LIÇÕES DE TEORIA DOS JOGOS

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LIÇÕES DE TEORIA DOS JOGOS
LIÇÕES DE TEORIA DOS JOGOS
Marilda Antônia de Oliveira Sotomayor
e
Maurício Soares Bugarin
São Paulo, maio de 2007
Livro encaminhado ao CNPq como parte do relatório técnico do
Projeto Edital Universal número 4797771/2004-9.
Direitos autorais reservados.
Qualquer forma de reprodução é expressamente proibida.
Marilda Sotomayor e Maurício Bugarin, 2007
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CAPÍTULO 1
O TEOREMA DE ARROW
Objetivos: Apresentar e demonstrar o Teorema da Impossibilidade de Arrow.
1.1-INTRODUÇÃO
Num problema típico de teoria da escolha individual, um agente seleciona uma
opção em um conjunto de alternativas disponíveis. Podemos predizer que o agente
racional escolherá uma alternativa mais preferida, no sentido de que lhe dá o maior
ganho ou “payoff”, ou ainda, uma alternativa que resulta na “melhor conseqüência” para
ele.
Como veremos neste livro, num problema de teoria dos jogos existem vários
indivíduos, cada um escolhendo uma ação em seu conjunto disponível de ações. As
regras do jogo então determinam um “payoff” ou uma “conseqüência” para cada
indivíduo, que depende das ações escolhidas por todos os agentes. Portanto, dadas as
regras do jogo, ao escolher uma ação, cada indivíduo racional tentará selecionar aquela
que lhe dará o maior ganho possível; porém cada um deve levar em conta que os outros
estarão fazendo a mesma tentativa de obter o que eles mais preferem. Às vezes este
procedimento leva a uma competição entre os participantes, em que a alternativa
resultante nem sempre corresponde a uma alternativa preferida por todos os agentes. Em
outras situações isto leva a uma cooperação de benefício mútuo; e em geral, a uma
combinação desses dois comportamentos extremos. Em qualquer caso, as decisões
tomadas por grupos de indivíduos diferem fundamentalmente das decisões tomadas por
um único indivíduo. É justamente na natureza dessa diferença entre escolha individual e
teoria dos jogos que se baseia a teoria de escolha social, que é introduzida neste
capítulo.
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1.2-FUNÇÃO DE BEM ESTAR SOCIAL
Considere a seguinte situação de escolha. Um grupo de indivíduos (uma
sociedade) deseja ir a um restaurante para comer uma pizza, que será repartida entre
eles. Os tipos de pizza aceitáveis para qualquer indivíduo do grupo são: x, y e z.
Suponhamos que ninguém sabe que tipos de pizza o restaurante escolhido oferece.
Assim a sociedade precisa considerar as suas escolhas sobre todos os possíveis
subconjuntos de {x, y, z}. A questão que surge naturalmente é:
Como efetuar essas escolhas coletivas levando em conta as escolhas
individuais?
Este assunto é tratado no livro seminal de Kenneth Arrow (1951, 1963), que deu
origem à teoria da escolha social. Por sua contribuição à teoria econômica, Arrow foi
prêmio Nobel de Economia em 1972, juntamente com Sir John Hicks.
O ponto de partida para a análise dessa questão são as preferências individuais.
Assume-se que qualquer indivíduo j é caracterizado por uma relação de preferência Rj
(ou ≥j) sobre o conjunto de alternativas {x, y, z}. Isto é, Rj é uma relação binária sobre
{x, y, z} completa e transitiva. Assim, xRjy ou x≥jy significa que o indivíduo j acha a
pizza x pelo menos tão boa quanto a pizza y; lê-se “j prefere (fracamente) x a y”. Por Rj
ser completa, o indivíduo j é sempre capaz de dizer se prefere1 a a b, se prefere b a a ou
se é indiferente entre os dois tipos de pizza, quaisquer que sejam as alternativas a e b no
conjunto {x, y, z}. Além disso, como Rj é transitiva, se j prefere a a b e b a c, então j
também prefere a a c, quaisquer que sejam as alternativas a, b, c em {x, y, z}.
