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Dilemas Existenciais de uma Arte Transnacional: A Capoeira no Velho
Mundo
Introdução
O presente artigo tenciona analisar alguns aspectos do processo de
transnacionalização da capoeira para o continente europeu. Tomamos como
essencial contextualizar esta análise em conformidade com passagens da
realidade cultural, social, econômica e política da Europa em diferentes
períodos. Relevamos a importância e o contributo dado pelos emigrantes
brasileiros, capoeiristas de várias gerações que têm vindo a difundir a arte da
capoeira no velho continente, mas também as vivências e apropriações
realizadas pelos europeus na sua relação com essa forma de luta e dança afrobrasileira. Por fim tencionamos traçar algumas considerações importantes
sobre o andamento da capoeira naquele continente bem como também indicar
possíveis caminhos que possam equilibrar o seu futuro crescimento.
As primeiras incursões da capoeira na Europa
Foi por volta dos anos sessenta que a capoeira fez as suas primeiras viagens
para fora do Brasil, levada inicialmente pelos grupos folclóricos brasileiros.
Nesta primeira viagem, vendia-se a capoeira folclorizada pelo imaginário
estilizado da cultura brasileira de exportação de Carmen Miranda, das baianas
e mulatas de trajes coloridos que recriavam o exotismo tropical. Nas décadas
de 60 e 70, muitos grupos folclóricos viajavam pela Europa e Estados Unidos, e
com esse fluxo, alguns capoeiristas, aqueles mais aventureiros, deixavam-se
ficar e reforçavam o movimento migratório que se seguiu nos anos posteriores.
Mestre Nestor Capoeira, na década de setenta, foi quem primeiro introduziu
classes de Capoeira na Europa, na London Scholl of Contemporary Dance,
Inglaterra (Falcão, 2004: 121). Registra-se nesse mesmo período a chegada de
Mestre Jelon Vieira a Nova Iorque, tendo passado por Londres com o grupo
folclórico em que estava inserido. Mestre Jelon declara que o seu trabalho
inicial fixou-se na academia de danças La Mamma, em Manhattan, e ali
permaneceu entre 1975 e 1979. Como explica o mestre, a capoeira neste
desbravamento introdutório esteve vinculada à dança, uma vez que, para
sobreviver, ele e seu companheiro de trabalho, Lorenil Machado, estiverem
envolvidos com espectáculos e ensino da dança (Abreu e Castro, 2009: 100).
O depoimento do Mestre Pavão é enfático sobre o vínculo inicial da capoeira
com a dança e relata a sua experiência na década de 70 nos Estados Unidos.
O capoeirista baiano, que era aluno do curso de danças da Universidade
Federal da Bahia e pertencia aos quadros do grupo de danças desta
universidade, chegou aos Estados Unidos para participar de um intercâmbio
com a Universidade de Illinois, relata ter integrado o grupo de danças da
coreógrafa americana Katherine Dunham e ser um dos cinco no mundo a ter
obtido o grau de mestre na técnica por ela desenvolvida (Silva, 2008: 17).
Perece-nos que a estratégia de mascará-la como dança, se não constitui de
fato a sua origem como sugere o discurso controverso do senso comum,
certamente serviu de recurso para introduzi-la num novo meio em que travava
contato.
1.
Trabalho com crianças em Portugal.
No caso europeu, lembramos que os anos 70 e 80 foram de mudanças com o
fim da guerra fria, o desmoronamento do comunismo nos países do leste, a
queda do muro de Berlim e a lenta estruturação da União Europeia (UE) que,
posteriormente, culminou com a constituição da zona euro – espaço de
circulação da moeda única europeia. Para além desse aspecto, a livre
circulação de bens e pessoas no âmbito da UE, bem como as políticas comuns
entre os países tornaram o velho mundo um continente atrativo à fixação de
novos emigrantes. A primeira leva de emigrantes capoeiras não era,
obviamente, de praticantes profissionais que participavam num movimento
migratório orquestrado pelos grupos para difundir a prática da capoeira,
tratava-se, na realidade, de indivíduos, sobretudo das classes médias baixas,
com alguma qualificação, trazendo na bagagem algum conhecimento sobre
capoeira, no entanto, não eram propriamente mestres ou professores. Somente
numa fase posterior, já por volta dos finais da década de 80, inicia-se um
movimento concertado dos grupos, ainda que precário, para enviar seus
representantes a fim de difundir o grupo entre os “gringos”.
