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GUSTAVO FERREIRA MARTINS GOMES Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme MARÍLIA 2005 GUSTAVO FERREIRA MARTINS GOMES Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UNIMAR – Universidade de Marília para obtenção do grau de mestre em Comunicação. Área de concentração: Mídia e Cultura. Linha de Pesquisa: Ficção na Mídia Orientador: Prof. Dr. Romildo Sant’Anna MARÍLIA 2005 UNIVERSIDADE DE MARÍLIA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E TURISMO REITOR: Márcio Mesquita Serva PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO: COORDENADORA: Professora Doutora Suely Fadul Villibor Flory ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Mídia e Cultura LINHA DE PESQUISA: Ficção na Mídia ORIENTADOR: Professor Doutor Romildo Sant'Anna G633c GOMES, Gustavo Ferreira Martins Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme / Gustavo Ferreira Martins Gomes. – Marília : Unimar, 2005. 116f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Comunicação, Educação e Turismo da Universidade de Marília, 2005. 1. Mídia 2. Cinema 3. Futuro 4. Linguagem não-verbal I. Gomes, Gustavo Ferreira Martins II. Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme CDD – 302.23 Comunicação do espaço futuro: Brazil, o filme Autor: Gustavo Ferreira Martins Gomes Orientador: Professor Doutor Romildo Sant'Anna Aprovado pela Comissão Examinadora __________________________________________________________ ORIENTADOR: Professor Doutor Romildo Sant'Anna __________________________________________________________ Professor Doutor Álvaro Hattnher __________________________________________________________ Professor Doutor Antônio Manoel dos Santos Silva Data da Apresentação: 21 de novembro de 2005. Dedico este trabalho a Eli Maria de Freitas Ferreira, a mulher que me ensinou a gostar de saber. Agradeço Ao meu orientador, Prof. Dr. Romildo Sant’Anna, que me desafiou, me iluminou caminhos e que, sobretudo, por ser “brasileiro, neto de pataxó”, nunca desistiu de mim, mesmo nos meus momentos menos criativos e produtivos; A todos os meus professores e colegas no curso de mestrado que, direta ou indiretamente, me ajudaram a cumprir este caminho; Às pessoas próximas que me incentivaram acreditando em mim muitas vezes mais do que eu mesmo. Ao meu irmão Ricardo quem me ensinou a importância dos letreiros finais dos filmes e que, sendo sempre melhor que eu em tudo, me desafiou a crescer. Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh, malentendido cruel e desnecessário! Oh, teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gim escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograra a vitória sobre si mesmo. Amava o Grande Irmão. George Orwell, 1984, [último parágrafo] p.277 “Nossa época é a primeira na História a prestar tanta atenção ao futuro – o que é irônico, considerando que podemos não ter futuro nenhum.” Arthur C. Clarke No entiendo eso, replicó Sancho; sólo entiendo que, en tanto que duermo, ni tengo temor, ni esperanza, ni trabajo, ni gloria; y bien haya el que inventó el sueño, capa que cubre todos los humanos pensamientos, manjar que quita la hambre, agua que ahuyenta la sed, fuego que calienta el frío, frío que templa el ardor, y, finalmente, moneda general con que todas las cosas se compran, balanza y peso que iguala al pastor con el rey y al simple con el discreto. Sola una cosa tiene mala el sueño, según he oído decir, y es que se parece a la muerte, pues de un dormido a un muerto hay muy poca diferencia. Miguel de Cervantes. Don Quijote de la Mancha. Capítulo LXVIII. Tema: Comunicação não-verbal e imaginário no cinema sobre o futuro. Resumo: Este estudo analisa e investiga, baseado em teorias da Comunicação, como e quanto a linguagem da cenografia – representação da arquitetura, do design e do urbanismo – auxilia e/ou determina a construção da idéia de futuro apresentada em filmes de cinema ambientados nesse tempo. Verificando se a linguagem não-verbal – cenografia – é coerente com a linguagem verbal – script – podem ser analisadas as aplicações de diversas teorias da Comunicação. A escolha da mídia "cinema" se deveu à sua universalidade, tanto de produção quanto de recepção, e a definição pelo recorte da ficção científica ambientada no futuro partiu do pressuposto de que essa idéia temporal está ligada à ancestralidade humana (onírico, lúdico, mítico, místico). Além de lançar luz sobre as verificações do conceito de verossimilhança nas linguagens cinematográficas e investigar a relação da mídia "cinema" com as teorias mais atuais de mass media, o estudo permitiu, também, uma discussão sobre a linguagem/comunicação arquitetônica a partir dos significados de seus elementos apresentados na cenografia estudada. O filme escolhido como corpus da pesquisa foi Brazil, o filme, de Terry Gilliam, de 1985. Palavras-chave: mídias, cinema, futuro, linguagem não-verbal. Abstract: Based in communication theories, this study analyses and investigates how and how much the scenographic language – architecture, design and town planning representation – helps and/or determines the construction of the idea of future presented in films. If the non-verbal language – the scenography – is coherent with the verbal one – the script -, the application of various theories of communication can be analyzed. The study chose 'cinema' as the media to be analyzed, due to its universality, which encompasses both production and reception. The focus on science fiction set in the future is based on the assumption that this temporal idea is linked to the human ancestrallity (oneiric, ludic, mythical, mystic). Besides throwing light on the concept of verisimilitude in the cinematographic languages and investigating the relation of the media 'cinema' with current mass media theories, this study will allow a discussion on the architectural language/communication from the meaning of its elements presented in the studied scenography. The film used as analytical object was Terry Gilliam's Brazil (1985). Keywords: media, cinema, future, non-verbal language. Sumário I. Introdução ________________________________________________ 09 II. Brazil, o Filme _____________________________________________ 18 II.1. O que é Brazil _________________________________________ 19 II.2. Terry Gilliam __________________________________________ 20 II.3. Rupturas em Brazil _____________________________________ 22 II.3.1. Final Infeliz _________________________________________ 23 II.3.2. Onde e Quando _____________________________________ 24 II.3.3. Aquarela do Brazil ___________________________________ 25 II.3.4. Bug no Sistema _____________________________________ 28 II.3.5. Arquitetura e Design _________________________________ 30 II.3.6. Sonhos e Pesadelos _________________________________ 32 II.3.7. Breves Leituras _____________________________________ 39 III. Propaganda Ideológica: a Construção da Idéia de Futuro_________ 48 III.1. Propaganda Ideológica no Futuro ________________________ 49 III.1.1 O que é Propaganda Ideológica________________________ 50 III.1.2. Propaganda Ideológica na Literatura de Ficção Científica__ 51 III.1.3. Propaganda Ideológica no Cinema de Ficção Científica ___ 53 III.2. Propaganda Ideológica em Brazil _________________________ 54 III.2.1. Cartazes em Brazil___________________________________ 55 III.2.2. O Prólogo: “Quero lhe falar sobre Tubos” _______________ 61 IV. Arquitetura: a Idéia de Futuro na Construção ___________________ 66 IV.1. Análise da arquitetura em Brazil __________________________ 70 IV.1.1. As residências ______________________________________ 71 IV.1.2. Os locais de Trabalho ________________________________ 77 IV.1.3. Os espaços públicos_________________________________ 83 IV.1.4. Os espaços externos ________________________________ 88 IV.1.5. A sala de “confissões” ______________________________ 93 IV.2. O futuro é Barroco? ____________________________________ 96 V. Considerações Finais _______________________________________ 101 Ficha Técnica (Brazil, o filme) ____________________________________ 109 Lista de Figuras________________________________________________ 111 Referências Bibliográficas _______________________________________ 113 Referências Filmográficas _______________________________________ 116 9 I. Introdução O cenário, mais que um pano de fundo de natureza plástica ou ornamental, deve ser expressão do ser, interagir com os elementos significacionais que corporificam o discurso cinematográfico. Estrutura-se basicamente de elementos arquitetônicos, aí se incluindo não só as formas da engenharia (paredes, colunas, vigas, telhados) como as texturas, elementos cromáticos realçados pela luz, a disposição interna dos objetos no ambiente e elementos decorativos que, enfim, constituem a arquitetura como linguagem. Ela "conta" quem o personagem é, o que ele sente, em que tempo psicológico ou cronológico ele vive. Comunica como a criatura projeta para si e para o outro o sonho de si, no passado, no presente e no futuro. O cenário, ou arquitetura cinematográfica, é elemento discursivo no mundo da criação coletiva que constitui o cinema. Simbolizador do ser e estar no mundo, constitui o cerne o íntimo, o espaço como ninho, e configura a existência do indivíduo, da sociedade e instituições políticas e seus desejos, realidades, sonhos e ideologias. A proposta que motivou este trabalho surgiu de uma provocação, em 1984, quando foi sugerida uma reflexão sobre mídias na disciplina “Teoria da Informação e Percepção”, em meu primeiro ano do curso de Arquitetura, na Universidade Mackenzie. À época, o filme Blade Runner (1982 – direção de Ridley Scott), havia mostrado um futuro assustador e opressivo, inovando em linguagem, mas apresentando uma leitura pessimista em relação ao futuro já presente em obras cinematográficas do início daquele século, como Metrópolis. O impacto das imagens do filme sugeriu a idéia de se analisar a evolução do conceito de futuro através do tempo, retratado na arquitetura como cenário em obras cinematográficas. Pretendeu-se analisar a arquitetura – e, conseqüentemente, os espaços urbanos e objetos que ambientam os filmes de ficção científica e as mensagens culturais, sociais e artísticas contidas nessa linguagem arquitetônica. Ela é parte integrante e fundamental da comunicação não-verbal no cinema: a cenografia. Considerando que toda materialização do conceito de futuro parte da elaboração criativa, por parte do autor, de um processo de desenvolvimento a partir do momento da criação, envolvendo toda a bagagem cultural, social, política e científica 10 adquirida, percebe-se que tal “imagem” do futuro não é apenas fruto de processos adivinhatórios ou fantasiosos, tendo vínculos com o presente e com o passado recente, sendo uma reprodução ampliada e, às vezes, exagerada destes. As afirmações anteriores embasam-se na observação de que, através do século XX, o cinema teve inúmeras obras marcantes ambientadas no futuro e, de maneira geral, mostram projeções diversas, abrangendo visões otimistas, pessimistas, irônicas e céticas. Numa observação mais apurada, nota-se existir uma evolução dessas visões e, de certa forma, as obras contemporâneas têm semelhanças marcantes sob esse ponto de vista. O estudo buscou verificar se existe uma coerência, dentro do conceito de verossimilhança, entre a linguagem verbal e a não-verbal no cinema, quando da construção da idéia de futuro e, então, quais reforços e destaques as imagens dão às mensagens contidas no filme. Essa abordagem, se não é de todo inédita, busca apresentar-se ao que já foi visto, sobre a elaboração do conceito de futuro a partir da análise do processo evolutivo da arquitetura, design e urbanismo, tidos como linguagem, considerando a comunicação do ambiente. A importância desta pesquisa, a nosso ver, estaria em tentar clarear o campo da comunicação do cinema, basicamente sobre aquilo que não é falado, mas que, mais do que em qualquer outra mídia, é fundamental para a mensagem: o cenário como linguagem. A afirmação “uma imagem vale por mil palavras” expressa, como a maioria das sentenças do senso comum, uma realidade parcial: depende de qual imagem e de quais palavras. Um breve aprofundamento na semiologia saussureana ou na semiótica de Pierce é suficiente para referenciar a afirmação acima. Note-se que, (...), o símbolo não é uma coisa singular, mas um geral. Assim são as palavras. Isto é: signos de leis e gerais. A palavra mulher, por exemplo, é um geral. O objeto que ele designa não é esta mulher, aquela mulher ou a mulher do meu vizinho, mas toda e qualquer mulher. O objeto representado pelo símbolo é tão genético quanto o próprio símbolo.1 1 O que é Semiótica, de Lúcia Santaella, p.67 11 Entretanto é natural que sejam necessários alguns parágrafos de texto de Aluísio Azevedo ou de Eça de Queiroz para a descrição minuciosa de um ambiente, o que pode ser expresso em poucos fotogramas. Suely Flory, em Entre textos e códigos, um estudo da abertura de Os Maias: do romance à minissérie, dispõe: O espaço, que se constitui, juntamente com o tempo, como uma das categorias da narrativa, é criado na narrativa verbal através das palavras, o que propicia uma inevitável indeterminação e incerteza, levando o leitor a recriar, em sua mente, as imagens espaciais descritas. A construção fílmica, por outro lado, tem no espaço uma dimensão ampla e complexa. Estabelece-se uma relação isomórfica com os objetos, as paisagens, os figurinos e as dimensões e relações espaciais do mundo real. O espaço em movimento (...) oferece um suporte ao desenvolvimento da sucessão temporal da narrativa, pois a cada espaço corresponde um tempo específico, possibilitando leituras e interpretações pela proximidade ou superposição de ambientes e cenas, pelos recursos de focalização e abertura, pela demora em objetos e cenários que falam por si, como signos ideológicos que sublinham as características das personagens.2 Mas por que o cinema? Por que, do cinema, a cenografia? E por que, no cinema, a ficção ambientada no futuro? Dentre as mídias, o cinema é talvez a mais global. O mesmo filme, com as mesmas imagens e sons – apenas legendado em casos específicos – é apresentado em todo o mundo, diversas vezes e por longos períodos. Jornais, revistas, rádio e tv têm sempre uma abrangência espacial limitada. Mesmo que a mesma notícia atinja o mundo todo, sempre há interpretações e influências culturais em cada uma das edições feitas localmente, e sempre existe o rápido consumo e obsolescência da informação. Essa universalidade do cinema provoca uma forte capacidade de homogeneização da informação, característica única e diferencial. O direcionamento do foco do trabalho para a cenografia se justifica na medida em que a quantidade de informações visuais no filme gera intertextos múltiplos que, talvez, por esta inerente complexidade, ainda merecem análises e interpretações. 2 Entre textos e códigos, um estudo da abertura de Os Maias: do romance à minissérie, de Suely Flory, in Comunicação: Veredas, p.114 12 A decisão pelo corte, no assunto, destacando filmes ambientados no futuro se deve à compreensão de que as projeções e assunções que levam ao estabelecimento do conceito de futuro nascem do onírico, do lúdico, dos temores e dos mitos. Esta ligação do conceito de futuro com a ancestralidade humana foi verificada e analisada quanto à possível geração de uma idéia universal de futuro. Dentre os estudos realizados sobre os temas cinema, comunicação e futuro, existem várias abordagens, inclusive complementares, que dão conta da prática cinematográfica, das linguagens verbais e não-verbais na mídia, da comunicação do ambiente, das referências visuais para construção do conceito de futuro. Falta, no conjunto desses estudos, entretanto, uma definição da participação do cinema, enquanto mídia, na construção ideológica do "poderia ser" e, conseqüentemente, sua influência direta na sociedade atual (ou na época da execução do filme). Pelo menos dois textos, de arquitetos, abordam o tema da Arquitetura como cenário no cinema. Lineu Castello, na palestra Meu tio era um blade runner: ascensão e queda da arquitetura moderna no cinema, discute a modernidade apresentada no cinema, as influências deste moderno na sociedade e as extrapolações do presente necessárias para se construir o futuro: ... a constante autocrítica que a Arquitetura se vê incitada a praticar ao se deparar com as representações que dela faz o cinema, não pode parar e todos os esforços de pesquisa devem se voltar a realimentá-la na direção de uma constante evolução, mais do que para a revolução que quis ser o modernismo na Arquitetura e Urbanismo. 3 Daniel Mangabeira da Vinha, no ensaio A participação da Arquitetura na construção da idéia de futuro, transmitida pela sétima arte, verifica o quanto a cenografia consegue influenciar na concepção do futuro apresentado no cinema e sugere uma discussão sobre um possível feed-back: Propondo o caos como forma inevitável de finalização de uma sociedade, um cineasta pode propor à mesma que se reorganize para evitar o inevitável. Foi assim com ‘Metrópolis’ e é assim com ‘Blade Runner’. Este tipo de 3 Meu tio era um blade runner: ascensão e queda da arquitetura moderna no cinema, de Lineu Castello, http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq024/arq024_03.asp 13 questionamento que pode ser até imperceptível ao olho leigo é, na verdade, uma profusão de idéias loucas e desvairadas, mas desmontam e se fixam em um lugar que podemos chamar de presente. O presente é o passado do futuro. 4 Ambos os estudos apontam caminhos para uma visão das linguagens nãoverbais no cinema, mas se concentram na Arquitetura moderna e suas teorias, talvez incorrendo em um desvio em que não se percebe a Arquitetura como sendo a expressão artística que menos se isola no tempo-espaço. Não é apropriada, apesar de possível e usual, a análise de uma obra arquitetônica isolada, sem buscar compreender os diálogos dessa obra com seu entorno, tanto físico quanto histórico. Não se tem, como que numa parede de museu, uma igreja gótica isolada, distante de seus diálogos com o supermercado em frente, com os veículos velozes na avenida lateral ou com o semáforo piscando seu eterno verde-amarelo-vermelho na esquina. Portanto, a visão que se pretende neste trabalho é a mais abrangente possível quanto às riquezas de justaposições de espaços – cheios/vazios -, objetos, luzes/sombras e o arremate geral deste quebra-cabeças visual, o Urbanismo. A riqueza que se quer atingir é a da conversa das arquiteturas atuais e antigas – todas presentes uma vez que utilizadas – e a percepção de que a criação de um ambiente pode ter seu recorte cronológico/histórico, mas é o seu uso adaptado no presente que vai comunicar sobre a sociedade inserida neste espaço. Tambien el centro de nuestras ciudades es con frecuencia un lugar popular de choques y negociaciones culturales entre el tiempo homogéneo y monótono de la modernidad y el de otros calendarios, los estacionales, los de las cosechas, los religiosos. 