Uma análise da imagem de David Bowie n

Transcrição

Uma análise da imagem de David Bowie n
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
INSTITUTO DE CULTURA E ARTE
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO
CAROLINA MAIA ESMERALDO BARRETO
Don’t you wonder sometimes about sound and vision? – Uma
análise da imagem de David Bowie na mídia
FORTALEZA
2014
CAROLINA MAIA ESMERALDO BARRETO
Don’t you wonder sometimes about sound and vision? – Uma
análise da imagem de David Bowie na mídia
Monografia apresentada no curso de Comunicação
Social da Universidade Federal do Ceará como
requisito para a obtenção do grau de Bacharel em
Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, sob
a orientação do Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena
Lucas.
Fortaleza
2014
CAROLINA MAIA ESMERALDO BARRETO
Don’t you wonder sometimes about sound and vision? – Uma análise
da imagem de David Bowie na mídia
Esta monografia foi submetida ao Curso de Comunicação Social da Universidade
Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel. A
citação de qualquer trecho desta monografia é permitida desde que feita com as normas
da ética científica.
Aprovada em ___/___/____.
Monografia apresentada à Banca Examinadora:
Prof. Dr. Ricardo Jorge de Lucena Lucas (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Prof. Francisco Joaquim Cordeiro Neto
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Profª. Soraya Madeira da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Fortaleza
2014
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus pais, que sempre patrocinaram os meus hábitos
culturais, até mesmo quando eu caminhei pelas minhas próprias pernas. Valeu,
mamasita e painho.
AGRADECIMENTOS
A Deus, acima de tudo.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Jorge, pelo acompanhamento, inspiração e
paciência. Obrigada por me ajudar a tornar este trabalho possível.
A minha mamasita, Neida, que mesmo não gostando de David “Bawnie”, foi de
extrema importância para o estreitamento desta pesquisa. Obrigada por sempre acreditar
em mim.
Ao meu painho, Roberval, pelas incríveis lições de vida. O senhor é uma inspiração
diária para mim. A minha madrasta, Tia Vivi, obrigada pelo carinho e apoio.
A minha irmã, Clarissa, a seguinte frase: “Happiness can be found in the darkest of
times, if one only remembers to turn on the light”. Você sempre se lembra de ligar a luz,
inclusive a minha.
A minha irmã, Juliana, o sincero agradecimento por sempre tornar as coisas um pouco
mais leves com suas contribuições bem-humoradas.
Aos meus irmãos Letícia e Davi, por me lembrarem a ser e perceber a vida com olhos
de criança.
Aos meus amigos de faculdade, obrigada por sempre ouvirem as crises monográficas e
nem tão monográficas. Bele (e Roberto), Mikaela e Carol: obrigada pelo apoio.
Aos meus amigos da vida, obrigada pela cumplicidade de sempre. Agradecimentos
especiais à Marina, Brunna e Letícia, que sempre ouviram as minhas queixas e as
alegrias das minhas conquistas.
Finalmente, ao meu namorado Emanuel, meu incentivador oficial desde antes da
faculdade. Este trabalho não teria sido possível sem os seus constantes incentivos.
Muito obrigada, meu amor.
Não sei quantas almas tenho/ Cada momento mudei/ Continuamente me estranho/
Nunca me vi nem achei/ De tanto ser, só tenho alma/ Quem tem alma não tem calma.
(Fernando Pessoa)
So I turned myself to face me/ But I've never caught a glimpse/ Of how the others must
see the faker/ I'm much too fast to take that test.
(David Bowie)
RESUMO
Este trabalho possui o intuito de analisar a maneira como o cantor britânico David
Bowie se utilizou da autonomia de sua identidade como músico e artista para ascender
no ramo musical, tornando-se mundialmente conhecido. Para tanto, esta análise se
baseou em pensamentos de teorias sobre a construção da identidade – ou das
identidades – na formação do “eu”, ressaltando o papel da cultura e da mídia como
fornecedores substanciais de matéria prima para este processo, situado na pósmodernidade. Outro fundamento essencial para este processo são as relações sociais e a
maneira como elas afetam os indivíduos, que se veem impelidos a apresentarem uma
imagem do que são. A ideia de que as relações sociais são palco para uma performance,
interpretada pelo indivíduo, que constrói personas, faz parte deste trabalho. O
argumento defendido nesta dissertação é o de que, no meio artístico, é necessário
romper barreiras impostas socialmente por meio de reações de choque. Essas barreiras
também poder ser derrubadas com a maneira que se faz uso da moda. David Bowie
conseguiu se tornar uma celebridade poderosa, não apenas presente com sua música,
mas com todos os seus talentos combinados, quando percebeu que interpretar papeis o
levaria ao estrelato. Estes papeis deveriam causar espanto. Foi por meio de sua
androginia e a interpretação de papeis invariavelmente femininos que o artista
conseguiu sedimentar a sua carreira.
PALAVRAS-CHAVES: Identidade. Mídia. Relações sociais. David Bowie.
ABSTRACT
This paper aims to analyze the way how British singer David Bowie used the autonomy
of his identity as a musician to ascend in the musical business, becoming worldwide
known. To do so, this analysis was based on thoughts of theories about the construction
of identity - or of identities - in the formation of the "I", emphasizing the role of culture
and media as substantial providers of raw material for this process, situated in post
modernity. Another essential groundwork for this process are the social relations and
the way how they affect the individual, who see themselves impelled to present an
image of what they are. The idea that social relations are a stage for a performance
played by the individual who builds personas is a part of this paper. The argument
defended in this paper is that, in the artistic community, it is necessary to break barriers
imposed by society using reactions of shock. Those barriers can also be broken by the
way one uses fashion. David Bowie achieved to become a powerful celebrity, not only
active with his music, but with all his talents combined, when he realized that to
interpret roles would lead him to stardom. Those roles were supposed to cause shock. It
was through his androgyny and the invariably interpretation of women's roles that the
artist managed to solidify his career.
KEYWORDS: Identity. Media. Social relations. David Bowie.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - David Jones (canto inferior direito) e a banda de subúrbio The Kon-Rads . 19
Figura 2 - David Bowie dando vida a Ziggy Stardust no palco ................................... 21
Figura 3 - O estilo de Little Richard ........................................................................... 24
Figura 4 - O glitter macabro de Alice Cooper ............................................................. 25
Figura 5 - O glamour de Marc Bolan .......................................................................... 26
Figura 6 - Bowie em papeis masculinos: as capas de Station to Station e Low ............ 29
Figura 7 - Assumindo um estilo masculino: a capa de Heroes e a de The Next Day .... 30
Figura 8 - Capa do álbum Let's Dance, lançado em 1983 ............................................ 30
Figura 9 - David simulando um ato sexual com a guitarra de Mick Ronson ............... 40
Figura 10 – Mick Ronson (de branco), Brian May (de vermelho) e David Bowie de
azul no Estádio de Wembley ....................................................................................... 42
Figura 11 - David Bowie em roupa desenhada por Kansai Yamamoto ........................ 45
Figura 12 - David e Angie Bowie quebrando os padrões estéticos da família tradicional
em retrato.................................................................................................................... 47
Figura 13 - David Bowie convencional nos discos lançados respectivamente em 1967 e
1969 ........................................................................................................................... 52
Figura 14 – Algumas capas de discos lançados entre 1970 e 1972, respectivamente:
Rolling Stones, Led Zeppelin e Pink Floyd ................................................................ 53
Figura 15 – Álbuns de Gary Glitter e Roxy Music, ambos lançados em 1972 ............ 54
Figura 16 – Os álbuns A Beard of Stars (1970), Electric Warrior (1971) e The Slider,
de T. Rex ................................................................................................................... 55
Figura 17 - Capa do disco The Man Who Sold The World ........................................... 55
Figura 18 – Em ordem: capas lançadas originalmente nos Estados Unidos (1970), na
Alemanha (1971) e relançada mundialmente (1972) ................................................... 57
Figura 19 – Capa do disco Hunky Dory ...................................................................... 60
Figura 20 – A atriz suíça Greta Garbo ........................................................................ 62
Figura 21 – Capa do disco Pin Ups ............................................................................ 63
Figura 22 – Capa do disco Young Americans.............................................................. 66
Figura 23 – No sentido horário: Lodger (1979), Let’s Dance (1983), Earthling (1997) e
Heathen (2002) ........................................................................................................... 69
Figura 24 – As diversas facetas de Bowie no videoclipe da música “Boys keep
Swinging” ................................................................................................................... 69
ÍNDICE DE TABELAS
Tabela 1 - Ficha técnica do álbum The Man Who Sold The World ............................. 56
Tabela 2 - Ficha técnica do álbum Hunky Dory ......................................................... 60
Tabela 3 - Ficha técnica do álbum Pin Ups ................................................................ 64
Tabela 4 - Ficha técnica do álbum Young Americans ................................................. 66
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12
2. LADIES AND GENTLEMEN, MEET MR. DAVID BOWIE ........................... 16
2.1 Tornando-se Bowie .............................................................................................. 16
2.2 O Glam-Rock ....................................................................................................... 23
2.3 Negação do Glitter ............................................................................................... 28
3. FAME, WHAT YOU NEED YOU HAVE TO BORROW – DAVID BOWIE
ESTÁ NA MÍDIA .................................................................................................... 32
3.1 A questão da identidade – fundamentos teóricos ................................................... 32
3.2 Relações sociais na construção do “eu” ................................................................ 36
3.3 A moda como auto-afirmação ............................................................................... 43
4. CH-CH-CHANGES, JUST GONNA HAVE TO BE A DIFFERENT MAN – AS
REINVENÇÕES DE DAVID BOWIE .................................................................... 48
4.1 A importância da imagem veiculada na mídia ....................................................... 48
4.2 Bowie e seus contemporâneos .............................................................................. 51
4.3 The Man Who Sold the World (1971) .................................................................... 55
4.4 Hunky Dory (1971) .............................................................................................. 60
4.5 Pin Ups (1973) ..................................................................................................... 63
4.6 Youngs Americans (1975) ..................................................................................... 66
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 71
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 74
12
1 INTRODUÇÃO
Muitos esperam que a arte seja funcional, que ela seja um meio para formular
um combate, desafiando a “ordem” e promovendo o caos. A necessidade de intrigar as
pessoas, de tocar no mais profundo de sua existência com o intuito de despertar
questionamentos também podem ser entendidos como uma sede de produzir arte, de
estar no meio da sua criação. Porém, ela precisa ser leve, debochada, criativamente
desprendida. Deve despertar a curiosidade de quem a encontra. É assim que David
Bowie contribui para o mundo artístico: empresta os seus diversos dons para produzir
músicas, papeis, imagens e personalidades que vão basicamente traduzir o sentimento
de uma ou mais gerações.
Foi a curiosidade despertada por este artista com veias camaleônicas que
subsidiou a concepção deste trabalho. Desde já, adianto minhas desculpas se algumas
vezes o sentimento de fã se sobressaiu ao de pesquisadora. David Bowie é várias
pessoas ao mesmo tempo e, durante suas cinco décadas de carreira no showbusiness,
metamorfoseou-se inúmeras vezes. Observando as personas que ele criava, podia-se
deduzir uma série de fatores, como a necessidade de fazer sucesso, a nuance adquirida
por meio de outras pessoas e o nível de choque que ele queria despertar. Armando-se
desta faceta, Bowie pode ser considerado pioneiro em diversas facetas do ramo musical,
como na questão de sua autopromoção, na maneira como se utilizou de recursos visuais
e, claro, na criação de personas a serem representadas no palco.
Este trabalho começou a ser pensado primeiramente em uma análise semiótica
de apenas um disco, tendo como foco a suposta objetificação da mulher que era
apresentada. O álbum era Diamond Dogs que, lançado em 1974, conta com uma pintura
expressionista do artista belga Guy Peellaert. Nele, Bowie personifica uma criatura que
é metade homem e metade cachorro. No fundo da imagem, vê-se duas criaturas
femininas, porém apenas com a cabeça de mulher, o corpo era de cachorro.
Um dos problemas que surgiram no caminho foi o fato de não ter realmente
escutado o objeto. A capa do álbum era, de fato, chocante. A persona que Bowie
assumiu era chocante e o contexto era intrigantemente macabro. A arte cumpriu o seu
papel de despertar indagações. O que se descobriu – e que mudou inteiramente o rumo
da pesquisa – foi o fato de Bowie constantemente assumir papeis femininos em seus
discos, pelo menos nos do início da carreira. Por que ele precisava se transvestir de
13
mulher para conseguir ser conhecido pela mídia? Esta problemática guiou todo o
processo de pesquisa para a conclusão deste trabalho, levando-nos a acreditar na
hipótese de que ele se usava de suas feições femininas para conquistar o maior número
de pessoas. Outros questionamentos também orientaram este trabalho, como a ideia de
que a representação de uma persona transcendia os limites do palco.
Em 1972, ser homo ou bissexual ainda causava espanto, admiração e, muitas
vezes, rejeição por parte da sociedade. Sabendo disso, Bowie se assumiu homossexual
em uma entrevista para a revista britânica Melody Maker, fato que o ajudou a alavancar
o seu caminho rumo ao estrelato. As opções sexuais dele não serão questionadas neste
trabalho, mas sim a maneira como ele as apresentava para a mídia, como ele as usou
como artefato para a construção de suas personas e de sua carreira.
Após pesquisas usando biografias de David Bowie, o ponto crucial, a pedra
angular para entender como o artista conseguiu se tornar bem sucedido no mundo da
música (e da imagem) passa pelo processo de compreensão da identidade. Como ela é
formada, a sua relação com a sociedade e a possibilidade de uma pessoa ter múltiplas
personalidades. Bowie exteriorizou as suas múltiplas facetas e, com isso, incentivava os
seus fãs a fazerem o mesmo, a passarem a ver como as suas vidas poderiam ter
diferentes pontos de vista.
Esta pesquisa, portanto, tem a intenção de estudar a maneira como David Bowie
se fez presente na mídia brincando com sua habilidade de se reinventar constantemente,
principalmente criando facetas femininas. Para este propósito, o foco assumido foi a
análise das capas dos discos The Man Who Sold the World, Hunky Dory, Pin Ups e
Young Americans, uma vez que é nestes álbuns que Bowie se apresenta como mulher.
Após 1975, que é o ano de lançamento do último álbum em que Bowie aparece
claramente como mulher, os seus trabalhos são invariavelmente respaldados por
características masculinas. A hipótese deste trabalho leva em consideração que a
sexualidade do músico funciona como um elemento persuasivo em conjunto com os
demais elementos que envolvem a sua androginia, como a esperta declaração de que era
homossexual. A ideia é que Bowie se utilizou de sua orientação sexual como forma de
se autopromover e viu na criação de identidades e personas um caminho ideal para este
fim. Este, porém, não foi o seu único objetivo ao adotar as suas personas. Bowie
também queria que a opção sexual de uma pessoa não fosse vista como uma aberração
14
pela sociedade. Uma maneira de justificar este ponto de vista é analisar a importância
que o músico teve na revolução sexual na década de 1970.
Este trabalho conta com mais três seções. O primeiro capítulo faz um apanhado
biográfico de David Bowie com a intenção de apresentá-lo ao leitor. Praticamente, são
estabelecidas as principais características que contribuíram para a transformação de
David Jones em David Bowie, bem como o processo de que envolveu o lançamento de
seus primeiros hits de sucesso. As influências que David adquiriu até transformá-las em
produtos independentes também estão presentes nesta parte do trabalho. Conceitos
sobre estilos musicais, como o glam-rock, também são levados em consideração, bem
como os seus representantes. O objetivo deste capítulo é observar que o artista sempre
fez uso de sua imagem para conquistar o maior número de fãs.
O segundo capítulo fornece material teórico para embasar esta pesquisa. Mesmo
que o conceito de “identidade” seja complexo e não se apresente num consenso por
pesquisadores, ele será abordado na forma de citações de teóricos como Stuart Hall e
Douglas Kellner. O modo como a identidade é entendida na pós-modernidade é
essencial para se compreender a necessidade de David em se transformar
constantemente, portanto, o processo de formação dela é tratado com veemência nesta
seção. Outro tópico importante deste capítulo é embasado com a teoria de Erving
Goffman de que as relações sociais diárias são um palco para a performance do “eu”.
Alguns casos em que David agiu com atitudes calculadas em frente a uma plateia serão
brevemente analisados, pondo a teoria à prova. Finalizando o capítulo, uma breve
explanação sobre como a moda influenciou e contribuiu para o sucesso de Bowie e
como ela funciona como uma extensão de seu corpo, com base na teoria de Marshall
McLuhan.
