Guia de estudos_Química Estrutural_paginado
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GUIA DE ESTUDOS Química Estrutural: conhecendo os caminhos que levaram ao seu desenvolvimento Flávio Silva Rezende Prof ª. Dr ª. Salete Linhares Queiroz São carlos 2005 99 arlsruhe, 3 de setembro de 1860. Um importante evento, o primeiro congresso internacional de Química, iniciava-se na pitoresca cidade alemã. O seu idealizador, Friedrich August Kekulé, justificou a necessidade de sua realização nos seguintes termos: “o grande desenvolvimento que tem ocorrido na Química nos últimos anos, e as diferenças no que diz respeito às opiniões teóricas que têm surgido, tornam o Congresso oportuno e útil”. Esta justificativa, somada a uma lista contendo o nome de 45 renomados cientistas1, que expressavam o apoio ao evento, encontrava-se exposta no convite endereçado à comunidade de químicos da época (ver Apêndice 1). Cerca de 140 membros desta comunidade atenderam ao chamado (ver Apêndice 2) e participaram de importantes discussões que permitiram o desenvolvimento da “Teoria Química Estrutural”. Certamente, alguns dos cursos nos quais você está matriculado neste semestre, possuem os seus fundamentos ancorados nas conclusões advindas dos debates travados entre eminentes cientistas durante os três dias do Congresso. Apresentar as principais questões debatidas e estabelecer as conexões entre elas e o estado do conhecimento químico da época é o intuito deste minicurso. (Q.1, Q.2, Q.3, Q.4) o início do século XIX, a química enveredou por um caminho que a conduziu para um estado caótico. O significado de palavras como “átomo”, “molécula” e “equivalente” era obscuro, sendo este período denominado por alguns historiadores como a “Era da Confusão” ou a “Era Negra da Química Orgânica”. A inexistência de consenso sobre um sistema único de pesos atômicos fazia com que as fórmulas químicas variassem de laboratório para 1 Babo*, Blalard, Beketoff, Boussingault*, Brodie, Bünsen*, Bussy, Cahours, Cannizzaro*, H. Deville, Dumas*, Engelhardt, O. L. Erdmann*, Fehling*, Frankland, Fremy, Fritzsche, Hlasiwetz*, Hofmann, Kekulé*, Kopp*, Liebig, Malaguti, Marignac* Mitscherlich, Odling*, Pasteur, Payen, Pebal*, Peligot, Pelouse, Piria, Regnault, Roscoe*, Shötter, Socoloff, Staedeler, Stas* Strecker*, Weltzein, Will*, Williamson, Wöhler, Wurtz* e Zinin*. Os asteriscos indicam os cientistas que compareceram ao Congresso. laboratório. O peso atômico do oxigênio, por exemplo, para alguns possuía valor 8, enquanto o valor 16 era aceito por outros. Berzelius, cientista da época, expressava o seu sentimento com relação ao estado da química afirmando o seguinte: “o demônio deve escrever livros de Química, porque em poucos anos todas as coisas mudam”. Provavelmente, você mostrar-se-ia solidário com Berzelius, se vivesse em uma época em que eram encontradas na literatura dezenove diferentes fórmulas para o ácido acético. Algumas destas fórmulas encontram-se ilustradas na Figura 1 e foram listadas por Kekulé em 1861. C 4 H 3 O 2 .O + C 2 (C 2 H 3 )O 2 H C 4H 3O 2 H }O HO }O 2 T e o ria d o R a d ic a l W u rtz T e o ria d o s T ip o s (G e rh a rd t) 2 } C 2 H 3 (C 2 O 2 ) O 2 H M e n d iu s Figura 1 – Lista de algumas fórmulas para o ácido acético, encontrada no trabalho de Kekulé “Lehrbuch der organischen Chemie”. (Q.5, Q.6) Alguns dos dilemas que pairavam no ar por volta de 1860, ano do Congresso de Karlsruhe, haviam sido instaurados cerca de meio século antes, com a publicação, por Dalton, da Teoria Atômica, da tabela de pesos atômicos relativos e de pesos moleculares. (Q.7, Q.8) Com relação à Teoria Atômica, Dalton afirmava que os átomos eram indivisíveis e se combinavam em proporções numericamente simples. Para estabelecer os valores dos pesos atômicos, ele usou um sistema comparativo, tendo o hidrogênio como elemento padrão para este sistema, e seu valor igual 1. O processo para determinação de um peso atômico consistia em combinar o elemento, cujo peso atômico se queria determinar, com o elemento padrão (no caso da tabela publicada por Dalton, em 1803, o hidrogênio). Então, analisando o composto e considerando válida a Lei das Proporções Definidas de Proust, podia-se determinar a relação ponderal entre os seus componentes e a partir daí, por simples cálculos, o valor do peso atômico desejado (com relação ao peso padrão). 