5 Tanto Jesús Martin Barbero quanto Manuel Castells tratam da comunicação do ambiente sob o paradigma informacional discutindo os fluxos e a rede de informações que (re)dimensionaram a relação espaço-tempo. Em A sociedade em 4 A participação da Arquitetura na construção da idéia de futuro, transmitida pela sétima arte, de Daniel Mangabeira da Vinha, http://www.unb.br/centros/cafau/art1/art1cinema.html 5 . La ciudad virtual. Transformaciones de la sensibilidad y nuevos escenarios de comunicación, de Jesús Martin Barbero, p.29 14 Rede, Castells aprofunda-se no desenvolvimento de uma sociedade baseada na comunicação em rede e analisa as novas configurações das relações que influenciam até o Urbanismo e o crescimento das megalópolis. Barbero, no texto já citado (La ciudad virtual) e em Os exercícios do ver – em co-autoria com Germán Rey – enfoca os novos cenários de comunicação e discute o ‘ver’ como parâmetro conceitual dos vínculos da cidadania com a comunicação e as mídias. Ainda sobre a comunicação do ambiente, a simbologia e a informação do espaço e dos objetos, Gaston Bachelard, em A poética do espaço, conceitua e reflete sobre a poesia da imagem e imagem da poesia. Bachelard tem como contraponto e/ou reafirmação Mircea Eliade que, em Imagens e símbolos, trata das ligações entre imagens, mitos e símbolos e as modalidades do ser. Na última década foram realizadas algumas pesquisas bastante enriquecedoras e que devem ser refletidas no presente trabalho. João Oswaldo Leiva Filho, em B-a-ba cinematográfico6 (Dissertação de Mestrado), discorre sobre a importância do processo de elaboração de uma linguagem no cinema. Fernão V. P. de Almeida Ramos aborda, em sua Tese de Doutorado Imagens em movimento: fruição espectorial no horizonte da presença7, as condições que de fato envolvem a produção de uma imagem em movimento, analisando sua forma e fruição correspondentes. A Tese de Doutorado Sociedade reconciliada: a utopia do século XXI. A produção de significação no imaginário do cinema contemporâneo8, de Nizia Maria Alvarenga estuda as tendências que estão se desenhando a partir do processo de mudanças sociais em curso no conjunto das sociedades capitalistas ocidentais, por meio do cinema. Márcia Cristina Marques Martins Ramos, em sua Dissertação de Mestrado Elementos cenográficos nos filmes de Hitchcock: Os pássaros e Um corpo que cai9, investiga a participação dos elementos cenográficos na narrativa de um filme e na construção da poética de um autor, pressupondo identificá-los, considerando suas articulações com os demais componentes na estrutura fílmica. O duplo e o simulacro em Blade Runner e Matrix10, Dissertação de Mestrado de Maurício Vedovato, busca os 6 Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 26/11/1991 Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 15/05/1992 8 Faculdade De Filosofia, Letras e Ciencias Humanas - USP. Defesa em 16/10/1995 9 Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 17/12/1999 10 Escola de Comunicações e Artes - USP. Defesa em 27/02/2003 7 15 principais momentos em que o duplo e o simulacro vêm à tona nos dois filmes, discutindo as estratégias utilizadas para que esses temas surjam. Para se obter uma visão panorâmica – histórica e conceitual – do cinema como arte e como indústria cultural, foram verificadas as visões de Noel Burch, em Práxis do cinema, e de Antônio Costa, em Compreender o cinema. O livro Teoria da comunicação de massa, de De Fleur e Ball-Rokeach, apresenta, no capítulo “desenvolvimento do cinema”, um histórico desta mídia cuja visão é complementada e ampliada com a análise do código cinematográfico feita por Umberto Eco, em A estrutura ausente. Eco afirma: A comunicação fílmica é a que melhor permite verificar certas hipóteses e assunções do capítulo precedente. (articulação dos códigos visuais) 11 O ensaísta e escritor italiano desenvolve, então, um estudo da semiologia da Arquitetura: Se virmos na Semiologia não apenas a ciência dos sistemas de signos reconhecidos como tais, mas a ciência que estuda todos os fenômenos da cultura como se fossem sistemas de signos – baseando-nos na hipótese de que, na realidade, todos os fenômenos de cultura sejam sistemas de signos, isto é, que a cultura seja essencialmente comunicação - , verificaremos que um dos setores onde ela tem sido mais desafiada pela realidade que procura dominar é o da Arquitetura. 12 Sua contribuição ao estudo inclui uma relação espaço-tempo inovadora: (...) a atividade lúdica de redescobrir significados para as coisas, ao invés de exercitar-nos numa fácil filologia em relação ao passado, implica uma invenção (não uma redescoberta) de códigos novos. O salto para trás transforma- 11 12 A estrutura ausente, de Umberto Eco. p.139 op.cit. , de Umberto Eco. p.187 16 se em salto para frente. A história, de ilusão cíclica, passa a ser projetação do futuro. 13 Essa abordagem da semiologia da Arquitetura é enriquecida pela visão da tese de livre-docência de Décio Pignatari, Por um pensamento icônico: semiótica da arte e do ambiente urbano. Ambas são questionadas, todavia, por Milton José Pinto que afirma, em Comunicação e Discursos: A análise de discursos defende a idéia de que qualquer imagem, mesmo isolada de qualquer outro sistema semiótico, deve ser sempre considerada como sendo um discurso, recusando a categoria de ‘signos icônicos’ ou ‘ícones’ em que são em geral classificadas pelos semiólogos.14 Apesar de o presente estudo não privilegiar o enfoque da Arquitetura como processo construtivo, evitando a característica gramatical desta linguagem, mas investigando seu aspecto comunicacional, é necessário identificar diacronicamente a Arquitetura. Dois autores clássicos italianos contribuem para este reconhecimento. Bruno Zevi, em Saber ver a Arquitetura, e Manfredi Tafuri, em Teorias e Histórias da Arquitetura alimentarão este relato. Uma outra aproximação diferenciada do tema e, portanto, enriquecedora, é apresentada pelo geógrafo Jorge Luiz Barbosa que, em sua tese de doutorado As paisagens crepusculares da ficção-científica: a elegia das utopias urbanas do modernismo, faz uma reflexão crítica do modo de estar e ser urbano, tendo na relação paisagem-imagem seu fundamento principal de investigação. Objetivo geral deste trabalho, portanto, será analisar e investigar como e quanto a linguagem da cenografia auxilia e/ou determina a construção da idéia de futuro nos filmes de cinema ambientados no futuro. Os objetivos específicos são: • 13 14 Investigar o conceito de futuro. op.cit. , de Umberto Eco. p.214 Comunicação e Discursos, de Milton José Pinto. p.37 17 • Estudar o conceito de verossimilhança na linguagem não-verbal da cenografia no cinema. • Analisar a comunicação do ambiente – Arquitetura e Urbanismo – e sua relação com a mídia. O Trabalho desenvolve-se, então, ao longo de três capítulos – além da Introdução e das Considerações Finais. No primeiro, apresenta-se o motivo pelo qual o recorte do corpus do trabalho foi tão específico, ao escolher-se apenas um filme – Brazil, o filme (Estados Unidos, Brazil, direção de Terry Gilliam, 1985) – para se aprofundar o estudo. Um pouco da história da criação do filme e a importância da vida do diretor no resultado do filme também são apresentados. Ainda no primeiro, são discutidos aspectos fundamentais da narrativa do filme que constroem a riqueza poética da obra. No segundo já se começa a discutir a construção da idéia de futuro dentro de Brazil partindo-se para a análise da propaganda ideológica presente na narrativa. No terceiro, discute-se a importância da Arquitetura na construção da idéia de futuro, com enfoque na cenografia do filme estudado para a verificação das teses apresentadas. 18 II. Brazil, o filme No universo do cinema do século XX, existem, pelo menos, 20 ou 30 obras de grande impacto que tratam da vida humana em tempos vindouros e que mereceriam um aprofundamento do estudo. Qual, então, o critério a se definir para estabelecer o corte para estudo? O primeiro impulso foi estudar aquele filme que despertou em mim o desejo de entender os realizadores de filmes, no estabelecimento de uma “arte do futuro”, fruto de uma “sociedade do futuro”: Blade Runner, o Caçador de Andróides (Estados Unidos, Blade Runner, direção de Ridley Scott, 1982). Aos dezoito anos, preparando-me para o curso de Arquitetura, a Arquitetura e o Urbanismo apresentados em Blade Runner me marcaram profundamente. Este impacto provocou o interesse pelo gênero ficção científica, especialmente no cinema, e ambientados no futuro. Vinte e dois anos após este impacto, e mil filmes depois, estou escrevendo, afinal, esta dissertação, com a consciência de que existem alguns elementos que se encontram em quase todos e que interligam os filmes de ficção ambientados em tempos que hão de vir. Apesar de correr um grande risco, atrevo-me à generalização ao enumerar elementos encontráveis em quase todos esses filmes. Em seus enredos existe sempre uma ordem social, aceita e imposta pela maioria, a qual é desafiada ou subvertida por um elemento dissidente, consciente do perigo desta “ordem” para a humanidade. Esta ordem a ser desafiada é de fato a representação dos principais temores humanos à época da realização do filme. Assim, temos a máquina1 (industrialização) como o vilão do começo do século XX. Ao longo do século, vemos, então, desfilarem os 'novos’ vilões: guerra-guerra fria, autoritarismo2, controle da liberdade individual3, pesquisas científicas4, computadores5, violência urbana6, 1 p.e. Metropolis(Alemanha, Metropolis, dir. Fritz Lang, 1926); Tempos Modernos (EUA, Modern Times, dir. Charles Chaplin, 1936). 2 p.e. Farenheit 451 (França, Farenheit 451, dir. François Truffaut, 1966). 3 p.e. Alphaville (França, Alphaville, dir. Jean-Luc Goddard, 1965). 4 p.e. Solaris (União Soviética, Solaris, Andrei Tarkovsky, 1972); A Máquina do Tempo (EUA, Time Machind, dir. George Pal, 1960). 5 p.e. Alphaville,; 2001, uma odisséia no espaço (EUA, 2001: A Space Odissey, dir. Stanley Kubrick, 1968). 6 p.e. Laranja Mecânica, (Inglaterra, A Clorkwork Orange, dir. Stanley Kubrick, 1971); Rollerball, Os Gladiadores do Futuro (EUA, Rollerball, dir. Norman Jewison, 1975). 19 manipulação genética7, devastação ambiental8, clonagem9, inteligência artificial10, mundos virtuais11. O desafio à “ordem” é um “aviso” do realizador do filme à humanidade. Quase todos os filmes são “iguais” em mensagem, mas como diz a personagem Lisbela, em Lisbela e o Prisioneiro (Brasil, direção de Guel Arraes, 2004), “o que importa não é o quê, é o como”. Portanto, o critério que adotei para estudo detalhado da construção do futuro foi encontrar o filme cujo “como” se revestisse de mais elementos poéticos e mais “contaminação” artística. Quase que intuitivamente, a pesquisa foi gradativamente me levando para o aprofundamento em Brazil, o Filme, de Terry Gilliam, de 1985. A princípio, este era apenas um dos filmes a se analisar, mas a pesquisa acurada levou a descobertas muito enriquecedoras e o foco do trabalho foi apontando para a obra de Terry Gilliam. II.1. O que é Brazil Afinal, o que é Brazil? As distribuidoras de cinema, vídeo e dvd, no Brasil, classificaram Brazil, o Filme como aventura. No exterior, há críticos que divergem e classificam o filme como comédia, aventura, ação ou ficção científica. O motivo dessa divergência é compreendido logo nos primeiros momentos do filme. É comédia, pois o humor negro está o tempo todo presente na tela. É ação ou aventura, pois há perseguição, explosões, “mocinhos e bandidos” (apesar de não se ter certeza de quem é o mocinho e quem é o bandido). Há romance, também. Há ficção científica pois, aparentemente, a ação se passa no futuro. Mas este é apenas um dos grandes jogos propostos: quando e onde se passa o filme? Não é no Brasil. Este é mais um dos jogos. Vamos à sinopse do Guia de Vídeo e DVD 2003: 7 p.e. THX 1138 (EUA, THX 1138, dir. George Lucas, 1971). p.e. Mad Max (Austrália, Mad Max, dir. George Miller, 1981); Duna (EUA, Dune, dir. David Lynch, 1984). 9 p.e. Blade Runner, o Caçador de Andróides. 10 p.e. A.I. - Inteligência Artificial (EUA, A. I., dir. Steven Spielberg, 2001). 11 p.e. Matrix (EUA, Matrix, dir. Larry & Andy Wachowski, 1999) 8 20 Brazil, o Filme (Brazil, 1985, EUA) Direção: Terry Gilliam. Com: Jonathan Pryce, Kim Greist, Robert De Niro, Katherine Helmond, Ian Holm. Numa sociedade do futuro, burocrata aceita promoção e desafia o rígido controle estatal para proteger sua amada, perseguida injustamente pelo sistema. Gilliam (Os Doze Macacos) realizou um instigante e perturbador cruzamento entre ficção científica e comédia de humor negro com essa produção estilizada, cuja direção de arte, fotografia e figurinos são impecáveis. O rigoroso acabamento formal serve de moldura para uma também rigorosa crítica aos sistemas totalitaristas, com evidente parentesco do clássico 1984, de George Orwell. O elenco, com Jonathan Price e de Niro à frente, é outro dos muitos destaques do filme. 131 min. Flash Star. Aventura. 12 É importante situar e contextualizar o filme. Para isto, é fundamental focalizar o diretor, que além de dirigir, propôs o argumento, interagiu com o roteirista, definiu a trilha sonora, opinou no casting e participou ativamente em quase toda a criação da parafernália visual desenvolvida para o cenário e figurino. II.2. Terry Gilliam Terry Vance Gilliam, americano, nascido em 1940, em Minneapolis, formou, de 1969 a 1974, junto com cinco ingleses, o grupo Monty Python que apresentava o programa Monty Python’s Flying Circus na BBC inglesa. No grupo, todos se revezavam como roteiristas e atores e o programa por eles criado revolucionou o humor britânico de forma indelével. Os sketches criados pelo grupo utilizavam o humor negro, o non-sense, e muita provocação com o status quo, a burocracia e a família real. A partir de 1974, o grupo iniciou a realização de filmes de longametragem para o cinema, produzindo Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (Inglaterra, Monty Python and the Holy Grail, 1974), parodiando as aventuras durante as Cruzadas, A Vida de Brian (Inglaterra, Monty Python's Life of Brian, 1979), sobre 12 Guia de vídeo e DVD 2003, Editora Nova Cultural, p.94 21 um homem que nasce na manjedoura ao lado da de Jesus e é confundido com o messias, O Sentido da Vida (Inglaterra, Monty Python's The Meaning of Life, 1983), em que várias maneiras possíveis de enxergar a vida são apresentadas em sketches, além de outros filmes feitos a partir da gravação de shows do grupo. Assim como os demais do grupo, Terry Gilliam lançou-se em carreira solo e realizou os filmes Jabberwocky, um Herói por Acaso (Inglaterra, Jabberwocky,1977), uma comédia situada na Idade Média; Os bandidos do tempo (Inglaterra, Time Bandits, 1981), um exercício humorístico de viagens no tempo; Brazil, o Filme; As Aventuras do Barão de Münchausen (Inglaterra, Alemanha, Itália, The Adventures of Baron Münchausen, 1989), uma refilmagem da história de um barão tentando salvar sua cidade sitiada pelos turcos; Os Doze Macacos (EUA, 12 Monkeys,1995), uma das melhores concepções para viagens no tempo; e Medo e Delírio (EUA, Fear and Loathing in Las Vegas, 1998), um filme corajoso e irreverente sobre a decadência da sociedade americana. Percebe-se em Terry Gilliam uma tendência recorrente sobre viagens no tempo e caracterizações de época tanto para o passado quanto para o futuro. O ponto de partida para Brazil, o Filme foi a visão de Gilliam de uma cena em Port Talbot, uma cidade em Gales produtora de minério de ferro. Toda a cidade é coberta de um pó cinza do minério, inclusive a praia. Gilliam viu na praia um homem sentado nesta areia cinza, ouvindo a canção Brazil13 em um rádio portátil. A idéia de uma música conseguir deixar, para o ouvinte, o mundo menos cinza provocou Gilliam a criar um filme sobre um personagem que através de seus sonhos escapa da vida burocratizada e sistemática em que vive. 13 Brazil, versão (1943), em inglês, da canção “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (1939). 22 II.3. Rupturas em Brazil A poética - que também pode ser chamada de função estética, ou simplesmente Arte, conforme o autor, filósofo, teórico ou crítico14 - é, pois, a pedra de toque que destaca Brazil, o Filme, das demais obras de cinema para esta análise. O que distingue uma obra, fruto da engenhosidade humana, de uma outra qualquer, fazendo com que seja considerada “arte” é um processo que me atrevo a chamar de Traição & Recompensa. Todas as relações humanas são pautadas pela definição de códigos, leis, tratos, contratos, os quais são estabelecidos para garantir padrões de comportamento e permitir a convivência segura entre seres com desejos e necessidades diferentes. Qualquer atentado ou ruptura de um código configura, então, uma traição a um acordo prévio. A evolução cultural humana15 depende da expansão das fronteiras do pensamento e esta só é atingida por meio da alteração na forma de olhar o mundo. Evolução é mudança. Mas mudança é justamente o que é combatido pelos códigos. Sendo assim, a traição ao código é essencial à evolução. Entretanto, como afirmei, a poética é um processo, não um ato. A traição é apenas parte desse processo. Se a ruptura do código se encerra em si mesma é inócua, é frágil – mais frágil que o código – e resulta julgamento e punição. O que completa o processo poético é a recompensa. Quando a ruptura do código provoca um desvio, este “novo caminho”, paralelo ao código, produz a ambigüidade. Este duplo sentido, que transforma o olhar sobre o código, amplia a possibilidade de comportamento. Instaura-se uma dúvida sobre a validade única da verdade estabelecida pelo código. Na resolução do enigma entre qual caminho é o correto é que se expandem as fronteiras, pois, da aceitação de um “novo caminho” como “também correto” e alternativo é que surge o sentimento de recompensa. Atrevo-me a dizer que é esse processo, onde uma traição é “indenizada” por uma recompensa, produzindo evolução cultural, o que se denomina Poética. 14 A distinção entre as acepções destes conceitos é tão tênue que, às vezes, o preciosismo necessário para diferenciá-las tende a desviar o foco da crítica para o fundamental a ser analisado: a expressão humana. 15 Poder-se-ia dizer que não apenas a evolução cultural humana, mas toda evolução da espécie humana ou de qualquer elemento do universo –e até mesmo do próprio – depende de rupturas de paradigmas e alterações de regras, mas este é um assunto que foge da abrangência deste estudo e da capacidade deste estudioso. 23 II.3.1. Final Infeliz A primeira e maior ruptura está na derrota do herói, ao final do filme. Invertendo e subvertendo a maior característica da “narrativa clássica” do cinema hollywoodiano, em Brazil, o herói (ou anti-herói) luta contra o opressor por motivos pessoais (até banais, ao contrário da “grandeza de espírito” associada a um herói) e é derrotado, sem sequer servir de mártir de um objetivo nobre. Esta ruptura, aliás, provocou polêmica entre o diretor e Sidney Sheinberg, o presidente da Universal Studios, a distribuidora do filme para os Estados Unidos. Uma batalha legal foi aberta porque Sheinberg não acreditava no sucesso comercial de um filme sem um happy ending. De posse da versão de Terry Gilliam, editores da Universal realizaram uma nova edição onde o herói conseguiria conquistar sua garota-dos-sonhos e viverem “felizes para sempre”. Gilliam não aceitou este "ultraje" e se utilizou da opinião da crítica especializada para “espalhar” cópias de sua versão, desacreditando a versão em que se passava a mensagem na qual, concordando-se com o sistema, o sonho se torna realidade. A Universal teve que voltar atrás. Entretanto, não investiu em publicidade e lançou o filme em poucos cinemas. O trágico fim, inesperado para uma obra de cinema (pelo menos para a clássica narrativa de Hollywood), não foge, porém, de sua principal influência. A obra dialoga, sem tentar esconder suas raízes, com a obra 1984, de George Orwell (1948). Aliás, não é por coincidência que o filme é rodado em 1984. Antes do título Brazil, Gilliam considerou dar a seu filme o título 1984 e ½, uma alusão direta a sua maior fonte e a uma de suas obras mais amadas, 8 e ½ (Itália, Otto Mezzo, direção de Federico Felini, 1963). Apenas para olhos atentos de um pesquisador, Terry Gilliam cravou, em uma rápida cena em que aparece um documento, a data em que se dá a prisão de Buttle: 31 de junho de 1984 – apesar de ser uma data que não existe (o mês de junho possui 30 dias) e o filme se passar na época do natal, esta data aparentemente absurda foi escolhida por representar justamente o meio do ano 1984 (fig. 1). É apenas um detalhe, propositadamente quase imperceptível, para que se sustente o enigma temporal do filme. 