal de prevenção
como, por exemplo, o da individualização”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
385
Denunciados Pessoa Jurídica: Buratti & Buratti Ltda – Me;
Denunciados Pessoa Física: Nilton Bahia Rosa (não consta o cargo);
Adequação típica (PJ): art. 46, Lei 9.605/98;
Resumo do caso: os denunciados venderam produtos de origem vegetal
sem licença válida outorgada pelo IBAMA
Decisão de primeira instância: condenou Nilton à pena de 01 (um) ano
e 08 (oito) meses de reclusão e 20 (vinte) dias-multa, substituindo a pena privativa de
liberdade por duas restritivas de direitos; e, com base no art. 43, III do Código de
Processo Penal, excluiu da relação processual a referida empresa.
Fundamento na primeira instância: Em atenção ao societas delinquere
non potest, o crime é produto exclusivo do homem, porque “dotado de personalidade e
vontade próprias, ostenta aptidão a protagonizar condutas passíveis de censura penal:
nullum crimen sine conducta”, enquanto que “A pessoa jurídica é mera ficção, inexiste
por si e, portanto, sozinha, carece de aptidão à prática de crimes”;
Penas aplicadas à pessoa jurídica em primeira instância: nenhuma;
Apelante: Ministério Público;
Pedidos: Inclusão da pessoa jurídica no pólo passivo e sua conseqüente
condenação;
Decisão de segunda instância: Provida a apelação para anular a
sentença proferida e determinada a realização de outra que inclua a pessoa jurídica no
pólo passivo.
Penas aplicadas à pessoa jurídica: não se aplica.
Fundamento na segunda instância: (i) no exame e definição da
responsabilidade, na área ambiental, é imprescindível a separação da ação do seu
representante legal, como pessoa física, devendo o julgador verificar o resultado: se
beneficia somente o representante, apenas este responde; se beneficiar a empresa,
havendo prova de ter agido nos seus fins institucionais, responde também esta,
ressalvadas as hipóteses de co-autoria; (ii) as pessoas jurídicas não são somente uma
abstração, pois agem no mundo dos fenômenos, sendo, portanto, seres com real juízo de
existência (teoria da realidade objetiva), já que são dotadas de vontade coletiva,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
386
devendo ser equiparadas, em regra, como seres sociais, às pessoas físicas, tanto em
direitos como em obrigações; (iii) A apuração da responsabilidade se dá à vista da
culpabilidade institucional, aferida pelo comportamento da empresa e em face da sua
responsabilidade social, em cada caso concreto e segundo as suas circunstâncias, não
procedendo a objeção de que a lei teria consagrado a responsabilidade penal objetiva,
calcada apenas no fato delitivo praticado pelo seu representante; (iv) uma vez recebida a
denúncia, não pode o juiz a quo excluir a empresa da relação processual, pois tal fato
equivale à retratação da decisão que recebeu a denúncia, o que é impossibilitado ao juiz,
já que o momento para se rejeitar a acusação, ou mesmo excluir réus do feito, é o da
decisão que examina se os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal foram
atendidos.
TRF 4 – Apelação 2003.72.04.013512-0
Denunciados Pessoa Jurídica: Carbonifera Belluno Ltda;
Denunciados Pessoa Física: Henrique Salvaro, administrador e sócio
majoritário;
Adequação típica (PJ): art. 55, Lei 9.605/98;
Resumo do caso: extração de carvão sem a licença necessária;
Decisão de primeira instância: (i) declarou extinta a punibilidade dos
réus em relação ao crime previsto no artigo 330 do Código Penal, pela ocorrência da
prescrição; (ii) condenou o réu Henrique Salvaro à pena de 2 anos e 4 meses de
detenção e 65 dias-multa, no valor unitário de 3 salários-mínimos vigentes em setembro
de 2003, pela prática dos delitos previstos nos artigos 2º da Lei nº 8.176/91, c/c 55
"caput", da Lei nº 9.605/98, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas
de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária,
esta fixada em R$50.000,00; (3) condenou a pessoa jurídica à pena de prestação de
serviços à comunidade, consistente em custeio de programas e de projetos ambientais a
serem definidos em processo de execução, no valor de R$100.000,00, atualizados até o
desembolso;
Penas aplicadas à pessoa jurídica: pena restritiva de direito – prestação
de serviço à comunidade;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
387
Apelantes: réus;
Pedidos: preliminarmente a nulidade da sentença por ocorrência de
mutatio libelli sem que houvesse aditamento da denúncia e chance de manifestação da
defesa e nulidade do processo ab initio por não ter sido oferecida a transação penal;
quanto ao mérito, alegam ausência de provas da prática do delito, a aplicação de
atenuantes prevista na legislação ambiental, a impossibilidade de serem somadas as
penas aplicadas e a ocorrência da prescrição;
Decisão de segunda instância: (i) é possível a responsabilização penal
da pessoa jurídica quando também denunciado o co-réu pessoa física, (ii) há provas
suficientes do cometimento do delito, (iii) Mantida a condenação da primeira instância
para a pessoa jurídica, (iv) diminuída a pena de detenção da pessoa física para 7 meses o
que resulta em prescrição da pretensão punitiva, (v) declarada extinta a punibilidade em
relação à pessoa jurídica pela ocorrência da prescrição para a pessoa física;
Penas aplicadas à pessoa jurídica: mantida a pena restritiva de direito,
mas reconhecida a prescrição de oficio.
TRF 4 – Apelação 2004.71.00.024695-3
Denunciados Pessoa Jurídica: Enio Nelci Silva Flores Firma Individual
Denunciados Pessoa Física: Enio Nelci Silva Flores, sócio responsável
e administrador
Adequação típica (PJ): art. 55 c/c art. 15, II, alíneas a, e, i, n, Lei
9.605/98
Resumo do caso: Uso de draga para extração de areia sem a devida
licença em área de conservação ambiental durante o período noturno;
Decisão de primeira instância: (i) condenou o réu Ênio Nelci Silva
Flores, pela prática dos delitos enunciados nos arts. 2º da Lei 8.176/91 e 55 da Lei
9.605/98, c/c o art. 70 do CP, às penas de 1 (um) ano e 02 (dois) meses de detenção e 10
(dez) dias-multa, no valor unitário de 1/3 (um terço) do salário mínimo nacional vigente
ao tempo dos fatos, devidamente atualizado (concurso formal entre os crimes de
usurpação do patrimônio público e extração de recursos minerais sem autorização).
Substituiu a pena privativa de liberdade aplicada ao réu por duas restritivas de direitos,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
388
consistente em prestação pecuniária, no valor de 02 salários mínimos e prestação de
serviços à comunidade; e (ii) condenou a pessoa jurídica pela prática do delito tipificado
no artigo 55 c/c artigo 15, II, alíneas a, b, i, n, c/c artigos 21 a 24, todos da Lei 9.605/98,
cumulativamente, à pena restritiva de direito de suspensão definitiva de suas atividades
e à pena de prestação de serviços à comunidade consistente na manutenção de um
espaço público, a ser determinado pelo Juízo da Execução Penal, pelo prazo de 01 (um)
ano.
Penas aplicadas à pessoa jurídica: penas restritivas de direito –
Suspensão definitiva das atividades e prestação de serviço à comunidade;
Apelantes: Réu e MPF
Pedidos: réu – reforma parcial da sentença para afastar a pena de
suspensão definitiva das atividades; MPF – elevação das penas aplicadas à pessoa física.
Decisão de segunda instância: alterada a pena para suspensão
temporária das atividades, mas somente aquelas lesivas ao meio ambiente, pelo mesmo
tempo da pena restritiva de direitos (1 ano);
Penas aplicadas à pessoa jurídica: penas restritivas de direito –
Suspensão temporária das atividades lesivas ao meio ambiente e prestação de serviço à
comunidade (adotar e manter espaço público pelo prazo de 1 ano);
Fundamentos da segunda instância: (i) Mostra-se mais adequado que a
sanção de suspensão parcial anteceda a pena de suspensão total das atividades da
empresa, e que esta penalidade fique restrita às atividades relacionadas ao dano
ambiental causado pela pessoa jurídica, (ii) o co-réu, sócio responsável pela pessoa
jurídica apelante, firmou Compromisso da ajustamento com o Ministério Público
Estadual, no qual se obrigou a obter renovação do licenciamento ambiental referente à
draga bem como a não extrair areia sem prévio licenciamento ambiental, (iii) réus não
são reincidentes em crimes ambientais, (iv) a dosimetria da pena foi feita da seguinte
maneira: obtida a pena média para a restritiva de liberdade aplicável às pessoas físicas e
acrescidas as agravantes.
TRF 4 – Apelação 2004.72.04.002610-3
Denunciados PJ: Ceramica Pamil Ltda;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
389
Denunciados PF: Sérgio Pagnan E César Antônio Pagnan, sócios-
proprietários;
Adequação típica (PJ): arts. 38 e 55, caput, Lei 9.605/98;
Resumo do caso: extração de argila e corte de árvores em área de
preservação permanente sem autorização dos órgãos competentes;
Decisão de primeira instância: desclassificação do fato do art. 38 para o
50 da mesma lei e absolveu os réus por falta de provas de autoria;
Penas aplicadas à pessoa jurídica: absolvida;
Apelantes: MPF;
Pedidos: afastar a desclassificação e condenar os réus nos termos da
denúncia;
Decisão de segunda instância: mantida a desclassificação do tipo e
condenada a empresa Cerâmica Pamil Ltda. nas sanções do art. 55, caput, da Lei nº
9.605/98 e os réus Cesar Antonio Pagnan e Sérgio Pagnan nas sanções do art. 2º, caput,
da Lei nº 8.176/91, em concurso formal com o art. 55, caput, da Lei nº 9.605/98.
Reconhecida de ofício a prescrição.
Penas aplicadas à pessoa jurídica: prestação de serviço à comunidade
(contribuições a entidades ambientais ou culturais, através de pagamentos mensais de 01
salário-mínimo pelo prazo de 08 meses) e multa (30 dias-multa, no valor de 01 saláriomínimo). Não aplicadas em razão do reconhecimento de ofício da prescrição.
Fundamento da segunda instância: (i) há prova da autoria da pessoa
jurídica; (ii) sanção escolhida porque observa o caráter sócio-educativo, auxiliando
entidades voltadas à defesa do bem lesado pela conduta ilícita, sem deixar de manter o
fim punitivo; (iii) valor da multa semelhante à pena restritiva de direito e adequada à
capacidade financeira da pessoa jurídica; (iv) “ausente critérios específicos na
legislação a respeito da prescrição das penas de pessoa jurídica, de modo a facilitar
sua análise, entendo por determinar a sanção aplicada dentro do prazo da pena em
abstrato, com cumprimento de forma mensal. Considerando que o administrador é o
mentor do ilícito, tenho não ser razoável usar outro critério que leve o prazo
prescricional a ser maior que aquele incidente para o gestor da empresa” (foi
considerada a extensão pena restritiva de direito [8 meses] para o cálculo da prescrição).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
390
TRF 4 – Ação Penal 2005.04.01.009770-1
Denunciados Pessoa Jurídica: Madeiras Oeste Ltda;
Denunciados Pessoa Física: Darci Castagna (Administrador Da Pj E
Prefeito De Nova Itaberaba S/C), Leocir Pedro Moro, Almério Zanfonatto, Marcos
Vinicius Cella, Euclides Antonio Possan, Ivete De Marco Caleffi, Roque Nicolau
Weber E Reinério Nadaleti;
Adequação típica (PJ): art.s 50 c/c 53, inciso II, alínea c, e 39, todos da
Lei nº 9.605/98;
Resumo do caso: destruição de florestas nativas, objeto de especial
preservação pela legislação ambiental utilizando documentação falsa. A denúncia foi
oferecida e recebida na 1ª instância, mas após a posse como prefeito do réu Derci
Castagna, a competência foi transferida para o Tribunal, que sentenciou o feito.