É natural supor que cada indivíduo j faz escolhas consistentes com a relação de
preferências Rj: se tiver que escolher, por exemplo, entre x e y, e escolhe x então ele
prefere x a y. Isto significa dizer que as escolhas individuais são racionais. Exigir que
cada Rj seja completa parece razoável. Quer dizer que dados dois tipos de pizza
quaisquer do conjunto {x, y, z}, o indivíduo j é capaz de dizer se prefere um tipo ao
outro ou se é indiferente entre ambos. No entanto, a transitividade é uma exigência
forte, como sugere o exemplo a seguir.
1
Por convenção, usa-se a expressão “j prefere a a b” com o significado “aRjb”.
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A partir de uma relação de preferência Rj define-se uma relação de indiferença
≈j da seguinte forma: j é indiferente entre a e b, a≈jb, se aRjb e bRja.2 Se Rj for
transitiva, então a relação de indiferença ≈j também será transitiva. Considere agora o
conjunto de alternativas X={x0, x1, x2,…, x100}, onde x0 é uma xícara de chá com uma
colher de açúcar; x1 é uma xícara de chá com uma colher menos 1/100 da colher de
açúcar; …; x99 é uma xícara de chá com uma colher menos 99/100 da colher de açúcar;
x100 é uma xícara de chá sem açúcar. É natural esperar que o indivíduo j seja
indiferente entre x0 e x1; entre x1 e x2;…; entre x99 e x100. Entretanto ele
dificilmente será indiferente entre x0 e x100: uma xícara de chá sem açúcar e uma com
uma colher de açúcar.
Por outro lado, o exemplo a seguir mostra que a intransitividade, ou seja uma
situação na qual as preferências não são transitivas, pode ser considerada irracional.
Considere o conjunto de alternativas X={x, y, z}. Suponha que o indivíduo j prefere
(estritamente) x a y, y a z, mas prefere (estritamente) z a x. Suponha que j tenha
z. Como ele prefere y a z, estará disposto a pagar uma certa quantia, digamos, $0,10,
para trocar z por y; novamente, como prefere x a y, estará disposto a pagar, digamos,
$0,10, para trocar y por x. Finalmente, como prefere z a x, ele estará disposto a
pagar uma certa quantia, seja $0,10, para trocar x por z. Assim, com uma preferência
intransitiva, ele termina com a mesma alternativa que possuía, mas $0,30 mais pobre.
Assumindo pois as propriedades básicas das preferências individuais (completas
e transitivas), passa-se então à construção de uma relação de preferência da sociedade
como um todo, que possa ser usada para solucionar o problema de decisão da sociedade:
Que relação de preferências da sociedade, sobre o conjunto de alternativas,
deve ser usada para representar, racionalmente, as escolhas dessa sociedade?
Dada a análise feita sobre preferências individuais, procura-se uma relação
binária de preferências da sociedade que seja completa e transitiva. Além disso as
preferências da sociedade devem expressar, de alguma forma, as preferências
2
Analogamente, diz-se que “j prefere estritamente a a b” quando aRjb mas não é verdade que bRja, ou
seja, j prefere a a b mas não é indiferente entre a e b. A notação usada é aPjb ou a>jb.
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individuais. Uma “função de bem estar social”, definida a seguir, é uma regra de
construção de preferências sociais a partir de preferências individuais.
Definição 1.1-Função de bem-estar social.
Sejam N={1,…, n} um conjunto de indivíduos representando uma sociedade e X
um conjunto de alternativas ou escolhas possíveis para a sociedade. Seja ainda ρ o
conjunto de todas as relações de preferência completas e transitivas que podem ser
definidas sobre X. Para cada j em N seja ρj⊆ρ o conjunto das possíveis preferências
completas e transitivas do indivíduo j e seja ρn = ρ1×ρ2×…×ρn. Uma função de bem
estar social (FBS) F é qualquer função de ρn em ρ:
F: ρ1×ρ2×…×ρn
ρ
→
R=(R1, R2,…, Rn) a RS=F(R)=F(R1, R2,…, Rn)
Assim, uma FBS agrega n preferências individuais completas e transitivas (um
perfil de preferências) numa única preferência completa e transitiva: a preferência
social.