1 Para calcular, por exemplo, o peso atômico do oxigênio, Dalton levou em consideração as análises de Lavoisier, que formulava a água como HO e indicavam 85% de oxigênio e 15% de hidrogênio e determinou o seu peso atômico como sendo 5,5 (posteriormente, quando análises mais precisas sobre a água foram feitas, ele alterou este peso para 7). Este tipo de raciocínio é razoável caso se conheça o número de átomos de hidrogênio e oxigênio na água, porém naquela época, não se tinha esta informação exata. Para vencer esta dificuldade, Dalton estabeleceu arbitrariamente a Regra da Máxima Simplicidade. Considerou que as moléculas eram tão simples, que combinações atômicas obedecendo a razão de 1 para 1 sempre deveriam existir. Com base nesta regra e considerando que na época conhecia-se apenas um composto de hidrogênio e oxigênio, Dalton assumiu que a composição da água era HO. De forma similar, a composição da amônia era NH. (Q.9) Esta base arbitrária, aliada a valores analíticos incorretos apresentados por Dalton, dificultou a aceitação de suas propostas pela comunidade científica da época. Em particular, a Tabela de Pesos Atômicos de Dalton, que foi veementemente contestada pelos químicos da época, entre eles, Wollaston (1766-1828), químico inglês, que sugeria, ao invés do uso dos pesos atômicos, o uso dos pesos equivalentes (ou pesos de combinação), valores empíricos obtidos relacionando-se os valores percentuais de numerosas análises sempre a um mesmo valor, arbitrariamente fixado, de um elemento padrão, por exemplo, H = 1, ou O = 1 ou = 100. (Q.10, Q.11) químico Ainda no início do século XIX, o francês Gay-Lussac, realizando experimentos quantitativos nos quais media o volume dos gases, concluiu em analogia à imaginação de Dalton, sobre o que acontecia com os átomos: “Os gases se combinam sempre na relação mais simples quando interagem entre si, sendo estas relações de 1:1, 1:2 e 1:3”. \ Estes resultados experimentais jamais foram aceitos por Dalton, que chegou a constituir hipótese da existência de erros nos valores obtidos pelo colega. A sua contrariedade pode ser entendida, em parte, se considerarmos que Gay-Lussac também demonstrou que a água era constituída por exatamente dois volumes de gás hidrogênio para cada volume de gás oxigênio, contradizendo o que foi dito por Dalton em sua regra arbitrária. Embora a crença de Dalton na composição da água como OH tenha persistido, o trabalho de Gay-Lussac serviu de fundamento para estudos e descobertas relevantes realizadas por Avogadro e Berzelius. Apesar de trazer novas idéias ao cenário da Química, a Lei da Combinação de Volumes dos Gases, enunciada por Gay-Lussac, também gerou polêmicas e descrédito. Uma das polêmicas dizia respeito do monóxido de carbono que, formado por um átomo de oxigênio e por um átomo de carbono, deveria ser mais denso que o oxigênio e, no entanto, era menos denso. Outro argumento contrário a Gay-Lussac está no fato de que um volume de nitrogênio combinado com um volume de oxigênio levava à produção de dois volumes de óxido nítrico, ao invés de um único volume, contradizendo fortemente a Teoria Atômica: os átomos de nitrogênio e oxigênio precisariam ser divididos para justificar o resultado observado. Uma possibilidade de reconciliação entre as propostas de Dalton e Gay-Lussac foi vislumbrada por Amadeo Avogadro, em 1811. Ele assumiu que um gás como hidrogênio, 2 consistia não apenas em um átomo de hidrogênio, mas de dois átomos quimicamente ligados. O par de átomos foi denominado de molécula de hidrogênio. Ou seja, o hidrogênio gasoso não era apenas H, mas HH ou H2. A hipótese enunciada por Avogadro, de que “iguais volumes de todos os gases, sob as mesmas condições de temperatura e pressão, contêm os mesmos números de moléculas”, não foi testada em laboratório e nem podia ser verificada (nenhuma balança era sensível o suficiente para pesar moléculas). No entanto, possuía a chave para resolver as “incoerências” apontadas na época, com relação aos resultados experimentais de GayLussac, sem ferir a Teoria Atômica. cética. Mais tarde, Jean