Pedidos (PJ): (i) ilegitimidade para figurar no pólo passivo por ser
inviável a responsabilização penal da pessoa jurídica; (ii) a extinção do feito ante a
existência de coisa julgada e a declaração de sua nulidade pela ausência de oportunidade
para apresentação de defesa prévia; (iii) absolvição;
Decisão de segunda instância: Condenada como incursa na sanção do
artigo 38 combinado com o 53, inciso II, alíneas a e c, ambos da Lei nº 9.605/98;
Penas aplicadas à pessoa jurídica: Multa (131 dias-multa no valor de
R$ 1.000,00, totalizando R$ 131.000,00 e prestação de serviços à comunidade
(execução de obras de recuperação de áreas degradadas pelo prazo máximo de 1 ano e 6
meses [A recuperação dos locais danificados e degradados deverá ser equivalente, no
mínimo, ao dobro do quantitativo de espécimes vegetais derrubados pela empresa]);
Fundamentos da decisão: (i) é pacífico na jurisprudência a
responsabilização penal da pessoa jurídica; (ii) evidenciado ser Darci Castagna o gestor,
de fato e de direito, da sociedade comercial Madeiras Oeste, não há mácula ou vício
hábil a ensejar a exclusão da empresa do pólo passivo destas ações criminais; (iii) Geni
Teresinha Castagna é a representante da pessoa jurídica e apresentou defesa prévia
mesmo não constando no rol de denunciados, assim sanado o vício da falta de intimação
para apresentação de defesa prévia; (iv) dosimetria da pena: inexistindo previsão de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
391
limites temporais para as penas aplicáveis para a pessoa jurídica, a solução é considerar
os limites abstratos da pena privativa de liberdade previstos no tipo, como referenciais
para o dimensionamento da sanção. Para a Multa deve ser considerada a situação
econômica do infrator; (v) “Acaso fosse pena física partiria ela de patamar mínimo (um
ano), acrescido quantum derivado das circunstâncias judiciais (quatro meses),
adicionando-se à pena-base, ademais, outra fração relativa às agravantes (dois
meses)”. (vi) “a restrição de atividades implicaria possível reflexo na diminuição do
número de empregados, o que não se deseja”.
4.6 Breve descrição dos casos que trouxeram problemas dogmáticos relevantes
TRF 5 - MS 2006.05.00.058401-4
Pessoa Jurídica: SAELPA – Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba;
Resumo do caso: Foi recebida a denúncia contra a pessoa jurídica (art. 40, Lei
9.605/98). A pessoa jurídica impetrou mandado de segurança para trancamento da ação;
Fundamento principal: Decisão de recebimento foi abusiva por receber
denúncia exclusivamente contra pessoa jurídica;
Decisão de segunda instância: não recebida a denúncia por ausência de co-réu
pessoa física;
Peculiaridades: (i) A Procuradoria deu parecer favorável à ré reconhecendo a
teoria da dupla imputação o que obrigou o MPF de 1ª instância a apresentar contestação;
(ii) o Relator se mostra inclinado a não reconhecer a teoria da dupla imputação (“A
legislação, em nenhum momento, condiciona o surgimento da responsabilidade à
prática em co-autoria do delito. Maximizou, como pede a maioria dos
constitucionalistas, o texto da CF/88 para não lhe oferecer qualquer contenção
supérflua [...]Duvido quanto à legalidade dessa exigência, mas, em benefício da
estabilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica, aplico-a ao caso em
questão.”); (iii) Há sucessão entre empresas, uma vez que a SAELPA foi privatizada
após o cometimento do delito, o Relator não se aprofunda demais no tema, mas acredita
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
392
que não é possível a sucessão criminal por razões constitucionais (a pena não pode
passar da pessoa do condenado).
TRF 4 – MS 2002.04.01.054936-2
Pessoa Jurídica: Consórcio energético Foz do Chapecó – FORMADO por Cia.
Do Vale do Rio Doce e Foz do Chapecó S.A.;
Resumo do caso: recebida denúncia contra diversas pessoas físicas e jurídicas
por infração dos arts. 40 e 55 da Lei 9.605/98;
Fundamento principais: ilegitimidade passiva para responder a ação penal por
não ser uma pessoa jurídica, mas sim uma associação de empresas;
Decisão de segunda instância: declarada inepta a denúncia e trancada a ação;
Peculiaridades: o Relator não aceita a responsabilização penal de consórcios
(“consiste o consórcio na união de duas ou mais empresas para alcançar um propósito.
Suas responsabilidades e atribuições são fixadas por via contratual, cabendo a
responsabilização penal decorrente de crime ambiental ser atribuída a cada empresa,
individualmente, em conformidade com suas atribuições dentro do pacto celebrado.
Isso porque cada participante do consórcio obriga-se apenas nos termos estabelecidos
nos contratos, respondendo de acordo com as obrigações assumidas. Por tal, de fato,
não há como se responsabilizar a totalidade das empresas quando o ataque ao bem
jurídico for realizado por apenas uma delas, isoladamente. Consequentemente, não
responde o consórcio por crime ambiental”).
TRF 2 – RESE 2001.51.09.000324-1
Pessoa Jurídica: Pousada Terras Altas;
Resumo do caso: não foi recebida a denúncia contra a PJ em 1ª instância, pois o
juiz não considerou admissível a responsabilização penal da pessoa jurídica;
Decisão de segunda instância: não recebida a ação contra a pessoa jurídica (por
maioria);
Peculiaridades: (i) o relator aceitou a tese de que há previsão constitucional e
infraconstitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica, nos crimes
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
393
ambientais; (ii) no entanto, ele considera que “nosso direito ainda não se aparelhou,
convenientemente, de institutos claros e precisos, necessários a que se efetive essa
punição”; (iii) e argumenta que não estão devidamente cominadas as penas que se
aplicariam, especificamente, em cada tipo penal transgredido pela pessoa jurídica,
limitando-se, a lei, a tratar da aplicação das penas às pessoas jurídicas, de forma
genérica – artigos 21 a 24 - sem observar princípios constitucionais que seriam
imprescindíveis para a correta utilização deste novo instrumento político-criminal de
prevenção como, por exemplo, o da individualização; (iv) Não há inconstitucionalidade
no reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica, “mas a Lei n. 9.605/98
ainda não foi capaz de contemplar, completamente, a disciplina infra-legal apta a
possibilitar a adoção da responsabilização penal das pessoas jurídicas”, o que
impediria o recebimento da denúncia; (v) o relator do voto vencido afirma que é
possível receber a denúncia pois “no que tange ao princípio da individualização da
pena, a Lei Ambiental atende ao postulado que, essencialmente, dirige-se ao juiz
sentenciante. É certo que o juiz, ao estabelecer as penas aplicáveis à pessoa jurídica,
será norteado pelos mesmos princípios e regras de fixação da pena da pessoa física.
Ignorará, por óbvio, as circunstâncias de cunho subjetivo e personalíssimas,
estabelecendo a pena segundo o mesmo modelo trifásico. Os parâmetros mínimo e
máximo de pena privativa de liberdade servirão como parâmetros temporais para a
duração da pena restritiva de direitos e de prestação de serviços à comunidade,
conforme o artigo 7º da Lei nº 9.605/98 e 44 do Código Penal”; (vi) quanto às questões
de ordem processual, afirma que “a solução adequada seria a incidência da regra
prevista no art. 3º do CPP, e a atração das normas próprias para o chamamento da
pessoa jurídica ao processo de natureza civil. A citação faz-se por meio do
representante legal. Interroga-se, em nome de sociedade, o representante legal. As
regras previstas para a não localização da pessoa jurídica ou de seu representante
ensejam as mesmas conseqüências da não localização do réu pessoa física”.
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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
398
ANEXO 7 – CENÁRIO INTERNACIONAL DA IMPLEMENTACÃO
DA RESPONSABILIDADE PENAL DE PESSOAS JURÍDICAS
INTRODUÇÃO
Nos parece importante que a discussão acerca do modelo brasileiro de
responsabilização da empresa leve em consideração experiências estrangeiras, pois,
embora possamos apontar uma tendência internacional convergente para a
criminalização de atos empresariais, cada país vem adotando modelos distintos de
responsabilização. O estudo comparado, dessa forma, nos ajuda a visualizar (embora
não esgote as possibilidades) o leque de combinações e os diferentes resultados que se
pode obter a partir dos distintos arranjos das regras de imputação e tipos de sanção.
Além disso, tomamos contato com distintos processos de introdução e harmonização
desse instituto com o sistema geral vigente e, ainda que de modo sucinto, com um
diagnóstico de sua aplicação.
Dentro das limitações da pesquisa, selecionamos algumas experiências como
relevantes para o nosso trabalho. A partir dessas linhas gerais, podemos indicar que
nosso estudo comparado abordará, a princípio, as seguintes experiências: (i) a
americana, que se mostra como um bom contraponto para o debate dogmático europeu e
brasileiro, por ser uma das experiências mais antigas, que já conta com um grau
significativo de reflexão e institucionalização; (ii) no âmbito europeu, o estudo das
experiências alemã, espanhola, portuguesa e italiana; (iii) o estudo dos países europeus
estará inserido, como não poderia deixar de ser, no contexto da hamonização jurídicopenal por qual vem passando a União Européia.
A comparação entre distintos sistemas exige que se tenha cautela na
determinação do método comparativo. Por essa razão, trabalhamos, sempre que
possível, com equipes internacionais, que produziram relatório guiados, a fim de
transmitir a especificidade de cada sistema; a comparação entre os modelos; e aportar
material para a discussão e revisão do caso brasileiro.
Nos itens abaixo, destacamos os aspectos centrais dos modelos estudados e
transcrevemos, ao final deste texto, a íntegra dos informes estrangeiros.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
399
1.
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA NA UNIÃO
EUROPÉIA
Para uma visão de direito comparado acerca do instituto da responsabilidade
penal da pessoa jurídica, indispensável se faz uma análise da produção normativa da
União Européia sobre esse assunto, haja vista a importância do papel que desempenha
nos ordenamentos jurídicos internos dos Estados-Membros, bem como a sua
interferência direta sobre a esfera de direitos de seus nacionais.
A opção pela análise do direito comunitário não ignora, todavia, a influência de
outros instrumentos internacionais sobre os ordenamentos jurídicos de diversos países
com respeito a esse tema, como a Convenção sobre o Combate da Corrupção de
Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais da
OCDE, de 1997 (QUANTE, 2005, p. 186-187).