O terceiro capítulo, finalmente, traz uma análise das capas em que Bowie se
apresenta como mulher. Antes da análise propriamente dita, uma breve explanação
sobre a importância da imagem veiculada na mídia – no caso de David, principalmente
na forma dos discos de vinil – tem espaço relevante. A ideia é que estas capas
funcionam como um tipo de paratexto, termo criado pelo francês Gerard Genette. Para
título de comparação, algumas capas do período de 1970 a 1972 de outros artistas serão
brevemente analisadas. A intenção desta análise é fornecer ao leitor uma imagem da
ousadia de David Bowie, que quebrou alguns paradigmas com suas ideias imagéticas.
15
Para finalizar, analisamos as capas que consideramos mais intrigantes no sentido de
causar admiração e espanto, a um primeiro olhar.
16
2 LADIES AND GENTLEMEN, MEET MR. DAVID
BOWIE
O objetivo deste capítulo é estabelecer as principais características que
contribuíram para David Bowie tornar-se o mito da música, o “famigerado” Camaleão
do Rock, alcunha atribuída devido às suas diversas mudanças ao longo de mais de 30
anos musicais. Suas contribuições artísticas perpassam o mundo da música, tendo sido
um dos heróis da revolução sexual e da música na década de 1970, tornando-se um
ícone pop. A fim de cumprir esse desígnio, conheceremos um pouco sobre a história de
Bowie, dando ênfase nos detalhes que o tornaram uma figura andrógina, mundialmente
conhecida pelos fãs de música e cultura pop.
2.1 Tornando-se Bowie
De nascimento, é David Robert Jones. De vida, pode cambiar entre David Bowie
e vários personagens criados ao longo de mais de quatro décadas de vida artística.
Bowie nasceu em janeiro de 1947 em Brixton, Londres. Preparou-se para a música na
juventude para contemplar o seu ápice nas boas-vindas da década de 70.
A carreira de David Bowie foi marcada pela presença de vários tipos de artes e,
eventualmente, da combinação entre elas. Antes de escolher pela música, almejava ser
pintor, além de já ter trabalhado em uma agência de publicidade e de ter tido
experiência em um grupo de mímicos. Em entrevista concedida a Cameron Crowe em
setembro de 1976 para a Revista Playboy, Bowie afirma que escolheu a música e,
especialmente, o rock’n’roll porque estava “quebrado”:
Cameron Crowe: How did you become a rock’n’roller, anyway?
David Bowie: Truth? I was broke. I got into rock because it was enjoyable
way of making money and taking four or five years to puzzle my next move
out. I was a painter before that, studying commercial art at Bromley
Technical High School. I tried advertising and that was just awful. The
lowest. But I was well into my little saxophone, so I left advertising and
thought, Let’s give rock a try. You can have a good time doing that and
usually have at least enough money to live on. Especially then. It was the
Mod days; nice clothes were half the battle. (BOWIE, 1976, p. 6)1
1
Cameron Crowe: Como é que você se tornou um roqueiro mesmo?
David Bowie: Verdade? Eu estava quebrado. Eu entrei no rock porque era uma maneira agradável de
fazer dinheiro e tirar quatro ou cinco anos para descobrir o meu próximo passo. Eu era um pintor antes
disso, estudando arte comercial na Bromley Technical High School. Eu tentei propaganda e isso foi
17
Marc Spitz, autor de Bowie – A Biografia (Benvirá, 2010), porém, destrincha a
trajetória do artista e constata que a música esteve presente desde muito cedo na vida
dele, tempo demais para ser uma decisão motivada apenas por questões financeiras. A
música, para Bowie, representava um sinônimo de ascensão social (Ele nasceu em
Brixton, um bairro no sul de Londres), uma tentativa de alteração de status, o que ele
pretendia que acontecesse rapidamente e com muita determinação.
‘Enquanto ainda estava na escola, eu ia a Londres todo sábado à noite para
ouvir jazz em diversos clubes, e fazia isso tudo com meu irmão, quando eu
estava numa idade bem impressionável’, David se lembra. [...] Em seguida,
John Jones comprou na Furlong’s um sax-barítono branco de plástico para
David, após um pouquinho de insistência do filho. Equipado com um
instrumento, David decidiu acelerar seu caminho para ganhar traquejo no
jazz. (SPITZ, 2010, P. 50-1).
Os dons artísticos, em geral, sempre foram uma espécie de fortaleza para Bowie,
assunto o qual ele não mede palavras para comentar, muitas vezes dando a impressão de
ser uma pessoa arrogante. David transita entre diversos mundos ─ música, pintura,
cinema, escrita ─ e tem certeza de que faz isso muito bem:
When I started writing, I couldn’t put more than three or four words together.
Now I think I write very well. I’m finding that if I just look at something and
think, A man did that, I realize I can do it too. And probably better. I didn’t
know anything about
films, either. […] So I went out, got hold of a lot of the greatest films and
worked it all out for myself. […] Now I have an excellent knowledge of the
art. I became a bloody good
actor, I’ll tell you. And I’ll be a superb
filmmaker as well. (BOWIE, 1976, p. 6)2
O visual de Bowie também contribui para a caracterização de personagens
criados por ele. Apelidado de “Camaleão do rock” pela mídia mundial, o mito David
Bowie começou a se formar fisicamente quando ele era adolescente, com 14 anos. Nesta
época, ele era apaixonado por uma garota de sua escola. O problema é que um de seus
amigos próximos, George Underwood, também gostava da moça.
David a seduziu e tornou a aproximação de Underwood complicada. Os dois,
então, partiram para uma briga e George acertou o olho de Bowie. O golpe foi certeiro o
simplesmente terrível. O pior. Mas eu era legal no meu saxofonezinho, então eu deixei a propaganda e
pensei, Vamos dar uma chance ao rock. Você pode se divertir fazendo isso e, geralmente, tem dinheiro
suficiente para viver. Especialmente naquela época. Era o tempo dos Mod; roupas boas já eram metade da
batalha (Tradução nossa).
2
Quando eu comecei a escrever, eu não conseguia juntar mais de três ou quatro palavras. Agora eu acho
que escrevo muito bem. Eu estou descobrindo que se eu olhar para alguma coisa e pensar, Um homem fez
isso, eu me dou conta de que eu posso fazer isso também. E provavelmente melhor. Eu não sabia nada
sobre filmes também. Então eu saí, peguei muitos dos grandes filmes e interpretei tudo. Agora eu tenho
um excelente conhecimento da arte. Eu me tornei um super ator. E eu vou ser um ótimo cineasta também
(Tradução nossa).
18
suficiente para não cegar, mas manejou uma característica marcante e que deixou Bowie
em um hospital por quase oito meses: o olho esquerdo constantemente dilatado, que
garantia uma feição peculiar e diferente no artista. A característica tornou-se um fator
contribuinte para se destacar no show business, além de ser essencial para a construção
de suas personagens. Ainda que alguns anos antes, o caminho de Bowie já estava
seguindo para a transformação no “Homem das estrelas” que ele descreveu em sua
música “Starman”, do álbum The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from
Mars, lançado em 1972 pela gravadora RCA.
Antes de se tornar, de fato, David Bowie, o artista caminhou em diversas
experiências musicais, uma delas o Mod (uma abreviação de Modern). De acordo com
Roy Shuker, autor do Vocabulário de Música Pop, o Mod foi “uma subcultura jovem
que surgiu em Londres por volta de 1963, [...] constituído pelos membros da classe
operária” (SHUKER, 1999, p.189-90). Com roupas muito alinhadas, provenientes da
alfaiataria inglesa, os garotos mod procuravam tudo o que fosse voltado para o futuro,
moderno, sendo, também, um apelo ao mundo do consumo. Este movimento parece ter
caído como uma luva para o então adolescente David Bowie e a sua androginia, como
afirma Spitz:
O mod era um movimento feito sob medida para David Jones. As drogas
estimulantes e as ambições consumistas, ambas sinônimos de mod (sem
mencionar a sede idealista pelo “novo”) acertaram David bem quando se quer
ser atingido por essas coisas: entre os quinze e dezesseis anos de idade. E ele
aderiu fervorosamente. Os princípios do movimento também tinham muito a
ver com a sua eterna compulsão por criatividade e sua busca por um novo
estilo (SPITZ, 2010, p. 63).
O mod foi, certamente, o começo da transformação visual de David, que
começou a perceber, na prática, que a imagem era um dos meios mais eficazes de se
promover um produto, inclusive se ele for musical. Nesta época, ele participou da banda
The Kon-rads, que tocava em bailinhos e pequenos eventos, como casamentos e feiras
de escolas locais e que também trazia em sua composição George Underwood. David,
porém, ambicionava ser um completo astro do rock e percebeu que aquele pequeno
grupo musical não o levaria a esse objetivo.
19
Figura 1 - David Jones (canto inferior direito) e a banda de subúrbio The Kon-Rads
Após a sua experiência com os Kon-Rads, David se jogou em uma nova
experiência e formou o grupo King Bees também com Underwood, assumindo o nome
Davie Jones. Os rapazes da banda, com a exceção de David e Underwood, eram
londrinos. Eles haviam se conhecido no cabeleireiro. Neste grupo, David achou que
tinha uma chance concreta no meio da música.
Os King Bees até conseguiram um contrato, mas a banda não deslanchou. Seu
ápice está no show que realizaram para uma festa de casamento, quando a plateia não os
recepcionou da maneira que o ego de David esperava. Foi com essa banda, entretanto,
que o primeiro produto oficial de David foi lançado, o single de estreia “Liza Jane”, de
Davie Jones and The King Bees.
Já com seu lugar na música mais sedimentado, Bowie ouviu de seu agente que
havia um programa de televisão em Londres com o nome Davy Jones e sugeriu que essa
seria uma boa hora para adotar um nome artístico diferente e único. A inspiração veio
de um coronel norte-americano: James Bowie, revolucionário texano do século XIX
morto em uma batalha. “’Bowie’ também nomeia a famosa faca de lâmina curva, aquela
que o coronel usara para estripar seu inimigo, o xerife Norris Wright, no famoso duelo
de 1827 nas cercanias de Natchez, Mississipi” (SPITZ, 2010, p. 90-91). Tendo os olhos
marcadamente diferentes, David também mudou seu nome comum, Jones, para um
nome raro e com personalidade, Bowie, e se tornou uma das lendas do rock, tendo
ascendido musicalmente nos idos da década de 1970.
20
O seu primeiro hit de sucesso veio a calhar numa época conturbada a proporções
mundiais, com o impacto da tecnologia espacial e a aceitação da novidade pela
sociedade. No meio da disputa, quando Estados Unidos e União Soviética competiam
pela supremacia na exploração e tecnologia espacial, e com toda a espetacularização da
mídia, Bowie nos apresenta Major Tom em Space Oddity (lançado em 1969). O
astronauta é lançado à Lua numa viagem solitária e sem muitas chances de retorno.
Na contramão da glamourização do personagem do astronauta cultuado e
desenvolvido pela mídia, o Major Tom de Bowie apresenta a outra face da moeda. A
música é uma descrição da chegada dele no espaço e suas primeiras impressões. Mostra,
também, o sentimento de impotência se comparado à grandiosidade do mundo: “For
here am I sitting in a tin can/ Far above the world/ Planet Earth is blue and there’s
nothing I can do”. (BOWIE, 1969). Ground Control, ou a Torre de Controle, a conexão
de Major Tom com a Terra, reporta que há um problema com o circuito do astronauta,
que se perde no espaço.
David Bowie resgata um de seus primeiros personagens, Major Tom, na música
“Ashes to ashes”, do álbum Scary monsters...And Super Creeps, lançado em 1979, uma
década após “Space Oddity”. Nos primeiros versos da faixa, Bowie nos pergunta se
lembramos de um cara que estava em uma música do começo de sua carreira. Afirma
que ouviu um rumor vindo de Ground Control3. Descobrimos, no refrão 4, que Major
Tom havia se tornado um “junkie”, termo usado para definir uma pessoa que é viciada
em drogas.
O tema espacial, envolvendo alienígenas e a pergunta “Estamos sós no espaço?”,
sempre exerceu muita influência em Bowie. Em Bromley, cidade em que ele passou
grande parte de sua vida, ela já havia tido contato com ficções científicas e já sabia o
impacto que o estilo tinha nas pessoas. A cidade também foi o berço do autor H. G.
Wells, “o pai da ficção científica”. Assim como Bowie, Wells tinha um objetivo claro
em mente: ascender socialmente e financeiramente e sair de Bromley.
Ziggy Stardust, alter-ego de Bowie, foi o ápice da influência espacial em Bowie
e, certamente, um dos personagens mais bem-sucedidos dele. O disco foi um enorme
sucesso e conta a história de um alienígena que vem para a Terra com a função de avisar
3
“Do you remember a guy that’s been/ In such an early song/ I heard a rumour from Ground Control/ Oh,
no, don’t say it’s true” (BOWIE, 1979). “Você se lembra de um cara que estava/ Emu ma canção do
começo/ Oh, não, não diga que é verdade” (Tradução nossa).
4
“Ashes to ashes, funk to funky/ We know Major Tom’s a junkie/ Strung out on heaven’s high/ Hitting
an all-time low” (BOWIE, 1979). “Das cinzas às cinzas/ Todos nós sabemos que o Major Tom é um
viciado/ Estendido no alto do paraíso/ Atingindo uma super decadência” (Tradução nossa).
21
aos humanos que temos apenas mais cinco anos de vida. Ziggy, então, se apaixona pelo
rock’n’roll e pela vida que vinha junto ao estilo musical. A última faixa do disco,
“Rock’n’roll suicide”, apresenta o destino do alienígena, que é morto pelos seus fãs.
Figura 2 - David Bowie dando vida a Ziggy Stardust no palco
David Bowie interpretava Ziggy Stardust nos palcos. A caracterização ─ um
Bowie muito branco, magro, cabelos vermelhos, os olhos claramente diferentes um do
outro e sempre muito pintados, e até um terceiro na testa ─ contribuiu para que os fãs
misturassem os personagens e tomassem Bowie por Ziggy e vice versa. Ziggy foi a
armadura que Bowie encontrou para se proteger sua extrema timidez. Bowie comenta
este traço de sua personalidade, como resgata Spitz:
Numa entrevista de 1875 para Dinah Shore, ele admitiu: “A única coisa de
que não gosto é de ser terrivelmente tímido. Sou uma pessoa incrivelmente
tímida. Então exagerei tentando compensar. Pensei que, se eu tivesse um tipo
alarmante de reputação, teria de aprender a me defender e a sair de mim
mesmo” (SPITZ, 2010, p. 32-3).
Entender a timidez de Bowie como uma mola propulsora de seu sucesso, é
essencial para tentar compreendê-lo:
Em vez de negação, muitos acreditam que a timidez é, na verdade, uma
elevada maneira de egocentrismo. Isso é crucial para entender como David
Bowie, rock star, nasceu de David Jones, um operário suburbano em
potencial. Sem controle, uma preocupação exagerada consigo mesmo se
manifesta como um desconforto social ou fobia, mas, quando examinada e
adestrada [...] permite ao indivíduo, com sorte e tempo, se reinventar (SPITZ,
2010, p. 33).
22
Tendo deslanchado a carreira de Bowie, finalmente o levando para o sucesso,
Ziggy cresceu exponencialmente. Na entrevista realizada por Crowe, Bowie afirma que
estava se tornando um produto de sua criação e que isso o estava deixando um pouco
perturbado, até esquizofrênico, sem saber onde terminava a sua criação e começava o
David de verdade:
I realized I had become a total product of my concept character Ziggy
Stardust. So I set out on a very crusade to re-establish my own identity. I
stripped myself down and took myself down and took myself apart, layer by
layer. I used to sit in bed and pick on one thing that I either didn’t like or
couldn’t understand. And during the course of the week, I’d try to kill it off
(BOWIE, 1976, p. 6).5
Mesmo com a inclinação para ser ator, Bowie não conseguiu deixar os papeis
totalmente de lado. Acabou se tornando o alienígena. Quando viu que os dois já
estavam consistentemente imbricados em um corpo só, livrou-se de Ziggy. A
necessidade de ter que se separar de sua maior criação até o momento não foi fácil:
Bowie precisou de uma alta dose de reflexão e auto-conhecimento para arrancá-lo de
sua vida, mesmo que soubesse que, se o papel ainda existisse por ainda uma década,
seria bem-sucedido.
Quando precisou seguir em frente, após a morte traumática de Ziggy, tanto no
palco como sendo Bowie, ele lançou mais dois álbuns, Aladdin Sane e Pin Ups, ambos
em 1973. Aladdin Sane, porém, ainda trazia em sua capa uma faceta de Ziggy. No total,
o alienígena apareceu em quatro capas de discos de Bowie: The Rise and Fall of Ziggy
Stardust and The Spiders From Mars (1972), Aladdin Sane (1973), Pin Ups (1973) e
Diamond Dogs (1974).