Stas, químico belga, descobriu um erro no valor do peso atômico do carbono. Toda a lista de pesos atômicos de Berzelius passou a ser questionada. Experimentos foram elaborados em muitos laboratórios da Europa na busca por novos erros. Porém, os resultados apenas respaldaram a exatidão dos seus valores. Você pode chegar às suas próprias conclusões sobre esta polêmica analisando a Tabela 1, que ilustra os pesos atômicos propostos por Dalton, Berzelius e os atualmente utilizados no curso de química. (Q.12) Infelizmente, a hipótese de Avogadro foi rejeitada. Dalton nunca a aceitou, uma vez que repudiava fortemente a lei de Gay-Lussac, com a qual Avogadro se identificava. No entanto, uma das principais razões que justificava o descaso com que esta hipótese foi recebida, reside no fato dela não estar relacionada com a Teoria Dualística de Berzelius, amplamente aceita na época. Antes de introduzirmos esta teoria, vamos ver a contribuição dada, também pelo trabalho de GayLussac a Berzelius, com relação à determinação dos pesos atômicos e moleculares. Baseandose inicialmente na lei volumétrica dos gases de Gay-Lussac, Berzelius admitia que a fórmula da água como H2O e, do amoníaco, H3N (1813). No ano seguinte, Berzelius constitui sua primeira tabela de pesos atômicos contendo 43 elementos. O elemento padrão era o oxigênio, cujo peso atômico ele fixou em 100. O desenvolvimento de técnicas e aparelhagens permitiu a Berzelius publicar, em 1826, uma nova Tabela de Pesos Atômicos. Os seus números não foram imediatamente aceitos e a Associação Britânica Para o Avanço da Ciência mostrou-se Tabela 1 – Pesos Atômicos propostos por Dalton, por Berzelius e os atualmente recomendados pela IUPAC. 3 Teoria Dualística Eletroquímica buscava explicar a combinação química com base em fenômenos elétricos. Berzelius realizou experimentos nos quais observava a formação de um ácido e uma base durante a eletrólise de vários sais. Com base nos resultados desses experimentos, ele concluiu que a combinação química deveria ser de natureza elétrica. Para Berzelius, os átomos de diversos elementos eram considerados como dipolos elétricos com carga predominantemente positiva ou negativa, deste modo sua teoria estabelecia que a atração entre essas cargas mantinha os compostos unidos. (Q.13, Q.14) O texto a seguir ilustra as idéias de Berzelius, segundo suas próprias palavras: “Se estas idéias eletroquímicas são corretas, resulta que toda combinação química depende unicamente de duas forças opostas, positiva e negativa, e que cada combinação deve ser composta de duas partes unidas pelo efeito de sua reação eletroquímica, fazendo com que não exista uma terceira força. Como conseqüência, cada substância composta, independentemente do número dos seus principais constituintes, pode ser dividida em duas partes, sendo uma eletricamente positiva e a outra negativa. Assim, por exemplo, sulfato de soda não é composto de enxofre, oxigênio e sódio, mas por ácido sulfúrico (SO3) e soda (NaO) sendo que ambos podem ser divididos em dois elementos, um positivo e outro negativo”. Assim, segundo a teoria, era impossível a formação de moléculas pela ligação de átomos de um mesmo elemento, como declarava Avogadro. Uma vez que, os átomos, sendo igualmente carregados, seriam repelidos e não formariam uma espécie diatômica. A Teoria Dualísitica de Berzelius mostrou-se viável e produtiva para o estudo de compostos inorgânicos. O surgimento de um número elevado de compostos orgânicos e a necessidade de sistematizá-los levou Berzelius a estender o sistema dualístico eletroquímico para tais compostos, ponderando que: “Tentando-se formar uma idéia sobre as composições orgânicas, temos até hoje somente um caminho inegavelmente certo e constatado por inúmeros fatos: precisamos partir de comparações com compostos inorgânicos. Na química inorgânica concordou-se em considerar todos os compostos binários, consistindo de um componente positivo e um negativo”. (Q.15) A interpretação das combinações químicas com base no sistema dualístico, veio somar-se à confusão estabelecida pela utilização de pesos atômicos errôneos (e variáveis), e à controvérsia entre o uso de pesos atômicos ou pesos equivalentes, impedindo o