24 FIGURA 1 - "31 de junho de 1984" II.3.2. Onde e Quando Um enigma que o filme constrói desde seu início é sobre quando e onde se passa a narração. Um letreiro inicial – que, em filmes de ficção científica, de acordo com o esquema tradicional narrativo, costuma definir claramente o ano e a cidade (país ou planeta) em que se passa a história – diz apenas: “8:49 PM SOMEWHERE IN THE 20th CENTURY” (em algum lugar do século XX)16. Pode ser qualquer lugar, ou talvez nenhum. Mas o que se sente, à medida que se desenrola a história, é que pode ser todo lugar. Isto é, todo lugar pode vir a se tornar aquele lugar. E pode ser em qualquer ano do século 20. Alguns elementos cenográficos remetem às primeiras décadas do século: os filmes de cinema, a arquitetura com referências à arquitetura nazista (anos 30), os veículos (O Messerschimitt com o qual Sam Lowry se locomove é um veículo alemão dos anos 40), as roupas (o chapéu-sapato que Ida Lowry usa é uma criação dos anos 30 e as roupas de Sam são típicas dos film-noir dos anos 40 e 50). Todavia, a tecnologia utilizada, apesar da aparência non-sense dos 16 Esta brecha, provavelmente, levou algumas distribuidoras a não classificarem o filme com o gênero “ficção científica”. 25 objetos tecnológicos (que será comentada adiante), remete às últimas décadas do século. Este jogo entre elementos antigos e novos provoca uma espécie de “silepse17temporal”, aumentando o mistério sobre a época em que se passa o filme, e levando o espectador a concluir intuitivamente que, se não é tempo algum conhecido, é um futuro. Mas, se faltavam apenas 15 anos para o fim do século e aquele “futuro” era “no século XX”, uma mensagem terrível se apresenta: “este é um futuro próximo, portanto o que acontece aqui é um processo em andamento!”. O que torna o quebra-cabeças mais intrigante é que a atemporalidade, à qual o enigma do letreiro inicial remete e a intrincada parafernália visual confirma, é característica das fábulas míticas: histórias e mitos desenvolvem-se no campo temporal do “era uma vez”. Assim como em relação ao espaço, podemos estar em algum tempo, ou qualquer tempo, ou mesmo em tempo nenhum. II.3.3. Aquarela do Brazil O mistério sobre o lugar da ação da história inicia-se muito antes da projeção do filme, no título da obra. O filme se chama Brazil e, em nenhum momento, na tela, se vê ou se fala sobre o Brasil. Já se sabe que o título vem da inspiração da música para o diretor. Mas, antes disto, o que é que a música Brazil diz sobre Brasil? Vamos comparar as letras das duas versões, a original e a versão em inglês: Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939) Brasil, meu Brasil Brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos O Brasil samba que dá Bamboleio que faz gingar O Brasil do meu amor Terra do Nosso Senhor 17 Figura pela qual a concordância das palavras se faz de acordo com o sentido e não segundo as regras da sintaxe.(Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa) 26 Abre a cortina do passado Tira a Mãe Preta do Cerrado Bota o rei Congo no congado Canta de novo o trovador A merencória luz da lua Toda canção do meu amor Quero ver essa dona caminhando Pelos salões arrastando O seu vestido rendado Esse coqueiro que dá coco É onde amarro a minha rede Nas noites claras de luar E essas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede Onde a lua vem brincar Ô esse Brasil lindo e trigueiro Ê o meu Brasil Brasileiro Terra de samba e pandeiro Brasil Terra boa e gostosa da morena sestrosa E de olhar indiferente O Brasil samba que dá Para o mundo se admirar O Brasil do meu amor Terra do Nosso Senhor Brazil (S.K. Russell & Ary Barroso, 1943) Brazil, Brasil Where hearts were entertaining June, onde os corações se divertem em junho We stood beneath an amber moon nós estamos sob esse luar âmbar And softly murmured, "Someday soon" e murmurando: “algum dia em breve” We kissed and clung together, 27 nos beijamos e abraçamos Then, tomorrow was another day; então, o amanhã era um outro dia The morning found me miles away a manhã me encontrou a milhas daqui With still a million things to say. com um milhão de coisas ainda por dizer Now, when twilight dims the sky above, e agora, quando o crepúsculo escurece o céu Recalling thrills of our love, relembrando a excitação de nosso amor There's one thing I'm certain of há uma coisa de que tenho certeza Return I will to old Brazil. retornarei ao velho Brasil.18 Se Barroso deseja uma declaração de amor ufanista e exagerada, típica de quem “canta sua terra”, Russell aborda o tema com uma visão escapista, citando “o velho” Brasil como local para amores tórridos, tropicais, longe de seu país de origem. Estas duas abordagens apresentam um possível conceito sobre um “Brazil” e um “Não-Brazil”. Apesar de que um artista culto e informado (caso do diretor Terry Gilliam) saberia, em 1985, que o verdadeiro Brasil, país Sul-americano, não representava paraíso algum e que estávamos apenas engatinhando para uma democracia – mas com uma herança muito forte e recente de ditadura cruel e torturadora –, no imaginário popular, leigo, do Hemisfério Norte, “Brasil” se refere ao avesso da sociedade burocratizada e “regulamentada” do primeiro-mundo. Esta discussão será retomada em III.2. A trilha sonora é baseada quase que exclusivamente nessa música. Três personagens, durante a trama, cantarolam partes da canção, geralmente em momentos de descontração. Aqui, o diretor Terry Gilliam demonstra, mais uma vez, muita habilidade no controle da comunicação. Gilliam estabelece um jogo muito expressivo a partir de uma mesma linha melódica. Apoiando-se em diferentes arranjos da canção, explora, por meio de nuanças, diversas possibilidades. Assim, quando 18 Tradução livre, de minha autoria. 28 aparecem imagens oníricas em que Sam surge como que um Ícaro sobre planícies na busca de sua amada, essa imagem de seu sonho é preenchida sonoramente por um arranjo suave de cordas, em um compasso lento, estendendo-se cada nota ao limite – instrumentos de corda tocados com arcos têm como característica a continuidade entre os acordes, o que permite uma interpretação de movimentos harmônicos (o vôo, a dança, a corte à amada), conotando fluência, fluidez. Por outro lado, a mesma música aparece como trilha sonora da imagem da ‘fábrica de burocracia’ do departamento de Cadastro de Informações, do Ministério da Informação. Utilizando somente as notas da introdução de “Aquarela do Brasil”, em compasso rápido e arranjo baseado em instrumentos de sopro (notas curtas e fortes) e percussão (acrescentando o acompanhamento significativo de uma máquina de escrever como instrumento), atinge-se um clima de ritmo cadenciado, veloz, quase caótico. II.3.4. Bug no Sistema A trama do filme tem seu início em um engano de nomes que provoca a prisão equivocada de um inocente que morre por não resistir aos excessos de uma seção de tortura durante seu “depoimento”. Além de expor o lado negro de um governo autoritário onde se julga e se executa a pena sem direito a defesa, o filme mostra a arrogância com que uma ditadura se livra de seus próprios erros. Apesar do aspecto sombrio do tema da “pena de morte” para um inocente, o diretor constrói uma metáfora para apresentar o engano do governo. Talvez seja melhor dizer que o diretor “desconstrói” a metáfora, trabalhando com um trocadilho semântico. Em uma cena hilariante, um funcionário do Ministério da Informação se põe em uma patética caça a uma mosca em seu escritório. Como conseqüência, esmaga a mosca no teto. A mosca morta se desprende do teto e cai dentro da máquina impressora provocando o erro de grafia – o sobrenome Tuttle vira Buttle (fig. 2). A expressão bug, utilizada como falha, erro de informação, materializa-se e transforma-se no próprio inseto (bug, em inglês). 29 FIGURA 2 - Bug no sistema 30 II.3.5. Arquitetura e Design Outro aspecto impressionante do filme é a cenografia. O poder onipresente e opressor se apresenta, também, na arquitetura dos órgãos públicos, com enormes pés direitos e amplos salões nos ambientes de acesso do público, apesar das minúsculas salas dos funcionários burocráticos. Semelha-se ao que Décio Pignatari chama de “Semiótica do Poder” (1979, p. 153), cujos traços fundamentais se caracterizam pelas palavras alto e grande que são os modos pelos quais se estabelecem hierarquias no universo icônico. Mas não é na óbvia “arquitetura do poder” que se encontram os grandes significados da cenografia19. Toda arquitetura e o design mostrados em Brazil apresentam como característica a extrapolação de uma tendência do fim do século XX: o higt-tech pós-moderno, pós-industrial. Em Londres, no ano de 1984, estava em construção talvez o mais célebre ícone da arquitetura de alta tecnologia. O arquiteto inglês Richard Rogers, que já havia construído, junto com o arquiteto italiano Renzo Piano, o ultra-moderno centro de artes Georges Pompidou, em Paris, erguia em um antigo bairro londrino um edifício caracterizado por ter suas “entranhas” expostas (tubos e dutos de ar-condicionado, elétrica, hidráulica, circulações verticais, serviços, máquinas, estrutura de sustentação) (fig. 3). O estilo e a localização provocaram polêmica suficiente para jogar o edifício no centro das sátiras e paródias de Terry Gilliam. Toda arquitetura em Brazil é permeada de tubos – o prólogo do filme apresenta uma propaganda de televisão em que um senhor oferece às donas-de-casa uma nova “linha de tubos”, “em centenas de cores diferentes, de acordo com seu gosto pessoal”20 – e todos os objetos tecnológicos (computadores, aparelhos domésticos, veículos) são compostos de peças antigas. Os computadores, somente como exemplo, são construídos a partir de equipamentos obsoletos justapostos: 19 Como diz Suely Flory, em Do Regional ao Existencial: o Espaço como Personagem, in Comunicação Veredas, nº 2 (2003, p. 400), “Os objetos, paisagens e animais são mensagens em sua materialidade, em sua exterioridade, com sua própria presença, cuja simbologia ultrapassa o simples papel de elementos decorativos. A simbolização sobrepuja a significação funcional imediata, (...) através do jogo de imagens e das aproximações metonímicas e analogias metafóricas.” Aqui, Flory concorda com Umberto Eco, em A Estrutura Ausente(1968). 20 “in hundreds of different colors, to suit your individual taste”. 31 máquinas de escrever, lentes de aumento, válvulas, correias, tubos de televisão preto & branco. (fig. 4) Esta construção do novo pelo velho – oxímoro21 –, é uma simbolização desmistificadora das tecnologias, que não criam algo senão objetos transformados/reutilizados. A exposição agressiva de todos os componentes de cada máquina é uma metáfora do que existe, hoje, escondido sob invólucros de aparência tecnológica, nos equipamentos atuais. FIGURA 3 - Lloyd’s Building – Guia do visitante 21 Figura que consiste em reunir palavras contraditórias; paradoxismo.(Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa) 32 FIGURA 4 - Computador "do futuro" II.3.6. Sonhos e Pesadelos Baseado na imagem inspiradora de um homem, na praia, fugindo de seu mundo cinzento ouvindo a canção Brazil, Terry Gilliam construiu um jogo entre realidade e sonho, onde Sam Lowry, seu anti-herói, “sobrevive” ao “pesadelo” que é sua vida, escapando dela através de seus sonhos. Surge aí a sensação da “espiral do abismo onírico”: o simulacro de um sonho, dentro de uma realidade-pesadelo, dentro de um filme-sonho22. Brazil, o Filme é basicamente formado por quinze seqüências intercaladas de “realidade” e “sonhos” do protagonista. Contrariando o senso comum, Gilliam constrói uma “realidade” rica em metáforas, metonímias, non-sense, ilógica e atemporalidade e “sonhos” com seqüências lógicas, conotações óbvias, demonstrando a imaginação embotada de um funcionário público sem perspectivas. 22 Com a expressão “filme-sonho” refiro-me à presença, em Brazil, dos processos primários do inconsciente descritos por Freud: condensação – imagens sobrepõem-se -, deslocamento – vários elementos encontram-se em local inesperado -, falta de lógica racional – a lógica é desafiada, ainda que ironicamente dentro do “possível” -, atemporalidade – já devidamente explicada anteriormente. 33 Tais segmentos narrativos de Brazil se compõem de sete seqüências de realidade, sete seqüências de sonhos e a seqüência final, que causou a polêmica briga entre o diretor e a distribuidora americana. Para a Universal Studios, a seqüência final seria parte da realidade (mesmo com uma série de fatores irracionais – oníricos) para que o protagonista tivesse final feliz. Para o diretor, a seqüência toda é fruto de um estado de “demência” provocada por uma lobotomia. As ferramentas que se encontram na mesa de apoio na hora da seção do “interrogatório” de Sam são, em sua maioria, as mesmas usadas para cirurgias de lobotomia (fig. 5). A “ferramenta” que Jack23 Lint empunha na direção de Sam Lowry é um picador de gelo, usado para desligar as fibras do lobo prefrontal24. Compreende-se, então que toda a seqüência iniciada com a morte de seu torturador, na verdade, aborda de devaneios de uma mente “desligada” para se tornar controlada pelo sistema. O diálogo final entre o torturador Jack Lint e o Vice-Ministro da Informação Mr. Helpmann confirma: Helpmann: - Ele está em outro lugar, Jack. Jack: 23 - Acho que tem razão, Mr. Helppmann. Ele se foi.25 O nome "Jack" lembraria a personagem "Jack, o estripador" Método cirúrgico criado por Walter Freeman, em 1945. SABBATINI, R. M. E. A História da Lobotomia em http://www.epub.org.br/cm/n02/historia/lobotomy_p.htm (acesso em 13 de agosto de 2004) 25 “He’s got away from us, Jack.” “I’m afraid you’re rigth, Mr Helpmann. He’s gone.” 24 34 FIGURA 5 - mesa de "confissões" Mas se, por um lado, as seqüências de sonho são “burocráticas” em seu desenvolvimento, mostrando a evolução da relação entre seu dia-a-dia e seus desejos e frustrações, por outro, a seqüência final é rica em intertextualidade com outros filmes que inspiraram o diretor. FIGURA 6 - O Processo X Brazil Apesar de ser na seqüência final onde se encontra a maioria das referências, a intertextualidade está presente nos 142 minutos de projeção, dialogando 35 com o cinema e as artes em geral. Uma das mais explícitas referências fílmicas do ambiente burocratizado de Brazil é o filme O Processo, de Orson Welles (1963), no qual o ‘escritório’ onde Joseph K. trabalha é uma ‘fábrica’ onde pessoas datilografam mecanicamente (fig. 6). Mesmo em pequenos detalhes, como o fato da triste figura da esposa de Archibald Buttle (o inocente preso e torturado até a morte), que é “sapateiro” (shoe repair operative), remeter ao quadro Shoe repairer’s wife – woman in red de Chaïm Soutine (1927) (fig. 7). No personagem Harvey Lime, vizinho da "meia-sala" de Sam, que demonstra inspiração no personagem Harry Lime (Orson Welles), do filme O Terceiro Homem (The Third Man, 1949, de Carol Reed). Ou no nome do protagonista, Sam, que é o mesmo de um importante personagem (O pianista imortalizado na frase “Play it, Sam”) de Casablanca, de Michael Curtiz (1943), filme que parece inspirar o figurino de Brasil. FIGURA 7 - A mulheres dos sapateiros O cinema clássico americano é citado diversas vezes em Brazil, seja explicitamente, como nos posters no quarto de Sam, nos filmes que passam na tv (cena do banho de Jill Layton e no apartamento de Mrs. Buttle) ou nos filmes que os funcionários do Ministério assistem clandestinamente (Casablanca e um bang-bang), seja implicitamente, em detalhes. 36 Nas seqüências de sonho, temos referências do sonho do prólogo do já citado 8 e ½ de Fellini, quando uma figura humana de pedra (alusão ao seu chefe, Mr. Kurtzmann) puxa Sam que está preso a uma corda que o faz flutuar (fig. 8). Em outro sonho de Sam, há uma luta contra um samurai26 e, após este estar vencido, sob sua máscara surge o rosto do próprio Sam. Podemos perceber aí a semelhança deste sonho com o sonho de prof. Borg em Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman (1957), no qual o protagonista se vê deitado em um caixão. FIGURA 8 - Oito e meio X Brazil Na seqüência final é possível perceber, então, diversas influências às quais Sam Lowry provavelmente esteve exposto em sua vida: as cenas de seu resgate e sua fuga não fogem ao padrão das cenas de filmes de ação de Hollywood; a presença de um Papai Noel no grupo de resgate se deve ao fato de a história se passar na época das festas; enquanto o tiroteio ocorre, o porteiro do Ministério assiste às cenas em seu monitor, de onde saem sons de vídeo-games típicos dos anos oitenta; o sentimento revolucionário do protagonista é simbolizado por uma alusão à famosa cena da escadaria de Odessa em Encouraçado Potenkim (União Soviética, Bronenosets Potymkin, direção de Sergei Eisenstein, 1925). O carrinho de bebê é ironicamente substituído por uma máquina de limpeza de piso (fig. 9); 26 Há um sutil trocadilho na personagem do samurai, cuja pronúncia pode ser assemelhada com “Sam or I” (Sam ou eu) ou “Sam, you are I” (Sam, você sou eu). 37 FIGURA 9 - Brazil X Encourçado Potenkim A explosão do Ministério provoca uma “queima de fogos” comemorativa e uma chuva de documentos e formulários por toda a cidade, transformando a burocracia em “confete”. Seu principal salvador, Tuttle, que odeia a burocracia, é “engolido” pelos papéis do Ministério, significando que, dali em diante, Sam estará sozinho para lutar; Sam foge para uma cerimônia de velório de Mrs. Terrain, cujo corpo está decomposto por seus tratamentos para rejuvenescimento com ácidos27. Sam é recebido por Spiro, o agressivo maitre do restaurante do início do filme. Quando encontra sua mãe, ela está cercada de jovens homens que a cortejam como na famosa cena de Os Homens Preferem as Loiras (EUA, Gentlemen Prefer 27 O pai de Terry Gilliam teve uma terrível experiência com tratamento com ácidos, quase perdendo uma orelha. 