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Progetto ETTS - DCI-NSAED/2010/234-237
www.etts.eu
Os mercados do sexo. Tráfico, turismo sexual e
clientes na era da globalização
de Emanuela Abbatecola, Sebastiano Benasso e Cristina Pidello
Tradução: Sabrina Marques, Valeria Abrocesi
A informação contida nesta publicação não reflecte necessariamente a posição ou opinião da Comissão Europeia
1
1. MERCADOS DO SEXO E DO TRAFICO DE PESSOAS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO ............................................... 3
(Emanuela Abbatecola) ....................................................................................................................................................... 3
1.1. Sobre o conceito de trafico de pessoas................................................................................................................... 3
1.2. O delineamento da pesquisa ................................................................................................................................... 7
1.3. A pesquisa na Itália ................................................................................................................................................. 8
1.3.1. As prostitutas estrangeiras são migrantes? ..................................................................................................... 8
1.3.2. Comparação entre o racket nigeriano e o albanês ........................................................................................ 10
1.3.3. Evoluções e mudanças .................................................................................................................................. 17
1.3.4. As famílias: cúmplices ou vitimas? ................................................................................................................ 22
1.3.5. Trabalho e dia a dia ....................................................................................................................................... 23
1.3.6. A saúde na exploração .................................................................................................................................. 27
1.3.7. A prostituição em locais fechados. Apartamentos e bares ............................................................................ 31
1.4. A pesquisa na Romênia ........................................................................................................................................ 33
1.4.1. Mudanças. 2007, o ano da virada.................................................................................................................. 33
1.4.2. Organização das redes e estrategias de aliciamento .................................................................................... 36
1.4.3. As rotas do trafico de pessoas....................................................................................................................... 42
1.4.4 Exploração, violência e estrategias de subjugação ........................................................................................ 42
1.4.5. Condições de vida e trabalho ........................................................................................................................ 46
1.4.6. A fuga, o retorno e a dificuldade de reintegração .......................................................................................... 50
1.4.7. Como as garotas veem os clientes ................................................................................................................ 53
1.5. A pesquisa no Brasil .............................................................................................................................................. 55
1.5.1. A evolução do fenômeno do trafico de pessoas no Brasil ............................................................................. 55
1.5.2. Tipos de trafico e pontos críticos da legislação brasileira .............................................................................. 58
1.5.3. Protagonistas do trafico de pessoas, vulnerabilidade e formas de aliciamento ............................................. 60
1.5.4. Aquele discreto limite entre turismo sexual e trafico de pessoas................................................................... 68
1.5.5. Redes, rotas e exploração no trafico de mulheres – e trans – brasileiras ..................................................... 73
1.5.6. A saúde em condições de exploração ........................................................................................................... 80
1.5.7. Trabalho autônomo, cafetinagem e agencias que exploram o mercado do sexo .......................................... 82
1.5.8. Retornar ......................................................................................................................................................... 83
1.6. A pesquisa na Espanha......................................................................................................................................... 86
1.6.1. Uma visão geral ............................................................................................................................................. 86
1.6.2. Aliciamento, redes e formas comuns de exploração ..................................................................................... 90
1.6.3. Exploração e fatores de riscos à saúde ....................................................................................................... 101
1.6.4. E depois? ..................................................................................................................................................... 102
2. TRAVESTIS E TRANSEXUAIS BRASILEIROS: MIGRANTES OU TRAFICANTES? ................................................ 104
(Cristina Pidello) .............................................................................................................................................................. 104
2.1 Introdução. A migração interna do Brasil.............................................................................................................. 104
2.1.1. Migrar para se prostituir ............................................................................................................................... 106
2.2. Código Penal brasileiro: não se refere somente à mulheres, mas à “pessoas”................................................... 107
2.3. O abandono do próprio contexto social de referência ......................................................................................... 110
2.3.1 A figura e o papel da “Cafetina” .................................................................................................................... 111
2.3.2 A via das dívidas........................................................................................................................................... 114
2.3.3. As bombardeiras: a transformação do corpo por vias informais e ilegais .................................................... 116
2.4. Migrar para fora do país: a Europa vista como o paraíso das travestis ............................................................... 120
2.4.1. Fluxos migratórios fantasmas ...................................................................................................................... 124
2.4.2. Traficantes ou redes sociais? ...................................................................................................................... 125
2.4.3. L’arrivo nel “Bel Paese”: l’Italia .................................................................................................................... 128
2.4.4. As condições de moradia das pessoas TT brasileiras na Itália ................................................................... 133
2.4.5. Ordem de expulsão ..................................................................................................................................... 135
2.4.6. Assistência às trans vitimas do trafico ......................................................................................................... 138
3. MASCULINIDADE EM CENA. CLIENTES E REPRESENTAÇÕES NO MERCADO DO SEXO NA ITÁLIA (Sebastiano
Benasso) ......................................................................................................................................................................... 142
3.1. Premissa ............................................................................................................................................................. 142
3.2. Breve nota metodológica. .................................................................................................................................... 143
3.3. O espelho mágico. Reflexões das palavras dos clientes e análises dos seus imaginários ................................. 144
3.4. As primeiras experiências e a caracterização dos “outros” clientes .................................................................... 152
3.5. A remoção do desejo feminino e da "deslegitimação" da masculinidade hegemônica........................................ 160
3.6. As conversas do “Fórum da Gostosona” como palco da masculinidade hegemônica ........................................ 164
3.7. Conclusões .......................................................................................................................................................... 173
Anexação 1 ................................................................................................................................................................ 174
Bibliografia.................................................................................................................................................................. 175
2
1. MERCADOS DO SEXO E DO TRAFICO DE PESSOAS NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO
(Emanuela Abbatecola)
1.1. Sobre o conceito de trafico de pessoas
Kara escreveu:
o trafico do sexo é um dos eventos mais terríveis do capitalismo global, criado
pelas dolorosas desigualdades difundidas no processo de globalização, como o
agravamento da pobreza nas áreas rurais, a crescente dependência econômica
dos pobres, a exploração e a transferência de riquezas e recursos dos países
subdesenvolvidos aos países ricos, a crescente redução da liberdade dos seres
humanos no mundo civilizado (Kara, 2010, p. 25).
A prostituição na era da globalização, portanto, implica também a escravidão de milhares de mulheres
(biológicas e transexuais) e meninas, embora saibamos que, o fenômeno do trafico de pessoas não é
realmente novo.
Mas o que queremos realmente dizer com o termo “trafico de pessoas”?
O Protocolo de Palermo, adotado pelas Nações Unidas em 2000, e em vigor desde dezembro de 2003,
assinado (em março de 2013) por 154 países, afirma, no art.3, que:
a)
Trafico de pessoas significa aliciamento, transporte, transferimento, alojamento ou
acolhimento de pessoas, usando a força ou ameaças ou outras formas de chantagem, desde
sequestro, à fraude, ao engano, ao abuso de poder, ou de uma posição de vulnerabilidade, ou
através do “dar e receber” uma quantia de dinheiro ou vantagens para obter a permissão de uma
pessoas que há autoridade sobre uma outra, para fins de exploração A exploração compreende,
como minimo, a exploração da prostituição de outras mulheres e outras formas de exploração
sexual, ou praticas como o trabalho escravo, ou serviços forçados ou a remoção de órgãos;
b)
O consentimento de uma vitima do trafico de pessoas, explorada, é descrito na letra a) do
presente artigo, e deve ser irrelevante se nenhum um dos meios referidos na letra a) for utilizado;
c)
Aliciamento, transporte, transferimento, alojamento e acolhimento de um menor para fins
de exploração, é considerado “trafico de pessoas”, mesmo não envolvendo nenhum dos meios
referidos na letra a) do presente artigo;
d)
«menor» indica qualquer pessoa abaixo de 18 anos.
O trafico de pessoas é um fenômeno que pode acontecer dentro e fora do território nacional – no segundo
caso, é chamado de “trafico interno” - e deslocamento de uma pessoa no espaço é central.
No paragrafo a) do art. 3 do Protocolo de Palermo, estão elencadas varias ações consideradas critérios de
definição do fenômeno do trafico de pessoas, sem que seja necessário que estejam todas presentes em
conjunto. Aliciamento, transporte, transferimento, podem constituir o ato ilícito do trafico de pessoas,
desde que operem por meio de ameaças ou força (física, psicológica e/o sexual), contra a vontade do
indivíduo. No paragrafo b) é especificado como o consentimento da vitima não invalida o crime. Este ultimo
é um ponto muito importante do Protocolo, porque, como veremos adiante, a condição de vulnerabilidade
socio-economica-cultural, leva muitas vezes a aceitar projetos de migração arriscados e condições de vida e
de trabalho degradantes ou consideradas inaceitáveis Tanto a analise do fenômeno, quanto a definição das
ações de contraste, por isso, é essencial saber separar as condições de exploração de um eventual
3
consentimento de quem está sendo explorado, para que não haja contradição.
O conceito de trafico de pessoas (traficância) não deve ser confundido com o de trafico (contrabando),
porque enquanto o trafico (contrabando) vai diminuindo conforme os migrantes entram ilegalmente em
um país diferente, o trafico de pessoas se auto-alimenta com a exploração da pessoas, um vez chegada ao
país de destino.
Tab. 1 - Diferença entre trafico de pessoas e contrabando de migrantes
TRAFICO DE PESSOAS
Crime nacional e transnacional
Acontece com ou sem o consentimento da pessoa
A exploração da pessoa continua mesmo após a chegada
no país de destino
O ganho principal vem da exploração continua da vitima
e uma minima parte vem da facilitação da entrada ao
país de destino
CONTRABANDO DE MIGRANTES
Crime transnacional
Há consentimento da pessoa
Termina com a chegada dos migrantes no país
de destino
O preço pago pelos migrantes é a fonte de
renda dos contrabandistas
Facilitação da entrada de migrantes no novo
país de destino.
Fonte: Secretaria Nacional da Justiça 2013
O protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o Crime Transnacional Organizado para
combater o contrabando de migrantes via terrestre, marítima e aérea, exige que os estados adotem
sistemas de proteção das vitimas de trafico mais tranquilos do que aqueles considerados necessários para
as vitimas de contrabando, o que, muitas vezes, leva à pratica de repatriação forçada, que longe de
combater as redes criminosas envolvidas no trafico, pode realmente fortalecê-los através da criação de
novas fontes de aliciamento.
O Protocolo de Palermo não possui nenhuma influência judicial obrigatória em relação aos estados
signatários, mas pode ser considerado uma boa ferramenta para criar uma harmonização da legislação à
nível internacional sobre a questão do trafico e do contrabando de pessoas, e para estimular a cooperação
entre os estados, a fim de implementar ações de prevenção e repressão do fenômeno em questão. Um
aspecto central no debate internacional sobre o tema do trafico e do contrabando de pessoas, é o rotulo de
“vitima”, figura controversa e debatida na literatura e a qual muitas das pessoas envolvidas no trafico, não
se reconhecem, porém usaremos este rotulo para deixar a leitura mais clara e fluida. O art. 6 do Protocolo
de Palermo, sobre a proteção às vitimas do trafico e contrabando, afirma:
(1)
Em casos adequados e na medida do permitido pela legislação interna, cada estado
signatário deve proteger a privacidade e a identidade da vitima do trafico de pessoas, mesmo
excluindo a publicidade dos processos judiciais relativos ao trafico.
(2)
Cada estado signatário deve garantir que o seu sistema jurídico ou administrativo
contenha medidas que permitam, em casos apropriados, oferecer às vitimas do trafico de
pessoas: a) informações sobre os relativos; b) assistência para permitir que as suas opiniões e
preocupações sejam apresentadas e consideradas nas fases adequadas do processo penal
contra os autores do crime, de modo a não prejudicar os direitos da defesa.
(3)
Cada estado signatário deve considerar medidas para recuperação do estado físico,
psicológico e social da vitima do trafico de pessoas e, em casos apropriados, em colaboração
com outras organizações não governativas, e outras organizações interessadas e outras
instituições sociais, oferecer: a) um alojamento adequado; b) orientação e informação, em
especial, em relação aos direitos reconhecidos pela lei, em uma linguagem que a vitima do
trafico entenda; c) assistência medica, psicológica e material; e d) oportunidade de emprego,
oportunidades de educação e formação
(4)
Cada estado signatário deve considerar, quando for aplicar as disposições do
4
presente artigo, a idade, o sexo, e as necessidades especiais das vitimas do trafico de pessoas,
em particular, as necessidades especiais dos menores, incluindo alojamento, educação e
cuidados adequados.
(5)
Cada estado signatário deve esforçar-se para garantir a segurança física da vitima
do trafico de pessoas enquanto estiverem em seu próprio território
(6)
Cada estado signatário garante que seu próprio sistema judicial interno contenha
medidas que oferecem às vitimas do trafico de pessoas, a possibilidade de obter uma
indenização pelos danos sofridos.
Como observado acima, o Protocolo de Palermo não possui nenhuma influencia judicial obrigatória em
relação aos estados signatários, mas serve sempre como uma diretriz para estimular os estados a adotarem
medidas adequadas em relação às vitimas, harmonizando, o máximo possível, os eventos.
Um ponto enfatizado é a necessidade de ter mais atenção à proteção da identidade e à privacidade dos
dados das vitimas. Muitas vezes, as pessoas traficadas ou envolvidas no trafico de pessoas com fins de
exploração sexual, são ameaçadas de morte, ou é a família que é ameaçada, quando a pessoa não paga o
que deve, ou denuncia ou foge. Ciente da violência potencial das estrategias implementadas pelas redes
criminosas, a Convenção de Palermo impôs como obrigação de todos os estados signatários, terem a
disposição determinadas medidas de proteção para a pessoa que decidisse denunciar, a qual deve ser
garantida a segurança física, alojamento, e outras medidas que regularizem a sua permanência no país de
destino.
Um outro documento importante, embora talvez menos citado do que o Protocolo de Palermo, é o
European Council Convention on Action Against Trafficking in Human Being, (Convenção do Conselho
Europeu sobre a Luta Contra o Trafico de Pessoas), de maio de 2005, em vigor desde 2008, quando foi
retificada por dez estados: até hoje (maio de 2014) os estados signatários são já 42. A convenção fala da
questão do trafico no âmbito da violação dos direitos humanos, de onde provém o direito à proteção das
pessoas vitimas do trafico.
Trafico de pessoas é, portanto, uma violação dos direitos humanos.
Como sabemos, existem diferentes formas de trafico, mas as estimativas indicam o trafico de pessoas a fim
de exploração sexual como uma das formas mais difusas. Como pode ser visto no gráfico 1, tanto nos dados
da Eurostat de 2013, como no UNODOC de 2010, referindo-se ao período 2008-2010, houve clara
prevalência da incidência ligada ao mercado do sexo em comparação aquelas que se referiam ao trabalhoescravo ou outros tipos de trafico (incluindo a delicada questão do trafico de órgãos, ainda muito pouco
investigada), com diferença entre os dois primeiros, que varia de 36-61 pontos percentuais, dependendo
das fontes examinadas.
Graf. 1 Incidência das diferentes formas de trafico de pessoas (%)
Trafficking 2008-2010
14%
sexual 61% (79%)
25%
labour 25% (18%)
61%
Fonte: Eurostat 2013 (UNODOC, 2010)
5
others 14% (3%)
O trafico de pessoas surge como um fenômeno muito caracterizado do ponto de vista do sexo da vitima,
isto é, segundo as estimativas, o graf. 2 e 3 indicam uma prevalência de mulheres entre as vitimas (80% vs.
20%), de homens explorados (75% vs. 25%). A proposito deste ultimo dado, a pesquisa do projeto ETTS
confirma, o que foi já dito em trabalhos anteriores, sobre o trafico de pessoas para exploração sexual, onde
os exploradores são homens, se a exploração for operada por albaneses e romenos, enquanto que no
racket nigeriano, bem como na exploração das trans brasileiras, são as mulheres a mostrar um papel
dominante (maman e cafetinas).
Graf. 2 Sexo das vitimas do trafico de pessoas
80
80
68
70
60
50
40
20
30
20
12
17
3
10
0
Female (80%)
Male (20%)
Total
Adults
Childern
Fonte: Eurostat 2013
Graf. 3 Sexo do explorador
75
80
60
40
25
20
0
Traffickers
Female (25%)
Male (75%)
Fonte: Eurostat 2013
O percentual das ditas vitimas (as quais, como veremos, nem sempre se reconhecem como tal), parece
variar dependendo do tipo de trafico em questão Como mostra o gráfico 4, as mulheres prevalecem, no
que diz respeito à exploração sexual (96% vs. 4%) e as outras formas de trafico (72% vs. 28%), enquanto o
trabalho-escravo parece envolver um maior numero de homens.
6
Graf. 4 Classificação da vitima em base ao tipo de trafico
96
100
77
80
72
60
40
28
23
20
4
0
Sexual
Labour
Female
Other
Male
Fonte: Eurostat 2013
Como sabemos, se tratam de estimativas, ou seja, dados indicativos sujeitos à distorções ligadas à
dificuldade de investigar mundos submersos, conectados com o crime organizado. No entanto podemos
notar uma coerência de fundo, entre as descrições emersas e o modo como a sociedade constrói e impõe a
identidade do gênero: o mercado de trabalho como uma dimensão fundamental da identidade masculina
tradicional (Abbatecola, 2002), e a sexualidade feminina como uma sexualidade de serviço, para o uso e
consumo pela sexualidade “hidráulica” masculina, que precisa dar vazão sempre que o desejo surge
(Ciccone, 2009).
Nem todas as mulheres estrangeiras que trabalham no mercado do sexo são “vitimas do trafico de
pessoas”, mas as estimativas falam de um fenômeno inquietante que deveria ser questionado e fazer-nos
pensar. Trafico de pessoas significa violência, muitas vezes brutal e até letal, uma violência que podemos
definir contra o gênero, a qual possui raízes, que podem ser traçadas na nossa sociedade, nos modelos
culturais dominantes, no modo como vemos o feminino (“as mulheres são”), e masculino (“os homens
são”) e as relações entre os gêneros A violência entre gêneros, nas diversas manifestações onde começa a
ganhar corpo, deve ser combatida, mas qualquer que seja o programa de luta à violência, deve começar
pela informação e pelo conhecimento. Por isso, no nosso projeto ETTS, escolhemos dedicar tempo e
energia à pesquisa, com a finalidade de monitorar o fenômeno e de recolher evoluções e mudanças nestes
quatro países parceiros: Itália, Espanha, Romênia e Brasil.
1.2. O delineamento da pesquisa
A ideia por trás do projeto foi de investigar o fenômeno do trafico para fins de exploração sexual,
comparando alguns países de destino para as mulheres (biológicas ou transexuais) vitimas do trafico de
pessoas – Itália e Espanha – e alguns países de origem das vitimas – Romênia e Brasil.
Nos quatro países foram realizadas pesquisas qualitativas, coordenadas pela Universidade de Gênova,
através de técnicas de entrevista semi-estruturadas a testemunhas privilegiadas (assistentes sociais,
policiais, magistrados, etc) e suas estorias de vida, contadas sob total proteção, por mulheres que se
liberaram recentemente da exploração. As pesquisadoras trabalharam com trechos de entrevista – como
toalhas flexíveis – previamente discutidas em reunião com a equipe. Os trechos apresentavam a mesma
estrutura e se diferenciavam somente por alguns adaptamentos contextuais e/ou pelo desejo de
aprofundar, a nível local, alguns temas. Somente no que diz respeito ao fenômeno do trafico de pessoas
para fins de exploração sexual, foram desenvolvidas 93 entrevistas qualitativas, cuja distribuição nos quatro
países parceiros é indicada na tabela 2.
7
Tab. 2 Entrevistas qualitativas sobre o trafico de mulheres para fins de exploração sexual
Itália
Romênia Espanha Brasil1
Brasil2
Brasil3
Cidade
Turim
n. entrevistados
n. estorias de
vida
TO
T.
Sevilha
Brasília
Fortaleza
Guarulhos
8
Bucarest
e
12
13
10
10
10
63
6
5
6
/
10
3
30
Nome
entrevistador
Francesca
Rascazzo e
Monica
Reynaldo
Monica
Reynaud
o
Gabriela
Chiroiu
Vanessa
Casado
Eliana
Nombre
Maria
Dolores Mota
e
Federica
Rossetti
Rejane
Alexander De La
Costa e Cristina
Pidello
Total de
Entrevistas
14
17
19
10
20
13
93
Neste capitulo, vamos tratar principalmente do trafico de mulheres biológicas E no segundo capitulo,
iremos nos aprofundar nos resultados da pesquisas sobre o trafico de transexuais brasileiras.
1.3. A pesquisa na Itália
1.3.1. As prostitutas estrangeiras são migrantes?
A partir do final dos anos oitenta, as ruas italianas começaram a encher-se de mulheres1 – biológicas e
transexuais – vindas da Nigéria, da América Latina, da Albânia e, mais tarde, de países do leste europeu
(Carchedi, 2000; Da Pra Pochessia, 2001; Abbatecola 2006 e 2010).
Dentro de seis meses/um ano, essas garotas sumiram e começaram a chegar, principalmente, garotas
nigerianas, de cor, isso, e depois fomos constatar que eram nigerianas. E a partir dai começaram a marcar
presença, em menos de um ano e meio/dois anos, das garotas albanesas, brancas, que tinham, começaram a
chegar vários outros grupos: moldavos, ucranianos, russos, até chegar, nestes últimos anos, aos países da
Comunidade Europeia. Portanto, romenos, búlgaros, tchecos, e continuando sempre presente também o
grupo dos nigerianos, principalmente com presença de alguns grupos latino-americanos, centro-americanos.
A entender: Colômbia, Republica Dominicana, estes países. E por ultimo, o grupo de trans italiano e latinoamericano, em particular, brasileiro. [Testemunha, T1, ONR].
A prostituição visível é, portanto, predominantemente estrangeira, mas dificilmente, nos estudos sobre o
tema estão incluídos dentro de um discurso mais geral sobre migração (Bimbi, 2001; Abbatecola, 2005). É
raro, de fato, que as prostitutas estrangeiras sejam representadas como “migrantes”: mulheres com
intenção migratória mais ou menos realista e/ou ingenua (excluindo, talvez, pelo menos em uma primeira
fase, garotas sequestradas), projetos, intenções ou sonhos que, muitas vezes, induzem a aceitar
“contratos” migratórios pouco claros, se não em relação ao “destino” da prostituta, e menos ainda com
relação às condições do exercício de tal profissão; mulheres que deixam suas casas, famílias, pais, irmãos,
1
De 1995 a 2000 chegaram também menores albaneses, romenos e marroquinos, onde a prostituição é muito menos
visível e pouco investigada.
8
muitas vezes filhos, e que mandam para o seu país (quando os exploradores dão permissão) as chamadas
“remessas”; mulheres que tem que lidar com países de cultura, língua e costumes diferentes, com a
clandestinidade e a invisibilidade social que isso implica, com a desconfiança de quem os considera
“estrangeiras” e portanto, “diferentes” de nós; mulheres que cultivam projetos para o “depois” que nem
sempre é previsto um retorno à pátria, mas uma viagem de vez em quando para ver os filhos e os parentes
mais próximos (Abbatecola, 2005). Na realidade, existe em literatura, reflexões sobre as ligações entre
exploração sexual, migração e trafico de pessoas (ver como exemplo, Campani, 2000; Ambrosini, 2002),
mas é como se a referencia ao discurso mais geral sobre migração fosse reduzido ao deslocamento do país
de origem ao país de destino, e depois se perde quando o foco muda para outros pontos interessantes: as
prostitutas estrangeiras, são predominantemente, em primeiro lugar: prostitutas, vitimas, escravas, mas
dificilmente migrantes.
Em termos de produção cientifica, a prostituição estrangeira diz respeito, em primeiro lugar, aos estudos
sobre o desvio de comportamento (“mal necessário”, “vicio tolerado”), ou ainda aos fender studies
(questão de mulher?), como pode ser visto no Manual de Sociologia da Migração:
E ainda os fender studies denunciavam as diferentes formas de discriminação e de exploração (inclusive
sexual) das quais as mulheres migrantes são vitimas, e explorar a realidade e as perspectivas de suas
relações com mulheres nativas (Zanfrini, 2004, p. 60).
Ao mesmo tempo, é difícil que seja posto em relevo as relações entre prostituição estrangeira e outros
setores do mercado de trabalho, nos quais os migrantes se encontram em condições de exploração, muitas
vezes, semelhante (Bimbi, 2001; Abbatecola, 2005).
Mas as prostitutas estrangeiras, em primeiro lugar, não são migrantes? Não seria talvez o desejo e /ou a
necessidade (socialmente mediada pelo network das primeiras migrantes) que a trouxe para a Europa
ocidental? E confiar em traficantes e em redes criminosas não seria talvez o primeiro passo para a
realização de um projeto migratório? Por qual motivo é difícil pensar a um trabalho sexual como resultado
de um percurso migratório?
Ver a prostituição estrangeira com as lentes dos processos migratórios, permite de enquadrá-la em termos
sociológicos, desconstruindo assim a invariabilidade naturalizante de imagens estereotipadas, nas quais se
geralmente se encontra.
Como se sabe, os migrantes são “necessários” mas não são “bem vindos” (Zolberg, 1997), por isso
assistimos, há décadas, a forte contradição, por um lado, a abertura econômica, por outro, a dificuldade
politica e social (Ambrosini, 2011). Os mercados precisam de mão-de-obra em setores específicos, onde a
demanda de nativas é excelente e a sociedade se defende dos “estrangeiros”, os “diferentes” de nós,
construindo barreiras simbólicas. A alteridade é uma diferença que assusta, perturba, aborrece; deve ser
controlada, e este controle pode ser feito de três formas complementares: através da linguagem
(“extracomunitário”; “ empregada”; “puta”); criando e reforçando esteriótipos (Colombo, 1999); definindo
e delimitando as margens de manobra e os graus de liberdade concedidos aos estrangeiros. Assim, nascem
os bairros para estrangeiros, e começa um processo de integração subordinada (Ambrosini, 1999) onde o
estrangeiro é admitido somente se aceitar ser hierarquicamente inferior:
os imigrantes se sentem aceitos, talvez, sob um ponto de vista pessoal, quando eles têm
um nome e um lugar definido na sociedade – útil, modesto, possivelmente invisível
(Ambrosini, 2011, p. 175 trad. própria).
Em alguns aspectos, as mulheres são vistas como menos ameaçadoras, porém são facilmente sociáveis, e
então, mais aceitas (Ambrosini, 2004), mas estas mulheres, muitas vezes desejadas, protegidas, ajudadas,
também são reduzidas a papéis subordinados, relacionados às dimensões mais tradicionais da feminilidade,
hoje desafiados pelas mulheres ocidentais. É assim que são as migrantes que vemos: empregadas,
domesticas, esposas tradicionais e prostitutas (Luciano, 1994; Abbatecola, 2006; Massari, 2009). Cria-se,
então, uma hierarquia étnica (Massari, 2009) entre mulheres nativas e mulheres migrantes (o mesmo vale
9
para os homens), então as possibilidades profissionais para as migrantes são socialmente definidas,
independentemente dos percursos biográficos, educacionais e profissionais (Kofman et al. 2000; Sassen,
2002).
1.3.2. Comparação entre o racket nigeriano e o albanês
Na Itália, os dois principais racket, historicamente envolvidos na exploração da prostituição de rua e na
escravização de mulheres e menores, somente nigerianos e albaneses, muito diferentes em termos de
estrategia, composição de gênero dos vértices, evolução no tempo.
A característica mais notavel do racket nigeriano é o forte papel das mulheres nigerianas. Desde os
primeiros fluxos migratórios no final dos anos oitenta, as exploradoras também foram mamas ou
madames, ex sex workers, ou até vitimas do trafico, que fizeram carreira comprando jovens conterrâneas,
depois de ter conseguido quitar a divida. As mamas, figuras carismáticas, amadas e temidas, respeitadas e
admiradas, acolhedoras e protetoras, mas sempre potencialmente violentas, foram as rainhas
incontestáveis da exploração sexual das nigerianas durante todo os anos noventa e boa parte da década do
seculo XXI. Os homens ficaram por muitos anos em segundo plano, invisíveis, exercitando
(aparentemente?) tarefas relacionadas à obtenção de dinheiro ou a missões punitivas. Enfim, os homens
vinham quando as mamas exigiam serviços específicos, e depois desapareciam novamente no nada. Então,
depois de 2006, algo parece ter mudado. Os homens, os namorados e os maridos das mamas, saíram de
suas tocas, e hoje, a hipótese é que são eles que controlam o trafico de pessoas, não só em relação ao
mercado do sexo, mas também em relação à mendicância.
Assim, existem casais onde quem explora é a mulher, mas é o marido quem detém a
chave dos negócios [Testemunha, T2, Caritas]
Era o marido dela que achava as garotas; era o marido dela que era se ocupava da
viagem.. aqui na Itália tinha ela que as esperava. Era uma coisa feita bem a nível amador,
“familiar”, não tão familiar assim, digamos, “era uma gestão familiar, estamos falando de
catorze/quinze garotas e era o próprio marido que.. quer dizer, esta senhora não apenas
trazia as garotas, mas trouxe também o “amante”, o faz-tudo pra cá, aquele que é
responsável pela gestão de uma determinada situação: trazer as garotas, ir buscar os
filhos na escola, levá-los pra casa, terminar os afazeres domésticos, ela precisava de um
taxista e ele, além de amante, era também seu taxista, um faz-tudo, ele também veio
clandestinamente para a Itália, sempre trazido por ela. O marido que ficava la na Nigéria,
organizava o transporte dessas pessoas: passagem, documentos, enfim, tudo
[Testemunha, T10, Policia]
Os homens também adquiriram um importante papel nos ritos mágico-religiosos,
inicialmente conduzidos exclusivamente na casa da cafetina ou de alguma outra mulher
conhecida, e agora são conduzidos, às vezes, por supostos “pastores”(Bedin e Donadel,
2007). Na relação com as vitimas do trafico, no entanto, a cafetina continua a manter uma
posição central. É ela a referencia, é ela quem comanda e decide hierarquias e deveres. É
ela a ambivalente “madrasta”.
O racket albanês, no entanto, desde a sua criação no inicio dos anos noventa, foi exclusivamente dominado
pelos homens. Ao longo dos anos, algumas mulheres – as namoradas, as preferidas – conseguiram
conquistar um pequeno espaço, assumindo funções de supervisão e obtendo pequenos privilégios (como,
por exemplo, a possibilidade de não trabalhar em caso de indisposição, concordar formar diversas de
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divisão de dinheiro), mas o trafico de mulheres do leste europeu – comandado por albaneses e, mais tarde
também romenos, com fortes conexões com as redes criminosas – sempre foi caracterizado por uma
predominância masculina, e não apenas em termos de caracterização do gênero dos lideres.
“Fui estuprada, violentada, não queria trabalhar de prostituta, mas me obrigaram, daí me
para ser gentil”, e então começou a namorar com o explorador albanês,
consequentemente, por conta disso, ela tinha uma certa liberdade “Eu ia pra boate
dançar, esse tipo de liberdade que eu estou falando, mas se não trouxesse o dinheiro que
ele pedia, era porrada”. Então, mesmo nesta situação nojenta, porque é uma situação
desgostosa, mas conseguia um pouco de dinheiro pra si, e não era pouco, mas era uma
situação de violência Todas as vezes que ela tentava ir embora, ou conhecia alguém pra
sair, ela era censurada. [Testemunha, T2, Caritas]
Machismo, do ponto de vista simbólico, são, portanto, as estrategias de subjugação, principalmente com
base na violência: sexual, física, psicológica, realizada de forma continua; violência que poderíamos definir
como “preventiva”, imediatamente imposta para definir hierarquias, papéis e regras do jogo, bem como
anular a subjetividade da pessoa “escravizada”.
vi como eles batem nas meninas. Vi quando.... com aquilo ali (indicando o fio do mouse,
ndr], bateram numa menina, num réveillon, quando saímos e quando tornamos. Ele bateu
nela enquanto eu dormia, daí acordei e vi tudo, me assustei, em mim nunca tinham
batido. Daí, me bateram uma vez só, quando falei com aquele cliente [Estorias de vida,
Moldava, D2]
me espancavam, batiam minha cabeça no chuveiro, me ameaçava com uma faca, mas eu
falava: “pode me matar, eu não tenho medo, se é pra viver assim, prefiro morrer, do que
viver deste jeito, vai ser melhor assim”. E ele me dizia: “Ah, você é cabeça-dura então?” E
começava tudo de novo… [Estorias de vida, Romena, D3]
Se eu não estava bem, tinha que avisar e dizer porque eu não estava bem, mas se ele
dissesse “tranquila, não é nada, você tem que sair* (*trabalhar na rua; prostituir-se)”, eu
tinha que sair. Se eu não quisesse sair e ele dissesse “sai”, começavam as ameaças, na
verdade, as ameaças sempre existiram, pois se eu quisesse ir embora “mas você me deu
sua palavra, não pode ir embora, se quiser ir embora agora, vai encontrar um furgão na
frente da tua casa que vai te pegar e te levar pra onde eles quiserem pra fazer o que eles
quiserem.. - sei lá - te levam com as mãos amarradas, com os olhos vendados, judiam da
tua família, colocam uma bomba na tua casa, estupram tua mãe, teu pai, teu irmão,
matam você na hora, você tem certeza que não quer ir trabalhar? Se você ligar pros teus
pais daqui há cinco minutos, você acha que eles vão estar vivos ou mortos? Você não
pode ir embora, porque você é só uma prostituta e tem ir pra rua trabalhar, você tem que
trabalhar até acabe a operação que os outros estão fazendo dentro da prisão, você tem
que fazer dinheiro porque eu estou morrendo.. é isso que você quer, me ver morto? É
assim que você me ama? Mas vai se f..”, sei lá, quando ele descobriu que eu saia com este
senhor, me disse: “toma cuidado quando sai com esse cara, porque ele está enchendo tua
cabeça de besteiras, fala mentiras, toma cuidado, fala pra ele ter cuidado quando fala, de
ficar com a língua quietinha, pois sabemos muito bem quem ele é, onde mora, onde
trabalha”, de fato, ameaçavam até este senhor, e também, toda vez que eu estava
gravida, e que não queria sair, eu ligava pra ele e dizia pra vir em casa “vem que eu to
melhor”, e ele me dizia “fala pro cara que está aí com você pra não falar demais porque,
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de repente, podemos encontrá-lo e fazê-lo em pedacinhos” [Estorias de vida, Albanesa,
D1].
A violência física (geralmente, não só aquela sexual) está sempre presente também no racket nigeriano, mas vem
usada como um dispositivo para desencorajar possíveis rebeliões e punir que tentar escapar às armações da cafetina.
…depende muito de quem explora. A pior das situações que vi, foi uma menina que foi
escalpelada, tiraram o couro cabeludo dela porque ela não tava a fim de trabalhar, então
começaram a tortura escalpelando a menina. Quer dizer, eu cheguei ao hospital com o
relato de uma garota que estava gravemente ferida, e quando a enfermeira me disse: “no
saquinho ali no chão, tem o escalpo da garota”, eu fiquei sem palavras. Na minha frente
tinha praticamente uma múmia, pois a garota estava enfaixada da cabeça aos pés, e
quando me contou o que houve, custei a acreditar. Sobre o trafico de pessoas, o assunto
me leva a viajar pelos anos passados, quando eu estudava sobre o trafico de negros,
escravos, etc e dizia: “Aqui, ao invés de andar pra frente, estamos indo pra trás”; então,
quando me falaram do escalpo, eu disse: “Igual aos índios”, é realmente difícil de
acreditar. Este foi o mais absurdo que vi como tortura às garotas, fora as queimaduras de
cigarro, de ferro de passar, as chicotadas, de tudo e mais um pouco [Testemunha, T8,
Policia Local]
Algumas testemunhas privilegiadas falam sobre uma maior violência das cafetina hoje, do que no passado.
Não temos meios para verificar se efetivamente é assim. Certamente, o racket nigeriano se torna violento
com quem se rebela, e podemos hipotetizar que as garotas que pedem ajuda aos serviços, são aquelas que
sofreram maior opressão por serem potencias rebeldes.
As mulheres nigerianas sofrem mais violência agora também porque, quando chegam na
comunidade, são mais nervosas. Com base na violência que passaram, elas chegam na
comunidade e mostram sua raiva. Contam que foram espancadas, e de fato, motivo valido
pra essas mulheres quererem ir embora para onde tem menos violência, devem resistir à
ambivalência, torcer pra conseguir suportar, mas existe um limite para a violência física
exagerada. As ultimas garotas nigerianas que foram pra policia, é porque sofreram
espancamentos e ferimentos, e foram levadas ao pronto socorro, esta é a coisa mais
frequente. As exploradoras batem, machucam, e se a exploradora for casada, como cada
vez mais acontece, o marido pode violentá-la se ela se rebela. É raro isso, aconteceu a
uma garota só, mas se acontece com uma que seja, eu falo... [Testemunha, T2, Caritas]
O racket nigeriano é capaz de matar, se preciso, mas se concentra, de preferencia, em formas mais eficazes
de submissão psicológica, onde os ingredientes principais parecem ser: a divida, os ritos mágicos, a relação
ambivalente com a maman.
Vamos começar pela divida. As garotas recrutadas na Nigéria por figuras chamadas de “patrocinadores”,
devem assinar um contrato, onde se compromete em pagar uma soma, bastante grande (entre 50 e 60 mil
euros). As garotas aceitam - muitas vezes se iludindo com os tempos de pagamento da divida – e apesar de
serem quase esmagadas por anos, por uma divida considerável, algumas acreditam que isso seja, de algum
modo, o preço para chegar na Europa.