Observe que, apesar de uma FBS ser completa e transitiva, sua definição não
inclui nenhum tipo de propriedade que garanta uma certa “compatibilidade” com as
preferências individuais. Destarte, o problema de decisão da sociedade pode ser
reformulado a seguinte forma:
Que FBS escolher?
Arrow (1951) analisou esse problema primeiro considerando que FBS não
escolher, conforme ilustrado nos exemplos clássicos a seguir.
Exemplo 1.1-A regra da maioria de Condorcet.
A regra da maioria de Condorcet diz que uma alternativa x é pelo menos tão boa
quanto uma alternativa y (xRS y) se o número de indivíduos na sociedade que preferem x
a y é maior ou igual ao número de indivíduos que preferem y a x. Esta regra não
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corresponde a uma FBS uma vez que a preferência social RS não é transitiva. De fato,
considere uma sociedade com três indivíduos A, B, e C, e suponha que existem três
alternativas X={x, y, z}. As preferências dos indivíduos encontram-se descritas nas
colunas a seguir, nas quais uma alternativa que se encontra mais ao alto é estritamente
preferida à alternativa que se encontra mais abaixo; assim, por exemplo, xPA yPA z em
que PA é a relação de preferências estritas associada a RA..
A
B
C
x
y
z
y
z
x
z
x
y
É fácil verificar que, segundo a regra da maioria, xPS yPS z mas zPS x. Assim, a
regra da maioria de Condorcet pode selecionar uma relação de preferências sociais nãotransitiva, não sendo pois uma FBS. Este fenômeno é conhecido como Paradoxo de
Condorcet, por ter sido inicialmente estudado no século 18 pelo filósofo francês
Marquis de Condorcet (1743-1794).
Exemplo 1.2-Regra da pluralidade dos votos.
A regra da pluralidade dos votos, ou regra da decisão majoritária, estabelece que
cada indivíduo numa sociedade vote por sua alternativa preferida e então uma
alternativa x será preferida a y pela sociedade (xRS y) se receber pelo menos tantos
votos quanto y, sendo estritamente preferida (xPS y) se receber mais votos que y.
Esta regra, que é muito utilizada em processos eleitorais, possui uma
característica indesejável, conforme descrito a seguir.
Cena no restaurante: Voltemos ao exemplo do restaurante. O garçom informa que o
restaurante faz as pizzas x, y e z. Existem agora sete indivíduos, sendo três deles com
as preferências do tipo A do exemplo anterior, dois outros com preferências do tipo B e
os dois restantes com preferências do tipo C. O representante do grupo pede a pizza x,
a mais votada pelo grupo. O garçom vai até a cozinha e, ao voltar, comenta: “A pizza y
não está boa hoje.”
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Os indivíduos de B, desencantados com y, mudam suas preferências para R′
dadas pelas preferências estritas a seguir:
z
x
y
Com as novas preferências de B a preferência do grupo muda para R′S:
z P′S x P′S y.
Assim, o representante do grupo solicita uma alteração no pedido, dizendo:
“Pedimos a pizza x porque acreditávamos que y estivesse boa. Como y não está boa,
desconsidere o pedido anterior e traga-nos a pizza z.”
O princípio que a regra da pluralidade viola é conhecido como:
A.1-Independência das alternativas irrelevantes: As preferências entre duas
alternativas x e y devem depender apenas de como as pessoas ordenam x em relação
a y, e não de como ordenam as outras alternativas. Essa propriedade pode ser expressa
da seguinte forma:
Sejam x e y duas alternativas e sejam (R1, R2,…, Rn) e (R′1, R′2,…, R′n) dois
perfis de preferências tais que para cada j=1,…, n, xRj y ⇔ xR′j y. Então, xRS y ⇔ xR′S
y.
A independência das alternativas irrelevantes aparece como uma propriedade
mínima a ser satisfeita por qualquer FBS que possa ser considerada "bem comportada".