38 Blondes, direção de Howard Hawks, 1953), em que Marilyn Monroe canta Diamonds are a girl’s best friend. Quando Ida Lowry, mãe de Sam, se volta para ele, o rosto é de Jill Layton, em uma clara apresentação do complexo de Édipo de Sam. Logo em seguida seu rosto é o de Ida, só que rejuvenescido por operações plásticas. Quando a polícia entra no velório, Sam foge pulando dentro do caixão e cai vertiginosamente, como na famosa cena de Um Corpo que Cai (EUA, Vertigo, direção de Alfred Hitchcock, 1958) (fig. 10); 39 FIGURA 10 - Um Corpo que Cai X Brazil Em sua fuga, várias luzes de néon apontam o caminho e, além da polícia, Sam passa a ser perseguido por figuras que já haviam aparecido em seus sonhos e pela família Buttle, reclamando pelo corpo do pai torturado. Sam escapa subindo uma montanha de dutos (onde desponta uma cruz “redentora” de néon) e alcança um muro onde se encontra uma porta; Atrás da porta está uma casa como as que Jill Layton transporta com seu enorme caminhão e Sam percebe que está sendo transportado por Jill (a esta 40 altura, de fato, já morta). Sam e Jill viajam para um cenário bucólico onde se instalam e “vivem-felizes-para-sempre”, completando a visão paródica da narrativa clássica do cinema de Hollywood. II.3.7. Breves Leituras Se estamos analisando a obra Brazil sob a ótica da Comunicação, é necessário, para enriquecimento da discussão, olhar os conceitos da Semiótica para ampliar a compreensão das diversas leituras possíveis do filme. Lúcia Santaella, em O que é semiótica, afirma: (...) todas as linguagens da imagem, produzidas através de máquinas (fotografia, cinema e televisão...), são signos híbridos: trata-se de hipoícones (imagens) e de índices. Não é necessário explicar porque são imagens, pois isso é evidente. São contudo, também índices porque essas máquinas são capazes de registrar o objeto do signo por conexão física. A respeito da fotografia, Pierce esclarece: “O fato de sabermos que a fotografia é o efeito de radiações partidas do objeto, torna-a um índice e altamente informativo”. Embora o processo de captação da imagem televisiva seja diferente da fotografia, o caráter inicial de conexão física, existencial e factual nele se mantém. 28 Em A Estrutura Ausente, Umberto Eco complementa: O código fílmico não é o código cinematográfico; o segundo codifica a reprodutibilidade da realidade por meio de aparelhos cinematográficos, ao passo que o primeiro codifica uma comunicação ao nível de determinadas regras narrativas. Não há dúvida que o primeiro se apóia no segundo, assim como o código estilístico-retórico se apóia no código lingüístico, como léxico do outro. É mister, porém, distinguirmos os dois momentos: a denotação cinematográfica da conotação fílmica. A denotação cinematográfica é comum o cinema e à televisão, o que levou Pasolini a aconselhar que essas formas comunicacionais fossem designadas em bloco, não como cinematográficas, 28 op. cit. Lucia Santaella. pp.69-70 41 mas como “audiovisuais”. A observação é aceitável, mas note-se que na análise da comunicação audiovisual estamos diante de um fenômeno comunicacional complexo que põe em jogo mensagens verbais, mensagens sonoras e mensagens icônicas. Ora, as mensagens verbais e as sonoras, embora se integrem profundamente para determinarem o valor denotativo e conotativo dos fatos icônicos (e sejam por ele influenciadas), nem por isso deixam de apoiar-se em códigos próprios e independentes, catalogáveis alhures (...). Já a mensagem icônica, apresentando-se sob a forma característica do ícone temporalizado (ou em movimento), assume características que devem ser consideradas à parte. 29 Se devemos considerar as imagens, em um todo, mas mais especificamente na fotografia, no cinema e na televisão, como sendo naturalmente um signo, independente do possível signo retratado nesta imagem, fica clara a sobreposição de significantes, que resulta em um outro significante. Se um girassol é um signo (sin-signo dicente) da posição do sol no momento presente, a imagem reproduzida deste mesmo girassol, passa a ser até um Símbolo dicente, cuja premissa ou proposição pode ser: se houve um girassol, houve, em certo tempo uma posição relativa do sol àquele girassol, mas não a esta imagem presente. No cinema, na televisão e em certas utilizações específicas da fotografia (publicidade, por exemplo) este signo – imagem que resulta em uma proposição – pode vir a ser, intencionalmente, um argumento: tanto um silogismo quanto um sofisma. Umberto Eco volta a enriquecer esta discussão ao afirmar que o que não pode ser usado para mentir não pode ser objeto de investigação semiótica: A semiótica se refere a tudo que pode ser considerado como um signo. Um signo é tudo que pode ser tomado como substituto significante de algo mais. Este algo mais não tem que necessariamente existir ou verdadeiramente estar em algum lugar no momento em que o signo o substitui. Assim, a semiótica é em princípio a disciplina que estuda tudo que pode ser utilizado com o objetivo de mentir. Se algo não pode ser usado para mentir, inversamente, não pode ser utilizado para dizer a verdade: não pode ser utilizado, de fato, 29 op. cit. Umberto Eco. pp.139-40 42 para dizer nada. Penso que a definição de uma teoria da mentira deva ser vista como um atraente programa abrangente para a semiótica geral. 30 Apesar de soar, a princípio, como uma falácia, por negar a existência de qualquer verdade sem seu oposto – a mentira –, a afirmação de Eco joga luz sobre a ficção fílmica, uma vez que tudo ou quase tudo retratado no cinema de ficção é um como se. Em se tratando da chamada ficção científica, mormente aquelas ambientadas no futuro, teremos uma impressionante cadeia de significantes: um dado elemento do cenário é um objeto dinâmico que, em sua composição cenográfica, passa a ser um signo, cujo interpretante é parte de um possível ambiente do futuro, o qual, por sua vez, assume o papel de objeto dinâmico onde a imagem da tela de projeção é um signo produzindo como interpretante a idéia de futuro. Brazil tem em Terry Gilliam um diretor que declara, em citações travestidas de comicidade metalingüística, o conhecimento do poder da semiótica da imagem. Em uma cena de ação, já comentada em III.6., na qual o personagem-herói entra junto a um grupo de prováveis terroristas em batalha contra a polícia oficial, uma longa seqüência remete claramente – despudoradamente copiando – à mais famosa seqüência de O encouraçado Potenkim, filme mais marcante do cineasta russo Sergei Eisenstein. Neste conjunto de cenas, no filme soviético, durante o massacre de populares em revolta pelas tropas do governo, na escadaria de Odessa, uma mãe atingida e seu carrinho de bebê é mostrado descendo a longa escadaria. Já em Brazil, em um tiroteio entre revolucionários e a polícia oficial, a pessoa atingida é uma faxineira do Ministério de Informações, que deixa rolar escada a baixo uma grande máquina de lavagem de piso. Essa intertextualidade, que remete a uma discussão sobre o momento sóciopolítico da revolução russa com o momento sóciopolítico "atual", explicita, de maneira divertida mas contundente, o apreço do diretor americano pela obra do cineasta russo. Cabe rever a importância de Eisenstein na construção das teorias semióticas: Mencionar o cineasta Eisenstein, no entanto, significa termos de nos deparar com a mais completa encarnação de um verdadeiro “artista intersemiótico” surgido na Rússia revolucionária e pós-revolucionária. Essa 30 Teoria da Semiótica, de Umberto Eco, in Imagem. Cognição, Semiótica, Mídia, de Santaella & Nöth. p.196 43 intersemiose está expressa na sua preocupação com a origem dos sistemas de signos, na presença da literatura em suas reflexões sobre o cinema, na sua prática do teatro e nos estudos das diversas artes, notadamente a pintura em sua relação com o cinema, assim como nos experimentos, ainda no cinema mudo, com os efeitos de som-imagem e na influência de um instigante conhecimento do ideograma japonês e chinês sobre sua técnica de montagem cinematográfica, além do conhecimento do teatro Kabuki e estampa japonesa, tudo isso culminando numa constante preocupação com a síntese entre cinema e a arte.31 Apreende-se no filme, de certa forma reforçando algo já difundido pelo senso comum, que a idéia de Brazil é justamente o contrário do excesso de burocracia, de controle governamental totalitário, da falta de espaço, da poluição, da vida mecanizada. Percebe-se a intencionalidade do autor na escolha do título como signo. Mas o que impressiona, neste caso, é uma semiótica do avesso. Esta concepção vale como constatação da existência de um interpretante do signo palavraBrazil que se refere não ao país Brasil enquanto objeto dinâmico. O signo Brazil, neste caso, é interpretante do objeto dinâmico “não-país-super-industrializado” (primeiro mundo?). Trata-se de uma significância do avesso do conhecido. Estar acordado já é uma consciência de reação, que não se confunde com cognição, pois sua apreensão se dá através da percepção direta, anterior ao pensamento. Mero estado de alerta, consciência do outro, daquilo que não é eu. Consciência dupla, bipolar. Tornamo-nos cônscios de nós mesmos ao nos tornarmos conscientes do não-eu. Binariedade pura. Oposição ou confronto que aparece até mesmo no senso de externalidade, da presença de um não-ego, de algo fora de nós que acompanha qualquer percepção que temos das coisas e que nos ajuda a distingui-la de um sonho, devaneio ou de uma alucinação. 32 Apesar desta conotação da palavra Brazil, os sonhos ou devaneios do personagem principal no decorrer do filme vão se tornando cada vez mais 31 32 op. cit. Lucia Santaella. p.74 op. cit. Lucia Santaella. p.48 44 sombrios, mais pesadelos, conforme a trama vai se desenvolvendo e, neles, Sam vai sendo engolido pela burocracia. A leitura comparativa da letra original de Ari Barroso e da versão de Russell (ver II.3.3) mostra a curiosa relação entre as intenções de cada compositor que reforçam a noção de Brasil/não-Brasil apresentada anteriormente. (…) toda a tradição pitagórica confiava a cada modo a conotação de um ethos (no caso, tratava-se igualmente da estimulação de um comportamento), como também observa La Barre. A conotação de um ethos encontra-se em tradições musicais como a chinesa clássica e a indiana. Quanto à conotatividade de grandes cadeias sintagmáticas musicais, pode aceitá-la mesmo no que diz respeito à música moderna, embora vigore acertadamente a advertência sobre a necessidade de as frases musicais não serem consideradas como dotadas de valor semântico. Mas é difícil negar a certas músicas estereotipadas conotações institucionalizadas: é o caso da música thrilling (trilha musical), da música ‘pastoral’ ou ‘marcial’; assim como há, em seguida, músicas tão ligadas a ideologias precisas que passam a assumir valor conotativo indiscutível (a Marselhesa, a Internacional). 33 Além da escolha do título-música Brazil, já carregado de significados enquanto interpretante imediato, Terry Gilliam estabelece um jogo de códigos a partir de uma mesma linha melódica. Os diversos arranjos de uma mesma música para acompanhar diferentes imagens, sugerem uma leitura semiótica da música, conceito discutido por Lúcia Santaella: Ao ouvirmos uma peça de música, se não somos conhecedores dos diferentes códigos de composição musical (o que nos levaria também a outros tipos de interpretação), a audição dessa música não produzirá em nós senão uma série de qualidades de impressão, isto é, sensações auditivas, viscerais e possivelmente correspondências visuais. É claro que podemos traduzir essas sensações numa pseudo-significação ou interpretante dinâmico de primeiro nível, isto é, emocional. 33 34 op. cit. Umberto Eco. p. 400 op. cit. Lucia Santaella. p. 60 34 45 Terry Gilliam faz uma interessante crítica da sociedade de informações em seu filme. A presença massacrante e totalitarista do poder públicogoverno é inteiramente representada pela onipresença de um único órgão: o Ministério de Informações. Subdivido em departamentos como Cadastramento de Informações, Ajustamento de Informações e Recuperação de Informações, por exemplo, o Ministério é representado publicamente por um Vice-Ministro (Deputy Minister) que se dirige ao público com o poder de um mandante supremo do Governo. Esse poder onipresente e opressor se apresenta, também, na arquitetura dos órgãos públicos, com enormes pés-direitos e amplos salões nos ambientes de acesso do público – apesar das minúsculas salas dos funcionários burocráticos. Décio Pignatari comenta a “Semiótica do Poder” em um capítulo de sua tese de pós-Doutorado, Por um pensamento icônico: semiótica da arte e do ambiente urbano: Os traços fundamentais de uma semiótica do poder devem ser buscados nos ícones enfeixados pelas palavras alto e grande: são os modos pelos quais se estabelecem hierarquias no universo icônico e paratático. Mesmo um close metamórfico (metonímico), numa foto, num filme ou num teipe, implica o grande. Pode-se traçar uma linha de poder, num gráfico arquitetônico, que, vindo da mítica torre de Babel, passa, sucessivamente, pelas pirâmides egípcias, os zigurás caldeus, as pirâmides maias e incas, a acrópole grega, as torres das igrejas cristãs, as chaminés da Primeira Revolução Industrial, os arranha-céus e as torres de captação e emissão de sinais radiotelegráficos. 35 A visão da importância dos termos alto e grande de Pignatari foi reafirmada em 11 de setembro de 2001, no ataque às Torres Gêmeas, quando o ícone do poder americano, destruído, levou a reflexões muito além das perdas materiais e humanas. O grande erro burocrático do Ministério de Informações, que provoca o mal-entendido – tendo como conseqüência a morte de um inocente, nas ‘seções de interrogação’ – parte de uma parábola construída pela decomposição de uma metáfora corrente no universo da Comunicação: o bug como ‘defeito’, problema, erro de informação. A expressão bug, que, quando utilizada como falha, erro de informação, é um signo (um símbolo remático? Um sin-signo dicente?), materializa-se e transforma35 Por um pensamento icônico: semiótica da arte e do ambiente urbano, de Décio Pignatari p. 153 46 se num signo do signo, numa espiral inspirada, onde o objeto dinâmico é um conceito (o bug enquanto erro) e o objeto imediato é a própria mosca (o inseto enquanto ser). Este paragrama Tuttle-Buttle36 nos remete à acepção do termo paragrama utilizado por Julia Kristeva, em Introdução à Semanálise: Sendo o duplo a seqüência mínima dos paragramas, a lógica dos mesmos é diferente da ‘lógica científica’, da monológica, que evolui no espaço 0-1 e procede por identificação, descrição, narração, exclusão das contradições, afirmação da verdade. Compreende-se, então, porque, no dialogismo dos paragramas, as leis da gramática, da sintaxe e da semântica (que são leis da lógica 0-1, portanto aristotélica, científica ou teológica), são transgredidas, apesar de implícitas. Esta transgressão, ao absorver o 1 (o interdito), anuncia a ambivalência do paragrama poético: ele é uma coexistência do discurso monológico (científico, histórico, descritivo) e de um discurso destruidor deste monologismo. Sem o interdito não existiria transgressão; sem o 1 não haveria paragrama baseado no 2. O interdito (o 1) constitui o sentido, mas no momento mesmo desta constituição, ele é transgredido numa díase oposicional, ou, de maneira mais geral, na expansão da rede paragramática. Assim, no paragrama poético, lê-se que a distinção censura-liberdade, consciente-inconsciente, natureza-cultura, é histórica. Seria preciso falar de sua coabitação inseparável e da lógica desta coabitação, da qual a linguagem poética é uma realização evidente. 37 Aqui, uma passagem do livro O que é Semiótica, de Lúcia Santaella, citando Saussure, nos faz refletir sobre a rigidez da lei dos legi-signos, que inviabiliza o como se das linguagens não escritas: Para Saussure, portanto, a língua é um sistema de valores diferenciais, isto é, a língua é uma forma na qual cada elemento, desde um simples som elementar (f, por exemplo, na palavra fato, ou g, na palavra gato), só existe e adquire seu valor e função por oposição a todos os outros. Cada elemento, portanto, só é o que é por diferença em relação àquilo que todos não são. O valor é, por isso, determinado por suas relações no interior de um sistema. 36 38 conforme Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, paragrama: erro de grafia que consiste no emprego de uma letra por outra. 37 Introdução à Semanálise, de Julia Kristeva pp. 99-100 38 op. cit. Lucia Santaella. p. 60 47 Um dos aspectos que mais chamam atenção na cenografia de Brazil, o filme é a construção dos objetos utilitários. Todas as máquinas têm como característica uma extrapolação da tendência pós-moderna arquitetônica, pós-industrial: a exposição acintosa da estrutura e dos componentes acessórios – tubulações, equipamentos. A exposição do genotexto dos objetos, por meio da demonstração agressiva de todos os componentes de cada máquina é uma metáfora do que existe, já hoje, escondido sob invólucros de aparência tecnológica, nos equipamentos atuais. Esta exposição das entranhas, tão cara à arquitetura e ao design pósmodernos, é reflexo da - e reflete a - cultura da sociedade pós-moderna, expondo na mídia suas entranhas em Reality Shows e programas televisivos sensacionalistas. 48 III. Propaganda Ideológica: a Construção da Idéia de Futuro Para se compreender a construção do espaço psicológico em uma obra de ficção científica é necessário entender como se dá a relação do homem com seu ambiente na época retratada na obra. Esse espaço psicológico é construído basicamente pela forma de comunicação entre as pessoas e, principalmente, pela forma como o poder constituído - líderes, governo - se comunica com os liderados: a propaganda ideológica. As dúvidas e incertezas quanto ao futuro sempre afligiram o ser humano e, de certa forma, estiveram presentes, no decorrer da História, em muitas manifestações artísticas. Mas apenas a partir do século XIX é que a ficção científica tomou corpo, a partir das obras de Julio Verne. Cinco Semanas em Balão, de 1863 foi o primeiro sucesso desse visionário que, apesar da ciência rudimentar à sua volta, previu, dentre outros inúmeros inventos, a televisão ('foto-telefoto'), antes do rádio; o helicóptero, antes do avião; o fax; o dirigível; o cinema falado; o gravador; a iluminação a néon; as calçadas rolantes; os diamantes sintéticos; o ar-condicionado; os arranhacéus; os mísseis teleguiados; os tanques de guerra; os submarinos (com propulsão elétrica); os telescópios gigantescos; os veículos anfíbios; os grandes transatlânticos; o avião; a caça submarina; o aproveitamento da luz e da água do mar para gerar energia; o uso de gases como armas de guerra; o fuzil elétrico, o silencioso e o explosivo definitivo. Após as obras de Verne, as artes foram desafiadas a representar o futuro. Muitos artistas investiram sua criatividade no intuito de prever os caminhos que o homem viria a trilhar e alertar a humanidade para os perigos dessa trajetória. Quase que em sua totalidade, as obras de arte que representam o futuro trazem em si os medos do Homem. O perigo das guerras e suas armas cada vez mais destrutivas, o risco da perda de liberdade pelo crescimento do poder de ditadores mais e mais centralizadores e cruéis, o temor da automação do ser humano e o controle pelas máquinas, a insegurança na superação e submissão às inteligências artificiais, a desconfiança no desenvolvimento da engenharia genética e a clonagem, que geram incertezas quanto à individualidade do ser, assim como a realidade virtual. 