Primeiras páginas

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asgando o flanco da montanha, o estreito caminho inclinava-se
sobre um vale. Ao longe, mais abaixo, adivinhava-se uma torrente colectora de águas: eu tinha deixado a minha autocaravana no
fim da estrada florestal, pois não iria mais longe. Na Itália turística
e industriosa, o maciço dos Abruzos parecia tão selvagem e deserto
como nos primeiros tempos da humanidade.
Ao sair de um pinhal, o fundo da comba surgiu aos meus olhos:
uma ladeira impressionante elevava-se até uma franja que ocultava
a vertente adriática. Aves de rapina planando preguiçosamente,
uma solidão absoluta a poucas dezenas de quilómetros da estrada
cheia de veraneantes, dos quais nenhum se aventurava a vir até
aqui.
Foi então que o encontrei: trajando uma espécie de bata, de foice
na mão, debruçado sobre um molho de gencianas. Cabelos brancos
flutuando-lhe sobre os ombros acentuavam a fragilidade da sua
silhueta. Quando se ergueu, distingui uma barba solta e dois olhos
claros, quase aquáticos: o olhar de uma criança, ingénuo e terno,
mas também penetrante e vivo, que me despiu até à alma.
– Ei-lo... ouvi-o chegar. Aqui os sons têm um grande alcance,
nunca ninguém vem a este vale.
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– Fala francês!
Reergueu-se, passou o cabo da foice no cinto da sua bata, e sem
me estender a mão:
– Padre Nilo. Eu sou, ou melhor, era monge numa abadia francesa. Dantes.
Um sorriso malicioso desenhou uma dobra na sua fronte lisa.
Sem me perguntar quem eu era, nem como tinha conseguido chegar
a estes confins do mundo, acrescentou:
– Precisa de uma tisana, o Verão é quente. Vou misturar esta genciana com hortelã e rosmaninho, vai ficar amargo mas reconfortante.
Venha.
– Era uma ordem, mas dada num tom quase afectuoso: segui-o.
Magro e direito, caminhava com ligeireza. Por momentos, as manchas de sol raiando através das epíceas faziam brilhar a sua cabeleira prateada.
O caminho estreitava e, de repente, abriu-se num terraço dominando a inclinação a pique. Emergindo ligeiramente do flanco da
montanha, uma fachada de pedras secas, uma porta baixa, uma
janela.
– Será preciso baixar-se para entrar: este ermitério é uma gruta
preparada como terão sido as de Qumrân.
Era suposto eu conhecer Qumrân? O padre Nilo não explicava
nada, não fazia qualquer pergunta. Pela sua única presença, criava
uma tal ordem das coisas que revelava a própria evidência. Se aparecesse ao seu lado um duende, ou uma fada, parecer-me-ia absolutamente natural.
Passei o dia com ele. Quando o sol estava no pico das alturas,
sentados no parapeito sobranceiro ao abismo, partilhámos pão,
queijo de cabra e finíssimas ervas aromáticas. Quando a sombra da
encosta oposta aflorou o ermitério, disse-me:
– Acompanho-o até ao caminho florestal. A água que corre na
berma é pura, pode bebê-la.
Tudo parecia puro neste contacto. Fiz-lhe parte da minha intenção de acampar nesta montanha durante vários dias.
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– É inútil fechar o seu veículo – disse-me ele –, ninguém chega até
aqui e os animais selvagens respeitam tudo. Venha amanhã de
manhã, terei queijo fresco.
Perdi a conta aos dias que passei na sua companhia. Na manhã
seguinte, as cabras fizeram a sua aparição no terraço e vieram comer
as migalhas nas nossas mãos.
– Elas observaram-no ontem sem que as tenha visto. Se agora se
mostram na sua presença é porque posso contar-lhe a minha história. Será o primeiro a ouvi-la.
E o padre Nilo contou. Desta aventura, era ele o actor principal:
porém, não me falou dele mas sim de um homem cujo rasto encontrara na História, um judeu1 do século I. E por detrás desse homem,
distingui a sombra luminosa de um outro ainda, de que me disse
pouca coisa mas que explicava a clareza do seu olhar límpido.
No último dia, o meu universo de ocidental educado tinha ruído.
Parti quando as primeiras estrelas faziam a sua aparição. O padre
Nilo ficou no terraço, pequena sombra que dava sentido a todo o
vale, e as suas cabras acompanharam-me por uns instantes. Mas no
momento em que acendi a minha lanterna eléctrica, assustadas arrepiaram caminho.
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Habitante da Judeia, cuja capital era Jerusalém.
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