Ela diz que a preferência social entre duas alternativas é totalmente determinada pelas
individuais sobre essas duas alternativas. Arrow listou mais três princípios que
considerou que uma boa FBS deve satisfazer:
A.2-Unanimidade (ou princípio de Pareto): Se xPj y para todo j=1,…,n, então xPS
y.
Ou seja, se todos os indivíduos de uma sociedade preferem estritamente a
alternativa x à alternativa y, então a sociedade como um todo também deve preferir
estritamente x a y.
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A.3-Domínio irrestrito: F é definida para qualquer perfil de preferências (R1,…, Rn)
que possa ser definido sobre X. Equivalentemente, Dom(F)= ρ ×ρ ×…×ρ.
Como procura-se uma regra que possa ser aplicada a qualquer sociedade,
qualquer ordenação das alternativas pode vir a corresponder às preferências de algum
indivíduo. Assim, não se deveria restringir a priori o domínio das possíveis preferências
individuais.
A.4-F não deve ser ditatorial: F é ditatorial se existe um indivíduo j (ditador) tal
que para quaisquer alternativas x e y em X, e para todo perfil de preferências
(R1,…, Rn)∈ρn, se xRj y então xRS y, em que RS =F(R1,…, Rn).
Esta propriedade diz que uma regra social na qual as preferências de um
indivíduo sempre se impõem às preferências dos outros, independentemente de quais
sejam estas preferências, não pode ser uma regra adequada.
1.3-O TEOREMA DE ARROW
Definição 1.2-Sejam X um conjunto de alternativas, N um conjunto de indivíduos com
preferências respectivas Rj, j∈N sobre X, e T um subconjunto de N. Então diz-se que x é
(estritamente) preferível a y em T, xPT y, se xPj y para todo j∈T.
Definição 1.3-Dadas duas alternativas x, y em X, e um subconjunto T⊆N de
indivíduos, dizemos que T determina x contra y se para todo perfil de preferências
(R1,…, Rn) =(RT, RN\T) em que xPT y e yPN\T x, se RS=F(RT, RN\T), então xPS y. Ou
seja, T determina x contra y se os indivíduos em T conseguem impor à sociedade
suas preferências estritas de x por y quando ao resto dessa sociedade prefere
estritamente y a x.
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Lema 1.1-Seja F uma FBS satisfazendo os axiomas A.1, A.2 e A.3. Suponha que
existem pelo menos três alternativas disponíveis:X≥3. Então existem x* e y* em
X e j* em N tais que {j*} determina x* contra y*.
Demonstração: Seja D={T⊆N; ∃ x,y∈X tal que T determina x contra y}. Então:
(i)
D≠φ, pois N⊆D pela propriedade de Pareto (A.2).
(ii)
Assim D é um conjunto parcialmente ordenado pela inclusão, finito e não vazio.
Logo D possui um elemento minimal com relação à inclusão.
(iii)
O conjunto vazio φ não está em D, φ∉D. Caso contrário, existiriam x e y tais
que se yPN x então xPS y, contrariando novamente o princípio de Pareto (A.2).
Seja
T*
em elemento minimal de D. Pela observação anterior, T*≥1.
Mostremos que, de fato, T* =1. Suponhamos, por absurdo, que existe j*∈N tal que
T*={j*}∪T**, onde j*∉T** e T**≥1. Sejam x* e y* duas alternativas tais que T*
determina x* contra y*. Como X ≥3 existe z≠x*, y*. Pela propriedade do domínio
irrestrito (A.3) podemos considerar as seguintes preferências estritas:3
j*
T* \ {j*}=T**
N \ T*
x*
z
y*
y*
x*
z
z
y*
x*
Temos que x*PS y* pois T* determina x* contra y*. Se zPS y* então, por
A.1, T** determina z contra y*, mas então T**∈D, o que contraria a minimalidade de
T*. Como RS é completa isto implica que y*RS z. Portanto x*PS y*RS z e por
transitividade4 x*PS z. Por A.1 segue que {j*} determina x* contra z, donde
{j*}∈D, uma nova contradição pois {j*}⊆T*, T* é minimal e T*>1. Assim, um
elemento minimal de D com relação à inclusão é um conjunto unitário.