Os alienígenas, entretanto, não estavam apenas na área musical do artista. Bowie
interpretou o alienígena humanoide Thomas Jerome Newton no filme O Homem que
Caiu na Terra, dirigido por Nicolas Roeg e lançado em 1976. No filme, Thomas vinha à
Terra em busca de água para o seu planeta, a fim de manter a sua família viva.
Extremamente à vontade no papel do extraterrestre, Bowie não parecia estar
interpretando, pois ele mesmo era o ser de outro planeta. O impacto do longa na carreira
dele foi tão grande que a fotografia de duas cenas renderam as capas dos discos Station
to Station (1976) e Low (1977).
5
Eu me dei conta de que eu tinha me tornado um total produto do meu personagem conceitual Ziggy
Stardust. Então eu parti numa cruzada para restabelecer minha própria identidade. Eu me despi todo e me
reservei, camada por camada. Eu costumava sentar na cama e escolher uma coisa que eu ou não gostava
ou não conseguia entender. E no período de uma semana, eu tentaria acabar com isso (Tradução nossa).
23
2.2 O Glam-Rock
É difícil falar de glam-rock e não ressaltar a importância de David Bowie ao
movimento, assim como da importância do movimento para consolidar a carreira de
Bowie. Com músicas sexualmente carregadas, roupas, sapatos, cabelos e maquiagens
exageradas, o gênero fez parte de uma geração culturalmente preocupada com a
afirmação de sua imagem, fosse ela qual fosse. Os artistas que participavam desse estilo
se preocupavam em preparar performances para a plateia, que, geralmente, participava
cantando e contribuindo visualmente ao imitar o estilo do ídolo em cima do palco. Roy
Shuker define o gênero:
Também chamado de glitter rock, o glam rock foi um estilo/gênero musical
relacionado com uma subcultura do início dos anos 1970, especialmente no
Reino Unido. Foi uma reação contra a seriedade do rock progressivo 6 e da
contracultura do final dos anos de 1960, e também uma extensão desses
movimentos. Caracterizou-se por um forte apelo visual tanto dos artistas
como dos seus concertos, incluindo os cabelos vivamente coloridos, os trajes
escandalosos, a maquiagem pesada e o ato de cuspir fogo (no caso do Kiss).
No glam rock, a música estava atrelada ao desempenho cênico, enquanto a
imagem do ídolo tornou-se parte da apresentação. (SHUKER, 1998, p. 145)
Não é de se admirar que a carreira de Bowie tenha decolado com esse estilo, que
tanto apreciava a imagem e toda a parafernalha visual que vinha tanto nas apresentações
como nas imagens que acompanhavam os discos. A androginia dele fez toda a
diferença, assim como a sua bissexualidade, muitas vezes afirmada em contextos
ambíguos7. A preocupação com a imagem é vital para que o grupo seja reconhecido,
além de sempre haver o cuidado em preparar verdadeiras performances em shows ao
vivo e aparições em programas de televisão. Com o visual adotado para Ziggy, Bowie
inspirou uma legião de fãs a adotarem o corte e a tonalidade do cabelo, as roupas muito
coloridas e espalhafatosas, com brilho em todos os locais imagináveis.
Embora o glam rock tenha surgido expressivamente na Inglaterra, um dos
precursores do movimento foi o cantor, compositor e pianista Little Richard, também
6
Ainda de acordo com o Vocabulário de Música Pop, de Shuker, “O rock progressivo ‘é marcado, acima
de tudo, por sua diversidade, uma diversidade mais sugestiva em relação a um balanço constelar do que a
um balanço linear’ (Moore: 1993; pp. 101-2).Segundo Moore, da mesma forma que o art rock, o rock
progressivo caracterizava-se pelo uso de imagens fantásticas e obscuras, misturando convenções de
estilos incompatíveis. [...] Basicamente, o rock progressivo não é uma música dançante; desse modo,
evita a batida (beat) padrão do rock, considerando o timbre e a textura mais importantes.” (SHUKER,
1998, p. 243-4)
7
As práticas de Bowie veiculadas pela mídia o tornavam bissexual, mesmo que ele tenha afirmado ser
apenas homossexual.
24
inspiração pessoal de Bowie, que guarda até os dias de hoje um panfleto contendo uma
imagem dele. Richard Wayne Penniman nasceu na Geórgia, nos Estados Unidos, numa
família religiosa e que apreciava música. Natural seria que ele escolhesse o caminho
artístico para a vida. Porém, não escolheu o caminho musical gospel logo no início de
sua carreira, nas décadas de 1950 e 60, como era de se esperar. Em vez disso, decidiu
caminhar pelas estradas do rock’n’roll, aplicando pitadas de funk 8.
Little Richard também se importava com a apresentação de sua imagem. Em
seus shows, aparecia sempre com as sobrancelhas feitas, finas, olhos sutilmente
marcados e cabelos arrumados, geralmente num black power ondulado, não crespo. O
bigode também era fino e milimetricamente organizado para cobrir apenas o lábio
superior, como uma continuação dele. Além de também apresentar feições andróginas,
uma de suas características marcantes era o uso de muito brilho em suas roupas, um
ponto de encontro com as práticas glam.
Figura 3 - O estilo de Little Richard
Nascido em Detroit, nos Estados Unidos, Alice Cooper também seria
reconhecido por sua contribuição ao glam rock. Conhecido por seus shows
performáticos baseados em filmes de terror, com direito a cadeiras elétricas, guilhotinas,
bonecos de voodoo e cobras vivas, Alice também fazia uso de características
marcadamente glitter, porém de maneira macabra. A maquiagem era sempre muito
marcante, com os olhos completamente pretos e sangue falso espalhado pelo corpo. A
roupa, como regra para os adeptos ao estilo, era brilhosa ou cheia de detalhes,
8
“No ano de 1950, o termo foi empregado para descrever uma forma de jazz moderno, que se baseava no
“swing” e no “soul” ─ este último sinônimo de autenticidade e sinceridade” (SHUKER, 1999, p. 137).
25
geralmente muito apertada. Os sapatos de plataforma obviamente faziam parte do
visual. Cooper ainda adota referências ao estilo glam em seus shows, como visto em sua
última turnê, realizada entre 2012 e 2013
.
Figura 4 - O glitter macabro de Alice Cooper
Alguns conterrâneos de Bowie também participaram do estilo musical, sendo,
muitas vezes, encarados como rivais, numa competição saudável. É o caso de Marc
Bolan, um rapaz andrógino baixo e com o cabelo esquisito, e a sua banda T-Rex. Bolan
conseguiu ter sucesso antes de Bowie, o que garantiu, quando eles se conheceram, uma
relação especial, como de um mentor e seu pupilo. Como afirma Spitz:
Marc Bolan era pouco mais novo, mas muito menos introvertido do que
David, por isso o influenciava como um irmão mais velho. Até David se
tornar mais famoso do que ele, por volta de 1973, Marc, pode-se dizer, tinha
a palavra final no relacionamento. [...] Bolan flertou primeiro com o som
elétrico, o glam e a androginia, enquanto David ainda era folk. (SPITZ, 2010,
p. 74)
Marc Bolan, porém, diferentemente de Bowie não tinha a capacidade extrema de
se reinventar quando fosse preciso. Após alguns hits de sucesso, como Children of the
Revolution, ele parecia apenas reciclar suas composições e riffs de guitarra. Bowie
vencera a guerra pela fama no início dos anos 70. A música que o tornou conhecido,
mas não super famoso, “Space Oddity”, teve uma contribuição passiva especial de
Bolan, que aconselhou Bowie a usar o Stylofone, uma espécie de sintetizador
monofônico portátil que pode ser usado com uma pequena caneta.
26
Figura 5 - O glamour de Marc Bolan
Neste estilo musical, David Bowie ocupa um lugar importante, sendo citado
sempre quando o assunto é glamour e glitter, quase como se Glam-Rock e David Bowie
fossem sinônimos. A ascensão do estilo coincidiu com a da televisão, quando a maioria
dos lares ingleses possuía um aparelho. Sendo assim, a legião de jovens podia não
apenas ouvir seus cantores preferidos e comprar os discos, mas vê-los em performances
cada vez mais diferentes, inusitadas e, claro, cheias de brilho.
De acordo com Jon Stratton, professor de Estudos Culturais da Curtin
University, na Austrália, participar do Glam-rock era um momento transcendental entre
a realidade e a fantasia personificada pela imagem, que geralmente levava a estratégias
de marketing em contrapartida ao movimento hippie:
Whereas for the hippies music was a lived adjunct to their life-style, for glam
rockers music was the site of performance, the moment of interaction
between image and the individual, fantasy and the reality of everyday life. In
its rejection of the sincerity of the hippie subculture as a genuine alternative
form the youth — both middle-class and working-class — who became glam
rockers, chose the insincerity of production and image. This lack of sincerity,
a rejection of those ultra-individualist positions held by the middle-class
hippies, led to an espousal of the authenticity of the false. A change of
27
position which was replicated in the acceptance of commercial marketing
strategies (STRATTON, 1986, p. 3)9.
Enquanto músicas hippies falavam de questões políticas e temas “pesados”, o
glam era um hino ao individualismo. A música era feita para dançar, para liberar as
sensações. Não necessariamente precisava significar alguma coisa ou estar engajada em
alguma causa social. Essa característica pode ser perfeitamente notada no álbum
Diamond Dogs, lançado em 1974. Para compor a maioria das músicas do álbum, o
artista usou um método baseado no escritor William S. Burroughs, o “cut up”, uma
técnica aleatória em que corta as frases de um texto e as rearranja para formar outro 10.
No documentário da BBC Cracked Actor, também de 1974, Bowie demonstra essa
técnica.
Tendo basicamente a androginia e a bissexualidade como pré-requisitos, o
movimento Glam-Rock foi responsável, também, por liberalizar relações de gênero.
Homens vestiam roupas curtas, coladas no corpo e, geralmente, acessórios femininos,
como saltos altos. Como todo o processo de conquista do público estava ligado à
imagem, era preciso saber chocar a audiência. Nada mais concreto do que homens
usando roupas de mulheres e maquiagens nos idos da década de 70, quando a
homossexualidade ainda era vista como tabu.
As músicas hiper-sexualizadas de Bowie foram bem recebidas pelo movimento
glamouroso. A faixa “Rebel Rebel”, do disco Diamond Dogs, parece ser um hino em
apologia ao Glam-Rock, uma vez que seu protagonista transcende a barreira
homem/mulher. O sentido de fazer parte do gênero era poder falar e agir abertamente
sobre os conflitos e a descoberta sexual que a juventude passa, como afirma Stratton:
“In glam-rock, [...] the subversive emphasis was shifted away from class and youth onto
sexuality and gender-typing (1979:61-2).” (STRATTON, 1986, p. 1). Como a
bissexualidade de Bowie fazia parte de suas performances (e de sua publicidade), ele,
com certeza, seria bem sucedido nesse gênero.
9
Enquanto para os hippies a música era um complemento ao seu estilo de vida, para os roqueiros glam, a
música era o espaço de performance, o momento de interação entre imagem e indivíduo, fantasia e
realidade de cada dia. Na sua rejeição à sinceridade da subcultura hippie como uma forma genuína
alternativa, os jovens - tanto de classe média quanto de classe trabalhadora - que se tornaram roqueiros
glam escolheram a insinceridade da produção e imagem. Essa falta de sinceridade, uma rejeição das
posições ultra-individualistas mantidas pelos hippies de classe média, levaram a uma nupcial
autenticidade do falso. Uma mudança de posicionamento que foi replicada na aceitação de estratégias de
marketing comercial.
10
No documentário da BBC, Bowie afirma que usava textos de antigos diários para produzir suas músicas
com essa técnica. Ele cortava as palavras ou sentenças e as usava para dar a partida inicial em sua
criatividade e produzir uma música. Um dos exemplos de música em que Bowie usa a técnica é “Sweet
Thing”, do álbum Diamond Dogs.
28
Mesmo com declarações controversas, Bowie sempre usou a sua própria
sexualidade como uma forma de se auto-promover, despertar a curiosidade alheia,
conquistar mais fãs e, consequentemente, mais renome no meio musical. Utilizando e
ressaltando as suas feições andróginas com muita maquiagem e caracterização, encarnar
os personagens com total liberdade estava além de ser homem ou ser mulher. Para ele,
definir um gênero era uma limitação. O que ele queria era simplesmente chocar a
sociedade da época e galgar para si um espaço privilegiado no mundo do rock’n’roll,
tanto a ponto de ser considerado um ícone da música e um dos precursores da
performance no palco do rock.
2.3 Negação do Glitter
Bowie começou a se desfazer do glitter quando assumiu a parte masculina de
suas feições, o que aconteceu no álbum seguinte ao Young Americans, de 1975. Os
próximos discos de Bowie o apresentam em papeis invariavelmente masculinos. Station
to Station, de 1976, traz o alienígena Thomas Jerome Newton adentrando em sua nave
espacial, do filme The Man Who Fell to Earth. Os conflitos de gênero não se fazem
presentes no filme e nem na capa, com Bowie vestindo uma camisa branca e o cabelo
ruivo, penteado para trás com gel de modelar formando um topete elegante.
O disco Low, de 1977, também capta uma cena de The Man Who Fell to Earth.
A imagem é um Bowie num casaco preto com uma gola frouxa, caindo pelo pescoço. A
gola forma uma linha paralela ao nariz muito afilado de Bowie. Uma mecha do cabelo
avermelhado cai da orelha; claramente o gel não cumpre mais o seu papel de segurar as
madeixas de Bowie. O plano de fundo é da cor do cabelo, dando a impressão de nos
mostrar Bowie em uma atmosfera particularmente fora da Terra. Em Marte, talvez.
29
Figura 6 - Bowie em papeis masculinos: as capas de Station to Station e Low
A overdose de glitter resultante da época do Glam Rock parece não exercer mais
efeito em Bowie quando o disco Heroes é lançado em 1977. A ambiguidade em se
afirmar como homem ou mulher não existe mais quando o disco chega às lojas. A capa
é uma das mais singulares de Bowie e uma das que ele mais aparenta ser “machão”. As
cores do glitter são trocadas pela sobriedade da combinação entre preto e branco. O
cabelo é um pouco bagunçado, como se ele tivesse acabado de passar os dedos. A
expressão é séria, quase como se estivesse prendendo a respiração para deixar as mãos
imóveis e com o ar um tanto robótico.
O que deixa a capa com um appeal extremamente másculo é o casaco de couro,
abotoado até o pescoço. Esse tipo de casaco é mundialmente usado quando se quer
representar uma banda tradicional de rock’n’roll. A ausência completa de maquiagem
─ mesmo no olhos, que ele gosta tanto de ressaltar ─ mostra que os dias de brilho são
parte do passado. O olho danificado de Bowie aparece encoberto por uma sombra,
tornando-o aparentemente normal. Para completar, ele agora apresenta sobrancelhas.
Finas e delineadas, porém existentes. Prova de que o maior símbolo de sua época glam,
Ziggy, estava morto e enterrado.
A capa de Heroes é uma imagem feita por um dos fotógrafos preferidos de
Bowie, o japonês Masayoshi Sukita. A importância dela é tanta que Bowie a utilizou em
seu mais novo álbum, que quebrou um silêncio de uma década. A única adição que o
álbum The Next Day (2013) apresenta é um quadrado branco cobrindo o rosto de
Bowie, mas não a imagem toda, com o nome do disco.
30
Figura 7 - Assumindo um estilo masculino: a capa de Heroes e a de The Next Day
Cedendo aos encantos da dance music 11, Bowie solidifica a sua imagem
masculina no álbum lançado em 1983, Let’s Dance. Na imagem, vemos David sem
camisa, com luvas de boxe e o semblante com uma expressão ameaçadora, convidando
os fãs para uma luta. O cabelo já não traz mais nenhuma mecha vermelha. Pelo
contrário, está muito loiro e ondulado, mas curto.
Figura 8 - Capa do álbum Let's Dance, lançado em 1983
11
De acordo com Roy Shuker, “A dance music tornou-se uma expressão ampla, que abrange todos os
gêneros de música tocados para dançar. Portanto, pode ser considerada um metagênero, que inclui
diversos estilos e gêneros, principalmente disco, funk, soul, motown, ska, hard rock e tecno” (SHUKER,
1999, p. 89).
31
Como pudemos perceber, David Bowie, ao longo de sua carreira, sempre fez
questão de usar a sua imagem para conquistar o maior número de pessoas para o seu
séquito de fãs. Para isso, a imagem que passou para a mídia e as personas que adotou
em seus álbuns são de extrema importância para tentar compreender o fenômeno
chamado David Bowie. No próximo capítulo, faremos uma análise detalhada sobre a
maneira como Bowie usou a mídia para a criação de sua imagem e de sua identidade.