progresso da ciência no início do século XIX. No meio deste turbilhão de dúvidas, algumas teorias foram propostas e serviram para pavimentar o caminho que levaria às discussões em Karlsruhe e, posteriormente, às bases da Química Estrutural. Entre elas estavam a Teoria dos Radicais, Teoria da Substituição, Teoria do Núcleo, Teoria dos Resíduos e Teoria dos Tipos. s polêmicas, os embates e os pronunciamentos sarcásticos por parte dos cientistas que se eram constantes e um número extenso de páginas se faria necessário para que fossem retratadas. No entanto, sendo o objetivo do minicurso apresentar de forma resumida os ânimos da época e as principais diferenças entre as teorias, começaremos por considerar a Teoria dos Radicais. Esta teoria expressa a ligação das idéias presentes na Teoria Dualística de Berzelius e no trabalho de Lavoisier sobre a sistematização de ácidos. Lavoisier, a partir deste trabalho apresentou, pela primeira vez, a noção de radicais como “grupos de elementos em um composto que, juntos, funcionam como uma unidade” e Berzelius, na extensão da Teoria Dualística a compostos orgânicos, postulou que as substâncias orgânicas eram óxidos de compostos radicais (que usualmente consistiam de um carbono e um hidrogênio, e algumas vezes nitrogênio), unidos por forças eletrostáticas. 4 Nenhuma ênfase especial havia sido dada ao conceito de radical até 1828, quando Dumas e Boullay propuseram o etileno como um radical, denominado por eles de radical “etherin”, que poderia ser a base para formação de álcoois e compostos similares. Neste contexto, álcool etílico, éter etílico, acetato de etila, cloreto de etila e sulfato de etila eram produtos da adição de uma ou mais moléculas ao etileno. Por exemplo: A Teoria dos Radicais pautou a realização de várias pesquisas e permitiu a criação do conceito de radical orgânico por Dumas (grupo de elementos orgânicos que funcionavam como uma unidade). Alguns exemplos que ilustram a idéia de Radicais encontram-se na Tabela 2, apresentando o radical Etileno e Benzoil, e alguns de seus derivados. C2H4 + H2O = C2H6O (etileno) (água) (álcool etílico) Radical Etileno e Alguns dos Seus Derivados Radical Etileno C2H4 Radical Benzoil e Alguns dos Seus Derivados Radical Benzoil C14H10O2 Álcool Ácido Benzóico C14H10O2 . (OH)2 Éter Hidroclorídrico C2H4, HCl Cloreto de Benzoíla C14H10O2 . Cl2 Éter Nítrico C2H4, HNO2 Cianeto de Benzoíla C14H10O2 . C2N2 Éter Acético C2H4, C2H4O2 Benzamida C2H4, H2O C14H10O2 . N2H4 Tabela 2 - Radical Etileno, Radical Benzoil e alguns dos seus derivados. A Teoria dos Radicais foi fortalecida com a apresentação do trabalho de Liebig e Wöhler sobre o óleo de amêndoas. A partir deste óleo foi obtida uma família de compostos: benzaldeído, ácido benzóico, cloreto de benzoíla, brometo de benzoíla, entre outros. Em todos os compostos, eles encontraram evidências analíticas da presença de um grupo, o C14H10O2 (atualmente C7H5O). Tal grupo foi denominado radical benzoil, e concluíram que todos os compostos obtidos eram produtos de adição ao radical benzoil. Alguns dos derivados do radical benzoil são encontrados na Tabela 2. Por volta de 1830, novos radicais orgânicos foram encontradas, entre eles o radical etil, C4H10 (atualmente C2H5); o radical acetil, C4H6 (atualmente C2H3O); entre outros, reinando um consenso considerável sobre a possibilidade de classificação dos compostos orgânicos como derivados de vários destes radicais. Em 1837, a descoberta por Bunsen do radical cacodil (C4H12As2), o mais complexo radical obtido até aquela data. Além de ter lhe custado a visão do olho direito perdida em uma explosão sua investigação sedimentou ainda mais as idéias vigentes sobre o assunto. Quando uma teoria entra em um estado de relativa aceitação cabe perguntar qual foi a receptividade encontrada por ela junto a autores de teorias vigentes. (Q.16) 5 Assim, o que achou Berzelius, um renomado químico, sobre a Teoria dos Radicais? No que ela consolidou ou abalou a sua Teoria Dualísitica? Com relação a esta questão: Berzelius não demostrou entusiasmo com a proposta de Dumas e Boullay. A ausência do oxigênio no radical etileno o incomodava (recorde a forma como Berzelius estendeu a sua Teoria Dualística