Como temos vindo a afirmar, o processo de transnacionalização da capoeira
deveu-se principalmente aos movimentos migratórios que ocorreram sobretudo
nos anos 80 em direção aos países industrializados. Salienta-se que neste
período o Brasil encontrava-se numa posição de fragilidade política e social
que favorecia o desejo de migrar. Nos países receptores cedo percebeu-se que
havia naquelas sociedades sede de consumo por produtos “étnicos” entre os
quais a capoeira se enquadrava com perfeição.
O primeiro movimento ordenado parece ter sido feito por integrantes do grupo
Senzala que chegaram à França por volta dos anos 80 e, estabelecendo-se
naquele país, difundiram para outros vizinhos como Holanda e Alemanha.
Foram eles os responsáveis pelos primeiros encontros europeus, tendo o
primeiro ocorrido em 1987, na França. Também criaram um modelo de festivais
abertos que ainda hoje encontram grande adesão, como o encontro de Páscoa
em Amsterdam realizados pelos mestres Samara e Marreta desde 1991.
Os anos 90 foram um período de grande expansão da capoeira na Europa,
sobretudo em países como França, Alemanha e Holanda, tendo, nesta década,
alcançado na Península Ibérica o seu potencial máximo no que toca ao número
de praticantes. Foi também um período em que os grupos mais organizados
voltaram-se para um esforço de difusão internacional com filiações massivas e
envio sistemático de novos profissionais para ocupar áreas geográficas pouco
exploradas pelos grupos. Em finais da década de 90, o fato de o número de
alunos por grupo elevar-se a um patamar significativo e de os recursos
auferidos serem tantos deu origem a disputas internas e, por vezes, a
desmembramento dos grupos que apostavam na vocação expansionista da
capoeira. Não é de se estranhar que as designações dos novos grupos,
algumas vezes, fizessem referência à palavra mundo, ou que figurassem nas
suas logomarcas ícones do mapa do mundo, muitas vezes em arranjo com um
berimbau, símbolos que circundam o imaginário expansionista dos capoeiristas
e grupos.
No início do século XXI, aderiram à UE inúmeros estados do leste europeu,
que no passado constituíam a antiga Federação Russa. Estes estados
gozaram de largos fundos comunitários e, não tendo ainda aderido plenamente
à moeda única, representam, neste momento, uma excelente fronteira de
expansão dos mercados europeus. É justamente nestas novas democracias do
leste onde se encontra um franco crescimento do número de praticantes da
capoeira, ainda que lá, não se encontrem profissionais brasileiros. Na Polônia,
por exemplo, país com uma população de cerca de trinta e oito milhões de
habitantes, a adesão dos locais é expressiva. Observe-se, a título de
curiosidade, o grupo UNICAR1, criado por um conjunto de mestres de origem
baiana e que é, na Polônia, liderado pelo professor polonês Adan Faba,
conhecido pelo apelido de professor Sem Memória, cujo grupo, espalhado por
todo território, possui, segundo relato dos seus praticantes, por volta de mil e
duzentos alunos. Contudo e apesar do volumoso e atrativo número de
aderentes, as condições sociais destes países não têm atraído os profissionais
brasileiros para lá se fixarem, vigorando entretanto o modelo em que os locais
lideram as aulas e uma vez por ano são visitados pelos mestres brasileiros que
os supervisionam.
O velho mundo em tempos de crise…
Na sua história recente, o continente europeu tem passado por profundas
mudanças sociais, políticas e econômicas decorrentes de uma crise estrutural
que têm afetado toda a comunidade internacional, em particular, as economias
1
UNICAR: União Internacional de Capoeira Regional. http://www.unicar-capoeira.pl/
mais frágeis. O desemprego generalizado, as quebras financeiras, a perda dos
direitos sociais, os quais usualmente caracterizaram as democracias
ocidentais, e a adoção de políticas de contenção das despesas estatais, que
sobrecarregam as condições sociais das populações, têm levado a um
crescente descontentamento e agravamento da crise. Do ponto de vista
demográfico, o velho mundo embate-se com o problema do envelhecimento da
população, o decrescimento acentuado da natalidade, que por sua vez tem
consequências econômicas drásticas como a elevação das despesas do
estado com os idosos, o aumento do número de pensões de reformas e uma
quebra das receitas do sistema de previdência social. Agrava ainda mais esse
efeito a diminuição da população ativa, constituída sobretudo pelo grupo etário
dos jovens e adultos, que é, no caso, pouco numeroso. As políticas de
natalidade têm obtido pouco êxito e o recurso à mão-de-obra imigrante, se por
um lado tem colmatado os problemas de decréscimo populacional e de quebra
da população ativa, por outro tem gerado graves problemas de integração
social, racismo e xenofobia. Nos últimos anos, as diferentes políticas públicas
adotadas pelos governos socialistas e social-democratas têm-se revelado
ineficientes e agravadoras da crise, pois exercem um forte impacto econômico,
fazendo-se sentir sobretudo no domínio do social. Os assentos parlamentares
dos estados europeus, assim como da própria estrutura da UE, começam a ser
ocupados, ainda que de forma discreta, por partidos da extrema-direita, cujo
conteúdo xenófobo é por demais evidente, gerando sentimentos de intolerância
e atrito social numa população bastante marcada pela diversidade. O exemplo
da França é emblemático com a proibição do uso da Burka por parte das
mulheres muçulmanas e expulsão dos ciganos romenos do território gaulês.