32
3 FAME, WHAT YOU NEED YOU HAVE TO
BORROW – DAVID BOWIE ESTÁ NA MÍDIA
Grande parte do sucesso de David Bowie está atrelado ao fato de como ele
utilizou a sua imagem para chocar e abrir caminho como um rock star, quebrando
padrões que antes eram impossíveis de se conceber em algumas sociedades
conservadoras, como a questão de sua esperta bissexualidade misturada ao estilo do
glam-rock. Este capítulo pretende analisar a conquista de David Bowie da mídia
mundial e a maneira como a sua imagem foi formada de acordo com este meio.
3.1 A questão da identidade – fundamentos teóricos
Se nas sociedades mais antigas, ela era vista como uma proposição secundária,
como afirma Stuart Hall, nas sociedades modernas e pós-modernas, a questão da
identidade (ou das identidades) é extremamente importante para a afirmação do “eu” e
consequente inserção na sociedade. Atualmente, é difícil conceber um indivíduo
completamente fechado em apenas uma característica concernente a sua identidade e as
suas escolhas. A construção do seu eu é uma junção de diversos fragmentos apanhados
no dia a dia, que resultam numa personalidade modelada e com a pretensão de ser única.
A facilidade de poder se definir apenas com um adjetivo pátrio ou com a
insígnia de uma profissão parece não mais fazer efeito. É preciso afirmar de que tipo de
música se gosta, de que autor se tem mais livros, quais os lugares que têm as festas mais
interessantes, qual a orientação sexual adotada, a religião que se escolhe, a cor da pele,
além de inúmeros outros fatores responsáveis pela criação de grupos de identificação na
sociedade.
Muito embora o conceito de identidade não seja um consenso entre os
pesquisadores12, o que se tem notado é que elas estão, cada vez mais, passando por um
processo de fragmentação, deixando de lado toda a estabilidade que se acreditava ter.
Este conceito é explorado e explicado por Hall:
12
Stuart Hall, em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, pontua que o conceito de
“’identidade’ é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na
ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova”. (HALL, 2006, p. 8).
33
Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de
deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento –
descentração dos indivíduos tanto em seu lugar no mundo social e cultural
quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
(HALL, 2006. p.9)
Com o processo de descentração ou deslocamento de identidade, a ideia de que a
modernidade também está passando por mudanças tornou-se um dos pontos chaves para
a discussão do tema. Para entender como estamos inseridos na pós-modernidade, Hall
faz uma retrospectiva e levanta três tipos de identidade e suas respectivas características
para melhor compreensão do processo. O primeiro a ser analisado é o sujeito do
Iluminismo, extremamente individualista, que acreditava na sua identidade como um
processo de crescimento interior (o seu núcleo), permanecendo a mesma ao longo de
sua existência, não importando as suas experiências sociais.
O sujeito sociológico já reflete a ação do mundo moderno na formação do
indivíduo, levando em consideração as relações sociais experimentadas. O núcleo
interior ainda permanece, mas vai sendo moldado conforme vai se relacionando com as
pessoas ao redor, dando importância às suas opiniões, não sendo mais “autônomo e
auto-suficiente” (HALL, 2006. P. 11). Com esse processo de descoberta da importância
das relações exteriores para a formação da identidade, surge a ideia do sujeito pósmoderno: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12).
O conceito de sujeito pós-moderno é de substancial importância para analisar a
identidade de David Bowie, uma vez que o mesmo não apresenta uma identidade fixa e
imutável, sendo, na verdade, o extremo oposto disto. Hall atribui a mudança na
modernidade como uma consequência da globalização, quando áreas diferentes do
mundo são conectadas, gerando um intercâmbio cultural intenso. Esta ideia toca num
ponto crucial: o fato da cultura ter grande peso na formação do “eu”. A mídia, neste
caso, ocupa um papel importante de disseminadora cultural:
A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas
constroem seu senso de classe, de etnia e raça, de nacionalidade, de
sexualidade, de nós e eles. [...] As narrativas e as imagens veiculadas pela
mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir
uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do
mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as
identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades
tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura
global. (KELLNER, 2001, p. 9).
34
Essa cultura pode ser disseminada de diversas maneiras, como por meio do rádio
e da televisão. O fenômeno da globalização permite que o indivíduo tenha contato com
um grande número de produtos culturais, que acabam sendo pormenorizados, adaptados
e transformados ou não em pequenos pedaços de nossas identidades. Quanto mais
expressões culturais se recebe, mais vasta se torna a gama de possibilidades para
modelar uma personalidade. A cultura da mídia “molda a vida diária, influenciando o
modo como as pessoas pensam e se comportam, como se vêem e vêem os outros e como
constroem a própria identidade” (KELLNER, 2001, p. 10).
Perceber o outro como parte essencial do “eu” ajuda a democratizar a criação da
identidade, rompendo de vez com o arcaico sujeito do Iluminismo, tão cercado em seu
próprio núcleo interior. Paradoxalmente, o sujeito pós-moderno está muito mais
preocupado em ser único, na sua individualidade como fator constituinte de sua
personalidade. Ele quer ser incomparável, mesmo que esteja usando referências que
garimpou por meio da televisão ou de seus artistas preferidos:
A identidade na modernidade também foi ligada à individualidade, ao
desenvolvimento de um eu individual único. Enquanto, tradicionalmente, a
identidade era função da tribo, do grupo, era algo coletivo, na modernidade
ela é função da criação de uma individualidade particular. [...] É como se
cada um tivesse de ter um jeito, um estilo e uma imagem particulares para ter
identidade [...]. (KELLNER, 2001, p. 297).
Esta afirmação mostra a importância da cultura de massa para a formação da
personalidade. É interessante notar que as imagens reproduzidas na televisão, por
exemplo, atingem milhares de indivíduos em suas respectivas práticas culturais, e todos
eles desejam formar uma personalidade única, serem donos de uma identidade própria
que não seja possuída por mais ninguém, mesmo que as referências visuais sejam as
mesmas. É aí que entra o poder de criatividade para adaptar a cultura recebida.
É significativo perceber que o lazer, na sociedade pós-moderna, ocupa papel de
grande importância. É nesse período em que se assiste televisão, vê-se um filme ou
escuta-se uma música, produtos da cultura de massa, que, invariavelmente, farão parte
da identidade de uma pessoa. Kellner explica:
À medida que a importância do trabalho declina, o lazer e a cultura ocupam
cada vez mais o foco da vida cotidiana e assumem um lugar significativo.
Evidentemente, devemos trabalhar para auferir os benefícios da sociedade de
consumo (ou para herdar riquezas suficientes), mas supõe-se que o trabalho
esteja declinando em importância numa era em que, segundo se alega, os
indivíduos obtém mais satisfação do consumo de bens e das atividades de
lazer do que das atividades laboriosas. (KELLNER, 2001, p. 29)
35
O trabalho, neste caso, não ocupa mais o lugar de definição de personalidade,
como era de se esperar para o típico sujeito do Iluminismo. O indivíduo se relaciona
muito mais com o que consume culturalmente do que com o que faz para poder
consumir. O trabalho acaba se tornando um meio (modo de conseguir dinheiro) para a
obtenção de um fim (saciar sua sede de cultura). É a forma de a cultura refletir a sua
importância na economia, quando “as formas culturais modelam a demanda dos
consumidores, produzem necessidades e moldam um eu-mercadoria com valores
consumistas” (KELLNER, 2001, p. 29). Esta interação acontece, atualmente, a nível
global:
Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam
possibilidades de “identidades partilhadas” – como “consumidores” para os
mesmos bens, “clientes” para os mesmos serviços, “públicos” para as
mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes
umas das outras no espaço e no tempo. (HALL, 2006, p. 74)
À medida que o sujeito vai se relacionando com a sociedade e com seus
produtos culturais ao longo da vida, sua identidade vai sendo formada. É um processo
constantemente ativo, tornando a identidade sempre incompleta, porém não negativa. E
se sempre estamos nos relacionando, a nossa identidade só vai estar completa quando
morremos. Hall sugere trocar o conceito de identidade pelo de identificação:
[...] em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar
de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade
surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso
exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.
(HALL, 2006, p. 39)
Muito embora a identidade seja um processo, como mencionado acima, é certo
que sempre a vivenciamos como se já estivéssemos completos, como se não fôssemos
mais mudar com a ação do tempo. Antigamente, a maior parte da referência de
identidade para um indivíduo era a sua nação e os costumes que lhe foram repassados
por sua família. Hoje, nos apossamos dessa base, até porque “sem um sentimento de
identificação nacional o sujeito moderno experimentaria um profundo sentimento de
perda subjetiva” (HALL, 2006, p. 48), mas ela não se torna definitiva. Essa é uma das
contribuições da modernidade para o sujeito:
As transformações associadas à modernidade libertam o indivíduo de seus
apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas
36
eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto a mudanças
fundamentais. (HALL, 2006, P. 25).
Uma vez libertos da rigidez de suas tradições, os indivíduos se veem livres para
explorar as relações sociais e culturais para formar a sua identidade. O sentimento de
identificação nacional continua, já que formam a base e uma das primeiras noções
identitárias as quais o indivíduo tem contato. Ele se torna, porém, mais do que apenas
ser de um determinado local. E isso ele consegue por meio das relações sociais e por
meio da cultura, como já foi dito neste tópico.
A desvantagem de se poder mudar de identidade com facilidade é a provável
ligação da personalidade de uma pessoa com base apenas em sua imagem, que é
construída por meio de aquisições financeiras. O indivíduo acaba se tornando a sua
imagem, que é apresentada para a sociedade:
[...] constituir uma identidade substancial é trabalho que exige vontade, ação,
compromisso, inteligência e criatividade, e muitas das identidades pósmodernas construídas com material fornecido pela mídia e pela cultura
consumista carecem dessas características, sendo pouco mais do que um
jogo, uma pose, um estilo e uma aparência que amanhã mesmo podemos
trocar: identidades descartáveis e facilmente substituíveis no carnaval pósmoderno (KELLNER, 2001, P. 334).
A cultura da mídia consumista se regozija com essa nova faceta da construção da
identidade, já que a imagem vem dela e as pessoas compram artefatos também baseados
em seus produtos. A fragilidade das identidades abre espaço a novos produtos,
bombardeados pela mídia, levando à ideia de que “o próprio capital é o demiurgo da
alegada fragmentação pós-moderna, da dispersão de identidades, da mudança e da
mobilidade” (KELLNER, 2001, p. 329). A ideia de possuir determinado artefato
comercial para a formação da identidade nos leva ao fato de estarmos sempre nos
preocupando com a imagem que passamos para os outros por meio de nossas interações
sociais.
3.2 Relações sociais na construção do “eu”
Desde a popularização dos meios de comunicação de massa, a imagem vem
ocupando um lugar excepcional na sociedade. Seja transmitida a cores ou em preto e
branco, fixa ou móvel, sua função ultrapassa a necessidade de informação ou
entretenimento. Um dos exemplos mais marcantes da força da imagem está no filme A
37
Chegada do Trem na Estação, filme francês de 1895, gravado pelos irmãos Louis e
Auguste Lumière.
O filme de apenas um minuto foi responsável pela confusão gerada pela plateia,
que não estava acostumada e nem estava esperando tamanha precisão de imagem vinda
da tela do cinema. A reação geral foi, portanto, correr, gritar e sair do caminho que o
trem provavelmente faria se saísse da tela. Este momento, na história do cinema, serve
como exemplo para o argumento de que a imagem, seja ela uma representação ou real,
tem grande importância na vida do sujeito moderno e pós moderno.
Assim, chegamos ao fato de que, para participar de uma sociedade,
apresentamo-nos como uma imagem do que somos. Cultivamos uma verdadeira
representação do que somos ou, muitas vezes, do que queremos ser, de modo que
consigamos atrair a atenção das pessoas que queremos interagir. Essa identidade, como
uma faceta do sujeito pós-moderno, está constantemente em mudança, como aponta
Joanne Finkelstein:
To participate in society we cultivate a public persona, a manner of being in
the world that works to sustain our engagements with others. Much of the
training for this dual and divided mentality is delivered through popular
culture […]. Identity is continuously re-styled invented to suit the
circumstances but, at the same time, it supposedly emanates from an inner
quality that universalizes the human condition. (FINKELSTEIN, 2007, P. 23)13
Esta persona pode ou não ser uma realidade, mas, segundo a autora, suas
características partem de uma qualidade interior do próprio criador. O fato é que esta
persona é utilizada nas relações sociais do dia-a-dia, nos levando à ideia de que a
interação social é uma performance, “all the activity of na individual which occurs
during a period marked by his continuous presence before a particular set of observers
and which has some influence on the observers” (GOFFMAN, 1956, p. 13)14.
Tratar o mundo como um palco não é uma concepção particularmente nova. Na
peça As You Like It, Shakespeare trabalhou este conceito e ainda o de assumir personas
para conseguir o que se deseja. Na história, Rosalind e sua prima Celia são banidas para
a floresta de Arden, onde se vestem de homens para se protegerem. Na sétima cena do
13
Para participar da sociedade, nós cultivamos uma persona pública, uma maneira de ser no mundo que
funciona para mantermos nossas relações com os outros. Muito do treinamento para essa mentalidade
dual e dividida vem por meio da cultura popular. [...] A Identidade é continuamente reestilizada e criada
para servir às circuntâncias mas, ao mesmo tempo, ela supostamente emana de uma qualidade interior que
universaliza a condição humana. (Tradução nossa)
14
Toda a atividade de um indivíduo que ocorre num período marcado pela sua contínua presença diante
de um determinado conjunto de observadores e que exerce alguma influência neles. (Tradução nossa).
38
segundo ato, Shakespeare nos mostra, de maneira simples, que estamos no mundo
representando um papel, que evolui à medida que o personagem vai envelhecendo e
passando pelas várias fases de sua vida:
JAQUES: All the world’s stage,
And all the men and women, merely Players;
They have their exits and their entrances,
And one man in his time play many parts,
His acts being seven ages. (SHAKESPEARE, 1994, P.58)15
A maneira como uma pessoa age em sua casa, quando ninguém está vendo, é
diferente daquela que assume quando está no trabalho. Em uma relação direta com as
pessoas, é claro observar que um indivíduo não vai falar com um amigo de longa data
da mesma forma que falaria com a Rainha da Inglaterra. Outros fatores como tradição e
respeito estão em jogo, mas isso não abstém o fato de que estamos representando um
papel ─ na mais otimista das hipóteses ─ proveniente de características interiores.
Quando começamos a interagir com uma pessoa, uma série de decisões são
feitas para que possamos despertar não só simpatia, mas uma série de sentimentos que
desejamos fazer surgir. Atuar para o outro revela uma necessidade de enaltecer ou de
esconder determinadas características próprias, as quais serão ou não vantajosas para
mostrar. Esse fato é facilmente percebido em, por exemplo, uma entrevista de emprego,
como aponta Finkelstein:
We accept the necessity to enact ourselves, say, at a job interview or in a
business meeting, on public transport, at the tennis club or the shopping mall.
Our compliance with these tacit expectations builds a double consciousness
and we learn to see social interactions as replete with moments when we need
to conceal truths about our selves and also to exaggerate claims, such as
when we are trying to impress others. (FINKELSTEIN, 2007, P. 13)16
Quando o indivíduo se encontra em uma situação em que está conhecendo
pessoas novas, ele precisa se sentir no controle da situação, não só na apresentação de
sua pessoa, mas, geralmente, sendo o centro da atenção. Finkelstein afirma que
“experimentamos um senso visceral de poder” (FINKELSTEIN, 2007, p. 99) quando se
15
O mundo é um palco,
E todos os homens e mulheres, apenas Atores;
Eles têm suas saídas e entradas,
E um homem em seu tempo interpreta vários papeis,
Seus atos sendo sete eras. (Tradução nossa)
16
Nós aceitamos a necessidae de representar a nós mesmos, digamos, em uma entrevista de emprego ou
em uma reunião de negócios, num transporte público, no clube de tênis ou no shopping. Nosso
cumprimento dessas expectativas tácitas constroi uma dupla consciência e nós aprendemos a ver
interações sociais como repleta de momentos quando precisamos esconder verdades sobre nós e também
exagerar feitos, como quando estamos tentando impressionar outros. (Tradução nossa).
39
consegue captar a atenção de um ou mais interlocutores, além do fato de que “toda a
vida social envolve uma luta para controlar a opinião dos outros e determinar cuja
narrativa ou ponto de vista vai prevalecer” (FINKELSTEIN, 2007, p. 139).