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São uns 50/60 mil euros. Agora depende não sei do que, só sei que a faixa é mais ou
menos essa. Divida liquida, porque a garota ainda tem que dar mais dinheiro à maman:
tem que pagar a metade do aluguel, comida, luz, etc.. Por isso a garota, visto o preço que
tem no mercado, ela é obrigada a trabalhar, trabalhar duro, às vezes até doze, treze horas
sem parar. Como a controlam? O controle é feito principalmente através do vodu, é o que
as assusta mais. [Testemunha, T8, Policia Local)]
Então um dia ela disse que não aguentava mais, antes de ser presa em Novara e ser
mandada de volta para a Nigéria Eu trabalhava em Novara. Agora que não trabalho mais
em Novara, disse que eu tenho que pagar 700 euros a cada dez dias, mas o aluguel não
está incluído neste valor, nem as despesas. Disse que para as despesas são 70 euros,
porque agora tudo custa muito caro. [Estorias de vida, Nigeriana, D6]
Me disseram que ela, esta T. que é dona deste local, viveu na Itália por muitos anos, e que
ela conhece todas as leis, e que eu devo dar a ela 250 euros por mês pelo local, todos os
meses [Estorias de vida, Nigeriana, D5].
“Nãooooo, você não pode ficar com nenhum dinheiro!”, elas vasculham as tuas coisas. Se
você tem que comprar qualquer coisa, como um vestido, uma roupa, ela vai ao mercado,
compra a roupa pra você, e você tem que dar 20 euros pra ela, e você não tem voz ativa
pra dizer “ não “.
Ela é quem fazia tudo? Até a comida ela comprava pra você, ela é quem fazia as compras?
Sim. Toda vez quem cozinhava era eu, ela ia fazer as compras, mas quem pagava também
era eu, 50 euros toda sexta-feira. [Estorias de vida, Nigeriana, D5]
Nem sempre existe esta clareza no “contrato” no que diz respeito à divida, no sentido que muitas vezes, as
garotas sabem que devem pagar o dinheiro da viagem, mas ninguém diz a elas que, a esta divida
(aumentada), serão somados o aluguel, as despesas, o aluguel do “ponto” (pedaço de calçada onde
trabalharão), assistência medica e outros:
Me avisou, antes de eu ir, que teria que trabalhar na rua. Me disse também, sim, ela me
disse quanto eu teria que pagar. Me disse que tinha aluguel pra pagar, despesas, também
luz e gás e tudo mais, mas quando eu estava na Nigéria ela não tinha me dito que teria
todas essas coisas pra pagar. E me disse que quando eu chegasse, teria que pagar a
pessoa que me trouxe. Depois, não sei o que ela pretende que eu... acho que, se é ela
quem eu tenho que pagar, é na casa dela então que devo estar... e essas coisas todas.
Quer dizer então que você tinha que devolver o dinheiro da viagem e tudo mais, ou seja,
tinha que pagar tudo o que eles gastaram pra trazer você pra cá?
Sim, mas é sempre mais do que dizem…
Muito mais do que eles realmente gastaram…
É , porque pra vir pra cá não chega a dez mil, eu creio, mas ela me disse que teria de pagar
60 mil euros. Quando cheguei, tinha outra garota nigeriana. Tinha que pagar 250 de
aluguel. Eu pago 250, ela paga 250. Dormia na cozinha, era só uma cama bem
pequenininha, a garota trabalhava à noite, e eu de dia, então, quando eu dormia, ela
ainda nem tinha chegado em casa. No total, eu e ela pagávamos 500 euros pra dormir
naquela caminha ali. Aquela que me trouxe não pagava nada, pois a casa não custava, só o
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ponto mesmo. E depois, a casa parecia mais um contêiner: um quarto com cozinha, não
acredito que chegue nem a 500 euros. E ainda as despesas de 50 euros pra pagar toda
semana. [Estorias de vida, Nigeriana, D6].
O que mantem essas garotas ligadas ao racket, tanto hoje como há vinte anos atras, é o medo em relação
aos poderes dos ritos mágicos, o que nós chamamos vodu. Em Nigéria, esses ritos ainda são feitos, antes da
viagem, misturando pelos pubianos com outras partes do corpo (unhas, sangue e outros), e juntamente a
isso, se reconhece um grande poder: o poder da pena de morte em caso de rebelião
Mas uma vez que é feito, não sei como se chama em Itália. o vodu, não se pode mais
voltar atras.
Quem foi que o realizou?
Na Nigéria, antes de ser vir pra cá, nos levam em um lugar onde se faz o vodu, eles
pegam... algumas coisas, intimas também.. e colocam ali. Não sei o que fazem, depois,
com essas coisas, talvez se você não paga as pessoas que te trouxeram, coisas podem
acontecer..
Você sabia que tinham feito vodu pra você antes de partir, e que isto era uma coisa muito
poderosa. Você então tinha que fazer tudo o que estas pessoas te pediam e não podia
negar porque você tinha medo que te fizessem algo?
Sim
Entendo. O que poderia te acontecer?
É como me disseram na Nigéria: “se você não pagar, aquela pessoa pode morrer”.
Entendi
Sim. Mas não sei te dizer se é verdade mesmo. Talvez o faça por medo [Estorias de vida,
Nigeriana, D6]
Eu disse “não, cheguei na Itália, minha maman fez uma coisa pra mim, não posso fugir, ela
me fez um vodu. Me deu água, com uma coisa do pernilongo, tudo dentro da água, eu já
bebi, não posso escapar pois tenho medo, não quero morrer” [Estorias de vida, Nigeriana,
D4]
Interessante também é a relação ambivalente com a cafetina. Em uma pesquisa de alguns anos atrás, uma
senhora responsável por uma comunidade, conta que ficou mal quando uma garota lhe disse “você é a
minha maman ” (cfr. Abbatecola, 2006). Como era possível que ela a comparasse à sua cafetina, sua
exploradora? Serà que as garotas exploradas pelo racket nigeriano veem a maman com olhos diferentes
dos nossos?
A maman, no racket nigeriano, é sim a exploradora, mas é também um ponto de referencia neste difícil
percurso migratório: a maman é presente, dá conselhos, acompanha, ajuda, é uma que também “já
passou” por tudo isso e por isso pode entender melhor. Mas ser for a garota a “não querer entender nem
aceitar”, aí a maman muda de cara, e sabe ser má e violenta.
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O lance é que, se você traz dinheiro pra casa, não tem problema. Pode brincar, rir, fazer
tudo junto, mas se voltasse pra casa sem dinheiro, era um grande problema, fazem
escândalo [Estorias de vida, Nigeriana, D6].
Sim, ela prepara a comida, daí, quando ela vier hoje à noite, ela diz que se eu trabalhei
bem, aí ela me dá comida, e nos dias que não trabalho bem, ela diz “tem alguém que vai
ao trabalho, mas não trabalha, e então não vai comer nada, não vai tomar banho”, e
acordar de manhã e ir trabalhar sem comer nada, sem tomar banho, vai trabalhar assim
[Estorias de vida, Nigeriana, D4]
E depois, a maman é uma pessoa que goza de respeito e estima na comunidade, pois é vista como uma
pessoa que “conseguiu vencer na vida”, é uma pessoa cujo projeto de migração foi bem-sucedido, ficou
rica, ela tirou da pobreza não só si mesma, mas também a família que ficou na Nigéria; a maman é,
portanto, uma mulher que pode voltar ao seu país de origem de cabeça erguida, pois seu projeto
migratório é foi um sucesso.
Enfim, a maman pode se tornar um modelo a ser imitado. O acordo feito com o racket prevê que, uma vez
paga a divida, a garota é livre. Poderá escolher – mesmo se estiver em condições de migrante clandestina –
se tomar um outro rumo ou continuar a trabalhar de maneira independente e, talvez, por sua vez, tornarse também uma maman, aliciando garotas para serem exploradas.
As mulheres do leste europeu, exploradas pelo racket, igualmente, não tem nenhuma chance de salvação
Formalmente, não existe um limite para a exploração, e pra fazer carreira, se existir a possibilidade, é
limitada às funções de supervisão, as quais, no entanto, não consentem de haver uma real liberdade de
ação e /ou de decisão
O racket albanês, desde o inicio dos anos noventa até o ano dois mil, evoluiu muito rapidamente em
termos de organização, passando de uma estrutura informal – que não era uma rede, se tratava
simplesmente de homens solteiros que chegavam na Itália com a “namorada” – a um clã ramificado, com
organizações hierárquicas internas especificas, pontos estratégicos nos países de destino, e lideres locais
manipulados pelo boss do fis (clã). A partir de 1996, as “namoradas” albanesas não eram mais assim tão
“convenientes”, seja pela imigração forçada, implementada pela policia italiana, em acordo com a policia
albanesa, seja pela conscientização, mesmo em virtude da intensificação das campanhas de informação e
sensibilização na Albânia, pois o racket pode se tornar transnacional, comprando garotas de outros países
do leste (Ucrânia, Moldávia, Romênia, etc) em verdadeiros mercados (Abbatecola, 2006; 2012). As garotas
albanesas sumiram, por muitos anos, das ruas italianas para, mais tarde aparecer nos últimos tempos,
mesmo sendo estas mais adultas que aquelas do inicio dos anos noventa, e também parecem adotar novas
formas de locomoção, no sentido de se beneficiar da possibilidade de entrar regularmente (agora que a
Albânia faz parte da Comunidade Europeia) através de uma autorização de permanência por motivos
turísticos:
Agora as albanesas vem pra cá com a autorização de permanência por motivos turísticos,
ficou mais fácil, por isso elas voltaram. Ficam aqui dois meses, depois desaparecem, daí
voltam depois de seis meses, algumas, e assim vai. Notei que, enquanto as mulheres
albanesas estavam sumidas, ninguém mais as via, agora elas voltaram e a cafetina me
disse que elas entram com a autorização de permanência por motivos turísticos São mais
velhas, são mais maduras, as mulheres albanesas [Testemunha, T4, Medico].
Trabalhei também em outubro, economizei um pouco de dinheiro, mas o visto turístico
vencia dia 8 de novembro, três meses se passaram e, praticamente, neste ambiente, uma
pessoa que não tem documentos, dá o passaporte ao cafetão, o cafetão manda pra
Albânia, para uma alfandega ao sul da Albânia, um policial corrupto mete dois carimbos,
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então, é como se eu tivesse entrado e tivesse saído de novo [Estorias de vida, Albanesa,
D1]
Em relação às albanesas que hoje estão começando a vir para a Itália, pois o fato de hoje
não ser necessário o visto para entrar, fez reaparecer a presença albanesa que por
décadas tínhamos perdido de vista. Enquanto que, nos anos noventa, haviam somente
nigerianas e albanesas, que depois sumiram, seja porque houve uma grande obra do
governo Prodi, e em seguida, D'Alema, por uma especie de convenção muito forte com o
governo albanês – para impedir principalmente a saide de Vlora, próprio por causa do
trafico de pessoas, com a presença de uma mafia albanesa (vamos chamá-la assim) para o
governo do processo de aliciamento, e uma mafia italiana da costa da Pugila, a Sacra
Corona Unita, responsável pela “logística”: as garotas chegavam, então, tinham que
procurar uma casa rapidamente, roupas, documentos e uma rede organizada
[Testemunha, T1, ONR].
É evidente que os racket controlam o trafico de documentos e exploram economicamente as conterrâneas,
até quando se trata do Permesso di Soggiorno (autorização de permanência):
Sim. Quando fui depois pra Albânia, ele me disse que se eu quisesse ter todos os
documentos italianos em ordem, eu tinha que pagar 10 mil euros, tudo incluso nos 10 mil
euros; eu praticamente devia ter pedido ao explorador pra me deixar trabalhar sozinha
todo o mês de janeiro, pois minha mãe tava doente, e precisava de todo o dinheiro, e
depois, em fevereiro, se recomeçava, entende. Mas, praticamente, todo o dinheiro que eu
ganhei em janeiro, tive que dar tudo pra ele, não sobrou nada pra mim, foi um período
muito ruim da minha vida, que nem sei (Estorias de vida, Albanesa, D1).
A violência continua sendo a principal estrategia de “controle”, mas no fim dos anos noventa, começaram a
aparecer também os primeiros acordos de divisão dos lucros, para atrair jovens mulheres que deixaram de
ser chantageadas por ameaças de violência à famílias, na verdade, desconhecidas.
No geral, a impressão que dá é que o cenário é muito mais complexo e variável do que no inicio (começo
dos anos 90), com muita coisa ainda para descobrir entre os casos de redução da escravidão e as formas de
exploração mais leves que, mesmo assim, entram na definição de trafico de pessoas discutida
anteriormente.
É um tipo de modelo ambivalente em relação a prostituição, pois se ganha dinheiro, mas
não é totalmente assim.. lembro do inicio dos anos 90 com as garotas albanesas, elas não
ganhavam nenhum tostão Davam todo o dinheiro aos seus “protetores”, que controlavam
até a quantidade de preservativos, portanto, dez preservativos representariam 500 mil
liras, ou seja, 50 mil liras por preservativo. E os exploradores controlavam a tal ponto que,
iam ver até onde elas jogavam os preservativos usados. Havia um controle muito forte
que as impedia de escapar dessa situação de trafico. Hoje, no que se diz respeito ao
aliciamento, podemos dizer então que existe um sistema de “geometria variável”
[Testemunha, T1, ONR]
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Sim, quando eu voltava pra casa de noite, pegavam todo o meu dinheiro, me deixavam
com 10 euros pra comprar cigarro e tomar um café de manhã [Estorias de vidas, D3,
Romena]
Vim da Romênia com um cigano que me levou na primeira vez a Bari. Depois de um mês,
chegaram os albaneses, me levaram a força, trabalhei pra eles por dois meses, e baixou a
policia em casa, revistou a casa, e prendeu os caras. Mas estes albaneses eram malvados,
me batiam sempre, me pediam dinheiro, ficavam o dia todo dando rolê de carro
controlando [Estorias de vida, Romena, D3]
Durante os anos 90 e até a segunda metade da primeira década do XXI século, o racket nigeriano e albanês
dominaram o cenário da prostituição italiana de rua. Depois os albanês optaram por estrategias operativas
mais discretas, enquanto os romenos, que já estavam aqui antes, mas sempre em papéis subordinados,
ganharam maior visibilidade, criando novas parcerias e implementando estrategias que, por certos
aspectos, se assemelham às dos albaneses do inicio.
1.3.3. Evoluções e mudanças
O cenário descrito acima, portanto, começa a mudar na segunda metade da primeira década do seculo XXI.
O racket albanês, duramente atingido pelas ações repressivas da policia italiana, graças a acordos bilaterais
entre os dois países em questão, parece sair lentamente de cena em um primeiro momento, e nas ruas são
os romenos que começam a ganhar maior visibilidade, e cujas estrategias de aliciamento e exploração
serão mais profundamente analisadas no paragrafo dedicado ao trabalho de campo realizado na Romênia
Um momento marcante foi em 2007, ano que a Romênia ingressou na Comunidade Europeia. À partir
daquele momento, aumenta o numero de romenas nas ruas, muitas vezes exploradas (mas, como veremos,
não é só isso) por seus “namorados” romenos que conheceram em seu país.
Tivemos o que eu chamaria de ruptura epistemológica devido a presença da Comunidade.
Quando entraram na UE (União Europeia) em 2007, já existiam romenas nas nossas ruas,
e portanto também, nos programas de proteção social, mas em 2007 com a entrada da
Bulgária, e em particular, da Romênia, pois outros países já tinham entrado antes, como a
Polônia, a Republica Tcheca, a Eslováquia, mas com a entrada da Bulgária e da Romênia,
mudaram muito os sistemas de aliciamento que, agora, são muito parecidos com os do
leste da Europa [Testemunha, T1, ONR]
Isso foi durante os anos de evolução da prostituição, por isso agora tem muito mais
garotas romenas que se prostituem e muito mais exploradores romenos, apesar que,
repito, os romenos são, em alguns aspectos, menos malvados que os albaneses
[Testemunha, T8, Pol.]
Os albanês, no entanto, não desapareceram, como parecia alguns anos atras, eles simplesmente se
adaptaram à repressão, tornando-se menos visíveis O que se pode perceber pelas entrevistas, é que os
albaneses cederam apenas uma parte do território para os romenos, sem renunciar ao papel de domínio e
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controle do território. Alugando espaços, comprando garotas de outros países e estabelecendo acordos
com os romenos:
Antes ainda, a prostituição, a principio, era gerenciada pelos albaneses, depois os
albaneses – sempre por aquele motivo que depois as garotas lhes denunciavam, etc – o
que fizeram? Com a chegada dos primeiros romenos, os albanês começaram a ceder a
eles as praças que usavam pra colocar meninas, assim, tendo menor o risco de ser
interceptado, ou investigado ou denunciado pelas próprias meninas. Por anos, os
albaneses cederam posto aos romenos: a cidade agora é dominada por exploradores
albaneses, mas também por tantos romenos que, ou exploram as garotas por conta deles,
ou criam seus próprios espaços, mesmo sendo poucos, pois a maioria ainda está na mão
dos albaneses, ou então, eles alugam os espaços dos albaneses para colocar as garotas
para se prostituirem [Testemunha, T8, Pol.]
Isto nos leva a falar de outro aliciamento: o do leste da Europa. Além do albanês, que está
reaparecendo, mesmo estando ausente por um longo período, dez/ quinze anos, hoje
temos todo o leste da Europa à disposição, como parte da ex-URSS, Moldávia e Ucrânia
principalmente, que realizaram uma grande forma de aliciamento de garotas da União
Soviética para a Europa, e aqui, devemos dizer que, entrou em cena também a mafia
russa. Porém, na Itália, a maior parte do controle do trafico é feito, principalmente, por
um eixo albanes-romeno, que controla todas as situações [Testemunha, T1, ONR]
Certamente, há uma forte conexão romenos e albaneses, em relação ao controle das ruas,
assim dizem também as pessoas que trabalham na Unidade das ruas, e também em
relação às sul-americanas que estão ainda nas ruas. Em alguns casos, esse controle por
romenos e albaneses está relacionado à presença deles naquele território, em outros
casos, se trata somente de uma passagem (de pessoas): a ultima jovem romena que
atendemos, ela vinha da Romênia, o seu namorado – que depois ela nos contou: “talvez
tenha sido ele quem me vendeu”, mas quem a explorava aqui era um albanês Mas daí..
mafia russa e mafia albanesa certamente se cruzam [Testemunha, T2, Caritas]
Nas estorias das meninas de hoje surge outra novidade. Considerando que, antes, os exploradores
albaneses pareciam mais ser mais sedentários, ou suscetíveis a não ficarem longe da mulher explorada,
hoje em dia não são raras as estorias de exploradores que, de um dia pro outro, voltam pra Albânia e
desaparecem sem deixar rastros, deixando margens de manobra à pessoa explorada, antes impensável
Podemos supor que se trate, também neste caso, de estrategias de enfrentamento às ações de fiscalização
da policia, juntamente ao fato que, como sugerido por uma testemunha privilegiada, existe um excesso de
oferta:
As formas de controle mudaram muito, porque no incio dos anos 90, tinha um cafetão
para cada três meninas, que as orientava passo a passo, e hoje, nem nas ruas eles ficam.
Antes, os cafetões vinham da Albânia com 3 meninas e morava com elas, hoje, eu acredito
que eles façam bem diferente. Mas, também há uma coisa a se dizer: a oferta é muito
maior que a procura, então, se o cafetão perde uma ou duas meninas – que entraram no
nosso programa de proteção social – uns anos atras, era guerra; hoje eles nem ligam pois
depois acham outras cinco. Portanto este é um ponto fraco: a oferta é muito maior que a
procura. Na rua, muitas garotas te dizem: “tá difícil de trabalhar, hoje atendi só dois
clientes” [Testemunha, T1, ONR]
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A gente trabalhava na rua, daí, depois que este albanês foi embora com a mulher,
tínhamos mais liberdade, porque, quer dizer, a mulher na cadeia, o albanês que fugiu,
tivemos um pouco de sorte, éramos mais livres, dava pra trabalhar até em casa [Estorias
de vida, Moldava, D2]
A figura do “namorado” também não desapareceu, mas não aquele “namorado-de-casa” de antigamente,
que atraiam a garota apaixonada com falsas promessas de casamento, invés disso, são homens que
“acompanham” as meninas no caminho da prostituição, usando estrategias diferentes e complementares:
fazem a garota se apaixonar, e depois fazem chantagem no sentido sentimental (“…mas você disse que me
amava!”), mas também mostram a elas a atraente oportunidade de ter um vislumbre de ganhos:
Eu o amava de verdade
e você aceitou essa coisa em vista de um futuro hipotético com ele, quer dizer, você
aceitou porque, independentemente de qualquer coisa, você queria..
Sim, também pelos ganhos, porque, no fim, uma casa, um carro, sabe.. receberia a parte
que me tocava, porque, na verdade, eu não tinha nada, nem um bem material, então era
muito tentador.. [Estorias de vida, Albanesa, D1].
Pode acontecer também que os “namorados” vendam as garotas para um outro albanês, mas sem abrir
mão de explorá-la economicamente. Neste caso o explorador, formalmente, é aquele que está na Itália,
enquanto o “namorado” permanece na Albânia, porém, fica pedindo pra mandar dinheiro pra ele,
continuamente:
[…] Já na Albânia me dizia que tinha uma hernia de disco, na zona lombar, e quando eu
estava aqui, em novembro, pelo telefone ela me dizia “ não me sinto bem, não estou por
nada bem, estou morrendo, tenho que ir pro hospital colocar pino na perna, encontrei o
assassino do meu irmão”, porque eu te falei que o irmão tinha falecido, “encontrei o
assassino do meu irmão e matei ele, ele atirou na minha perna”, não sei se pegou só de
raspão ou se a bala ficou dentro, não entendi bem, só sei que em três semanas, eu devo
ter dado a ela 4 mil euros, todas as minhas economias que tinha guardado durante os
meses [Estorias de vida, Albanesa, D1].
Os “namorados” de hoje fazem uso de novas tecnologias que não eram conhecidas na época dos primeiros
“namorados” albaneses (inicio dos anos 90). Neste sentido, o papel do Facebook é muito significativo:
Bem, tudo começou dia 5 de fevereiro de 2012, no Facebook, atual meio de contato entre
as pessoas. Eu estava fazendo faxina em casa, e me chega um convite de uma
desconhecida no Facebook, de fato, naquela época, não aceitava assim qualquer pedido
de amizade, pensava “desconhecido.. quem é que o conhece?” mas daí eu aceitei, e
começaram aquelas conversas tipo: “oi, tudo bem, qual o seu nome, você é linda, jovem,
ah, e estuda também..”, porque, no segundo ano de faculdade, nos primeiros meses, eu
aluguei uma casa com meu irmão, nesse meio tempo eu trabalhava, nos últimos dois anos
em um call center e o aluguel era eu quem pagava, “humm, você é assim brilhante que, no
meio tempo, você trabalha e estuda, e estuda e trabalha”, esta conversa começou às duas
da tarde e terminou às quatro da manhã do dia seguinte. Era uma pessoa muito
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romântica, dizia “eu gosto de Celentano (cantor italiano), escuto Celentano todos os dias,
gosto de passear pelos bosque, jardins, nas ruas quando chove, ir ao lago” essas bobagens
que uma garota como eu, ainda virgem naquela época, pensava “minha nossa senhora,
encontrei meu príncipe encantado!” [Estorias de vida, Albanesa, D1]
Mudam as formas de engajamento, mas mudam também os acordos. Enquanto as primeiras albanesas
eram sempre e totalmente enganadas e aceitavam vir pra Itália na perspectiva de um plano de vida juntos,
as romenas, assim como as novas albanesas, todas as meninas, em geral, são conscientes, também porque
uma pessoas consciente cria menos problemas, trabalha melhor e é, economicamente, mais rentável:
No começo disse assim que precisavam de uma garota pra ser, simplesmente, uma
boneca, daí no dia seguinte, dois dias depois, disse “não é pra ser só uma bonequinha, vai
ter que trabalhar também e... “ para uma garota trabalhar, simplesmente tem que
(desculpe o termo) abrir as pernas e acabou, pega o dinheiro, no momento que está com
a outra pessoa, se sente meio assim, em dificuldade, mas depois se contenta quando pega
a grana e diz: “oh, to rica!” Olha só, em dez minutos eu abri as pernas e ganhei 50 euros,
eu sou uma rainha, né!”, era muito bom com as palavras, pois dizia “agora você faz parte
dos serviços secretos, você deu a tua palavra, então não pode mais voltar atras” e eu disse
“ok, se faço parte, então tenho que me sacrificar”, também porque tinha me contado de
outros casos, de outras garotas que tinham trabalhado assim pra ganhar a vida, e que hoje
tinham tudo, então, praticamente, fora o trabalho, tinham casa, lojas, carros, e eu cai
como uma tonta que sou (sarcasmo), e disse “sim” [Estorias de vida, Albanesa, D1]
A estrategia dos “namorados” - albaneses e romenos, normalmente “sentimentalmente envolvidos” com
suas compatriotas – jogam com a ambiguidade. As garotas se sentem mais livres e se iludem com a ideia de
poder tirar vantagem dessa situação em termos econômicos significativos, mas na realidade é só violência
e exploração:
Não, boa porcentagem das famílias das vitimas não tem nem ideia do que as meninas
fazem. A menina vem pra cá, depois avisa aos pais que achou o lugar, e depois manda
dinheiro pra eles. No começo pensam realmente de ter dinheiro, mas depois são
obrigadas a deixar quase tudo que ganharam, 60, 70%, ao namorado-explorador
vagabundo, que com a grana compra um carro e fica rodando pelos bares, etc, jogando
naquelas slot machines, torrando todo o dinheiro ganho com a prostituição das garotas.
Essa é a bela vida que fazem, digamos assim [Testemunha, T8, Policia Local]
Em Milão, são as mulheres romenas que dominam a área, com uma grande rotatividade,
com mudanças, uma grande dificuldade de ter acesso a elas, pois sempre dizem: “quando
eu quiser, eu paro”. Existem situações de violência e exploração ali também, mas a
impressão que dão, é que aqui elas têm maior liberdade, maior possibilidade de escolha,
que em alguns casos, é até verdade, mas de acordo com a Unidade de rua, a liberdade
delas não é assim total, pois elas pagam pelo ponto. Tente não ficar no teu ponto.. de
fato, a violência ainda existe [Testemunha, T2, Caritas]
Táxi pra ir, táxi pra voltar. Mas tinha uma coisa estranha que, aqueles albaneses diziam
“olha que vocês não estão ganhando dinheiro pra mim, é pra vocês o dinheiro”. Mas se eu
chegava tarde de carro, de carro, tipo 10, 5 minutos era já tarde.. minha nossa senhora,
nunca mais!! Eu chegava em casa e apanhava quase todas as noites.. Gritavam comigo,
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como se eu fosse uma.. não sei como se diz em italiano, aquela que faz tudo o que lhe
mandam... uma escrava [Estorias de vida, Moldava, D2]
Dia 11, comprei um teste de gravidez, na verdade, comprei dois, e vi que estava gravida,
daí, depois de três dias, tive hemorragia e não conseguia levantar de tanta cólica,
praticamente estava tendo um aborto espontâneo, e este “policial” [gíria para indicar o
namorado albanês] sabia muito bem que eu estava com cólica, me ouviu chorando por
telefone, sabia que eu não ia conseguir colocar nada dentro porque já tava doendo,
imagina se coloco um “ob” e chega um cliente querendo fazer sexo... a cólica era forte, se
pusesse o “ob” que encostava no útero, ia ser uma dor insuportável Então, quando estava
menstruada, fazia o impossível para não ir ao trabalho e ele fazia o impossível pra me
obrigar a trabalhar, dizia “o patrão não quer saber se você tá mal, tá gravida, você deu sua
palavra, prometeu nos dar 10 mil euros para obter os documentos então, esses 10 mil
euros, quem é que paga? Não me interessa se você ficou gravida, a culpa é tua se você tá
gravida, vai trabalhar”, então, praticamente, a culpa era minha porque não tinha os 15
euros para comprar a pilula, tinha dado todo dinheiro pra ele [Estorias de vida, Albanesa,
D1].
Continua ainda hoje, como antes, o mercado das mulheres: albaneses que vendem as próprias
“namoradas” a outros albaneses (sem nunca sair de cena); albaneses que compram romenas, moldavas e
outras mulheres do leste europeu:
[…] Para que eu ir com o traficante, o traficante tinha que dar pra ele (o albanês) um
ponto pra trabalhar, pois conhecia muita gente, e pra ele, achar um ponto, era fácil, um
ponto na rua, 3 mil euros e uma garota romena, pois neste ambiente, as romenas são
vendidas como enfeites de mesa, um enfeite de mesa [Estorias de vida, Albanesa, D1]
O racket nigeriano tem mantido por décadas, estrategias de subjugação essencialmente inalteradas em sua
estrutura principal, pois são eficazes e bem sucedidas. As únicas mudanças parecem se relacionar com a
maior visibilidade dos homens, como já foi descrito, e um uso diferente dos passaportes. Enquanto, no
passado, as garotas chegavam com seus passaportes originais, o qual era depois sequestrado pela cafetina,
e devolvido somente após o saldo da divida, agora parece que o racket use passaportes falsos para viagens
ao exterior, como os quais eles conseguem trazer varias garotas.
No final dos anos 80, inicio dos anos 9, era fácil achar onde elas moravam, pois nós íamos
na casa delas. Antes de mim, outros colegas também – soube disse lendo os atos – e a
situação que se encontrava era esta: exploradora, duas, três, uma vez tinha até 14 em
uma casa, pois tinham juntado duas casas, e encontravam-se ali uma cafetina, catorze
garotas, catorze passaportes escondidos embaixo da cama da cafetina.
As razões [destas mudanças, ndr] não os conheço. Mas o fato é que, como o tempo, as
coisas não são mais assim, não existe mais a cafetina que hospeda a garota em casa e
esconde seu passaporte, repito, não conheço os motivos, mas houve uma mudança, uma
mudança nesse sentido, porque depois, com o tempo, davam à garota traficada na
Nigéria, um passaporte, normalmente original, como suporte, portanto um passaporte
emitido pelo departamento de emigração nigeriana, porém certamente falsificado pois
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contém normalmente dados, informações pessoais e, às vezes, até a foto diferente. Então,
este passaporte, uma vez que o traficante acompanha a garota até a Itália, este
passaporte volta com ele para a Nigéria, e com este mesmo passaporte eles fazem passar
outras garotas [Testemunha, T10, Pol.]
Se no final, a exploradora é sempre a cafetina, mesmo no caso das nigerianas pode existir um namoradocumplice, cujo papel ambíguo nem sempre parece surgir das estorias, assim como no testemunho abaixo:
Quando eu disse ao meu namorado da Nigéria - que me apresentou o homem que me
trouxe pra cá – que eu já tinha pago quase 25 mil euros, mas que ainda faltava dar mais,
esse homem ia sempre encontrar o meu namorado na Nigéria, e agora tá começando a
criar problemas com ele, dizendo que eu não paguei isso, não paguei aquilo, não fiz isso.
Porque no começo, quando eu cheguei na Itália, fui na delegacia pra fazer.. porque.. no
primeiro dia, ele me deixou na Porta Usa (estação do metro de Turim, próximo à
delegacia, ndr), pois eu não conhecia nada. Ele me deixou ali, daí conheci um homem que
me levou até a delegacia, fui pedir asilo politico. Se eles me derem um documento, então
tinha que fazer algo de belo, e não trabalhar nas ruas. Eu disse “tudo bem”. Fiquei com
este homem, que me levou até a delegacia, alguns dias, depois liguei pro meu namorado,
disse que me deram documento por 3 meses, e eu estava muito feliz por terem me dado o
documento. Disseram pra ir pra escola, e fazer algo de belo. E eu disse “tudo bem”. Mas
daí, enquanto contava essas coisas pro meu namorado na Nigéria, ele disse: “por favor,
estou com um grande problema, agora eles estão tenho problemas comigo aqui na
Nigéria Volta agora lá pra Nigéria tá pra eles, por favor, não quero problemas, mesmo que
você não traga o dinheiro pra mim, não tem problema, basta que pague a tua divida, por
favor. Estou com medo”. Porque agora eles … Lá na Nigéria não é como aqui que, se
acontece qualquer coisa, você chama a policia. Na Nigéria, se você chamar a policia, tem
que pagar, tem que pagar isso, tem que pagar aquilo. Os policiais escutam somente os
ricos, não você que é pobre. Assim, voltei pra eles, sim [Estorias de vida, Nigeriana, D5]
1.3.4. As famílias: cúmplices ou vitimas?
Há décadas a comunidade internacional se questiona sobre o papel das famílias das vitimas, sobre
cumplicidade, níveis de conhecimento da situação Como sempre, o cenário é complicado e não existem
respostas claras.
O que emerge de todo o rico material de pesquisa, coletado nos diversos países parceiros do projeto, é que
os rackets vão procurar meninas para aliciar, em lugares onde sabem que existe vulnerabilidade, onde a
economia representa somente uma das dimensões, e não necessariamente a principal. Em todas as
estorias podemos observar situações de desconforto relacionadas à presença de diferentes formas de
pobreza, entre elas, uma relação que desempenha um papel secundário O trecho de entrevista selecionado
é apenas um dos possíveis cenários:
Minha mãe me abandonou quando eu tinha 6 ano, e nunca mais a vi.. Fugia de casa,
porque ela (minha madrasta; o pai saiu pra trabalhar) me dizia tantos palavrões, um
monte de palavrões Uma vez me jogou de calcinha.. na frente dos meus irmãos. e me dizia
coisas feias, um monte de palavrões na frente deles. Me bateu uma vez na frente da
minha melhor amiga e eu fugia de casa. Não aguentava mais. Uma vez eu tentei... por
culpa do meu namorado, ex-namorado.. me suicidar, tomei uns remédios, fui parar no
hospital, fiquei 26 horas em coma, quase 3 semanas no hospital; quando saí, estava
melhor um pouco, mas depois, de novo, os problemas. [Estorias de vida, Moldava, D2]
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As famílias, por vezes, desconhecem, ou às vezes elas sentem que tem algo, mas não intervém, na
esperança de lucro, enquanto em outros casos, como o daquela garota moldava que acabamos de ler o
trecho da sua vida ainda breve, mas perturbada, em papel protagonista. Irina (vamos chamá-la assim)
conta que foi seu pai quem a acompanhou ao ônibus que a trouxe, graças ao intermédio de sua tia, da
prima, já na Itália, e claramente cúmplices dos exploradores. Irina nega que seu pai soubesse de alguma
coisa, mas qualquer que seja a verdade, no seu caso, o papel da família parece evidente:
E ela me acompanhou até Kishinev (capital da Moldávia), dali meu pai me acompanhou
até a Ucrânia em um grande ônibus, e ali entrei em outro, que me trouxe, depois de viajar
a noite toda, a Kiev (capital da Ucrânia). Liguei pra minha tia, disse “to sozinha aqui, você
acredita? De noite chegam um garotos negros aqui, o que será que vai me acontecer, to
sozinha!”. E ela me disse “espera aquela mulher te ligar”. Ok, esperei, ela me liga e diz “ali
tem um Mc Donald’s, vai pra lá que daqui a pouco meu primo chega aí e te ajuda a chegar
no aeroporto pra vir pra cá.. quando chegar em T., tem minha prima chamada C. que tem
a minha idade, e mora aqui há seis meses. Eu não sabia de nada, não sabia de nada. Ela
me abraça e me beija, porém me pareceu meio estranho ter visto 2 homens [Estorias de
vida, Moldava, D2]
Na Nigéria também é comum as famílias terem papeis ambivalentes:
Na Nigéria, isso mesmo, na Nigéria existe só se a garota some. Porque às vezes ainda tem
aqueles clientes que tentam convencê-las … a não voltar (pras ruas). (Os exploradores)
imediatamente contatam as famílias das vitimas, não se sabe como; a família consegue
contatar a garota, e ela acaba voltando pra trás [Testemunha, T8, Policia Local].
De acordo com o testemunho acima, não é raro que sejam as próprias famílias a convencer a garota a
voltar em caso de fuga, mesmo não sendo claro o quanto eles se envolvem neste jogo, por medo das
retalhações, além do desejo de um ganho financeiro. A retalhação é de fato uma realidade documentada,
principalmente na Nigéria, e na Romênia, porém mais raramente, as ameaças se traduzem em ações
concretas.
Enquanto a garota se comporta como se deve, faz o que tem que ser feito, as famílias
(romenas) não são ameaçadas, e até aquelas poucas que denunciam, não sofrem toda
essa... Quer dizer, a ameaça existe, mas raramente acontecem retalhações na Romênia
[Testemunha, T8, Policia Local]
Quando a exploração é transnacional, como nos casos onde os albaneses exploram garotas do leste
europeu, vindas de vários países e compradas, por sua vez, em mercados transnacionais, as famílias estão
bem protegidas das formas de retalhação, pois são mais difíceis de serem localizadas.
1.3.5. Trabalho e dia a dia
Com relação às condições de trabalho e de vida cotidiana, existem fortes pontos em comum entre a
experiencia das nigerianas e a das garotas do leste europeu. Em ambos os casos, os ritmos de trabalho são
desgastantes e as condições, muito criticas: muitas horas na rua (em alguns casos até mais de 12h),
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independentemente das condições meteorológicas ou do estado de saúde das garotas, fora os vários
clientes ao dia, pois quem explora ( seja nigeriano, albanês ou romeno) quer dinheiro e não aceita
desculpas.
Eu trabalhava: segunda, terça, quarta e domingo, das nove da noite até as três da manha.
E quinta, sexta e sábado até as quatro. Independentemente do tempo la fora.. nossa
senhora, tempo ruim... faltava 20 pra 4 da manha, não tinha mais ninguém na rua, um
frio, eu chorava, dizia, “vai, liga pra ele, liga e diz “20 minutos. Não tem mais ninguém, a
gente vai pra casa, estamos morrendo aqui”. E ela ligava. “Fiquem aí só mais 10 minutos
então. Meninas, daí só vai ficar faltando 10 minutos pro final, fiquem aí até o fim e depois
vocês voltam pra casa”, era assim [Estorias de vida, Moldava, D2]
Eu vivia junto com minha cafetina.. tinha uma outra garota que trabalhava em Milano,
isso, ela ia pra Milão trabalhar, e eu trabalhava em Caluso. Pegava o ônibus às 8:30 da
manha, e voltava às 7:30 da noite. Chegava em Turim às 8:30 da noite... trabalhava o dia
inteiro.. até mais de 20-25 clientes... [Estorias de vida, Nigeriana, D4].