aos compostos orgânicos para entender a sua posição) e manifestou ser interessante a forma de representação sugerida pelos químicos franceses, porém apresentava dúvidas se os compostos realmente se formavam daquela maneira. Em contrapartida, recebeu de melhor grado a descoberta de Liebig e Wöhler do radical benzoil, que diferentemente do radical etileno, continha três elementos, incluindo o oxigênio. (Q.17, Q. 18) m baile real no Palácio de Tuileries, em Paris, e as consequências daí advindas, golpearam ainda mais fortemente a Teoria Dualística. Durante o evento, quando as velas colocadas sobre a mesa foram acesas vários convidados passaram a tossir. O organizador do baile questionou o fabricante sobre a causa do problema. Dumas, eminente químico da época, foi convocado para investigar a situação e concluiu ser o cloreto de hidrogênio o causador da irritação. O fabricante da cera utilizada na vela havia descoberto uma nova forma de branquear uma batelada particularmente amarela de que dispunha, aquecendo-a com o gás cloro. Dumas descobriu que parte do gás cloro havia se combinado com a gordura animal usada no processo e, enquanto estudava como se dava tal combinação, concluiu que em alguns compostos orgânicos o átomo de cloro podia substituir o átomo de hidrogênio. Baseado nestas investigações, Dumas enunciou a Teoria da Substituição, afirmando que: “quando uma substância contendo hidrogênio é submetida à ação do cloro, bromo, iodo, oxigênio, etc., para cada átomo de hidrogênio que é perdido, um átomo de cloro, bromo, iodo ou meio átomo de oxigênio é ganho”. Berzelius descartou as conclusões que vinham no bojo desta descoberta. Elas não respaldavam a sua Teoria Dualística, na qual um elemento eletronegativo, como o cloro, não poderia substituir um elemento eletropositivo, como o hidrogênio. Mesmo tendo protestado veementemente contra elas, jovens químicos da época deram crédito à descoberta de Dumas. Um deles, chamado Auguste Laurent, discípulo de Dumas, delineou em sua tese de doutorado uma nova teoria, a Teoria do Núcleo, utilizando a idéia de substituição introduzida por seu mentor. De acordo com sua Teoria do Núcleo, uma derivação da Teoria dos Radicais, os compostos eram formados por núcleos (radicais) nos quais podiam ocorrer substituições. Portanto, o núcleo original poderia ser modificado a um núcleo derivado, que retinha muitas das propriedades de sua forma original. A proposição de tal modificação à Teoria dos Radicais originou uma grande confusão: Liebig considerando-a como não-científica; Berzelius, tomando Dumas erroneamente como autor da mesma (uma vez que Laurent era seu aluno e assistente), disse que a idéia não era merecedora sequer de um comentário. Vendo-se criticado por grandes cientistas da época, Dumas recuou e declarou-se isento de qualquer responsabilidade quanto à Teoria do Núcleo: “Eu não sou responsável por qualquer exagero assoberbado com o qual Laurent investiu a minha teoria” A partir deste episódio Laurent antagonizou-se com Dumas para sempre, sendo o mais prejudicado, pois Dumas era o mais renomado e poderoso químico na França. Desde então, Laurent foi apoiado profissional e financeiramente por Charles Gerhardt, seu colaborador e grande amigo. Surpreendentemente, Dumas lançou posteriormente uma teoria que em muito se assemelhava à Teoria do Núcleo, a Teoria dos Tipos. A Teoria dos Tipos foi concebida com base nos experimentos de Cloração do ácido acético realizados por Dumas. Ele conseguiu preparar o ácido tricloroacético através da reação do ácido acético com cloro e demonstrou que ambos apresentavam propriedades similares. Com isto, chegou à conclusão que “nos compostos orgânicos existem certos Tipos que permanecem mesmo quando no lugar do hidrogênio eles apresentam um 6 igual volume de cloro, bromo ou iodo”. Assim, os compostos orgânicos eram classificados como “Tipos Químicos” quando continham o mesmo número de equivalentes químicos, eram unidos de forma semelhante e apresentavam as mesmas propriedades químicas fundamentais. Gerhardt, o amigo de Laurent mencionado anteriormente, também contribuiu para fomentar as discussões sobre os compostos orgânicos propondo a Teoria dos Resíduos (também conhecida como