Do mesmo modo, merece ser destacada a atuação do Conselho da Europa, o
qual, cumpre salientar, não integra os quadros institucionais da União Européia. Nesse
sentido, o Comitê de Ministros dos Estados membros do Conselho da Europa
pronunciou uma recomendação em 1988, a R (88) 18. Nessa ocasião300, o Conselho da
Europa, diante do reconhecimento do aumento da criminalidade relacionada ao
exercício de atividades empresariais e da complexidade da estrutura organizacional das
empresas, que impediria a identificação da pessoa física que cometeu o ato ilícito,
advertiu quanto à necessidade da responsabilização penal das empresas por parte dos
Estados, que deveriam se esforçar para superar as dificuldades de responsabilização
existentes em seus ordenamentos jurídicos. 301
300
Deve-se observar, todavia, que esse posicionamento da necessidade da responsabilização estritamente
penal das pessoas jurídicas não foi mantido em momentos posteriores, como no caso do Convênio do
Conselho da Europa sobre criminalidade informática, assinado no ano de 2001 em Budapeste, o qual
prevê uma responsabilização das pessoas jurídicas que pode ter tanto natureza penal, administrativa ou até
mesmo civil. Os parâmetros estabelecidos para a aferição de responsabilidade, além disso, quase não se
diferenciam dos previstos pelos atos normativos da União Européia para harmonização das legislações
nacionais, os quais dão lugar a um modelo de responsabilidade por atribuição à pessoa jurídica dos atos
praticados pela pessoa física (SÁNCHEZ, 2002, p. 115-117; 127).
301
Dispõe o documento em sua versão original:
Considering the difficulty, due to the often complex management structure in an enterprise, of
identifying the individuals responsible for the commission of an offence;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
400
A partir dessas considerações iniciais, antes mesmo de analisarmos propriamente
os atos normativos que dizem respeito à responsabilização da pessoa jurídica pela
prática de atos ilícitos, e para melhor compreender o campo de influência dessas
normativas internacionais nos sistemas jurídicos internos, será traçado, a seguir, um
breve panorama a respeito das competências normativas da EU e da sua relação com os
ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros.
1.1
A Atividade Normativa da União Européia
A União Européia, instituída pelo Tratado de Maastricht, que entrou em vigor
em 1993, é uma organização supranacional que tem por base as Comunidades Européias
(Comunidade Atômica Européia e Comunidade Européia, antiga Comunidade
Econômica Européia), bem como políticas e formas de cooperação para a realização de
seus objetivos (art. 1° do Tratado da União Européia, TUE). Nesse sentido, alude-se à
EU como sendo um teto que se apóia sobre três colunas – as Comunidades Européias
(cujo principal texto normativo é o Tratado que institui a Comunidade Européia, TCE),
a Política Externa e de Segurança Comum (art. 11 a 28 do TUE) e a Cooperação
Policial e Judiciária em Matéria Penal (art. 29 a 42 do TUE).
Para a realização de suas finalidades, a União Européia dispõe de diversos
órgãos que cumprem funções legislativas, executivas e judiciárias. De acordo com
Sarmiento, a relação entre o direito comunitário europeu e o direito interno dos EstadosMembros é regida por princípios semelhantes aos que regem a relação entre as unidades
federativas e a União, quais sejam, os princípios da primazia e do efeito direto
(SARMIENTO, 2006, p. 53). Em suas palavras,
o primeiro estabelece a supremacia do direito comunitário europeu sobre o
direito nacional em caso de conflito, tornando inaplicável a norma de direito
nacional. Por vezes, tal conflito pode chegar a resultar não apenas na
Considering the difficulty, rooted in the legal traditions of many European states, of rendering
enterprises which are corporate bodies criminally liable;
Desirous of overcoming these difficulties, with a view to making enterprises as such answerable,
without exonerating from liability natural persons implicated in the offence, and to providing appropriate
sanctions and measures to apply to enterprises, so as to achieve the due punishment of illegal activities,
the prevention of further offences and the reparation of the damage caused;
Considering that the introduction in national law of the principle of criminal liability of
enterprises having legal personality is not the only means of solving these difficulties and does not
exclude the adoption of other solutions serving the same purpose;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
401
inaplicabilidade, como também na anulação da norma interna. Quanto ao
princípio do efeito direto, através dele garante-se que se possa recorrer a
tribunais ordinários, isto é, tribunais nacionais, para tratar de normas de
direito comunitário europeu. Assim, quando as normas do direito comunitário
europeu outorgarem diretos a indivíduos, estes poderão esgrimir tais direitos
na sede judiciária nacional, como se se tratasse de um direito de criação
garantido por lei nacional.
Do fato de que cada uma dessas “colunas” possui objetos e formas de atuação
próprias, caracterizando-se a primeira delas por possuir uma forma de organização
supranacional, enquanto que as outras duas organizam-se de modo preponderantemente
intergovernamental, decorre que cada uma delas irá demonstrar um tipo de produção
normativa igualmente próprio.
No Tratado que institui a Comunidade Européia encontram-se as disposições
sobre os órgãos da União Européia (o Parlamento, o Conselho, a Comissão, o Tribunal
de Justiça e o Tribunal de Contas) e suas competências normativas no âmbito da
primeira coluna. De acordo com o mencionado caráter supranacional da UE, tais
competências, quando vinculantes, representam a correspondente transferência de
competência legislativa dos próprios Estados-Membros à União. Nesse sentido, o art.
249 do TCE prevê os atos normativos que a Comissão adotará em conjunto com o
Parlamento e o Conselho.
Dentre esses atos, encontram-se, nos termos do dispositivo citado: o
regulamento, que é obrigatório e possui caráter geral, vigendo de maneira direta e
imediata no território dos Estados-Membros; a diretiva, que “vincula o Estado-Membro
destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais
a competência quanto à forma e aos meios”; a decisão, que se dirige a destinatários
específicos (um Estado-Membro ou um particular), sendo nessa medida apenas a eles
vinculante; as recomendações e os pareceres, que não são vinculativas como as demais,
mas que nem por isso deixam de surtir efeitos jurídicos relevantes, se enquadrando,
portanto, como soft law (SARMIENTO, 2006, p. 70).
As diretivas, de especial relevância no contexto das reformas dos ordenamentos
jurídicos europeus no sentido da responsabilização das pessoas jurídicas pelo
cometimento de atos ilícitos, não perdem importância após a sua transposição
legislativa pelos Estados-Membros. Isso ocorre justamente porque, com a criação da
legislação pelo Estado, elas passam a ter uma função orientadora da interpretação do
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
402
direito nacional, ou seja, passam a surtir “efeitos interpretativos” (SARMIENTO, 2006,
p. 69).
Em que pese o caráter abstrato e meramente orientador das diretivas, cada vez
mais elas têm sido utilizadas de modo a se estabelecer um alto nível de vinculação dos
Estados quanto ao seu conteúdo (SARMIENTO, 2006, p. 69). Mesmo o seu efeito
meramente indireto foi relativizado pelo Tribunal de Justiça da União Européia, que
aceita a aplicação imediata de uma diretiva nos casos em que o Estado negligentemente
ou não fez a sua transposição, ou a fez de maneira insuficiente. Tal relativização, porém,
não pode ser empregada em situações que representem um prejuízo ao indivíduo, não
podendo ser, portanto, invocada em matéria penal (DANNECKER, 2001, p. 60-61).
Outra parte da competência normativa desses órgãos origina-se no Tratado que
institui a União Européia. Relativamente à cooperação intergovernamental no que tange
o pilar da Política Externa e de Segurança Comum, o art. 12 do TUE prevê atos do
direito comunitário que não geram efeitos imediatos para os indivíduos, mas apenas aos
Estados-Membros nas relações que mantêm entre si (SARMIENTO, 2006, p. 73).
Quanto ao terceiro pilar (Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal), a
competência normativa da União Européia é especialmente relevante para o nosso
estudo, principalmente no que diz respeito ao objetivo elencado no art. 31, n° 1, e do
TUE, referente à adoção de “medidas que prevejam regras mínimas quanto aos
elementos constitutivos das infrações penais e às sanções aplicáveis nos domínios da
criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de droga”.
Para a realização desse objetivo, o art. 34 do TUE confere ao Conselho o poder
de adotar atos normativos semelhantes aos atos da primeira coluna, embora nenhum
deles seja dotado da força vinculativa que possuem as regulamentações. Nesse sentido,
o Conselho poderá adotar posições comuns sobre a atuação da UE perante determinado
tema, bem como emitir decisões-quadro, além de realizar decisões, elaborar convenções
e recomendar a sua adoção pelos Estados-Membros.
As decisões-quadro detêm estrutura análoga às diretivas, na medida em que são
adotadas com fins de “aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos
Estados-Membros” e que “vinculam os Estados-Membros quanto ao resultado a
alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e
aos meios” (art. 34, n° 2, b do TUE).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
403
Todavia, o mesmo dispositivo do Tratado da União Européia prevê
expressamente a inexistência do efeito direto por parte das decisões-quadro. Não
obstante isso, deve-se levar em consideração o posicionamento do Tribunal de Justiça
sobre o tema, o qual chegou a afirmar a obrigação de os tribunais nacionais
considerarem as decisões-quadro no momento de interpretação do direito nacional
(SARMIENTO, 2006, p. 74).
1.2
Competência da União Européia em matéria penal
No que diz respeito ao papel e a influência do direito comunitário europeu na
responsabilização das pessoas jurídicas por ilícitos praticados em seu âmbito, resta
ainda aberta a questão acerca da natureza e os limites da competência da União
Européia para legislar sobre tal matéria.
Quanto a uma competência de criação de sanções penais em nível supranacional,
não existe atualmente previsão expressa nos tratados que a autorize, como também se
entende inexistir essa possibilidade justamente pela falta de cessão de soberania por
parte dos Estados-Membros a esse ponto (KINDHÄUSER, 2003, p. 17).
Há quem afirme que essa falta de competência legislativa em âmbito
supranacional não impediria, em princípio, que a União Européia impusesse a obrigação
aos Estados-Membros de legislarem em matéria penal (DANNECKER, 2001, p. 58;
AMBOS, 2006, p. 41-42). No entanto, o entendimento geral por parte dos órgãos da
UE, como o Tribunal de Justiça (Acórdão de 13.09.2005, C-176/03, ponto 47), sempre
foi até o momento o de que a competência da Comunidade Européia não abrange a
legislação penal e processual penal dos Estados-Membros o que caberia apenas à UE no
domínio do terceiro pilar, por meio da adoção de decisões-quadro.
Ainda de acordo com essa visão, em havendo necessidade de a Comunidade
atuar por meio de diretivas nesse campo, ela não poderia determinar concretamente as
sanções a serem aplicadas pelos Estados-Membros (Comunicação da Comissão ao
Parlamento, COM (2005) 583, ponto 5). Desse modo, as diretivas sempre se limitaram à
fórmula da adoção de “sanções efetivas, proporcionais e dissuasivas”, sem especificar a
sua natureza e o seu alcance (DANNECKER, 2001, p. 58), especialmente no que diz
respeito à responsabilização das pessoas jurídicas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
404
Todavia, esse entendimento foi em parte modificado com a decisão do Tribunal
de Justiça sobre a anulação da Decisão-Quadro 2003/80 para proteção do meioambiente por meio do direito penal (Processo C-176/03). Nesta época, o Tribunal fora
chamado a decidir a pedido da Comissão sobre a invasão de competência da
Comunidade por parte do Conselho, quando este estabeleceu por meio de uma decisãoquadro a previsão de sanções penais aplicáveis às pessoas físicas e jurídicas
relativamente a condutas lesivas ao meio-ambiente.
De acordo com a Comissão, a disposição de regras que protejam o meioambiente estaria incluída na esfera de competência da Comunidade Européia (art. 3°, n°
1, l, e 174° a 176° do TCE), não sendo lícita ao Conselho qualquer regulação no âmbito
do terceiro pilar que verse sobre esse assunto, mesmo que a título de aproximação das
Legislações penais dos Estados-Membros.