A necessidade de representar um papel está imbricada na sociedade, recebendo o
seu reforço por meio da cultura popular. A importância que damos às aparências visuais
é produto da nossa fixação pelas imagens que nos são apresentadas pela mídia. Para um
adolescente, por exemplo, é indispensável participar de grupos, sentir-se parte de um
conjunto que o entenda e faça basicamente as mesmas escolhas, mesmo que sejam
visuais. Tudo isso pode ser conseguido por meio da mídia, reprodutora da cultura
popular, que reforça “the importance we place on physical appearance as indicative of
identity” (FINKELSTEIN, 2007, p. 13)17.
Sendo a aparência física vista como um sinônimo de identidade, é crucial sua
importância quando se quer quebrar alguma tradição ou apenas chocar determinado
grupo de conservadores. Tocar nos pontos mais sensíveis da sociedade, como sexo,
sexualidade, raça e classe é o que os artistas de rock ─ principalmente os da década de
1960 e 1970 ─ pretendiam fazer. E David Bowie certamente estava neste grupo.
Como um exemplo para a ideia de invenção própria do “eu” e de uma atitude
representada para uma plateia, calculada com a finalidade de chocar, temos uma clássica
imagem de Bowie e o guitarrista Mick Ronson, em show no Hammersmith Odeon
(Londres, 1973). No auge do glamour, Bowie se abaixa e começa a tocar a guitarra de
Ronson. O diferencial está no fato de ele tocá-la com os dentes, apoiando-se no corpo
de Ronson:
17
a importância que damos à aparência visual como indicativo de identidade (Tradução nossa).
40
Figura 9 - David simulando um ato sexual com a guitarra de Mick Ronson
Com essa representação, a plateia deve ter ido à loucura. Confusos e assustados
com aquela representação extremamente sexualizada, os fãs que estavam assistindo ao
show devem ter ficado surpresos. Era uma novidade, mesmo para os padrões de Bowie
e do glam rock, que valorizavam atitudes deste escalão. Neste momento, o centro
máximo de atenção no momento era David, com suas pernas arqueadas e sua mão
delicadamente apoiada na coxa de Ronson. O momento estava controlado; Bowie
conseguira a atenção. O poder estava em suas mãos.
Este momento aconteceu quando Bowie ainda estava encarnando a sua persona
mais conhecida, o alien Ziggy. Mesmo sendo declaradamente uma criação de David,
Ziggy era, em parte, ele próprio. No documentário Cracked Actor, produzido pela BBC,
ele desenvolve esse pensamento quando o entrevistador pergunta se incorporar e
representar personagens não é uma coisa perigosa:
Well, I didn’t know. One doesn’t know. That mixed up. […] One half of me
is putting up a concept for and the other half is trying to sort out my own
emotions. And a lot of my space creations are in fact facets of me, I have now
since discovered. […] Ziggy would be something and would relate to me,
now I find. And Major Tom in Space Oddity was something, Aladdin Sane…
They are all facets of me. And I got lost in one point. I couldn’t decide
whether I was writing characters or were they writing me or whether we were
all one in the same. (BOWIE, 1974)18
18
Bem, eu não sabia. A pessoa não sabe. Isso se misturou. [...] Uma metade minha está colocando um
conceito e a outra está tentando entender minhas próprias emoções. E muitas das minhas criações
espaciais são, na verdade, facetas minhas; eu descobri agora.[...] Ziggy seria alguma coisa e se
relacionaria a mim, agora sei. E Major Tom em Space Oddity era alguma coisa, Aladdin Sane... Eles são
todos facetas minhas. E eu me perdi em um ponto. Eu não conseguia decidir se eu estava escrevendo
personagens, ou eles estavam me escrevendo ou se nós éramos a mesma coisa. (Tradução nossa).
41
Reconhecer que Ziggy era uma faceta de David Bowie nos leva de volta ao
conceito da performance e como o performer pode perigosamente acreditar na
veracidade de seus atos. Uma vez que se acredita nisso, resta à plateia confirmar este
sentimento, o que realmente aconteceu com a relação Bowie/Ziggy. Goffman fala sobre
isso:
At one extreme, we find that the performer can be fully taken in by his own
act; he can be sincerely convinced that the impression of reality which he
stages is the real reality. When his audience is also convinced in this way
about the show he puts on – and this seems to be the typical case – then for
the moment, anyway, only the sociologist or the socially disgruntled will
have any doubts about the ‘realness’ of what is presented. (GOFFMAN,
1956, p. 10)19.
Além de ser uma faceta de Bowie, Ziggy era também uma extensão dele. O
conceito vem de Marshall McLuhan, e, para exemplificar, o autor utiliza-se do mito
grego de Narciso, que tomou o seu reflexo na água como se fosse uma outra pessoa. A
extensão de seu ser estava no espelho proporcionado pela água, entorpecendo-o. Ziggy
envolveu Bowie em um estado de torpor. De acordo com McLuhan, “os homens logo se
tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não
seja o deles próprios” (MCLUHAN, 1964, p. 59).
Ziggy é um caso à parte, uma vez que tomava forma no próprio corpo de Bowie,
ou seja, em sua própria extensão. Este fato, porém, não o isenta de ser considerado uma
extensão de seu criador e uma tentativa de estabelecer um determinado equilíbrio entre
os impulsos nervosos do mundo exterior e seus próprios sentimentos. McLuhan explica:
Fisiologicamente, sobram razões para que uma extensão de nós mesmos nos
mergulhe num estado de entorpecimento. Pesquisas médicas [...] sustentam
que todas as extensões de nós mesmos, na doença ou na saúde, não são senão
tentativas de manter o equilíbrio (MCLUHAN, 1964, p. 60).
Nesta época, Bowie realmente encarnou Ziggy e se deixou envolver por ele. As
pessoas começavam a tratá-lo como sua criação, e ele próprio aparecia em público como
Ziggy. Por isso, foi tão difícil se apartar de seu personagem. Mesmo que seu sucesso
ainda pudesse funcionar comercialmente por mais alguns anos, Bowie decidiu que a
19
Em um extremo, vemos que o performer pode ser totalmente levado por seu próprio ato; ele pode estar
sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a realidade real. Quando o seu
público também está convencido dessa maneira sobre o show que ele encena - e este parece ser o caso
típico -, então, por enquanto, de qualquer maneira, somente o sociólogo ou o socialmente descontente
terão dúvidas sobre o "realismo" do que é apresentado (Tradução nossa).
42
vida do alien na Terra já tinha cumprido o seu objetivo: o de tornar seu criador
mundialmente conhecido.
David Bowie é uma enciclopédia de atitudes calculadas. A maneira como ele
choca as pessoas – mesmo que pareçam ou sejam espontâneas – fazem parte do “eu”
criado pelo artista para lidar com o público. Outro exemplo da encarnação dessa persona
chocante foi no show de 1992 em tributo a Freddie Mercury, que havia falecido no ano
anterior por causa de uma doença causada pela AIDS.
O show aconteceu no Estádio de Wembley, em Londres, e reuniu diversas
bandas. Bowie se reunira com Mick Ronson, guitarrista do Spiders From Mars, sua
antiga banda. Ao final da canção “Heroes”, Bowie faz um pequeno discurso sobre as
vítimas da terrível doença e, como uma forma de homenagem, coloca-se de joelhos e
reza um Pai-Nosso. A plateia, mais uma vez, ficou chocada. Nunca se esperaria uma
atitude dessas de David Bowie. Até a banda ficou chocada. “’Eu me lembro de ter
pensado que seria bom se ele tivesse nos avisado’, May 20 disse depois” (SPITZ, 2010,
p. 372).
Figura 10 - Mick Ronson (de branco), Brian May (de vermelho) e David Bowie de azul no
Estádio de Wembley
Por que se apresentar como um personagem? Bowie criou Ziggy para ajudá-lo
com a sua timidez inveterada de garoto londrino. Para abrir o seu caminho no show
business, uma pessoa tímida ou igual a todas as outras não consegue ir muito longe. Por
isso a necessidade de chocar, de se apresentar com estilo próprio (mesmo que tenha
20
Brian May, guitarrista do Queen.
43
surgido como uma montagem do estilo de outras pessoas). Quanto mais diferente, mais
as pessoas ficam intrigadas e querendo conhecê-lo. Finkelstein apresenta um ponto de
vista sobre as aparências convencionais e as diferentes:
A stylish appearance may liberate us from the sctrictures of conventional
roles, or in reverse – if we play by rules – a conventional appearance can
conceal what we do not want to reveal. […] The paradox of fashioning
ourselves is that it reveals by concealing. Thus the art of deception carries the
surprising truth of Oscar Wilde’s quip that appearances are important, that
the true ‘mystery of the world is the visible, not the invisible’.
(FINKELSTEIN, 2007, p. 130)21.
A imagem, portanto, é a grande responsável pela impressão que se deseja incutir
numa pessoa ou grupo. Ela não significa tudo, obviamente. Por outro lado, para o ator
social, é imprescindível que ela esteja de acordo com o que ele deseja, como no caso de
David Bowie. Para se conseguir uma imagem no mínimo chocante, muitos artistas se
utilizam da moda e da maneira como ela é capaz de modelar a personalidade. É deste
assunto que o próximo tópico falará.
3.3 A moda como auto-afirmação
Muito do que se apreende socialmente está relacionado à maneira de se vestir, de
se apresentar em público. A indumentária pode resumir grande parte das ideologias de
uma pessoa, que são facilmente deduzidas pela maneira como estão ornando no corpo.
Mesmo que o indivíduo aparentemente não ligue para o seu visual, essa mensagem é
passada para o espectador. Enquanto nas sociedades tradicionais a maneira de se vestir
era uma afirmação da classe social, status e profissão, no mundo moderno essas
conclusões não são tão simplórias.
Para McLuhan, o vestuário como uma extensão da pele “pode ser visto como um
mecanismo de controle térmico e como um meio de definição social” (MCLUHAN,
1964, p. 140). A moda define, na sociedade moderna, a maneira como ela é vista e
aceita em diversos grupos. A identidade e a formação da personalidade passam pela
moda, ganhando bastante representação:
21
Uma aparência estilosa pode nos libertar das contenções de papeis convencionais, ou o contrário - se
jogamos pelas regras - uma aparência convencional pode esconder o que não queremos revelar. [...] O
paradoxo de moldarmos a nós mesmos é que ele revela escondendo. Assim, a arte de enganar carrega a
verdade surpreendente da ironia de Oscar Wilde de que as aparências são importantes, que o verdadeiro
"mistério do mundo é o visível, não o invisível". (Tradução nossa)
44
A moda perpetua a personalidade inquieta e moderna, sempre à procura
daquilo que é novo e admirado, enquanto foge do que é velho e ultrapassado.
Moda e identidade aliam-se para produzir personalidades modernas à cata de
identidade em constante renovações e atualizações de roupas, aparência,
atitudes e estilos, com medo de estar desatualizadas e fora de moda.
(KELLNER, 2001, p. 337).
Essa busca constante pelo novo, pela modernidade é extremamente conveniente
ao artista, que, segundo McLuhan, “apanha a mensagem do desafio cultural e
tecnológico décadas antes que ocorra seu impacto transformador” (MCLUHAN, 1969,
p. 84). Os artistas conseguem, portanto, prever (ou ditar) modas que são aceitas pela
sociedade. David Bowie foi capaz de fazer isso com base na sua constante observação
do mundo que o envolvia, tendo atenção até mesmo aos mínimos detalhes.
Com a extrema capacidade de transformação, a moda consegue tornar as
atividades diárias de um indivíduo em verdadeiras e complexas afirmações de
personalidades e estilos. Como diz Finkelstein, “fashion is also a process that
transforms the mundane activities of everyday life into more elaborate and complex
aesthetics activities by altering the emotional investment surrounding the display”
(FINKELSTEIN, 2007, p. 195)22.
A moda também é um terreno promissor para a rebeldia, a transgressão dos
códigos conservadores. Essa ideia teve o seu boom na década de 1960, quando algumas
sociedades, principalmente as influenciadas pelo rock’n’roll, viram-se na necessidade
de criar um estilo que fosse capaz de representá-la. Fosse negando completamente o
código cultural vigente ou criando seus próprios costumes com base nele, a sociedade se
viu em um processo de mudança cultural visual, quando suas roupas, assim como seus
atos, atestavam suas crenças. A moda, portanto, pode ser considerada como um artefato
na luta pelos ideais:
[...] a moda e a identidade social fazem parte de um processo de luta e
conflito social entre modelos e ideologias opostas. Os conservadores têm
seus próprios modelos e estilos tanto quanto os rebeldes culturais. Portanto,
as lutas políticas são travadas em parte no campo da moda, tanto quanto nas
eleições e nos debates políticos. (KELLNER, 2001, p. 339)
Foi na moda que Bowie conseguiu dar vazão à sua alma transgressora,
principalmente quando relacionada a códigos sexuais. Embebido na liberdade do glam
rock, Bowie pôde servir de corpo para questionar a ordem vigente. Quem disse que
22
Moda também é um processo que transforma as atividades rotineiras da vida diária em mais elaboradas
e complexas atividades de estética, alterando o investimento emocional que rodeia o corpo.
45
homens não podem usar salto e maquiagem? Por que os costumes são tão severamente
estruturados? Para David, a pessoa poderia ser quem quisesse, usar o que quisesse e o
que pudesse despertar algum tipo de prazer ou, até mesmo, choque.
O sucesso visual de Bowie era tão grande, que uma legião de fãs começou a
imitá-lo. Nos shows, jovens com os cabelos e roupas multicores achavam-se em casa.
No documentário da BBC, Cracked Actor, Bowie comenta este assunto com um
sentimento lisonjeiro:
Over the last year os so it’s changing in as much as they are finding things
maybe nothing to do with me, but the idea of finding another character within
themselves. I mean, if I’ve been at all responsible for people finding more
characters in themselves than they originally thought they had than I’m
pleased because that’s something I felt very strongly about: that one isn’t
totally what one is being conditioned to think. There are many facets of the
personality which a lot of us have trouble finding and some of us do find too
quickly. (BOWIE, 1974)23
Encontrar personas dentro de si mesmo era um dos grandes objetivos de Bowie.
Em cada disco ou show, ele fazia questão de se apresentar como um novo e usava o
artifício da moda com destreza. O artista também é conhecido por sua parceria com
estilistas, como o japonês Kansai Yamamoto e o britânico Alexander McQueen. A
questão é que David Bowie era um excelente modelo, pois nunca tinha medo de ousar.
Justamente por isso, a criatividade dos estilistas podia correr solta e para várias
direções.
Figura 11 - David Bowie em roupa desenhada por Kansai Yamamoto
23
Ao longo do último ano, está mudando no sentido de que eles estão achando coisas talvez nada a ver
comigo, mas com a ideia de acharem outra personalidade neles mesmos. Quer dizer, se eu tiver sido
responsável de alguma maneira pelas pessoas achando mais personalidades nelas do que elas
originalmente achavam que tinham, então estou satisfeito porque é uma coisa que eu sinto muito
fortemente: que um indivíduo não é totalmente o que ele foi condicionado a pensar. Existem muitas
facetas da personalidade as quais alguns de nós têm problemas para encontrar e outros acham muito
rápido (Tradução nossa).
46
Uma das vantagens de se adotar a moda é a capacidade que ela permite de poder
brincar com as estruturas conservadoras, inclusive as regras de gênero. Com toda a sua
androginia, Bowie gostava de subverter a ordem. Finkelstein comenta essa “resistência
brincalhona”:
The opportunity to play with these visual distinctions (for example, allowing
women to wear trousers) is a feature of social freedom in egalitarian societies
where appearances are much less constrained by rules and ironically, as a
result, appearances become much more ambiguous. […] Underscoring this
association of identity with appearance is a cultural anxiety about knowing
who it is we are encountering. Using coded items of clothing to make such
categorizations more visible also makes them a site for playful resistance.
(FINKELSTEIN, 2007, P. 128)24
David sabe muito bem brincar com as regras da sociedade. Em uma fotografia
de meados dos anos 1970, Bowie foi flagrado passeando com seu filho, Zowie, e a
esposa, Angie. Acontece que não era uma imagem da tradicional família. Não havia um
“macho alfa” na foto. Na verdade, o que parecia eram duas mulheres. Bowie está com
calças pantalonas com boca de sino, mais parecendo uma saia longa. A blusa é de
mangas compridas, frouxas, mas apertadas nos punhos. Ela está por dentro da calça,
dando a impressão de a vestimenta ser uma só. Os cabelos caem pelo ombro,
ornamentados com um chapéu de abas grandes.
Angie está vestindo uma calça de alfaiataria preta com uma blusa quadriculada e
um casaco de pele por cima. Os cabelos são médios, mas menores do que os do marido.