A capoeira insere-se nesse cenário atual, que envolve tantos os capoeiristas
brasileiros quanto os locais, ambos protagonistas na disseminação desta arte
transnacional. Os dilemas e os desafios da capoeira no velho continente são
muitos e devem ter em conta a sua inserção e contribuição no contexto social e
cultural europeu em tempos difíceis, mas também a propagação e uma
estruturação responsável da prática da capoeira fora do território brasileiro.
Embora ainda difíceis de quantificar e qualificar, para o Brasil são inúmeros os
benefícios da internacionalização da capoeira. O emigrante capoeirista levou o
Brasil para além das suas fronteiras e transmitiu uma arte que, sem margens
de dúvidas, começa a pertencer a tantos milhares de indivíduos por todo o
mundo.
Experiências endógenas da criação de grupos de capoeira na Europa
Seria ingênuo por parte dos profissionais emigrantes brasileiros da capoeira
pensar que, ao transmiti-la a outros povos, esses, por um princípio de
dinamismo intrínseco da própria cultura, dela não se apropriassem, sem daí
resultarem modificações ou usos diversos. Mesmo no Brasil, isso ocorre em
diferentes grupos sociais, que usam a capoeira para diversos propósitos, vejase por exemplo o estudo realizado por Brito (2007), que dá conta de como a
população evangélica no ABC paulista utiliza as práticas rituais da capoeira
modificando-as com fins de evangelização e propagação do seu culto religioso.
Um dos estudos mais citados sobre os grupos europeus endógenos vem da
pesquisa realizada por Simone Vassalo junto à Associação Maíra criada em
França em finais dos anos 80. A Associação Maíra foi criada em 1989 e
albergava, em sua maioria, franceses residentes nos subúrbios e imigrantes
das ex-colônias francófonas. Maíra, segundo a autora, era a designação dada
pelos ameríndios brasileiros aos franceses residentes na costa brasileira
durante o período colonial. A peculiaridade dessa apropriação do nome pela
associação prende-se com o fato de esses franceses, no período designado,
facilmente assimilarem as condições tropicais e a língua nativa e desposarem
as
mulheres
índias
(Vassalo,
2003).
A
associação
nasceu
de
um
descontentamento com os mestres brasileiros, acusados de impor métodos
rígidos e autoritários de ensino. Vassalo refere que a Associação apresenta-se
como mediadora entre os povos e as suas culturas, tal como os Maíras do
século XVI, e faz da dissidência da capoeira brasileira uma das estratégias
fundamentais de afirmação identitária. No entanto, as críticas não se limitam
aos praticantes brasileiros, mas concernem a um leque mais vasto de
contestação à sociedade capitalista neoliberal seguindo um tom político. Silva
Ferreira (2005) estudou também em França a Associação Kolors cuja
semelhança com a Associação Maíra, analisada por Vassalo, é nítida. Consta
que nesta associação de praticantes situada também em Paris, é corrente o
tom político no discurso dos praticantes que, entre outras iniciativas,
organizaram manifestações contra a extrema-direita e também protestos de
caráter anti-discriminatório. As apropriações da prática da capoeira pelos
praticantes nos diferentes países prestam-se a várias possibilidades que, por
vezes, envolvem as identidades nacionais, construções e reconstruções
identitárias de cariz étnico e mesmo posturas de combate social de caráter
classista. Por ocasião do seu estudo em França, Silva Ferreira (2005) lembra
que naquele país, se inicialmente a expansão da capoeira fez-se por força dos
movimentos migratórios nas décadas de 70 e 80, atualmente esta difusão fazse pelo crescimento de associações criadas pelos nacionais, os quais
estabeleceram entre os praticantes franceses e brasileiros um complexo
sistema de trocas, que ocorreu, segundo o autor, nas décadas de 80 e 90.