O Tribunal de Justiça esclareceu, nessa oportunidade, a divisão de competências
entre o primeiro e o terceiro pilar da União Européia, ou seja, estabeleceu mais
concretamente o que deveria ser regulado através de diretivas ou até regulamentações
por meio dos instrumentos previstos no TCE e o que deveria ser objeto de decisõesquadro, no âmbito da Cooperação Policial e Judiciária em Matéria Penal.
Em seu acórdão, o Tribunal admite a competência da Comunidade Européia para
proceder à aproximação das legislações penais dos Estados-Membros, a despeito do fato
de que os artigos 135.° e 280.°, n.° 4, do TCE vedam a intervenção da UE nas
legislações penais nacionais em determinadas matérias. Em suas palavras:
embora seja verdade que, em princípio, a legislação penal, como as regras de
processo penal, não são abrangidas pelo âmbito da competência da
Comunidade, tal não pode impedir o legislador comunitário, quando a
aplicação de sanções penais efetivas, proporcionadas e dissuasivas pelas
autoridades nacionais competentes constitua uma medida indispensável para
lutar contra os atentados graves ao ambiente, de tomar medidas relacionadas
com o direito penal dos Estados-Membros que considere necessárias para
garantir a plena efetividade das normas que promulgue em matéria de
proteção do ambiente.
Essa decisão do Tribunal de Justiça levou a Comissão a concluir que o alcance
da competência da Comunidade Européia foi ampliado no que respeito ao
estabelecimento de medidas penais a serem tomadas pelos Estados, na medida em que
esta poderia não apenas dispor sobre as finalidades a atingir, como também determinar
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
405
as formas e os meios pelos quais isso seria realizado. Deste modo, afirma a Comissão,
in verbis (COM (2005) 583):
Note-se que o Tribunal de Justiça foi mais longe do que o seu AdvogadoGeral lhe havia proposto. Este considerava, com efeito, que o legislador
comunitário tinha competência para estabelecer o princípio do recurso a
sanções penais para os atentados graves ao ambiente, mas não para
determinar exacta e concretamente o regime das mesmas.
Tal entendimento, contudo, foi posteriormente rechaçado pelo Tribunal, quando
este, em 2007, vindo a se pronunciar acerca do pedido da Comissão para anular a
decisão-quadro 2005/667, sob o mesmo fundamento do caso anterior, afirmou que,
embora possa a Comunidade impor a aplicação de sanções penais efetivas,
proporcionais e dissuasivas quando indispensáveis para garantir a “plena eficácia das
normas que adota nesse domínio”, restaria excluída de sua competência a fixação mais
concreta do “tipo e do grau das sanções penais” a serem aplicadas pelas autoridades
nacionais (C-440/05).
Por fim, é importante notar que tal orientação do Tribunal de Justiça, se
comparada com seu posicionamento anterior a esse respeito302, deixa patente o aumento
da importância dada pela União Européia ao uso do direito penal, que passa a ser visto
como o instrumento mais poderoso para que se possam assegurar os seus objetivos e
proteger os bens jurídicos que lhe digam respeito. Neste contexto, torna-se ainda mais
relevante o tema da responsabilização penal das pessoas jurídicas.
Nesse tocante, cabe ressaltar que o direito da União Européia possui ainda outros
efeitos sobre os ordenamentos jurídicos nacionais em matéria penal que não se limitam
tão somente à produção de normas por meio desse organismo. A legislação secundária
exerce sobre os Estados-Membros não apenas os poderes normativos direto ou indireto
mencionados, como também gera a obrigação a uma interpretação das normas penais
302
Nesse sentido, os trechos mencionados pelo Tribunal em outras decisões a esse respeito:
In principle, criminal legislation and the rules of criminal procedure are matters for which the
members states are still responsible. However, it is clear from a consistent line of cases decided by the
court, that community law also sets certain limits in that area as regards the control measures which it
permits the member states to maintain in connection with the free movement of goods and persons. The
administrative measures or penalties must not be conceived in such a way as to restrict the freedom
required by the treaty and they must not be accompanied by a penalty which is so disproportionate to
the gravity of the infringement that it becomes an obstacle to the exercise of that freedom (C-203/80);
o Governo neerlandês argumenta que o regulamento relativo à análise do hálito 1987 se aplica
no domínio do direito penal, que se encontra fora do âmbito do direito comunitário [...] Se bem que, em
princípio, a legislação penal e as normas do processo penal relevem da competência dos EstadosMembros, não pode daí deduzir-se que este domínio do direito não pode ser afectado pelo direito
comunitário (C-226/97).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
406
nacionais conforme o direito comunitário (HECKER, 2008, p. 345 ss.). Isso tem por
resultado a criminalização de condutas em âmbito nacional, já que se passa a considerar,
por exemplo, um determinado comportamento como forma de realização do tipo penal,
o que ocorre igualmente quando se verifica uma colisão entre o direito nacional e o
comunitário, nos termos do princípio da primazia do direito comunitário (HECKER,
2008, p. 318 ss.), bem como quando, por forca do Art. 10, TCU, ocorre a assimilação
por parte dos ordenamentos internos dos bens jurídicos e interesses da Comunidade, que
devem ser protegidos pelos Estados-Membros na mesma medida em que esses protegem
seus próprios interesses e bens (HECKER, 2008, p. 239).
A análise desses mecanismos fugiriam, no entanto, aos objetivos visados neste
trabalho, além de possuir pequena relevância prática até o momento no que diz respeito
especificamente à responsabilização das pessoas jurídicas.
1.3 Formas de Responsabilização da pessoa jurídica no âmbito da União
Européia
Uma análise sobre a aplicação de sanções à pessoa jurídica pelo cometimento de
atos ilícitos no âmbito da União Européia irá depender do tipo de ato normativo que se
tem em questão.
Assim, há que se diferenciar, primeiramente, as sanções estabelecidas
concretamente pela própria União Européia - por ela diretamente aplicadas ou não - das
sanções a serem implementadas pelos Estados-Membros, de acordo com os parâmetros
por ela determinados.
Sanções estabelecidas pela própria União Européia
As sanções estabelecidas e regulamentadas diretamente pela União Européia são
de dois tipos. Existem as sanções que são aplicadas de maneira imediata, ou seja,
diretamente por um órgão da União, e as que são impostas por órgãos nacionais.
Estas últimas encontram-se no âmbito de regulamentos da União Européia em
política pesqueira e agrícola, as quais, embora não possuam um caráter estritamente
patrimonial, implicam a restrição a algum benefício patrimonial concedido neste setor,
como prevêem os regulamentos 714/89, 1738/89, 915/89 e 3813/89 da Comissão
(RODRÍGUEZ, 2000, p. 145); tais sanções são classificadas por Dannecker como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
407
conseqüências financeiras desfavoráveis ou perda de um direito (DANNECKER, 2001,
p. 89).
Aqui nos ocuparemos das sanções aplicadas diretamente pela União Européia,
uma vez que, a partir de sua atuação sancionadora, ela acabou por estabelecer, ao longo
dos anos, importantes critérios e princípios para a imputação de responsabilidade à
pessoa jurídica, na medida em que estes acabam por influenciar o direito penal e
contravencional dos próprios Estados-Membros (TIEDEMANN, 1994, p. 256).
Trata-se mais concretamente das multas instituídas por meio de regulamentos, a
título dos artigos 81, 82 e 83 do TCE, em matéria de direito da concorrência, em
especial os artigos 23 do regulamento 1/2003303 e 14 do regulamento das concentrações
comunitárias 139/2004304, dirigidas especificamente às empresas, européias ou não.
303
Artigo 23.o. Coimas
1. A Comissão pode, mediante decisão, aplicar às empresas e associações de empresas coimas
até 1 % do volume de negócios total realizado durante o exercício precedente, sempre que,
deliberadamente ou por negligência:
a) Forneçam informações inexactas ou deturpadas em resposta a um pedido apresentado nos
termos do artigo 17.o ou do no 2 do artigo 18.o;
b) Forneçam informaçõs inexactas, incompletas ou deturpadas ou não forneçam uma informação
no prazo exigido em resposta a um pedido que lhes tenha sido dirigido por decisão tomada nos termos do
artigo 17.o ou do n.o 3 do artigo 18.o;
c) Apresentem de forma incompleta os livros ou outros registros relativos à empresa, quando das
inspecçõs efectuadas nos termos do artigo 20.o, ou não se sujeitem às inspeções ordenadas mediante
decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o;
d) Em resposta a um pedido de explicação feito nos termos da alínea e) do n.o 2 do artigo 20.o:
— respondam de forma inexacta ou deturpada,
— não rectifiquem, no prazo estabelecido pela Comissão, uma resposta inexacta, incompleta ou
deturpada
dada por um membro do pessoal, ou
— não dêem ou se recusem a dar uma resposta cabal sobre factos que se prendam com o objecto
e a finalidade de uma inspecção ordenada mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 20.o;
e) Forem quebrados os selos apostos, nos termos da alínea d) do n.o 2 do artigo 20.o, pelos
funcionários ou outros acompanhantes mandatados pela Comissão.
2. A Comissão pode, mediante decisão, aplicar coimas às empresas e associações de empresas
sempre que, deliberadamente ou por negligência:
a) Cometam uma infracção ao disposto nos artigos 81.o ou 82.o do Tratado; ou
b) Não respeitem uma decisão tomada nos termos do artigo 8.o que ordene medidas provisórias;
ou
c) Não respeitem um compromisso tornado obrigatório por decisão tomada nos termos do artigo
9.o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
408
A coima aplicada a cada uma das empresas ou associações de empresas que tenha participado na
infracção não deve exceder 10 % do respectivo volume de negócios total realizado durante o exercício
precedente. Quando a infracção cometida por uma associação se referir às actividades dos seus membros,
a coima não deve exceder 10 % da soma do volume de negócios total de cada membro activo no mercado
cujas actividades forem afectadas pela infracção da associação.
3. Quando se determinar o montante da coima, deve tomar-se em consideração a gravidade e a
duração da infracção.
4. Quando for aplicada uma coima a uma associação de empresas tendo em conta o volume de
negócios dos seus membros e essa associação se encontrar em situação de insolvência, a associação é
obrigada a apelar às contribuições dos seus membros para cobrir o montante da coima.
Se essas contribuições não tiverem sido pagas à associação no prazo fixado pela Comissão, esta
pode exigir o pagamento da coima directamente a qualquer uma das empresas cujos representantes eram
membros dos órgãos directivos envolvidos da associação.
Depois de exigir o pagamento nos termos do segundo parágrafo, a Comissão pode exigir, sempre
que tal seja necessário para assegurar o pagamento total da coima, o pagamento do saldo remanescente a
qualquer um dos membros da associação que estavam activos no mercado em que foi cometida a
infracção. Todavia, a Comissão não exigirá o pagamento nos termos do segundo ou terceiro parágrafos às
empresas que demonstrarem não ter executado a decisão de infracção da associação e que, quer a
desconheciam, quer dela se tenham distanciado activamente, antes de a Comissão ter iniciado a
investigação no processo. A responsabilidade financeira de cada empresa no tocante ao pagamento da
coima não pode exceder 10 % do respectivo volume de negócios total realizado durante o exercício
precedente.