Teoria da Decomposição Dupla). A reação de certos compostos orgânicos formam compostos inorgânicos muito estáveis, água ou dióxido de carbono, como produtos. Ou seja, a partir da combinação de duas moléculas, as partes eliminadas se unem para formar uma molécula inorgânica, enquanto os resíduos das moléculas orgânicas formam novos compostos. Por exemplo: A Teoria dos Resíduos foi fortemente atacada, pois Gerhardt não considerava os resíduos como sendo positiva ou negativamente carregados, como exigia a Teoria Dualística. Ademais, ela não se mostrou muito consistente, uma vez que existem muitas reações não são de decomposição dupla e não se encaixavam na proposição de Gerhardt. No entanto, os estudos que o levaram a propor a teoria, também o conduziram a uma revisão dos valores dos pesos atômicos/moleculares e a um esquema de classificação dos compostos orgânicos, sendo de inestimável valor para o entendimento de importantes aspectos da Química de sua época. Analisando os pesos atômicos e moleculares empregados na época, Gerhardt observou que, para muitos gases, os pesos moleculares utilizados pelos químicos inorgânicos eram a metade daqueles usados pelos químicos orgânicos, e propôs a uniformização entre os dois ramos da química através da duplicação dos pesos moleculares dos compostos inorgânicos simples, ou dividindo os pesos dos compostos orgânicos. Ele sublinhava a vantagem da utilização do padrão doisvolumes, que além de ser mais simples, concordava com as idéias pouco consideradas de AvogradoAmpére. Para o seu melhor entendimento, no jargão da época, para a molécula de água, por exemplo, o padrão dois-volumes indicava a fórmula H2O e o padrão quatro-volumes indicava a fórmula H4O2. O esquema de classificação, proposto por Gerhardt, agrupava compostos orgânicos em famílias. Estas famílias abrigavam substâncias com o mesmo número de átomos de carbono (ou seja, em séries homólogas). Controvérsias e disputas vieram novamente à tona, pois Dumas havia feito o mesmo procedimento para os ácidos graxos e exigia o reconhecimento da idéia como de sua autoria. O fato é que, não se levando em conta as origens desta classificação, ela serviu para fortalecer e generalizar a Teoria dos Tipos, e a partir de então, vários compostos orgânicos foram sistematizados. Por exemplo, a amônia, formada por um átomo central de nitrogênio rodeado por três átomos de hidrogênio, foi identificada como um Tipo, o Tipo Amônia. Compostos deste tipo eram aqueles em que ocorria a troca de um, dois ou três átomos de hidrogênio por radicais orgânicos na molécula de amônia. Em analogia, compostos do Tipo Água eram formados por um átomo de oxigênio central, nos quais ocorria a substituição de um ou dois átomos de hidrogênio por radicais orgânicos. O esquema abaixo ilustra exemplos de compostos do Tipo Amônia e Água: Em suma, as teorias e idéias apresentadas, algumas aceitas e outras refutadas, clamavam para a introdução de uma visão do composto que existisse 7 como uma unidade completa, em substituição à visão dualística de Berzelius, que considerava os compostos como sendo formados por duas unidades eletricamente carregadas. A necessidade por soluções para a confusão entre peso equivalente e peso atômico e de introduzir uma distinção clara entre átomos e moléculas era evidente. Consequentemente era necessário repensar os conceitos fundamentais. Tendo agora uma percepção sobre o estado do conhecimento químico da época, podemos ir á Karlrushe e conhecer as principais idéias discutidas durante o Congresso. Porém, antes e até para não interpretar de uma forma simples o que leu até agora, tenha em mente as palavras de Heinrich Rheinboldt no seu livro História da Balança: A Vida de J.J. Berzelius, “Uma teoria, mesmo se mais tarde considerada errada e condenada a desaparecer, que estimula séries de trabalhos conduzindo a descobertas de tal importância, não pode ser julgada sem valor; ela provou realmente seu valor heurístico”. Kekulé, que enfatizou a necessidade da distinção entre moléculas e átomos. Entre os debates ocorridos, estavam também aqueles que tinham como intuito definir uma notação química. Sobre o assunto, Kekulé expôs suas idéias e acentuou que tanto uma notação atômica-molecular