Silva Ferreira (2005) deu conta que em 2005, em França, o site www.capoeirafrance.com registrava cerca de 400 grupos em atividade por todo o país. Cabe
destacar que a introdução da capoeira em território Europeu seguiu diferentes
padrões e não se fez de forma homogênea, tendo lugar inicialmente nos países
situados no centro da Europa, para onde confluíam as primeiras levas de
imigrantes brasileiros.
Numa visita recente a Tallin, capital da Estônia, por ocasião de um encontro,
pude constatar que a prática da capoeira naquele país se iniciou há cerca de
10 anos com um grupo informal de praticantes oriundos da própria Estônia,
Rússia e Azerbaijão, que constituem a população daquele país. Esse grupo,
tendo conhecido a capoeira através de filmes, livros e pesquisas na internet,
deu início à criação de uma Federação. Atualmente existem na Estônia três
grupos, dos quais dois são liderados por brasileiros e um terceiro construído
por membros da Federação. Ramid Niftalijev, fundador da Federação, filho de
imigrantes do Arzebaijão, nasceu na Estônia. Em entrevista a mim concedida, o
líder descreveu que começou a praticar a capoeira por volta do ano 2000,
através dos movimentos aprendidos quando assistiu ao filme americano
“Esporte Sangrento”. Posteriormente adquiriu uma fita VHS com a filmagem de
um batizado, podendo assim aprimorar o pouco conhecimento que tinha.
Quando ainda concluía o ensino médio, e nunca tendo treinado em nenhum
grupo, chegou a ter cerca de 100 alunos na escola onde estudava, o que o
levou a criar a Associação Biriba e, a partir dessa, a Federação de Capoeira da
Estônia. Mais tarde no trabalho por ele desenvolvido, inseriu um conjunto de
2.
Caminhada dos capoeiristas na Cidade de Tallin , Estônia.
mudanças que lhe pareceram mais adequadas à cultura local como a não
adoção de apelidos aos membros do grupo, uma vez que isto afrontaria os
preceitos morais de batismo por parte das famílias. Confessou-se ainda
agastado com o fato de se fazerem na capoeira gestos pertencentes ao
domínio religioso, como o uso do sinal da cruz à entrada da roda, bem como
cantarem-se músicas em que se pronuncia o nome de Deus e de santos
católicos ou de outras religiões. Referiu, por último, a possibilidade de
introduzir-se, na roda, músicas de outros domínios, como Michael Jackson e
outros cantores afro-americanos.
Apesar de rejeitar algumas práticas dos grupos de capoeira, como a adoção de
apelidos entre os seus alunos, e limitar os tipos de canções entoadas na roda e
certos rituais, acabou por fazer uso de modelos de eventos como os batizados
formais e a utilização do sistema de graduação clássico utilizado pelas
Federações brasileiras.
A Federação gere as verbas governamentais vindas do estado estoniano e do
seu Comitê Olímpico, ao qual está filiada, sendo responsável por autorizar e
licenciar os grupos a dar aulas de capoeira, com autoridade para retirar o
alvará, caso o grupo não proceda segundo os preceitos por ela definidos.
Consta que tem havido conflitos entre a Federação e os grupos existentes que
se recusam a tomar parte naquela instituição que não goza de plena
legitimidade entre a comunidade local. A Federação Estoniana de Capoeira
encontra-se, por sua vez, filiada à Federação Internacional de Capoeira,
entidade que tem organizado alguns encontros na esfera mundial e que tem
como patrono Annibal Burlamaqui, considerado por alguns o patrono da
“capoeira desportiva”.