Quando eu estava com o cigano, eu trabalhava só de dia, trabalhava o dia todo e à noite já
estava em casa, mas com os albaneses, eu trabalhava de dia e também à noite. De dia,
trabalhava das 9 até às 19 em Carmanhola. De noite, das 21 às 4 em Moncalieri [Estorias
de vida, Romena, D3].
Os dias eram muito longos e não sobrava tempo pra nada mais.
Chegava de trem às 7 da manha em Milão, e 15 pras 9 voltava à noite. Daí pegava o metro
até o trabalho. Saía às 5 da manha, porque os ônibus começam a circular às 5:30, esta era
a primeira condução até o metro, depois metro até a estação Central de Milão Chego em
casa em Turim às 9 da noite, daí, chegando em casa, ainda tenho que comer, tomar
banho, e dormir até às 5 ou 6 [Estorias de vida, Nigeriana, D5]
Quando comecei a trabalhar... acordava, tomava banho, me vestia, me maquiava, e ficava
a noite inteira de pé, cansada, voltava pra casa e dormia, o dia todo dormia, e de noite, de
novo, acordava, maquiagem, banho etc, e assim eu nunca saía. Não sabia o que era dia o
que era noite [Estorias de vida, Moldava, D2]
Embora as garotas nigerianas aparentemente tenham mais liberdade, pois são mais livres para se deslocar,
visto que trabalham, normalmente, em uma cidade diferente em relação a cidade que vivem, e nestes
longos trechos onde viajam sozinhas, ou ficam nas ruas, ou saem com privados (por telefonemas ou
encontros), e quanto à questão de quem administra os ganhos, existe também um forte controle,
principalmente com as garotas novas ou as que são mais teimosas, as menos “confiáveis” .
Uma vez até, a unidade de rua estava fazendo uma interceptação, e chegou um que
começou a bater... bem, talvez alguns episódios sejam esporádicos, mas estão se
repetindo, o que acontecia no inicio onde os albaneses eram muito rígidos Daí se tinha um
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controle ou não, era indireto, e não incomodava as UDS (Unidades de rua), mas agora
parece que deve voltar esta controle. Talvez dependa da área, e acho que dependa
também das garotas, pois se elas são jovens, mais forte é o controle [Testemunha, T2,
Caritas]
A partir do momento que ela me levou pra rua, eu não falava mais com ninguém, porque
eu tinha medo dela. Ela ficava sempre ali, me vigiando, vendo o que eu estava fazendo.
Até pra ligar pra minha família era impossível. E eu continuava ali, mas depois de uns 5 ou
6 meses que ela não ia pro trabalho, então, ela não trabalhando mais, ficava em casa. É,
porque antes ela trabalhava comigo, me perguntava se eu queria ligar pra minha família,
quando chegava em casa, eu comprava a recarga pro celular dela e ligava. Eu colocava no
“viva voz” assim ela também escutava [Estorias de vida, Nigeriana, D6]
Ficavam rondando, olhando. Até os clientes me contavam. Uma vez quis me bater, gritava
comigo, e se não respondia, minha prima me dizia “responde se não quiser apanhar”
Então eu disse “oi”, porque se você fica quieta, você apanha [Estorias de vida, Moldava,
D2]
Isso, dava tudo pra ela [maman ndr], depois ela ainda revistava tudo, a bolsa e tal pra ver
se tinha mais dinheiro, se não achava nada, te devolvia a bolsa. E começava a gritar que o
dinheiro não bastava, trabalha mais, tem que trabalhar mais... na rua, tinha sempre
alguém pra vigiar se estou trabalhando, o quanto estou trabalhando, e contavam tudo pra
ela, e quando vou trabalhar, a maman me da um celular, me avisa quando tem batida
policial, aí dependendo, eu vou pro trabalho, tranquila. Quando chegava em casa, ela
controlava até quantos clientes ligavam pra gente… não posso porque tenho medo,
porque minha maman é muito má, e o seu marido também [Estorias de vida, Nigeriana,
D4]
Eles é que me levavam e me buscavam (do trabalho). Sim, eu os via sempre fazendo a
ronda, de carro, olhavam, me chamavam [Estorias de vida, Romena, D3]
No caso das nigerianas, o controle é feito por outras mulheres nigerianas: as controladoras, ou seja,
prostitutas nigerianas que estão mais adiantadas com o pagamento de suas dividas, e portanto, estão em
um grau mais avançado de suas “carreiras”; e outras maman proprietárias dos lugares pra alugar:
Neste lugares, tem sempre uma prostituta mais velha, que já está quase terminando de
pagar sua divida, então a maman diz a ela “vai você, você já tá terminando de pagar sua
divida mesmo, assim você vigia a garota pra mim”, e depois, esta será uma que, no final,
quando tiver acabado de pagar a divida, vai ser ela a futura maman de outras garotas, a
mais velha das prostitutas ou a proprietária do ponto, pois tantas cafetinas que mandam
suas garotas trabalhar fora de Turim, recorrem à outras cafetinas que possuem um ponto
chamado joint, que, por sua vez, a cafetina paga pra por a garota ali pra se prostituir. Por
isso, às vezes o controle dos joint é feito pela “segunda cafetina” [Testemunha, T8, Policia
Local]
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No caso da exploração das garotas do leste europeu, porém, o controle é feito formalmente pelos homens
– namorado, explorador ou seus subordinados – não podendo faltar as formas mais informais de controle
também, pelas garotas de confiança, também exploradas, mas com uma relação privilegiada com o
explorador.
Geralmente, as romenas moram com os namorados, o namorado também passa pra
controlar, com a desculpa de ir falar um “oi”. Passa muitas vezes pra ver se estão ali no
ponto. Depois comenta: “mas porque você demorou assim tanto com um cliente?”,
mesmo assim, elas continuam ali [Testemunha, T8, Policia Local]
Uma vez ele me bateu, só porque eu falei com um cliente pela internet, sabe, eu confiava
na minha prima, mas ela tinha entrado com os albaneses, já tava acostumada com eles,
não tava do meu lado, ficava do lado deles. Qualquer coisa que eu fizesse, imediatamente
ela ia contar pra eles. Então, eu não sabia que a minha prima me traía Eu contei pra ela “é,
eu falo com os clientes pela internet”. Imagina, naquela época lá, não se podia nem falar,
nem dar o telefone pros cliente e falar pela internet. Eu confiava nela. Quando contei pra
ela, ela disse “e agora o problema é só seu” [Estorias de vida, Moldava, D2]
As relações fora do trabalho parecem limitadas, para todas elas, independentemente da nacionalidade, aos
protagonistas do mercado do sexo – exploradores e exploradoras, clientes “apaixonados”, outras
prostitutas -, mas hoje, assim como há dez anos atras, as garotas do leste europeu aparecem mais sozinhas,
sem nenhum tipo de conforto, do tipo, amizade. As nigerianas, etc, parecem encontrar, com maior
facilidade, amigas com quem possam contar, embora devam sempre selecionar, cuidadosamente, suas
relações:
[…] Daí fiz amizade ali [na rua ndr.], aí pedi que me ajudasse a mandar dinheiro vez ou
outra pra minha mãe, só que a mulher que me trouxe pra cá não sabia disso [Estorias de
vida, Nigeriana, D6]
Tinha alguém em quem você podia confiar? Tipo, aquele dia que você diz “hoje não
aguento mais, tenho que conversar com alguém”, pra desabafar com alguém?
Não, não conseguia falar, eu tinha medo que eles contassem tudo pros albaneses, e
então, eu nunca abria a boca, se abrisse, era só pra falar besteira, só isso [Estorias de vida,
Moldava, D2]
As albanesas de hoje, embora seriamente exploradas e controladas, desfrutam – quando são consideradas
confiáveis – de uma liberdade inimaginável no passado, por isso pode acontecer que os exploradores
deixem que elas saiam com um cliente apaixonado, desde que a situação permaneça sob controle e não se
torne “perigosa”. Com relação às razoes para tal tolerância, podemos hipotizar que se trate de uma forma
estratégica de gratificação para conseguir ter as garotas ligadas a eles.
[…] Um cliente meu comprou um celular Samsung Galaxy pra mim, porque eu não tinha
dinheiro pra comprar um, também porque ele tava apaixonado por mim e queria me ver
sempre, praticamente, ele me deu o celular só por causa do skype. Com este telefone
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dava pra ouvir radio também, então eu pegava um ônibus, qualquer um, dava um role pra
me distrair e depois voltava pra casa, me arrumava e depois ia trabalhar. Então, a diversão
era sair com este cliente ou dar um role de ônibus, porém, eles sabiam que este cliente
me levava sempre pra passear, seja o traficante (explorador, ndr), que o policial
[namorado, ndr.] que é uma pessoa que cuida de mim, de fato, se alguma vez eu
precisasse, o próprio traficante dizia “mas porque você não liga pra aquele lá, e fala pra
ele vir te ajudar”, de fato, pro traficante não era um problema, mas o policial dizia “fala
pra ele calar a boca” [Estorias de vida, Albanesa, D1]
1.3.6. A saúde na exploração
Experimentar o que é a prostituição de rua em situação de trafico de pessoas, significa submeter-se a
condições de vida e de trabalho que possam comprometer a saúde
Por uma questão de clareza de analise, podemos dividir os fatores de risco em quatro tipos diferentes,
relacionados em dimensão entre eles: ambiente, exploração, cliente, violência de gênero
O primeiro tipo tem a ver com o ambiente, ou seja, com as condições de trabalho. Trabalhar na rua, de pé,
por longas horas, ou então ao relento, ou debaixo de chuva, comendo pouco e mal, tudo isso resulta em
um inevitável acumulo de cansaço e de stress e uma consequente diminuição da imunidade. Somado a isso,
o tipo de trabalho que fazem, que facilmente pode levar à inflamação do aparelho genital, podendo piorar
devido à falta de condições de limpeza e higiene adequadas.
Em relação aos consumos “de risco”, com todas essas estorias contadas pelas garotas entrevistadas, esse
trabalho as poderia levar (o condicional é obrigatório) a considerar com maior frequência os problemas
ligados ao alcoolismo, ou às drogas.
Pode acontecer de os clientes oferecerem drogas a elas, mas aparentemente, é mais provável que elas
sejam induzidas a consumir álcool – é mais barato e mais acessível – e que por vezes, pode se tornar um
instrumento para se entorpecer e tornar o momento presente menos insuportável:
Às vezes, quando ia trabalhar, bebia álcool, cerveja, pra não pensar muito. Todos os dias,
quando penso na vida que faço, bebo, e choro, choro porque tenho que estar sozinha
num quarto, e de pensar nisto, choro, choro [Estorias de vida, Nigeriana, D6]
[…] Meu corpo estava pesado, não sentia mais nada. No começo sim, bebia com gosto.
Depois, minha prima também começou, aí, toda noite tava as duas, bêbadas Eu bebia
bastante junto com ela. Eles confiavam nela, o que fazia uma, fazia a outra [Estorias de
vida, Moldava, D2]
O risco de alcoolismo é maior pra quem trabalha nos night clubs, onde as garotas são obrigadas a beber
com os clientes o maior tempo possível, fazendo faturar também o proprietário do bar.
Todas as condições citadas acima – cansaço, frio, álcool, má alimentação, etc. - são agravadas pelas
condições de exploração e pela impossibilidade de escolher o que é melhor pra si: limitar o numero de
horas ou a quantidade de clientes, ou simplesmente, não trabalhar quando não se está bem, ou cansada,
ou está muito frio.
Me deu um chute na barriga (um cliente), eu fiquei assim (se inclinou pra frente,
segurando a barriga com a mão, ndr) e eu disse à minha prima “olha, tá doendo muito,
vou pra casa, estou com muita dor, já fui operada”, “não, você quer ir pra casa porque não
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tá a fim de trabalhar”, bem, isso ela me dizia sempre, mesmo quando eu não estava bem,
e aquela mulher, quando eu estava gravida, vomitava, lá fora chovia, ventava, eu não
estava bem, vomitava, meia hora depois, de novo, não sei porque, vomitava 30 vezes ao
dia, tantíssimo. E dizia “olha que eu não to bem, posso ir pra casa?”, “Não, porque agora
eu to precisando de dinheiro, 2 horas não é nada, não vai morrer por isso” [Estórias de
vida, Moldava, D2]
Mesmo se você não estiver bem, tem que ir trabalhar do mesmo jeito, é sim, igual uma
vez, quando eu ainda não tinha os documentos, então eu tinha medo da policia me pegar
e me prender ou levar pra algum carcere. Então, eu estava com um cliente, no carro,
chegou a policia, e eu fugi... quebrei o pé.. e então não conseguia caminhar direito.
Cheguei em casa e ela me deu um remédio.. pra poder ir trabalhar naquele dia mesmo.
“Chega de reclamar, não tá andando direito, mas vai ter que trabalhar do mesmo jeito”
[Estorias de vida, Nigeriana, D6]
No caso de mal estar ou doença, quem explora (independentemente da nacionalidade) não quer ouvir
desculpas: antes de tudo, o trabalho. Muito raramente os médicos são chamados, e os remédios, são
improvisados, e pro hospital, tem que ir sozinho, não tem outro jeito. E mesmo em raros casos de
hospitalização, aqueles que exploram, começam a pressionar a garota pra ela pedir pra ter alta, mesmo
contra os conselhos do medico, para poder voltar imediatamente pro trabalho.
Não estava me sentindo muito bem, tomei remédio, mas não passou. Fiquei mal, não
conseguia nem andar, mas me mandavam pro trabalho do mesmo jeito. Um dia, eu não
estava mais aguentando, não conseguia nem levantar da cadeira, porque não estava bem
mesmo, então ela (cafetina, ndr) chamou uma ambulância e me levaram pro hospital. No
hospital me disseram que eu tinha tido um aborto incompleto... Sim, fiz uma cirurgia.
Fiquei ali por 3 dias, pois ainda não estava em forma. E ela, quando vinha me ver ou me
ligava, dizia “você vai falar pra eles (médicos, ndr) que quer ir pra casa, diz que você quer
ir embora” …e eu dizia que não tinham me dado alta ainda.. “vai lá falar pra ele, se não
eles vão ficar te segurando aí por vários dias, vai lá falar...” Ela me perturba todos os dias,
insiste que tenho que falar pro medico deixar me dar alta, e eu já disse que não posso,
eles não deixam ainda. E se eu quiser ir embora, tenho que assinar um documento. E ela
dizia, “assina, assina o documento” e eu assinei, é. Naquele dia, cheguei em casa, e fui
direto trabalhar, naquela mesma noite!! [Estorias de vida, Nigeriana, D6]
Minha nossa senhora, que canseira!! Eu tinha que fazer uns exames de saúde, sabe? E ela
(cafetina, ndr) disse pra eu ir pro hospital Amedeo de Savoia, fazer os exames de sangue e
tudo mais. E quando eu tinha que ir buscar os resultados, ela desconversava. “Então,
vamos?” “Amanha, amanha, amanha a gente vai..” Aí ela foi com a minha prima e, quando
voltaram, eu tava curiosa pra saber o que era que me incomodava tanto... aqui embaixo
(problema ginecológico, ndr), aí ela disse “fica tranquila que tá tudo bem, tudo bem”,
depois, quando eu estava na comunidade, fui me controlar e soube que eu tinha uma
doença, clamídia, me curei. Não, não me levavam pro medico, quer dizer, me levaram
uma vez só, quando eu estava gravida, e uma outra vez quando me operaram. Apendicite.
Se não, eu morria ali [Estorias de vida, Moldava, D2]
Eles é que iam comprar os remédios, mas era você quem pagava [Estorias de vida,
Nigeriana, D5]
28
A terça dimensão é aquela relativa ao comportamento dos clientes, incluindo também os turistas sexuais:
São muitos (clientes que veem pra cá pra fazer turismo sexual). Eles não nos contam, mas
é possível intuir por varias coisas. Quando perguntamos de suas viagens: “Sim, já fui pra
Tailândia”, então, é obvio. Ou então, veem de países onde houve alguma epidemia de
recente, daí nos contam.. Atendemos uma quantidade de turistas, que, certamente, uma
pequena parcela, são turistas sexuais (difícil quantificar o numero). Uma pequena parcela
de pessoas que foram pra China, Tailândia, Egito, Marrocos; já aconteceu de alguma
mulher ter ido à Jamaica ou em países cubanos, enfim, existem também as turistas
femininas.
Nenhum deles vai dizer: “sai com crianças”. Podemos imaginar, pois se tratam de homens
de meia-idade, que frequentemente vão à Tailândia, mas dizem que vão pra lá porque as
mulheres lá são muito agradáveis, porém fazem sexo 10 vezes ao dia. Alguém pode ser
soro positivo. Daí, vai pra lá, porque desta maneira.. alguém é soro positivo, justamente
por isso. É raro, mas já aconteceu de um homem ir procurar outro homem em Cuba, mas
é raro [Testemunha, T4, Ambulatório].
Como sabemos, existem muitos homens que pedem pra fazer sexo sem proteção, estando dispostos a
pagar muito mais em troca do que querem. A oportunidade de ganhar mais dinheiro pode ser uma forte
tentação para as garotas mais severamente exploradas, principalmente em noites com poucos clientes. O
medo de sofrer violência como consequência do pouco ganho, pode realmente levá-las a aceitar. No
entanto, as pessoas entrevistadas mostraram-se muito cientes dos riscos e disseram que nunca o fizeram,
apesar que, dizer não, pode também provocar reações até violentas da parte dos clientes.
Isso, muitos vem e dizem “te do 500 euros pra fazer sem camisinha, é como fazer sem
colocar a luva” e eu dizia, “não, não", abri a porta do carro e desci imediatamente. Eu sei
que vão me chamar de “puta”, “biscate”, e então eu disse “obrigada, vou para um outro
lugar” [Estorias de vida, Nigeriana, D4]
A respeito das mulheres que trabalham nas ruas, o entendimento delas em relação às possíveis
consequências do sexo sem proteção, foi confirmado por uma das testemunhas privilegiadas, mesmo
parecendo contraditório, com alta frequência de abortos relatados em outro depoimento:
Com respeito ao conhecimento que elas tem (com relação a prostituir-se), existe uma
conscientização, não digo de todas elas, mas sabem que existem doenças silenciosas. Por
isso, ou você está desesperada e tá precisando de muito dinheiro, então aceita de não
usar camisinha, mas se não, as nigerianas dizem que se os clientes pedem pra não usar,
elas não fazem. Existe um aumento da conscientização Assim relata a Unidade de rua
[Testemunha, T2, Caritas]
[…] Na minha experiencia, acontece muito de ouvir as estorias destas mulheres que falam
de varias experiencias de interrupção da gravidez, feitas também em modo clandestino,
sem uma estrutura hospitaleira, mulheres que contam que tiveram quatro, cinco, seis,
oito, dez abortos (Testemunha, T6, Assistente Fanon]
29
Dizer não, no então, nem sempre é suficiente porque, as garotas contam que, muitas vezes, a camisinha
fura, ou então casos de clientes que tentam tirar a camisinha sem que a garota perceba:
Tinham uns idiotas de merda que tiravam a camisinha sem que você percebesse [Estorias
de vida, Moldava, D2]
[…] Mas eu nunca fiz sexo sem camisinha, é que muitas vezes, ela fura, furo porque o
cliente quer fazer com força, não sei como explicar, mas muitas vezes fura [Estorias de
vida, Nigeriana, D5]
Sim, uma vez, em 2010, a camisinha furou. Eu trabalhava em Novara, o cara era um
marroquino, eu acho, e eram em dois amigos, e levou eu e uma amiga pra casa. A
camisinha furou, e ele.. Sim, sim, ele gozou dentro. Eu disse “não”, e ele disse que se não
deixasse, ele não levaria nem eu nem minha amiga de volta pra Novara. Porque, na
verdade, ele nos levou pra Trecate, perto de Novara. Depois deixou a gente na estrada em
Trecate. Caminhamos a pé até achar uma carona. Naquele mês, ou um mês depois, eu não
lembro, não descia. Daí uma amiga me deu um remédio pra tomar, mas eu não tinha dito
nada ainda à pessoa que me trouxe pra cá, porque, se digo, ela vai pensar que eu to com
um “black boy” aqui dentro. Elas são assim.. [Estorias de vida, Nigeriana, D6]
Este ultimo depoimento, fala sobre um cliente que continua a relação mesmo com o preservativo furado
(causando uma gravidez indesejada) e não paga, pede de volta o dinheiro e deixa na estrada, longe do lugar
de trabalho, seja a garota, seja a sua amiga, e eis que é introduzido o quarto fator de risco: a violência de
gênero Violência não só de quem explora, mas também de muitos clientes, os quais agem com violência
contra as mulheres que trabalham na rua pois são mulheres prostitutas
Tinham uns clientes gentilíssimos, eram muito educados, mas também tinham uns bem
babacas, uma vez me roubaram até o celular, e me bateram também. Um cara idiota, e eu
tinha acabado de tirar os pontos da cirurgia [Estorias de vida, Moldava, D2]
[...] Tem muitos que veem pra pegar droga, outros veem pra transar, muitos que se
drogam, depois transam e ainda roubam o nosso dinheiro, batem na gente, levam tudo,
bolsa e tudo mais, e vão embora com o dinheiro. Eu sempre choro, choro. Vou pra casa e
conto pra minha cafetina, que o cara pegou a droga, a minha bolsa, me bateu e foi
embora. E daí minha cafetina me bate mais ainda porque eu deixei a droga na bolsa... e
por muitas outras coisas, quando drogados, esses marroquinos que bebem álcool, eles
vem pra rua, e quando você acaba de transar com eles, eles pedem o dinheiro também. E
se você diz “não, não posso”, já tem um com um pedaço de pau assim (e faz o gesto de
quem bate com um bastão, ndr). Tem um drogado que eu atendo na rua, e depois de duas
horas transando, eu não fiz nada, só disse “ to cansada disto, posso ir embora”! E ele “eu
não posso te levar agora, fica comigo até eu acabar tudo!” e eu disse, “já fiquei duas horas
com você, to cansada, deixa eu ir embora!” e o senhor pega a pistola e mostra pra mim,
“se você for então vai morrer agora”, então eu disse “ok” e fiquei lá Depois eles foram
embora e ainda levaram todo o meu dinheiro.. e você encontra tanta gente assim... da
vontade de sair batendo [faz o gesto de quem vai dar um soco, ndr] [Estorias de vida,
Nigeriana, D4]
30
Na rua se vê de tudo. Por exemplo, tem aquele que é bom, como uma vez que eu estava
trabalhando na rua, veio um homem que tinha me visto, viu que eu estava ali já há um
tempo e nada, e se não trabalho, depois quando chego em casa, é sempre um drama, eu
choro.. daí esse homem veio, não fez nada, viu a minha situação, e me deu 100 euros,
assim, sem eu precisar fazer nada pra ele, e me falou pra ir embora pra casa. Cem euros
assim, por nada. Ele era bom. Tem gente assim, mas também tem gente que, não só
comigo, porque eu tenho também uma amiga que, antes a gente trabalhava juntas,
próximas uma da outra. Um homem levou ela, e bateu nela e depois ele.. roubou tudo,
dinheiro, celular. Comigo também aconteceu uma vez em Novara, saí com um homem, ele
bateu na minha cara, depois pegou todo meu dinheiro, celular também, tudo. O motivo
porque eu estou cansada de trabalhar com isso, é porque uma amiga minha morreu,
mataram ela na estrada ali, e a pessoa que tinha saído com ela, tinha chegado em mim
antes, imagina se eu tivesse saído com ele, talvez seria eu a vitima … entende? [Estorias de
vida, D6, Nigeriana]
Como sabemos, a categoria dos clientes do mercado do sexo – cujo aprofundamento se encontra no quarto
capitulo desta pesquisa – é muito heterogênea, e é potencialmente representada em uma linha que vai
desde o cliente respeitoso àquele violento, passando pela figura, não menos ambivalente, do cliente
“salvador”. Nem todos são violentos, mas o próprio fato de que a violência represente uma constante nas
experiencias narradas pelas mulheres que trabalham na rua, nos faz refletir como, e questiona os modelos
culturais que são cenários para tais dinâmicas, através da ligação aos processos de construção social do
homem, da mulher, das relações entre os gêneros e da diferença entre “mulheres de bem” e “mulheres
indignas”
1.3.7. A prostituição em locais fechados. Apartamentos e bares
O cenário da prostituição no apartamento é mais heterogênico em termos de desempenho, custos e
protagonistas. Existe também uma hierarquia muito clara entre as trabalhadoras do sexo, as quais se
dividem em (Costantini, 2010):
1) escort de luxo – tarifa por tempo, a qual inclui a experiencia em si (noitada, jantar) além do ato sexual,
tarifa a tempo, chamada pelos clientes de “girlfriend experience”;
2) acompanhantes escort, chamadas também de “hostess” ou “modelos” – mulheres biológicas ou
transexuais que podem contar com uma agencia de intermediações – a tarifa é sempre por tempo e o
serviço sexual pode acontecer em casa ou na casa de clientes ou em apartamentos dedicados a isso;
3) escort, também chamada pelos clientes de “apartamento”, ou “loft” - cuja tarifa depende do serviço
prestado, como as prostitutas de rua que os cliente definem “on the road”.
Os grupos criminosos envolvidos na exploração da prostituição, muitas vezes transnacional, são formados
por romenos, albaneses, moldavos, ucranianos, sul americanos, e chineses, assistidos em atividades de
apoio organizada por agencias ou indivíduos (incluso os italianos). Normalmente, no segundo ou terceiro
nível de hierarquia é que encontramos formas mais ou menos pesadas de exploração: no caso das
acompanhantes escort existe uma exploração quando existe a intermediação de uma agencia, enquanto
que, no caso das “garotas de apartamento” o mesmo acontece devido à presença de outras pessoas
desconhecidas no apartamento.
Também nos bares, assim como nos apartamentos, o nível de exploração é variável, principalmente nos
locais a consumo interno (Costantini, 2010), e as prostitutas aliciadas são trabalhadoras que chegam de
outros setores do mercado, como a rua ou o apartamento, por vezes com um baixo poder contratual, além
de serem transferidas com frequência
A alta rotatividade das prostitutas, no entanto, é um dado constante nos diferentes setores do mercado do
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sexo – rua, apartamentos, bares – usada como um instrumento pelos exploradores, não só pra satisfazer os
gostos dos clientes, mas também para desviar ações de fiscalização e evitar que as garotas se tornem
potencialmente autônomas, construindo relacionamentos de confiança com os clientes ou com outras
realidades existentes no território
As variáveis que ajudam a definir a qualidade do processo migratório, bem como a prostituição, são muitas
– idade, proveniência, características das redes ligadas ao trafico de pessoas, tipo de contrato concordado
com o traficante, redes de apoio no país de destino, presença ou não de documentos, conhecimento da
língua, etc. - e por si só, o setor de mercado em questão não diz nada sobre a presença ou não de
exploração, e/ou escravidão Na rua, assim como nos apartamentos e bares, se encontram, portanto, graus
de liberdade muito diferentes (Abbatecola, 2012).
Até alguns anos atras, nos apartamentos, trabalhavam principalmente garotas brasileiras, colombianas e
sul americanas, hoje em dia só tem romenas, polacas e outras garotas do leste europeu. Não tem mais
tantas nigerianas, visto que africanas e de pessoas cor, são consideradas como “mercadoria de segunda”,
como, de fato, se percebe pelas baixas tarifas cobradas. Um dos entrevistados atribuiu essa diferença do
“valor de mercado” baseando-se num fator puramente estético, mas o autor acredita que essa diferença
dependa, na verdade, de uma cultura dissimuladamente racista – embora não o admita – onde a dicotomia
preto-branco define hierarquias precisas.
As modalidades de aliciamento são iguais. Há um fator estético a ser considerado. Nos
apartamentos, as garotas são definitivamente mais... não tem nigerianas, pois são as
menos populares, são as que custam menos e, fisicamente, não estão à alteza de … é um
dado a ser considerado [Testemunha, T1, ONR]
Existe uma hierarquia seja na rua, no nightclub e nos apartamentos, sendo que estes últimos representam
um setor do mercado onde as tarifas são mais elevadas, pois a mercadoria é “de qualidade”. No entanto,
não são segmentos fechados, são comunicantes de tal modo a não ser considerado como necessariamente
definitivos:
Sob alguns aspectos, o circuito do trafico de pessoas, é diferente (entre apartamento e
rua), pessoas e etnias bem diferentes, no entanto, em parte é igual, pois as romenas estão
seja nos apartamentos que nas ruas. Existe uma escada pra subir e uma pra descer: se as
garotas que estão nas ruas conseguem se emancipar, são agradáveis e já tem uma
clientela, elas vão pro apartamento. As garotas que trabalham nos nightclubs e que não
aguentam mais, porque não é nada fácil trabalhar ali. Muitas vezes, elas perdem mais do
que ganham, pois elas tem que fazer os clientes beberem, tem que fazer toda uma serie
de coisas e, se não fizer fizer nenhum programa, no fim da noite, quando for acertar as
contas com o patrão, vai ganhar pouco, e nem todas as garotas querem fazer um
programa para o patrão, usando o seu cliente; muitas vezes, estas garotas lutam para não
pagar o fato de estar em um nightclub, pois tem que ficar ali o dia todo e custa tanto.
“quantas garrafas você fez o cliente beber?... então vou descontar da tua paga”. As vezes,
as que não saíram com nenhum cliente, arriscam não ganhar nada mesmo, existe um
controle muito rígido, pois muitas delas tem contrato de dançarinas, mas sendo
extracomunitárias, lhes é concedida uma autorização de permanência com validade de
duas semanas, então, existe esse forte controle por parte dos exploradores, pois eles
poderiam virar e dizer: “vou te demitir semana que vem”. Então, eles tem um controle
muito forte sobre a garota, por isso, muitas delas escolhem ir pros apartamentos ou pra
rua, existem situações também que dos apartamentos, vão pra ruas. Por exemplo, neste
período de crise, se você conhece o apartamento você vai; o apartamento é um circuito
muito mais discreto e desconhecido do que a rua, e então, tem garotas que estão em
apartamentos, mas descem na rua pra ganhar mais. Então, se trata de uma estrada que
sobe e desce, mesmo os circuitos sendo diferentes [Testemunha T1, ONR]
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As redes que controlam os apartamentos, nos conta uma testemunha, não são diferentes daquelas que
controlam a rua, embora a organização da prostituição nos apartamentos tem uma estrutura mais
complexa, se trata, na verdade, de níveis de comunicação diferentes e não exclusivos (podem trabalhar na
rua e no apartamento no mesmo período) :
[…] A garota bonita que já tem a sua clientela formada, sempre de acordo com seu
namorado-explorador, decide sair das ruas. Faz sua propaganda através da internet e
trabalha só com hora marcada [Testemunha T8, Policia Local]
Os apartamentos, portanto, representam um circuito aparentemente privilegiado do mercado, em relação
ao da rua, mas a diferença na qualidade das condições de trabalho custa caro pras garotas exploradas,
sujeitas a níveis de controle mais rigorosos e redução de oportunidades de escapar.
1.4. A pesquisa na Romênia
1.4.1. Mudanças. 2007, o ano da virada
Também na Romênia, as pessoas entrevistadas como testemunhas privilegiadas, indicam o ano de 2007
como o “divisor das águas”. A entrada na Comunidade Europeia trouxe profundas mudanças: desde então,
atravessar a fronteira ficou mais fácil, e isso pôde, de qualquer forma, forçar as redes criminosas a rever as
próprias estrategias de aliciamento, tornando-os mais “suaves.”
Não tenho certeza se se trata de um fenômeno em crescimento ou em diminuição.. mas
acho que o trafico está mais visível Agora, obviamente, é mais fácil atravessar as fronteiras
usando somente o documento de identidade. Por outro lado, nos outros países europeus,
existem importantes assentamentos romenos e, imagino que existam redes criminosas já
bem organizadas e estruturadas. Sei que hoje se fala de novas tendencias, e de um
aliciamento mais suave, assim como as formas de exploração, baseadas mais no abuso
emocional e na manipulação ao invés da violência física Mas se eu tiver que me basear
nos casos tratados por mim ou por outras organizações, os métodos de aliciamento e as
formas de exploração variam muito. Nós trabalhamos com mulheres exploradas mas,
ultimamente, tem vindo sempre mais pessoas do sexo masculino, vitimas do trafico de
pessoas, obrigados a cometer crimes, a pedir esmola ou são explorados no mercado do
trabalho (Testemunha, T1, Al., Psicologa).
Antes de 2007, ano em que a Romênia entrou para a Comunidade Europeia, os métodos
eram baseados na violência, nos raptos e sequestros, embora esses métodos não sejam
completamente desaparecidos. Depois de 2007, observou-se uma sofisticação nos
métodos, passando da força física para um constrangimento a nível emocional. O ponto
crucial desta manipulação psicológica e emocional é a vulnerabilidade do gênero
(Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
Existe uma tendencia para uma especie de “acordo” entre o explorador e a vitima, uma
especie de “consenso”, por exemplo, no que diz respeito à pratica da prostituição dentro
de certos limites legais; os exploradores encontram o jeito certo para “convencer” as
33
garotas e, num certo sentido, elas não se sentem exploradas (Testemunha, T5, OCO,
Funcionaria Operativa).
Os exploradores usariam, hoje, a manipulação emotiva e psicológica, para convencer as garotas a cumprir
as regras, tornando-as cúmplices e pouco cientes do nível de exploração ao qual estão sendo submetidas,
esta representação do fenômeno também foi evidenciada em entrevistas feitas na Itália e na Espanha.
As fronteiras não são mais um problema, as redes tornaram-se mais móveis.
Uma outra mudança consiste no fato de que as redes criminosas pararam de
atuar em um único país... agora atuam em mais países, buscando destinações
menos conhecidas, mas que tem grande procura. Por exemplo, tendem a
deslocar-se da Espanha para o Reino Unido, ou da Itália para a Suíça, e aos países
do norte (Testemunha, T5, OCO, Funcionaria Operativa).
Enquanto que, até a primeira metade dos anos 10 do seculo XXI, as garotas repatriadas para a Romênia
vinham, principalmente, de países como a ex-Iugoslávia, a partir de 2004-2005, as metas principais
começaram a ser a Itália e a Espanha, seguidas, nos últimos anos também, pelo Reino Unido, Alemanha e
outros países do norte da Europa.
Se, no inicio, quando comecei a trabalhar, a maior parte das vitimas vinham da exIugoslávia, a partir de 2004-2005, a Espanha e a Itália começaram a se tornar países de
destino para a exploração sexual, e continuam sendo as principais metas; por outro lado,
mais recentemente, os países do norte da Europa representam novas metas, e aumentou
também o trafico interno de pessoas para fins de exploração sexual (Testemunha, T3,
GSA, Presidente Associação).
Embora Itália e Espanha continuem sendo principais metas de destino, as rotas foram
mudadas. Em 2011 e 2012 apareceram novos destinos, mais atraentes, como o Reino
Unido e a Alemanha, os países do norte, não muitos, a Bélgica inclusa. No entanto,
continuamos a falar de Espanha, Itália e Grécia (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora).
Um novo dado relevante, está relacionado ao fato que a Romênia, de país de origem, passou a ser país de
destino, com novos casos de exploração sexual envolvendo garotas da Moldávia
Acredito que o fenômeno do trafico de pessoas tenha aumentado desde quando eu
comecei a trabalhar nesta área Apesar de a Romênia ser um país de origem, tornou-se
também um país de destino para as vitimas de exploração sexual, provenientes da
Moldávia (Testemunha, T3, GSA, Presidente Associação).
O trafico interno de pessoas – em aumento – envolve garotas cada vez mais jovens, às vezes muito jovens
(12, 13, 14 anos), as quais são “testadas” e selecionadas no mercado interno, assim, as “melhores” são
direcionadas aos mercados externos, assim que atingirem a maioridade.
34
As vitimas são cada vez mais jovens (12, 13 o 14 anos…menores). Estas menores são
primeiramente exploradas no mercado interno – uma especie de treinamento e processo
de aprendizagem, apoiadas e encorajadas pelo explorador que, faz de maneira que ele se
torna “protetor” delas, uma pessoa que cuida delas – e as melhores são “promovidas”
para o trafico externo e continuam a serem exploradas também no exterior. (Testemunha,
T5, OCO, Funcionaria Operativa).
Essencialmente, quando falamos de trafico externo de pessoas, falamos de pessoas
adultas, pois, por lei, é mais difícil fazer um menor de idade atravessar a fronteira. Como
modelo, algumas das vitimas adultas exploradas no exterior foram anteriormente
exploradas na Romênia por muitos anos, quando eram menores de idade, para depois
“mudar-se” para o exterior uma vez que elas tenham atingido a maioridade (Testemunha,
T1, Al, Psicologa).
Sobre os garotos explorados, temos pouquíssimas informações, exceto que se trata de menores de idade,
geralmente “alugados” por uma semana por clientes homens.
Se observarmos a situação dos homens (garotos) explorados, as pesquisas nos mostram
que se trate, principalmente, de menores de idade. As entrevistas feitas na Itália,
mostraram que a forma de exploração dos garotos é diferente das garotas. Nos falaram de
situações nas quais os “clientes” podem “alugar” um garoto por uma semana,
hospedando o garoto em questão na própria casa e fazendo com que ele se torne
disponível o tempo todo para realizar eventuais desejos sexuais. Também neste caso, o
cliente é do sexo masculino. Portanto, seja no caso das garotas que dos garotos,
encontramos um elemento comum: o cliente do sexo masculino (Testemunha, T4, LA,
Pesquisadora).