Definição 1.4-Um indivíduo j é dito determinante se {j} determina w contra z para
quaisquer alternativas w e z em X com w≠z.
3
Por A.1 a definição das preferências nas demais alternativas, se existirem, são irrelevantes no que diz
respeito à comparação entre as alternativas x*, y* e z.
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Vide exercício 1.1.
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Lema 1.2-Seja F uma FBS satisfazendo A.1, A.2 e A.3. Suponha que X≥3 e
sejam j* um indivíduo e x* e y* duas alternativas tais que, como no lema anterior, {j*}
determine x* contra y*. Então {j*} é determinante.
Demonstração: Pelo lema 1.1, {j*} determina x* contra y*. Como X ≥3 existe z
em X, z≠x*, y*. Por A.3 (e por A.1) podemos considerar as preferências estritas:
j*
N \ j*
x*
y*
y*
z
z
x*
Como { j*} determina x* contra y*, x*PS y*; por Pareto (A.2), y*PS z; por
transitividade, x*PS z. Então, pela independencia de alternativas irrelevantes (A.1), { j*}
determina x* contra z
Tome, agora, w≠z. Se w=x*, então { j*} determina w contra z. Suponha agora
que w≠x*. Considere as preferências estritas:
j*
N \ j*
w
z
x*
w
z
x*
Por A.2, wPS x*; além disso x*PS z, pois j* determina x* contra z; logo wPS
z por transitividade. Então, por A.1, j* determina w contra z. Como w e z são
arbitrários o lema está demonstrado.
Lema 1.3-Seja F uma FBS satisfazendo A.1, A.2 e A.3. Suponha que X≥3 e seja
j um indivíduo da sociedade. Se j é determinante então j é um ditador.
Demonstração: Se j é determinante então j faz prevalecer sua opinião sempre que os
outros estão contra. Temos que mostrar que j sempre faz prevalecer sua opinião,
mesmo quando os demais agentes não estão necessariamente contra j. Então, dados x, y,
z∈X, considere as preferências estritas:
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j
N\j
x
z
z
z
x
y
y
As duas últimas colunas acima, referentes ao conjunto de agentes N \ j, dizem
que todos os agentes desse conjunto preferem estritamente z a x e z a y, mas podem ter
qualquer preferência no que diz respeito à comparação entre x e y.
Por A.3 estas preferências estão no domínio de F. Então xPS z, pois j é
determinante; além disso, por A.2, zPS y; logo, por transitividade, xPS y; mas então, por
A.1, xP′S y para toda (R′1,…, R′n) tal que xPj′y. Logo j é um ditador.
Teorema 1.1 (Teorema da Impossibilidade de Arrow)-Se o conjunto de alternativas
X tiver pelo menos três elementos (X≥3) então não existe nenhuma função de bemestar social que satisfaça simultaneamente A.1, A.2, A.3 e A.4.
Demonstração: Assumamos que F é uma FBS satisfazendo A.1, A.2 e A.3. Pelos
lemas 1 e 2, existe um indivíduo j* determinante. Pelo lema 3, j* é um ditador e
portanto a função F não satisfaz A.4, o que conclui a demonstração do teorema.
Observação-O Teorema da Impossibilidade de Arrow parte de cinco propriedades
básicas que se poderia esperar de uma regra que agregue preferências individuais: a
transitividade, a independência de alternativas irrelevantes, o Princípio de Pareto, a não
restrição do domínio das preferencias individuais e a não imposição sistemática das
preferências de um indivíduo sobre os outros. O teorema mostra que não existe uma
função de bem-estar social com essas propriedades mínimas.
Esse resultado teve profundo impacto na teoria da escolha pública e muita
pesquisa tem sido feita no sentido de relaxar as exigências de uma "boa" FBS para
obter-se um teorema de existência, como por exemplo, assumir um domínio
possivelmente restrito para as preferências individuais. No entanto, subsiste a
dificuldade de se obter uma regra de decisão social adequada. Tal dificuldade abre
caminho para que cada indivíduo tente manipular os processos de tomada de decisão
social a seu favor, como veremos nos capítulos a seguir.