Os dilemas da prática da capoeira no Velho Mundo
Um conjunto de fatores de ordem social, cultural e, sobretudo, econômica, tem
tornado o território europeu apetecível ao estabelecimento dos capoeiristas e à
criação de uma elite de profissionais, ainda que de número reduzido, porém
crescente, que tomaram o velho mundo como o seu território de residência
definitiva e epicentro de expansão dos seus trabalhos. Esta elite de
profissionais compreende um conjunto restrito de mestres, contra-mestres ou
professores que, ao longo de um certo percurso, no Brasil ou no exterior,
tiveram suas carreiras destacadas por serem exímios jogadores, pelos feitos
nas rodas, como cantadores de boa qualidade ou outras características
destacáveis. Tradicionalmente o trânsito destes profissionais de elite fez-se
sempre no sentido do Brasil em direção à Europa, sendo que hoje verifica-se
também, em parte, o trânsito inverso. Podemos tomar como exemplo, entre
outros, os mestres Espirro Mirim do grupo Cordão de Ouro e Paulão Ceará do
grupo Capoeira Brasil, ambos provenientes do estado do Ceará, que mantêm
na sua região de origem os seus trabalhos, sendo que, com alguma frequência,
para lá se deslocam a fim de monitorar o andamento dos seus afiliados ou
realizar cursos e palestras noutros estados. Contudo, este modelo não constitui
o predominante, pois a maioria dos profissionais brasileiros residentes na
Europa sobrevivem da capoeira com grande precariedade, muito embora,
ultrapassem a crise e o desemprego, fazendo uso de uma elevada dose de
criatividade que lhes é característica, diversificando as suas formas de atuação
com a capoeira, através de shows, cursos eventuais e a busca de novos nichos
de mercado como aquele destinado a crianças e idosos. A peleja quotidiana
dos emigrantes capoeiras envolve uma rápida integração na cultura dos países
receptores, a incorporação de certos códigos de convívio social e a
aprendizagem, por vezes complexa, das línguas nativas. Constatamos contudo
que, se para os emigrantes brasileiros, profissionais da capoeira, essa se
constitui numa fortuita fonte de renda e sustento, mesmo que secundária e
realizada em conjugação com outros trabalhos, e mais ainda como um
elemento de status social, o mesmo se aplica aos locais, que, em tempos de
crise e dificuldade, também fazem uso da capoeira como fonte subsidiária de
renda, sendo que em alguns casos, são eles que dela tiram maior proveito por
estarem providos de melhores meios de implantação social, domínio dos
códigos culturais locais, pelo prestígio social de serem nativos e por vezes por
deterem um capital social e cultural que os demais não possuem.
Decorridos mais de trinta anos que a capoeira é transmitida na Europa, seria
de elevada presunção dos brasileiros supor que, os europeus que dela se
apropriaram, não o fizessem com a legitimidade de quem é agora capaz de
ensiná-la com eficiência aos seus próprios compatriotas. Acostumamo-nos a
ter como assente que ser brasileiro representa um selo indelével de qualidade
que garante, acima de qualquer competência, a exclusiva capacidade de
transmitir e praticar a capoeira de forma legítima. Estimo que num prazo breve
de alguns anos teremos uma geração de mestres europeus, formados por
mestres brasileiros no âmbito dos seus grupos, caminho que é inevitável e
previsível. Sendo um percurso sem volta, devemos reconhecer que legamos a
eles o trabalho de zelar por um dos ricos elementos da cultura afro-brasileira,
sem garantias de que este zelo será feito de todo com a estima de quem
percebe a grandiosidade da ferramenta que tem em mãos. Estamos em
condições de afirmar que, neste momento, a Europa constitui-se num centro de
incremento e, podendo-se até mesmo dizer, de produção da prática da
capoeira, um verdadeiro laboratório para o seu possível crescimento cujos
agentes, já são cada vez mais os seus cidadãos nacionais. Se por um lado
temos os “bons exemplos” dos que perseguem a capoeira tratando de
conhecê-la no Brasil e de reconhecê-la enquanto elemento de uma cultura
mais vasta e ampla, realizando os seus percursos no âmbito de um grupo cuja
legitimidade não se discute, por outro lado temos, como vimos, as
experimentações endógenas que constituem uma forte tendência nas práticas
dos capoeiristas europeus. Contudo, o reconhecimento da fronteira do que é
legítimo ou não é um exercício maneiroso e impreciso, por vezes um ato
político o qual encerra relações de poder, uma vez que, também os brasileiros
no Brasil e fora dele fazem uso de práticas discutíveis e incorretas valendo-se
do estatuto “biológico-cultural” de serem os únicos interlocutores credíveis da
arte, simplesmente por terem nascido no Brasil. A título de exemplo, cabe
mencionar que muitos profissionais brasileiros, mal preparados, criam os seus
grupos, os seus sistemas de graduação e por vezes até se auto graduam
atribuindo a si próprio uma graduação que ninguém lhes reconheceu, prática
que ocorre tanto no Brasil, como mais facilmente fora dele.