No caso de garotas menores de idade, existe muitas vezes, a cumplicidade da própria família – a qual
recebe uma gratificação econômica. O período da exploração no território nacional é utilizado pelo
explorador para construir uma relação de confiança e para inculcar, gradualmente, a ideia de um futuro no
exterior como um objetivo tentador.
Eu tive que lidar com casos em que as famílias eram conscientes do fato que a filha deles
era vitima de exploração e aceitavam a situação em troca de dinheiro (Testemunha, T7,
MB, Assistente Social).
Se se trata de menor de idade, os documentos são falsos, e existe a cumplicidade da
família buscando criar uma relação de confiança entre o menor (garoto ou garota) e o
estranho. Mas, por esse motivo, os menores são explorados primeiro na Romênia, para
consolidar a relação entre o explorador e a família (que normalmente recebe uma
gratificação econômica se a filha/o filho trabalham bem), e para construir esta relação de
confiança (projeto de vida juntos), enquanto a ideia de ir trabalhar no exterior é inculcada
gradualmente... com promessas de maiores ganhos, melhores oportunidades, mais
dinheiro para a família.. até elas atravessarem a fronteira (Testemunha, T5, OCO,
Funcionaria Operativa).
35
1.4.2. Organização das redes e estrategias de aliciamento
Os exploradores são geralmente compatriotas, organizados em grupos fundados na família, que agem com
ajuda de apoios locais e cúmplices localizados por todo o território Os papeis são claramente divididos e
nada parece ser nada improvisado ou feito por acaso. Um dado importante é que, às vezes, na rede
criminosa, estão envolvidos também a família da garota explorada ou até mesmo o marido.
[…] Parece que ser vendida ou explorada pelo marido ou por alguém da família, não seja
uma exceção (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
A própria noção de trafico de pessoas pressupõe a existência de um grupo organizado.
Estes grupos podem agir a nível nacional ou internacional, e podem incluir membros da
própria família, e até membros da família da vitima. Tivemos casos em que os
exploradores eram os próprios pais da vitima (Testemunha, T6, MM).
Falando da Romênia, os grupos são bem organizados, muito familiarizados com o sistema
de trabalho, o que fazer, quem procurar, como usar discrição no exterior, e como se
infiltrar sutilmente na vida das potenciais vitimas; são muito bem organizados a nível
nacional, contam com apoios locais. Existem muitos casos onde, infelizmente, as pessoas
da família fazem parte da rede (Testemunha, T7, MB, Inspetora de Policia).
[…] As vezes, os exploradores vem do circulo interno de amizades, da família ou de um
grupo de pessoas que a vitima conhece. Por exemplo, nas redes podemos encontrar uma
família inteira envolvida no trafico de pessoas (Testemunha, T9, B., Policia).
O racket criminoso é organizado como uma rede, mesmo nos países de destino, com divisões das funções
das tarefas, a fim de garantir um deslocamento eficaz pelo território e uma gestão estratégica do
contrabando de migrantes e do trafico de pessoas.
Podem ter quartel general deles em Londres, mas a exploração pode ocorrer em outro
lugar. Coordenar tudo de forma centralizada torna mais fácil para garantir o tempo
necessário para que a vitima se acostume com o que esta acontecendo, e para segurar as
rédeas de toda a operação (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora).
O aliciamento é realizado, portanto, por pessoas – homens ou mulheres – diretamente envolvidos na
exploração. Todas os depoimentos recolhidos, seja na Romênia que na Itália, convergem para descrever
quem pratica o aliciamento como uma pessoa próxima, presente no circulo social da vitima – conhecido,
vizinho, amigo, namorado, parente, etc-. Ou então uma pessoa dotada de grandes capacidades
manipuladoras e capaz de se infiltrar na vida da garota, buscando ganhar sua confiança.
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O aliciamento é feito por homens ou mulheres, membros da família, ou então um amigo
da escola, ex-colega, etc., pessoas da comunidade que tem um determinado papel na
mesma; pessoas que voltam do exterior com uma situação econômica muito melhor e que
aliciam pessoas. Neste ultimo caso, funciona como um exemplo positivo, estoria de
sucesso! A estoria de sucesso ainda cola por aqui! Em muitos casos, as famílias sabem
quem é a pessoa... daí, devagarinho, e com jeitinho, esta pessoa consegue se tornar um
amigo de confiança da família, sempre disponível e que promete coisas. Por isso, a vitima
em potencial não espera o pior de uma pessoa assim tão boa e confiável (Testemunha, T1,
Al, Psicologa).
Um dos pontos fortes de quem alicia consiste em convencer, a garota em questão com estrategia e
paciência, a participar do projeto migratório: entram na vida delas, procuram descobrir seus pontos fracos
e suas necessidades, se aproveitam de seus desejos – dinheiro, afeto ou ambos – fazendo de maneira que
pareça que a “escolha” de sair do país seja delas, como se elas tivessem tido a liberdade de decidir isso,
apesar de o que foi prometido, nunca corresponde à realidade:
Descrevem uma situação a elas completamente diferente do que elas encontrarão, dão a
impressão de total liberdade de escolha em relação a aceitar ou não a incrível quantidade
de dinheiro que sempre faz parte da situação descrita (Testemunha, T1, Al, Psicologa).
São duas as principais estratégias de aliciamento: oferecendo um emprego atraente e bem remunerado, ou
fingindo em ser o “príncipe” encantado.
No primeiro caso, quem alicia conhece muito bem as dificuldades e as necessidades da garota, e se
aproveita disso, oferecendo soluções sob medida. Para confundir a garota, eles as apressam, forçando-as a
decidir rapidamente, sem um tempo para pensar com calma ou informar-se sobre a veracidade da
proposta.
Notamos que a oferta de um emprego muitas vezes é feita por pessoas próximas à vitima,
uma pessoa de confiança, que conhece bem as necessidades da garota e lhe propõe um
trabalho que se encaixa exatamente com o que ela precisa. Ele diz, por exemplo: “sei que
você quer que tua mãe tenha o melhor tratamento do qual ela precisa, aí eu achei este
trabalho pra você. Você vai se sacrificar, vai pro exterior, trabalha lá por alguns meses e
você vai conseguir o dinheiro para curá-la, ajudá-la” Ou então, “Eu sei que você gostaria
que teus irmãos continuassem a frequentar a escola, então eu encontrei a melhor solução
pra te ajudar”. Assim, quem alicia, parte do problema que conhece. Além disso, dá pouco
tempo para a vitima se decidir: “tem que me dar a resposta até amanha”, ou “tem que
decidir até segunda-feira, caso contrario, alguém vai tomar seu lugar, principalmente nos
dias de hoje, que muitas pessoas estão desempregadas”. Fazem muita pressão, e as
aconselham a não dizer nada a ninguém e de não ir atras de outras informações
(Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
A oferta é sempre tentadora e decisiva, no que diz respeito a um problema contingente (o tratamento de
um parente doente, o dinheiro para os estudos, etc.), e essa pressa de ter pouco tempo pra decidir (“pegar
ou largar!”), induz facilmente à decisões precipitadas tomadas sem um maior aprofundamento, sem poder
buscar maiores informações
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Além disso, as vitimas aliciadas provem de áreas pobres, vulneráveis, onde as pessoas
estão desesperadas, e uma simples promessa já é suficiente para aceitar qualquer coisa,
sem fazer perguntas, apesar de que os trabalhos propostos não exigem qualificações
(Testemunha, T9, B., Policia).
As propostas de trabalho adquirem credibilidade especialmente à luz da atual crise econômica e da
numerosa quantidade de compatriotas que vivem fora do país .
Acredito que a principal forma de aliciamento seja a falsa promessa de emprego, tendo
em conta que, a oferta de migração de trabalhadores pareça muito mais plausível,
especialmente na atual crise econômica na Romênia em comparação com outros países
ocidentais onde a situação parece ser melhor. No momento, são mais de 3 milhões de
romenos que trabalham fora do país e que devem encontrar um emprego. Por isso, o fato
que alguém tenha amigos ou conhecidos que já trabalham no exterior e que possam
ajudar a achar um emprego em um outro país é bastante credível, mas as vitimas
descobrem a verdade só mesmo quando chegam lá E onde acontece o aliciamento?
Acredito que em qualquer lugar, no campo, na cidade (…) O perfil é o de migrante romeno
que, no caso das mulheres, significa um nível de escolaridade não elevado (ensino médio
ou no máximo, ensino superior). A vulnerabilidade consiste no fato que a pessoa que
recebe a oferta normalmente não suspeita de nada, devido ao ambiente em que vive
(família desestruturadas ou ausência de alternativas na própria comunidade). Mesmo se
algo não parece convincente, será sempre melhor do que eles têm em casa. De uma certa
maneira, aceitam a ideia que, uma vez ali no país de destino, elas vão poder administrar a
situação à modo delas, ou então que “o diabo não é tão ruim como parece” (Testemunha,
T4, IA, Pesquisadora).
A segunda estrategia de aliciamento é a do “príncipe encantado”, do “homem perfeito”, que entra
gradualmente na vida da garota, aproveitando-se do seu desejo de amar e ser amada.
Conhecemos casos de garotas traficadas onde o aliciamento durou meses, durante o qual
o comportamento dele era “perfeito”, muito focado nas necessidades de afeto da garota e
esperando um dia ser capaz de melhorar a sua situação, graças a este novo homem que
vai resolver tudo. Sabemos de “namorados” que prometiam construir juntos um futuro no
exterior, onde encontrariam dinheiro para voltar para a Romênia, comprar uma casa, ter
uma família, filhos. Uma vez fora do país, porém, eles diziam à garota que ela tinha que se
prostituir, pois as coisas não estavam indo como deveriam, pois ele não estava
conseguindo achar um emprego, e então ela teria que “se vender” para salvar a relação,
pra salvar ele e ela mesma e continuarem a viver ali. A mensagem era que a mulher teria
que se sacrificar para poder continuar vivendo juntos, com a promessa de que ninguém
viesse a saber; ela seria considerada uma heroína e teria salvado a situação, e nada
poderia comprometer seu relacionamento. A estrategia do “príncipe encantado” ou do
“homem perfeito” parece ser muito comum (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
No caso da oferta de emprego, o aliciador/explorador, conhecendo muitos detalhes e vulnerabilidades da
vida da garota escolhida, usa sua competência e habilidade manipulativa, aproveitando-se desta
vulnerabilidade. Neste sentido, as famílias problemáticas, onde existe essa lacuna de afeto, são ótimos
alvos do aliciamento.
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A segunda estrategia é aquela do namorado, figura ainda utilizada, um pouco menos com
respeito aos anos passados; o explorador, como um bom psicologo, sabe bem quem
escolher e procura jovens moças e rapazes vindos de lugares onde há carência de afeto
familiar, onde não recebem atenção, onde o contexto social distorcido faz com que a
potencial vitima esteja a procura de afeto, amor e atenção em outros lugares, com outras
pessoas (Testemunha, T7, MB, Assistente Social).
[…] Estórias marcadas por situações de abuso, violência, ou situações de desigualdade de
gêneros no contexto familiar, embora nem sempre se trate de casos de extrema violência
ou abuso. Sabemos de casos de negligencia, que induzem crianças, principalmente as
meninas, a nunca estarem satisfeitas com os próprios desejos emocionais, e a cultivar um
baixo grau de autoestima e uma grande desvalorização de si mesma (Testemunha, T7, MB,
Assistente Social).
Naturalmente, o conceito de vulnerabilidade esteve sempre incorporado na sociedade, nos modelos
culturais e nos processos de construção social da feminilidade e da masculinidade. E então, para melhor
entendermos as dinâmicas e as formas de exploração, pode ser útil entender como o contexto cultural
consegue dar forma e criar desejos, expectativas, ilusões com respeito às possibilidades, com respeito a si
mesmo, ao seu próprio valor. O amor, por exemplo, é um sentimento natural e transversal, mas não
neutro. É a sociedade quem define, no espaço e no tempo, as suas características: o que é ou não o amor;
quais são os amores legítimos e quais aqueles ilegítimos (portanto, puníveis); que lugar que o amor ocupa
em sua própria definição, e nos percursos de vida de homens e mulheres; que os modelos dos papeis de
uma casal em seu relacionamento são prescritos de acordo com o gênero a que pertencem. Com respeito a
isso, uma das entrevistadas aponta, com perspicácia, que:
Parece que a promessa de amor feita pelo explorador, mesmo em situação de exploração,
funcione, e isto tem a ver com a dimensão do gênero. O amor é o desejo mais importante
para uma garota, e a mensagem que o amor é importante é continuamente transmitida
pela mídia, qualquer tipo de amor, sem antes se questionar se a outra pessoa é a pessoa
certa ou se ela pode te machucar; muitas vezes, o explorador usa esse tipo de argumento:
“te amo, não posso viver sem você. Fica! Não vá embora!”. Para “prender” a pessoa,
fazem chantagem emocional (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
Às garotas, futuras mulheres, ensinam que o amor é importante e que deve vir estar acima de qualquer
coisa. O amor é importante também porque um homem vai poder te proteger e te ajudar nas dificuldades
da vida, e isso poderá ser feito somente por um homem forte e confiante.
No caso do aliciamento, o aspecto do gênero é muito importante, principalmente se
pensarmos na educação das garotas: pouca importância é dada ao nível de escolaridade, e
grande importância é dada ao objetivo de encontrar um homem que as proteja, um
marido forte, capaz de proteger a mulher. Enfim, o sucesso de uma garota é medido na
sua capacidade de encontrar um bom homem, o homem certo, e se tornar uma boa dona
de casa, uma boa esposa e boa mãe As mais jovens não são tão convencidas de conseguir
cuidar de si mesmas, de ser independentes e confiantes em si próprias; se prefere projetar
esse poder/força para o pai, o irmão, um homem, do que tentar convencer as garotas que
elas são capazes de mudar as próprias vidas, de serem independentes e capazes de cuidar
de si mesmas (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
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A ideia de que a mulher é o sexo frágil, não independente e necessitada de amor e de proteção masculina,
foi criada pela sociedade e reproduzida e fortalecida no âmbito familiar, especialmente naquelas famílias
onde a divisão de papeis era fortemente marcada, tradicionalmente e desigualmente.
Em famílias onde os papeis de homens e mulheres são muito diferentes, ou seja, famílias
em que a mãe parece ter pouco poder de decisão, muitas vezes, ela própria é vitima de
violência, às vezes até extrema violência física; onde o pai é a figura autoritária que toma
decisões, que dá ordens aos outros membros; onde, se o pai vai embora ou morre, o seu
papel é imediatamente assumido por outro homem da família, o irmão mair velho ou o
novo companheiro da mãe (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
Enfim, os processo de construção social da identidade feminina são também moldados pelas mensagens
transmitidas pelos meios de comunicação, segundo as quais, a juventude, a beleza e a sexualidade seriam o
único poder verdadeiro de negociar que as garotas têm nas mãos
Existe um forte processo de sexualização das garotas transmitido tanto pela TV como pela
sociedade […] As garotas são socializadas para se ver como objetos sexuais, como se
tivessem valor só nesse setor, e se a família reforça essas mensagens, a vulnerabilidade ao
trafico de pessoas, aumenta, porque, infelizmente, a exploração sexual é vista como uma
coisa normal (Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
O aliciamento é, portanto, facilitado pelos modelos educativos que induzem as garotas a irem buscar o
amor – de um homem forte que as possa proteger e cuidar – e a considerar o próprio corpo e a própria
sexualidade como objeto de desejo e, então, apostar no seu poder de se vender.
Então, quando você é socializada à ideia de que o amor é importante e de que a tua
sexualidade é uma importante arma, talvez até a única arma que você tem, fica fácil se
transformar em objeto de uma estrategia que age a nível emocional. Muitas das garotas
entrevistadas e muitos especialistas apontaram que as garotas queriam ir embora de casa,
das condições de vida difíceis, seja por via da violência que sofriam, seja porque eram
obrigadas a começar a trabalhar muito cedo para ajudar a sustentar a família
(Testemunha, T2, LA, Diretora Centro).
Sem dívida, estes modelos não são, por si só, fatores determinantes, mas sim facilitadores, principalmente
na presença de outros fatores de vulnerabilidade, como as dificuldades sócio-econômicas, a ausência de
relações afetivas significativas e saudáveis dentro da família, ou também, a incidência de situações de
abuso psico-físico-sexual Como já visto antes, de fato, o explorador é:
[…] Um bom psicologo, investiga e analisa as potenciais vitimas, identifica as
vulnerabilidades para depois, com paciência e competência, beneficiar-se (Testemunha,
T3, GSA, Presidente Associação).
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Das entrevistas realizadas na Romênia, assim como nos outros países parceiros, surge a importância do
papel da internet no aliciamento destas garotas, e a importância deste instrumento parece estar
relacionada com ambas estrategias: a oferta de trabalho, assim como a tática do “príncipe encantado”
Não temos muita experiencia, mas recentemente, a internet parece ser um método muito
eficaz (Testemunha, T1, A, Psicologa).
Recebemos um e-mail assim:
Achei trabalho em Cipro/
Ótimo, onde encontrou a informação?/
Na internet/
E o que dizia o anuncio?/
“Oferecemos trabalho em um hotel, 2.000 euro por mês. Não é necessário saber a língua
ou ter experiencia” (Testemunha, T9, B., Policia).
No caso de anuncio de emprego, como este descrito no depoimento acima, a impressão que dá é que as
garotas se contentem facilmente com as fascinantes descrições apresentadas, sem se preocupar em saber
mais. Como sempre, porém, depende muito também da capital social e da cultura pessoal, ou seja, dos
recursos sócio-culturais que a garota dispõe, e as mais vulneráveis parecem ser aquelas socialmente mais
frágeis
Acho que existem duas categorias: tem pessoas que pedem mais informações, e isso
depende de que ambiente elas veem. Se a pessoa tem família e possui recursos a serem
mobilizados, então a garota se informa ou, pelo menos, viajam com um minimo de
informações e dinheiro. Assim, se acontece alguma coisa, elas têm a possibilidade de
voltar, fugir, telefonar, etc. Na segunda categoria, estão as pessoas sem recursos, pois a
maioria das pessoas aliciadas são muito jovens, principalmente as garotas, a influencia das
gangues, do grupo, torna-se fundamental, unidas ao desejo e ao entusiasmo de construir
uma vida.. enquanto o perigo/senso de aventura, pode dar um outro sentido ao futuro
delas. Normalmente, as pessoas buscam pouca informação e aceitam a oferta, mesmo
terem ouvido por ai, que podem acontecer coisas ruins. Depende da situação de cada um,
mas a ideia que “não vai acontecer comigo” é muito forte (Testemunha, T4, IA,
Pesquisadora).
Algumas pessoas possuem mais ferramentas para perceber que tem algo errado na proposta recebida,
alguns que tem menos, mas tendencialmente, como disse a testemunha anterior, “é fácil cair na armadilha
do “não vai acontecer comigo”.
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1.4.3. As rotas do trafico de pessoas
As rotas consistem principalmente, mas não exclusivamente, viagens terrestres, a fim de evitar o controle
invasivo nos aeroportos.
Quando os grupos criminosos organizados têm dinheiro, a vitima pode ser transportada
ao exterior de avião, utilizando o aeroporto Henri Coanda Airport; Na maioria dos casos se
utilizam meios terrestres, de varias companhias de transporte; é muito mais fácil pois a
vitima não é exposta aos controles aeroportuários, e tem poucas possibilidades de
procurar e tentar contatar alguma instituição estadual, pois quando se atravessa a
fronteira, não é preciso descer do carro e, normalmente, quem dirige fica também
responsável pelos documentos de viagem. No aeroporto, a fiscalização é maior, e a vitima
pode mais facilmente reivindicar o seu status de vitima (Testemunha, T10, MS, Policia)
O transporte se dá via aérea ou terrestre. No caso dos menores de idade, os exploradores
precisam de uma autorização dos pais, os quais são mais ou menos cientes do que está
acontecendo, portanto, para todos os efeitos, a saída do país é dentro da legalidade
(Testemunha, T6, MM, Inspetor de Policia).
A entrada da Romênia na Comunidade Europeia facilitou a mobilidade geográfica, e nos últimos anos,
parece que as rotas do trafico de moças romenas, alargou os próprios horizontes até incluir também outros
países extraeuropeus como o México, os Estados Unidos e o Canadá.
Baseado em alguns casos tratados nos últimos anos, parece que as rotas se estenderam
também para outros continentes. Por exemplo, pessoas são levadas para a Espanha
(tendo Ibiza como objetivo) – maior possibilidade de deslocamento na Europa, facilitada
depois de 2007 – e de lá, são levadas para o México, EUA e Canada. Até onde eu sei, por
trás disso, ainda existe uma rede ativa e potente na Europa e na América no Norte, muito
difícil de se desmantelar, apesar dos esforços e da cooperação das autoridades
legais(Testemunha, T11, P., Promotor)
1.4.4 Exploração, violência e estrategias de subjugação
A retorica dominante que resulta das entrevistas, parece favorecer uma reconstrução em termos de uma
mudança gradual de formas de exploração baseadas na brutal violência física, a estrategias onde a violência
usada é, essencialmente, psicoemocional, mas não por isso, menos grave.
A violência tende a ser substituída com outras formas de controlo não-violentos Por
exemplo, no caso do namorado, chega o momento em que nasce a necessidade de ter
mais dinheiro, para o aluguel, para a alimentação, para passear e conhecer lugares,
economizar para poder comprar casa.. e assim, ela irá “trabalhar” só até conseguir
dinheiro suficiente.. coisa que não vai acontecer nunca. Ou então, convencem ela a ter um
filho, mas só pra depois usar o filho pra fazer chantagem com ela. Outra forma de
chantagem consiste em gravar os encontros com os clientes para depois chantageá-la,
dizendo que se não obedecer, eles vão mostrar o vídeo para a família, “ assim todos vão
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saber o que realmente você esta fazendo no exterior.. [a violência] consiste mais em
chantagens psicológicas, emocionais, ameaças, violência verbal, medo (Testemunha, T5,
OCO, Funcionaria Operativa).
Atualmente, o controle usando a violência física, não é mais usado; os exploradores usam
mais é um tipo de chantagem psicológica-emocional, e isto dificulta muito a identificação
das pessoas exploradas como vitimas. Um hematoma é visível.. mas um problema
psicológico não é. A vitima sofre violência e chantagem emocional, e ouve sempre que
não vale nada. Claro, a violência física é usada somente quando “necessário”, mas
normalmente os exploradores partem da dimensão emocional (Testemunha, T7, MB,
Assistente Social).
Na realidade, como sempre, o cenário é mais complexo, e a violência parece persistir, embora não
exclusivamente.
A parte da violência extrema persiste, no sentido que, há espancamentos, estupros.. a
violência extrema pode ser utilizada também como exemplo para as outras, para que
continuem a ser mais disponíveis (Testemunha, T4, IA, Funcionaria Operativa).
Usam violência física e verbal, ameaças, privação de alimentos, surras, torturas. Pode até
acontecer de matarem uma vitima para aterrorizar e servir de exemplo para as outras,
para que continuem obedecendo a toda e qualquer ordem. Uma tragedia (Testemunha,
T9, B, Policia).
Mesmo em alguns depoimentos de garotas obrigadas a se prostituir, relatam recorrentes episódios de
violência física:
Era normal. Todo dia me davam ordens, muitas vezes se comportavam em modo
violento.. me batiam sempre por qualquer motivo: ou por não ter trazido dinheiro
suficiente pra casa, ou por não sorrir o bastante.. ou algo que eu fiz. No começo, eu
reagia.. mas logo entendi que não tinha chance. A minha única chance de sobreviver era
obedecer sempre (Estorias de vida, I, RV1).
[…] “Olha.. isso é o que você precisa saber.. vai, tenta.. este homem vai pedir pra você
fazer com ele”... eu gritei “NAO, eu nunca vou fazer essas coisas! Colocar a minha boca no
p--- dele... prefiro morrer!! Vocês me disseram que eu teria que colher uvas, que me
trouxeram pra isso, colher uvas! Se não é assim, então quero voltar pra casa”. O homem
estava agitado.. fechou com a chave, e eu lhe disse que queria ir ao banheiro.. queria sair
pela janela e voltar pra casa. Naquele momento eu percebi... um minuto depois ele me
bateu com tanta força que senti minha cabeça chicotear enquanto eu me chocava com o
armário. “por que, por que?.. vou contar pra minha mãe”. Ele me insultava com todos os
tipos de palavrões e me disse “você vai onde eu quiser!”... eu respondi que não iria. Ele
me deu um soco na boca, sangrava... depois me puxou pelos cabelos e me empurrou pro
carro. Eu gritava, e dizia que ia pular do carro… mas ele imediatamente bloqueou as
portas e, quando eu tentei abrir uma porta, ele disse “olha, se você não se comporta bem,
pego a pistola e te mato”. Eu tentava pensar em um modo de fugir. Estávamos ainda em
pátria, não tinha policia na rua, ninguém podia me ouvir se eu gritasse ou se batesse com
força na porta... eram 5 da manha.. eu continuava a chorar e gritar e, de vez em quando,
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ele se virava e me dava um tapa na cara... então, eu chorava ainda mais.. e chorava…[…]
Me lembro dos primeiros dias, a primeira semana.. saia correndo pelo quarto dizendo que
não queria fazer, e ele me batia. Dai a A. também começou a me bater.. ela me empurrava
para um quarto onde tinha uns homens que me diziam como e o que eu tinha que fazer.
Estes homens davam a grana pra A., e não pra mim... e A. dividia com ele. Era 150 euros a
hora.. A. me ameaçava o tempo todo, me dizendo que deveria estar ali com aquele
homem e fazer tudo o que ele pedisse, do contrario, me castigaria…cortavam os meus
cabelos, faziam cortes nas minhas costas… faziam de mim o que bem queriam […]
(Estorias de vida, A., RV2).
A violência, sempre fortemente presente, é utilizada como estrategia de aniquilação da personalidade, e
tendem a diminuir quando a garota se mostra, finalmente, dócil e confiável:
Normalmente, eles colocam varias garotas no mesmo apartamento. As vitimas sofrem
violência física e são, sistematicamente, humilhadas, a tal ponto que, com o tempo, a
personalidade delas é destruída, aniquilada, e se colocam inteiramente à disposição da
rede – é o que chamamos de Síndrome de Estocolmo. Assim, pouco a pouco, tornam-se
parte da rede, e é provável que as mesmas se tornem aliciadoras. Uma vez demonstrada a
sua plena confiabilidade, as vitimas são organizadas em blocos, e continuam a prestar
serviços sexuais sob a supervisão dos exploradores. Uma boa parte do dinheiro vai pra
rede, enquanto a vitima fica com uma pequena quantia do faturado, mas só depois de ter
pagado o aluguel, alimentação e outras necessidades (Testemunha, T11, P., Promotor).
Eu continuava a trazer o dinheiro pro L., e ele começou a confiar mais em mim, porque eu
tinha me tornado mais obediente, e dava a ele o que ele queria… eu era uma boa menina.
Ele confiava a tal ponto que, um dia, comprou-me um celular que custava 80 euros.. me
prometeu que compraria uns vestidos pra eu mandar pra casa pros meus filhos.. depois
foi embora da cidade... eles tinham um casarão em algum lugar perto de Bucareste, me
falaram… (Estorias de vida, A., RV2).
Os diferentes repertórios da violência também parecem mudar de acordo com o clã, com o nível de
submissão/aceitação da garota, mas também com o tipo de estrategia usada pelos exploradores: mais
emocional, psicológica, e manipuladora no caso dos namorados; mais física, com episódios de
espancamentos, torturas e ameaças, quando quem explora não pretende estabelecer uma relação
sentimental com a garota.
A situação é ligeiramente diferente se a exploração ocorre dentro ou fora da relação de
casal. A exploração na relação de casal, no inicio, não são previstos sacrifícios, ameaça; é
mais uma manipulação emocional, baseada nos sentimentos de ligação entre a vitima e o
parceiro, o qual não é visto como “explorador”, mas como companheiro. Para outras
vitimas.. a violência verbal e as ameaças existem desde o inicio. Hoje eu falei com uma
moça que, de imediato, disseram de quanto era a divida, e quando ela respondeu que não
se submeteria a fazer serviços sexuais, foi então ameaçada de morte, com a sua
tesourinha de unha... portanto, sim, as ameaças ainda são utilizadas, voltadas à família ou
aos parentes, principalmente se a vitima deixou filhos na casa com a
família..(Testemunha, T3, GSA, presidente Associação).
O namorado, principalmente no comecinho, tende a encenar um papel no qual se coloca como aquele com
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o quem passar a vida juntos. A prostituição faz parte dos sacrifícios que a moça terá que passar visando o
bem comum, ou as dificuldades que virão, sacrifícios que são recompensados por ele quando, de forma
inteligente, elenca as diferenças de tratamento em relação as outras garotas que também trabalham no
mercado do sexo.
[…] Usam palavras doces quando fazem a chantagem emocional, quando prometem um
futuro juntos, quando usam comparações do tipo: “eu não te bato como faz o clã X.. eu te
trato melhor.. não te faço trabalhar todas as horas...”, coisas deste tipo, coisas que podem
parecer simples, mas que, visto a situação, deixam a pessoa totalmente sob pressão Ou
então, se você nunca ouviu alguém dizer algo doce em sua vida, de repente, o seu mundo
adquire um novo sentido. Além disso, se você não sabe o que é ter uma família, e daí vem
o teu explorador dizendo que com ele você terá uma família, e que é assim que é a vida..
(Testemunha, T4, IA, Pesquisadora).
Existem também clãs que optam por manipular, estrategicamente, o consentimento das garotas,
prometendo recompensas econômicas e/ou falando pra elas que mandaram dinheiro para a família delas.
Ou ainda, fazendo-as sentirem-se culpadas ou jogando toda a responsabilidade em manter o bem da
família ou da relação pseudo-amorosa.
Existem também redes que optaram por não usar a violência física, talvez até nem tanta
violência emocional, e às vezes, até oferecem às vitimas alguma recompensa, ou dinheiro,
ou fazem em modo com que saibam que eles mandaram dinheiro pra casa delas.. ou
ainda, induzindo a vitima a acreditar que é culpada.. ou que é uma boa menina e de ter
que fazer todo o possível para não desapontar, a partir do momento em que são dadas as
responsabilidades: “você esta fazendo isso por mim, ou pela tua família, ou pela nossa
relação”. Este mix de medo de sofrer violência física e a ideia de ser recompensada e
valorizada, produz um forte efeito... assim, valorizá-la é o melhor método para mantê-la
(Testemunha, T1, Al., Psicologa).
Outras estrategias de subjugação comuns são: o sequestro do documento (de identidade, passaporte), sem
o qual a garota não pode circular livremente, e a divida pelas custos suportados pelos exploradores pelos
diferentes serviços recebidos, bem menor que o valor exigido das nigerianas, mas geralmente sem fim.
Sequestram os documentos e os meios de comunicação, como celular, ou o chip. Daí eles
te explicam que você tem uma divida pra pagar pelos serviços recebidos e a única maneira
para pagar a divida, é trabalhar no lugar prometido, mas que também estão livres para
fazer o que quiserem, uma vez paga a divida (Testemunha, T3, GSA, Presidente
Associação).
Atualmente, os exploradores sequestram as carteiras de identidade, impedindo-os de se
deslocar ou escapar. (Testemunha, T11, P., Promotor).
Depois que chegam, se encontram em uma condição de exploração e pedem para
trabalhar para saldar uma divida sem fim. Em alguns casos, os exploradores fazem a vitima
acreditar que o que elas estão fazendo é ilegal, e que se a policia baixar, é bom que eles
combinem o que dizer para não acabar na prisão. Então, de um modo ou de outro, a
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vitima se convence que é culpada e que deve pagar para que a sua culpa não seja
descoberta… mas a divida não acaba nunca (Testemunha, T1, Al., Psicologa).
A divida – uma divida que nunca será paga!! (Testemunha, T9, B., Policia).
Muitas vitimas não tem nem ideia de quanto ganham por dia, pois recebem pouco
dinheiro, e não ganham o bastante para pagar uma divida sem fim (Testemunha, T5, OCO,
Funcionaria Operativa).
Me amordaçou e me levou pro banheiro, me bateu com violência e me disse: “se fizer de
novo, te mato. Você tem que fazer o que eu mandar porque você ta me devendo 3.600
euros, pois L. pagou esse preço quando te comprou do C. Estava confusa... porque desse
dinheiro... eu não tinha recebido nada, só alguma coisinha que C. mandou pra minha mãe
(Estorias de vida, A., RV2).
1.4.5. Condições de vida e trabalho
Com relação às condições de vida e de trabalho, os depoimentos ressaltam muitos pontos de convergência
seja entre os diferentes tipos de trafico – interno x externo – seja entre os diferentes tipos de trabalho – na
rua ou em apartamentos, por exemplo.
Nos apartamentos onde vivem (e, muitas vezes, trabalham), as garotas geralmente são pouco saudáveis e
sem espaço para si mesmas, por isso, não é raro que muitas delas façam turnos para dormir na mesma
cama ou no sofá
Tivemos que lidar com vitimas que eram exploradas no exterior, mas também vitimas do
trafico interno e nês identificamos alguns elementos em comum. Os exploradores não as
levam para um hotel 4 estrelas. Geralmente vivem em apartamentos sujos, onde são
obrigadas a se prostituir (Testemunha, T9, B., Policia).
- E a casa? Como era o apartamento?
- Eu dormia no sofá e tinha uma grande TV a plasma..
- Quem fazia a faxina?
- Eu…(Estorias de vida, A., RV2).
Em termos de condições de vida em geral, as vitimas não tinham mais o controle de suas
próprias vidas. Geralmente, ficam muitas garotas num mesmo apartamento, que dormem
em colchoes ou poltronas, trabalhando e revezando pra dormir, pensando somente em
estar disponível quando necessário, satisfazer o cliente e ganhar algum dinheiro
(Testemunha, T5, COC, Funcionaria Operativa).
O dia a dia é marcado pelos momentos de trabalho, longos e desgastantes, e por um alto numero de
clientes, essas características são compartilhadas por todas as pessoas que trabalham com sexo e são
exploradas pelos racket, independentemente da nacionalidade ou do pais de destino.
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[…] acordar, comer e se preparar para o chamado “trabalho”... eu tinha que estar bonita e
ficar na vitrine, sorrir e esperar os clientes. O cliente chegava, eu pegava o dinheiro, e fazia
meu trabalho... depois chegava o rapaz e pegava o dinheiro, talvez porque tivesse medo
que alguém sumisse com o dinheiro. Depois de 10-12 horas passadas assim, é que
finalmente, ia dormir, tomar um banho. Esta era mais ou menos a nossa rotina diária
Minimo 10 horas ao dia, e até 15, 20, de fim de semana (Estorias de vida, T, RV3).
- Quantos clientes ao dia?
− Bom, uns 14-15, 16 se eu trabalhasse até tarde da noite.. e se eu trabalhasse das 6 da
manhã às 6 da tarde, eram mais, uns 30... é muito, né?! O L. acariciava meu rosto com
aquela sua mão enorme... eu tinha medo dele... até tentava me ensinar o que dizer aos
clientes, algo como “Hallo, wi gehtsdia”, não vou dizer o que isto significa... mas eu dizia
somente “oi”. Fazia telefonemas para trazer clientes nos apartamentos e escrevia tudo em
um caderno... 400 euros de aluguel. A gente começava de manhã cedinho e parava só
tarde da noite... este era o nosso programa de trabalho... (Estorias de vida, A., RV2).
O controle por parte dos exploradores é constante e serrado, e invade diferentes esferas da vida: a
liberdade de ir e vir, então pode ser impossível só o fato de atravessar a rua, sozinhas, para comprar
comida na vendinha em frente de casa; ter algum dinheiro, dinheiro esse sistematicamente retirado e
controlado após cada programa; a relação com os familiares, os quais poderão ser contatados só na
presença de alguém, que controle tudo o que é falado; a relação com os clientes, de modo que as garotas
são orientadas a não se abrir com eles, mesmo porque, entre eles, pode ser que um seja infiltrado,
mandado de proposito pelo racket para verificar sua confiabilidade.
- Ali perto tinham umas lojinhas e L. comprava comida..
- E você? Alguma vez você saiu pra comprar comida?
- Não, nunca…nunca me deixaram sair pra lugar nenhum..
- Ok, mas pelo menos te perguntavam o que você gostaria de comer?
- Não, não
- Nunca?
- Não, comia aquilo que eles decidiam. Carne ou batata.. compravam muita comida, asa
de frango, porco...
- Eles tinham carro?
- Sim, uma BMW…
- Te levava de carro pro night club ou você ia a pé?
- De carro. Ele levava e depois vinha buscar.
- Entendi, controlava vocês o tempo todo então? Você tinha credito no telefone pra poder
ligar pra quem quisesse?
(7) Só 1 euro quando voltavam pra Romênia.. pra poder chamá-los caso acontecesse
alguma coisa, e eles entrariam em contato com um amigo deles, o B. - que morava perto
da gente – e pedir pra ele ver o que estava acontecendo.
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- Então, podia usar só pra entrar em contato com eles. E credito pra ligar pra tua casa, pra
tua mãe?
- Oh, não
- Você disse que falou com tua mãe uma vez... não falou mais desde então?
- Sim.
- Sempre daquele jeito.. com eles que te vigiam o tempo todo?
- Sim, eram eles que telefonavam pra mim. Diziam que eu tinha que falar só com minha
mãe e de dizer pra ela pra não ir à policia. Fazia um mês que não ligava pra ela, e ela tinha
ido na policia levando a minha foto, e dizendo a eles que era um mês que ela não tinha
noticias minhas e que estava preocupada. Foi também na casa daquela mulher e bateu
nela, e pediu pra ela deixar eu voltar pra meus filhos … depois de um tempo, minha mãe
ligou pro L. e consegui falar com ela... mas se eu quisesse falar com minha mãe ou meus
filhos... eles teriam me jogado o celular na cabeça (Estorias de vida, A., RV2).