5. As decisõs aprovadas nos termos dos n.os 1 e 2 não têm carácter penal.
304
Artigo 14.o. Coimas
1. A Comissão pode, por via de decisão, aplicar às pessoas referidas na alínea b) do n.o 1 do
artigo 3.o às empresas e associações de empresas, coimas até 1 % do volume de negócios total realizado
pela empresa ou associação de empresas em causa na acepção do artigo 5.o sempre que, deliberada ou
negligentemente:
a) Prestem informações inexactas ou deturpadas num memorando, certificação, notificação ou
notificação complementar apresentados nos termos do artigo 4.o, do n.o 5 do artigo 10.o e do n.o 3 do
artigo 22.o;
b) Prestem informações inexactas ou deturpadas em resposta a um pedido feito nos termos do n.o
2 do artigo 11.o;
c) Prestem informações inexactas, incompletas ou deturpadas em resposta a um pedido feito
através de decisão nos termos do n.o 3 do artigo 11.o ou não prestem as informações no prazo fixado;
d) Apresentem de forma incompleta, aquando das inspecções efectuadas ao abrigo do artigo
13.o, os livros ou outros registos exigidos relativos à empresa ou não se sujeitem às inspecções ordenadas
por via de decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 13.o;
e) Em resposta a uma pergunta feita nos termos da alínea e) do n.o 2 do artigo 13.o,
— respondam de forma inexacta ou deturpada,
— não rectifiquem, no prazo fixado pela Comissão, uma resposta inexacta, incompleta ou
deturpada dada por um membro do seu pessoal, ou
— não dêem ou se recusem a dar uma resposta cabal sobre factos que se prendam com o objecto
e finalidade de uma inspecção ordenada mediante decisão tomada nos termos do n.o 4 do artigo 13.o;
f) Forem quebrados os selos apostos nos termos da alínea d) do n.o 2 do artigo 13.o pelos
agentes ou outras pessoas mandatadas pela Comissão.
2. A Comissão pode, por via de decisão, aplicar às pessoas referidas na alínea b) do n.o 1 do
artigo 3.o ou às empresas em causa coimas até 10 % do volume de negócios total realizado pela empresa
em causa na acepção do artigo 5.o, sempre que, deliberada ou negligentemente:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
409
Tais critérios de imputação foram sendo aos poucos estabelecidos pelo fato de as
regras da União Européia nessa matéria serem bastante genéricas, já que não prevêem
mais que a descrição do ilícito e a sanção correspondente.
Embora haja a expressa previsão nesses regulamentos de que as multas em
questão não possuem caráter penal, muito se discutiu na doutrina sobre sua natureza
jurídica, questionando-se se elas, na verdade, não possuiriam natureza penal, ou se
constituiriam pura e simplesmente sanções administrativas; havendo ainda a defesa de
que se trataria de sanções sui generis que deveriam ser aplicadas conforme os princípios
advindos do direito penal (KINDHÄUSER, 2003, p. 16). É uma questão que se faz
importante na medida em que se mostra decisiva para a determinação das garantias e
dos critérios que serão aplicados na aferição de responsabilidade das empresas
(RODRÍGUEZ, 2000, p. 150).
Atualmente entende-se que tais sanções, por conta de seu elevado grau punitivo
e caráter preventivo, pertencem, enquanto direito contravencional, à esfera do direito
penal em sentido lato (KINDHÄUSER, 2003, p. 18; RODRÍGUEZ, 2000, p. 148).
Conseqüência disso, portanto, é a existência necessária de um comportamento
que seja culpável (KINDHÄUSER, 2003, p. 18), sendo ainda aplicáveis as garantias do
Estado de Direito pertencentes ao direito penal material dos Estados-Membros, tais
como o princípio da legalidade, da proibição de analogia, da taxatividade, da
irretroatividade e do in dubio pro reo (KINDHÄUSER, 2003, p. 21 e ss.).
Outro aspecto relevante, nesse contexto, diz respeito à fixação do conceito de
empresa, desenvolvido a partir dos julgamentos proferidos pela Comissão e pela
jurisprudência do Tribunal de Justiça. Tal conceito fora, em princípio, definido pelo
a) Omitam notificar uma operação de concentração de acordo com o artigo 4.o e com o n.o 3 do
artigo 22.o antes da sua realização, a menos que estejam expressamente autorizadas a fazê-lo ao abrigo do
n.o 2 do artigo 7.o ou mediante decisão tomada nos termos do n.o 3 do mesmo artigo;
b) Realizem uma operação de concentração sem respeitar o artigo 7.o;
c) Realizem uma concentração declarada incompatível com o mercado comum por decisão
tomada ao abrigo do n.o 3 do artigo 8.o ou não cumpram as medidas ordenadas por decisão tomada ao
abrigo dos n.o 4 ou 5 do artigo 8.o;
d) Não respeitem uma das condições ou obrigações impostas por decisão tomada nos termos da
alínea b) do n.o 1 do artigo 6.o, do n.o 3 do artigo 7.o ou do segundo parágrafo do n.o 2 do artigo 8.o
3. Na determinação do montante da coima, há que tomar em consideração a natureza, a
gravidade e a duração da infracção.
4. As decisões tomadas nos termos dos n.os 1, 2 e 3 não têm carácter penal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
410
Tribunal como uma “conjunção unitária de fatores pessoais, materiais e imateriais que
confluem em uma personalidade jurídica independente, com a qual se persegue uma
finalidade econômica duradoura” (DANNECKER, 2001, p. 108; FROMM, 2007, p.
285), tendo sido posteriormente ampliado por uma concepção econômica trazida pela
Comissão, que possibilita a imputação dentro de relações societárias complexas, como
no caso de grupos de empresas, evitando-se o encobrimento da sociedade matriz através
de sua filial (DANNECKER, 2001, p. 108), bem como nas situações de liquidação,
fusão e transformação de empresas (FROMM, 2007, p. 285).
Nesses últimos casos, a Comissão desenvolveu alguns critérios para a
responsabilização das empresas, principalmente nos casos em que elas sofrem uma
alteração em sua identidade. Em tais situações, entende a Comissão (89/191/CEE:
21.12.1988 , n° 49):
É irrelevante, por conseguinte, que uma empresa possa ter vendido a outra a
sua atividade no sector do LdPE: o comprador não se torna, por tal fato,
responsável pela participação do vendedor no cartel. Se a empresa que
cometeu a infração continuar a existir, continua responsável apesar da
transferência.
Por outro lado, quando é a própria empresa autora da infração que é
absorvida por outro produtor, a sua responsabilidade poderá acompanhá-la e
transferir-se para a nova entidade ou para a entidade resultante da fusão.
Não é necessário demonstrar que o adquirente praticou ou assumiu como
próprio o comportamento ilícito. O fator determinante é saber se existe uma
continuidade funcional e econômica entre o autor original da infração e a
empresa resultante da fusão.
Quanto a essa questão, o Tribunal de Justiça (Acordão 11.12.2007, C-280/06) foi
recentemente chamado a decidir prejudicialmente sobre os limites estabelecidos entre o
princípio da responsabilidade pessoal e o critério da continuidade econômica, em um
caso em que a parte final de uma conduta ilícita havia sido assumida pela empresa que
incorporou a empresa originária, a qual continuara existindo, porém não mais exercendo
a atividade econômica no setor em que a sanção se aplica; esta questão parece
especialmente problemática quando se leva em consideração os fins de dissuasão da
conduta que se buscam com a aplicação dessas sanções.
No que diz respeito ainda ao conceito de empresa, não se mostra necessária para
a sua configuração tratar-se de uma unidade privada, tendo entendido o Tribunal de
Justiça que o “conceito de ‘empresa’ abrange qualquer entidade que exerça uma
atividade econômica, independentemente do estatuto jurídico dessa entidade e do seu
modo de financiamento” (Acordão 11.12.2007, C-280/06, n° 38).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
411
A imputação de responsabilidade da empresa pelo cometimento de ilícitos no
direito comunitário baseia-se num modelo bastante amplo de representação, que
independe da função da pessoa física como órgão legitimado de representação, bastando
que ela possa agir pela empresa, sendo irrelevante a sua posição dentro dela (FROMM,
2007, p. 285-286). Logo, a ação da empresa fica configurada pela atividade de
quaisquer de seus empregados, desde que quando ajam em seu nome o façam dentro de
suas atribuições (DANNECKER, 2001, p. 109).
Apesar dessa ampla margem na configuração da ação da empresa, necessário se
faz que ela tenha agido com dolo ou culpa, os quais, mesmo que vistos
majoritariamente como elementos da culpabilidade, são também considerados no direito
de cartel da Comunidade Européia como elementos subjetivos da tipicidade
(KINDHÄUSER, 2003, p. 35). A Comissão entende o dolo atualmente como o
conhecimento da realização do tipo legal, dirigido a todos os seus elementos, o que
inclui também o curso do processo causal (KINDHÄUSER, 2003, p. 35). A culpa, por
sua vez, é determinada através da verificação de que a empresa poderia e deveria saber
ou perceber que ela realizava um ilícito (KINDHÄUSER, 2003, p. 39).
Desafiante se mostra, por outro lado, a análise da orientação da Comissão e do
Tribunal de Justiça quanto ao tratamento dado ao erro. Em seus julgamentos, a
Comissão não se utiliza das diferenciações dogmáticas de que se servem
tradicionalmente o direito penal de cada um dos países europeus (TIEDEMANN, 1994,
p. 271). Nesse sentido, existe a possibilidade de exclusão da responsabilidade quando se
tratar de um erro inevitável, com decisões em casos que podem ser considerados erros
sobre um fato justificativo ou ainda erro de proibição, o mesmo não se aplicando,
porém, quando tal erro possa ser remetido à negligência da empresa (TIEDEMANN,
1994, p. 271-273). Nessa última hipótese, contudo, leva-se em consideração o erro no
momento de medição da sanção a ser aplicada (KINDHÄUSER, 2003, p. 60).
Quanto às causas de justificação, há muitas vezes, por parte das empresas, a
tentativa de justificar seus atos com a alegação da existência de legítima defesa, em
relação à qual, mesmo tendo a Comissão feito uma conceituação acerca de seu
significado, não se encontra ainda jurisprudência no sentido de aceitar a escusa de
responsabilidade com base nessa justificativa (KINDHÄUSER, 2003, p. 56); já no que
tange à alegação de estado de necessidade, este é amplamente aceito pela Comissão
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
412
como uma causa de exclusão de responsabilidade da empresa (KINDHÄUSER, 2003, p.
57).
O processo promovido pela Comissão respeita, no mais, princípios e garantias
próprios de um processo administrativo (KINDHÄUSER, 2003, p. 94). As empresas
têm reconhecido o seu direito de defesa, que inclui o direito de serem ouvidas, o acesso
à instrução probatória, à assistência jurídica de um advogado, à proteção do sigilo de
correspondência, ou ainda à não-produção de prova contra si mesma, muito embora (em
maior ou menor proporção) tais direitos não sejam aplicados com a mesma força e
integralidade com que seriam em um procedimento penal (DANNECKER, 2001, p. 130
e ss.).
Previsão de sanções por meio da aproximação das legislações penais
Conforme mencionado acima, a atuação da UE sobre os ordenamentos jurídicos
dos Estados-membros relativamente ao direito penal se dá fundamentalmente através
das diretivas e das decisões-quadro.
Além dessas, encontram-se ainda como instrumentos utilizados na harmonização
dos ordenamentos jurídicos europeus as convenções realizadas com esse propósito,
dentre as quais cabe mencionar o 2° Protocolo que completa a Convenção sobre a
Proteção dos Interesses Financeiros da Comunidade Européia, de 19.07.1997, que
prevê, a partir de parâmetros praticamente idênticos aos estabelecidos por meio das
diretivas e decisões-quadro, a obrigação de os Estados responsabilizarem as pessoas
jurídicas por atos de fraude, corrupção e lavagem de dinheiro (FROMM, 2007, p. 289).