49 A literatura foi a mais pródiga das artes no campo da ficção científica, mas sua maior popularidade veio, já no século XX, com o desenvolvimento das histórias em quadrinhos, de onde surgiram inúmeros personagens de diversos planetas e épocas alertando o Homem para os perigos dos descaminhos da ciência. Mas a arte que mais se adaptou ao gênero da ficção científica foi o cinema, com sua capacidade mágica de transportar os espectadores para qualquer espaço e tempo. Desde A Viagem à Lua, de Georges Méliès, de 1902, considerado o primeiro filme de ficção científica, até a trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski, o século XX apresentou grandes obras (e algumas bastante medíocres, também) tendo o futuro da humanidade como cenário. Dentre os principais temores do homem quanto ao futuro, talvez o mais recorrente seja a perda da liberdade individual por conta de um governo ditatorial e centralizador. Mas o temor mais impressionante em termos visuais e, portanto, o que causou mais impactos nas obras visuais, é o da perda de individualidade pelo descontrole no uso das tecnologias. Este aspecto fica bastante claro nas obras de cinema, ao longo do século XX. III.1. Propaganda Ideológica no Futuro Em Brazil, a construção do espaço psicológico se dá de forma progressiva, desde o prólogo, principalmente através da propaganda ideológica maciça do governo sobre os cidadãos. A crítica do diretor ao sistema de governo aparece na ironia como o Ministério da Informação massacra sutilmente cada um dos "governados" com frases e slogans em cada ambiente do filme. 50 III.1.1 O que é Propaganda Ideológica Antes de nos aprofundarmos neste assunto, é preciso diferenciar as diversas propagandas. Grosso modo, toda propaganda tem por objetivo levar um público espectador ou leitor ao consumo de algo. Seja pela divulgação de um produto ou serviço ou pela criação de uma boa imagem do produtor deste produto ou serviço, busca-se convencer o público de que isto, e não aquilo, deve ser consumido. Este processo é conhecido como propaganda comercial, por envolver trocas comerciais e dinheiro. Outro processo de propaganda é aquele que trabalha com a imagem dos políticos, visando à aceitação de uma pessoa ou grupo de pessoas (partidos políticos) pelo público, resultando em votos. É conhecida como propaganda eleitoral e se concentra basicamente nos períodos que antecedem os pleitos. A terceira forma de propaganda, que é o interesse deste estudo, é a propaganda ideológica, cujo aspecto é muito mais amplo e mais global, não se empenhando apenas em estimular práticas e atos isolados de “consumo”. De acordo com Nelson Jahr Garcia, a função da propaganda ideológica “é a de formar a maior parte das idéias e convicções dos indivíduos e, com isso, orientar todo o seu comportamento social. As mensagens apresentam uma versão da realidade a partir da qual se propõe a necessidade de manter a sociedade nas condições em que se encontra ou de transformá-la em sua estrutura econômica, regime político ou sistema cultural.”1 Neste tipo de propaganda, já não são tão claros o emissor ou os objetivos e o mecanismo para se obter eficiência é justamente estar veiculado em locais de onde não se espera a propaganda. 1 O Que é Propaganda Ideológica, de Nelson Jahr Garcia. pp. 10-1 51 III.1.2. Propaganda Ideológica na Literatura de Ficção Científica O fim do século XIX e o início do século seguinte foram férteis nas descobertas das ciências da Comunicação e da Psicologia (assim como em todas as demais ciências). O conhecimento dos mecanismos de comunicação e a elaboração das principais teorias da psicologia trouxeram ferramentas que permitiram o uso em larga escala de seus benefícios assim como possibilitaram a manipulação negativa. Os governos totalitários do começo do século XX, que levaram à eclosão das duas grandes guerras mundiais, tinham vasto conhecimento das novas teorias de controle ideológico e se valeram destas técnicas para amalgamar multidões sob seus domínios. Neste clima de ditaduras controladoras, dois escritores ingleses escreveram dois dos principais livros de ficção ambientada no futuro jamais escritos. Nestes livros, entre suas ferozes críticas aos métodos de despersonalização do indivíduo, tecem um painel de como a propaganda ideológica pode minar quaisquer aspirações de liberdade dos cidadãos. Em 1932, Aldous Huxley escreveu Admirável Mundo Novo, uma antiutopia em que a sociedade adora Henry Ford por seus métodos de produção. É uma das alegorias, pois a “produção” de seres humanos, no livro, é realizada em série, com controle de qualidade e pré-programação de forma a garantir a felicidade e a gratidão ao sistema. A todo tempo se encontra o lema do Estado científico-totalitário: “Comunidade, Identidade, Estabilidade”. Alusão clara ao lema da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), este slogan aparentemente menos explícito que o de 1789 se baseia em uma das características da propaganda ideológica que é a de agir “assim, resumindo idéias em expressões ambíguas dos tipos mencionados. Consegue-se, com isso, que cada um dos que ouvem a mensagem concorde com ela, por acreditar que diga respeito a si e a seus interesses e necessidades, e acabe apoiando o sistema econômico e o regime político.”2 Dezessete anos depois, George Orwell escreveria 1984, em que descreve um mundo dominado por apenas três governos totalitários nos quais a individualidade foi totalmente devassada e ninguém consegue evitar o massacre 2 op. cit., de Nelson Jahr Garcia. p. 33 52 diuturno de mensagens ideológicas por meio da “teletela”, ligada 24 horas por dia na parede das casas, ao mesmo tempo que é constantemente vigiado pela Polícia do Pensamento. Neste mundo absurdamente controlado, as crianças são incentivadas a denunciarem os pequenos deslizes dos pais e todos reverenciam o Grande Irmão, onipotente e onipresente. Controla-se a História, determinando-se, conforme o interesse do Partido, o “passado” a ser divulgado. Neste ambiente terrível, a propaganda ideológica é sufocante. Em todo lugar se lê “O Grande Irmão zela por ti”, o tempo todo os cidadãos (se é que podem ser chamados assim) são incitados a ouvir e cantar hinos, exige-se que sejam usadas as palavras certas sob pena de conspiração caso sejam utilizadas palavras consideradas “antipáticas” pelo Partido. O lema do Partido, que “encerra” a política do Socialismo Inglês (INGSOC) é: GUERRA É PAZ; LIBERDADE É ESCRAVIDÃO; IGNORÂNCIA É FORÇA. Estas antíteses expõem um método de propaganda ideológica bastante eficiente por associar, até como justificativa, um conceito considerado ruim a outro (geralmente o contrário). Assim, “faz-se a guerra para garantir a paz”; “ter liberdade exagerada significa não ter a segurança do zelo do Grande Irmão” e “não questionar é ter mais energia concentrada para a realização dos ideais da sociedade”. George Orwell demonstra grande conhecimento das técnicas de controle ideológico pela propaganda, sendo que criou, por meio da teletela e a Imagem do grande Irmão, uma das mais formidáveis metáforas do poder do Estado sobre o indivíduo. Três anos antes Orwell havia escrito uma dos maiores best-sellers ingleses, A Revolução dos Bichos, uma alegoria inspirada na Revolução Russa. Neste livro, com muita ironia, Orwell expõe o processo de tomada do poder e os desvios dos objetivos iniciais de uma revolução operária, com a traição dos ideais de igualdade por aqueles que mais lutaram por eles. Na obra, percebe-se a distorção gradual dos “Sete Mandamentos” dos animais. De acordo com os interesses dos líderes da Revolução, os mandamentos, que seriam inicialmente: 1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo; 2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas ou tenha asas é amigo; 3. Nenhum animal usará roupas; 4. Nenhum animal dormirá em camas; 53 5. Nenhum animal beberá álcool; 6. Nenhum animal matará outro animal; 7. Todos os animais são iguais. Transformou-se em: 1. Quatro pernas bom, duas pernas ruim (“Princípio essencial do Animalismo”, processo de redução para simplificação e facilidade de assimilação); 2. (reunido no anterior); 3. Nenhum animal usará roupas; 4. Nenhum animal dormirá em camas, com lençóis; 5. Nenhum animal beberá álcool, em excesso; 6. Nenhum animal matará outro animal, sem motivo; 7. Todos os animais são iguais, MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS. (Ao final, transformado em Mandamento Único, em um processo de antítese no intuito de justificar as diferenças às quais os descaminhos da Revolução teriam levado.) III.1.3. Propaganda Ideológica no Cinema de Ficção Científica Além de Brazil, dois filmes franceses podem ser citados como possíveis exemplos de filmes onde se percebe um governo totalitário se valendo de instrumentos de dominação ideológica. Ambos sobressaem por seus aspectos de ambigüidade poética e criatividade. São obras onde o humor aparece como crítica, a partir de ironia e sarcasmo: Alphaville, de Jean-Luc Godard, de 1965, e Farenheit 451, de François Truffaut, de 1966. No primeiro filme, um detetive é contratado para resgatar um cientista aprisionado em Alphaville, uma cidade fora da Terra, dominada por Von Braun, um cientista que determina que o amor e a individualidade são proibidos. Farenheit 451 é a temperatura em que o papel incendeia. Partindo deste detalhe, Truffaut cria uma sociedade onde os livros são proibidos por serem considerados nocivos às pessoas. Nestes dois filmes franceses, a sociedade é dominada por governos totalitários e 54 ambos fazem críticas aos maiores ícones da segunda metade do século XX: as tecnologias de informação e a televisão. III.2. Propaganda Ideológica em Brazil A grande charada do filme Brazil começa a se desfazer, aparentemente, quando se atenta à trilha sonora. Aqueles acordes que acompanham diversas cenas, em arranjos variados são da canção Aquarela do Brasil, conhecida no hemisfério norte como Brazil. Algumas vezes, no decorrer da trama, versos da versão americana da música são cantados. Algo do mistério sobre o título do filme é desvendado. A letra em inglês da canção fala de um lugar chamado Brasil para onde se retornará para lembrar de um grande romance vivido. Brazil, então, se refere a um lugar hipotético que está no imaginário do europeu e do norte-americano. Seria um lugar tropical, com sol, samba, mulheres bonitas, em uma idéia contrária ao rigor da burocracia e da vida mecanizada. Mas, todavia, um espectador mais culto saberia perceber que o Brasil real, da época, vivia ainda uma ditadura marcada por tortura, censura e uma burocracia ineficiente. Vê-se mais uma faceta neste tabuleiro: a cada passo para se situar, um novo obstáculo. Esta insegurança quanto às informações do filme levam o espectador à mesma angústia do protagonista. Os criadores da obra dão, aos poucos, informações sobre o mundo em que está transcorrendo a trama. O espectador tem que ir puxando cuidadosamente o fio da meada, para desenrolar esse “novelo”. Faz parte do quebra-cabeças as informações percebidas pelas diversas propagandas em cartazes afixados nos ambientes internos e externos de Brazil. Geralmente enquadrados em segundo plano, os cartazes demonstram a ideologia do governo naquele futuro. Sem que haja um lema definido, os diversos slogans vão acrescentando sentido na metonímia de governo apresentada. Pode se dizer que o governo, no filme, é apresentado em uma metonímia porque todo o poder é apresentado apenas por um Ministério, o Ministério da Informação – e seus departamentos. 55 Para compreender o ambiente político-social do enredo de Brazil, o espectador precisa de um processo de desmontagem da retórica da propaganda ideológica apresentada. III.2.1. Cartazes em Brazil A forma como o governo, em Brazil, divulga suas idéias e ideais para que o cidadão aja e pense de acordo com o interesse do poder é através da fixação de cartazes contendo slogans em todos os ambientes. O espaço cenográfico fica, assim, extremamente carregado de propaganda ideológica. Apesar deste massacre de ideologia, o diretor não coloca os cartazes em close. Desta forma, trabalha com a construção do ambiente psicológico do futuro sob o mesmo mecanismo de persuasão do governo em Brazil: a presença contínua e comum do ideário do Ministério da Informação leva o cidadão a assumi-lo inconscientemente. As propagandas aparecem distribuídas no cenário conforme a lista seguinte. No Lobby do Ministério: • "The Truth Shall Make You Free" (A verdade vos libertará) – na estátua. (frase é bíblica: João, capítulo 8) • "Information - The Key To Prosperity" (Informação: a chave da prosperidade) – cartaz sobre os seguranças. (fig. 11) • "Help The Ministry Of Information Help You" (Ajude o Ministério da Informação a Ajudar você) - poster na parede. (fig. 12) • "Be Safe: Be Suspicious" (Fique seguro, suspeite) - cartaz na parede. (fig. 12) • "Loose Talk Is Noose Talk" (Conversa à toa é uma armadilha) poster na sala dos computadores. (fig. 13) 56 Na sala de Kurtzmann: "Suspicion Breeds Confidence" (Suspeita traz confiança) - • placa. (fig. 14) Nas Shangri La Towers: "Happiness: We're all in it together" (Felicidade: estamos todos • juntos nisto) – Pôster, out-door (Foi copiado de uma propaganda real, durante a depressão dos Estados Unidos). (fig. 15) "Mellowfields. Top Security Holiday Camps. Luxury without fear. • Fun without suspicion. Relax in a panic free atmosphere." (Campos de férias com segurança total: Prazer sem medo, diversão sem suspeitas. Relaxe numa atmosfera livre de pânico) – propaganda no muro em frente ao qual as crianças brincavam de tortura. (fig. 16) Escritório do Sr. Lime: • "Trust in haste, Regret at leisure" (Confiança precipitada, arrependimento adiado) - poster na parede. (fig. 17) • "Don't suspect a friend, report him" (Não suspeite de um amigo, denuncie-o) - poster na parede (também visto nos escritórios de Lint e Kutzmann). (fig. 18) No escritório de Jack: • "Who can you trust?" (Em quem você pode confiar?) - poster na parede. (fig. 19) 57 No complexo industrial: "Power today. Pleasure tomorrow." (Poder hoje, prazer amanhã) • – out-door. (fig. 20) “(3) consecutive hours without a time-loss accident” (Três horas • consecutivas sem um acidente com perda de tempo) – painel. (fig. 21) • "Mind that parcel. Eagle eyes can save a life." (Cuidado com pacotes, olhos d águia podem salvar uma vida) - poster na parede. (fig. 22) FIGURA 11 - Informação: a Chave da Prosperidade FIGURA 12 - Ajude o Ministério a Ajudar Você / Seja seguro, Suspeite 58 FIGURA 13 - Conversa à toa é uma armadilha FIGURA 14 - Suspeita Traz Confiança FIGURA 15 - Felicidade: Estamos Todos Juntos Nisto 59 FIGURA 16 - Campos de Férias com Segurança Total FIGURA 17 - Confiança Precipitada, Arrependimento Adiado FIGURA 18 - Não Suspeite de um Amigo, Denuncie-o 60 FIGURA 19 - Em Quem Você Pode Confiar? FIGURA 20 - Poder Hoje, Prazer Amanhã FIGURA 21 - 3 Horas Consecutivas sem Acidente com Perda de Tempo 61 FIGURA 22 - Cuidado com Pacotes Percebe-se, nos exemplos mostrados, que a propaganda ideológica do governo se utiliza de uma das formas de controle mais interessantes, conforme sustenta Garcia: a pressão psicológica, que “atua diretamente sobre os receptores, afetando sua capacidade de análise, para que recebam as mensagens de propaganda dentro de uma postura passiva e submissa.”3 Outro mecanismo eficiente de propaganda ideológica é a convocação dos cidadãos a participarem de campanhas de forma ativa. Várias mensagens apresentadas buscam esse resultado. III.2.2. O Prólogo: “Quero lhe falar sobre Tubos” Eduardo Peñuela Cañizal defende que é no prólogo que os diretores têm seus maiores arroubos de experimentação poética. De um modo irônico, mas recheado de exemplos, Peñuela explica que, durante o prólogo, o espectador leigo, pouco afeito a ambigüidades estéticas, ainda está se “ajeitando à poltrona”, com pouca atenção à tela. O cinéfilo, por sua vez, já está sorvendo toda e qualquer mensagem subliminar. 3 op. cit., de Nelson Jahr Garcia. p. 57 62 Em 2002, Gilliam foi convidado pela empresa de artigos desportivos Nike para dirigir dois filmes publicitários voltados para a Copa do Mundo de Futebol que aconteceria na Ásia. O convite deveu-se à experiência do diretor em criar ambientes inusitados, provocando uma impressão atemporal e, principalmente, deixando uma ambigüidade quanto ao local do enredo. Na primeira das duas peças publicitárias, os 24 melhores jogadores de futebol do mundo se encontram no porão de um navio, um local secreto, para disputarem, dentro de uma grande jaula, o torneio definitivo: equipes de três jogadores se enfrentam e quem leva um gol é eliminado. Além do cenário opressivo que faz com que o jogo se compare a uma luta de feras, o ritmo das imagens é hipnotizante, auxiliado pela trilha sonora – uma remixagem de um sucesso de Elvis Presley (um jogo entre antigo e moderno, indefinindo a época do acontecimento) – e o critério de agrupamento dos jogadores é mais racial do que por nacionalidades (remetendo à idéia de um possível futuro onde já não haja nações ou pátrias). A segunda peça retoma o tema, levando apenas 6 jogadores ao mesmo porão, agora sem a jaula, para uma partida revanche em que o time que primeiro atingir cem gols ganha. Ambos os filmes têm o ritmo alucinado de câmara, os cenários ambíguos, enquadramentos excêntricos, o humor inteligente e um enredo elaborado, característicos de Terry Gilliam e muito apropriados a uma publicidade mundial de uma marca voltada aos jovens. Terry Gilliam parece concordar com Eduardo Peñuela Cañizal e inicia Brazil com uma propaganda na TV que, aparentemente, não tem conexão com o enredo. Em uma TV, exposta em uma vitrina de loja, surge a marca e o slogan de uma empresa: “Central Services, we do the work, you do the pleasure” (Central de Serviços, nós trabalhamos, você se diverte). Em um cenário simples, despojado, um homem de meia idade vestindo um terno se apresenta: Hi there. I want to talk to you about ducts. Do your ducts seem oldfashioned, out of date? Central Services' new duct designs are now available in hundreds of different colours to suit your individual tastes. Hurry now while stocks last to your nearest Central Services showroom. Designer colours to suit 4 your demanding tastes. / Olá. Quero lhe falar sobre tubos. Seus tubos estão parecendo fora-de-moda, ultrapassados? O design dos novos tubos da Central de Serviços está agora disponível em centenas de diferentes cores para atingir seus gostos individuais. Corra agora até o showroom da Central de Serviços 4 Tradução livre, de minha autoria. 63 mais próximo para aproveitar nossos estoques. Cores projetadas para atender seu gosto exigente. (Fig. 23) Logo em seguida, uma bomba explode na loja. Na TV danificada aparece a imagem do Ministro da Informação em uma entrevista falando sobre terrorismo e as formas de interrogatório utilizadas pelo Ministério. Por que o filme começa com esta imagem? O que esta mensagem publicitária acrescenta à formação da idéia de futuro ao espectador? Um pouco à frente, o filme revela que Central Services é uma empresa estatal, centralizadora como diz o nome, mas ineficiente e extremamente burocratizada, que cuida dos serviços domésticos de instalação e manutenção de tubos e dutos. É uma alegoria do exagero a que pode chegar uma ditadura, ao querer controlar até os serviços básicos de reparo de um encanamento. Mas como já foi exposto, os tubos têm um papel importante nos cenários e na crítica ao futuro da arquitetura e do design (ver II.3.5.). Entretanto, além da aparente crítica à estética do exagero high-tech, podemos compreender que existe uma metáfora dos tubos ligando tudo e funcionando de forma orgânica. São grandes “intestinos” de um sistema beirando o colapso. Como é defendido por Umberto Eco, a retórica oscila entre a redundância e a informação.5 A propaganda, seguindo pela relação entre retórica e ideologia, será eficiente se conseguir balancear dois elementos antagônicos: se, por um lado, mais atenção chama quanto mais subverte as normas comunicacionais, por outro, mais atinge os públicos-alvo quanto mais previsíveis as proposições de arquétipos6. Sob este enfoque, analisando-se a propaganda da Central Services, vemos que a peça produzida para vender tubos é redundante. Para o espectador do filme Brazil, instaura-se uma indubitável estranheza pelo produto exposto, o que viola nossas normas atuais de interesse de compra. Mas passado esse “incômodo”, após entendermos o contexto no qual está inserida a propaganda, vemos que se trata de um produto corriqueiro, e a mensagem está toda envolta em clichês da propaganda. 