Não tentava nem falar com os clientes, pois me disseram, desde o começo, pra não falar
com eles, se não eles mandariam um amigo deles (disfarçado de cliente) pra me vigiar, ver
se eu falava ou não... então, não podia confiar em ninguém (Estorias de vida, B., RV4).
- Durante aquele período, você podia entrar em contato com a tua família?
- De jeito nenhum... não podia ligar pra eles, era proibido e não tinha modo. Pensei em
pedir ajuda pros clientes, mas tinha medo das consequências
- Podia mandar dinheiro pra família?
- Não, não podia ligar pra eles, não podia mandar dinheiro pra casa (Estorias de vida, T.,
RV3).
Geralmente moram em apartamentos privados, lugares alugados, têm pouquíssima
liberdade de movimento, devem ser sempre acompanhadas quando saem (Testemunha,
T3, GSA, Presidente de Associação).
Tudo isso é agravado pela ausência de uma relação de confiança que possa trazer alivio e conforto. Com as
garotas com quem você trabalha, prevalece um clima de competição e desconfiança, enquanto que, com
outras que trabalham em outros lugares, você não tem nenhum contato.
- Como você descreveria a tua relação com as outras mulheres que se encontravam na tua
mesma situação?
- Hum, todo dia tinha uma guerra pelo dinheiro, então não posso dizer que era
extraordinária; e mais, não tinha nenhum contato com aquelas que não trabalhavam
comigo...
- mas vocês podiam conversar entre vocês?
- Sim, mas quase sempre tinham outras pessoas, assim ninguém falava nem mais nem
menos (Estorias de vida, T, RV3).
48
A qualidade de vida resulta muito carente: ritmos de trabalho desgastantes, alimentação não regular e
aleatória (come-se o que tem), sono muitas vezes perturbado, também pelo fato de não haver uma cama
de verdade, que não seja compartilhada, alto risco de contrair infecções ou doenças sexualmente
transmissíveis e abortos em condições não seguras. Tudo isso tende a colocar em risco a saúde destas
jovens mulheres.
As condições são péssimas... a alimentação é inadequada e o sono.. um padrão muito
longe de ser aquele padrão de uma normal vida saudável (Testemunha, T3, GSA,
Presidente de Associação).
Às vezes, naturalmente, os exploradores as obrigam ao aborto... às vezes pagam clinicas,
outras fazem de maneira ilegal... sem as condições medicas adequadas...(Testemunha, T3,
GSA, Presidente de Associação).
Sei de casos onde a camisinha foi usada, mas existem casos onde o explorador não cuida
deste aspecto. A coisa importante pra eles é que a vitima saia com o cliente e traga
dinheiro. Muitas vezes aconteceu de a garota levar uma surra porque os clientes pediam
pra não usar preservativo e elas tinham se recusado (Testemunha, T4, IA, Pesquisadora).
No entanto, das entrevistas realizadas na Romênia, assim como nos outros países, a saúde das garotas não
parece ser uma preocupação pra quem as explora. A prevenção não existe e a cura é, essencialmente,
caseira e improvisada. Do pondo de vista das organizações criminosas, investir na saúde da mulher que
trabalha pra eles no mercado do sexo, é caro e arriscado, pois pode levar outras pessoas a descobrir a
verdade sobre a existência de graves formas de exploração Então, não vale a pena arriscar, pois no
momento em que uma garota adoece, pode ser facilmente substituída
Existem varias doenças sexuais transmissíveis, ou a AIDS. As garotas não são levadas ao
medico para serem controladas periodicamente. O explorador não quer levar a garota pro
medico por medo de ser descoberta a situação de exploração. Além disso, as condições de
trabalho na rua são terríveis No verão, 40 graus; no inverno, -20 graus, e elas são
obrigadas a ficarem ali. Os exploradores não se preocupam porque, se uma garota fica
doente, eles podem rapidamente subsisti-la. Do ponto de vista deles, portanto, não tem
sentido investir na saúde, pois significaria gastar dinheiro e arriscar que a condição de
exploração seja descoberta (Testemunha, T9, B., Policia).
Mesmo quando moram num apartamento, as condições de vida não são saudáveis A
jornada de trabalho delas é superior a 12-14 horas; não há condições de saúde Se a garota
adoece, o importante é que ela não pare de trabalhar, por isso, curam os sintomas com
métodos empíricos As garotas trabalham nas ruas, em bordeis ou expostas nas vitrines.
No caso de gravidez, devem se livrar da criança; com relação aos preservativos, são
orientadas a usá-los, mas de não fazê-lo no caso em que o cliente o solicite, pois o
trabalho delas consiste em prestar serviços ao maior numero possível de clientes..
enquanto ninguém se preocupa com a saúde delas (Testemunha, T7, M.B., Assistente
Social).
49
Em relação à saúde, um fato preocupante relatado por uma das testemunhas, é a pratica recente de
obrigar as garotas a tomar anticoncepcional sem o consentimento delas e sem os exames médicos
necessários
Uma novidade: assim que as garotas entram no giro, elas são obrigadas a tomar
anticoncepcional por 3 a 6 meses, sem o consentimento delas e, obviamente, sem a
supervisão de um medico (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação).
O consumo forçado de drogas não parece ser um problema em relevo, pois custa muito e reduz o
desempenho, enquanto o abuso de álcool aparece sempre como um nó problemático: álcool como
estrategia utilizada dos exploradores para amansar as garotas; álcool escolhido por quem trabalha no
mercado do sexo em condição desumanas, para se anestesiar.
As garotas que trabalham nos night clubs tem que beber e fazer de maneira que os
clientes bebam também... poucos são os casos de drogas, também porque não seria
conveniente pro explorador ter garotas viciadas em droga… significaria gastar dinheiro...
no entanto, tivemos dois casos de garotas viciadas nos últimos três anos. Com relação ao
álcool, muitas vezes bebem para suportar as condições de exploração (Testemunha, T3,
GSA, Presidente de Associação).
O álcool é utilizado pelos exploradores para amansar as vitimas, ou pelas vitimas para
esquecer ou aliviar a dor, como uma anestesia (Testemunha, T7, MB, Assistente Social).
1.4.6. A fuga, o retorno e a dificuldade de reintegração
Se, no inicio, as garotas são induzidas, por estrategias manipuladas pelos exploradores, a “escolher” um
projeto migratório dos sonhos, depois, o impacto com a realidade, a desilusão com relação às promessas
recebidas, a dura vida a que são forçadas e a violência contra elas, tudo isso faz nascer nelas um profundo
desejo de fugir.
- Quando foi a primeira vez que pensou em fugir?
- Desde o primeiro momento. Tentei muitas vezes, e no fim, consegui.
- Como você fez?
- (Sorri) depois de muito esforço e varias tentativas fracassadas... rolou um escândalo, fui
espancada brutalmente, e alguém viu, em particular, a dona do bar, a mulher ficou
apavorada e queria chamar a policia. No final, por medo de ser preso, o cara que tinha me
batido, me deixou sozinha e parou de me controlar.
- Além desta senhora, mais alguém te ajudou?
- Não, ninguém Ela foi a única. E graças a ela eu consegui fugir e voltar pra casa (Estorias
de vida, T, RV3).
50
A chance de fugir pode nascer de uma intervenção corajosa de uma pessoa não envolvida no mercado do
sexo, assustada pelas marcas visíveis de violência física, como no caso do depoimento acima. Em outros
casos, no entanto, podem ser os próprios clientes ou as organizações e entidades envolvidas na luta ao
trafico de pessoas a apresentar-se como uma tábua de salvação
Uma ou outra conseguiu escapar, ou ajudada por um cliente, ou por uma organização ou,
simplesmente, fugindo mesmo.. vão pra policia ou pras ONGs que possuem uma unidade
de rua (principalmente na Itália, e isso é uma boa coisa).. tem que dar uma declaração, e
se decidem cooperar com as autoridades, podem ser então inseridas em programas de
proteção e são livres para decidir se querem ficar ou voltar pra casa (Testemunha, T5,
OCO, Funcionaria Operativa).
Às vezes, são as próprias garotas a organizarem suas fugas. Até os exploradores romenos, assim como os
albaneses, às vezes voltam pros seus países, deixando a garota considerada “de confiança”, finalmente
sozinha. Com relação às razões destas viagens repentinas à pátria de origem, temos algumas hipóteses: se
trata de uma estrategia para despistar a policia; ou a necessidade de administrar “negócios” urgentes na
pátria; necessidade de renovar o permesso di soggiorno (autorização de permanência). Depois de ter
sofrido assedio e violência, esta ausência repentina e inesperada do explorador pode ser uma otina chance
para reconquistar a liberdade, como conta uma das entrevistadas:
Acreditava em tudo o que eu dizia.. fazia tudo o que ele queria para não apanhar.. me
batiam forte, até sangrar... muitas vezes me queimaram com cigarro, no pescoço, no
rosto, no peito, nas mãos, onde queriam, como se eu fosse..oh Deus! Depois que eu tinha
dado todo o dinheiro, me deixaram só com 1 euro de credito no celular, porque eu era
“uma boa menina”, “tinha me adaptado à situação, gostava, e me comportava como uma
filha”... disse que ia comprar uma casa pra ele e uma pra mim e meus filhos.. naquele dia,
comprou 10 maços de Marlboro, comida, avelãs, frango e me perguntou se ia ficar em
casa.. eu respondi que sim, e ele não deixou ninguém de guarda na porta.. escondeu as
chaves atras do computador.. disse que ia viajar por duas semanas.. pensei então que
pudesse escapar naquelas duas semanas, mesmo que tivesse que vagar pelas ruas em
busca da policia... então, se despediu de mim, me disse que se me comportasse bem ia me
trazer um presentinho.. como se eu fosse uma criança a esperar um doce.. Por um dia,
não fiz nada, pois queria ter certeza de que eles tivessem chegado na Romênia e ficava só
imaginando onde eles poderiam estar.. tinha medo que estivesse ainda nas redondezas e
que pudessem voltar... quando soube que estavam perto de A. disse a mim mesma que eu
também iria lá. Comecei a andar pelo quarto, falando com a TV e com minha almofada
vermelha (minha joaninha). Disse a mim mesma que iria ligar pra aquele cliente que tinha
muito dinheiro e um telefone celular enorme, pra dizer “vou pra Romênia ver meus
filhos”. Daí, vi a policia na frente do outro prédio. Não podia abrir a janela porque tava
trancada com cadeado e então, peguei uma cadeira, joguei contra a janela que explodiu
em pedacinhos, abri a janela e me feri levemente a mão.. achei as chaves de casa, tive que
fazer força pra abrir a porta.. depois liguei pro 112, como se estivesse na Romênia, e me
atenderam (Estorias de vida, A., RV3).
Nem todas, depois da fugo, decidem voltar ao país de origem, e o retorno não esta livre de desvantagens.
O retorno, por exemplo, prevê uma assistência somente se for organizado pela IOM (International
Organization for Migration), ou então a garota volta sozinha e sem nenhuma assistência
51
Se a IOM [International Organization for Migration] estiver envolvida, então falamos de
repatriação assistida, que prevê um acompanhamento. Tem uma pessoa que te
acompanha significa ter uma assistência durante a viagem de retorno, que pode ser do
tipo medica, no caso em que a vitima tenha problemas médicos, físicos ou esteja sob
tratamento psiquiátrico Pode também se tratar de um acompanhamento ligado à
segurança, sempre que haja um envolvimento da IOM, onde é previsto o recebimento no
aeroporto em totais condições de segurança. Mas se se trata de uma repatriação normal,
é difícil dizer o que poderia acontecer no momento em que a vitima viaja sozinha, sem
acompanhamento, entregue ao motorista do ônibus – bem longe de ser um “especialista”
– que pode ser muito mais informado sobre a exploração que sobre a assistência ou
proteção Desculpa falar, mas é o que acontece, é a realidade! (Testemunha, T3, GSA,
Presidente de Associação).
De acordo com uma das testemunhas, os abrigos não são numericamente suficientes e o período de
acompanhamento previsto por lei é muito curto: 3 meses para uma adulta e 6 meses para uma menor de
idade. A maior parte do trabalho de reintegração é feito, portanto, por Organizações Não Governativas
(ONGs).
Os abrigos são em numero insuficiente e, mesmo se tivessem mais – há uns anos atrás –
foram fechados por diversas razoes: em primeiro lugar, eram muito visíveis (a localização
deveria ser secreta); além disso, falta o pessoal especializado; e ainda.. eram muito
grande, e isso complicava os problemas de segurança. Por isso, hoje, existem
pouquíssimos refúgios com relação ao numero muito alto de vitimas identificadas.
Normalmente as ONGs oferecem assistência por um longo período às vitimas. Diferente
da situação dos departamentos de assistência social que, de certa forma, são justificados
pela lei dizendo que podem fazer bem pouco, porque a lei prevê períodos muito curtos: 3
meses para adultos e 6 meses para menores. A possibilidade de estender o período
depende de uma decisão tomada durante o processo penal. Com base na lei, se trataria
mais de uma ação finalizada para tamponar uma situação de crise, ao invés de um
verdadeiro percurso de assistência Então, todo o processo de reintegração é de
responsabilidade das ONGs (Testemunha, T3, GSA, Presidente de Associação).
Outro elemento critico, de acordo com uma testemunha, reside no fato que muitas garotas não se veem
como vitimas, fato este que dificulta a identificação Como mencionado anteriormente, as estrategias de
dominação dos exploradores romenos usam eficazes sistemas de manipulação emocional, destinadas a
induzir as garotas a “escolher” de fazer parte de um projeto migratório cujo resultado está bem longe das
expectativas.
Na Romênia, uma vitima pode ser identificada seja formalmente – no sentido que ela
aceita de depor contra os exploradores, graças também ao depoimento – seja
informalmente, através da ONG.. O problema maior é que algumas não se veem como
vitimas.. por isso é muito difícil fazer a vitima tomar consciência da própria condição. às
vezes pode ser até arriscado pois pode significar acrescentar um trauma a um outro já
existente. Por esse motivo, é um processo longo, caracterizado por muitos encontros
informais com a pessoa (Testemunha, T5, COC, Funcionaria Operativa).
Talvez o maior problema seja a nível cultural. Em todas as culturas – embora com diferentes gradações – se
tornar um objeto sexual, para uma mulher, significa renunciar à cidadania simbólica e perder alguns
52
direitos, como o direito ao respeito e à proteção Neste sentido, O’ Connell Davidson (2001) fala de
prostituição, de forma eficaz, em termos de morte social. Quem se encontra na situação de ter que vender
sexo em troca de dinheiro, não importa se por “escolha” ou porque é obrigada, se torna, aos olhos da
sociedade, uma não-cidadã, uma mulher qualquer, sujeita a violentos processos de estigmatização e
culpabilização.
Na Romênia, infelizmente, muitas pessoas pensam que todas as vitimas de trafico de
pessoas são prostitutas!! E quando isso acontece, a pessoa sofre um segundo trauma
(Testemunha, T9, B., Policia).
O que torna difícil o reinserimento e o alto risco de recaída no trafico de pessoas é o
comportamento da comunidade e das autoridades. Mais especificamente, gostaria de
falar do comportamento em geral, no qual a responsabilidade da experiencia da
exploração recai sobre a vitima. Falando com varias pessoas, entre as quais estão também
pessoas que deveriam fornecer suporte às vitimas do trafico de pessoas, se fala sempre da
“responsabilidade” e da “culpa” da vitima. Dizem que se ela tivesse se comportado bem,
tivesse sido uma “boa menina”, com vestidos apropriados e um comportamento
descente, sem fazer coisas que são naturais para uma garota da sua idade, como se
apaixonar ou sair com rapazes, então não se encontraria em uma situação assim, terrível
De certa maneira, a sociedade não se limita a punir quem erra, vai além, e faz o mesmo
também com as meninas que foram estupradas a 10 anos e que não tiveram nenhum
apoio da família ou da comunidade porque ninguém acreditava nelas e ainda as
consideravam culpadas (Testemunha, T2, LA, Diretora do Centro).
Muitas vezes, os processos de estigmatização são amplificados pela violência da linguagem mediática,
como no caso do próximo depoimento, que fala de meninas de 11, 12 anos, obrigadas a se prostituir e
definidas por alguns jornalistas como “bombas de AIDS”, portanto, representadas como uma ameaça à
saúde dos clientes “vitimas”.
Às vezes, as reportagens dos meios de comunicação espelham como a sociedade vê estes
casos: meninas de 11, 12 anos, obrigadas a se prostituir, são chamadas de “bombas de
AIDS”, enquanto os homens – que são ou foram clientes – são chamados de “vitimas”,
embora se saiba que estas meninas foram infectadas por alguns clientes (Testemunha, T4,
LA, Pesquisadora).
1.4.7. Como as garotas veem os clientes
Como sabemos, nem todos os clientes são violentos, e alguns se mostram, particularmente, generosos,
oferecendo presentes caros dos quais, no entanto, as garotas exploradas não poderão usufruir.
Me traziam presentes, relógios, brincos, até de ouro... um celular grande da Samsung, ou
um Galaxy S3. Mas estes presentes não iam pra mim, embora fossem pra mim... eu
simplesmente agradecia (Estorias de vida, A. RV2).
53
Apesar disso, à pergunta “que imagem te vem em mente quando se pensa aos clientes?”, as respostas
relatam representações bem negativas:
- E com relação aos clientes? Que imagem te vem em mente pensando neles?
- Algo de terrível Como posso dizer.. nojento, nauseante... um monstro! (Estorias de vida,
A., RV2).
Pessoas sem valor. Se um ser humano é capaz de.. e pensa que uma pessoa – mulher ou
homem – possa ser seu (sua) em troca de dinheiro.. então, como posso dizer... falta um
pouco de humanidade, gente sem valor... (Estorias de vida, T, RV3).
Como sempre, não faltam estorias de violência
Um cara quebrou uma garrafa na minha cabeça. Mas quando L. ficou sabendo, castigou o
cara... (Estorias de vida, A., RV2).
Normalmente (quando te tratavam mal), a gente avisava as outras e íamos falar com M.
pra pedir ajuda... tinham uns clientes loucos que nos batiam dentro do quarto (Estorias de
vida, D., RV4).
Entre os clientes, tem aquele que ajuda a fugir, e quem se comporta com indiferença quando alguém pede
ajuda, seja essa explicita ou indireta (chora).
Pedi ajuda pra muitos clientes... mas todos diziam que tinham medo dele (Estorias de
vida, A., RV2).
- Já pediu ajuda alguma vez?
- Sim, tentei.. mas não falava a língua deles.. então, chorava enquanto fazia sexo, o cliente
via que eu chorava.. não sabia como fazer pra me comunicar, não sabia o que fazer e
continuava a chorar e chorar... (Estorias de vida, AN., RV5).
Em certos casos, os clientes podem fingir não conhecer a situação de exploração, mas em outros, como nos
depoimentos que acabamos de ver, decidem, conscientemente, ignorar o problema, praticando o
“consumo” de maneira não-critica e tornando-se cúmplices do sistema do trafico de pessoas e da
exploração.
54
1.5. A pesquisa no Brasil
1.5.1. A evolução do fenômeno do trafico de pessoas no Brasil
O Brasil é um país que, já há alguns anos, está tendo um crescimento econômico-cultural extraordinário ao
ponto que, como dito por algumas testemunhas privilegiadas, passou de país de origem de consistentes
fluxos migratórios para país de destino, com chegadas não irrelevantes de países europeus que,
tradicionalmente, representavam uma saída significativa para os migrantes brasileiros: Espanha e Portugal.
Neste momento, o Brasil está crescendo, está se tornando um país para receber
imigrantes. Temos alguns dados, por exemplo, onde no ano passado, não – minto - em
2011 era, nós recebemos tantíssimos imigrantes espanhóis. E recebemos mais imigrantes
espanhóis no Brasil do que brasileiros que foram pra Espanha. Foi a primeira vez na
história que tivemos essa inversão do fluxo imigratório na Espanha. Isto é, Espanha,
Portugal, são países que, pela proximidade da língua, eram os países que mandavam mais
imigrantes, exceto pros Estados Unidos, obviamente, aquela coisa do sonho americano,
né? Então, na Europa, tinham estes dois países como principais destinos dos brasileiros. E
tivemos uma inversão do fluxo (Bras1, Funcionário, SNPDCA).
Sem duvida, é claro que o numero de pessoas que procuram o Brasil como destino é
aumentado, é duplicado, triplicado, seja para fazer um período ou, simplesmente, para
mudar de vida, acredito que o Brasil é sempre mais reconhecido a nível internacional, se
fala muito do Brasil, apesar da crise mundial, quer dizer, o Brasil não está enfrentando a
crise, pois o quadro é de um país em desenvolvimento, tem trabalho e portanto atrai
muita gente, acho que isso, inclusive, é muito utilizado pelos aliciadores para enganar as
vitimas, como um modo para trazê-las aqui, e então, o numero de vitimas estrangeiras
trazidas aqui a fim de serem exploradas, aumentou (Guar2, Caritas).
Como se sabe, no entanto, a imigração e o trafico de pessoas são fenômenos estreitamente relacionados
entre eles e então, o Brasil, atraindo tantos migrantes, está se tornando também, um país de destino para
vitimas do trafico de pessoas, especialmente pessoas vindas da América Latina e exploradas no mercado do
trabalho domestico e industrial, além daquele do sexo.
Eu acredito que existe um perfil importante para ser estudado, aprofundar-se sempre
mais, o perfil da vitima estrangeira. Cada vez mais, o Brasil aparece como país, não só de
origem, mas de destino final da vitima. Não digo que antes não fosse, mas agora é muito
mais evidente, principalmente, vitimas latino americanas para trabalhos domésticos,
exploração sexual e trabalho escravo nas industrias têxteis (Bras3, coordenadora, SNG).
O que vemos no Brasil, ultimamente, é que existe também um movimento de importação
da mão de obra escrava, principalmente da Bolívia e do Paraguai, para a industria têxtil
Isto acontece principalmente em São Paulo, em Jaraguá, pois se trata de um grande
centro para produção de roupas, foram já encontradas muitas vitimas do Paraguai e
também da Bolívia, em uma cidade no interior de Goiás, uma cidadezinha de 50 mil
habitantes. Portanto, este é um movimento que, com certeza, preocupa; o acesso dos
traficantes à mão de obra considerada econômica Paraguaios e bolivianos sofrem
55
exploração próprio por causa de sua vulnerabilidade social, eles vem em busca de uma
vida melhor, mas depois se encontram em uma situação difícil, a rotina de trabalho, as
longas horas de trabalho, 16 horas por dia, não é por nada fácil (Bras4, Juiz, CNJ).
No Brasil, assim como nos outros países parceiros do projeto, os depoimentos enfatizam o papel da
internet, como uma novidade. Contatar garotinhas para trabalhos atraentes, ou situações onde são
aliciadas, através do Facebook, ou outros sites bolados para isso, como “Brasil Cupido” por um “fascinante”
gringo, seduzem a garota, que se apaixona por eles, e as iludem com o papo de um futuro melhor. Aqui
volta o tema do “príncipe encantado” e das dimensões culturais da vulnerabilidade do gênero, já discutida
anteriormente falando do caso da Romênia
Bom, vou começar falando da nova modalidade de aliciamento que é através da internet.
Nós recebemos aquele caso do distrito de Sobral, onde 3 adolescentes estavam pra ser
contratadas para trabalhar como modelos em São Paulo. O aliciador mandou o dinheiro, e
as garotas começaram a se transformar, melhorar os cabelos, as roupas, a diretora da
escola onde estudavam percebeu: “a família declarou não receber nenhuma renda e estas
garotas se transformam assim! Mas depois diziam – 'na verdade, amanhá vamos viajar.'”
Então a comunidade escolar, a diretoria da escola, conseguiu impedir este aliciamento a
tempo. Muito interessante. Este é um caso que uso como exemplo quando vou pro
interior do Estado para convidar as escolas a participar desta luta.
Existem também outros tipos de redes sociais, como o Facebook, Brasil Cupido, por
exemplo, inclusive, temos um caso deste site, de garotas que procuram uma relação
afetiva, e daí, chega aquele gringo grandão, alto, forte, de olhos azuis, né? Aquele perfil
do “príncipe encantado” que escutamos dizer a vida toda das nossas mães, e as garotas se
foram, foram morar no exterior, viajar de avião, tirar fotos pra depois colocar no Facebook
– isto eu já ouvi de uma delas – sonham em poder encontrar o príncipe encantado e vão E
eles, realmente, mandam as passagens pra elas, sabe?
Tenho que me lembrar de um caso do qual nos ocupamos. O cara viu o perfil da garota no
site e escreveu: “oi, sou divorciado, tenho 2 filhos, sou trabalhador autônomo, tenho uma
boa condição de vida, viajo pro Brasil periodicamente, e você é linda, maravilhosa,
gostaria de poder conhecer uma mulher como você para poder compartilhar a minha vida,
estarei no Brasil do dia …. ao dia... só pra te conhecer, estou perdidamente apaixonado. Se
você quiser, fale com a minha tradutora, fulana, que está no Brasil”. Então, claramente se
vê a ação deste aliciador, a intermediaria que seria, como o aliciador ali da novela, que
seria a Lívia (não eu), e a tradutora que seria a Vanda (exemplos da novela “Salve Jorge”).
Enfim, este aliciamento é muito acentuado nos sites da internet, infelizmente não temos
uma lista de todos estes sites, mas trabalhamos em conjunto com as informações
fornecidas pelas ONGs internacionais, pela policia e pela ABIN (Agencia Brasileira de
Inteligência), conforme vão chegando (Bras2, coordenadora NETP).
As organizações criminosas, hoje, usam muito as redes sociais, os sites de encontros,
enfim, através do qual eles aliciam as vitimas, com promessas (Guar1, ASBRAD).
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Muitos depoimentos relatam o impacto positivo de uma recente e famosíssima novela chamada “Salve
Jorge”, que estava passando no mesmo período em que foram feitas as entrevistas (outubro 2012- maio
2013), num dos canais nacionais da televisão brasileira (Rede Globo). Se trata de uma produção de grande
sucesso que enfrenta o tema do trafico de mulheres para fins de prostituição. A protagonista é Morena,
mãe solteira, com grandes dificuldades econômicas, mora em uma favela na periferia do Rio de Janeiro,
com um filho pequeno e a mãe Morena, despejada de sua casa, aceita a proposta de Wanda de ir trabalhar
no exterior, por alguns meses, no setor da moda e do espetáculo, e é contratada, juntamente a outras
garotas, por Lívia, que é, na realidade, a proprietária de um night club e diretamente envolvida com a rede
do trafico de pessoas. De fato, quando chega na Turquia, Morena e as outras garotas serão vendidas e irão
descobrir que serão destinadas ao mercado do sexo.
De acordo com os depoimentos, a novela teve a importante função de sensibilizar a opinião publica,
informar as pessoas a respeito do fenômeno e quebrar o estigma que afeta as meninas envolvidas na
exploração. Parece terem aumentado as denuncias e a conscientização e o termo “trafico de pessoas”
parece ser mais familiar e compreensível em relação ao seu uso na linguagem comum.
Acredito que a novela Salve Jorge esclareça muitas coisas, inclusive, o Núcleo que antes
recebia umas duas denuncias por mês de possíveis casos de trafico, neste ultimo mês,
depois que começou a novela, já recebeu umas cinco ou seis denuncias; as pessoas estão
procurando se informar mais sobre esse assunto. Mesmo estes trabalhos que fizemos com
as escolas, aumentaram a curiosidade dos adolescentes, pois aqui, no estado do Ceará, é
normal que um adolescente seja vitima do aliciamento com falsas promessas de ser
modelo, dançarina, e os rapazes, jogadores de futebol. Já estão recebendo este tipo de
proposta e, quando chegam ao destino, por exemplo, em São Paulo, é pra fazer trabalho
escravo, ou então chegam ali esperando uma proposta que nunca vai acontecer […] Nós
fazemos um trabalho nas escolas, com os professores, e de fato, depois que começou esta
novela, os estudante falam mais facilmente sobre o assunto. Antes gastávamos 15, 20
minutos para explicar que não se tratava de trafico de drogas, nem de armas, mas de
trafico de pessoas, e que podia acontecer com qualquer um, pessoas como você, como
eu.. e eles demoravam um pouco pra entender. Mas hoje, as pessoas já comparam até
com as situações da novela: “acontece mesmo? Mas é tudo de verdade?” Porém existe
ainda uma falta de informação principalmente dentro do Estado.
[…] Minha filha sumiu, meu filho sumiu, eu acho que existe uma situação de trafico de
pessoas”, hoje, a situação do trafico de pessoas foi reforçada graças à novela (Salve Jorge),
o uso desta expressão “trafico de pessoas”. Agora conseguem usar mais esta expressão A
novela não está salvando a nação, mas está, de alguma maneira, ajudando (Bras2,
Coordenadora, NETP).
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1.5.2. Tipos de trafico e pontos críticos da legislação brasileira
No Brasil, assim como na Romênia, o trafico de pessoas não é só internacional, mas também interno. Além
disso, existem diversos tipos de trafico de pessoas, além daquele com a finalidade de exploração sexual: o
trafico de pessoas para exploração laboral, trafico de órgãos; trafico de menores destinados à mendicância;
trafico de pessoas para fins de matrimonio servil, muito difícil de descobrir.
O trafico de pessoas para fins de prostituição, o trafico de órgãos e o trafico para a
exploração da mão de obra. Mas tem também o trafico para adoção, trafico para – uma
coisa que o movimento feminista está trazendo à tona – o matrimonio civil, que é ainda
mais difícil de ser descoberto, porque muitos homens vindos de países europeus
procuram mulheres brasileiras para o casamento, mas quando chegam no exterior,
tornam-se verdadeiras empregadas domesticas, subordinada (Fort2, Freira, ONG).
Não é assim fácil de explicar. Existem vários tipo de trafico interno, per exemplo, o
aliciamento no trafico de menores de idade, adolescentes é diferente do aliciamento que
tem no trafico de travestis e de mulheres (jovens ou não), não é igual à exploração, não é
igual à promessa de uma vida melhor. Por isso é importante fazer essa distinção No trafico
interno, por exemplo, tivemos casos de menores que foram raptados e explorados na
mendicância, e rodaram todo o Brasil. Por exemplo, o caso de uma garota, muito jovem,
com a promessa de ir à uma festa, em uma fazenda, em uma cidadezinha, então, é uma
transgressão da adolescência, da infância, não é? E dai, usam todos os meios para
convencer a pessoa, né? É difícil estabelecer uma esquema preciso. Eu sempre digo, cada
vitima, um caso diferente, é uma nova situação (Bras5, Jornalista).
De acordo com vários depoimentos, um dos pontos críticos da legislação brasileira consiste precisamente
em não levar em conta os diferentes tipos de trafico.
O que acontece é que existe somente o reato de trafico de pessoas para fins de
exploração sexual. E ali, não vem considerado o trafico dos órgãos, a adoção ilegal, a
escravidão por dividas, e nenhuma destas modalidades que sabemos que existem. Isto
tem dificultado muito o Ministério Publico a punir tais casos, e é um fator estimulante
para as quadrilhas, pois a impunidade é muito grande. Esperamos que agora o Congresso
esteja sensibilizado. Foi enviado recentemente, no mês de dezembro, um projeto para
modificar a lei, caracterizando um tipo de trafico de pessoas mais abrangente, prevendo
todas as formas de exploração e, visto que o momento é bastante favorável, por causa da
novela Salve Jorge, que trouxe maior visibilidade ao problema, esperamos que isso chegue
também ao Congresso Nacional, a fim que esta mudança de lei seja adotada
imediatamente (Bras4, Juiz, CNJ).
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O conceito que usamos para o trafico de pessoas é aquele previsto pelo Protocolo de
Palermo. O Código Penal define o trafico de pessoas especificamente para exploração
sexual. Então, estamos tentando fazer esta alteração na lei, a fim de permitir a integração
do conceito de trafico de pessoas, conforme descrito pelo Protocolo, que é mais amplo e
se estende também ao trafico de órgãos, a exploração da mão de obra, a exploração
sexual, e por aí vai.. (Bras1, Funcionário, SNPDCA).
Hoje, praticamente, no Código Penal é previsto somente o trafico de pessoas para fins de
exploração sexual, de mulheres, mas sabemos que existem outras modalidades, digamos,
desta pratica criminosa que, infelizmente não é contemplada na legislação (Bras6, Politico,
CPI).
A outra situação, no entanto, é a quantidade de mulheres que recebem propostas de
trabalho, não ligadas à prostituição, para ir ao exterior; é ali que percebemos que o trafico
de pessoas não é somente ligado à exploração sexual. Quer dizer, exitem mulheres que
vão de um lugar a outro para trabalhar, sabemos que a situação se tornou famosa através
daquelas vitimas do trafico de pessoas que trabalham nas industrias têxteis, ou que fazem
casamento forçado, servil, no sentido que, quando casa, se torna empregada, prisioneira,
não pode sair, não consegue ter o minimo de autonomia. Então, estes casos, também, são
situações de total exploração Hoje, nós vemos o crime de exploração sexual como mais
conhecido, com o qual trabalhamos mais e, historicamente, o mais presente na maior
parte dos casos e, percebemos que existe uma falta de conhecimento em relação a estas
outras realidades de exploração, dificultando a identificação do caso como trafico de
pessoas, mesmo porque, é o mais difícil de descobrir, incluindo a responsabilidade,
porque na nossa lei, hoje, existe esta ligação, ou seja, a lei vincula o trafico de pessoas à
prostituição. Por isso, é difícil identificar certos casos como reato de trafico de pessoas,
então, este registro não consta nem na justiça, nem na segurança publica. Então, estas
realidades são subvalorizadas, mas sabemos que exitem estes outros tipos de exploração
(Bras7, responsável, Núcleo Antiviolência).
Alguns depoimentos enfatizam também a escassez de sanções, a quase total impunidade dos exploradores
ligadas à forma de penalização, e a vulnerabilidade das vitimas e dos familiares em caso de denuncia.
É ridículo, pois no Brasil, é muito mais grave o trafico de drogas, de cocaína, onde a pena
vai de 5 a 15 anos, em comparação com o trafico de pessoas. Nós sugerimos ao grupo CNJ,
ao Ministério da Justiça e ao Congresso Nacional, o aumento da pena de 6 a 15 anos de
reclusão, mas parece que será aprovado só de 4 a 10 anos. O traficante é seguro da
impunidade; sabe que se a pena é de 8 anos, ele deverá cumprir pena em regime
semiaberto, ou seja, vai só dormir na prisão, mas durante o dia está livre, então, vai
continuar traficando. Assim, na minha opinião, o sistema penal, o sistema de repressão no
Brasil, serve de estimulo ao trafico de pessoas. Por esse motivo, a urgente necessidade de
modificar a legislação (Bras4, Juiz, CNJ).
A própria pena, a dosimetria da pena, né? Uma pessoa, principal acusado de um crime
deste tipo, tem a mesma pena de uma pessoa que roubou um celular, ou seja, de 1 a 4
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anos - pena extremamente leve para um crime que viola os direitos humanos mais
importantes de uma sociedade: a vida humana, o ser humano (Bras6, Politico, CPI).
Temos já dificuldade com relação às denuncias dos casos porque, na maior parte dos
casos, as vitimas se sentem envergonhadas, e tem medo de denunciar, pois são
ameaçadas, a família é ameaçada. No Brasil, não existe um sistema adequado de proteção
As vitimas ficam muito vulneráveis O Estado não dá à família da vitima, quando esta faz a
denuncia, um sistema de proteção Nem a vitima, nem sua família são levadas à um lugar
seguro. Não existe um sistema de reintegração da vitima no mercado de trabalho, por
exemplo. Por isso, a vitima não se sente por nada segura para denunciar a quadrilha, e
todos esses motivos acabam gerando uma grande impunidade no Brasil, sendo este um
fator estimulante para as quadrilhas (Bras4, Juiz, CNJ).
Enfim, ainda com relação aos pontos críticos da atual legislação brasileira, os depoimentos indicam a
ausência de limites com relação à liberdade de movimento de menores de idade no território nacional. As
pessoas menores de idade, para viajar dentro dos limites nacionais, não é necessário a presença de um
adulto, nem de um tutor, nem da autorização dos pais. Esta total liberdade irá, de fato, tornar essas
pessoas mais vulneráveis ainda, facilitando a ação das redes criminosas e de potenciais exploradores.
[Os meios de transporte] são terrestres e não terrestres, porque hoje, por exemplo, um
jovem de 13 anos pode viajar no interior no território nacional; a lei permite, o ECA
(Estatuto da Criança e do Adolescente) permite, sem a autorização dos pais, nem de
tutores, nem juiz, nem nada. Um jovem pode pegar um avião em Belém do Pará, e chegar
em São Paulo, basta ter um documento de identidade. Ele é livre para se deslocar, viajar. E
esta é uma das coisas, por exemplo, que queremos corrigir na legislação, tentar inibir um
pouco mais a vulnerabilidade que um jovem de doze anos, uma criança de doze anos pode
ter com essa autonomia de movimento, viajando dentro do território nacional (Bras6,
Politico, CPI).
Portanto, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, são considerados
menores quem tem de 0 a 12 anos, adolescentes de 12 a 18, e podem viajar sozinhos, pois
a questão de viajar sozinhos foi internamente discutida em fóruns, conferencias, em
termos de movimentos sociais, inclusive, é uma questão discutida também pelo Governo
(Guar1, ASBRAD).