É interessante notar que praticamente todos os atos normativos da União
Européia dotados de aproximação da legislação penal dos Estados-Membros prevêem,
além da responsabilidade penal das pessoas físicas, a responsabilidade das pessoas
coletivas305 em nome das quais se pratica o ilícito306.
305
Esse é o termo utilizado na versão portuguesa dos documentos em apreço, o qual, conforme se verá
adiante, compreende um rol de organizações coletivas que ultrapassa o conjunto dos entes que possuem
personalidade jurídica.
306
No plano das decisões-quadro, as seguintes: 2000/383 (falsificação de moeda), 2002/475 (luta contra o
terrorismo), 2003/80 (proteção do meio-ambiente através do direito penal, anulada pela decisão do
Tribunal de Justiça de 13.09.2005), 2003/568 (combate à corrupção no setor privado), 2004/757 (relativo
ao tráfico ilícito de drogas), 2005/667 (repressão da poluição por navios), 2008/913 (luta contra certas
formas e manifestações de racismo e xenofobia). No plano das diretivas, as de número 2002/90 (auxílio à
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
413
As diretivas, como já vimos, podem servir para a “adoção de medidas penais
adequadas” pelos Estados-Membros, mesmo que limitadas a uma “forma setorial, e
apenas na condição de ser estabelecida a necessidade de lutar contra as infrações graves
à realização dos objetivos da Comunidade e de prever medidas penais, a fim de garantir
a plena efetividade de uma política comunitária ou o funcionamento adequado de uma
liberdade” (COM (2005) 583).
No entanto, são poucas as diretivas utilizadas com esse fim, sendo ainda parte
delas apenas complementares a decisões-quadro já existentes sobre determinado tema (é
o caso das Diretivas 2005/35, relativa à poluição por navios e 2002/90, sobre o auxílio à
entrada, ao trânsito e à residência irregulares).
Além disso, em decorrência do já mencionado entendimento mais restrito acerca
de seu alcance, elas não costumam determinar nem a natureza nem os tipos de sanção
que devam ser aplicados, exceção feita à Diretiva 2004/82, relativa à obrigação de
comunicação de dados dos passageiros pelas transportadoras, que prevê, em seu artigo
4º, que as sanções “efetivas, proporcionadas e dissuasivas” aplicadas às transportadoras
em seu montante máximo não sejam inferior a 5.000 euros e em seu montante mínimo
não sejam inferior a 3.000 euros.
Em que pese ainda a orientação inicial do Tribunal de Justiça da União Européia
acerca da divisão de competências em matéria de aproximação das legislações penais, a
Comissão tem mantido o caráter genérico das diretivas. É o que se pode concluir da
edição da Diretiva 2008/99, para proteção do meio-ambiente através do direito penal,
que ao substituir a Decisão-Quadro 2003/80 anulada por meio da decisão mencionada,
não faz menção à natureza das sanções a serem adotadas relativamente às pessoas
físicas ou coletivas.
As decisões-quadro, por sua vez, apresentam de maneira mais concreta as
sanções a serem aplicadas pelos Estados-Membros às pessoas coletivas. Isso, em
primeiro lugar, porque visam sempre a uma aproximação das legislações penais dos
Estados-Membros, havendo, assim, uma vinculação quanto à natureza das medidas
entrada, ao trânsito e à residência irregulares), 2004/82 (obrigação de comunicação de dados dos
passageiros pelas transportadoras) 2005/35 (poluição marítima), 60/2005 (prevenção da utilização do
sistema financeiro para lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo), 2008/99 (proteção do meioambiente através do direito penal).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
414
sancionatórias a serem adotadas. Em segundo lugar, porque muitas vezes estabelecem o
grau e a natureza das sanções penais.
Nesse passo, encontra-se nas decisões-quadro a imposição de uma sanção
pecuniária, que poderá ser cobrada a título de pena (multa) ou de contravenção
(coima307), deixando outras modalidades de pena como uma mera recomendação.
Desta maneira, percebe-se que a harmonização dos ordenamentos jurídicos em
matéria penal não ocorre necessariamente por meio do direito penal strictu sensu,
deixando
as
decisões-quadro
aberta
a
possibilidade
de
responsabilização
contravencional. Todavia, isso acaba consistindo em uma diferença muito sutil, já que o
tipo de pena a ser aplicada será a mesma, independentemente da escolha que se faça.
Essa questão se coloca especialmente no caso da Decisão-Quadro 2005/667, que fixa
quantias pecuniárias mínimas e máximas a serem aplicadas:
Artigo 6°
Sanções aplicáveis a pessoas coletivas
1. Cada Estado-Membro deve tomar as medidas necessárias para garantir que
as pessoas coletivas consideradas responsáveis nos termos do n° 1 do artigo
5° sejam puníveis com sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas. As
sanções:
a) Incluem multas ou coimas, as quais, pelo menos nos casos em que a pessoa
coletiva seja considerada responsável por infrações a que se refere o artigo
2°, são:
i) de um máximo de, pelo menos, 150 000 a 300 000
euros;
ii) de um máximo de, pelo menos, 750 000 a 1 500 000 euros nos casos mais
graves, incluindo, pelo menos, as infrações cometidas intencionalmente
abrangidas pelos n.os 4 e 5 do artigo 4°;
b) Podem, em todos os casos, incluir outras sanções que não sejam multas ou
coimas, como:
i) exclusão do direito a benefícios ou auxílios públicos;
ii) inibição temporária ou permanente do exercício de atividades
comerciais;
iii) colocação sob vigilância judicial;
iv) liquidação por decisão judicial;
v) obrigação de tomar medidas específicas para eliminar as conseqüências da
infração que deu origem à responsabilidade da pessoa coletiva.
307
Na versão em português de Portugal, essa é a expressão utilizada. De acordo com o art. 1º, do DecretoLei 433/82, de 27/10, a coima é uma sanção aplicada em decorrência de uma condenação por contraordenação (correspondente à contravenção no ordenamento jurídico brasileiro).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
415
A despeito dessas singularidades, as diretivas e as decisões-quadro demonstram
parâmetros muito semelhantes, se não idênticos, de determinação da responsabilidade
dos entes coletivos pela prática de ilícitos.
Quanto ao conceito de pessoa coletiva, há uma preocupação por uma
delimitação o mais ampla possível, para que se possam incluir nesta categoria, por
exemplo, entidades sem fins lucrativos (Relatório da Comissão acerca da
implementação da Decisão-Quadro 2003/568, COM(2007) 328, p. 3). Assim, o termo
“pessoa coletiva” é normalmente definido como sendo “qualquer entidade que beneficie
desse estatuto por força do direito nacional aplicável, com exceção do Estado ou de
outras entidades de direito público no exercício das suas prerrogativas de autoridade
pública e das organizações de direito internacional público” (Decisão-Quadro
2003/568).
Além disso, estabelece-se um modelo de responsabilização que depende da
identificação da pessoa física que agiu (embora não haja a necessidade de condenação
da pessoa física, já que se afirma não impedir a responsabilidade da pessoa coletiva a
instauração de ação penal contra as pessoas singulares), devendo esta tê-lo feito em seu
nome e proveito, desde que possua capacidade de vincular a pessoa coletiva através de
seus atos. Tal capacidade decorre de uma posição superior na estrutura organizacional
da pessoa coletiva, que decorre de poderes de representação da pessoa coletiva,
autoridade para tomar decisões em seu nome ou para exercer fiscalização das atividades
realização em seu âmbito.
Existe ainda a responsabilização da pessoa coletiva como partícipe
(cumplicidade ou instigação), sendo igualmente passível de sanção a conduta omissiva
da pessoa coletiva, que ocorre no caso da realização da ação criminosa por pessoas
físicas sem capacidade vinculativa, que apenas fora possível em razão da falta de
supervisão ou controle das pessoas que se encontram na posição de fiscalização e
chefia.
A Responsabilidade Penal da Empresa no Corpus Juris
O Corpus Juris consiste em uma sugestão de código penal realizada por um
grupo de juristas de diversos países por encomenda da Comissão, tendo por finalidade
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
416
oferecer uma série de princípios orientadores para a proteção penal dos interesses
financeiros da União Européia (Corpus Juris, prefácio, p. III).
Ele é composto por regras penais especiais, com a previsão de oito tipos penais e
regras de parte geral, para a aplicação desses tipos, além de regras processuais. De
acordo com a proposta do Corpus Juris, a persecução penal seria de responsabilidade de
uma Procuradoria Européia criada para esse fim, com competência de atuação em todos
os países da União Européia (art. 18 e ss.). O processo penal se desenvolveria perante os
próprios tribunais nacionais dos Estados-Membros (art. 25, 26 e prefácio, p. III),
cabendo ao juiz em questão, além da aplicação do direito contido no Corpus Juris, o
direito de seu país (art. 25).
O Corpus Juris, vale mencionar, possui uma importância não apenas doutrinária,
como também política, tendo se em vista a pretensão (malograda até o momento), por
parte da Comissão, da criação da figura do Promotor Público Europeu (ZEDER, 2001,
p. 50).
A sua parte geral prevê tanto a responsabilização penal do dono do negócio
(Geschäftsherr) e de pessoas com poder de controle e decisão dentro da empresa (art.
12), quanto a responsabilidade penal de entes coletivos (Vereinigungen308) por qualquer
dos tipos penais previstos, quais sejam, a fraude em prejuízo dos interesses financeiros
da União Européia e delitos equivalentes (art.1), fraude em oferta licitatória (art. 2),
lavagem de dinheiro e receptação (art. 3), organização criminosa (art. 4), corrupção (art.
5), lesão de dever funcional (art. 6), abuso de função (art. 7) e violação de sigilo
funcional (art. 8), na forma de autoria, instigação ou auxílio (art. 11).
De acordo com essa proposta de responsabilização penal dos entes coletivos por
ilícitos praticados, não existem diferenças entre as regras gerais de imputação a eles
aplicadas e à pessoas particulares que cometerem os mesmos delitos. Assim, de acordo
com o Corpus Juris, para que a pessoa jurídica possa ser responsabilizada, é necessária
a comprovação do dolo ou de culpa (art. 9), havendo exclusão da responsabilidade penal
nos casos de erro de tipo e de ilicitude, quando inevitável, ou a diminuição da pena,
308
Muito embora a tradução mais usual do termo para o português seja “associação”, o uso dessa palavra
pode gerar confusão com o conceito jurídico de associação no direito brasileiro, enquanto que no
documento em tela a intenção foi de empregar um conceito muito mais amplo do que esse, conforme se
verá a seguir.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
417
quando evitável (art. 10). É ainda nesse sentido considerado o arrependimento na
bis).
tentativa, que exclui a responsabilidade quando for eficaz (art.11
Para fins de aplicação do Corpus Juris, na linha do que já se aplica atualmente
no âmbito da União Européia em matéria administrativo-sancionatória, entende-se por
entes coletivos tanto os entes dotados de personalidade jurídica, quanto os entes que
possuem capacidade de direito e patrimônio próprio (art. 13). O modelo de imputação
baseia-se na teoria da reapresentação. A ação deve ter sido realizada em favor da
empresa por um órgão, representante ou outra pessoa que aja em nome da empresa, ou
que possua poder de decisão fático ou jurídico (art. 13).
A pena aplicada aos entes coletivos é a de multa, cujo montante será
determinado em cada caso, no limite máximo de 10 milhões de euros (art. 14, 1, b).
Junto a ela, há a possibilidade de cominação de penas acessórias, como a publicação da
decisão condenatória e a suspensão de direito a subvenções por até 5 anos (art. 14, 2).