5 6 op. cit. Umberto Eco, p. 76 op. cit. Umberto Eco, p. 157 64 FIGURA 23 - Central Services - Propaganda Um homem de meia idade sobriamente vestido, dirigindo-se à donade-casa, discorre sobre ornamentos “fora-de-moda” sendo substituídos por novos elementos em “centenas de cores para se adequar ao seu gosto exigente”. Todos os clássicos mecanismos de persuasão na linguagem da propaganda televisiva estão nestes 20 segundos de publicidade, segundo Sérgio Raimundo Elias da Silva7: PALAVRAS repetidas, verbos no presente do indicativo (simples), verbos no 7 Mechanisms of Persuation in the language of Television Ads, de Sérgio Raimundo Elias da Silva 65 imperativo para incentivar o consumo, adjetivos vagos, vocabulário coloquial. Esta pequena peça publicitária assume o papel de apresentar, no prólogo de Brazil, toda a sisudez e a previsibilidade de um sistema de governo ditatorial, rígido, tenso e burocrático mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia. Tanto o cenário e o figurino, quanto a postura e o tom de voz do apresentador são óbvios e conservadores, evitando revolucionar idéias e costumes. 66 IV. Arquitetura: a Idéia de Futuro na Construção A verdade. Devem os edifícios ser verdadeiros ou falsos? Devem ser sinceros? 1 Considerando o prévio conhecimento do espaço psicológico apresentado em Brazil, o filme, resta analisar se o cenário, o ambiente, a Arquitetura apresentados comunicam aquela mesma mensagem. Verifiquemos se há coerência entre os discursos verbal e não-verbal no filme. Discutir-se-ão, neste capítulo, alguns aspectos da comunicação da Arquitetura, uma vez que, como toda manifestação artística, a compreensão de todos os possíveis significados de uma obra Arquitetônica é inatingível. Por se tratar de um ofício cujo resultado é perene, a Arquitetura é utilizada por gerações e sociedades distintas, cujas ideologias distinguem-se. Assim, os significados podem se alterar e a mensagem percebida pode também mudar de acordo com os usos dos objetos arquitetônicos. Umberto Eco corrobora: Erraríamos em pensar que o significante arquitetônico, pela sua própria natureza, seja levado a denotar uma função primeira estável enquanto que as funções segundas variam ao longo do curso da história. Já o exemplo do cruzamento ogival nos mostrou que até mesmo a função primeira pode sofrer curiosos desencontros entre função denotada e função efetiva, e faz-nos pensar que, com o passar do tempo, certas funções primeiras, perdendo toda eficácia, já nem mesmo sejam denotadas aos olhos de destinatários desprovidos dos códigos adequados. 2 Mas, antes de tudo, é preciso responder (ou ao menos tentar responder) duas questões cruciais: “Arquitetura é arte?” e “Objetos arquitetônicos comunicam ou funcionam?” 1 2 Saber ver a arquitetura, de Bruno Zevi, p.124 op. cit. de Umberto Eco, p.207 67 Quanto à primeira questão, parece, à priori, que a resposta é simples: sim, é arte. Todos os textos que discutem a história da arte ou história da estética, ou ainda a crítica da arte, incluem Arquitetura no rol das artes. Há sempre exemplos de obras arquitetônicas para caracterizar os diversos períodos da história. Falar de Grécia Antiga e não citar Partenon, falar de Idade Média sem comentar uma catedral gótica, aludir o Renascimento sem lembrar Brunelleschi, apresentar o Barroco e não introduzir Piazza São Pedro são falhas impensadas a qualquer crítico de artes. Mas há vozes dissonantes, sendo talvez a mais estridente a de Umberto Eco: Se os códigos arquitetônicos não podem permitir que eu ultrapasse tal limite, neste caso a Arquitetura não é um modo de mudar a história e a sociedade, mas um sistema de regras para dar à sociedade aquilo que ela prescreve à Arquitetura. Então a Arquitetura é um serviço, mas não no sentido em que é serviço a missão do homem de cultura, que trabalha para propor continuamente novas instâncias ao corpo social, e sim em que é serviço a limpeza pública, o abastecimento de água, o transporte ferroviário; isto é, serviços que provêem com elaborações técnicas sempre mais refinadas a satisfação de uma demanda pré-constítuída. Nesse caso a Arquitetura nem mesmo seria uma arte, se é próprio da arte (...) propor à comunidade dos fruidores algo que ainda os surpreenda. 3 É, possivelmente, mais um momento de aporia de Eco, fazendo as vezes de Sócrates, negando para poder reafirmar mais à frente. Contra esta categórica afirmação – “Arquitetura nem mesmo seria uma arte” – encontram-se diversos autores que, todavia, não negam peculiaridades específicas desta arte, como Zevi: “(...) o caráter essencial da arquitetura - o que faz distingui-la das outras atividades artísticas está no fato de agir como um vocabulário tridimensional que inclui o homem”4. Strickland acrescenta: “A arquitetura é uma forma de expressão única que combina arte e ciência, beleza e praticidade”5. Janson (2001. p.830), quando comenta o neoclassicismo e o romantismo diferencia: “Dado o caráter individualista do romantismo, seria de esperar que a variedade de estilos reviventes (revival styles) 3 op. cit. de Umberto Eco, p.222 op. cit. de Bruno Zevi, p.17 5 Arquitetura Comentada, de Carol Strickland, p.IX 4 68 fosse maior na pintura, a mais pessoal e íntima das artes plásticas, que na arquitetura, a mais comunitária e pública”6. Jorge Coli, quando cita arquitetura em seu O que é arte, já responde – ao incluí-la em livro com este título - sim à pergunta primeira, mas também a diferencia das demais artes, talvez por um aspecto pouco comentado: No caso da arquitetura, a vitalidade parece intervir sobretudo no fazer. Precisa-se de um arquiteto para a concepção de tal ou qual projeto, público ou privado, mais complexo ou mais ambicioso. Seu prestígio, o prestígio de seu escritório garantir-lhe-á as encomendas, e evidentemente interferirá nos preços. No entanto, diferente do quadro, a arquitetura não produz objetos culturais que servem de refúgio monetário: o renome do arquiteto prestigia a encomenda, mas não garante a permanência do valor comercial da obra. Um quadro, assinado por Cézanne ou Picasso, é investimento seguro; um prédio, assinado por Le Corbusier, Mies van der Rohe, Warchavchik, não garante coisa alguma, não significa nenhuma valorização. Se há degradação social do contexto urbano onde o edifício foi construído, não é a celebridade do arquiteto que o salvará(...) 7 Zevi acrescenta, ainda, que o maior obstáculo à compreensão do diferencial maior da arquitetura em relação à demais artes seja o vocabulário: Falta um vocábulo que exprima um conceito fundamental, uma qualidade notável da arquitetura, a livability, isto é, a habitabilidade num sentido compreensivo, material, psicológico, e espiritual, da palavra. (...) Outros "princípios" da arquitetura, a euritmia, a harmonia, a consonância, o ritmo, ou estão implícitos nas qualidades acima enumeradas, ou são comuns a todas as artes. 8 Sim, é arte. Sim, também, é uma arte diferente das demais artes. É arte porque é uma expressão da natureza humana9. É diferente porque, mais do que qualquer arte, depende da participação do Homem, não da mera contemplação. Isto é, 6 História Geral da Arte, de H. W. Janson, p. 830 O que é arte, de Jorge Coli. P.101 8 op. cit., de Bruno Zevi, p.124 9 Citado por Romildo Sant’Anna no curso Discurso Ideológico da Arte, Marília, 2003. 7 69 o que faz da Arquitetura – incluindo aí o design, e o urbanismo – uma arte única, de utilidade intrínseca. Começa-se, aí, a responder à segunda questão proposta. Em geral, compreende-se que Arquitetura, antes de qualquer coisa, funciona. Mas este conceito – ou preconceito – é rebatido por vários estudos. Roland Barthes diz que “a partir do momento em que existe sociedade, todo uso se converte em signo daquele uso”.10 Umberto Eco emenda, a seguir, no mesmo texto: Usar uma colher para levar o alimento à boca ainda é a execução de uma função através do emprego de um artefato que a permite e promove: mas dizer que o artefato "promove" a função indica que também ele assume uma função comunicacional, comunica a função a executar; ao mesmo tempo o fato de alguém usar a colher, aos olhos da sociedade que o observa, já se torna a comunicação de uma adequação sua a certos usos (e não a outros, como o de levar o alimento à boca com as mãos, ou sorvendo-o diretamente do recipiente). A colher promove certo modo de comer e significa aquele modo de comer, enquanto que a caverna promove o ato de buscar abrigo e comunica a existência de uma função possível; ambos os objetos comunicam até mesmo quando não são usados. 11 Mais à frente, arremata: Neste sentido, o que permite o uso da Arquitetura (passar, entrar, parar, subir, estender-se, debruçar-se, apoiar-se, segurar, etc.) não são apenas as funções possíveis, mas antes de mais nada, os significados coligados que me dispõem para o uso funcional. 12 Conclui-se, pois, que o uso é o que justifica o objeto arquitetônico, mas fica claro que o que diferencia e o credencia como arte é o poder de comunicação de suas possibilidades de uso e das posturas dos possíveis usuários frente ao objeto. O objeto arquitetônico é arte, ainda que utilitário, porque comunica: comunica a expressão humana, extrapolando as individualidades do criador e do usuário, sendo uma 10 Elementos de semiologia, Roland Barthes, apud op. cit. Umberto Eco. p.190 op. cit. Umberto Eco. p.190 12 op. cit. Umberto Eco. p.191-2 11 70 “radiografia” das instituições sociais, políticas, econômicas, culturais, religiosas, científicas, filosóficas. Veja a opinião de Zevi: A interpretação utilitária é conhecida: todos os edifícios devem corresponder ao seu objetivo. Mas a discussão surge quando se quer precisar a natureza do objetivo. Deixemos o Monumento de Lisícrates, ou a Coluna de Trajano, ou todos os exemplos de arquitetura escultórica, (...) isto é, os edifícios sem espaço interior. Mas qual é o intento de Taj Mahal senão o de um puro e eterno tributo de amor de um homem à esposa? A interpretação utilitária possui um sentido apenas se alargar os seus horizontes sobre o campo psicológico e espiritual. 13 IV.1. Análise da arquitetura em Brazil A análise a seguir buscará encontrar quais os traços que podem dar um sentido de unidade para todos os ambientes apresentados no filme Brazil, com o objetivo de entender quais são as características de sua arquitetura. Considerando que se utilizam ambientes construídos ou adaptados especialmente para o filme (em alguns casos, com usos diversos dos originais, como veremos a seguir), tentaremos determinar quais as mensagens que se quiseram transmitir através destes espaços. No filme, os ambientes foram divididos em cinco categorias, agrupados pelas características de uso: as residências; os locais de trabalho; os espaços públicos; os espaços externos e, por fim, a “sala de confissões” do Departamento de Recuperação de Informações do Ministério de Informações, pelo aspecto trágico e pela relevância do local na história do protagonista do filme. 13 op. cit. Bruno Zevi. p.108 71 IV.1.1. As residências Como foi anunciado no início do filme, na propaganda discutida anteriormente (sub-capítulo IV.2.2.), uma das características dos ambientes internos em Brazil é a presença marcante dos dutos, tanto de ar-condicionado, quanto de elétrica e hidráulica. Além do fator de exposição das instalações, como uma crítica ao estilo hi-tech muito utilizado à época da produção do filme, os dutos conferem aos cenários elementos de decoração causando efeito ornamental exagerado. Aliás, nos ambientes apresentados em Brazil, há sempre uma grande quantidade de elementos ornamentais, mesmo nos ambientes mais amplos, com grande carga de informações visuais. As residências que aparecem no filme são as dos principais personagens: Sam Lowry, Ida Lowry, Jill Layton e Archibald Buttle. Os dois últimos, vizinhos em um condomínio popular chamado Shangri la Towers, são proletários que moram de forma simples, em pequenos apartamentos, mas com decoração abundante, carregada de objetos decorativos (figuras 24 e 25). O apartamento de Sam Lowry (figuras 26 e 27) é, entre as residências apresentadas, a mais despida de decoração, e a mais carregada de paródias sobre as tecnologias “modernas”. Entretanto, desde o começo do filme percebe-se que estas tecnologias falham o tempo todo, transformando a vida do pequeno burocrata, organizado e metódico, em sofrimento. É marcante a característica do apartamento do funcionário burocrata do governo, onde sob a superfície exata das paredes esconde-se uma barafunda de instalações caóticas, uma alegoria da vida do protagonista e, conseqüentemente, do próprio governo, responsável pelo serviço público de “dutos”. Esses dutos também podem ser compreendidos como uma metáfora de cordões umbilicais que ligam todos os cidadãos, todos os ambientes, à mãe-governo. 72 FIGURA 24 - Residência Buttle FIGURA 25 - Residência Jill Layton 73 FIGURA 26 - Residência Sam Lowry FIGURA 27 - Residência Sam Lowry Caracterizando o outro extremo da sociedade, aparece o apartamento de Ida Lowry, uma residência ampla e luxuosíssima, carregada de elementos decorativos de valor artístico (figuras 28 a 32). Com muitos espelhos, pequenos móveis, muitos tecidos e tapetes, plantas e flores, é uma casa produzida para receber convidados e comunicar a proximidade com o poder. 74 FIGURA 28 - Residência Ida Lowry FIGURA 29 - Residência Ida Lowry 75 FIGURA 30 - Residência Ida Lowry FIGURA 31 - Residência Ida Lowry 76 FIGURA 32 - Residência Ida Lowry A importância de se analisar as residências de Brazil está em tentar entender o íntimo de cada personagem, representado em seu próprio ambiente – sua casa – que, apesar de ser mais pessoal, reflete a posição exata do indivíduo na sociedade. A casa é sua “assinatura” espacial, comunica quem e o que é seu morador. Conforme defende Gaston Bachelard, “Toda grande imagem simples revela um estado de alma. A casa, mais ainda que a paisagem, é um ‘estado de alma’. Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.”14 Antes, no mesmo A Poética do Espaço, Bachelard afirma mais contundentemente a característica da casa como um elo primitivo do morador com o universo: “Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é (...) o nosso primeiro universo.”15 Conforme a sabedoria popular, "a casa é a cara do dono", acolhe-o e o revela. Mas a casa, em Brazil, não é a casa que se deseja. Este “nosso primeiro universo”, seguro, onde nos refugiamos das intempéries, é violado em Brazil. Bachelard responde assim à questão sobre o mais precioso benefício da casa: “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.16 Todas as residências no filme, entretanto, são invadidas por pessoas do governo. Não há segurança na casa. O sonho não é seguro, não é tranqüilo. A residência, se por um lado, retrata o universo íntimo, a personalização de cada indivíduo neste universo, por 14 A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard. p.84 op. cit. de Gaston Bachelard. p.24 16 op. cit. de Gaston Bachelard. p.26 15 77 outro lado, em Brazil, demonstra a insegurança e a vulnerabilidade do indivíduo no mundo, resultado de um sistema de governo “impessoalizante”. Um sistema aniquilador da identidade e dos sonhos. IV.1.2. Os Locais de Trabalho A impressionante presença do Ministério da Informação em Brazil faz com que quase todos os locais de trabalho apresentados no filme sejam integrantes do Governo. Os locais onde Sam trabalha são completamente diferentes em suas características físicas, mas perfeitamente complementares para descrever a “alma” do Ministério da Informação. O departamento Cadastramento de Informações é apresentado como uma enorme “fábrica de burocracia”, com uma circulação frenética de pessoas e papéis, caótica e visivelmente ineficiente (figura 33). Considerado pelos demais órgãos do governo como um setor menor, destinado aos funcionários sem ambição, caracteriza-se pelo enorme número de arquivos, com paredes funcionando como gavetas. Os funcionários, cientes do trabalho inútil, deliciam-se a ludibriar a chefia assistindo a velhos filmes em seus computadores. O escritório do chefe, localizado em posição mais alta, como as antigas salas dos feitores de fábrica, personifica e comunica a figura medíocre de seu ocupante. Dentre a mobília, destacase um velho gaveteiro de madeira escura, com gavetas de tamanhos vários, destinadas a documentos de tamanhos e importâncias distintos (figura 34). 78 FIGURA 33 - Departamento de Cadastramento FIGURA 34 - Departamento de Cadastramento Aqui cabe a citação de uma passagem de Bachelard, quando comenta um romance de Henri Bosco: Ali, pelo menos, tudo permanecia sólido e fiel. (...) Nada que não fosse previsto, calculado para o uso, por um espírito meticuloso. E que instrumento maravilhoso! Fazia as vezes de tudo: era uma memória e uma inteligência. Nada impreciso ou fugidio nesse cubo tão bem trabalhado. O que ali se colocava uma vez, cem vezes, dez mil vezes, podia ser encontrado num piscar de olhos. Quarenta e oito gavetas! O bastante para 79 conter um mundo bem classificado de conhecimentos positivos. O Sr. CarreBenoît atribuía às gavetas uma espécie de poder mágico. “A gaveta”, costumava dizer, “é o fundamento do espírito humano”.17 Bachelard avisa que o personagem de Henri Bosco é um homem medíocre, no intuito de mostrar que a positividade da gaveta - tão importante no caso departamento de Cadastramento de Informações – é uma necessidade do homem inferior. O burocrata precisa de gavetas para organizar. Um documento sem uma gaveta-destino não existe. Em seu novo trabalho, fruto de sua promoção, Sam é destinado a uma meia-sala, dividida com um ridículo personagem, no Departamento de Recuperação de Informações. Setor responsável pela cobrança de dívidas relativas aos trâmites burocráticos, a principal função dos funcionários é encontrar os “culpados” pelos descaminhos dos documentos e, por meio de tortura, fazê-los confessar e assumir suas dívidas. Neste setor, os funcionários demonstram seu medo frente ao poder do chefe. Escondem-se em minúsculos cubículos dos quais saem para adular e seguir ordens do chefe arrogante e impessoal. A Sam é destinada uma sala numerada, que o identificará como funcionário – “seu próprio número, em sua própria porta e, atrás desta porta, sua própria sala” (figura 35). A porta, entra aqui como um desafio. Pode ser a solução de problemas ou o início de outros. Ser “dono” de uma porta, atrás da qual há uma sala, é uma nova decisão, um recomeço. Bachelard anuncia “Como tudo se torna concreto no mundo de uma alma quando uma simples porta vem proporcionar as imagens de hesitação, da tentação, do desejo, da segurança, da livre acolhida, do respeito! Narraríamos toda nossa vida se fizéssemos a narrativa de todas as portas que já fechamos, que abrimos, de todas as portas que gostaríamos de reabrir.”18 A sala “atrás da porta” é derivada da divisão de uma sala maior, onde uma divisória metálica divide até os pôsteres e a mesa (figuras 36 e 37). Na outra metade (figura 38), Harvey Lime incorpora o funcionário público deste departamento: inseguro, falso, pouco eficiente, impermeável a mudanças e tecnologias, apegado às pequenas posses de seus poucos objetos. A metáfora (ou seria metonímia?) da meia-sala, 17 18 op. cit. de Gaston Bachelard. p.90 op. cit. de Gaston Bachelard. p.226 80 constrói perfeitamente a função a ser exercida por Sam: meio-funcionário, executando meias-tarefas, de meias-verdades. A meia-sala comunica a imagem do "meio-ser". FIGURA 35 - Departamento de recuperação de Informações FIGURA 36 - Departamento de recuperação de Informações 81 FIGURA 37 - Departamento de recuperação de Informações FIGURA 38 - Departamento de recuperação de Informações Os demais escritórios apresentados são de funcionários de alto escalão. A sala de Jack Lint, antigo colega de Sam, que subiu de cargo graças a sua “ambição”, é, de fato, uma ante-sala da sala de “confissões”, onde ocorrem as sessões de torturas. Sua decoração não lembra em nada esta sua função. Com uma iluminação bastante contrastante, o ambiente é sóbrio e até aconchegante, onde uma criança espera o pai terminar seu trabalho (figura 39). Na sala do Sr. Helpmann, o Vice-Ministro da Informação, uma decoração simples, com objetos clássicos, é iluminada com contrastes. Ligada a esta, a sala dos computadores com as fichas de 82 todos os “devedores” do governo (figura 40). As dimensões amplas e a sobriedade comunicam a importância do cargo. FIGURA 39 - Sala de Jack FIGURA 40 - Sala de Mr. Helpmann Um dos ambientes de trabalho significativos no filme é a sala do cirurgião plástico Dr. Jaffe (figura 41). Ornamentada excessivamente, com elementos tão supérfluos quanto sua ocupação, o ambiente é banhado por uma luz lateral que destaca uns pontos e esconde outros. O excesso de cores e materiais predomina e contamina os olhos. 