1.5.3. Protagonistas do trafico de pessoas, vulnerabilidade e formas de aliciamento
As potenciais candidatas ao aliciamento são mulheres biológicas – prostitutas ou não – e mulheres trans,
para as quais o mercado do sexo parece ser a única possível saída, frente a uma sociedade ainda fechada às
mudanças e ao respeito discriminante com relação a quem parece violar o tabu de uma identidade de
gênero, sem considerar o corpo biológico
Praticamente, existem três perfis diferentes de vitimas, na região de Goiás, por exemplo,
existem muitos casos de mulheres vitimas do trafico; estas mulheres vão pro exterior sem
saber que terão que se prostituir, nem que serão exploradas, vão em busca de trabalho
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como barista, garçonete, cuidadora, dançarina, modelo. As garotas aqui do Ceará, pela
nossa experiencia, elas sabem já que terão de se prostituir, mas elas não conhecem as
condições em que vão se prostituir, acreditam que vão ganhar em dólares, em euros, que
vão poder fazer turismo, viajar, “mandar dinheiro pra mãe”, mas quando chegam ao
destino, não é nada daquilo, não podem escolher os clientes, são obrigadas a trabalhar
varias horas por dia, a divida é enorme. A divida dos travestis é ainda maior, pois saem
daqui já endividados, por exemplo, com megahair, tratamento hormonal, prótese de
silicone, então, a divida dos travestis é muito mais alta do que a das mulheres, e quando
chegam la, a realidade é outra, elas sabem que terão de se prostituir, mas a realidade é
sempre outra, mesmo assim, para aquelas que conseguem voltar, e conseguem se livrar
da divida e do esquema todo, elas acham que vale a pena viajar e passar por todo esse
tipo de violência ali, tem sempre aquela esperança, talvez de ganhar um pouco mais,
assim para poder mandar dinheiro pra família, pro filho, pros parentes, e esta é uma outra
dificuldade com relação ao “reato trafico de pessoas”, pois mexe com a esperança e os
sonhos das pessoas, elas nunca vão pensar que algo de terrível possa acontecer, que
podem morrer, etc.. Procuram sempre tentar obter melhorias que, realmente, aqui não
tem (Bras2, Coordenadora NETP).
As vitimas são geralmente prostitutas que trabalham e dizem “ah! Vou te uma vida
melhor, vou me prostituir e ficar rica”, só que ela vai, daí fazem ela pagar a passagem, a
estadia, praticamente, a pessoa trabalha de graça, todo o dinheiro representa divida, de
roupas, da viagem. Ou existem aquelas ainda mais ingenuas, “ah, tenho que viajar, fazer
um curso de formação, me prometeram isso e aquilo”, daí chegam lá e se trata de
prostituição (Fort8, Delegado).
Quem explora escolhe, como sempre, as candidatas em case aos indicadores de vulnerabilidade sócioecomonica e afetiva: garotas muito jovens vindas de famílias problemáticas ou que já são mães solteiras, e
sozinhas; nível de escolaridade baixo; vidas problemáticas, marcadas pela violência
Olha, o perfil destas pessoas é de vulnerabilidade econômica e sócio-afetiva (Bras6,
Responsável pelo Núcleo).
Pelos dados que tivemos até agora, pelo que observamos, as vitimas são geralmente
muito jovens, de 18 a 30 anos. São pessoas de baixo nível de escolaridade, vindas de
famílias de baixa renda, pobres. Muitas são “chefe de família”, ou seja, a família é
dependente dessa pessoa. No caso do trafico de pessoas para fins de exploração sexual, a
maior parte das vitimas, já se encontra em situação de prostituição, e aceita as propostas,
as quais são, geralmente, propostas fascinantes de uma vida melhor, uma renda melhor.
Normalmente é assim: “Escuta, você vai ter que se prostituir, mas vão te pagar em euro,
em dólar” e aqui, normalmente, a pessoa que se prostitui recebe em reais e, muitas vezes,
pouco. Temos também noticias, em Goiânia especialmente, de vitimas universitárias que
vão em busca de um sonho, o desejo de se tornar modelo; sabem dos serviços sexuais,
mas estão sempre em busca de algo mais, algo maior, um glamour que, na realidade, não
passa de uma ilusão Elas compram essa ilusão e, acredito eu que, nem mesmo elas tem
ideia do que vai acontecer, e mesmo assim, vão em busca desta ilusão, deste sonho. Mas
a grande maioria das vitimas são pessoas de baixa escolaridade, em situação de
vulnerabilidade social e econômica Geralmente possuem pelo menos um filho, são mães
solteiras e vão, pensando que farão programas sexuais por 180 euros, 200 euros, e isso é
uma coisa absolutamente irreal (Bras4, Juiz, CNJ).
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As vitimas do trafico interno, principalmente adolescentes, já há tempos explorados pela
comunidade onde vivem, pela família, talvez já tenham sofrido algum tipo de violência e
vão pras ruas e rodam pelas cidades do interior, trabalhando em salões de massagem, em
pequenos bordeis, de modo que a mercadoria não se torne obsoleta, então vão pra estas
cidades que possuem estradas movimentadas, postos de gasolina, onde tem um grande
movimento de caminhoneiros, de modo que possam ser exploradas ao longo da estrada. E
então, o trafico internacional é a partir dos 18 anos. Geralmente são mulheres que já tem
filhos, um ou dois, que moram com as avós, não existe aquela estrutura familiar
tradicional: pai, mãe e filho, é outra coisa, se trata de famílias monoparentais, formadas
pela mãe, os seus filhos, as irmas, os filhos das filhas, e então, elas saem daqui já com
filhos, ou então, ainda não tiveram filhos, mas podem voltar gravidas ou com filhos,
resultado da estadia no exterior; de qualquer maneira, se trata de um contexto de família
não estruturada, ou seja, desestruturada, talvez tenham já sofrido algum tipo de violência,
ou exploração, ou violência domestica dentro da própria família, elas devagarinho nos
contam as coisas (Bras2, Coordenadora NETP).
As estorias contadas pelas garotas entrevistadas – todas jovens, às vezes já com filhos, e um baixo livel de
escolaridade – parecem confirmar o quanto enfatizado pelos depoimentos citados há pouco:
Sim, [fui violentada] pelo meu tio! E neste caso, meu pai deveria ser a primeira pessoa a
me ajudar, certo? Me ajudar... ao invés disso, foi o primeiro a encobrir, para não ter
escândalo na família. E, como resultado deste estupro, tive uma filha, e a gente vive como
irmas, entende? É uma situação complicada. Eu tenho 34, e minha filha tem 15, quase 16.
Ela não sabe que sou a mãe dela, a gente se trata como irmas, pra onde eu vou, eu levo
ela comigo. Pois eu nunca vou abandoná-la Olha, você vai me desculpar mas, depois
daquilo que aconteceu comigo, a família pra mim não existe, concorda comigo? Porque eu
tinha um valor de família e foi destruído, entendeu? Desde aí eu ganhei o mundo, eu sai,
então... cai numa vida, (inaudível) cai numa vida é... promíscua, certo? Então eu to assim...
trabalhando, me prostituindo (Estorias de vida, V., Fort7R).
Casei, fui embora com ele, tive minha filha. Sofri muito com minha filha. Já passei a noite
fora de casa, no frio, debaixo de chuva com minha filha, ainda pequena. Nossa Senhora! A
minha menina era a coisa mais linda, linda, parecida de revista, assim loirinha dos olhos
verdes, uma beleza inexplicável, mas minha filha passava a noite debaixo de chuva comigo
pois a gente não podia voltar pra casa, porque simplesmente, aquele bêbado não deixava
a gente entrar, quebrava tudo o que tinha na frente, e o que sobrava, ele ia lá e quebrava.
Era assim, um desastre, uma cruz que carreguei nas costas. Quando tive minha filha, eu
tinha 17 anos, e larguei do cara que eu estava quando tinha 19, porque não aguentava
mais, sabe. Daí, um dia, tinha uma minha amiga que ia sempre pro Beira Mar (bairro de
Fortaleza), eu nem sabia o que tinha nesse bairro, o que ele representava, eu não era
daqui, sou do interior. Minha amiga me disse “menina, você já sofreu assim tanto, não
tem nada pra você nem pra tua filha, porque não vem comigo pra praia de noite?”
(Estorias de vida, Y., Fort6R).
O que estimula as mulheres a aceitarem ofertas arriscadas é sempre a necessidade e o sonho de melhorar
a própria situação de vida. Neste sentido, podemos falar de escolha, mas sob duras condições vinculativas.
O trafico de pessoas está sempre ligado a um sonho, um sonho bem sonhado e mal (Fort2,
Freira, ONG).
62
Tem muitos que agridem muitas meninas aqui, entendeu? Assim, eu falo assim, ninguém
tá aqui por gostar, tá por necessidade, porque tem pessoas que dizem “Ah, são
prostitutas? Ah, elas tão aqui porque elas gostam disso”. Não, não é fácil você um cara
cada noite, não é fácil. Às vezes você passa uma semana sem não ter um real no bolso,
não é fácil. Você ter filhos, família para sustentar, aluguel para pagar. Agora mesmo, eu to
tendo que pagar 600,00 reais de aluguel, não tenho um centavo, tá entendendo? E eu já
sei, to no limite, a moça lá fica me cobrando, me cobrando, me cobrando, me cobrando,
você tá entendendo? (Estorias de vida, V., Fort7R).
É a velha estoria do príncipe encantado, acreditam sempre no melhor. Mesmo as garotas
que encontramos. Inclusive, a presidente da APROS, Rosarina Sampaio, quando nos vemos
em reuniões varias, eu lhe digo: “não Rosarina, existem algumas correntes feministas que
defendem a autonomia da mulher, a mulher pode se prostituir porque é dona do próprio
corpo “o corpo é meu, faço dele o que quiser”. E ela me diz: “não, Lívia, as garotas que
conheço não vão porque querem... sim sim.. falo destas garotas prostitutas mesmo, não
vão porque querem. Estou acompanhando um caso onde a vitima, na época, tinha 5
filhos, ninguém dava emprego pra ela, e ela, na necessidade, com 5 filhos, com os horários
todos confusos, acabou na prostituição. Também as garotas que encontramos nas ruas:
“foi a maneira que encontrei, não tinha nenhum diploma, não consegui seguir com os
estudos” ou então porque não gostavam mesmo de estudar, não tinham nenhuma
estrutura familiar em casa, não queriam estudar em casa, “e foi isso que consegui achar,
porque era mais fácil, mais pratico” (Bras2, Coordenadora, NEPT).
As propostas usadas como iscas por quem alicia, tem a ver com um trabalho feito dentro ou fora do país, e
no caso de mulheres que já trabalhavam como prostitutas ou trans, a proposta se refere explicitamente ao
mercado do sexo. A oferta, nestes casos, se torna mais tentadora pela atração dos grandes lucros e da boa
vida e – para as trans – também pela possibilidade de transformar o próprio corpo de modo coerente.
Falam muitas coisas né. Que vão pra lá, passam necessidade, é mais ou menos a vida que
passou agora na novela né. Aquilo ali não é ficção, é vida real né. Muitas vezes aquilo ali
realmente acontece. Então quando elas vão é pra trabalho né, foi o que passou na novela.
É, a maioria é. Eu fui, passei lá três meses mas eu fui férias, tá entendendo. Ele, uma
pessoa séria, responsável. Mas tem muitas meninas que vão para trabalho, as vezes sai
daqui enganada né com mil propostas que hoje ela vai dormir pobre e amanhã vai
amanhecer rica né. Isso aí não existe. Lá fora é uma vida totalmente diferente. (Entrevista,
N., Fort5R).
Não, ele disse, ó “Você vai, você vai ganhar muito dinheiro, porque lá as brasileiras são
requisitadas”, coisa e tal... aquela deslumbramento que te... deslumbram a visão. Aí eu
fui, né. Foi tudo certo, passagem, tudo... chegar lá ele... é uma história, que nem passou
na novela (Salve Jorge), é uma história que realmente acontece, eles tomam teu
passaporte, você fica... entendeu? Toda noite você tem que sair e... manhã, tarde e noite,
entendeu? (Entrevista, V., Fort7R).
Bem, temos duas situações, né, que identificamos como mais frequentes Umas se trata de
mulheres prostitutas que sabem que vão pra lá pra isso, tem vontade, talvez, de se
prostituir em outros países, ou outros estados dentro do Brasil, e recebem propostas que,
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pra elas são propostas pra melhorar a situação em que vivem no trabalho, ligado à
prostituição. Porém, quando chegam ao destino, de fato, se dão conta que as promessas
não foram realizadas (Bras7, Responsável pelo Núcleo).
Se para as mulheres a oferta de emprego no mercado do sexo representa, geralmente, uma escolha com
condições vinculantes, para muitas garotas e trans, parece ser a “única escolha”, diante a da própria
família e de uma sociedade que ainda não está pronta a aceitar, com serenidade, aqueles que não entram
nos modelos tradicionais.
Bem, existem tantos casos de pais, e também de filhos, que não querem ter um colega
gay, imagina um travesti.. “então, eles põe a gente pra fora de casa no começo de nossas
vidas, assim, a gente fica sem opção de trabalho, de estudo, porque as empresas não nos
dão esse direito, porque, além de não ter diploma, não deixam nem a gente fazer um
curso de formação, então, não somos capazes de desenvolver um determinado serviço.
Daí, o que nos resta é a prostituição, que não é por nada fácil, é a própria sociedade que
nos empurra para a prostituição, é a própria sociedade que nos procura, é a própria
sociedade que nos agride, é a própria sociedade que nos joga pedras, que nos massacra,
pra depois querer limpar a cidade como disseram” (Fort9, Coordenadora, ATC).
Os travestis contam sempre isso. Claro que alguns deles dizem: “é serio, é um aspecto da
minha personalidade de travesti, gosto de me prostituir para me sentir desejado,
etc..”Alguns. Mas a grande maioria deles diz: “olha, fui expulsa de casa muito cedo, não
tinha família. Encontrei outras como eu, e acabei me prostituindo, era o único modo de
que eu tinha pra sobreviver.” Vemos muito isso no nosso trabalho, em depoimentos
nacionais e nas pesquisas. E bem assim mesmo, as travestis, no inicio: “ah que lindo! ...
trabalhar o dia todo de cabeleireiro, mas com a prostituição posso ter ainda mais! Ganhar
mais dinheiro!” Porque é assim, os ambientes de trabalho são esses: cabeleireiro,
manicure, esteticista, entendeu? Não é que tem uma vaga de maquiadora pra todas, nem
todas têm esse interesse, é um desafio, um desafio também pra elas, porque na verdade,
é uma oportunidade que elas nunca tiveram, e vão porque querem ganhar a grana delas,
querem sobreviver, querem se vestir bem, querem ficar lindas, querem ser tratadas como
damas, por isso deixam o Brasil, porque acreditam que os europeus, por exemplo, são
mais gentis, não as tratarão mal, mas as tratarão como damas, como gostariam de ser
tratadas aqui, e não vão sofrer violência (Bras2, Coordenadora, NETP).
A homossexualidade é uma escolha sexual, ok? Travestis e transexuais, travestis
principalmente, quem estuda o travesti sabe que, na fase inicial, são expulsos de casa, não
são aceitos na escola. Então, a atividade sexual, o trabalho sexual é uma escolha de
trabalho preferencial pra eles, e ali, naquele momento, entram, a meu ver, na mesma
situação das prostitutas. Eles podem se encontrar em uma situação de exploração ou em
uma situação de não exploração. Podem entrar em um giro normal de prostituição e, em
um certo momento, cair na rede do trafico de pessoas. Podem sair desta situação de
exploração e voltar para a situação de prostituição (Bras8, Antropóloga).
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As mulheres, os trans, fazem essa escolha, apesar das difíceis condições e a ausência de alternativas mais
concretas e definitivas. De qualquer maneira, se trata de uma escolha, e talvez seja por esse motivo que
não conseguem – ou não querem – se enxergar como vitimas.
A grande dificuldade é justamente essa, porque, na maioria dos casos, a vitima viaja de
livre e espontânea vontade. Tai a dificuldade. De acordo com os dados da Policia Federal,
90% das mulheres que são traficadas para fins de exploração sexual, não se reconhecem
como vitimas, pois elas querem mesmo sair do país. Mas o que elas não entendem são as
condições que encontraram lá fora. Mas sabem do fato que serão exploradas
sexualmente, muitas vezes, tentam sair da situação, não admitem terem sido enganadas,
querem ter o direito de ir e vir estabelecido pela Constituição É essa a nossa dificuldade
(Bras4, Juiz, CNJ).
Mas elas (trans) não se reconhecem, né, enquanto vítimas, elas consideram que as
artistas, as atrizes têm empresários, que ganham em cima daquela atriz, então elas: “Por
que o cafetão, entre aspas, não pode ganhar também”. Então aparecendo alguma
possibilidade, alguma chance, alguma mudança de vida para aquela menina, aquela
travesti, então “melhor do que ficar aqui” sem nenhuma perspectiva, na situação em que
ela está. “Vou tentar, pode ser que dê certo, pode ser que não, então é na tentativa né”
(Bras2, Coordenadora, NETP).
No caso do Brasil, em situações parecidas com aquelas descritas pela Romênia, quem alicia é,
normalmente, uma pessoa próxima da vitima: uma vizinha de casa, a cabeleireira do bairro, costureira, um
parente.
Olha, quem aliciava as vitimas eram pessoas, geralmente, muito próximas a elas, uma
cabeleireira que gostavam muito, ou uma pessoa que trabalhava com dança; na verdade
A., que foi o maior aliciador daqui, era costureiro; então, eram pessoas que tinham acesso
à vitima, pessoas conhecidas, muitas vezes uma convida a outra, sabe.. entrou sem querer
nesta situação e chama a amiga também, ou alguém da família, a família se mobiliza,
ajuda, mas, antes disso acontecer, tem família que não tá nem aí, especialmente se não
existe ainda uma violência extrema, uma situação de opressão, eles não denunciam, não
se sentem vitimas (Fort4, Delegado, DDM).
Assim, pelo que a gente vê, através da nossa assistência, é que o aliciador, normalmente,
é alguém muito próximo à vitima. Então, pode estar envolvido em redes domesticas, nos
contatos mais próximos, tipo, uma amiga, alguém da mesma comunidade. São pessoas
que inspiram confiança e que, mesmo não estando pertinho, de qualquer maneira,
inspiram confiança (Bras7, Responsável pelo Núcleo).
Estas armadilhas que vem do próprio vizinho de casa, do amigo, do proprietário do bar, do
namorado, do ex-marido, de todas as partes, em modos diferentes, eu já vi todas as
possíveis formas de aliciamento (Guar1, ASBRAD).
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Não é raro que as aliciadas de ontem se tornem aliciadoras de amanha, fazendo o jogo, passando aquela
imagem de uma migração de sucesso.
Geralmente são pessoas da própria comunidade, que procuram passar uma imagem de
confiança, de sucesso no exterior, ou seja, “fui, voltei, ganhei grana, comprei minha casa,
me transformei (no caso das trans), tive sucesso, você também pode ter sucesso”. Então,
muitas vezes a vitimas de outrora se torna aliciadora e, quando existe um contato, por
exemplo, uma pessoa no exterior que quer explorar a vitima na Itália, ela procura uma
pessoa aqui, de preferencia uma pessoa que fale a língua, que demonstre sucesso e as
boas coisas que obteve no exterior, para tentar seduzir estas vitimas o mais rápido
possível; por isso, não são quadrilhas, são só estrangeiros, estrangeiros que se organizam
em quadrilhas e recebem ajuda de pessoas daqui, as quais trabalhavam já com esses
cafetões, estes intermediários que trabalhavam já no mercado do sexo (Bras2,
Coordenadora, NETP).
Sabemos também que muitas das vitimas tem a grande possibilidade de tornarem-se, por
sua vez, exploradoras. Elas são aprisionadas neste sistema e se tornaram vitimas e, por um
ou outro motivo, quando chegam ao destino, acabam se tornando aliciadoras ou
exploradoras. Acontece quando chegam ao destino, se encontram em situações muito
diferentes da situação em que se encontravam antes, então, para ter um pouco mais de
benefícios dentro desta situação de escravidão, começam a aliciar também (Bras1,
funcionário, SNPDCA).
Não, não se trata de uma organização E isto a gente ouviu de mais de 50 interlocutores
diferentes. Ou seja, o que nós chamamos de trafico de pessoas não é administrado por
nenhuma grande organização Se tratam de pequenas redes que, talvez não se vejam nem
como redes. Simplesmente, são pessoas que voltam pra sua cidade natal, são pagas pelos
próprios patroes, e contam uma estoria muito otimista, muito positiva da experiencia que
viveram no exterior, aos amigos, parentes, enfim, pessoas conhecidas. Praticamente,
ninguém se deixa enganar por um estranho. Normalmente, o que a gente chama de rede
são: amigos do bairro, familiares, pessoas conhecidas, porque isso traz muita confiança
pra vitima. Tem aquela prima que voltou muito bem vestida, com joias, etc, dizendo que
na Europa se ganha bem, assim, a vitima confia na sua prima, na amiga da prima, na tia da
amiga da prima. Então, as redes sabem exatamente onde ir para aliciar as vitimas.
Começam nos bairros, onde encontram um maior numero de pessoas conhecidas. É muito
mais fácil (Bras9, L., ministra).
Geralmente, as vitimas são aliciadas por uma rede criminosa e, quando digo “rede
criminosa”, não estou falando de uma rede criminosa bem estruturada, grande, não. Às
vezes, se trata de uma única pessoa, uma vizinha de casa, às vezes, uma pessoa da própria
família, que viveu uma situação de trafico, e foi promovida a aliciadora local. Então, ela
volta pro seu país, pra sua cidade natal, e tenta aliciar algumas pessoas, com promessas
de emprego, incluindo trabalho como prostituta. Mesmo porque, o trafico de pessoas não
se opõe às politicas (Bras3, Coordenadora, SNG).
Se não são estrangeiras, são brasileiras. Às vezes, um brasileiro casa com um estrangeiro e
vai morar no exterior. Este estrangeiro, talvez, está já envolvido com situações de
prostituição, então começa a aliciar por aqui, talvez tenha algum amigo, um conhecido
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que esta a par da situação e quer ganhar algum dinheiro com isso; ou então tem aqueles
conhecidos da família (Fort8, Delegado).
Muitas vezes, as famílias são cúmplices, porque, mesmo quando não estão diretamente envolvidas na
exploração, não perguntam e nem se intrometem, exceto porém quando param de receber dinheiro.
A gente desconfia [das famílias]. Não é que elas dizem “ah, fui explorada pela minha
mãe”, elas dizem, por exemplo.. a garota deste caso que estávamos falando me diz: “sabe,
eu tinha que trazer dinheiro pra casa, não importava como eu ia ganhar o dinheiro, o
importante era trazer dinheiro pra casa. Claro que minha mãe e meu pai sabiam o que eu
fazia, mas não falavam nada, queriam só o dinheiro”. E pra gente, isto é um problema, um
desafio, ver que a família da vitima denuncia o caso só quando a vitima desaparece, por
exemplo no exterior, ou então, em outra cidade do Brasil. “E aí, como foi que esta vitima
desapareceu? Vocês perceberam porque ela não ligava ou não escrevia mais?” “não, é
que ela parou de nos mandar dinheiro”. Então, mesmo se a vitima não dá as caras, não diz
nada sobre como são suas condições de vida, etc, mas manda dinheiro, então a família
pensa que tá tudo bem, e nem pensa em procurar o núcleo Nós recebemos casos onde a
família procurou a vitima somente quando não recebia mais o dinheiro, mas, às vezes, é
tarde demais. Neste caso, né, a gente conseguiu localizar a vitima, ela estava bem, não era
vitima do trafico, como tinha dito, inicialmente a família. Este caso já foi direcionado ao
Consulado e à Embaixada, mas de qualquer forma, como te dizia, as famílias nos procuram
pra fazer denuncia somente quando as garotas ou garotos param de mandar dinheiro; foi
até ilustrado por uma pesquisa “Viagens Transatlânticas”, publicada recentemente pelo
Ministério da Justiça, que fala de uma mãe.. tinha esse contato entre mãe e filha, pelo
telefone, a filha dizia: “eu to passando por isso.. sofrendo com aquilo.. não aguento
mais..”, e a mãe dizia: “filha, escuta, eu to acabando de reformar a casa, aguenta firme
mais um pouco, manda ainda um pouco de dinheiro, e depois pode fazer o que você
quiser”. Existe esta relação de total dependência, a família que fica aqui e precisa do
dinheiro que a vitima ganha, com muito esforço, no exterior (Bras2, Coordenadora, NETP).
Porque agora, a minha mãe me respeita, porque tem dinheiro entrando na sua conta do
banco, entende? Quem dita as regras é o dinheiro, se tenho dinheiro, toda a minha família
me aceita, é bem assim, quando não tiver mais dinheiro, minha família me ignora. Pra nós,
travestis, a situação é bem assim, uma situação muito.. quer dizer, não importa se estou
doente ou não, se tenho AIDS ou não, mas se eu mando dinheiro pra família, tudo muda,
talvez comprem uma casa com a grana, mas que seja bem longe de mim... vez em quando
vem me visitar, comemos juntos... se não, fica ai na tua casa e não venha encher o saco
(Fort9, Transexual militante).
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1.5.4. Aquele discreto limite entre turismo sexual e trafico de pessoas
O trafico de pessoas, então, nasce de um sonho mal realizado, o sonho de melhorar as próprias condições
de vida, sair da miséria, fugir de situações familiares problemáticas – quando não, violentas. Mas o sonho,
para muitas, é sempre aquele do “príncipe encantado”, do gringo - o turista estrangeiro – que chega,
encanta e prometem a elas um futuro rosa, não só do ponto de vista econômico Sonhos que, na maior
parte dos casos, batem de frente com a realidade.
A mulher tem sempre essa ilusão de se casar, de ficar bem, disto e daquilo. Você viu o que
aconteceu três, cinco dias atras, uma garota aqui do Ceará casou com um alemão, mas o
alemão tratava mal as crianças e coisas desse tipo.. trancava ela em casa, como um
carcere privado, e ela, o que podia fazer? Voltou pra cá, pro Ceará, sem dinheiro, como
antes. Então, existe ainda quem se ilude com o casamento, o que podemos fazer? (Fort9,
trans militante).
Tem muitas garotas do Ceará que vão principalmente pra Espanha, em Santiago de
Compostela, e é uma novidade interessante que vimos nas pesquisas: não só casos de
exploração sexual, mas casos individuais, onde eles as levam daqui já com promessa de
casamento; quando chegam ao destino, não se casam mas as fazem trabalhar como
escravas nos trabalhos domésticos, ou então, como escravas sexuais de alguns amigos e
parente. As mulheres e as trans que vão pro exterior, acreditam que o gringo seja seu
príncipe encantado, vemos muito esta situação Elas querem sempre encontrar um gringo
loiro, alto, rico, o príncipe encantado das fabulas que ouviam quando pequenas, contadas
pela mãe, então vão em busca do casamento dos sonhos, em busca de amor, e não só em
busca de dinheiro, mas de um homem perfeito, deste amor que nunca encontraram por
aqui (Bras2, Coordenadora, NETP).
Estou feliz, festejo pois estou indo viver lá agora, é uma pessoa que conheço há três anos;
não tem nenhum perigo que me trate mal, pois eu já vi muitos casos de homens que
pegam as mulheres, colocam elas pra se prostituir, coisas assim. O meu é meu marido, ele
me ama, né? Tem três anos (Entrevista, A., Fort8R).
O turismo sexual pode ser feito a titulo de experiencia, ou pode se tornar um trampolim para o trafico de
pessoas.
O turismo sexual funciona como um trampolim para o trafico de pessoas, e é o que
acontece: o turista chega, conhece a garota, se apaixona pela garota, ela, com aquele
sonho de encontrar seu “príncipe encantado”, que seria a melhor coisa que poderia
acontecer na sua vida. Em geral, eles (os turistas) mantém as garotas por um período, aqui
no Estado, pois as garotas tem uma condição econômica muito desfavorável; em seguida,
as levam embora, com falsas promessas que , na Itália vai ser uma fabula, e então começa
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o trafico de pessoas, garotas que se submetem à violência, a serem escravas do sexo, do
trabalho doméstico. Via muito isso. As garotas, vitimas do trafico de pessoas, tinham entre
18 e 24 anos, jovens, morenas, não eram negras, eram morenas, bem miúdas de
constituição, magras, tinham o corpo um pouco infantil, assim, sem peito. Ninguém dava
18 anos pra elas! Tinha tipo um perfil de preferência por essas garotas, ou seja, a garota
morena.. e eu sempre me perguntei porquê, ah é porque as “cearenses” são mais
afetuosas, são quentes. O turista sexual fazia certas comparações quando a gente
interrogava eles; eles dizima “ah não!, as alemãs são muito arrogantes, as inglesas são
muito frias..”. Sabe, tinham até o perfil das cearenses, ou seja, o estereótipo delas. É
engraçado como eles veem as mulheres daqui e pensam que são fáceis de cortejar, de
manter, muitas vezes, próprio por causa da própria condição econômica, a baixa
escolaridade, a pobreza, e na própria família, muitas foram abusadas sexualmente
durante a infância, então, pra ela.. ela pensa que ele é seu príncipe encantado, de
verdade.. ela não foi por causa do convite, “ah, eu fui porque eu quis”, mas depois,
quando as coisas começam a dar errado lá [no exterior], elas se encontram em uma
situação de restrição e violência, e é ali que entendem o que é o trafico de pessoas (Fort4,
Delegado, DDM).
No inicio, eles tentaram esconder esta relação do turismo sexual com o trafico de pessoas,
mas na pratica isso ocorre, a gente sabe que existe uma relação. Nós tentamos
desconstruir esse termo “turismo sexual”. Um dia, eu estava tendo aulas em uma escola
sobre turismo, e me perguntam: “Doutora, existe o direito de corrupção?” e eu: “não,
existe o direito ambienta, o direito penal”. E ela: “então não chame de turismo sexual, né?
Quer dizer, existem exploradores sexuais que usam estas estruturas turísticas para
desenvolver essa atividade ilegal.” Desde então, parei de usar esta expressão “turismo
sexual”. Mas existe mesmo, é visível, às vezes, quando as garotas estão nos focos de
prostituição, tem uns taxistas que chegam assim, misteriosamente, passando como se
estivessem fazendo a ronda, ou algo do tipo, pras redes hoteleiras, principalmente nestes
hotéis e restaurantes de estrangeiros.. tem aqueles que são de propriedade do
estrangeiro, ou então que o estrangeiro é diretor, empresário.. se suspeitamos de alguma
coisa, a gente avisa a policia, a delegacia que ajuda os turistas, ou a policia federal,
dependendo do caso. Mas vemos que existe, e é por isso que o trabalho de prevenção que
fizemos nos hotéis, nas associações dos taxistas, nos pontos turísticos, por exemplo, no
mercado central; nós estamos intensificando, principalmente agora com a Copa; vemos
que existe essa preocupação também nas cidades litorâneas.. os proprietários dos
buggys.. Tem também “empresários” que possuem os “books” (de fotografias) das
garotas, pra oferecer pros turistas. Nas feiras também... aconteceu, por exemplo, durante
a festa do Padre Cicero. Tinha essa pessoa que mostrava esse álbum com fotos de garotas.
Infelizmente existe. Existe uma relação, tanto é verdade que já estamos organizando um
curso sobre o tema exploração sexual, trafico de pessoas e turismo, para os profissionais
da segurança publica, assim eles serão capazes de identificar, seja no aspecto mais teórico
dos Direitos Humanos, seja nos aspectos práticos, esta ligação, e o que fazer, como se
comportar, como quebrar o preconceito, porque muitos dizem: “ah, se ela foi, é porque
quis ir, é uma garota de programa, entre aspas, e ela vai porque quer”, e ninguém pode
fazer nada, porque quando a adolescente é explorada, ela não pode dizer se pra ela tá
bom ou não (Bras2, Coordenadora, NETP).
Sim. As duas coisas são colegadas. O turismo sexual é este lado da moeda. Através dele, os
estrangeiros entram em contato com as casas noturnas do Brasil, com os bordeis,
conhecem mulheres e homens brasileiros, fazem os primeiros contatos que, mais tarde,
darão vida a este fluxo. Então, estas duas coisas estão intimamente ligadas (Bras9, L.,
ministra).
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Tentamos, então, reconstruir melhor os cenários do turismo, a partir dos depoimentos. O envolvimento é
bastante fácil e mais próximo de uma abordagem não relacionada à compra de sexo.
Então, assim, tu tá sentada em uma mesa, o cara começa a te flertar e te chamar pra
mesa, aí tu vai lá, bate um papo e rola de combinar, certo, o valor. Aí ele vai lá, uma hora é
tanto, tá ótimo, vai. Agora, se ele gostar, ele vira teu cliente, entendeu? Ou então ele fala
“Oh, vou passar 20 dias aqui, quero você 20 dias comigo, quanto é que tu fecha o pacote
para 20 dias?” É assim. (Entrevista, V., Fort7R).
Os turistas, segundo as testemunhas, sejam eles estrangeiros ou não, não são muito jovens, de classe
media, trabalhador, profissionais de médio escalão
Acredito que sim, sabe porque? As pessoas que vem de uma classe social mais alta, da
Europa, normalmente... não quer dizer que não venha gente assim, mas, normalmente
quem vem é de classe social mais baixa, la da Europa. Não acredito que venham
empresários especialmente para isso, o que vem é operário, de uma classe inferior
mesmo, chegam aqui com dólares, euros, o dinheiro deles vale mais aqui (Fort, Taxista 2).
São homens maduros, e as garotas são muito jovens. De fato, não se vê muito rapaz
jovem, só homens mais maduros. (Fort, Taxista1).
Os turistas são brasileiros e estrangeiros. Todos, todos. Os homens daqui, de Fortaleza, os
turistas, os nativos do lugar. A maior parte das garotas não estão na beira mar; estes
turistas não ficam o dia todo no mar, eles se informam onde tem garotas a um bom preço
e vão nas periferias procurá-las (Fort1, NETP).
O europeu, tipo assim, os trabalhos deles lá fora é assim, uma classe que você, assim,
desvaloriza aqui no Brasil, é tipo o que, construção civil, garçom, bombeiro hidráulico, que
lá é bem remunerado, recebe muito bem. E aqui no Brasil não. Tipo (ele) trabalha um, dois
anos junta aquela quantia de dinheiro e vem para o Brasil né. Aí quando chega aqui a
menina pensa que é rico, milionário, mas não é né. É, trabalhador. É uma vida que quando
eles retornam ao país deles né não tem aquela vida lá de festa todos os dias não. É tudo
regrado. Dia de festa, dias de trabalho né. Tudo tem suas regras mas de um pouco de cada
coisa. Então a maioria são mesmo trabalhadores. Trabalhadores. O meu trabalha com
construção, aí ele ganha muito bem porque lá fora né é mais, o euro né (Entrevista, N.,
Fort5R).
Quanto a nacionalidade, em Fortaleza a maioria são italianos, seguidos pelos holandeses e suíços,
noruegueses e, ultimamente, também os chineses, enquanto parece ter menos espanhóis nem norte
americanos.
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Italiano. O italiano, a maioria são italianos, depois vem os suíços, os holandeses e .. mais
raramente, os espanhóis, e ainda mais raramente, os americanos. ah.. aqui é como se
fosse a segunda casa dos italianos, Beira Mar, a segunda casa (Entrevista, P., Fort10R).
É muito mais italiano que holandês, não muito inglês, não muito espanhol. Um pouquinho
de tudo, sabe? Mas assim, nem velhos e novos, um pouco acima de 40, 50 60 anos, mas
assim , sobre esse negócio de sexo eu não sei, que a metade vem que eu conheço para ver
o lugar, outros vêm para sexo turismo mesmo, como a gente já sabe (Entrevista, H.,
Fort01R).
Bom… Holanda, Itália, Portugal, Noruega, Suíça, mas depende do lugar... agora estão
chegando um monte de chineses, tem uma grande empresa aqui no centro de Fortaleza
(Entrevista, T., For04R)
Algumas mulheres não acreditam que exista uma diferença substancial entre os homens que vêm de outros
países, porém, algumas acreditam que exitem sim diferenças, e que os “piores” são os italianos.
Bom, pessoalmente, não tem nenhuma diferença, mudam só de endereço e nome,
porque os homens são praticamente todos iguais. Para mim não tem nada de diferente,
só o país e a língua, tirando isso, não tem nada mesmo de diferente. Gringos e brasileiros
tem, praticamente, o mesmo jeito de fazer as coisas. (Entrevista, H., Fort01R).
Eu não gosto dos italianos, são os piores, os piores homens de todas as especies. Te digo
uma coisa, serei um pouco mal educada mas, se um dia eu for presidente do Brasil, eu
mando os italianos embora do meu país. Sinceramente, eles são uns porcos, nojentos. São
ruins. É inútil comparar, eles são ridículos, mal educados. Uns verdadeiros palhaços.
Melhor que ninguém me eleja presidente deste país, se não, se eu for eleita, os italianos
não entrarão mais no meu país, nunca mais. Eles são uns tiranos, não valorizam a mulher,
não querem nem saber, quer dizer, pensam que só porque estão pagando, podem
praticamente estuprar a mulher. Não, assim não. Não é assim que funciona. Tudo tem que
ser feito com delicadeza, até o sexo. Não tem amor, mas tem sexo. O sexo é uma relação
Todas as relações sexuais devem ser vividas com afeto, com ternura. Por que falo de
afeto, porque não tem amor, tem só sexo, mas ele está pagando por um sexo com afeto,
com carinho, nós podemos sentir carinho por tantas coisas, por um animal, um cachorro,
um gatinho, né? Então, porque não conseguem tratar uma mulher como se deve? Eu não
gosto deles. Depois, tem outra coisa, quando chegam aqui, parece que usam uma
mascara. Aqui eles têm um comportamento, no país deles, outro, são totalmente
diferentes. No país deles são umas cobras, maltratam as mulheres, judiam muito das
mulheres no país deles. Aqui eles são doces, gentis, mas vai pro país deles, vai, e você vai
ver. Eu nunca fui e não tenho nenhuma vontade de ir (Entrevista, Y., Fort6R).
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Este ultimo depoimento é interessante porque nos permite refletir sobre duas dimensões sugestivas.