Para a sua determinação, de acordo com o artigo 15, devem ser considerados,
assim como para a pessoa física, a culpabilidade do ente coletivo, a gravidade da ação e
o grau de participação, direcionados a partir de necessidades de prevenção geral e
especial. Ainda podem ser levados em consideração o comportamento anterior do réu,
condenações anteriores, sua personalidade, motivação, posição social e econômica e seu
esforço em reparar o dano, além das circunstâncias próprias do direito nacional do
Estado-Membro onde a pena será aplicada.
2. RESPONSABILIDADE
DOS
ENTES
COLETIVOS
EM
DIREITO
COMPARADO
Vistas as formas de responsabilização dos entes coletivos no direito da União
Européia, as quais possuem relevância para empresas sediadas não apenas nos EstadosMembros, como também para empresas que de qualquer lugar do mundo possuam
interesses localizados nessa região, analisaremos mais concretamente a maneira pela
qual alguns países europeus (Portugal, Espanha, Itália e Alemanha) vieram a dar
cumprimento às recomendações, diretivas, decisões-quadro, convênios, tratados e
acordos que versam a esse respeito, bem como a aplicação do instituto nos Estados
Unidos, considerado um dos berços da responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
418
Nas páginas a seguir, destacamos e sumarizamos algumas das principais
características da intervenção penal diante das infrações cometidas no âmbito de entes
coletivos travada nesses países. Para tanto, usamos como base os informes produzidos
pelos colaboradores internacionais participantes desta pesquisa. Neste ponto, portanto,
apenas sistematizamos as informações contidas em tais informes, que, para consulta
específica sobre os aspectos particularizados adotados em cada um destes países, podem
ser acessados em suas versões integrais nos apêndices ao presente texto.
2.1 Natureza da responsabilidade
Dentre os países estudados, três deles responsabilizam penalmente os entes
coletivos. São eles os Estados Unidos, onde a responsabilidade penal da pessoa jurídica
é reconhecida desde 1909, Portugal, que a instituiu genericamente em 1982 e mais
concretamente em 1984, e a Itália. Esses dois últimos países também possuem um
sistema de sancionamento contravencional dos entes coletivos.
Em Portugal, o processo de adoção da responsabilidade penal das pessoas
colectivas inidicou em 1982, quando foi aprovado o actual Código Penal, que no seu art.
11.º determinava: “Salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são
susceptíveis de responsabilidade criminal”. A partir desta previsão excepcional, abriu-se
espaço para futuros diplomas que regulamentassem a possibilidade de responsabilização
de entes coleitvos. Com este intuito, dois anos mais tarde, surgiu o Decreto-Lei n.º
28/84, de 20 de Janeiro, relativo às infracções contra a economia e contra a saúde
pública, diploma legal paradigmático do direito penal secundário e que determinava a
responsabilidade das pessoas colectivas, a par com a das pessoas físicas, como regra, do
seguinte modo: “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são
responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos
seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo”. Estabelecia-se,
pois, a responsabilização coletiva, quer a crimes, quer a contra-ordenações
(“Ordnungswidrigkeiten”), contra a economia e a saúde pública.
Nos EUA, a decisão seminal a reconhecer a responsabilidade penal das pessoas
jurídicas é sensivelmente mais antiga tendo se dado em 1909, por ocasião do
julgamento pela Suprema Corte dos Estados Unidos do caso New York Central e
Hudson River Railroad Company versus Estados Unidos (212 U.S. 481). Para além da
construção pretoriana característica do modelo de Common Law, o modelo de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
419
responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos EUA é dotado de uma interessante
particularidade: no plano federal, foi criada, em 1991, uma diretiva a todos os juízes
federais (Sentencing Guideline Manual) em que se regulamentava, dentre outros, a
responsabilidade penal das corporações, nos termos definidos naquele documento.
Ainda que esta diretiva não tenha, hoje, caráter vinculante, tal documento propicia ao
magistrado diversos critérios para a aferição sobre se houve ou não responsabilidade do
ente coletivo, bem como para, se for o caso, quantificar a pena a ela referente.
Na Itália, o modelo de responsabilidade penal é recente e foi introduzido no ano
de 2001. Nele, tem vigência o principio da autonomia da responsabilidade do ente
coletivo, que se mantêm mesmo quando não se identifica a pessoa física atuante ou,
ainda, quando esta não é imputável. Assim, não é sequer necessário que, quando se
inicia um processo contra a pessoa jurídica, também tenha de se iniciar um processo
contra a pessoa física que por ela tenha atuado. Não obstante isso, houve grande
controvérsia no meio doutrinário e jurisprudencial a respeito da natureza da
responsabilidade introduzida pelo decreto legislativo 231/01, uma vez que, nesse
instrumento, o legislador denominou a mesma como “responsabilidade administrativa”;
hoje, no entanto, é dominante o entendimento de que tal ato normativo estabeleceu a
responsabilidade penal dos entes coletivos no país.
Tipo semelhante de controvérsia ocorreu no caso da Espanha. Isso porque, além
da previsão de responsabilidade contravencional dos entes coletivos em legislação
especial, a Parte Geral do Código Penal espanhol de 1995 introduzia uma série de
medidas (“conseqüências acessórias”) aplicáveis a coletividades em decorrência da
condenação penal de uma pessoa física, as quais, dado seu forte caráter gravoso,
poderiam justificar a idéia de que, em realidade, se trata de uma verdadeira sanção
penal, ainda que sem aferição de responsabilidade ou culpabilidade da pessoa jurídica.
A reforma do Código Penal, feita em 2003, afastou essa dúvida, trazendo expressamente
em sua exposição de motivos o fato de que, a partir de então, se trata de uma verdadeira
“responsabilidade penal das pessoas jurídicas”, pois estabelece que, “quando se impõe
uma pena de multa ao autor do delito, será responsável pelo pagamento da mesma de
maneira direta e solidária a pessoa jurídica em cujo nome o indivíduo atuou”.
Na Alemanha, por sua vez, não há previsão de responsabilidade penal para os
entes coletivos, restando vigente, desde 1952, a chamada “responsabilidade
contravencional” regulada pela Ordnungswidrigkeitengesetz, reformada em 1968. A
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
420
natureza de tal regulação é controversa, guardando pontos de convergência309 e pontos
de divergência310 frente à regulação através do Direito Penal. No que tange
especificamente à responsabilidade dos entes coletivos, há nesse país uma regra de
responsabilidade mediata destes (art. 30 OWiG): por meio da atuação de pessoas
naturais, órgãos, representantes legais, etc., a pessoa jurídica pode ser considerada
mediatamente autora de um delito. Assim, trata-se de uma responsabilidade própria do
ente coletivo, responsabilidade esta, porém, que só se dá por fato alheio, pois a sanção
contravencional não depende da imposição de sanções à pessoa individual que atuou
ilicitamente.
2.2 Clima político-criminal em torno da responsabilização dos entes coletivos
Os motivos que ensejaram a criação da responsabilidade penal da pessoa jurídica
em cada país são diversos. Não cabe, aqui, tratar especificamente de todos eles, mas
apenas indicar, sucintamente, qual era o clima político-criminal que antecedeu a adoção
deste modelo de responsabilização nos países em apreço.
Nos países em que existe a responsabilidade penal dos entes coletivos, o
convencimento de que o direito penal constituiria um instrumento necessário e eficaz na
prevenção de crimes ocorridos no âmbito dos entes coletivos não se mostrou ser o
principal fator para a sua introdução, sendo mais relevantes, pelo contrário, outros tipos
de argumento. Assim, no caso de Portugal e da Itália, não foi apenas a idéia do recurso
ao direito penal como medida mais adequada de prevenção que levou à criação da
responsabilidade penal dos entes coletivos. Em Portugal, além do argumento da eficácia
do instrumento penal, admite-se como importante a pressão dos organismos
internacionais (Recomendações do Conselho da Europa e Decisões-Quadro da União
Européia) para o controle de crimes cometidos no seio das empresas como causa
determinante de sua instituição e seu desenvolvimento posterior. A pressão, portanto,
309
Como pontos em comum, costumam-se citar: o fato de que ambas tem finalidade de proteção de bensjurídicos; o fato de que uma contravenção, da mesma forma como um crime de bagatela, não merece pena
de prisão; o fato de que a lei de contravenções é estruturada de forma muito similar ao código penal –
contendo uma parte geral e uma especial; o fato de que, da mesma forma que o código penal e ao
contrário das leis administrativas, a OWiG também é de competência exclusiva da esfera federal.
310
Como pontos diferentes, costumam-se citar o fato de que, na regulação contravencional, o processo é
iniciado no âmbito de uma autoridade administrativa, ao passo que, na regulação penal, o processo deve
iniciar, necessariamente, perante a autoridade judicial; que a sanção de prisão não pode ser aplicada aos
autores de contravenções; o fato de que, na condenação por contravenções, nada altera os “antecedentes”
do autor – dado a menor reprovabilidade ético-social que se atribui às infrações da OWiG.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
421
foi exercida externamente, o que parece ter deixado em segundo plano o debate nacional
sobre a conveniência deste instituto. Tanto assim que, atualmente, a discussão em torno
da responsabilidade penal dos entes coletivos nesse país não possui mais seu foco na
conveniência da resposta penal, mas na sua extensão, ou seja: indaga-se se, além dos
crimes situados no âmbito da criminalidade moderna (especialmente crimes
econômicos), a coletividade deve ser punida por delitos pertencentes ao direito penal
clássico, nos quais se afiguram tradicionalmente bens jurídicos individuais como cerne
dos tipos penais, tais como a propriedade, a vida, etc..
Da mesma forma, também na Itália, por sua vez, os instrumentos jurídicos que
estatuíram a responsabilidade própria dos entes coletivos foram estabelecidos
justamente em cumprimento a instrumentos internacionais nesse sentido. Assim, as
condutas criminalizadas nesse âmbito coincidem com as matérias de regulação dos
diversos
instrumentos
internacionais,
já
mencionadas
quando
tratamos
da
responsabilidade penal da pessoa jurídica na União Européia.
O debate nacional na Espanha parece mais resistente do que aqueles travados
nos
países
supracitados.
O
entendimento
dogmático
espanhol
mostra-se
majoritariamente contrário a um sistema penal dirigido aos entes coletivos. Mas não por
esse motivo dispensa-se uma resposta repressiva ao cometimento de crimes no âmbito
das coletividades, o que já estaria satisfatoriamente estabelecido, na opinião de muitos
autores, com a existência das medidas acessórias. Não obstante isso, legislativamente o
clima na Espanha é de mudança, havendo uma tendência verificável na direção da
aplicação de penas aos entes coletivos, justamente em seguimento de orientações
oriundas da União Européia.
Por fim, na Alemanha, essa influência da União Européia não se mostra tão
determinante, uma vez que nesse país já se verificava a responsabilização
contravencional das pessoas jurídicas, que é considerada, pela maioria da doutrina,
suficiente para os fins de prevenção e de satisfação das obrigações internacionais
existentes nessa matéria.
2.3 Coletividades imputáveis
Uma questão especialmente importante na determinação da responsabilização
dos entes coletivos pela prática de crimes diz respeito a que tipos de coletividades se
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
422
pretende fazer responsável. Isso porque, a depender do regramento que se adota,
determinadas agremiações e determinados grupos de pessoas podem ou não ser
responsabilizadas coletivamente pelas infrações que neles ou através deles forem
praticadas. A nossa lei dos crimes ambientais (Lei n.º 9.605/ 98), por exemplo, fala em
responsabilidade penal das pessoas jurídicas. Todavia, determinado o sentido do termo
de acordo com o nosso direito civil, diversas formas de sociedade e agrupações
empresariais são excluídas da responsabilização penal por crimes cometidos em seu
âmbito e em seu interesse. Por outro lado, não havendo menção específica pela lei sobre
a natureza das pessoas jurídicas, as pessoas jurídicas de direito público poderiam, em
tese, serem passíveis de pena.