Num outro prisma, é preciso dizer que a capoeira cresceu de forma
extraordinária e por conta do árduo trabalho dos emigrantes brasileiros que
enfrentaram e enfrentam as mais duras tarefas da vida fora do seu país, sem
que o Estado brasileiro nada faça por eles. Infelizmente não é possível estimar,
quantificar e qualificar, o peso da capoeira na promoção cultural e turística do
Brasil e da língua portuguesa. Suponho que, a contas feitas, a capoeira, a
custo zero para o governo brasileiro, realize muito mais pela promoção turística
do Brasil do que o seu órgão público competente, a EMBRATUR.
Cumpre alertar para o fato de que os grupos devem adotar práticas
responsáveis de aconselhamento e acompanhamento dos membros que
enviam para o exterior tendo em conta as dificuldades da realidade europeia
constatadas anteriormente. Um pouco por todo lado, há por parte dos
capoeiristas relatos de deportações, xenofobia, dificuldades financeiras graves
e até mesmo agressões.
Ainda não se sabe ao certo os caminhos que a capoeira persegue e como num
futuro próximo ela estará. É possível, entretanto, reconhecer a necessidade
premente de uma intervenção que possibilite ordenar o crescimento da
capoeira fora do Brasil – tarefa complexa, porém possível. Não deve passar
indiferente o fato de alguns dos nossos mestres mais importantes residirem
fora do país, como o mestre João Grande que em 2005 foi premiado pelo
governo dos Estado Unidos, onde é residente, com a mais alta comenda
concedida aos indivíduos que praticam artes tradicionais em solo americano o
National Heritage Fellowship. Qualquer um que tencione conhecer a prática
mais tradicional da capoeira no mundo e um dos seus eminentes e criativos
difusores deverá deslocar-se a Nova Iorque. Antevê-se, por esse exemplo e
por outros que possamos enumerar, a contragosto dos praticantes mais
puristas, que a produção e difusão da capoeira se faça por outros centros de
produção cultural que não necessariamente o Brasil, onde situamos a origem
dessa arte. Uma vez que o prestigiado mestre, à semelhança de tantos outros,
forma os seus discípulos e seguidores mais próximos entre os nacionais dos
Estados Unidos, tendo sido premiado e distinguido com elevadas honras
nacionais pelo governo, nacionalizando e nativizando a prática da capoeira,
depreende-se que, a longo prazo, a prática da capoeira possa ser visualizada
como americana, no sentido lato, enquanto continente, e não mais
circunstancialmente brasileira, ou porque não dizer europeia, no caso que
apresentamos. O mesmo ocorreu com o Jiu-jitsu, arte marcial japonesa, que,
tendo chegado ao Brasil no início do século XX, foi incorporada às práticas
nacionais e desenvolveu-se, ao ponto de se qualificar uma nova vertente dessa
modalidade de grande prestígio internacional pela sua elevada eficácia: o Jiujitsu brasileiro
É certo que o governo brasileiro não pode gerar políticas públicas para outros
estados que não o seu próprio, contudo, poderá certamente, uma vez que a
capoeira constituí-se num patrimônio nacional, mediar o diálogo entre os
diferentes protagonistas residentes fora do Brasil e os locais, que permita forjar,
por exemplo, um código de ética no qual os grupos possam balizar as suas
práticas e referenciar as suas condutas sem que, contudo, isto se constitua
numa imposição. Pode ainda apoiar as iniciativas que permitam aprofundar o
conhecimento sobre a capoeira e a sua cultura e intervir no sentido de dar
suporte aos emigrantes capoeiras para que exerçam com maior altivez a sua
profissão.
Referências bibliográficas
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FALCÂO, José Luiz Cirqueira, (2004), O jogo da capoeira em construção da
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VASSALO, Simone, (2003),” Capoeira e intelectuais: a construção colectiva da
capoeira ´autêntica´”, in Revista Estudos Históricos, nº 32, Rio de Janeiro.
Ricardo Nascimento
[email protected]
Licenciado em Gegrafia pela Universidade do Porto. Mestre em Sociologia pela
Universidade do Minho e doutorando em Antrolpologia pela Universidade Nova
de Lisboa. Professor de capoeira em Portugal.

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