A expressão em sua face é desafiadora, como se perguntasse ao fotógrafo se havia
algum problema com aquela imagem. Angie está claramente representando o tradicional
papel de homem da relação, enquanto Bowie se esconde em roupas femininas.
24
A oportunidade de brincar com essas distinções visuais (por exemplo, permitir uma mulher a usar
calças) é uma característica de liberdade social em sociedades igualitárias onde as aparências são muito
menos limitadas por regras e, ironicamente, como resultado, as aparências se tornam muito mais
ambíguas. [...] Ressaltar essa associação entre identidade e aparência é uma ansiedade cultural sobre saber
quem é que estamos encontrando. Usar itens codificados de roupas para fazer tais categorizações mais
visíveis também os torna uma maneira de resistência brincalhona (Tradução nossa).
47
Figura 12 - David e Angie Bowie quebrando os padrões estéticos da família tradicional em
retrato
Grande parte do sucesso de um artista está na sua capacidade de se reinventar.
Bowie nunca precisou realmente se preocupar com isso, visto que sempre conseguiu se
aproveitar de situações que fossem capazes de engrandecê-lo como performer. Porém,
não foi sempre assim. No início de sua carreira solo, Bowie tentou a fama como uma
mera reprodução da moda hippie vigente na época, com o disco Space Oddity, em
meados dos anos 1960. Isso depois de ter desistido do mod, com o disco que o lançou
no mercado, David Bowie.
Foi, porém, quando decidiu que não queria ser apenas mais um nas prateleiras de
lojas de discos que Bowie conseguiu alcançar o patamar de estrela. Revolucionando o
seu visual, ele abriu caminho entre os milhares de artistas que lutavam na época e
conseguiu o seu lugar ao sol, com o disco The Man Who Sold The World, lançado em
1971. A década de 1970 estava abrindo as portas para um dos astros mais aclamados da
música britânica, quiçá mundial.
O próximo capítulo vai analisar as capas dos discos que o fizeram conquistar
milhares de fãs ao redor do mundo. Funcionando como uma espécie de prévia das
músicas, Bowie revolucionou a arte de se apresentar em seus compactos, retratando ou
não suas personas, contribuindo para ativar a criatividade imaginativa de seus
admiradores. O resultado foi um lugar sempre reservado para ele na mídia.
48
4 CH-CH-CHANGES, JUST GONNA HAVE TO BE
A DIFFERENT MAN – AS REINVENÇÕES DE
DAVID BOWIE
No capítulo passado, vimos como David Bowie se usou da mídia, da moda e da
reinvenção de sua identidade para galgar espaço no mundo da fama. No presente
capítulo, nossa intenção é fornecer ao leitor uma análise das capas de discos em que ele
mais ousou, ou seja, usou sua identidade para chocar e quebrar paradigmas na
sociedade, abrindo caminho para diversas representações culturais. As imagens aqui
selecionadas contribuíram de forma significativa para a construção do mito que Bowie
se tornou.
4.1 A importância da imagem veiculada na mídia
Nas décadas de 60 e 70, um dos meios mais eficazes para transformar em paixão
uma simples admiração por parte do público eram as capas de LPs (long-plays). Possuir
um disco de uma banda a qual se admirava era sinônimo de uma juventude bem
aproveitada e, em alguns casos, significava uma afirmação de rebeldia perante às
opiniões conservadoras da época. Obter um disco de Bowie causava isso na maioria dos
fãs. Como afirma Christopher Breward, no ensaio “Pois ‘We are the goon squad’ Bowie, a moda e a força das capas de LPs: 1967-83”, a era digital talvez tenha
aniquilado a devoção que antes se sentia ao possuir um LP:
O vívido apelo visual e o imediatismo tátil dessas capas proporcionavam uma
conexão tangível entre o artista e o ouvinte: os álbuns eram escolhidos e
comprados com uma intenção devota, e suas capas abriam possibilidades
decorativas que transformavam o quarto de um adolescente num santuário.
[...] a capa de um LP, presa num painel de parede, podia representar toda
espécie de aspirações imaginadas e desejadas. (BREWARD, 2013, p.193)
Da mesma forma que o álbum servia como um monumento imagético, ele era
também uma espécie de amostra grátis do que estava por vir; o conteúdo musical, o que
era realmente vendido para o público. A capa funciona como um tipo de paratexto,
termo criado pelo francês Gerard Genette. Para ele, um paratexto é o material que
envolve uma obra:
49
[...] the paratext is what enables a text to become a book and to be offered as
such to its readers and, more generally, to the public. More than a boundary
or a sealed border, the paratext is, rather, a threshold, […] a “vestibule” that
offers the world at large the possibility of either stepping inside or turning
back (GENETTE, 1997, p. 1-2).25
O conceito de Genette e a sua ideia inicial se aplicam a textos escritos, mas isto
não impede que seu uso também abranja materiais visuais. Da mesma forma que uma
sinopse ou um comentário de uma revista, a capa também serve para criar o primeiro
contato do público com o artista, principalmente porque, para vê-la, não é preciso
nenhum tipo de intermediação financeira. Genette afirma, também, a importância desse
material que acompanha o produto principal, uma vez que ele controla a leitura que se
faz, chegando a afirmar que não existe e nem nunca existiu um texto sem paratexto 26:
[The paratext is] a privileged place of a pragmatics and a strategy, of an
influence on the public, an influence that – whether well or poorly
understood and achieved – is at the service of a better reception for the text
and a more pertinent reading of it (more pertinent, of course, in the eyes of
the author and his allies). (GENETTE, 1997, p. 2)27
A capa de um disco, então, ocupa um lugar estratégico para seu sucesso
comercial. A máxima “Não se deve julgar um livro pela sua capa” torna-se cada vez
mais vazia, uma vez que esse julgamento é inerente. A imagem contribui para a
decodificação do conteúdo do álbum na medida em que fornece filtros para a
compreensão das músicas. Numa analogia, a capa serve como o trailer do filme,
fornecendo um material bônus para a construção de uma ideia do que se vai consumir
ou não. Jonathan Gray discorre sobre esse assunto:
Decisions on what to watch, what not to watch, and how to watch are often
made while consuming hype, synergy and promos, so that by the time we
25
[...]o paratexto é o que permite um texto a se tornar um livro e a ser oferecido como tal a seus leitores e,
mais comumente, a seu público. Mais do que um limite ou uma fronteira fechada, o paratexto é, sim, o
ponto inicial para uma nova experiência, [...] um "vestíbulo", que oferece o mundo em geral a
possibilidade de tanto pisar dentro ou voltar atrás (Tradução nossa).
26
“[...] one may doubtless assert that a text without a paratext does not exist and never has existed”
(GENETTE, 1997, p. 3)
27
[O paratexto é] um lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma influência sobre o
público, uma influência que - quer seja bem ou mal compreendida e alcançada - está a serviço de uma
melhor recepção do texto e uma leitura mais pertinente dele (mais pertinente, é claro, aos olhos do autor e
de seus aliados) (Tradução nossa).
50
actually encounter “the show itself”, we have already begun to decode it and
to preview its meanings and effects (GRAY, 2010, p. 3)28.
Para Gray, o hype é venda frenética de algum produto, um anúncio que
ultrapassa as normas do aceitável. O consumo do produto começa quando a sua amostra
grátis é transmitida de maneira eficiente, por meio desses anúncios e de propagandas,
tornando, assim, o produto famoso e iniciando o processo de conhecimento por parte do
público consumidor.
Genette ensina a definir um elemento paratextual ao propor uma série de
questionamentos que delimitam o objeto. É necessário, para este fim, determinar a
localização do objeto; a data de sua aparição; o seu modo de existência, seja verbal ou
não; para quem ele é endereçado e quem enviou; e as suas funções 29. É basicamente, em
termos jornalísticos, responder às perguntas propostas no lead: onde?, quando?, como?,
de quem?, para quem?, para quê?.
O paratexto, portanto, exerce grande influência no produto final. Sua função e
seu impacto não devem ser desprezados e nem vistos simplesmente como um termo
acessório. Um paratexto bem articulado pode controlar a visão que o público tem de um
determinado produto ou, no mínimo, condicioná-la. É como Gray afirma: “paratexts
play as much of a role as does the film or television program itself in constructing how
different audience members will construct this ideal text”30 (GRAY, 2010, p. 11).
David Bowie tinha noção do peso que a imagem veiculada em seus álbuns
exercia sobre quem os comprava. E, como sempre, foi muito hábil na sua manipulação
da mídia, dando a ela muitas vezes não o que queria, mas o que precisava para alimentar
polêmicas e, consequentemente, aumentar o número de cifras no fim do mês. Por isso, a
formação de sua imagem como um “performer” musical tem grande espaço em seus
discos. Uma vez que Bowie conseguia sair-se bem sucedido da empreitada de formação
de personas, ele experimentava o “senso visceral de poder” que Finkelstein cita e que
propomos no capítulo anterior. Encarnar personas parecia ser uma fórmula adequada
para se tornar poderoso no ramo da mídia, e Bowie definitivamente necessitava disto.
A ideia da descentração do sujeito, proposta por Stuart Hall e discutida no
capítulo passado, culminando na personificação do sujeito pós-moderno encontram
28
Decisões sobre o que assitir, o que não assistir, e como assistir são geralmente feitas enquanto
consumimos hype, synergy e promos, a ponto de que, quando encontrarmos "o próprio show", nós já
começamos a decodificá-lo e prever os seus significados e efeitos (Tradução nossa).
29
GENNETE, 1997, p. 4.
30
“Os paratextos também têm o mesmo papel que o filme ou o programa de televisão na construção de
como os diferentes membros da audiência vão formular este texto ideal” (Tradução nossa).
51
abrigo nesta análise. David foi se formando com base na mídia e em seu papel de
disseminadora cultural; porém, com o desejo de ser único. A sua individualidade
deveria ser preservada a cada persona que criasse, processo que envolvia vontade, ação,
compromisso, inteligência e criatividade; características propostas por Kellner e citada
por nós no capítulo anterior.
Assim como Bowie queria transcender o fazer musical adicionando, também, as
imagens, os fãs queriam participar desse processo. E a maneira como faziam isso era
comprando os discos e se tornando verdadeiros adoradores da persona que ali se
apresentava, juntamente com toda a bagagem que viria com o disco. Muitos jovens da
época finalmente conseguiram se conectar a um artista que talvez estivesse passando
pelos mesmos conflitos: a necessidade de uma afirmação sexual, a vontade dominante
de não passar pela Terra sem deixar nada e o sonho juvenil de conquistar o mundo com
a arte.
É neste contexto que Bowie chega para abalar todas as estruturas e preconceitos
relativos ao gênero sexual existentes no mundo conservador, porém em constante
mudança, do final da década de 60 e início da década de 70. Fato que aconteceu de
forma chocante, com o disco The Man Who Sold the World (1971), em que Bowie
aparece com um “vestido masculino”. Seguido a ele, o álbum Hunky Dory, com um
Bowie etéreo na capa. Passamos por Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders
from Mars (1972) e Aladdin Sane (1973) e chegamos em Pin Ups (1973), um álbum de
regravações de músicas famosas de outros artistas em que Bowie aparece posando com
a modelo Twiggy e há a confusão de quem aparenta ser mais feminino. Por fim, o disco
Young Americans (1975), que parece encerrar a fase de Bowie como mulher.
Com os álbuns The Man Who Sold The World, Hunky Dory, Pin Ups e Young
Americans, acreditamos que David Bowie foi mais bem sucedido na manipulação de
seus paratextos e, consequentemente, de sua imagem para conseguir vender seu produto.
Nestas, a persona que David encarna é a de uma mulher, utilizando-se ao máximo de
sua androginia. Nestes trabalhos, é possível notar a importância que a aparência visual
exerce como um indicativo da identidade do músico, que estava em constante mudança.
4.2 Bowie e seus contemporâneos
Com a intenção de explicitar o ponto de vista acreditado neste trabalho, algumas
capas de outros artistas foram selecionadas. Para a seleção destas imagens, optamos por
separar as capas dos discos lançados no período de 1970 a 1972, tendo em vista o
52
lançamento de The Man Who Sold the World de Bowie. Na área do rock’n’roll em seu
sentido mais abrangente, temos Rolling Stones, Led Zeppelin e Pink Floyd. As bandas
inglesas também se utilizaram de elementos chocantes em suas capas, principalmente os
Rolling Stones, porém nenhuma delas fez uso de elementos de gênero, como David
Bowie.
David, porém, no início da sua carreira, não tinha uma noção perfeita do que
queria ser ou atingir com a mídia. Como foi dito no primeiro capítulo, ele passou por
alguns estilos musicais e de moda até chegar na exploração de sua androginia, que será
analisada no presente capítulo. Com os seu primeiro álbum lançado oficialmente, Bowie
ainda trazia reminiscências de seu passado mod, com os cabelos arrumados e
simetricamente cortados. O segundo disco, Space Oddity, já carrega certa rebeldia,
representada nos cabelos artificialmente cacheados e esvoaçantes. Em relação à ousadia
e ruptura com os padrões da sociedade da época, nada havia de diferente.
Figura 13 - David Bowie convencional nos discos lançados respectivamente em 1967 e 1969
Dentre as selecionadas das demais bandas, a capa de Sticky Fingers, dos Rolling
Stones, é a que carrega um elemento mais ousado: uma imagem em close de um homem
usando calças apertadas, salientando o formato de sua genitália. A imagem contém a
agressividade do rock’n’roll e um de seus estereótipos mais marcantes: o couro preto,
presente, neste caso, no cinto. As únicas cores presentes na imagem (preto, branco e
vermelho) também remetem ao estilo musical.
Representando a área de hard-rock, temos a banda Led Zeppelin. Os discos
lançados no período selecionado não apresentam ousadias drásticas, embora sejam
repleto de significações, como o álbum lançado em 1970. Led Zeppelin III traz diversos
53
símbolos espalhados aleatoriamente pela capa, como flores, frutas cortadas ao meio,
borboletas, um zepelim e outros.
Na área mais psicodélica da música, incluída também no rock’n’roll, a banda
Pink Floyd marca presença. O álbum Atom Heart Mother, lançado em 1970, traz uma
vaca em um campo, olhando fixamente para as lentes da câmera. No álbum Obscured
by clouds, lançado em 1972, pontos de luz aparecem desfocados, como se estivessem
realmente obscurecidos pelas nuvens.
Figura 14 - Algumas capas de discos lançados entre 1970 e 1972, respectivamente: Rolling
Stones, Led Zeppelin e Pink Floyd
54
Uma vez que vimos alguns exemplos da cena rock, podemos constatar que as
imagens não levantavam questionamentos que pudessem quebrar paradigmas, pelo
menos não no sentido que Bowie fazia. Já na cena glam rock, conforme vimos em 2.2,
existe uma explosão de cores e brilhos, sendo terreno ideal para David Bowie. Para esta
comparação, selecionamos também alguns outros representantes do estilo musical e as
imagens de seus álbuns. Gary Glitter e Roxy Music fazem parte deste grupo. A imagem
do álbum de Glitter não apresenta ousadia marcante, nem mesmo com a letra redonda e
bem delineada, geralmente atribuída à mulheres pode ser vista como um quebra de
paradigmas. O disco de estreia da banda Roxy Music é um pouco mais sóbrio em
relação às cores e ao brilho, mas ainda assim é glamoroso ao mostrar a mulher numa
pose sensual, como se fosse uma pin up.
Figura 15 - Álbuns de Gary Glitter e Roxy Music, ambos lançados em 1972
Um dos expoentes do glam rock é o amigo-inimigo de Bowie, Marc Bolan, que
estavam sempre envolvidos numa competição, saudável ou não. Em suas apresentações,
Bolan também utilizava a sua androginia, ressaltada com bastante brilho espalhados
pela sua indumentária. Curiosamente, o glamour que ele sempre ostentava não esteve
presente nas capas de seus álbuns, principalmente não daqueles lançados entre 1970 e
1972.
55
Figura 16 - Os álbuns A Beard of Stars (1970), Electric Warrior (1971) e The Slider (1972), de
T. Rex
Tendo visto alguns exemplos dos tipos de imagens que rondavam o mundo do
rock’n’roll e do glam rock nos anos de 1970 a 1972, já podemos nos direcionar para
uma análise detalhada do que as capas de Bowie significavam. O próximo tópico
pretende destacar as quatro principais capas em que David aparece como mulher,
responsáveis por polêmicas no mundo da música.