Primeiro, o tipo de masculinidade encenada nesta troca de sexo por dinheiro (Tabet, 2004), que é muitas
vezes uma masculinidade que se define também através de uma sexualidade hidráulica (Ciccone, 2009),
como uma válvula de escape, no qual a outra pessoa – a parceira sexual – é um objeto. Adicionado à isso, a
representação dicotômica do feminino, que ainda prevalece em todas as sociedades ocidentais (embora
com diferentes nuances), que rotula a “mulher de bem”, portadora de direitos e digna de respeito, e a
“vadia”, aquela que perdeu o direito ao respeito e à proteção justamente por ser objeto sexual, por ser
prostituta (O’ Connell Davidson, 2001). Com base em tal processo de construção social da masculinidade
hegemônica, o cliente pode se sentir autorizado em realizar um ato sexual como se a outra não fosse uma
pessoa. Tudo, então, se torna legitimo, até os modos brutais, a falta de respeito e até mesmo a violência O
cliente/turista, mesmo se ele “estupra” alguém, maltrata, ou se mostra indiferente ao desespero de quem
pede ajuda – como no caso descrito no capitulo anterior, da garota romena que chorava durante o sexo –
não perde sua dignidade como cidadão e continua a ser um homem de bem, aos seus olhos e aos olhos da
sociedade. Continua sendo “homem”.
A segunda dimensão diz respeito, no entanto, às narrativas sobre o turismo sexual. As mulheres
entrevistadas – mulheres ou trans – encenam performances destinadas a afirmar a dimensão das relações
humanas e o distanciamento da realidade da prostituição, em seu verdadeiro sentido, então, essa troca
econômica existe, mas parece ser um detalhe pouco importante em termos de definição da situação
Tem uns que é mais assim, não sei como é que dá para explicar. Tem uns homens mais
safados, tens uns mais comportados,os mais discretos, tem os que chegam logo: “ quanto
é?” . O que é isso? Eu não estou a venda, né. Não sabem chegar perto de uma mulher,
“quanto é? Quanto você quer?’’ Não é assim. Você não pode estar sentada no bar
tranquila que já chega: ah! vai ali na Beira Mar, vai um pouco na discoteca, e sai para se
divertir, não pode. Hoje, você é assediada em qualquer lugar que você estiver, seja na
praia, na discoteca, no cabaré, em qualquer lugar que você chega. Mas fora isso, tem
muito homem legal (Entrevista, H., Fort01R).
Ele te pega ali, te leva pro apartamento, te paga e se ele gostou de você, te telefona. Se
ele gostou, ele liga: “ah! A gente se vê amanha, gostei de você, vamos continuar saindo
juntos até o fim das minhas ferias”. Aí eu: “ok”. Só que quando eu saio com ele, não estou
ganhando dinheiro me prostituindo, tô saindo porque tô gostando, porque ele me dá
presentes, assim, viajo, vou pra Canoa, pra Jericoacoara, essas coisas assim. Como eu falei,
né, eu saio pouco com ele. Não se trata de escolher, porque, se chega um e diz: “ei! Sai
comigo, te dou tanto”, a quantidade de grana pode ser que não valha a pena. Então se
trata disto: se eu tiver que sair com uma pessoa, eu saio, mas com uma pessoa que valha
a pena; não saio com qualquer um só pela grana, não, eu gosto de sair quando sinto
vontade, quando quero mesmo (Entrevista, G., Fort03R, TS).
No turismo sexual, esse cenário de troca de sexo por dinheiro muda, o que permite construir diferentes
representações no que diz respeito ao relacionamento cliente/turista – definido também como cliente
amigo ou namorado – e portanto, o seu papel no jogo da troca e na sociedade em geral. Seja qual for o
nível de aderência às representações da realidade, um dos êxitos é aquele de diluir o estigma, favorecendo
a operação camuflagem (mais eficaz para as mulheres que para as trans), e que as permite de serem menos
percebidas pelos outros e de perceberem-se menos ainda como “vadias”.
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De certa forma, esta função de camuflagem também funciona para o “turista”, que pode, mais facilmente
que o cliente tradicional, fazer um discurso que tende a absolver a si mesmo (para um maior
aprofundamento sobre a figura do cliente, consultar o quarto capitulo deste relatório). Em outras palavras,
a construção de um quadro “artificial” onde reescrever o roteiro da relação cliente/prostituta e aplicá-lo no
verdadeiro contexto do jogo da sedução entre homens e mulheres livres e conscientes, permite aos turistas
sexuais falarem de suas próprias experiencias de relações sexuais a pagamento, minimizando os aspectos
puramente econômicos de compra e venda, e suavizando a questão do desequilíbrio de poderes através
das lentes estetizadas do relacionamento romântico entre “namorados”. Por estas dinâmicas, também
muitas vezes aparecem representações de matriz colonialista que, do ponto de vista dos clientes, por um
lado exacerbam as conotações estereotipadas construídas baseadas nas etnias – as sul americanas alegres,
“calientes” e despreocupadas, as africanas sexualmente “animalescas” etc.. - e por outro lado, se
aproveitam das condições de privação das “namoradas” como uma condição através da qual se autoabsolver ou até se vangloriar - “dando presentes, de qualquer maneira, você esta praticando uma boa ação
pra essas pessoas que não tem nada...”-.
1.5.5. Redes, rotas e exploração no trafico de mulheres – e trans – brasileiras
Todos os depoimentos coletados sobre o trafico de pessoas concordam com uma coisa, que não se
podemos falar de grandes organizações internacionais envolvidas nesta gestão Seja no caso do trafico
interno, seja do trafico internacional, se tratariam de pequenos grupos organizados em redes, de modo a
proporcionar uma clara visão do trabalho e uma vantagem econômica pra todos.
Não, não é uma associação internacional, são redes organizadas, grupos. Este, por
exemplo, o aliciador de lá era o Zíngaro, casado com uma brasileira, R., então, esses dois,
R. e o Zíngaro, foram eles que organizaram tudo. Ele era proprietário de um bar em
Salamanca, e vinha pegar garotas daqui. Estava quase levando 5 garotas de uma vez só,
mas conseguiu levar só 2 ou 3, porque as outras desistiram por algum motivo, ele vinha
sempre aqui procurar mão de obra, digamos assim (Bras6, Politico, CPI).
O que temos nas mãos, na verdade, são só provas. Evidencias. Assim, sabemos que, tanto
no trafico internacional de pessoas, como no trafico interno, nacional, existe um certo
nível de organização Normalmente tem uma quadrilha organizada, onde um deles fica no
lugar de origem, para aliciar pessoas, um pra fazer o transporte, um pra receber a pessoa
e outro pra explorá-la É uma cadeia. Começa no lugar de origem da vitima, depois chega
no destino. Todos ganham: o aliciador, o transportador, o recepcionista e o explorador
(Bras1, Funcionário, SNPDCA).
Bom, daquilo que vimos, é muito difícil traçar um perfil adequado, um perfil único do
traficante, mesmo porque, a rede do trafico de pessoas possui muitos atores, desde o
aliciador que, em muitos casos, pode ser um membro da família da vitima; os taxistas, os
proprietários de bares e restaurantes, discotecas. Depois, tem os componentes da rede
que são responsáveis pelo transporte destas vitimas, no caso do trafico internacional. Daí,
tem o beneficiário direto, que seria o chefe da quadrilha de exploradores que,
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normalmente, pelo que a gente viu, são pessoas que vivem aqui no Brasil; tem também
membros da quadrilhas que ficam no país de origem, e outros no país de destino. Por isso,
nós achamos muito difícil traçar um perfil único, pois percebemos que é muito variável
Principalmente agora, onde existe uma participação também dos traficantes de drogas
neste mercado do trafico de pessoas! Então, é um perfil, pelo que vemos, pelo que lemos,
muito complexo de ser definido exatamente (Bras4, Juiz, CNJ).
As rotas do trafico são muitas, e estão sujeitas a mudanças continuas, mesmo em relação aos controles e às
ações repressivas. No que diz respeito ao trafico interno, também sujeito à mudanças, existem fluxos
importantes do Norte ao Sudeste e, na zona de Fortaleza, do interior para o litoral. O Estado de Goiás
parece ser o centro nevrálgico, seja como destinação para o trafico interno, seja como centro de
aliciamento para o trafico internacional. Sendo que para este último é mais difícil ainda reconstruir as rotas.
O que sabemos é que, muitas vezes, as brasileiras envolvidas no trafico de pessoas, chegam em um país
diferente ao de destino.
Estas rotas mudam muito, porque muitas vezes a policia consegue identificar uma rota,
esta é flutuante, muda, e vai em outra direção, acontece muito isso. De qualquer forma,
de acordo com todos os estudos sobre o tema, realizados pela ONU, pelo Ministério da
Justiça e, juntamente às nossas investigações, existe aproximadamente 240 rotas de
trafico interno e internacional. Foi o que conseguimos identificar até agora (Bras6,
Politico, CPI).
O que vimos nos últimos dois anos é que aconteceu uma mudança no movimento das
rotas, ou seja, Goiás se tornou um destino para as vitimas, especialmente vitimas do Norte
do Brasil. Uma coisa que percebemos aqui é que ocorreu um aumento no trafico de
adolescentes, de transexuais adolescentes, para fins de exploração sexual aqui em Goiás.
Sabemos que é uma coisa que varia muito. As primeiras rotas eram de Goiânia direto pra
Portugal, pela facilidade do idioma. Depois, com o tempo, procuraram percursos
alternativos, porque existia uma opressão maior naquele país, assim como na Espanha. E
temos noticias de pessoas que vão pra Argentina pra depois ir pra Espanha, ou então, para
outros países da América Latina, e temos noticias também de pessoas que tentam chegar
na Europa, via Africa. Acredito que a Policia Federal esteja fazendo o mapeamento destas
rotas. Existe uma variedade de rotas feitas propositadamente para tentar fugir da
repressão E, na maioria dos casos, as vitimas são instruídas a não falar do motivo da
viagem. Normalmente, inventam uma desculpa, dizendo que vão fazer turismo, ou visitar
um parente (Bras4, Juiz, CNJ).
As brasileiras normalmente entram em um país que não é o país do destino final. De
qualquer maneira, elas conseguem encontrar, aliás, se deixam encontrar pelos aliciadores,
ou pelas redes de exploração, dificultando o controle pelas autoridades nacionais. Então,
quem está indo para a Espanha, entra em Portugal (Bras9, L., ministra).
Tem muitos casos de travestis e transexuais que saem do Norte e vem pro Sudeste, uma
rota interna. Chegam ao destino, com aquela velha promessa de transformação do corpo,
coisa que não tem no Norte, como, a aplicação de silicone, aplicação de hormônios,
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megahair, a mudança da imagem da pessoa, falo deste tipo de publico, obviamente. A
mesma coisa acontece no Nordeste, seja no interior, seja no litoral, a questão do turismo
sexual. Na própria cidade de Fortaleza, sabemos que é muito forte esse movimento do
interior pro litoral. Em Goiás, sabemos que existe um histórico de vitimas que foram pelas
rotas europeias. Não só pra Espanha, Portugal e Itália, mas também Suíça, que é uma rota
muito importante sempre. Depois, existem as rotas internacionais que, na verdade, têm o
Brasil como destino final. Vemos sempre mais bolivianos, paraguaios, sendo traficados
para fazer trabalhos domésticos, ou para ser explorado sexualmente no Sudeste. Vemos
todos esses movimentos (Bras3, Coordenadora, SNG).
O trafico internacional tem como meta principal a Europa e, particularmente, país como Portugal, Espanha,
Holanda, Suíça e Itália
Então, naquele período, na região da Niquelândia, que ficava no Norte, perto de Uruaçu,
tínhamos já notado um grande êxodo para a Europa, principalmente Portugal, Espanha,
Holanda, Suíça, Itália (Bras4, Juiz, CNJ).
Com relação à viagem, o meio mais utilizado no trafico internacional é o avião, onde as garotas – ou trans –
viajam com documentos normais que, muitas vezes, são sequestrados quando chegam ao destino.
Enquanto que, no trafico interno, a viagem é principalmente via terrestre, pois, como foi visto, as estradas
são controladas com muito menos frequência.
Bem, como base na nossa experiencia de assistência, elas vão para o exterior, é tudo
muito bem organizado. Compram a passagem, possuem o passaporte original. Aquela
estoria de falsificar documentos não acontece. É tudo legal, tudo nos conformes (Bras7,
Responsável pelo Núcleo).
No trafico interno, tivemos casos onde as pessoas eram trazidas do Nordeste ao Sudeste
do país. Quem explora vai na prisão procurar candidatos no meio da população mais
pobre... chegam la, aliciam e levam pra São Paulo, Rio de Janeiro, para as grandes cidades,
para depois, explorá-las sexualmente Recentemente, tivemos em Altamira, no Pará, o
caso destes mulheres que foram levadas ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina,
enfrentaram seis dias de ônibus para chegar em Altamira (Bras1, Funcionário, SNPDCA).
Vão de avião, são muito bem orientadas... quando vão buscar o passaporte, se vestem
elegante, para disfarçar a verdadeira condição de pobreza delas (Fort1, NETP).
Uma coisa era clara: quem fazia toda a documentação da garota era a mesma pessoa a
levava pro exterior; assim que chegavam ao destino, sequestravam os seus documentos.
As garotas não podiam ficar com seus documentos, ficavam com a pessoa que lhes pagou
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a passagem. Foram unanimes em dizer isso, todas as garotas disseram isso (Fort3,
Associação das Prostitutas).
A exploração segue repertórios conhecidos, já vistos em outros países parceiros do projeto, sem diferenças
muito importantes entre o trafico interno e aquele internacional.
Além do sequestro de documentos – especialmente relevante na dimensão do trafico internacional de
pessoas – um elemento que se repete sempre, é o da divida eterna, a qual se somam ainda todos os outros
gastos, como, aluguel, alimentação, aquisição de bens de consumo, medicamentos e, para as trans, os
custos de tratamentos com silicone colocado pelas bombardeiras.
Sequestram o passaporte delas, daí, as meninas ficam com medo, né, porque estão sem
documento, estão ali ilegalmente, são prostitutas, são transexuais, e depois, no caso das
trans é ainda pior, também porque: estrangeiras, transexuais e prostitutas… elas tem
sempre medo de procurar as autoridades locais, quando quem as explora apresenta a elas
o valor da divida, “gata, tem ainda isso pra pagar, cabelo, passagem, roupas, etc..” então
elas ficam presas em casa, neste recinto, e é lá onde moram e trabalham (Lívia, Fort1,
NETP).
No caso de vitimas de exploração sexual, elas são forçadas a realizar um numero de
“programas” muito maior do que o considerado normal, enfim, e se encontram mais
endividadas ainda. Podemos notar que, em todos os casos, o modo mais usado para
continuar a explorar da garota, é o endividamento. Então, eles as “dão de presente” a
passagem de avião, mas, depois, elas vão ter que pagar tudo, porque os gastos
aumentam.. não é só a passagem, tem hospedagem, o sabonete liquido que usa, tudo o
que, entre aspas, parecia ser oferecido, na verdade, ela vai ter que pagar. Então, os gastos
aumentam, a divida aumenta. Mas elas têm sempre aquela perspectiva: “vou suportar a
situação até eu conseguir pagar toda a minha divida, assim que eu conseguir, estarei livre,
e vou poder tomar conta do meu próprio trabalho com a prostituição...” mas daí, ficam
presas ali (Bras10, Diretora do Núcleo, SPM).
A maioria das vezes, elas dizem que usavam o preservativo.. inclusive, estes preservativos
eram vendidos pelas cafetinas, e isso aumentava ainda mais a divida, e não é só isso, além
dos preservativos, tinha também: roupa de cama, aluguel do quarto... qualquer coisa
aumentava ainda mais a divida delas (Bras2, Coordenadora, NETP).
Tinha o caso das trans, menores de idade, envolvidas no trafico interno. Foram traficadas
de Pará para Goiás. Era a mesma coisa. O aliciador faz promessas, quem explora, paga o
deslocamento quando a vitima chega, eles “bombam” ela – não sei se você já ouviu falar
neste termo “bombada”, quer dizer que fazem injeções de silicone no bumbum, nos
peitos, e para modelar o corpo – por isso, praticamente, desde o começo da viagem, já
começam as dividas. E a pessoa é obrigada a se submeter à situações de servidão para
pagar a divida e a outras ameaças porque, como já disse, o aliciador está sempre bem
perto da vitima, ou então, conhece a família da vitima, e isso faz sim com que a vitima
acredite nas ameaças, pois a pessoa sabe onde ela mora, onde mora sua família. Então, é
mais fácil ainda de acreditar (Bras5, Jornalista).
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Com relação ao grau de consciência da existência da divida, os depoimentos se contradizem, mas podemos
hipotizar que tal contradição aparente seja, na verdade, um reflexo da variedade de situações, portanto,
algumas tendem a ser mais conscientes que outras.
Estas mulheres chegam já com uma divida de 3000 reais cada. Mas elas não sabem, não
lhes dão essa informação. Sabem que que vão pra lá pra se prostituir. Onde estavam
antes, já o faziam, porém, quando foram aliciadas, não lhes disseram que, primeiro: onde
quer que as levassem elas já teriam essa divida inicial de 3000 reais. Segundo: que tudo
aquilo que elas usarem seria somado à divida. Terceiro: iriam morar em verdadeiras
prisões, em condições desumanas. As condições desumanas são, talvez, o aspecto menos
importante, a partir do momento que estão violando o direito delas à liberdade, já se
aplica a servidão por divida. A pessoa é explorada desde o inicio, desde o transporte,
depois a trancam em um quarto onde ela deve servir cinco, seis clientes ao dia, sem
receber um centavo por isso, e em condições desumanas. Então, para nós, isto é
considerado trafico de pessoas. A pessoa foi levada de sua cidade, foi aliciada, levada para
um outro lugar, diferente do que está acostumada, com finalidade de ser explorada
(Bras1, Funcionário, SNDPDCA).
Então, quando a gente sai do Brasil, a gente tá sabendo quanto vai pagar, a gente tá
sabendo que tem que pagar diária, a gente tá sabendo que tem que pagar pro local pra
trabalhar, tem que pagar transporte pra ir do local onde mora pro setor, então, tem tudo
isso. Elas pensam que é só juntar o dinheiro e trazer pro Brasil, não! Existe um bocado de
sofrimento como existe aqui no Brasil, só que lá é mais fácil, enquanto a menina passa um
ano, dois anos, traz 50 mil euros, que é 150 mil reais, é diferente daqui que tem um ano e
ela num ganha mil reais, na prostituição de 20 reais por dia... e as despesas que ela tem
que pagar (Fort9, Transexual militante).
Muitas vezes, à divida e aos gastos, são somadas multas para quem não obedece as regras definidas e
impostas por quem explora.
É, as multas. Nos bordéis, ou pro traficante mesmo.. existem regras, eles fazem as regras.
Se estas pessoas, vitimas do trafico, não respeitam as regras, são multadas. Isso funciona
seja com o trafico interno que no trafico internacional, como no caso das trans. No caso
das trans, se o cliente leva ela pra casa, depois do trabalho, ela é multada. Imagina! Se ela
não paga uma prestação da divida, ou se esquece de limpar alguma coisa, tipo, esqueceu
um copo sujo, existem multas. No caso do trafico internacional e da exploração, as multas
são aplicadas porque a vitima tava menstruada e, consequentemente, recusou um
cliente... tem, depois, outras situações (Bras5, Jornalista).
Tudo é tratado como se fosse uma negociação comercial. Então, a garota chega, e o
proprietário da atividade simplesmente lhe diz: " Olha, você me deve ainda 9 mil euros,
então, enquanto você não me paga, vai receber só, sei la, uns 20, 30 euros por dia para os
gastos, e as condições de trabalho são as seguintes: vai ter que fazer pelo menos 10
programas por dia, e nos dias em que não irá trabalhar, vai ter que pagar multa, se se
recusar sair com cliente, vai ter multa, além de ter que pagar a diária, o aluguel, as roupas,
bebidas”. É assim que funciona (Bras9, L., Loiza).
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Mulheres e trans vivem e trabalham mais nos bordeis (embora algumas trabalhem também nas ruas) em
condições de graves privação da liberdade de movimento, a tal ponto que quase todos os depoimentos
falam de “prisão”, tornando-se impossivel sair sozinhas, ou dar um simples telefonema pra casa.
As informações que temos são que elas ficam nestas casas de tolerância, nestes bordeis,
onde tem quartos, não podem sair quando querem, como se fosse uma prisão O que
sabemos é que elas são obrigadas a trabalhar muitas horas por dia, saindo com uma
quantidade de clientes que vai desde 8 a 40 homens, mulheres, casais, enfim, elas
praticamente vivem emprisionadas, saem poucas vezes, e quando saem , tem que ser
acompanhadas por alguém, é mais ou menos o que sabemos: saem acompanhadas por
alguém, ou então ficam trancadas nesta prisão dentro de casa, vigiadas por um capataz,
mas que, na verdade, são informantes (Fort1, NETP).
Elas tem que trabalhar, a garota, por exemplo, era obrigada a fazer pelo menos 5
programas cada noite, por 6 meses, para poder balancear a divida, de acordo com o que
ela nos contou em seu depoimento. Uma coisa absolutamente degradante do ponto de
vista de condição humana. Ela não podia responder ao telefone se não tivesse ninguém do
lado, não tinha direito de entrar e sair livremente. Ela não podia pegar o dinheiro dos
programas, porque era descontado do aluguel. Vimos esta mesma coisa na região de
Xingu, na hidrelétrica de Belo Monte (Bras6, Politico, CPI).
São envolvidas... e muitas vezes, tem já aquela amiga que passou por uma situação do
tipo, e que também foi convidada por outras amigas, mas o que elas não sabem, é sobre
as condições de trabalho em que se encontrarão, a prisão, os documentos sequestrados, a
não possibilidade de comunicar-se com a família, e a obrigação e fazer tantos programas
sexuais ao dia – às vezes, vemos também nos telejornais, de 10 a 15 programas sexuais
por dia – são também obrigadas a se drogar para conseguir suportar esta rotina, então,
acabam se tornando escravas do sexo (Bras4, Juiz, CNJ).
Não. Não, a ligação é só uma vez, uma ligação uma vez no mês, entendeu? E assim, como
eles sabiam que eu não tinha muito contato com a minha família, pra eles era bem mais
fácil. Eles pegam mais as meninas que não tem quase contato com a suas famílias, não
tem problemas. Eles investigam a tua vida, certo? Então pra eles tanto faz, tanto fez, já
que tu não tem família. Tanto é que eu conheço meninas, tem meninas que tem cinco,
seis anos que estavam lá, ou estão, não sei, até hoje (Entrevista, V., Fort7R).
Até os ritmos de trabalho são desgastantes.
O tempo todo fazendo programa! De manhã, de tarde e de noite, não interessa
(Entrevista, V., Fort7R).
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As garotas dificilmente ficam na mesma cidade por muito tempo. Geralmente mudam de “ponto” a cada 3
meses. Estas mudanças continuas impedem que se crie uma forte ligação com os clientes ou outras pessoas
do lugar. Diminuindo assim as oportunidades de fuga e as garotas se tornam ainda mais vulneráveis
Existe um grande movimento na Europa, elas chamam “mudar a praça”. Raramente as
garotas ficam na mesma cidade por muito tempo. Geralmente, a cada três meses, elas são
levadas, sem algemas, como itinerantes, para uma outra cidade. Este também é um modo
para dificultar que se criem amizades, vínculos, raízes, de modo que a vitima fique sempre
vulnerável, sem amigos com quem contar, sem ajuda ou mesmo sem informação sobre o
que fazer, sobre como conseguir sair daquela situação (Bras9, L., ministra).
A violência é um outro ingrediente da exploração que aparece também no caso dos brasileiros.
Violência psicológica e física, principalmente, que se torna ainda mais grave no caso das
transexuais, muitas vezes consideradas uma “aberração da natureza” ou uma forma de
perversão que não é tolerável Violência através de ameaças ou espancamento, violência
praticada não só por quem explora, mas também pelos clientes.
Violência física, tivemos o caso de uma mulher que afirmava ter sofrido violência física,
mas ela estava tao traumatizada que não conseguia nem contar o tipo de violência física,
chorava sempre e não conseguíamos concluir a assistência Não tivemos nenhum caso de
rituais mágicos (Fort1, NETP).
No caso das transexuais, a situação é ainda pior, tem muito mais violência por causa da
discriminação, e a exploração é feita por outra trans. Se trata de um mercado fechado,
violento, com vários distúrbios psiquiátricos derivados da situação de pressão a que são
submetidas. Muitas vezes, os clientes delas, sendo homens, são também sujeitos à
problemas psicológicos, quando negam ter tido relações com uma trans. Tudo isso acaba
gerando violência, muito mais violência, violência física Então, as situações de abuso físico
são mais comuns para as trans comparado às mulheres. As mulheres são, geralmente,
submetidas à violência psicológica, ameaças, mas os casos graves de abuso físico, pelo que
ouvimos, são muito mais dramáticos no caso das transexuais (Bras9, L., Ministra).
É porque quando eu falo disso, é como se eu vivesse aquela coisa, aquele sofrimento, de
estar ali na esquina e levar uma pedrada na cara, uma manga, ovos na cara, entendeu?
Fezes na cara, porque as fezes já aconteceu comigo. Eu fui pra rua, tava fazendo um
trabalho de prevenção aí o cara me chamou: “aí”, eu: “oi”, ele: “quanto é o programa?”
Eu: “não faço programa”, ele: “faz não?”, Aí pá, um prato de merda na minha cara. Por
que isso? Que mal eu fiz? Por que essa violência? (Fort9, Transexual militante).
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1.5.6. A saúde em condições de exploração
A exploração coloca sempre em risco o bem estar psico-físico das pessoas envolvidas, atuando em diversos
níveis
O primeiro é aquele da repercussão emotiva da violência, seja essa física, psicológica ou sexual. Algumas
violências deixam sinais incanceláveis e não é sempre fácil esquecer.
Quando chegam [as vitimas], recebem assistência, e são em condições piedosas, física e
psicologicamente falando. Um pouco mais de um ano atras, teve uma vitima a quem
demos assistência, era uma trans que estava na Itália, e chegou com disturbos póstraumáticos gravíssimos; esta sob cura psiquiátrica pois foi submetida a tuto que é tipo de
violência na Itália Então, suas condições físicas e psicológicas são as piores possíveis
(Bras4, Juiz, CNJ).
Um segundo nível é aquele das doenças sexualmente transmissíveis, onde o risco é amplificado a pedido,
pela maiorias dos cliente, de ter relações sexuais sem camisinha
Ouvi uma das garotas dizer que ela foi obrigada a fazer sem camisinha. Depois, quando
voltou, fez uns exames, tava tudo bem, mas ela tinha sido obrigada a fazer isso, quando
estava no exterior, porque pagavam mais por isso. Ela era forçada pela sua cafetina a fazer
tudo o que o estrangeiro quisesse; e se ele pagasse um preço mais alto pra fazer sexo sem
proteção, então ela tinha que fazer porque o valor era maior (Bras2, Coordenadora NETP).
Um terceiro nível refere-se especificamente as garotas transexuais. Um dos depoimentos dizia que o trafico
de pessoas geralmente nasce de um sonho mal realizado, e o sonho das transexuais é aquele de
transformar o próprio corpo de maneira coerente com o que se sente, com o que se é. O que desejam é um
corpo feminino, e as exploradoras – as cafetinas, também transexuais brasileiras – as atraem para si com
promessas de realizar o sonho delas. Para isso, são levadas às bombadeiras, que injetam nelas, sem
nenhum controle do ponto de vista medico, o perigosíssimo silicone industrial. Os efeitos de tais aplicações
podem ser devastantes: deformações devidas ao deslocamento do silicone no corpo, dificuldade em andar,
tumores, edemas, morte causada por infecções generalizadas.
No caso das transexuais, não tem medico, tem só as bombadeiras; é uma coisa mais
informal entre colegas, também transexuais, que fazem aplicações de silicone de maneira
muito artesanal. Não sabemos quem são essas bombadeiras, que realizam essa dolorosa
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aplicação, sem cuidados médicos Não é uma rede de saúde do estado o do município
(Fort1, NETP).
Enfim, um quarto nível se refere ao abuso de álcool e drogas. Enquanto no caso do trafico de nigerianas e
romenas, a droga geralmente não representa assim um problema relevante, para as brasileiras – mulheres
ou trans – o uso e abuso de drogas, além do álcool, é visto com frequência nos depoimentos.
Talvez um outro problema igualmente grave é o alcoolismo e a dependência de drogas,
uma vez que os proprietários das casas noturnas sabem que ganham muito mais dinheiro
com a venda de bebidas alcoólicas e drogas, do que com a exploração da prostituição. Por
isso, as pessoas que trabalham neste mercado são induzidas, seja pelo explorador, seja
pelo cliente, a consumir drogas e álcool Então, no fim se cria uma dependência química
(Bras9, L., Ministra).
A questão da droga é muito forte, não só no caso das mulheres, mas também no caso das
trans e travestis, que bebem e se drogam, junto com o cliente, então, existe também uma
situação de dependência química e forte depressão (Bras3, Coordenadora, SNG).
Bom, temos uma boa quantidade de relatórios de mulheres que tiveram problemas com
drogas. Sabemos que elas se submetem a um sistema de controle, se é que podemos
chamá-lo assim, controle geral da saúde, então, elas são obrigadas a fazer exames
periódicos para detectar se têm alguma doença sexualmente transmissível ou coisa do
tipo, e os resultados destes exames, geralmente ficam na mão dos aliciadores. Então, te
digo, não é uma preocupação das meninas, tipo: “ah! Tenho que fazer uns exames aí pra
ver se eu to bem”, não é uma iniciativa delas, mas dos aliciadores. Assim, as mulheres se
encontram em uma situação onde, se ficam doentes, ou têm qualquer problema de
saúde, elas saem do circuito e não recebem nenhum tipo de assistência (Bras7,
Responsável pelo Núcleo).
Elas mesmas, só para ir para o trabalho, beber, se drogar pra ir para o trabalho, não é eles
não, pelo menos que eu conheço não. Hoje em dia, os homens não estão mais nem
fazendo quase isso, são as mulheres mesmo o que eu vejo. Agora, diminuiu um pouco
porque elas estão indo embora, quando volta... (Entrevista, H., Fort1R).
Como vimos no caso da Romênia sobre o consumo de bebidas alcoólicas, o uso e abuso de álcool e drogas
pode ser induzido pelos proprietários das casa noturnas, bares, mas, às vezes, são as próprias mulheres a
procurar tais substancias para conseguir suportar o dia de trabalho.
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1.5.7. Trabalho autônomo, cafetinagem e agencias que exploram o mercado do sexo
Se, por um lado é fácil cair nas armadilhas das redes de exploração, por outro, não é fácil trabalhar no
mercado do sexo de maneira autônoma No Brasil, assim como na Europa, até as ruas são controladas pelas
autoridades locais, que controlam e dividem o território
Hum.. é um pouco complicado para as mulheres que querem trabalhar com sexo de
maneira autônoma, pois, pela nossa experiencia, observando este trabalho noturno,
vemos, existem já algumas zonas dominadas, por exemplo, por uma cafetina, por uma
pessoa influente, então, para as prostitutas que, por exemplo, quiserem fazer o ponto ali
no poste 3 do Beira Mar – é só um exemplo, na verdade, nem existe este o poste 3 – ela
vai precisar de segurança, vai precisar de alguém que a observe de longe, pra ver se
alguém a trata mal, se tem alguém com intenção de brigar, assim, ela tem melhores
condições de trabalho, não vão ter outras prostitutas em competição pelo mesmo ponto
de trabalho, não vai ter risco de cliente que possa praticar violência à mulher.
Já aconteceu?
Elas contam que, para evitar estas situações, elas entram no esquema da exploração, da
cafetinagem. Acabam tendo que pagar um “aluguel” pelo ponto de trabalho. Até as trans
reclamaram disso, acabam sempre nesta rede de exploração, então, a maioria não é
autônoma, é explorada. Se sentem autônomas porque estão pagando para ter um
manager, por exemplo, mas, de qualquer forma, estão já dentro desta rede de
exploração, o dinheiro dos programas não é 100% delas, elas tem que dar alguma coisa
pros “guardinhas”, entre aspas, por todo o tempo que a protegeu naquele ponto, um
ponto de trabalho mais legal, cheio de clientes ricos, que pagam mais, aí.. Então, existe, e
este mapeamento dos vários pontos de trabalho, estas informações, elas não nos dão,
porque têm medo (Lívia, Bras2, Coordenadora, NETP).
É muito difícil trabalhar como free-lancer nos países europeus. Em alguns deles, existe a
mafia que controla o mercado. Por exemplo, acabamos de ouvir que na Itália existe uma
mafia. Por exemplo, na rua, ninguém chega de maneira free-lance em uma esquina de
uma rua pra se prostituir, porque cada esquina, de cada rua, cada pedaço de calçada, tem
um dono. Tem a mafia albanesa, a mafia italiana. Então, de qualquer maneira, a pessoa
vai continuar a ser explorada (Bras9, L., Ministra).
A exploração parece ser inevitável, embora não necessariamente enquadrada como trafico de pessoas, mas
as mulheres entrevistadas, como já foi dito, não se veem como vitimas, pois escolheram participar de um
projeto migratório, embora a escolha tenha sido feita em condições vinculantes devido à situação de
vulnerabilidade socio-economico-afetiva em que viviam, sem ter ideias claras de todas as implicações da
exploração.
Sob este ponto de vista, é muito importante o depoimento de uma trans que entrevistamos:
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É um pouco exagerada a palavra cafetina a meu ver. Quer dizer, eu moro com uma
cafetina e tal... Isso não existe. Exitem cafetinas, mas muitas destas alugam quartos para
as meninas como se fosse uma pensão Eu moro numa pensão, tenho que pagar a diária,
se você é homem, hétero, você diz que é hétero, vai morar numa casa, tem que pagar o
aluguel daquela casa, daquele hotel, daquela pensão A dona da pensão não quer saber se
você é ladrão, assassino, pra ela não interessa o que você faz, desde que pague o aluguel.
Claro que estou falando de um modo, assim, depreciativo, mas a dona da pensão não
quer saber mesmo o que você faz ou deixa de fazer. Ela precisa só do dinheiro para cobrir
as despesas. Então, no caso das transexuais, acontece mais ou menos assim, elas não
querem saber se você se prostitui, se você estuda, se não estuda, se tem família ou não..
O importante é pagar o aluguel em dia, se ficar 3 dias sem pagar, são quase 100 reais,
então, no quarto dia, ela bota você pra fora, entendeu, e não você não pode nem pegar
tuas coisas, até você pagar todo o dinheiro que está devendo. Ela também tem direitos,
então, eu não posso negar o direito dela, que ela me deu comida, me deu água, me deu
luz, me deu um teto, e eu não pago?!? Com certeza ela vai fazer o boca a boca, então,
outra casa que me recolher, ela vai lá e diz: “olha, fulana me fez isso isso e isso, tá me
devendo 100 reais e, pelo desaforo que ela fez, por ter fugido de casa, então não é 100, é
200 reais”... Por isso que dizem que existe um tipo de cafetinagem devido ao que ela
aprontou, entendeu, devido ao auê que a travesti fez, entende? As cafetinas não são
assim ruins como dizem, elas podem até te dar dicas de como arrumar casamento, para
conseguir ficar no país, tem vários benefícios. Então, tem o lado bom e o lado ruim (Fort9,
Transexual militante).
Neste depoimento é possível perceber um forte e interessante paralelo com o caso do trafico de nigerianas
e com o papel ambivalente da maman, vista por muitas nigerianas, como uma especie de madrasta, aquela
que, sim, talvez a tenha enganado e certamente tira proveito econômico do trabalho de outras
compatriotas, mas no fundo, também é aquela pessoa que estava sempre la nos momentos de necessidade
e sem a qual, o desejo de morar na Europa, nunca teria acontecido (Abbatecola, 2006, 2012).
1.5.8. Retornar
Cair nas redes da exploração para realizar um sonho é relativamente fácil Difícil é sair. Denunciar nem
sempre é a solução, pois os riscos são altos. Como nos conta um ativista, denunciando, na melhor das
hipóteses, pode ser que consigam prender uma das peças da engrenagem e, a partir daquele momento, a
vida de quem denuncia estará, de qualquer modo, em perigo. Fugir significa começar a viver no medo,
medo pela segurança de si mesmo e da própria família.
Quando eu denuncio, voltando né, aí eu tenho que cair fora da cidade, por exemplo se eu
tô na Itália, tenho que ir pra Portugal, pra França, eu tenho que ir pra Equador, pra
qualquer canto... Porque a cafetina ou o cafetão eles podem não ser presos, porque existe
um esquema, um esquema como se fosse um trafico de seres humanos, existe sim isso.
Então eu sou gerenciado por uma pessoa, então na medida que eu denuncio uma, caiu
uma peça daquela, eu não cheguei lá no chefão principal, se o chefão passa por mim e é
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como se eu nem conhecesse, entendeu? Só que tem um gerente, como existe no trafico
de drogas né, tem a pessoa que olha, tem os orelhudo, tem o gerente, contador, é quase
desse jeito... Então eu denuncio, aquela peça é quebrada, aquele elo é quebrado, só que a
ramificação daquele já se faz do outro lado, já se vira outro esquema, não é mais aquele,
eu tô marcada, entende? Eu tô marcada, no dia que eles me encontrarem, eu sou
eliminada... (Fort9, Transexual militante).
Elas têm medo de serem julgadas pela sociedade e mais medo ainda das ameaças dos
traficantes (Bras4, Juiz, CNJ).
Muitas delas se sentem também ameaçadas, então, quando retornam, elas têm medo:
“...e agora, o que vai acontecer comigo? As redes criminais vão vir me procurar, vão usar
minha família”. Então, existe esse medo de como será a vida a partir daquele momento.
Por isso, geralmente, devem entrar no programa de proteção à vitima da Secretaria pelos
Direitos Humanos, ou um programa de proteção às testemunhas, também da Secretaria
pelos Direitos Humanos (Fort1, NETP).