quanto uma em equivalentes poderiam ser empregadas. O importante era não misturar as duas notações, tornando-as menos confusas (veja na Tabela 3 cada uma das notações para algumas moléculas. Considere que az = nitrogênio). As desvantagens decorrentes de tais confusões foram enfatizadas em uma das seções. Wurtz pronunciou-se a favor da manutenção dos pesos atômicos de Berzelius, em oposição às proposições feitas posteriormente por Gerhardt, e já citadas neste texto Tabela 3: Notação de compostos na forma atômica molecular, de equivalentes e atual. m setembro de 1860, de várias partes do mundo, eles chegaram. Da França vieram Béchamp e Wurtz. Anderson, Frankland e Roscoe representavam a Inglaterra. A Alemanha estava representada por Liebig, Wöhler, Mitscherlich, Erdmann, Erlenmeyer e Bunsen. Mendeleev viera da Rússia e a Itália enviara Cannizzaro. A Química foi esquecida no jantar de confraternização. No dia seguinte, os trabalhos tiveram lugar e entraram em pauta questões formuladas por um comitê composto por Béchamp (chairman), Canizzaro, Erdman, Fresenius, Kekulé, Schischkoff, Strecker e Wurtz. As questões abordadas versavam sobre átomos, moléculas, radicais e equivalentes e discussões foram iniciadas com as colocações de Na última seção do Congresso, Canizzaro defendeu as idéias de Gerhardt, que segundo ele, tinham como fonte a Teoria de Avogrado-Ampère. Sendo um profundo conhecedor desta teoria, Canizzaro teceu argumentos a seu favor e, além de frisar as diferenças existentes entre as idéias de Berzelius e aquelas de Avogadro, Ampère e Gerhardt, rogou pela adoção de pesos atômicos baseados nos princípios desta teoria. Os debates seguiram-se, opiniões conflituosas foram emitidas, e o Congresso foi encerrado com um Mendeleev certo ar de incerteza. Deve parecer aos seus olhos que o mesmo foi um fracasso. No entanto, graças a uma atitude tomada por Angelo Pavesi, amigo de Cannizzaro, o Congresso rendeu bons frutos. Ele 8 distribuiu entre os presentes, cópias de um artigo de Cannizzaro, Sunto di um Corso di Filosofia Chimica, publicado em 1858 na revista Il Nuovo Cimento, no qual era enfatizada a importância das distinções entre átomo e molécula, feitas por Avogadro, para a interpretação de fenômenos químicos. Certamente, uma boa parte das cópias foi descartada em alguma lata de lixo. No entanto, alguns dos participantes do Congresso leram com atenção o seu conteúdo, entre eles Mendeleev e Lothar Meyer. Este último utilizou as sugestões de Cannizzaro como base para o seu livro “Die Modernen Theorien der Chemie”. Outras conseqüências da defesa de Cannizzaro sobre as idéias de Avogadro se fizeram notar nos anos seguintes: Odling inclui os pesos atômicos sugeridos por Avogadro em um manual de Química e Hermann Kopp, reconhecido historiador da época, que não havia sequer escutado falar de Avogadro até então, o mencionou em uma nova edição do seu livro. Assim, não é coerente subestimar o impacto dos eventos desencadeados a partir do Congresso de Karlsruhe com a apresentação da Hipótese de Avogadro. As confusões relacionadas ao peso atômico desapareceram quase completamente nos anos seguintes e os pesos moleculares passaram a ser estabelecidos com maior certeza. Podendo contar com a possibilidade de determinação correta das fórmulas moleculares, os passos na direção do estabelecimento da Química Estrutural se deram de forma mais bem sucedida. Na Química Orgânica, os trabalhos de Kekulé, Couper e Butlerov destacaram-se entre os demais, estabelecendo as bases para a estrutura dos compostos orgânicos. Na Química Inorgânica, os trabalhos de Sophus Jorgensen e Alfred Werner levaram ao entendimento das estruturas dos Compostos de Coordenação, que você estudará futuramente no seu curso de Química. 