83 FIGURA 41 - Consultório Médico IV.1.3. Os espaços públicos Aqui, analisaremos os espaços onde as pessoas “compram” os serviços públicos – os lobbies do Ministério da Informação, o Restaurante e o Velório. Os lobbies do Departamento de Cadastramento e do Departamento de Recuperação de Informações comunicam, imediatamente, as características de seu Ministério. Ambos têm proporções sobrehumanas, com enormes portas, enormes escadarias, iluminação dramática vertical. A já citada teoria da “semiótica do poder”, de Décio Pignatari, se faz presente. Mas, assim como as salas dos funcionários se diferem nos dois departamentos, fruto da diferença de mensagem que cada departamento pretende comunicar, os lobbies também se apresentam diferentes em suas mensagens. O Departamento de Cadastramento, na sua insegurança e desconfiança, exibe muita informação, muitos símbolos do poder e da dominação das pessoas. Todos são filmados, revistados, verificados e "cheirados" por equipamentos eletrônicos de segurança. (figuras 42 e 43) 84 FIGURA 42 - Lobby, Departamento de Cadastramento FIGURA 43 - Lobby, Departamento de Cadastramento No Departamento de Recuperação, um homem apenas, preso ao centro do saguão, dialoga, de forma arrogante: -“Quer ver minha identidade?”, diz Sam. -“Não é necessário, senhor.” -“Mas eu poderia ser qualquer um.” -“Não, o senhor não poderia. Aqui é Recuperação de Informações...” 85 Mas o elevador não funciona bem, e a segurança, apesar da demonstração, é falha (figuras 44 e 45). FIGURA 44 - Lobby, Depto. de Recuperação de Informações FIGURA 45 - Lobby, Depto. de Recuperação de Informações O restaurante onde Sam encontra sua mãe para discutirem sobre sua promoção também é marcado por um ambiente de pés direitos altíssimos e uma decoração ornamental exagerada. Grandes dutos saem do chafariz central do salão. Escadarias, iluminação pontual, paredes com janelas falsas provocam sensação de movimento e velocidade. Os olhos não param frente ao ambiente. O exagero da preocupação exclusiva com as aparências culmina quando, após uma explosão 86 terrorista na cozinha do restaurante, o maître se apressa em disfarçar o terror, colocando um ridículo biombo separando a mesa de Sam de pessoas mutiladas, se arrastando (figuras 46 e 47). FIGURA 46 - Restaurante FIGURA 47 - Restaurante Apesar de ser uma imagem de sonho, já provocado pela lobotomia em Sam, o ambiente do Velório da Senhora Terrain é também marcante por seus excessos. As dimensões grandiosas, as elipses concêntricas no teto, embutindo iluminação difusa, porém ofuscante, a grande quantidade de tecido negro, esvoaçando 87 artificialmente, as velas, as luzes de piso, o caixão rosa-pink, todos os elementos apresentam uma decoração exageradamente carregada de informações. No caso, informações redundantes (figuras 48 e 49). Assim como nos demais ambientes públicos mencionados, o devaneio contempla a grandeza, e essa contemplação coloca o sonhador para fora do mundo próximo, colocando-o em um mundo marcado pelo infinito. FIGURA 48 - Velório FIGURA 49 - Velório 88 IV.1.4. Os espaços externos Brazil, o filme não apresenta grandes planos dos ambientes urbanos. A câmara sempre fechada, recorta as paisagens, obrigando o espectador a “montar” o cenário fora da tela. Este recurso reforça a sensação geral de falta de controle, de impossibilidade de participação nos processos decisórios. Trata-se de um jogo, em que a cada movimento de câmera, a audiência testa sua capacidade de “criar o cenário” para além da tela. Cada cena permite uma sensação de confirmação ou violação do que teria sido criado na mente. A câmara só se afasta nos poucos momentos em que aparecem cenas fora da cidade, na rodovia e na cena final, quando Sam e Jill estão no campo, morando numa casa pré-fabricada. Apesar de não ser possível ter-se uma visão abrangente da “cidade” em que se passa o filme, pode-se intuir que existe um Centro Cívico, tomado por edifícios do onipresente Ministério da Informação, próximo a um centro comercial. A classe média e os funcionários públicos vivem em um bairro verticalizado, com ruas como um condomínio, cobertas por andares superiores de apartamentos. As fábricas ficam em um distrito separado, cuja estrada de acesso é vigiada e controlada por barreiras policiais. Nas antigas e abandonadas estruturas de usinas nucleares foram construídas as Shangri La Towers, conjunto de moradias populares, onde residem os assalariados mal remunerados e a grande massa de desempregados. Nesta “cidade” moderna, utópica e futurista, setorizada e perigosa, destacam-se alguns cenários que merecem nota. As esplanadas em frente aos grandes prédios públicos são estreitas em relação às dimensões do edifícios, obrigando a visualização em perspectiva, o que aumenta a sensação de profundidade e altura que, somada à decoração rebuscada e carregada das fachadas, apesar da ornamentação aparentemente clássica, demonstra uma preocupação exagerada com a imponência – remetendo à arquitetura das décadas iniciais do século XX: fascista e nazista (figuras 50 e 51). A fachada do ambiente onde está ocorrendo o velório de Mrs. Terrain também demonstra estas características (figura 52). 89 FIGURA 50 - Ministério da Informação FIGURA 51 - Ministério da Informação 90 FIGURA 52 - Velório O bairro verticalizado e adensado em que Sam mora e onde acontece a cena de perseguição ao caminhão de Jill constitui-se de um cenário real, um enorme condomínio de apartamentos, construído na França, em Marne la Valle (figuras 53 e 54). Hoje, a cidade abriga a EuroDisney. As ruas estreitas e sem céu, tomadas de apartamentos por todos os lados, em que pessoas e veículos disputam o mesmo espaço, aumentam ainda mais a imagem de insegurança e impessoalidade. FIGURA 53 - Bairro de Classe Média 91 FIGURA 54 - Bairro de Classe Média As Shangri La Towers, de fato, só aparecem no conjunto em uma maquete. Representam uma brincadeira, uma espécie de humor negro, dos autores do filme com a reutilização de estruturas de usinas nucleares para fins residenciais. A forma circular com paredes parabólicas cria um choque visual com as bases de apartamentos uniformes e padronizados. Este desequilíbrio entre as formas, a leveza da forma superior – apesar do “peso” da função primitiva das torres – contrastando com a “dureza” das caixas de apartamentos, provoca uma grande tensão no espaço. Comunica o estilo de vida, contrastado entre o possível e o desejado (figura 55). FIGURA 55 - Shangri La Towers 92 Entre os espaços externos, uma das mensagens mais contundentes encontra-se na rodovia que leva ao complexo industrial onde Jill carrega seu caminhão. A imagem da rodovia ladeada em toda sua extensão por out-doors que impedem qualquer visualização da natureza totalmente destruída e tomada por infinitas linhas de dutos assusta e faz refletir sobre como a propaganda pode mascarar o mundo real. O que se vê não é o que se tem (figura 56). E, como quase tudo em Brazil é filmado em plano médio (apesar de as figuras escolhidas para ilustrar o presente trabalho serem, em sua maioria, em plano aberto), as poucas panorâmicas fazem justamente o papel invertido da sensação de liberdade do espaço aberto, externo. Em um ambiente em que tudo é exageradamente controlado (ou aparentemente sob controle), a imensidão dos espaços externos provoca a insegurança da agorafobia. O poeta francês Jules Supervielle, citado por Bachelard, escreve: “O excesso de espaço sufoca-nos muito mais que a sua falta.”19 Frase excelente para resumir estas sensações. FIGURA 56 - Rodovia 19 op. cit. de Gaston Bachelard. p.223 93 IV.1.5. A sala de “confissões” A cena final, em que Sam Lowry é submetido ao “tratamento” definitivo, após o qual não será mais um elemento subversivo, é filmada em um ambiente muito apropriado para a sensação de isolamento e desproteção. As proporções enormes do ambiente e a forma das paredes com suas curvas estreitandose para o alto provocam vertigem e ampliam a sensação de altura (figuras 57 a 59). Esta impressão de “aproximação do infinito” do teto remete ao impacto das abóbadas ogivais góticas sobre os fiéis medievais: significa o poder de Deus sobre o Homem. O posicionamento do poder instituído é o mesmo: se o gótico queria mostrar a força da Igreja através do reforço da imagem de pequenez do homem dentro da “casa de Deus”, na “sala de confissões”, a pequenez de Sam diante do Estado é reforçada pela dimensão esmagadora do ambiente. J. Teixeira Coelho Netto expõe este conceito de verticalidade do Gótico: Há outros modos de encarar a verticalidade, e esta mesma verticalidade do Gótico? Sim, e parecem bem mais adequados: um deles baseia-se numa concepção (defendida por Hauser) segundo a qual o verticalismo Gótico é, pelo contrário, manifestação do misticismo humano. Numa catedral gótica se teria de tudo, menos racionalismo: nessa ‘nave iluminada a caminho do paraíso’ se misturam a pretensão irracional de elevar-se aos céus, de reverenciar irracionais e de afirmar-se um poder irracional (poder que transparece no exterior da construção). Internamente, prevalece uma atmosfera também igualmente mística, onde além dos cantos, da música, do incenso, proliferam (e no exterior também) as figuras mais irracionais (monstros, deformações) que a humanidade da época conhecia. Tudo isto formando um conjunto que, como já se disse, visava antes convencer pelos sentidos do que através de uma verdadeira argumentação lógica e racional. Arquitetura mística, portanto, e não racionalista; antes, talvez a mais irracionalista de todas...” 20 20 A Construção do Sentido na Arquitetura, de J. Teixeira Coelho Netto. pp. 75-6 94 FIGURA 57 - A sala de “confissões” FIGURA 58 - A sala de “confissões” 95 FIGURA 59 - A sala de “confissões” E o ambiente de insegurança ainda apresenta “reforços espaciais”. O piso no qual se locomovem as pessoas é uma estreita passarela sobre uma estrutura metálica situada a uma altura suficiente para provocar medo. As paredes, apesar de serem despojadas de ornamentos, por serem de concreto aparente, demonstram as marcas das formas de construção, o que produz uma textura geométrica mas que, ao acompanhar as curvas das paredes, provocam um desenho em movimento, uma trama veloz sobre a qual o olhar não consegue descansar. Mas a maior sensação de desproteção figura justamente na forma circular. Muitas teorias da arquitetura apontam a curva como sendo mais “quente”, mais humana que a reta. “O ângulo é masculino e a curva é feminina”.21 O próprio Bachelard explica como esse ambiente, formado por círculos e curvas pode ser tão frio, tão inseguro: a total ausência de “cantos” leva ao desespero. Sem um cantorefúgio em que o ser possa se sentir respaldado, o ambiente torna-se inseguro. “Mas em primeiro lugar o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do ser: a imobilidade. Ele é o local seguro, o local próximo de minha imobilidade. O canto é uma espécie de meia-caixa, metade paredes metade porta.”22 Para Sam, o círculo da sala de "confissões" comunica o isolamento total, a ausência de refúgios. No centro do grande círculo não há respostas, não há novos caminhos. 21 22 op. cit. de Gaston Bachelard. p. 154 op. cit. de Gaston Bachelard. p. 146 96 IV.2. O futuro é Barroco? Os críticos e os historiadores da arte iniciaram a procura, em meados do século XIX, de uma forma científica de análise artística, na busca de uma abordagem rigorosa, a fim de se evitar o julgamento e procurar uma compreensão objetiva da arte. O primeiro passo se dá com o suíço Heinrich Wölfflin, que publica, em 1888, Renascença e Barroco. Seu estudo inova, a priori, por elevar o período conhecido como Barroco – de barrueco (pérola imperfeita), uma clara definição pejorativa – ao status de produção artística autônoma, com seus próprios critérios, formas e intenções – contrariando o que se havia estabelecido, até então: o Barroco seria um derivado aberrante e decadente do período renascentista. Mas seu estudo acrescenta um inventário estilístico, no qual, pela primeira vez, distinguem-se os dois períodos da história da arte. Em 1915, outro estudo de Wölfflin, Princípios Fundamentais da História da Arte, amadurece as reflexões iniciadas em Renascença e Barroco e classifica os dois períodos em cinco categorias, conforme apresentado no seguinte quadro: Categorias CLASSICISMO BARROCO Linear Pictórico Plano Profundidade Forma fechada Forma aberta Pluralidade Unidade Clareza Obscuridade QUADRO 1: Categorias segundo Heinrich Wölfflin Em 1928, o pensador catalão Eugenio d’Ors escreve O Barroco e, com inteligência e erudição, conclui que o barroco é um estilo que agrupa fenômenos culturais cronologicamente distantes, mas que contém aspectos determinantes comuns. Em sua colocação, d’Ors apresenta períodos barrocos ao longo da história da 97 arte, desde a pré-história até o tempo da publicação de seu estudo. Assim, a história da arte seria uma sucessão de eras barrocas e não-barrocas. Tanto Wölfflin quanto d’Ors são universalizantes, isto é, buscam definições gerais para determinar estilos polarizados. Os conceitos são estáticos, se agrupam, sem uma idéia de conseqüência e causalidade entre os períodos. Em 1934, Henri Focillon publica A Vida das Formas. Afirma que existe um processo evolutivo em todas as eras: a todo período artístico corresponde um momento de “estado primitivo” no qual as formas se descobrem pouco a pouco; um momento de apogeu e maturidade, o “classicismo”; e um momento de declínio onde o artista já não busca mais e, não tendo mais o que acrescentar, complica, reelabora, excede, o “barroco”. Em Focillon as formas possuem leis próprias, há uma história da arte independente da História. Tomando emprestadas de Wölfflin as características do Barroco em Princípios Fundamentais da História da Arte, podemos verificar, analisando os ambientes apresentados em Brazil, que toda a inspiração da criação dos cenários do filme, consciente ou inconscientemente, remetem a uma arquitetura Barroca. Apesar de todo reducionismo radical ter a tendência de ser pragmático, arriscando-se ao leviano, o que se quer aqui não é simplesmente rotular-se com um estilo o trabalho de cenografia do filme. Ao contrário, a idéia é associar as características da época do estilo Barroco – e, conforme Wölfflin, os demais “períodos Barrocos da História”, como o Gótico – com as características do “momento histórico” do futuro apresentado no filme. O interesse maior da arquitetura pictórica está em fazer com que a forma básica se apresente em imagens as mais numerosas e variadas possíveis. (p.86) O Barroco desvaloriza a linha enquanto contorno, multiplica as bordas, e enquanto a forma em si se complica e a ordenação se torna mais confusa, mais difícil para as partes isoladas imporem seu valor plástico: por sobre a soma das partes desencadeia-se um movimento. (p.87) 98 Não é do interesse da arquitetura pictórica situar o edifício de sorte a possibilitar sua observação por todos os lados, ou seja, como um objeto tangível, como era o ideal da arquitetura clássica. (p.95) (os interiores) Aqui é o campo ideal para os cenários e as perspectivas, para os raios de luz e a escuridão da profundidade. Quanto mais a luz for introduzida na composição como um fator independente, tanto mais a arquitetura será do tipo pictórico visual. (p.95) Com efeitos especiais de iluminação, (...), a realidade espacial é acentuada artificialmente, para que disto resulte um efeito de profundidade mais intenso. (p. 159) ... a construção barroca sempre se baseia em um impulso de natureza dinâmica (...) os motivos de profundidade só se revelam na alternância dos pontos de observação. (p.161) O Barroco não pretende que o corpo do edifício se imobilize num ponto de observação determinado. Truncando os ângulos, ele consegue obter planos oblíquos, que orientam o olhar. (p.162) O Barroco evita essa proporcionalidade exata, procurando superar o efeito do acabamento completo com uma harmonia mais dissimulada das partes. Quanto às proporções propriamente ditas, a tensão e a insatisfação sobrepõem-se ao equilíbrio e à serenidade. (pp. 206-7) O que o Barroco apresenta de novo não é, portanto, a unificação de um modo geral, e sim aquele conceito de unidade absoluta, no qual a parte, enquanto valor independente, é absorvida em grau maior ou menor pelo todo. (p.253) Para toda e qualquer sucessão de formas horizontais, o barroco busca os agrupamentos unificantes. (p.263) Não é verdade que o ser humano se compraz apenas com o que é absolutamente claro; ele não tarda a exigir que se passe do claro ao que nunca se revela inteiramente ao olhar. Por mais variadas que sejam as transformações estilísticas do período pós-clássico, a todas é comum uma particularidade curiosa: a imagem escapa, de algum modo, à compreensão total. (p.304) 99 O Barroco tem grande predileção pelas intersecções. Ele não se limita a ver a forma diante da forma, a interceptante e a interceptada, mas saboreia a nova configuração que resulta dessas intersecções. (p.305) O que o Barroco almeja é precisamente uma tensão que nunca poderá ser desfeita. (p.308)23 Os trechos do livro de Wöllflin descrevem, como vemos, as principais características dos ambientes, tanto internos como externos, tanto públicos quanto privados, que nos apresentam os produtores de Brazil. Wölfflin termina seu livro com um exemplo de comparação entre dois vasos, um renascentista e um barroco. O autor conclui sobre a forma barroca: “qualquer que seja a nossa localização diante da obra, jamais a forma se deixará apreender ou fixar por completo; a imagem “pictórica” encerra algo de inesgotável para os olhos.”24 Mas, afinal, por que a arquitetura de um filme como Brazil se reveste das características barrocas? Em quê o momento de Brazil - “em algum lugar do século XX” – se assemelha ao Barroco propriamente dito ou aos períodos da História em que o emocional predomina como expressão humana? Estas questões podem ser respondidas por J. Teixeira Coelho Netto, em A Construção do Sentido na Arquitetura: Que se pense na arquitetura barroca, especialmente na arquitetura religiosa barroca. Produto da Contra-Reforma na luta contra o protestantismo, surge quando a Igreja Católica encomenda especificamente uma arquitetura com uma forma determinada para uma função específica ambas destinadas a ela mesma, Igreja: tratava-se de dar formas de encantamento, de sufocação sinestésica calculadas para fazer retornar à sede católica os antigos adeptos desviados pela nova adversária e ao mesmo tempo conquistar novos simpatizantes. E sob o ponto de vista da Igreja, do produtor, a combinação existiu, pois deu resultados.25 23 Princípios Fundamentais da História da Arte, de Heinrich Wölfflin op. cit. de Heinrich Wölfflin. p. 311 25 op. cit., de J. Teixeira Coelho Netto. p. 110 24 100 Em Brazil, esta idéia de Igreja apresentada por Coelho Netto é substituída pelo Ministério da Informação, utilizando a arquitetura oficial, que inclusive penetra nos espaços privados por meio dos tubos onipresentes, como parte da grande propaganda ideológica maciça para manter próximos e conquistados, todos os cidadãos. Maria Aparecida Santilli, em trabalho que discute a poesia barroca portuguesa, comenta sobre o temário barroco: O temário da literatura seiscentista é um atestado dessa influência contra-reformista: o medo da morte, a consciência do pecado, a contrição, o desengano, a oscilação de sentimentos distintos, o claroescuro, o sentimento estóico de que os esforços humanos são inúteis, a sensação do tempo e o conseqüente desejo de aproveitar a vida presente (carpe diem)26. Nada mais apropriado para representar um período de insegurança, de medo, de sentimento de opressão, de dependência ao poder estabelecido – como o que se apresenta em Brazil – do que a expressão artística de um período histórico marcado pelos mesmos sentimentos. O futuro, pelo o menos o futuro de Brazil, é Barroco. 