Mas não é apenas no Brasil que se encontram dificuldades desse tipo. O Código
Penal espanhol também faz menção ao termo “pessoa jurídica”, mas a doutrina
interpreta este vocábulo de forma restritiva: tal norma seria dirigida apenas às empresas.
Na Alemanha, a existência de dois diplomas com previsões díspares também dificulta a
identificação de quais entes coletivos podem ser responsabilizados: se por um lado lei
contravencional alemã fala em “pessoa jurídica” (juristische Personen) e “associações”
(Vereinigungen), considerados ambos os termos pela dogmática como entes coletivos
dotados de personalidade jurídica no sentido do direito civil e comercial, por outro lado
a lei contravencional específica para a regulação de cartéis fala de empresas
(Unternehmen) e de “associações de empresas” (Unternehmenvereinigungen); não se
imputa, portanto, qualquer ente coletivo, ficando excluídas as associações sem
capacidade jurídica, bem como os clubes e coletividades ainda não personalizadas.
Na Itália e em Portugal, o espectro de entes responsabilizáveis é maior. Existe a
inclusão expressa da lei de entes coletivos não-personalizados, tais como sociedades e
associações de fato, havendo neste último país, inclusive, tentativas de uniformização
das legislações especiais quanto a isso, sendo em ambos os países excluída
legislativamente a responsabilidade penal dos entes da administração pública. Algo
interessante de se notar é que inexiste, nos países em análise, qualquer previsão legal
específica a respeito do fenômeno de grupo de empresas, havendo na Itália, porém, um
direcionamento dos tribunais no sentido de imputar os crimes cometidos pela empresa
controlada à controladora.
Os EUA, pela própria natureza de responsabilidade que adota, é aquele país que
adota a visão mais abrangente das coletividades penalmente imputáveis. O Código
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
423
Americano (U.S. Code) refere-se às corporações como sendo qualquer pessoa diferente
do indivíduo (person other than an individual) (Titulo 18, Capítulo I, Parágrafo 18), e o
no comentário ao parágrafo §8A1.1 do U.S. Sentencing Guidelines Manual lê-se que “o
termo inclui: corporações, partnerships, associações, sociedades por ações, sindicatos,
trusts, fundos de pensão, organizações não-incorporadas, subdivisões governamentais e
políticas e organizações sem fins lucrativos”. Neste país, ainda, há uma preocupação
com as relações entre a empresa matriz e a filial, verificando-se uma consolidada
construção jurisprudencial que possibilita a responsabilização da empresa matriz a partir
de princípios de desconsideração (quando se utiliza da filial com fins criminosos) ou
pela via da imputação direta do crime.
Além disso, nesses ordenamentos jurídicos, de um modo geral, a
responsabilidade penal (ou contravencional) “acompanha” o ente condenado em casos
de transformação, fusão, cisão e extinção, havendo previsão legal específica nesse
sentido em Portugal, Alemanha, Itália e no Anteprojeto de Código Penal espanhol de
2008.
2.4 Crimes e penas
No que tange às infrações imputáveis aos entes coletivos, verifica-se, a depender
do país, espectros restritos e espectros amplos de responsabilidade. Isto é, há casos em
que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é aplicada apenas a alguns tipos de
infrações, ao passo que há casos em que ela é aplicada a todo ou quase todo
comportamento tido como crime pela ordem jurídica.
Em grande parte dos países analisados, diversas matérias são contempladas,
sendo que a sua maioria se situa no âmbito do direito penal econômico (como lavagem
de dinheiro, falsificação de moeda, proteção à livre concorrência) e da proteção de bens
jurídicos supra-individuais (corrupção, meio-ambiente, segurança laboral, etc.).
Não obstante isso, verifica-se, em alguns dos países em tela, controvérsias
quando a punição dos entes coletivos diz respeito a delitos próprios do direito penal
tradicional. Em Portugal e na Espanha, a previsão da responsabilização dos entes
coletivos pela prática de crimes nos respectivos Códigos Penais amplia de grande modo
o espectro de aplicação material da mesma, de maneira que, nesse último país, a
responsabilidade das pessoas jurídicas pode em princípio ser estabelecida relativamente
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
424
a quaisquer crimes previstos pela parte especial. Raciocínio análogo pode ser aplicado
aos EUA, vez que não existe limitação legal específica quanto à matéria que pode vir a
ser objeto de punição para as corporações. Com isso, chega-se mesmo a se colocar em
dúvida a própria finalidade do instituto como instrumento de prevenção, vez que chega
a ser previsto até mesmo com relação a crimes sexuais (como o estupro em Portugal e a
mutilação de órgãos femininos na Itália).
Já no que tange às respostas relacionadas aos crimes praticados pelos entes
coletivos, estas giram preponderantemente em torno de penas e sanções pecuniárias,
como as multas e a restituição dos danos causados às vítimas. Mas existem
possibilidades alternativas a elas. Em Portugal prevêem-se ainda, tal qual ocorre às
pessoas físicas, penas acessórias às principais, em sua maioria restritivas de direitos,
dentre as quais se encontram a privação do direito a subsídios, subvenções ou incentivos
e a publicidade da sentença, a qual também é possível nos Estados Unidos e na Itália.
Se fazem também presentes medidas mais gravosas, como a extinção dos entes
coletivos (Portugal, Espanha), a suspensão ou encerramento temporário de suas
atividade (Portugal, Espanha, Itália), proibição de contratar com a vítima (Espanha) e a
sua intervenção ou vigilância judiciária para resguardar os direitos dos trabalhadores e
dos credores pelo tempo necessário à solução do problema (Portugal, Espanha). Na
Espanha, ainda, podemos encontrar algo interessante: um regime de responsabilização
diferenciado para os casos de associações com objetivos eminentemente ilícitos,
impondo-se penas a seus diretores, fundadores e presidentes.
Para além das multas, interessante notar que os EUA adotam outras duas formas
de sanção para as pessoas jurídicas: a restituição dos danos causados às vítimas e
chamada probation. A restituição dos danos pode ser imposta pecuniariamente para um
grupo determinável de vítimas ou ainda por meio das remedial orders311 e do serviço
comunitário.
312
A probation, por sua vez, é uma sentença condenatória que, todavia,
311
Previstos para os casos em que o número de vítimas é inestimável ou quando a reparação mostre-se
impossível, são medidas reparatórias que venham a eliminar ou diminuir o risco de que o delito venha a
causar novos danos. Se o risco futuro for estimável, a Corte poderá inclusive determinar a criação de trust
com vistas a dar conta do dano esperado. (U.S. Sentencing Guideline Manual, §8B1.2).
312
Novamente, é uma modalidade de restituição quando o número de atingidos configurar uma
comunidade, de sorte que a reparação mais indicada se dê por meio de determinados serviços e não pela
restituição pecuniária individual (U.S. Sentencing Guideline Manual, §8B1.3).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
425
não redunda em pena privativa de liberdade, desde que o condenado observe
determinadas condições, como não cometer crime local, estatal ou federal durante a
probation, ou se abster de ter como sede determinado local, salvo quando as
circunstâncias revelem que a medida seria desproporcional. Mais ainda, o tribunal pode
ordenar que a organização, às suas expensas e no formato e mídia especificados por ele,
torne pública a natureza do delito cometido, o fato da condenação, a natureza da
punição imposta e os passos que serão tomados para prevenir a ocorrência de delitos
similares. Por fim, há neste país também a possibilidade de se impor forfeiture313 e
debarment314, em que o juiz impede que corporações condenadas por determinadas
infrações (incluindo apropriação indébita, furto, falsificação, corrupção, destruição de
arquivos, elaboração de declarações falsas, evasão fiscal ou receptação de bens
furtados) de negociar com agências governamentais ou de participar de programas
governamentais.
Por fim, quanto aos critérios que determinam a fixação da pena, eles variam
muito de país para país. Nos Estados Unidos, são de grande relevância os aspectos
subjetivos que envolvem o fato criminoso e as características “pessoais” das
corporações. Assim, é considerada a existência de um propósito primariamente criminal
ou de uma atuação a partir da utilização de meios criminosos, o que, fazendo-se uma
analogia com o direito penal individual, corresponderia às formas de dolo direto de
primeiro e segundo grau. Também se consideram a capacidade da corporação de pagar
multas e a culpabilidade da mesma sobre o caso em questão - o que envolve, por
exemplo, a cultura corporativa favorável ou não à prática de condutas criminosas em
seu favor, a utilização de programas de ética e compliance e os próprios antecedentes
históricos da corporação. Em Portugal, as condições econômicas do ente coletivo
também são relevantes na fixação da pena de multa, sendo igualmente tomadas em
consideração (conforme construção doutrinária) a sua culpa e os fins de prevenção geral
e especial. Tais fins também são determinantes na aferição da multa contravencional no
313
Trata-se da subtração de propriedade sem uma compensação. No âmbito criminal, é “a perda de um
direito, privilégio ou propriedade em razão de um crime, quebra de obrigação ou negligência de um
dever”. Do ponto de vista procedimental, é um instrumento de apropriação de bens como punição pelo
comportamento criminal do autor. Fonte: GARNER, 1990.
314
Para maiores informações, vide Debarment, Suspension, and Ineligibility, 48 C.F.R. § 9.406-2(a)(1)(3) (2007).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
426
direito alemão, aos quais se soma a averiguação de ter sido a contravenção cometida
culposa ou dolosamente.
Na Espanha, diferentemente, os critérios subjetivos próprios das pessoas
jurídicas não possuem peso na delimitação do montante da pena, mas tão somente a
gravidade do delito praticado. Na Itália, por fim, existe a conjugação de todos esses
fatores na dosimetria da pena imposta aos entes coletivos (gravidade do fato, grau de
responsabilidade, esforços no sentido de eliminar ou atenuar os efeitos do crime,
condições econômicas e patrimoniais).
Quanto à execução das penas impostas às pessoas jurídicas e entes equiparados,
não se encontram disposições específicas nos ordenamentos jurídicos em apreço. Em
caso de não pagamento da pena de multa, procede-se de modo análogo às pessoas
físicas, com a execução de seu patrimônio.
2.5 Elementos e critérios de imputação
Nos ordenamentos jurídicos analisados, alguns elementos e critérios de
imputação de responsabilidade aos entes coletivos se assemelham. De uma maneira
geral, a sua responsabilidade deriva da responsabilidade da pessoa física que atuou em
seu âmbito, muito embora não seja indispensável que haja condenação penal ou
contravencional da mesma.
A noção do atuar em benefício do ente coletivo, que encontramos prevista em
nosso direito penal através da Lei n.º 9.605/ 98, é um elemento chave nos sistemas
repressivos dos países em estudo. A necessidade de ser a ação ilícita realizada dentro do
ente coletivo também é um fator recorrente nesses ordenamentos jurídicos para a sua
responsabilização. Mais ainda, em todos estes países se colocam limitações ao círculo
de pessoas que podem vincular os entes coletivos penal ou contravencionalmente, seja
por meio da própria função desempenhada pela pessoa que age diretamente, seja por
meio de atribuição de deveres 

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