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1.4-EXERCÍCIOS
Exercício 1.1-Propriedades da relação de preferência estrita. Sejam R uma relação
de preferências definida sobre um conjunto X e seja P a relação de preferências estrita
definida a partir de R, ou seja, (x, y∈X), (xPy ⇔ xRy ∧ ∼(yRx)). Suponha que R é
transitiva. Prova que:
(i) A relação P também é transitiva.
(ii) A relação P satisfaz: (x, y, z∈X), (xPy ∧ yRz ⇒ xPz).
Exercício 1.2-Pluralidade de votos. Mostre que a regra de decisão majoritária satisfaz
aos axiomas A.2, A.3 e A.4.
Exercício 1.3-Preferências com pico único. Considere um conjunto de alternativas
X=[a,b]⊂ℜ. Uma relação de preferências Ri definida em X tem pico único se existir
pi∈X tal que, para cada x, y∈X, (x<y≤pi ⇒ yPi x) e (x>y≥pi ⇒ yPi x), em que Pi denota as
preferências estritas derivadas de Ri. Restrinja o domínio das preferências dos agentes
àquelas que tem pico único e considere a preferência social S determinada pelo voto
majoritário. Observe que S é completa.
(i)
No domínio de preferências considerado, cada agente i é caracterizado por sua
alternativa preferida, pi. Um agente h é dito mediano se pelo menos metade do total
dos agentes prefere (fracamente) uma alternativa menor que ph, e pelo menos
metade prefere uma alternativa maior que h:
#{i∈N | pi ≤ ph} ≥ |N|/2 e #{i∈N | pi ≥ ph} ≥ |N|/2.
Mostre que um agente mediano sempre existe.
(ii) Mostre que a alternativa preferida por h será a alternativa preferida pela sociedade:
∀x∈X, hRS x.
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Exercício 1.4-Preferências com pico único. Suponha que por razões técnicas é
requerido que todos os trabalhadores de uma dada firma trabalhem o mesmo número de
horas e a firma deseja fixar esse número. É razoável supor que cada trabalhador ordene
as diferentes horas de trabalho de acordo com o nível de renda-lazer proporcionado.
Quanto mais ele trabalha mais ele ganha e menos tempo para lazer ele tem. Portanto é
razoável supor que existe um ponto onde a utilidade individual alcança um máximo e
que a utilidade decresce se o número de horas trabalhadas varia para a esquerda ou a
direita deste ponto (observe que estamos restringindo o domínio das preferências ao
conjunto das preferências com um único pico). Supondo X={x, y, z}, mostre que se o
número de trabalhadores é ímpar então a regra de decisão majoritária é transitiva.
(Dunkan Black mostrou que se o número de indivíduos da sociedade é ímpar e as
preferências individuais possuem um único pico, então a regra de decisão majoritária é
transitiva).
Exercício 1.5-Função utilitarista clássica. Considere o seguinte critério para avaliação
de alunos. Existem 3 matérias: Português, Matemática e Física. Em cada matéria k é
feita uma ordenação dos alunos s1,…,sn segundo as notas obtidas na disciplina k. Seja
uk(sj) a nota do estudante sj na matéria k. Definimos a preferência Rk por:
siRk sj ⇔ uk(si) ≥ uk(sj).
Cada matéria k tem um peso pk. A classificação geral dos alunos é obtida tomando-se
a soma ponderada das notas de cada aluno nas três matérias. Isto é,
3
3
K =1
K =1
si RS s j ⇔ ∑ p k u k ( S I ) ≥ ∑ p k u k ( S I ) .
Este critério satisfaz A-1? A-2? É transitivo?
Exercício 1.6-Seja X={a1,...,a10} um conjunto formado por dez alunos de uma turma do
curso de economia. Os alunos estão cursando três disciplinas 1, 2 e 3. Ao término do
semestre os alunos fazem provas nas três disciplinas, que determinam suas menções
finais de acordo com a seguinte regra:
(a)
Os alunos com as duas maiores notas recebem a menção A.
(b)
Os alunos com as três maiores notas seguintes recebem a menção B.