26 Apresentação Poesia Barroca Portuguesa, de Maria Aparecida Santilli. p.16 101 V. Considerações Finais O que se pretendia com este trabalho era analisar a comunicação arquitetônica apresentada em obras de cinema ambientadas no futuro e verificar a existência de coerência entre a linguagem verbal e a não-verbal, na construção da idéia de futuro. A escolha do filme Brazil como corpus da pesquisa auxiliou o caminho por ser um filme muito rico em mensagens implícitas, conteúdo e muito elaborado em imagem, permitindo a análise e a comparação desejadas. As escolhas dos autores em que foi baseada a pesquisa também auxiliou em muito o trabalho, pois a elucidação dos "mistérios" do percurso só foi possível graças à riqueza dos textos encontrados. Mas, entretanto, uma questão provavelmente continua restando, após este mergulho nas entranhas do futuro construído na obra cinematográfica: seria este estudo, incluindo suas conclusões, válido para aplicação em qualquer outra obra de cinema ambientado no futuro? Será que existe um paralelo entre o filme analisado e seus pares, ao longo da história do cinema? Será, afinal, que todos os "futuros", conforme se concluiu neste trabalho, são Barrocos? Logicamente, não desejaremos determinar uma resposta irrefutável a estas questões, assim como, humildemente, não pensamos jamais esgotar o assunto, principalmente pelo fato de que ainda haveria inúmeros futuros a se analisar e outros mais a serem criados. A pesquisa mostrou, ao longo de seu percurso, que a crítica da arquitetura e da comunicação arquitetônica ainda têm muito a amadurecer e muitas discussões hão de se acalorar em torno da matéria antes de se poder ter certezas consolidadas de sua eficácia. Arquitetos, semiólogos, filósofos, críticos de arte, literatos, antropólogos, psicólogos, engenheiros, artistas, geógrafos, historiadores, poetas e curiosos hão de continuar se debruçando sobre as obras arquitetônicas e opinarão muito, muitas vezes em opiniões diametralmente opostas, antes de haver consenso sobre o processo de criação do espaço e o processo de leituras deste espaço. Mas também se concluiu que há muito que se aprender e apreender desta arte relativamente nova apenas um século!: o cinema. Novas teorias surgem a cada instante, lendo e relendo as obras criadas neste curto, mas profícuo espaço de tempo. Apesar das aparentes incertezas, porém confiando na qualidade do material existente à disposição desta pesquisa, voltamos ao ponto de partida do trabalho, quando ainda se devorava informação avidamente, ainda sem noção dos percalços do caminho, para assistirmos às mais consagradas obras de cinema ambientadas no futuro 102 com o intuito de verificar a validade das conclusões chegadas ao longo dos capítulos deste estudo. As imagens que serão apresentadas, nas figuras seguintes, extraídas de algumas destas obras, comparadas com as mensagens verbais expostas em cada uma das obras nos permitem afirmar que, com maior ou menor consciência por parte dos realizadores, os ambientes psicológicos criados nestes diversos futuros podem ser caracterizados visualmente como "barrocos". Note-se que as aspas são fundamentais e se justificam apenas com a leitura dos capítulos anteriores, nos quais o conceito de Barroco é exposto como algo que, concordando com Eugenio D'ors, ultrapassa as datas determinadas pelos historiadores da comunicação artística. Ainda deixamos como proposta de novos estudos, para se analisar se todo e qualquer futuro para o homem sempre foi e sempre será cercado de incertezas, inseguranças, sentimento de pequenez, de finitude, levando a esta "irracionalidade-sentimental" do Barroco ou se, como foi afirmado na introdução deste trabalho, o homem representa seu futuro como uma extrapolação, uma reprodução exagerada do presente e, sendo assim, as obras de cinema ambientadas no futuro se revestem deste "barroquismo" porque o século XX, com suas tecnologias galopantes e dúvidas em torno da validade das mesmas é, também, um período "barroco". A questão é: será que o Homem naturalmente enxerga um mundo barroco ou o Homem está em um presente barroco, vendo, por isso, futuros barrocos? FIGURA 60 - Metrópolis (Metropolis, ALE, 1926) de Fritz Lang FIGURA 61 - Blade Runner, o Caçador de Andróides (Blade Runner, EUA, 1982) de Ridley Scott 103 FIGURA 62 - 2001, uma odisséia no espaço (2001: A Space Odissey, ING, 1968) de Stanley Kubrick FIGURA 63 - Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, ING, 1971) de Stanley Kubrick 104 FIGURA 64 - Duna (Dune, EUA, 1984) de David Lynch FIGURA 65 - Barbarella (Barbarella, FRA/ITA, 1968) de Roger Vadim 105 FIGURA 66 - Solaris (Solaris, URS, 1972) de Andrei Tarkovsky FIGURA 67 - THX 1138 ( THX 1138, EUA, 1971) de George Lucas FIGURA 68 - Quinto Elemento, O (Fifth Element, The, FRA/EUA/ING, 1997) de Luc Besson FIGURA 69 - Doze Macacos, Os (12 Monkeys, EUA, 1995) de Terry Gilliam 106 FIGURA 70 - Batman (Batman, EUA, 1989) de Tim Burton FIGURA 71 - Matrix (Matrix, EUA, 1999) de Larry & Andy Wachowski As figuras 60 a 71 apresentam imagens de diversos filmes ambientados no futuro e cujos cenários podem ser caracterizados como "barrocos". Como contraponto a estas idéias e, principalmente, à conclusão deste trabalho, apresento como imagens finais algumas cenas de Guerra nas Estrelas (Star 107 Wars, EUA, 1977, de George Lucas), no qual, também em um letreiro inicial "provocativo", se apresenta um tempo e um local indefinido: "Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante..." O filme, então, estaria ambientado no passado e em outros planetas. Mesmo assim, a imaginação humana, ao criar este ambiente tão paralelo ao nosso Mundo, ainda utiliza inspiração barroca. FIGURA 72 - Guerra nas Estrelas (Star Wars, EUA, 1977) de George Lucas 108 Uma parte de mim é todo mundo Outra parte é ninguém, fundo sem fundo Uma parte de mim é multidão Outra parte estranheza e solidão Uma parte de mim pesa, pondera Outra parte delira Uma parte de mim almoça e janta Outra parte se espanta Uma parte de mim é permanente Outra parte se sabe de repente Uma parte de mim é só vertigem Outra parte linguagem Traduzir uma parte na outra parte Que é uma questão de vida e morte Será arte? Traduzir-se, de Ferreira Gullar FIM 109 Ficha Técnica (Brazil, o Filme) Título Original ____________________________________________ Brazil Ano de Produção _________________________________________ 1985 Filmado nos LEE INTERNATIONAL FILM STUDIOS _____________ Wembey, Inglaterra Terry Gilliam _____________________________________________ Diretor Arnon Milchan ____________________________________________ Produtor Patrick Cassavetti _________________________________________ Co-Produtor Terry Gilliam/Tom Stoppard/Charles McKeown ________________ Roteiro Roger Pratt ______________________________________________ Diretor de Fotografia Julian Doyle______________________________________________ Edição Michael Kamen ___________________________________________ Música Original Norman Garwood _________________________________________ Projetista de Produção George Gibbs ____________________________________________ Superv. de Efeitos Especiais Richard Conway __________________________________________ Supervisor de Maquetes Maggie Weston ___________________________________________ Cabelos e Maquiagem James Acheson __________________________________________ Figurino Jonh Beard/Keith Pain _____________________________________ Diretor de Arte Graham Ford _____________________________________________ Gerente de Produção Irene Lamb_______________________________________________ Direção de Casting Margery Simkin ___________________________________________ Direção de Casting - EUA Bill Weston ______________________________________________ Arranjo de Extras Bill Hobbs _______________________________________________ Arranjo "Guerreiro Samurai" Guy Traver _______________________________________________ Assistente do Diretor Chris Thompson __________________________________________ 2º Assistente do Diretor Richard Coleman _________________________________________ 3º Assistente do Diretor David Garfath ____________________________________________ Operador de Câmera Bob Doyle _______________________________________________ Gravação de Som Paul Carr ________________________________________________ Mixagem de Regravação Linda Bruce ______________________________________________ Gerente de Unidade Peter Verard______________________________________________ Gerente de Construção Ray Cooper ______________________________________________ Coordenador Musical Rodney Glenn ____________________________________________ Editor de Som Terry Connors ____________________________________________ Contador Penny Eyles______________________________________________ Supervisor de Script Margaret Adams __________________________________________ Coordenador de Produção David Appleby ____________________________________________ Fotografia Still 110 Ficha Técnica (Brazil, o Filme) Elenco Jonathan Price ___________________________________________ Sam Lowry Robert de Niro ____________________________________________ Harry Tuttle Katherine Helmond ________________________________________ Mrs. Ida Lowry Ian Holm_________________________________________________ Mr. Kurtzmann Bob Hoskins _____________________________________________ Spoor Michael Palin _____________________________________________ Jack Lint Ian Richardson ___________________________________________ Mr. Warrenn Peter Vaughan____________________________________________ Mr. Helpmann Kim Greist _______________________________________________ Jill Layton Jim Broadment ___________________________________________ Dr Jaffe Barbara Hicks ____________________________________________ Mrs. Terrain Charles Mackeon _________________________________________ Harvey Lime Derrick O'Connor _________________________________________ Dowser Katherine Pogson _________________________________________ Shirley Bryan Pringh _____________________________________________ Spiro Sheila Reid_______________________________________________ Mrs. Buttle 111 Lista de Figuras Figura 1 - "31 de junho de 1984" ________________________________________ 24 Figura 2 - Bug no sistema______________________________________________ 29 Figura 3 - Lloyd's Building - Guia do visitante _____________________________ 31 Figura 4 - Computador "do futuro" ______________________________________ 32 Figura 5 - Mesa de "Confissões" ________________________________________ 33 Figura 6 - O processo X Brazil __________________________________________ 34 Figura 7 - As mulheres dos sapateiros ___________________________________ 35 Figura 8 - Oito e meio X Brazil __________________________________________ 36 Figura 9 - Encouraçado Potenkim X Brazil ________________________________ 37 Figura 10 - Um corpo que cai X Brazil ____________________________________ 39 Figura 11 - Informação: a chave da prosperidade __________________________ 57 Figura 12 - Ajude o Ministério a ajudar você / Seja seguro, suspeite __________ 57 Figura 13 - Conversa à toa é uma armadilha ______________________________ 58 Figura 14 - Suspeita traz Confiança______________________________________ 58 Figura 15 - Felicidade: estamos todos juntos nisso ________________________ 58 Figura 16 - Campos de férias com segurança total _________________________ 59 Figura 17 - Confiança precipitada, arrependimento adiado __________________ 59 Figura 18 - Não suspeite de um amigo, denuncie-o ________________________ 59 Figura 19 - Em quem você pode confiar? _________________________________ 60 Figura 20 - Poder hoje, prazer amanhã ___________________________________ 60 Figura 21 - 3 horas consecutivas sem acidente com perda de tempo _________ 60 Figura 22 - Cuidado com pacotes _______________________________________ 61 Figura 23 - Central Services - Propaganda ________________________________ 64 Figura 24 - Residência Buttle ___________________________________________ 72 Figura 25 - Residência Gil Layton _______________________________________ 72 Figura 26 - Residência Sam Lowry ______________________________________ 73 Figura 27 - Residência Sam Lowry ______________________________________ 73 Figura 28 - Residência Ida Lowry________________________________________ 74 Figura 29 - Residência Ida Lowry________________________________________ 74 Figura 30 - Residência Ida Lowry________________________________________ 75 Figura 31 - Residência Ida Lowry________________________________________ 75 Figura 32 - Residência Ida Lowry________________________________________ 76 Figura 33 - Departamento de Cadastramento______________________________ 78 Figura 34 - Departamento de Cadastramento______________________________ 78 Figura 35 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 80 Figura 36 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 80 Figura 37 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 81 Figura 38 - Departamento de Recuperação de Informações__________________ 81 Figura 39 - Sala de Jack _______________________________________________ 82 112 Figura 40 - Sala de Mr. Helpmann _______________________________________ 82 Figura 41 - Consultório médico _________________________________________ 83 Figura 42 - Lobby, Departamento de Cadastramento _______________________ 84 Figura 43 - Lobby, Departamento de Cadastramento _______________________ 84 Figura 44 - Lobby, Departamento de Recuperação de Informações ___________ 85 Figura 45 - Lobby, Departamento de Recuperação de Informações ___________ 85 Figura 46 - Restaurante________________________________________________ 86 Figura 47 - Restaurante________________________________________________ 86 Figura 48 - Velório ____________________________________________________ 87 Figura 49 - Velório ____________________________________________________ 87 Figura 50 - Ministério da Informação _____________________________________ 89 Figura 51 - Ministério da Informação _____________________________________ 89 Figura 52 - Velório ____________________________________________________ 90 Figura 53 - Bairro de classe média ______________________________________ 90 Figura 54 - Bairro de classe média ______________________________________ 91 Figura 55 - Shangri La Towers __________________________________________ 91 Figura 56 - Rodovia ___________________________________________________ 92 Figura 57 - A sala de "confissões" ______________________________________ 94 Figura 58 - A sala de "confissões" ______________________________________ 94 Figura 59 - A sala de "confissões" ______________________________________ 95 Figura 60 - Metropolis _________________________________________________ 102 Figura 61 - Blade Runner ______________________________________________ 102 Figura 62 - 2001, uma odisséia no espaço ________________________________ 103 Figura 63 - Laranja mecânica ___________________________________________ 103 Figura 64 - Duna______________________________________________________ 104 Figura 65 - Barbarella _________________________________________________ 104 Figura 66 - Solaris ____________________________________________________ 105 Figura 67 - THX 1138 __________________________________________________ 105 Figura 68 - O quinto elemento __________________________________________ 105 Figura 69 - Os doze macacos ___________________________________________ 105 Figura 70 - Batman ___________________________________________________ 106 Figura 71 - Matrix (trilogia) _____________________________________________ 106 Figura 72 - Guerra nas Estrelas _________________________________________ 107 113 Referências Bibliográficas APPLEYARD, B. 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De Volta para o Futuro 2 (Back to the Future 2, EUA, 1989, CIC e Universal) de Robert Zemeckis. Doze Macacos, Os (12 Monkeys, EUA, 1995, Columbia TriStar) de Terry Gilliam. Duna (Dune, EUA, 1984, FlashStar) de David Lynch. Encouraçado Potemkim (Bronenosets Potymkin, URS, 1925, Continental) de Sergei M. Eisenstein. Guerra nas Estrelas (Star Wars, EUA, 1977, Fox) de George Lucas. Farenheit 451 (Farenheit 451, França) de François Truffaut. Fellini Oito e Meio (Otto Mezzo, ITA, 1963, Continental) de Federico Fellini. Homens Preferem as Loiras, Os (Gentlemen Prefer Blondes, EUA, 1953, Fox) de Howard Hawks. Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, ING, 1971, Warner) de Stanley Kubrick. Mad Max (Mad Max, AUS, 1979, Warner) de George Miller. Máquina do Tempo, A (Time Machine, EUA, 1960,Vídeo Arte) de George Pal. Matrix (Matrix, EUA, 1999, Cinema) de Larry & Andy Wachowski. Metrópolis (Metropolis, ALE, 1926, Continental) de Fritz Lang. Processo, O (Trial, The, FRA/ITA/ALE, 1963, Top Tape e Continental) de Orson Welles. Quinto Elemento, O (Fifth Element, The, FRA/EUA/ING, 1997, Columbia TriStar) de Luc Besson. Rollerball, os Gladiadores do Futuro (Rollerball, EUA, 1975, Warner e Fox) de Norman Jewison. Solaris (Solaris, URS, 1972, Taipan) de Andrei Tarkovsky. Tempos Modernos (Modern Times, EUA, 1936, Continental) de Charles Chaplin. Terceiro Homem, O (Third Man, The, Ing, 1949, Continental) de Carol Reed. THX 1138 ( THX 1138, EUA, 1971, Warner) de George Lucas.