9 QUESTÕES SOBRE O CONTEÚDO DO GUIA DE ESTUDOS PARA DISCUSSÕES EM SALA DE AULA Q.1 – Observe a lista com o nome dos químicos no rodapé da folha. Você reconhece algum deles? Se sim, qual deles? Quando e como você tomou conhecimento da sua existência? Q.2 – Existe alguma(s) qualidade(s) que você costuma associar a um cientista? Qual (is)? Q.3 – Nesta introdução você encontra Kekulé organizando um evento. ● Esta é uma atividade que você costuma associar ao trabalho de um cientista? Se você tivesse que contar para alguém sobre as atividades que os cientistas desempenham, qual(is) você mencionaria? Q.4 – Falamos sobre a realização do Primeiro Congresso Internacional de Química. ●Você já participou de alguma congresso/evento científico? Qual? ● Se não participou, como você imagina que sejam estes eventos? ● Você acha que estes eventos são importantes para o progresso da ciência? Por que? Q.5 – Falamos neste parágrafo sobre a inexistência de consenso sobre o sistema de pesos atômicos no início do século XIX. ●A ciência consegue progredir sem a existência de consenso? ●Quais são as etapas que costumam ser seguidas antes do estabelecimento de um consenso na comunidade científica? Q.6 – Quais problemas você consegue imaginar que poderiam ser decorrentes da falta de acordo entre os pesos atômicos dos elementos. Use a sua imaginação e o seu senso de humor !! (Se quiser, desenhe ou faça esquemas para melhor ilustrar as suas idéias). Q.7 – Você lembra o que dizia a Teoria Atômica de Dalton? “nascimento” de uma teoria, como a de Dalton? Como você acha que se dá o Q.8 – Você ainda lembra da Lei das Proporções Definidas de Proust? E a lei da Conservação das Massas? Por que elas recebem o nome de LEI e não de TEORIA? Qual a diferença entre elas? Q.9 – Você acha que a saída encontrada por Dalton, de estabelecer de uma regra, a regra da máxima simplicidade para a solução de um problema, é comum na prática dos cientistas? Por que? Q.10 – Neste parágrafo falamos sobre a dificuldade que Dalton encontrou para ter as suas propostas aceitas pela comunidade científica da época. Isto mostra que os cientistas nem sempre concordam entre si. 10 ● Você se recorda de outros exemplos similares ao acima citado, no passado ou no presente da Química? Qual (is)? Q.11 – Como podemos ver, os químicos da época, a exemplo de Dalton, possuíam formação em áreas diferentes. Você tinha conhecimento sobre isto? O que você acha deste tipo de formação? Q.12 – Nestes últimos parágrafos encontram-se expressas idéias diferentes sobre a composição da água, uma delas é a de Dalton (em concordância com Lavoisier) e a outra é de Gay-Lussac. De forma similar, verificamos que a hipótese de Avogadro, que parecia ser uma ponte entre as idéias de Dalton e de Gay-Lussac, não teve grande repercussão na comunidade científica. ● Na sua opinião, quais fatores podem colaborar para que uma hipótese ou teoria seja descartada ou desvalorizada pela comunidade científica? Ou seja, nestas situações, como os cientistas decidem quais hipóteses/teorias devem ser aceitas e quais devem ser rejeitadas? Q.13 – Posicione-se criticamente quanto a esta idéia colocada na Teoria Dualística Eletroquímica de Berzelius. Você concorda com ela? Se não, explique a razão e, se possível, exemplifique. Q.14 – Você consegue identificar em que aspecto a Hipótese de Avogadro contrariava a Teoria Dualística? Q.15 – Você acha que existe alguma correlação entre o que Dalton fez, com relação à sugestão da regra da máxima simplicidade com o que Berzelius fez ao ampliar a sua Teoria Dualística Eletroquímica aos compostos inorgânicos? Justifique a sua resposta. Q.16 – A sua idéia sobre o conceito de “radical” é coincidente com aquela apresentada no texto? Por que? Q.17 – Escreva a sua opinião, da forma mais clara possível, sobre o que você acredita que aconteça nestas situações. Levante suas hipóteses, se for o caso. Q.18 – O que você acha que significou para Berzelius o fato da Teoria dos Radicais estar, àquela época, começando a se estabelecer e a ser reconhecida pela comunidade científica? Q.19 – O que você achou da atitude dele diante do fato acima mencionado? Era uma atitude esperada por você, ou ela o(a) surpreendeu? 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BENFEY, O. T. Kekulé – Couper centennial – Introduction. Journal of Chemical Education, vol. 36, n. 7, pp. 319 – 320, 1959. 2. BERNATOWICZ, A. Dalton’s Rule of Simplicity. Journal of Chemical Education, vol. 47, n. 8, pp. 577 – 579, 1970. 3. BROWN, H. C. Foundations of the Structural Theory. Journal of Chemical Education, vol. 36, n. 3, pp. 104 – 109, 1959. 4. BROCK, W. H. 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