4.3 The Man Who Sold the World (1971)
Figura 97 - Capa do disco The Man Who Sold The World
56
Tabela 1 – Ficha técnica do álbum The Man Who Sold the World
Ano de lançamento
1971
Gravadora
Mercury Records
Faixas
The Width Of A Circle; All The Madmen; Black Country Rock; After All;
Running Gun Blues; Saviour Machine; She Shook Me Cold; The Man Who
Sold The World; The Supermen
Músicos
David Bowie: voz, violão; Mick Ronson: guitarra; Tony Visconti: baixo;
Mick Woodmansey: bateria; Ralph mace: sintetizador
Capa
Keith Macmillan
David lançou dois álbuns sem muito sucesso antes de chegar ao The Man Who
Sold the World. David Bowie, lançado pela gravadora Deram em 1967, é um álbum sem
muita personalidade, engajado apenas em reproduzir o que estava em voga na cena
musical londrina. Embora o talento de Bowie já fosse notável, o álbum não chegou a ser
um sucesso, nem foi responsável por deslanchar a carreira dele.
Space Oddity, lançado pela gravadora RCA em 1969, já marcou um ponto
divisor na carreira de David. A música homônima ficou tão conhecida que ganhou o
prêmio Ivor Novello 31. Atualmente, a música ainda aparece em filmes e em produtos da
cultura popular 32. A faixa também rendeu a primeira aparição ao vivo no programa da
parada de sucessos britânica Top of the Pops (1964-2006), produzido pela BBC.
Porém, apenas com o álbum The Man Who Sold the World Bowie foi capaz de
realmente se destacar no mundo da música, e grande parte desse sucesso veio da
imagem apresentada na capa. A ousadia presente no disco abriu o caminho de Bowie
para a fama e o estrelato. Curiosamente, este disco apresenta quatro capas oficiais,
sendo analisada aqui a segunda versão, decididamente a mais chocante em termos
conceituais. A primeira lançada apresentava uma ilustração de Mike Weller. A terceira,
lançada na Alemanha, também mostra uma ilustração, desta vez com cores psicodélicas.
A quarta e última foi lançada mundialmente com uma imagem de Bowie na era Ziggy
(ver figura 18).
31
O prêmio Ivor Novello homenageia cantores e compositores.
A canção apareceu no recente filme de Ben Stiller, A Vida Secreta de Walter Mitty (2013), além de ter
sido executada pelo astronauta Chris Hadfield ao se despedir de sua Estação Espacial Internacional (EEI),
também em 2013.
32
57
Figura 18 - Em ordem: Capas lançadas originalmente nos Estados Unidos (1970), na Alemanha
(1971) e relançada mundialmente (1972)
Como afirma Boorstin, “To become known to a whole people, a man usually had
to be something of a hero: as the dictionary tells us, a man ‘admired for his courage,
nobility, or exploits’” 33 (BOORSTIN, 1992, p. 46). Utilizar-se de seu corpo
ornamentado com um vestido masculino foi o passo primordial para o lançamento
efetivo de Bowie na mídia, bem como para a construção de sua imagem “camaleônica”,
principalmente porque para realizar tal façanha, foi-lhe preciso certa dose de coragem
para desafiar as instituições tradicionais. Isto nos leva de volta ao comentário de
Finkelstein, apresentado no capítulo que precede este, quando ela fala do poder de uma
“aparência estilosa” e a sua capacidade de libertar-nos de jaulas e papeis convencionais.
Lançado em 1971, o álbum causou um rebuliço na indústria musical da época,
contemporânea à ascensão do Glam-Rock. David estava saindo da área da música folk e
experimentando caminhos mais rock’n’roll. A extravagância que sempre fez parte da
personalidade de Bowie finalmente pôde tomar corpo neste álbum. E ele a canalizou
como sempre faz: chocando. Trajando um “vestido masculino” adquirido na loja Mr.
Fish34, Bowie repousa preguiçosamente para as lentes do fotógrafo Keith Macmillan.
Brincando com uma de suas características mais marcantes, a androginia, o espectador
desavisado precisa se certificar de que se trata de um homem, e não de uma mulher.
O lado feminino de David está muito presente neste trabalho, não apenas na
imagem apresentada na capa. Algumas faixas são representadas em tons extremamente
femininos, como em “Running Gun Blues”, quase soando como um falsete. Em outras,
a voz feminina é mascarada pela guitarra pesada, como em “She shook me cold”, fruto
das primeiras parcerias com o guitarrista Mick Ronson.
33
Para se tornar conhecido, o homem geralmente tem que ser alguma coisa de heroi: como o dicionário
nos diz, um homem "admirado pela sua coragem, nobreza, ou realizações". (Tradução nossa)
34
Bowie conheceu a loja de Michael Fish por meio de um amigo de escola, que trabalhava no local.
58
A fotografia foi realizada em Haddon Hall35, a casa e quartel general de Bowie
em Beckenham. Na imagem, vemos David muito à vontade no vestido amarelo com
detalhes florais e frutais em azul. As botas marrons de cano longo são apertadas e não
brigam com os detalhes do vestido, contribuindo para eles ornarem em harmonia. Sua
mão direita segura um rei de ouro com pouca firmeza, apenas o necessário para não
cair. O resto do baralho está espalhado aleatoriamente pelo chão. A mão esquerda, por
sua vez, conserta delicadamente uma boina no alto da cabeça revelando um bracelete 36
prateado caindo pelo braço.
Os cabelos são longos, louros e ondulados, com uma franja habilmente levada
para o lado. A expressão em seu rosto é de tranquilidade e a ideia de que o mundo ─
pelo menos o daquele instante ─ gira ao seu redor. Uma expressão de dúvida,
entretanto, perpassa o semblante, talvez relacionada a suas escolhas de gênero e a
incerteza da efetividade desta empreitada. A sua posição garante ao espectador uma
amostra de suas curvas levemente femininas, saindo da cintura e chegando ao quadril,
acentuadas pelo corpo esbelto de Bowie. O “divã” em que Bowie repousa é coberto por
dois tecidos brilhantes de cores azul e roxo.
O ambiente é artificialmente decorado. A impressão é que entramos em uma
casa do século XVIII, sem sombras de modernidade ou detalhes que evoquem o estilo
arquitetônico futurista que estava em voga na época. De acordo com o ensaio intitulado
“Astronauta de espaços interiores – Sundrige Park, Soho, Londres, Marte...”, escrito por
Geoffrey Marsh para o livro David Bowie Is, da exposição homônima, romper com o
futurismo era uma característica do fotógrafo responsável pela imagem no álbum, Keith
Macmillan:
As características distintivas das fotografias de Keith Macmillan para álbuns
dessa época eram “sua rejeição do modernismo, da ciência, da celebridade
[...] – não há nelas retratos brilhantes nem naves espaciais; não há espaços em
branco nem tipologia elegante [...] [em vez disso], suas capas mostram uma
agressividade que contradiz radicalmente o lustro da cena musical e
autoexaltação roqueira”. (MARSH, 2013, p. 42)
35
Em Haddon Hall, Bowie montou um Arts Labs, espaço completamente imerso em diversos tipos de
arte, como teatro, cinema, galerias e músicas.
36
O bracelete era o sinal da união de Bowie com sua esposa na época, Angie. Casados em 19 de março de
1970, eles tiveram um filho, Duncan Zowie Haywood Jones. O bracelete pode ser visto em inúmeras
aparições de Bowie, inclusive na capa de alguns álbuns.
59
Até a tipologia que existe na capa é arredondada, tipicamente feminina.
Obviamente, Bowie trabalhou com a sua própria concepção do que desejara para o
álbum, o primeiro de sua carreira a dar voz a um personagem corporificado por Bowie.
Em The Man Who Sold the World, Bowie era o homem com vestido masculino, o
Metrobolist37. Este personagem possibilitou a Bowie experimentar o que poderia
personificar no palco. Quando visitou os Estados Unidos e estudou a recepção do
público, David decidiu que poderia ser o que quisesse no palco, abrindo, assim, um
leque imenso de possibilidades que já existia na cabeça do artista.
A extrema sexualidade vista neste álbum, juntamente com o experimentalismo
de Bowie, pode ser atribuída ao tempo que Bowie viveu como pupilo do artista mímico
Lindsay Kemp. O período que ele passou na trupe de Kemp o permitiu explorar os
limites de seu corpo por meio da sexualidade, resultando no homem posando com um
vestido meio aberto no peito magro e muito alvo na capa do disco.
A repercussão de The Man Who Sold the World foi bastante intensa, chegando
também aos lares conservadores norte-americanos. A versão do disco nos Estados
Unidos não tinha nada parecido com a que foi lançada na Grã-Bretanha. O lânguido
Bowie deitado em seu divã foi substituído por um desenho feito pelo cartunista Mike
Weller mostrando um caubói carregando um rifle enrolado num cobertor. O homem
passa em frente a um hospital psiquiátrico em que o irmão de Bowie estava se tratando.
A imagem toda parece ter sido extraída de um museu. A fotografia, porém, com
a edição que lhe foi dedicada, está mais para uma pintura. Uma das características mais
marcantes nela é o fato da “subversão da questão do gênero” (MARSH, 2013, p. 42). A
pose, os cabelos, o vestido e a expressão de Bowie fortalecem a ideia de que quem
estava ali não era David Bowie, mas um alter-ego, um personagem que subsidiaria a sua
primeira criação de um papel para os seus concertos. O conceito de que as interações
sociais podem ser vistas como performances, de Goffman, aplica-se a esta experiência
de Bowie, uma vez que era por meio delas que ele concebia suas personas, criando uma
espécie de mosaico de personalidades. O álbum marcou, também, o início da ascensão
do Glam-Rock.
Foi com este álbum que David Bowie conseguiu se libertar das amarras do
convencional e realmente ousar em sua arte. Nesta época, aconteceu a descoberta de
como um personagem poderia melhorar suas performances por meio do poder que
37
Nome que seria dado ao álbum antes de ter sido escolhido The Man Who sold the World.
60
tinham sobre o público. O rapaz tímido e reservado de Bromley dava espaço ao
tempestuoso David Bowie, a enciclopédia de personalidades.
4.4 Hunky Dory (1971)
Figura 19 - Capa do disco Hunky Dory
Tabela 2 – Ficha Técnica do álbum Hunky Dory
Ano de lançamento
1971
Gravadora
RCA
Faixas
Changes; Oh! You Pretty Things; Eight Line Poem; Life On Mars?; Kooks;
Quicksand; Fill Your Heart; Andy Warhol; Song For Bob Dylan; Queen
Bitch; The Bewlay Brothers
Músicos
David Bowie: voz, violão, sax, piano; Mick Ronson: guitarra; Rick
Wakeman: piano; Trevor Bolder: baixo; Mick Woodmansey: bateria
Capa
Brian Ward
61
O Bowie travestido na capa de The Man Who Sold the World deu lugar a um
extremamente feminino na capa de Hunky Dory, próximo álbum do artista, lançado
também em 1971. Neste, Bowie foi fotografado por Brian Ward, que colorizou a
imagem e transformou o artista em uma “Greta Garbo modernizada” (BREWARD,
2013, p. 196). “Hunky Dory”, gíria inglesa para dizer que tudo está certo no mundo,
trouxe mais hits de sucesso para Bowie. O álbum faz parte da transição entre hippie para
pós-hippie, quando muitas das convicções desse movimento caem por terra e se tornam
um pouco caóticas.
Hunky Dory traz uma das músicas mais icônicas de Bowie, “Changes”. Ela é um
hino à sua constante mudança e como elas acontecem rapidamente. Esta faixa também
pode ser aplicada à juventude, não importando de que época, quando fala “And these
children that you spit on/ As they try to change their worlds/ Are immune to your
consultations/ They're quite aware of what they're going through 38” (BOWIE, 1969). O
sucesso da música entre os jovens é incomparável. O filme Breakfast Club, de 1985, por
exemplo, traz esta mesma citação nos seus créditos iniciais.
Com um olhar fixo em um ponto, Bowie não encara seu espectador. As mãos
afagam o cabelo amarelo e longo. O traje é um felpudo casaco quadriculado em preto e
branco. Para um espectador desavisado, que não tem conhecimento de quem é David
Bowie no universo, a imagem poderia ser muito bem a de uma mulher. Embora na
fotografia original Bowie não apresente traços marcantes de maquiagem, na edição ele
parece ter colorido os lábios e apagado um pouco das sobrancelhas com uma luz.
A imagem passa pela atriz Greta Garbo (ver figura 20) e gera uma efervescência
de referências a atrizes do cinema hollywoodiano, como afirma Camille Paglia ao
comentar sobre o sucesso do álbum: “A capa de Hunky Dory causou admiração, tanto
por seu audacioso jogo de gêneros quanto por evocar o glamour de Hollywood, que
ainda não era levado tão a sério nos primeiros estudos sobre o cinema” (PAGLIA, 2013,
p. 70).
38
“E essas crianças em que você cospe/ Quando elas tentam mudar seus mundos/ São imunes as suas
conversas/ Elas têm consciência do que estão passando” (Tradução nossa).
62
Figura 20 - A atriz suíça Greta Garbo
Na capa de Hunky Dory, Bowie assume para si a identidade feminina. Não há,
na imagem, nenhum elemento que evoque indubitavelmente a presença de um homem
na imagem. O gesto de olhar para o nada com uma expressão sonhadora e o afagar dos
cabelos tornam Bowie, com base nos padrões reproduzidos pela mídia na época, uma
mulher. Este ato é, de certa forma, uma rebelião aos padrões normativos da sociedade:
[...] o ato de categorizar o indivíduo sexualmente tem o poder de normatizálo, pois o sexo regulamenta e identifica os sujeitos. Considerando o “sexo”
como questão de identificação e meio discursivo pelo qual o imperativo
heterossexual possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega
outras identificações, o ato de pertencer a identificações outras é chamado de
“assumir” um sexo. A ideia de “assumir um sexo” está vinculada à ideia de
fuga ao padrão heteronormativo e “escolha” de uma “identidade” não
regulamentada. (RODRIGUES e BASÍLIO, 2014, p. 6)
Ao assumir para si uma persona feminina, Bowie estava encarnando, de forma
autêntica, um dos princípios vitais do rock’n’roll: o de transgredir as barreiras do
comodismo social. No início dos anos 70, quando o disco foi lançado, um homem
escolher ser percebido como mulher ainda era visto como uma transgressão social,
justamente porque esta identidade não era regulamentada. Ou seja, era “anormal”.
Tomar o rock’n’roll como um escudo contra essas ideias preconceituosas era, também,
uma maneira de pôr em discussão as verdades absolutas da sociedade.
Bowie, entretanto, não acreditava que um sexo era melhor do que o outro. Não
havia, para ele, uma visão “triunfalista dos gêneros”, como afirma Paglia:
63
Em 2000, respondendo a uma pergunta sobre a música ‘Boys Keep
Swinging39’, ele disse a uma revista americana: ‘Não acho que exista alguma
coisa nem remotamente gloriosa em ser homem ou mulher’. Pelo contrário,
ele sempre tinha feito experiências sistemáticas com suspensões
desorientadoras de gênero, como em sua música ‘Oh! You Pretty Things’ (do
álbum Hunky Dory), uma ode ao ‘Homo Superior’, em que rapazes e moças
sexualmente ambíguos passaram para um estado indeterminado de ‘coisa’,
como obras de arte (PAGLIA, 2014, p. 90).
Levar o conflito da decisão entre gêneros para o campo da arte foi uma das
consequências inevitáveis, mesmo que não intencionais, de Hunky Dory e essenciais
para a compreensão da identidade em constante mudança de Bowie. Neste álbum, ainda
mais do que em The Man Who Sold the World, ele consegue atingir um patamar que
passa pelo simples “chocar”, e chega ao “intrigar”, fazendo com que o espectador/fã
comece a se questionar sobre o que está vendo na capa, se é realmente David Bowie ou
se é mais uma representação de uma persona.
4.5 Pin Ups (1973)
Figura 101 - Capa do disco Pin Ups
39
A faixa, do álbum Lodger (1979), faz uma irônica referência ao machismo. No clipe, Bowie interpreta
3 mulheres que cantam o backing vocal da música.