(c)
Os alunos com as três maiores notas seguintes recebem a menção C.
(d)
Os alunos com as duas últimas notas recebem a menção D.
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Os critérios de correção das provas são suficientemente detalhados, de forma que
não existem dois alunos com a mesma nota. Define-se a média geral do aluno j da
seguinte forma:
mj=(χj1+χj2+χj3)/3
em que χjt= 4 (respectivamente 3, 2, 1) se o aluno obteve menção A (respectivamente B,
C, D) na disciplina t.
(i)
Construa uma “preferência” Rt sobre o conjunto de alunos para a disciplina t da
seguinte forma:
jRt k ⇔ χjt ≥ χkt
Mostre que Rt é completa e transitiva.
(ii)
Construa uma referência social RS a partir das preferências individuais Rt da
seguinte forma:
jRS k ⇔ mj ≥ mk
em que mj é calculado da forma descrita acima.
Mostre que RS é completa e transitiva.
(iii) Considere a função de bem-estar social F que associa ao perfil de preferências
individuais (R1, R2, R3) a preferência social RS acima descrita. Então F é uma regra
de cálculo da classificação geral dos alunos a partir de suas notas em cada
disciplina. O que significa dizer que F é ditatorial? Mostre que F não é ditatorial,
exibindo para cada “candidato a ditador” j uma configuração de preferências
individuais que contradiz a propriedade da ditadura.
(iv) Mostre que o domínio de F não é irrestrito.
(v)
Mostre que a propriedade de Pareto é satisfeita.
(vi) Prove que não vale a propriedade de independência de alternativas irrelevantes.
Execício 1.7-Regra de Borda. Considere a seguinte regra de escolha social. Existem l
alternativas a1, a2,...,al e n agentes. Cada agente i atribui uma nota ci(a) a cada
alternativa a, da seguinte forma:
(i) Se todas as preferências forem estritas, a alternativa mais preferida recebe nota 1, a
segunda mais preferida recebe nota 2, ... , a l-ésima mais preferida recebe nota l.
Por exemplo, se a1P a2P...Pan, então ci(a1)=1,..., ci(an)=n.
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(ii) Se houver indiferença, a nota atribuída a todas as alternativas indiferentes
corresponde à nota média das notas que seriam dadas se as alternativas estivessem
ordenadas por preferência estrita. Por exemplo, se a1Pa2∼a3Pa4P...Pan, então
ci(a1)=1, ci(a2)=ci(a3)=2,5, ci(a4)=4, ..., ci(an)=n.
Defina uma relação de preferência social RS por aRS b⇔∑i ci(a) ≤∑i ci(b).
Analise as propriedades da função de bem estar social correspondente.
Exercício 1.8-Oligarquia. Uma relação de preferências R é dita quase-transitiva se a
relação de preferências estrita correspondente, P, é transitiva.
(i) Mostre que toda relação transitiva é quase-transitiva mas que a volta não é
verdadeira.
(ii) Sejam N um conjunto de agentes e O⊂N um subconjunto não trivial de N: |O|>1,
O≠N. Defina uma relação de preferência social ≥S, a partir das preferências
individuais, da seguinte forma: a≥S b ⇔ a≥h b para algum h∈O. Mostre que ≥S é
quase-transitiva, não é transitiva, e a regra que associa ≥S às preferências
individuais da forma acima satisfaz as propriedades A.1 a A.4 de uma função de
bem-estar social bem comportada.
REFERÊNCIAS
Arrow, Kenneth J., Social Choice and Individual Values. New Haven, Yale University
Press, 1951, 1963.
Este é o trabalho original: um dos raros exemplos de uma peça de um trabalho
realmente seminal, que é entretanto de fácil leitura.
Sen, Amartya K., Collective Choice and Social Welfare, San Francisco, Holden-Day,
1970.
Este livro oferece um bom tratamento da teoria de escolha social até 1970.
Kelley, Jerry S., Arrow Impossibility Theorems, New York, Academic Press, 1978.
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Este livro inclui alguns importantes desenvolvimentos não incluídos no livro de Sen.
Porém o tratamento não é de leitura fácil.
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