64
Tabela 3 – Ficha técnica do álbum Pin Ups
Ano de lançamento
1972
Gravadora
RCA
Faixas
Rosalyn, Here Comes The Night, I Wish You Would, See Emily Play,
Everything's Alright, I Can't Explain, Friday On My Mind, Sorrow, Don't
Bring Me Down, Shapes Of Things, Anyway, Anyhow, Anywhere, Where
Have All The Good Times Gone
Músicos
David Bowie: voz, violão, sax; Mick Ronson: guitarra, piano and voz; Trevor
Bolder: baixo; Aynsley Dunbar: bateria; Mike Garson: piano; Ken Fordham:
sax; GA MacCormack: backing vocals
Capa
Justin de Villeneuve
O álbum Pin Ups, lançado em 1973, é uma interpretação feita por Bowie de
músicas de outros artistas, como Syd Barret, do Pink Floyd, e Pete Townshend, do The
Who. Nesta época, Bowie estava se recuperando da confusão de ter vivido como Ziggy
Stardust, de ter sido venerado pelos fãs por causa deste personagem e de ter dado um
fim à criatura. Não foi um período simples para Bowie, que nunca imaginou que um
personagem pudesse ter tanto sucesso, a ponto de ter poder sobre seu criador. Partiu
deste sentimento a necessidade de aniquilá-lo – o que ele fez no último show de Ziggy,
na casa de espetáculos de Londres, Hammersmith Odeon, em 3 de julho de 1973.
Bowie precisava descansar mentalmente após a confusão de Ziggy. Em muitas
entrevistas, ele afirma que estava com as ideias muito conturbadas, beirando a
esquizofrenia. Lançar Pin Ups foi uma forma de descanso, mas de ainda estar presente
no mundo da música, como afirma Jon Savage, no ensaio “Oh! You Pretty Things”:
Esse foi o período em que Bowie não foi um líder, e sim um seguidor: um
jovem, ainda adolescente, tentando abrir caminho na indústria da música e
lutando para encontrar uma voz original. Os meados da década de 1960 o
haviam formado, instilado nele uma ideia de experimentalismo, de um
verdadeiro modernismo. Voltando às fontes, Bowie esperava ganhar tempo e
juntar forças. (SAVAGE, p. 100)
A capa do álbum é uma foto feita em Paris por Justin de Villeneuve para a
revista Vogue. Nela, Bowie posa ao lado de Twiggy (apelido de Lesley Lawson),
modelo britânica de muito sucesso na década de 60. Seu visual também adrógino
adicionou ao de Bowie uma certa completude, ressaltada por máscaras desenhadas com
maquiagem. É interessante notar que este é o único álbum na carreira de Bowie que ele
65
aparece acompanhado na capa por uma mulher (com a exceção das mulheres-cachorro
fictícias na capa de Diamond Dogs, de 1974).
Bowie posa ao lado de uma mulher, mas é difícil apontar quem aparenta ser mais
feminino na imagem. O cabelo vermelho, ainda como uma herança de seu período como
Ziggy, desliza pelo ombro, contornando o pescoço muito alvo, com o pomo-de-adão
sobressalente. Os olhos são muito marcados por maquiagem, ideais para ressaltar a
característica mais marcante e espacial de Bowie. A ausência de sobrancelhas também
carrega reminiscências de Ziggy, porém é possível notar um leve contorno até onde
seria o seu meio.
Os dois estão com o peito descoberto, mostrando um contraste entre as cores:
Twiggy está visivelmente bronzeada e Bowie muito branco. Ao rosto dele, entretanto,
um tom amarelado foi adicionado, provavelmente para forçar um bronzeado inexistente.
Ao rosto de Twiggy foi adicionado, também, muita cor, porém, branca. O casal exposto
na imagem parece se complementar em todos os quesitos, como um tradicional yinyang. Twiggy carrega, em sua cabeça, um lenço azul, da mesma cor do fundo da
imagem, com miçangas douradas, aludindo a uma cigana. Sua maquiagem,
especialmente a dos olhos, é bem mais marcante do que a de Bowie.
As narinas dele estão infladas e a boca semi-aberta. A expressão é de dúvida
misturada com certo pavor de não saber o que está fazendo ali naquele determinado
momento. As bochechas estão muito marcadas, afilando e angulando o rosto de Bowie.
Em seu ombro, repousa Twiggy com um olhar morto, quase blasé, típico da modelo. Ao
contrário de Bowie, Twiggy não mostra os cabelos, que estão escondidos dentro do
lenço completado pela maquiagem de máscara. Embora seu corpo esteja bronzeado, a
maquiagem no rosto de Twiggy é branca.
No caminho para a construção de sua imagem perante a mídia, Bowie
conseguiu, mais uma vez, provocar questionamentos acerca da sexualidade, quebrando
mais constatações da sociedade em que estava inserido. Este processo é capaz de
desencadear a desconstrução da ideia de binarismo sexual:
Desestabilizar as fronteiras de “identidade”, permitir a ambigüidade de
gênero, desconstruir o binarismo sexual e desarticular as classificações
convencionais [...] são apenas algumas formas de exemplificar possibilidades
acerca da relação entre o sujeito e a sexualidade, uma vez que a partir dessas
novas articulações entre gênero, discurso e modos de viver, identidades não
normativas poderão ser legitimadas (RODRIGUES e BASÍLIO, 2014, p. 6).
66
A escolha da maquiagem de máscara é intrigante para este álbum, composto por
músicas de outros artistas. A representação de um papel, neste caso, está evidente para o
espectador. E mais: parece ser a intenção de Bowie despertar essa ideia em seus fãs. O
álbum faz parte do processo de exorcismo de Ziggy, portanto, quanto mais alusões à
possibilidade de interpretação no palco (e na vida), melhor, para não haver confusões.
David não queria perigos como Ziggy de novo e desejava que isso ficasse claro para
seus fãs e seguidores.
4.6 Young Americans (1975)
Figura 22 - Capa do disco Young Americans
Tabela 4 – Ficha técnica do album Young Americans
Ano de lançamento
1975
Gravadora
RCA
67
Faixas
Young Americans; Win; Fascination; Right; Somebody Up There Likes Me;
Across The Universe; Can You Hear Me; Fame
Músicos
David Bowie: voz, violão, piano; Carlos Alomar: guitarra; Mike Garson:
piano; David Sanborn: sax; Willie Weeks: baixo; Andy Newmark: bateria;
Larry Washington: conga; Pablo Rosario: percussão; Ava Cherry, Robin
Clark, Luther Vandross: backing vocals
Capa
Eric Stehpen Jacobs
Young Americans foi lançado após o macabro Diamond Dogs (1974). A aura
deste era bastante pesada, com muitas alusões ao romance de George Orwell, 1984.
Uma das faixas do disco traz o personagem Big Brother, o Grande Irmão, que, no
romance, tem descrição de um líder totalitário. O álbum que o segue traz músicas mais
animadas, com bastante backing vocals e influência da música soul40. A faixa “Young
Americans” traduz o sentimento exposto no resto do álbum, repleto de músicas
dançantes, sejam agitadas ou em ritmos de baladas, como em “Can you hear me”. Em
“Fame”, Bowie faz uma reflexão sobre a superficialidade da fama, que acaba levando o
artista ao extraordinário mundo das aparências, onde nem sempre as coisas são o que
aparentam ser. Essa ideia é perceptível no trecho “Fame puts you there where things are
hollow” (BOWIE, David. Fame. 1975)41. Em 1975, Bowie já havia conseguido se tornar
mundialmente conhecido e isto o assustava um pouco.
O álbum parece ser o grito final do exorcismo de Ziggy e parece encerrar a fase
de Bowie caracterizado como mulher, bem como o abandono do Glam Rock. Na
imagem, Bowie aparece encarando as lentes da câmera com uma expressão sedutora,
ainda evocando as divas de Hollywood. O cabelo está solto e cintila entre louro e ruivo,
confusão causada pelo feixe de luz que se projeta por trás de sua cabeça formando uma
curiosa, porém discreta aura iluminada. O corte de cabelo icônico de Ziggy não está
mais presente, fora trocado por uma franja em forma de topete que cobre grande parte
de sua testa.
Bowie, entretanto, ainda não tem sobrancelhas, mas a maquiagem é pouca e
simples, tão minimalista que gera um cisma com as ideias do glamour. Os olhos se
sobressaem, mas, com o contraste apresentado, o esquerdo com a pupila constantemente
40
“O soul era a principal forma de Black music dos anos 1960 e 1970. No princípio era considerado pelos
músicos de jazz e por seus ouvintes sinônimo de música autêntica e sincera. Durante sua evolução nos
anos de 1960, o soul representou uma fusão entre o estilo de cannto gospel e os ritmos funk” (SHUKER,
1998, p. 265).
41
A fama te coloca no lugar onde as coisas são ocas (Tradução nossa).
68
dilatada não é percebido. As bochechas são levemente marcadas de rosa. A boca,
completamente cerrada, mas não rígida, brilha sob o efeito de um gloss labial,
aumentado pelo efeito da luz.
Ele veste uma blusa de botão quadriculada. O braço esquerdo magro, cruzado
por cima do direito, mostra os dois braceletes de prata com um brilho artificial,
adicionado na edição. A mão segura um cigarro aceso, fumegando com a ajuda do
aerógrafo usado no tratamento da imagem. As unhas longas parecem ter sido feitas e
polidas, revelando um cuidado feminino. Como afirma PAGLIA (p. 80), a “figura
melancólica, enclausurada, poderia ser um amante ou um esteta neurastênico, como o
pintor Aubrey Beardsley ou o poeta Lord Alfred Douglas, causador da ruína de Oscar
Wilde”.
Ao contrário das capas anteriormente analisadas, a de Young Americans mostra
uma feminilidade sutil, percebida nas unhas tratadas ou no batom brilhoso, porém
discreto. Bowie já tinha contribuído o suficiente com a ascensão e queda do Glam Rock.
Young Americans parece encerrar um ciclo que se iniciou com a necessidade de Bowie
de chocar usando metáforas de gênero presente na capa de The Man Who Sold the
World.
Como pudemos perceber, Bowie utilizou a sua arte e a sua característica
andrógina a seu favor, para despertar questionamentos acerca de seu gênero e
sexualidade. Esta jogada de marketing coincidiu com o período em que o artista mais
experimentou, sejam sensações ou substâncias. Após Young Americans, Bowie
invariavelmente escolheu assumir o seu lado mais masculino (algumas capas dessa fase
da carreira dele podem ser vistas na figura 23). Este fato nos leva a deduzir que ele usou
a sua suposta bissexualidade e a representação de papeis femininos para galgar o seu
espaço perante a mídia, seja por meio de reações positivas ou negativas. É a máxima:
falem mal ou falem bem, mas falem de mim.
69
Figura 23 - No sentido horário: Lodger (1979), Let's Dance (1983), Earthling (1997) e Heathen
(2002)
Uma exceção pode ser encontrada quando ele se veste de mulher para o clipe de
“Boys Keep Swinging”, do álbum Lodger, de 1979. Dirigido por David Mallet e pelo
próprio Bowie, ele representa três mulheres que cantam nos backing vocals. O
videoclipe, considerado o mais caro da época, foi produzido a partir de storyboards de
David Bowie.
Figura 24 - As diversas facetas de Bowie no videoclipe da música “Boys Keep Swinging”
70
Tendo este arsenal de imagens, nota-se que realmente David Bowie abriu
caminho para diversas representações culturais. A representação de um papel torna-se
cada vez mais óbvia, assim como a sua influência no mundo da música. Bowie, com a
sua constante capacidade de se reinventar e se moldar com a intenção de chocar o
público, cultivou a verdadeira representação do que quis ser.
71
5 Considerações Finais
Cabelo laranja, cabelo oxigenado, com um raio na face ou com paletós bem
alinhados, David Bowie sabe muito bem o que está fazendo quando faz apostas na sua
imagem. Para ele, brincar com a sua aparência sempre foi tão importante quanto a sua
produção musical. Assumir diferentes personalidades e criar uma persona (às vezes,
mais de uma) para cada álbum que lançasse contribuiu para que ele pudesse
constantemente ser homem das artes que intriga as pessoas que usam seu tempo para
contemplá-lo. Ele é o exemplo perfeito de sujeito pós-moderno, que personifica
inúmeras identidades em si, sendo, algumas vezes, até perigoso, como no caso Ziggy
Stardust. Para isso, Bowie precisou ser destemido, criativo e original, de modo que
começou a prever o que seria visto pela sociedade como moda ou como inovação. E se
tornou ele mesmo uma estrela do rock.
Durante esta pesquisa, vimos que a maneira como David utilizou a sua imagem
foi responsável por criar inúmeras situações em que a ordem tradicional das coisas era
questionada. Por que um homem não pode usar batom, maquiagem e saltos altos? Por
que ele não pode usar roupas curtas e que enaltecem o corpo? Por que, afinal, ele não
pode se identificar como mulher? Talvez pensando nestes questionamentos, ele criava
as suas imagens (principalmente as das capas dos álbuns analisados no terceiro
capítulo). É certo que David tinha um senso incrivelmente apurado quando o assunto
era marketing e autopromoção. Esta constatação sustenta a hipótese desta pesquisa, de
que ele sabia que sua transfiguração em mulher venderia muito mais discos e seu
séquito de fãs aumentaria, uma vez que contemplaria diversos grupos na sociedade.
Tendo alcançado a fama e a admiração de milhares de pessoas, devotas à arte
performática de Bowie, a escolha por se apresentar como mulher se esvaiu. Agora, ele
escolheria invariavelmente se apresentar de forma extremamente masculina, no sentido
tradicional do termo.
A necessidade de se mostrar como mulher demonstra com clareza o espírito
experimentador de Bowie. Essa constante busca pelo novo, pelo diferente, pelo ousado
e pelo esquisito foi capaz de transformá-lo num artista desbravador, que conseguiu, por
meio de sua influência, libertar inúmeros jovens das amarras das convenções sociais.
Esta ideia foi se mostrando mais clara para nós à medida que esta pesquisa se
desenrolava. Em diversas entrevistas pesquisadas, Bowie comenta que se sentia
72
lisonjeado por estar sendo responsável por uma verdadeira revolução sexual e não tão
sexual assim, quando as pessoas conseguiam achar personalidades dentro de si, mais do
que aquelas que ela foi condicionada a pensar que existiam. Com a sua coragem e a sua
criatividade, Bowie conseguiu influenciar inúmeros jovens a também terem ganas de se
descobrirem como múltiplos. A identidade não é mais uma afirmação completa, mas é
identificação, no sentido de ser um processo, nunca acabado. O contato diário com o
outro e com os produtos culturais é capaz de transformar as pessoas. Isso pode ser
percebido com Bowie, que também já afirmou ser um colecionador de personalidades e
facetas alheias, além de ser, em termos visuais, um resumo desta ideia.
Vimos também que, em concordância com Shakespeare, o mundo é realmente
um palco. Seja nos palcos reais ou na vida cotidiana, David sentia a necessidade de se
apresentar como uma imagem de si, numa constante performance. Isto não significa
necessariamente que ele tenha apresentado uma mentira, uma vez que essa performance
é proveniente de características interiores. Ele apenas cultivou uma persona pública – e
de maneira bem-sucedida, já que ela conseguiu influenciar diversas pessoas ao redor do
mundo. A ideia de performance defendida por Goffman encontra exemplo ideal em
Bowie.
É interessante notar, também, que David Bowie não faz uma leitura
estereotipada e senso comum das mulheres. A intenção dele, ao aparecer travestido, não
é diminuir o sexo feminino, é, quando muito, fazer uma crítica. Isto é perceptível na
capa de Hunky Dory, em que ele aparece como Greta Garbo. Para ele, não importava se
a pessoa tivesse nascido homem e tinha aptidões para ser mulher, ou nascido mulher
com traços masculinos, o que era essencial era a necessidade de ser quem quisesse ser.
A ideia de liberdade vai além do quesito sexual e de sexualidade, muito embora seu
desejo pudesse ter começado com indagações deste nível. Com a música “Changes”, do
álbum acima mencionado, David sela um pacto pela busca da liberdade com seus fãs,
principalmente com frases como “Vire a sua cara para o estranho” e “Cadê a sua
vergonha? Você nos deixou até nosso pescoço nisto”.
Ninguém saberá como é David Bowie em sua intimidade, a não ser aqueles que
a compartilham. Mesmo que os seus dias de rockstar tenham chegado a um fim, mesmo
que ele tenha escolhido viver recluso, sem contato nenhum com a imprensa, ele
73
continua sendo influência para muitos. É difícil esquecer uma pessoa que foi
responsável pela libertação de outras, sendo visto muitas vezes quase como um herói.
Muito embora tenhamos chegado a algumas conclusões, é importante destacar
que o presente trabalho não se encontra finalizado. Diversas facetas e hipóteses podem
ser encontradas se analisarmos e dermos mais espaço para o artista da estirpe de David
Bowie. O tema abordado aqui é, em si, bastante amplo e pode ser desenvolvido de
diversas maneiras e indo ao encontro de teorias variadas. Neste trabalho, selecionamos
apenas algumas imagens de milhares de Bowie, chegando a algumas considerações.
Para um posterior estudo, outros produtos imagéticos podem ser analisados,
contribuindo para a bibliografia sobre este artista e trazendo um pouco mais de cultura
prática para as teorias presentes na Comunicação Social.
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