Retornar é difícil, especialmente quando o projeto migratório não deu certo. Quando a pessoa emigra, ela
põe em jogo não só o próprio futuro e o futuro da própria família, mas também sua identidade, seu “eu”,
sua dignidade. Ninguém espera o fracasso, e é por este motivo que, quando retornam (mesmo que
temporariamente), elas “pintam de rosa” a experiencia que tiveram no exterior. Quem fracassou,
experimenta a vergonha, e isso pode ser muito desencorajador.
Tem vitima que passa de 4 a 6 meses só pra decidir se retornar ou não, porque elas têm
medo de voltar pro Brasil, buscam sempre uma situação melhor, elas têm medo de ver a
família, têm vergonha de falar: “olha, eu fui e voltei com uma mão na frente e outra
atras”, ou “do jeito que fui, voltei”. “Tentei. Falei pra todo mundo da minha família, pros
amigos, parentes, que eu fui tentar a sorte no exterior, muito dinheiro, e, no fim, volto
sem nada”. Enfim, têm vergonha. Pensam muito se é melhor voltar, ou ficar por lá (Bras2,
coordenadora, NETP).
A vergonha e o senso de culpa são,por vezes, ligados à própria experiencia de prostituição, agravada pela
condição de exploração, e pelo estigma que acompanha as pessoas que trabalham no mercado do sexo.
A vitima? Olha, a primeira coisa a se dizer é que a vitima do trafico de pessoas,
normalmente, não se reconhece como vitima de trafico de pessoas. Ela acredita estar
vivendo uma situação que não funcionou, se sente sempre culpada, é muito vulnerável,
tem vergonha, muitas vezes porque está saindo de uma situação de exploração, então,
elas sentem vergonha do próprio corpo, e de toda a situação em que se encontra. As
muitas horas de trabalho, a humilhação e as situações desumanas e, ainda por cima, se
sentem culpadas! Então, pra elas, retornar não é fácil, não saber como a família vai
acolher, a comunidade, então ela tem vergonha, se sente culpada (Bras3, Coordenadora,
SNG).
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Um preconceito muito grande, “elas vão porque querem, e ponto.” pela minha
experiencia de três anos como pesquisadora e coordenadora do Núcleo, ouvi dizer por
muitos doutores, pós-doutorados: “Se este é um problema que saiu do país, que fique por
lá, é uma doença que saiu daqui, então, se desaparecer, melhor”. Existe ainda este grande
preconceito. Primeiro, a ignorância sobre o tema do trafico de pessoas, até porque, nem
todo mundo sabe que o trafico de pessoas é crime. E não estou falando do trafico de
drogas não! E nem do trafico de armas. Depois que a gente começa a explicar o que é o
trafico de pessoas, que existe mesmo, que é crime e é previsto pelo Código Penal, etc, as
pessoas dizem: “ah, mas isso acontece só com as prostitutas e se acontece só com elas...
quem serão estas mulheres prostitutas? É melhor que fiquem por lá, que morram lá!!”,
então, existe ainda esse preconceito por parte da sociedade em relação a esta luta contra
o trafico de pessoas (Bras2, coordenadora, NETP).
A sociedade pode ser cruel com as aquelas pessoas que vendem sexo em troca de dinheiro, mais do que
aqueles que exploram ou aqueles que compram sexo de pessoas que são exploradas, então, deveria ser
considerada também uma mudança cultural – em todos os países – neste desafio contra o trafico de
pessoas e contra a exploração.
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1.6. A pesquisa na Espanha
1.6.1. Uma visão geral
As entrevistas realizadas na Espanha a testemunhas privilegiadas e garotas exploradas sexualmente,
confirmam o que foi emerso das pesquisas dos outros países parceiros. O trafico de pessoas para fins de
exploração sexual, diz respeito principalmente a nigerianas, romenas, brasileiras e chinesas, embora sobre
esta ultima, se saiba muito pouco.
Tivemos alguns casos de garotas chinesas. Normalmente existe um grande mistério sobre
como elas são escolhidas, aliciadas e transportadas, mas imaginamos que tenha,
certamente, uma ligação com o pagamento de dividas. Quando elas chegam aqui, elas
tem que pagar. Às vezes, elas podem ter vindo parar na Espanha com uma ilusão, através
de uma oferta de emprego por parte de uma compatriota. Depois tornam-se vitimas de
extorsão (Depoimento, P5, Advogado de defesa).
Nem todas as brasileiras – mulheres ou transexuais – parecem ser vitimas do trafico de pessoas, embora
não possamos excluir as formas de exploração
Sobre as vitimas brasileiras do trafico de pessoas posso falar pouco, pois embora exista
uma alta porcentagem de garotas que se prostituem, não conseguimos identificar casos
reais de trafico, invés disso, descobrimos episódios de prostituição nos night clubs. Além
disso (as brasileiras) tem maior liberdade de movimento, e não notamos uma falta de
autonomia que normalmente outras nacionalidades têm No caso das transexuais
brasileiras, o fenômeno do trafico de pessoas é pouco relevante. Estivemos com algumas
delas, que se prostituíam nos apartamentos ou nos night clubs com uma renda mensal de
2 mil euros, uma situação muito diferente da de vitimas de trafico que não podem
controlar seu próprio dinheiro, como, por exemplo, as romenas (Depoimento, P2,
Assessora).
No caso das garotas brasileiras, elas vinham principalmente pra trabalhar de modelo,
como dama de companhia, ou pra cuidar de pessoas idosas. Às vezes, vinha com o
namorado que, quando chegava, deixava ela em um night club, depois de ter sequestrado
seu passaporte (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
As garotas nigerianas chegavam principalmente do estado de Edo, e é próprio o trafico das nigerianas a
atrair mais a atenção da opinião publica e das instituições, pois é a mais visível – mais de rua que indoor – e
de certa forma, mais “exótica”. A pratica conhecida dos ritos de magia – como o vodu – atrai a curiosidade
e alimenta a fantasia, sendo diferente do modo de fazer racionalista dos europeus.
No nosso trabalho, trabalhamos com garotas nigerianas, vindas do estado de Edo
(Depoimento, P2, Assessora, Accem).
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Estamos muito, muito concentrados no problema, visto que as redes africanas, por causa
de sua visão do conceito de mulher, de ser humano, e por outras conotações que traz
consigo, até pelo aspecto espetacular, não? Por causa do vodu, por causa do modo como
são exploradas essas garotas, na rua, não? É muito evidente, é muito à mostra
(Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF).
Em virtude das estrategias postas em pratica pelo racket, a abordagem das garotas de programa nigerianas
é mais fácil Como analisado no terceiro paragrafo deste capitulo, ilustrando os resultados da pesquisa na
Itália, o racket nigeriano sabe ser extremamente violento com quem se rebela ou não entra nas regras do
jogo, impostas por eles. No entanto, a estrategia mais usada é a do controle psicológico através: dos ritos
mágicos – acreditam muito nisso -; o relacionamento ambivalente com a maman – amada e odiada,
exploradora e ao mesmo tempo, suporte -; enfim, a divida. As nigerianas consideradas “confiáveis” gozam
de vantagens como uma margem de movimento maior em comparação às romenas, que têm um controle
mais cerrado e, então, mais difícil até de se relacionar, por exemplo, com os operadores das unidades de
rua.
Para as nigerianas, existe o vodu (unhas, pelos pubianos, foto). Eles têm um mundo só
deles, que não conseguimos entender, devido à diferença cultural que existe. Parece ser
uma realidade muito mais diferente do que, por exemplo, das vitimas romanas. Elas
também são constantemente controladas, pelo celular, mas sofrem menos o controle
físico do que as vitimas romenas porque, entre outras coisas, por vezes a exploradora não
mora nem no mesmo lugar onde mora a vitima. O vodu é muito potente, é um verdadeiro
obstaculo, difícil de atravessar, até mesmo para as garotas que já saíram do circuito. Elas
te dizem claramente que o vodu mata, e pra elas é uma realidade, mesmo que, pra nós,
seja difícil de acreditar (Depoimento, P2, Assessora).
As nigerianas têm um contato maior com as nossas unidades que trabalham nas ruas, em
compensação, aproximar-se das romenas é mais complicado. Mesmo para nós que
trabalhamos nas unidades de rua, é difícil trabalhar com elas (Depoimento, P8, Assistente
Social, V.T.).
Na Espanha também, falando do trafico de romenas, os depoimentos indicam o ano 2007 como o ano
“divisor das águas”, mesmo não necessariamente no sentido positivo. A entrada da Romênia na
Comunidade Europeia facilitou, certamente, o deslocamento de um país a outro, viagens mais diretas e
confortáveis No entanto, a conquista de novos direitos de cidadania, não só ajudou mais ainda a mascarar
os casos de exploração, mas também enfraqueceu a eficácia das investigações, seja no que diz respeito aos
serviços, os quais são colocados à disposição e pensados especialmente para ajudar imigrantes ilegais,
clandestinos ou com alguma irregularidade administrativa.
A maioria veio via terrestre, de ônibus, viajando junto com outras mulheres. Mas muitas
outras chegam de avião, principalmente desde que a Romênia entrou a fazer parte da
União Europeia, onde se supõe que a mobilidade entre os países seja livre para os
cidadãos comunitários (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA).
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As garotas diziam que antes que a Romênia entrasse na UE, elas iam pra Itália; e depois
começaram a chegar diretamente em Madrid (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Uma das principais dificuldades é, sem duvida, o fato que as mulheres romenas façam
parte da União Europeia, e se por um lado isto favorece o acesso a seus direitos, por
outro, dificulta muito as investigações sobre a questão do trafico de pessoas. A outra é
que as garotas não denunciam. O 59bis não está funcionando como deveria […] Continua
um fracasso o processo de identificação das vitimas ou de potenciais vitimas do trafico de
pessoas (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA).
Em comparação às romenas, que não tem mais problemas de ilegalidade, desde 2007 a
situação piorou, já que as ações (sociais) são destinadas, principalmente, aqueles que tem
estão em situação de irregularidade administrativa, e elas não se encontram em uma
situação deste tipo, e então, elas estão ficando de fora de muitos serviços, em muitos
casos (Depoimento, P11, Coordenadora, ICAS).
Com relação às acoes de fiscalização, em particular, foram detectados dois tipos de problemas: os efeitos
da repressão sobre a vulnerabilidade das garotas, e a ineficácia da punição infligida aos exploradores. Em
áreas “nobres”, trabalhamos com barreiras policiais e multas em nome do pudor, mas, às vezes, essas
politicas locais destinadas a combater a prostituição visível – e não a exploração -, induzem as redes a
individuar lugares mais na periferia, escuros e isolados, onde desenvolver a atividade de prostituição As
garotas se encontram, então, trabalhando em condições de risco e de vulnerabilidade com relação à
violência dos clientes, violência sempre presente em potencial. A alternativa – para as romenas – é o
trabalho nos night clubs, onde, porém, o controle é ainda mais cerrado, e onde a ação das associações
tendem a desaparecer, pela falta de oportunidade de envolvimento.
Em Huelva, ficavam bem perto do centro, em Gran Capitan, devido às politicas locais,
incomodavam muito e toda a zona se transformou em um bairro pra gente rica, assim,
tiraram elas dali e elas acabaram nas ruas ou em lugares mais escondidos, não iluminados,
e assim, são ainda vulneráveis porque ali são agredidas sem que ninguém perceba, a
pedradas, na escuridão Ou então são obrigadas a ir pros night clubs (Depoimento, P3,
Diretora, ACF).
Nos night clubs elas não podem se relacionar com mais ninguém além dos clientes ou das
pessoas que trabalham ali, exceto em casos onde o cliente paga pra sair com ela (neste
caso, tem uma maior liberdade). Nos night clubs, as garotas se relacionam muito com os
cozinheiros, os cabeleireiros, as vendedoras de lingerie, uma verdadeira mafia, quando
não podiam nem sair para comprar roupas. Vendiam a elas tudo muito caro e assim, a
divida continuava a aumentar (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Bem, nós tivemos reuniões com instituições que nos disseram, claramente, que as
portarias que penalizam as mulheres, tornam a perseguição do trafico de pessoas mais
difícil De qualquer modo, elas nos dizem que precisam porque elas tem que comer, e se as
perseguem, elas irão para algum outro lugar (Depoimento, P4, Medico, MdM).
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As sentenças proferidas contra os exploradores, com base nos depoimentos, são muito curtas. Mesmo
quando são pegos, são liberados depois de pouco tempo, e isto não só coloca em risco a segurança das
garotas, mas também, desencoraja fazer qualquer denúncia
Nós trabalhamos muito em colaboração com o Departamento de Imigração, e vimos que,
mesmo quando prendem pessoas envolvidas com a mafia ou com a rede do trafico,
depois de quatro dias, já estão soltas. No caso da mafia chinesa, prenderam todos, mas
me contaram que ela (a garota que tinha denunciado) tinha que ter cuidado quando saía
na rua porque logo logo, eles seriam soltos. Às vezes, chega a ser frustrante ver como
estes homens sejam soltos assim, em tao pouco tempo. Não sabemos se é assim por
questões legais ou por laxismo na aplicação da pena. É claro que se trata de um negocio
interessante para muitas pessoas (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Os depoimentos falam de prostituição e trafico de pessoas, e não de turismo sexual, embora ultimamente
em Granada é possível observar um fenômeno de moda, parecido, em alguns aspectos, com o turismo
sexual. Se trata da pratica de celebrar a despedida de solteiro na cidade, contratando alguns pacotes
fechados que contém, entre outras opções, também “massagens especiais”.
Em Granada, não sei se se poderia chamar de “turismo sexual”, pois, sem duvida, têm
muita coisa em comum – ultimamente tá na moda, entre os homens, vir pra cidade pra
fazer a despedida de solteiro, e sei que em muitos pacotes para a despedida de solteiro,
entre as muitas atividades propostas, oferecem também massagem “com final feliz” e um
tour nos night clubs, então, alguma relação tem! (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA).
Na Espanha também, assim como em todos os países, o trafico de pessoas não diz respeito somente à
exploração sexual. Em Huelva, por exemplo, o fenômeno da exploração do trabalho infantil – no campo da
colheita de morangos - é bem conhecido, e que envolve, em particular, colombianas e marroquinas.
Em Huelva, vinham com a desculpa dos morangos, que era a isca, para depois explorá-las
sexualmente, principalmente no caso das romenas, mas também vinham colombianas e
marroquinas para exploração laboral (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Nos parágrafos seguintes, vamos ilustrar os principais aspectos do trafico das nigerianas e, principalmente,
das romenas, com alguma menção à exploração das brasileiras. Os resultados das entrevistas e dos
depoimentos confirmam o que já foi dito em relação aos casos, italianos e romenos, apresentados na
presente relação, aos quais se faz referencia para um estudo mais aprofundado.
89
1.6.2. Aliciamento, redes e formas comuns de exploração
Como sempre, o aliciamento é feito apelando para as necessidades e dimensões da vulnerabilidade das
meninas, e não se trata somente de vulnerabilidade econômica
Normalmente, o que acontece com as garotas romenas e brasileiras, é que são elas que
tem que sustentar a família, sem dinheiro, então, aceitam certas situações, sem nem
menos saber os detalhes. As romenas são muito desesperadas, procuram trabalho e, às
vezes, alguma conhecida propõe um trabalho. De aeroportos a bares dedicados a este tipo
de coisa, e se (os exploradores) conhecem bem a estoria, elas ficam mais vulneráveis
ainda. As romenas chegam de Costanza, Braila, Bucarest; com a família grande, e uma
situação de pobreza significativa, precisam fazer dinheiro pra mandar pra família...
(Depoimento, P3, Diretora ACF).
Sim, tem família, tem os pais, irmãos e tem também um filho, que neste momento está
nas mãos do estado romeno. O pai dela batia nela, insultava e gritava; batia nela sempre,
sempre, sempre (Estorias de vida, v6, Cristina, Romania).
O que eu queria era... eu tinha uma filha de.... minha filha tinha 8 meses quando eu tinha
14 anos. Tive ela com 13 anos, e quando eu tava com 14, conheci umas pessoas, e estas
pessoas me propuseram de vir trabalhar na Espanha... fazendo faxina (Estorias de vida,
V5, Alma, Brasil).
O pai do filho dela disse que em Bucarest tinha uma pessoa que poderia achar um
emprego na Espanha. Então, ela viu isso como um via de fuga, concordou com tudo, e no
fim, descobriu que a pessoa de Bucarest tinha vendido ela pra uma pessoa aqui na
Espanha, e pôs ela pra... Aconteceu o que aconteceu, e agora essa pessoa está presa
(Estorias de vida, V6, Cristina, Romênia)
No caso das romenas, geralmente exploradas pelos compatriotas, aparece com muita força o papel do
contexto familiar e das amizades no aliciamento e na exploração São muitos os depoimentos que falam
sobre isso.
No caso das romenas, que são aquelas que conheço melhor, a maioria foi aliciada por
pessoas próximas a elas, principalmente os “namorados” ou amigos, amigos de família
(Depoimento, P1, Assistente Social, FSA).
90
Em um dos casos, de fato, tivemos uma garota em condições físicas e psicológicas muito
graves, e chegamos a suspeitar que a própria mãe da garota a tivesse vendido, devido à
algumas coisas que a garota dizia nos momentos de lucidez […] As romenas falam muito
de uma isca, que é uma oportunidade de trabalho, do tipo domestico ou na agricultura,
mas a realidade dos fatos é que muitas vezes, essas ofertas são feitas por um membro da
família, primos, primas, cunhados,etc. A maioria do contexto familiar. A pessoa que quer
aliciar uma garota pode muito bem contatar qualquer familiar até diretamente da
Espanha (Depoimento, P2, Assessora, Accem).
A mafia em si eu não conheço, mas o que eu sei é que a maioria das garotas conta que foi
aliciada pelo namorado, ou irmas, cunhados, etc.. e depois foram exploradas sexualmente
(P3)
As romenas que nos contaram alguma coisa foram aliciadas pela família ou pelo cafetão,
quer dizer, pelo “namorado”. Muitas delas vinham de Breila. Depois, o que vimos é que os
homens não as deixam sozinhas nem por um segundo, nem mesmo nos hospitais, e isso
se percebe mesmo se elas não nos contam (Depoimento, P4, Medico, MdM).
São muito frequentes os casos de aliciamento pelo “namorado”, figura também presente nas entrevistas e
estorias de vida e sobre a qual falamos longamente no paragrafo sobre a pesquisa na Romênia O
“namorado” aparece progressivamente na vida da vitima escolhida - percebidas como vulneráveis -,
criando uma relação de dependência psicologico-afetiva, da qual ela não vai sair fácil
Muitas romenas contam que chegaram aqui junto com o “namorado”, depois descobriram
que o mesmo rapaz explorava várias outras garotas. Se trata de violência de gênero
porque as mulheres são completamente submissas. Acreditam de verdade que o rapaz
seja namorado dela, que tenha sentimentos por ela. E ainda dão todo o dinheiro pra eles.
Existem algumas relações de casais onde ele enche ela de porrada, e ainda por cima, a
explora sexualmente. As garotas normalmente veem de uma situação de miséria, pobreza
la da Romênia, com muitas responsabilidades familiares, principalmente com filhos que
ficaram no países natal (Depoimento, P8, Assistente Social, VT).
As que eu conheci, a maioria chegou com o namorado; foi ele que as enganou e que as
trouxe aqui, praticamente em todos os casos. De fato, isto as faz experimentar um ódio
muito profundo por essa pessoa em quem elas acreditavam (Depoimento, P9, Psicologa).
Mesmo sendo esta situação extremamente ligada à criminalidade organizada
transnacional, os casos que seguem são, principalmente, ligados aos “namorados”. Nem
sempre são enganadas com relação às atividades que deverão desenvolver, mas muitas
vezes, não conhecem as condições (Depoimento, P10, Advogado do Estado).
91
Bem, então vou te contar. Digamos que as pessoas que me colocaram nesta situação me
foram apresentadas na festa de um amigo. Depois daquele dia, comecei a sair com um
deles, e falando com eles, aos poucos, me fizeram perceber que tinha a possibilidade de
vir pra cá, que poderia ganhar muito dinheiro e ter uma vida mais digna […] porque eu
tinha uns problemas com meus pais e queria... queria sair fora. Então, me disse que podia
vir pra Espanha, que ia me ajudar a vir pra cá, que a gente viria como namorados, é claro,
e me disse que ia trabalhar num night club e assim ganhar muito dinheiro. Daí, ele me
dava sempre dinheiro pra ir ao cabeleireiro, pra comprar roupas. Bom, ele me tratava
muito bem. E.. só que eu não tinha me ligado.. o que eles eram realmente. Assim, no fim
eu aceitei, porque, é claro, éramos namorados e pensei que ia vir pra cá (na Espanha) pra
ganhar dinheiro pelos dois e estar bem (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia).
São aliciadas com propostas de trabalho falsas ou através dos “namorados”. Na verdade, o
tema das romenas me lembra muito as estorias dos típicos cafetões espanhóis que
exploravam suas mulheres. É muito parecida com a situação que se instalou depois da
guerra espanhola, que nos contaram as mulheres idosas que entraram na prostituição
(Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.).
Os “namorados”, uma vez que chegam ao destino, param de ser gentis e começam a explorá-las, colocando
em pratica também formas de troca e de compra e venda.
De fato, em muitos casos, elas mesmas chamam de namorado a pessoa que as levou para
os night clubs e que a explora diretamente. Estes namorados normalmente duram 3 ou 4
meses. E depois trocam de garotas entre eles. Às vezes, até vendem (Depoimento, P12,
Inspetor Chefe, UCRIF).
Não importa se é “namorado”, parente, amigo ou conhecido, o aliciador romeno estabelece uma relação
de confiança com a garota escolhida, de modo que é ela quem decide aderir ao projeto migratório por
espontânea vontade. A violência não é prevista nesta fase, pois a estrategia é aquela da construção de
consensos.
Tinha uns problemas no meu país. Por isso conheci X e, aos poucos comecei a ajudá-lo
com seu trabalho, porque eu o conhecia, e às vezes, trabalhava perto de onde ele
trabalhava. Assim, comecei a confiar nele, conheci sua família. Ele sabia que eu tinha
problemas econômicos e me disse que poderia me ajudar porque ele tinha contato com
algumas pessoas na Espanha, e que poderia começar a trabalhar como faxineira num
hotel. Eu acreditei nele porque ele tinha vivido muitos anos no exterior e dizia que,
naqueles anos, ele já tinha ajudado muita gente. E ainda mais, conhecia sua família e nem
imaginava que poderia me acontecer algo de ruim (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
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Falar de categorias é terrível Mas a minha percepção é que as brasileiras sabem o que vão
encontrar, mesmo não conhecendo as condições, mas as romenas geralmente dizem que
foram enganadas por algum parente e que só quando chegaram é que entenderam a
realidade dos fatos. No que diz respeito às propostas de trabalho, são propostas
informais, verbais, baseadas na relação de confiança entre a vitima e a pessoa que oferece
o trabalho, tipo “na casa onde trabalho podem te contratar”, coisas desse tipo.
Normalmente (quando não se trata de parentes, os aliciadores) se aproximam delas
através de parentes ou alguém conhecido, como por exemplo, uma velha amiga da escola.
Já tivemos casos deste tipo (Depoimento, P2, Assessora, Accem).
Ainda com relação ao caso da Romênia, a impressão é de que não podemos falar em grandes organizações,
e sim de micro redes com base familiar.
Depois descobri que não era verdade e que a família toda dele sabia que ele era
sustentado pelo trabalho das mulheres. Até o filho dele sabia o que estava acontecendo
porque, de fato, ele dizia pro filho dele para seduzir garotas romenas pra trazer junto com
ele. Isto eu ouvi-lo dizer pessoalmente. Ele disse à sua esposa pelo telefone, ele disse com
o que ele trabalhava, mas não tenho certeza se ela já sabia disso antes. O primo dele
também, junto com a namorada, trabalhavam com isso, e de fato, faziam se prostituir a
própria sobrinha de 18 anos e outras garotas, com a ajuda do filho. A garota continua
sendo explorada aqui na Espanha (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
Notamos que os menores de idade também, irmãos de verdadeiros exploradores, entram
neste mundo de exploração, controlando as namoradas do irmão, do primo (Depoimento,
P12, Inspetor Chefe, UCRIF).
No caso das romenas, falamos de famílias que fizeram da prostituição um modus vivendi.
Personalizam os aliciamentos e, entre eles, existe uma ligação Se conhecem, se apoiam, se
ajudam. As garotas sabem que, mesmo se tentarem fugir, elas vão ser encontradas pelos
amigos do explorador. Cada um tem nas mãos a garota que se está explorando, porém,
entre eles (os exploradores) existem conexões As romenas não falam de outros tipos de
exploração, falam só do tipo romeno (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.).
Pela nossa experiencia com as garotas, podemos dizer que parece que, com relação às
redes, não estamos falando de grandes organizações, mas de micro redes e, e todo caso,
de pessoas mais conhecidas, principalmente na fase do aliciamento, encarregados de ter
uma relação com elas e explorá-las (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
Na minha experiencia, eu associo as romenas com a família (Depoimento, P6, Advogada
Estrangeiros).
As romenas falam sempre de uma ou duas pessoas que tiram beneficio disto, cada uma
tem 3 ou 4 garotas trabalhando pra elas. No caso das brasileiras, dava a impressão de uma
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organização mais sofisticada, porque tinha aquele da agencia, aquele que aliciava, aquele
que transportava, aquele que vinha buscar, etc. (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Em comparação com as nigerianas, a ideia da existência de uma forma di hierarquia de estrutura piramidal,
cuja organização oferece, para as mulheres, a possibilidade de fazer carreira de acordo com regras muito
claras. A progressão está relacionada ao pagamento da divida: as garotas que estão quase acabando de
pagar – e portanto, mostraram-se fieis ao racket – podem se tornar controladoras, e ajudar a maman a
vigiar as outras garotas. Quitada a divida, elas estão, formalmente, livres para mudar de vida – opção que,
no entanto, é dificultada por vários fatores, entre eles, a irregularidade jurídica – ou então, podem
continuar se prostituindo autonomamente, para economizar uma grana necessária para comprar garotas
exploradas, tornando-se assim, por sua vez, a maman delas.
No caso das nigerianas, a minha impressão é que fossem organizadas hierarquicamente
em estrutura piramidal, onde muitas vezes a pessoa traficada se torna exploradora, como
o golpe da piramide, onde a pessoa explorada entra a fazer parte de um circuito que se
alimenta com o transporte (acompanhamento durante a viagem) e o aliciamento de
outras mulheres onde a pessoa que controla, está pagando sua divida desta maneira, sem
causar o menor dano aos que, comodamente, vivem no luxo e possuem contatos na
Nigéria e financiam novas garotas que chegam (Depoimento, P5, Advogado de Defesa).
As cafetinas são mulheres, mas os homens também possuem um papel na exploração das compatriotas
nigerianas.
Durante um de nossos turnos, uma vez saiu um rapaz com uma faca dizendo pra ir
embora. Inclusive, quando as garotas vem pedir a carteira de saúde, vinha junto também
um rapaz que falava por elas e que comandava. A situação é essa (Depoimento, P4,
Medico, MdM).
Para as romenas, vice-versa, não são previstas formas de emancipação da exploração, e a possibilidade de
“fazer carreira” é bem relativa e, de qualquer modo, são sempre ligadas à logica de submissão à dominação
masculina do “namorado-cafetao”. A mulher, de fato, nunca terá o poder de decidir por si mesma e pelos
outros; no máximo vai ganhar alguns privilégios, assumindo o papel de “namorada de confiança” com a
qual poder contar para a supervisão e o controle das “outras”.
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E foi assim que começamos, me levou com ele na viagem, me comprou roupas, me levou
em um night club. E ali me apresentou pra sua verdadeira namorada, que trabalhava com
ele e dividia o quarto comigo e com outras meninas, ficava com os nossos passaportes e
todo o dinheiro que a gente ganhava a cada noite. Era pra ela que a gente tinha que dar o
dinheiro (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia).
A viagem, que pode ser de carro ou de avião, é meio longa, dependendo do país de destino e das
estrategias das redes criminosas, pode se tornar até uma ocasião para “arredondar” os ganhos vindos do
trafico de pessoas para fins de exploração sexual, através do transporte de migrante clandestinos “pegos”
ao longo do caminho.
As romenas normalmente demoram uns dois dias pra chegar, e elas vem de carro.
Durante a viagem, não existe prostituição e, em alguns casos, pegam mais pessoas ao
longo do caminho. Recebem um empréstimo para a viagem e, já vi casos de pessoas que
moram nas fronteiras com a Romênia, que não pertencem à União Europeia, onde a rede
(criminosa) se oferece transporte para países europeus como a Espanha, oferecendo a
eles um passaporte falso e transporte em troca de dinheiro. Quer dizer, a rede pode
cuidar de varias formas criminosas. Tivemos o caso de um casal da Moldávia que viajou
assim, e nos contou que durante a viagem, a rede ia pegar garotas na Romênia
(Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
Os ingredientes da exploração são sempre os mesmos – divida, violência, submissão psicológica, controle embora em doses bem diferente, dependendo da estrategia adotada pelos diferentes grupos nacionais.
As brasileira que não trabalham autonomamente são ligadas às redes de exploração por causa da divida
(menos pesada que a das nigerianas) e as ameaças à família. Porém, parece que elas tem maior liberdade
de movimento e, a impressão sentida nos depoimentos é de que elas sofram menos violência
No caso das brasileiras, vimos que, pior do que as ameaças, é que diziam que iam
maltratar os filhos, e em nenhum dos casos vimos que a família se interessasse de
verdade pela situação da vitima. As ameaçavam até por causa da divida do dinheiro gasto
para a viagem (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Dividas e ameaças à família caracterizam também o racket nigeriano, cuja característica marcante é dada
pelo vodu, já anteriormente mencionado, como forma de violência muito potente. Enquanto que, sobre a
divida das nigerianas e sobre os rituais mágicos, muita coisa já foi dita (para saber mais, veja a analise do
caso italiano presente nesta relação), pouco se sabe do uso dos bebes nascidos no pais de destino como
forma de chantagem e como moeda de troca.
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Para as nigerianas, existe a ameaça através do vodu, e ameaças à família, mas,
principalmente, usam os filhos como moeda de troca de maneira desumana. Acredito que
eles as fazem engravidar de proposito. Primeiro, para ter direito ao refúgio (em caso de
fuga), e para ter um maior controle sobre elas (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.).
No caso da exploração das romenas, a violência é muito mais evidente, embora se manifeste, como já foi
dito, só quando se chega no país de destino. A violência é muitas vezes do tipo físico
Eu tinha que dar todo o dinheiro a ele, pra mim não deixavam nem um euro. Compravam
pra mim o que achavam que era necessário Quando não trazia muito dinheiro do club, me
batiam […] Eu apanhava sempre. Dizia que não podia viver sem uma mulher. O primo e a
namorada não me ajudavam, mesmo ouvindo os gritos. Pelo contrario, quando ele me
batia, o primo dele ia embora e não falava nada. Quando tinham problemas com as
garotas, um não contava pro outro. São todos assim, não te ajudam […] Eu tinha que ir
todo dia pro club. Em quatro meses eu pude descansar só dois dias porque não estava me
sentindo bem. Mas pra ele não importava, me batia de manha, e depois de tarde me
mandava pro club, mesmo eu estando toda roxa. As pessoas viam os braços roxos, os
olhos roxos, tudo roxo, as pernas debaixo da saia curta. Aí, comprou pra mim uma calça e
uma camisa de manga comprida pra esconder as marcas, pelo menos um pouco […] Antes
de ir pro club me obrigavam a limpar a casa e preparar a comida. E eu não conseguia
comer nada. Não conseguia. Me batiam até pelo fato de não comer (Estorias de vida, V1,
Rosa, Romênia).
As vitimas romenas contam, principalmente, episódios de violência, verdadeiras surras,
quando tentam fugir ou quando não ganham dinheiro suficiente, incluindo casos de
cliente que se “apaixonam” por elas e as querem ajudar de qualquer maneira
(Depoimento, P3, Diretora, ACF).
As formas de exploração no caso das romenas são ligadas à violência, muito mais pesada
que em outros casos (Depoimento, P5, Advogado de Defesa).
Existe muita violência física, principalmente no país de destino (Depoimento, P2,
Assessora, ACCEM).
Houve um aumento de garotas romenas. As romenas são mais fechadas. Falam pouco. Até
as nigerianas dizem que tem pena das romenas, pois estão sempre muito abatidas e
sofrem muito mais violência por parte do explorador, dizem que elas tem muita
dificuldade de se abrir e contar qualquer coisa (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.).
Além da violência física, é muito comum também a violência psicológica, exercitada através do constante
controle, em cada momento do dia, e da chantagem emocional. Muitos são os depoimentos que falam
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sobre isso.
Encontramos, basicamente, dois tipos de controle: controlar a vitima em cada momento
do dia, sabe onde está, com quem está, e o controle financeiro, exigindo uma quantia
semanal ou diária Se não conseguem a quantia exigida, apanham. Por isso que as garotas
nos contam que quando não conseguem ganhar dinheiro, são obrigadas a pedir
emprestado pra algum cliente de confiança ou então, vão roubar ou achar uma maneira
de conseguir o dinheiro, porque senão, vão apanhar. São também controladas através do
celular, mas a presença do explorador é mais eficiente, assim são vigiadas diretamente
(Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
Podia falar com a minha família só quando ele estava junto, mas não com meu marido.
Não podia dizer pra ele onde eu estava. Ninguém sabia o que tava acontecendo la comigo.
Ele tinha ciumes do meu marido e também dos clientes. Me levava lá e vinha me buscar
(Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
Com relação ao controle, vimos que é mais intenso no caso das romenas, pois estão
sempre recebendo ligações em seus telefones, e são constantemente controladas pelos
controladores que rodam de carro. Em alguns casos vimos marcas de violência nas
meninas, apesar delas negarem (Depoimento, P4, Medico, MdM).
Não, não podia falar com ninguém porque você era sempre... simplesmente não deixava,
dizia que você estava sendo sempre vigiada, controlada (Estorias de vida, V6, Cristina,
Romênia).
Mas se eu quisesse ligar pra eles, podia, mas sempre com alguém por perto, tipo uma das
namoradas deles e, por causa disso, tinha que mentir sempre (Estorias de vida, V2, Mari,
Romênia).
O controle telefônico é brutal. Cada vez que a gente levava uma garota no carro com a
gente, ou quando a gente tirava uma da rua pra levar com a gente para a delegacia, ou pra
uma ONG, ou coisas do tipo, durante toda a viagem, elas recebiam telefonemas, porque,
com certeza, se não responde, mesmo se está trabalhando, é porque alguma coisa está
acontecendo, não? (Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF).
No que diz respeito às romenas, os caras passam de carro 20.000 vezes por dia, quando
trabalham nas ruas, além de controlá-las telefonicamente, batem nelas e ameaçam seja
elas, seja a família delas, de morte.
Tentam agradar gregos e troianos. Tipo, não te ameaçam diretamente se você pára de
pagar, mas te chantageiam emotivamente, falando de tudo o que fizeram por você, etc, e
ainda as meninas pensam que devem ser gratas (Depoimento, P8, Assistente Social, V.T.).
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Existem claras ameaças contra elas, violência física, e um componente importante da
violência de gêneros pois existe uma relação sentimental no meio, e isto gera
dependência (Depoimento, P10, Advogado).
Existe o controle psicológico A manipulação de fazê-las acreditar que elas são realmente
obrigadas a fazer isso, e não podem dizer a ninguém, não pode falar nada, porque se não
tem castigo físico As garotas acreditam ter merecido apanhar por algo que elas fizeram.
Elas justificam plenamente (Depoimento, P9, Psicologa).
Não obstante as diferenças entre as estrategias de submissão colocadas em evidencia pelas diferentes
redes nacionais do tipo criminosas, o controle e outras formas de violência psicológica, como as ameaças e
a indução ao medo são, na verdade, transversais:
No club tinha sempre o garçom, o responsável e a gente, a gente tinha horário pra dormir,
horário pra acordar, comer, ficar no celular, trabalhar, e assim eram as coisas, era tudo
muito controlado e, se você tivesse que sair, te acompanhavam sempre (Estorias de vida,
V5, Alma, Brasil).
Ameaçam as garotas romenas, dizendo a elas que a família delas vai sofrer as
consequências, ameaçam cortar o dedo da mãe ou coisas do tipo, de fato tivemos um
caso onde, para ameaçar a vitima, mandaram o dedo à sua mãe dizendo que era da filha
(Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Não, não não, digamos que nunca usaram violência física, mas me ameaçaram muitas
vezes e sempre usando a família, eles usavam mais era isso, porque digamos que pra eles
não convinha deixar a gente cheia de marcas roxas no corpo, ou coisas do tipo, então eles
ameaçavam nossas famílias (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia).
No caso das garotas do club em Huelva, elas nos contaram que, no começo, eles até levam
alguns clientes, vestidos de policiais, mas não sabemos dizer se são policiais de verdade ou
se é só um disfarce pra assustar as vitimas. Muitas contam isso (Depoimento, P3, Diretora,
ACF).
Sim, me controlavam. Chegaram num ponto de controlar as conversas com minha mãe
Por exemplo, quando eu cheguei aqui, liguei pra minha mãe pra falar pra ela não
denunciar o meu desaparecimento ou coisa do tipo, porque minha mãe não sabia de
nada, não sabia onde eu estava, não sabia nada, nada de mim. Não dizia nada porque me
ameaçavam e tinham fotos da minha família, da minha mãe, dos meus irmãos, e eu não
queria piorar a situação Tinha medo, e falei pra minha mãe não denunciar (Estorias de
vida, V5, Alma, Brasil).
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Enfim, começou a me ameaçar dizendo que a minha família tava na mira, que estavam de
olho neles, e que se não quisesse trabalhar, matariam minha família. Claro que naquele
momento eu pensei na minha família porque não queria que sofressem por culpa de um
erro que eu cometi (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia).
Tudo é baseado no medo. Aquele medo interior, como você disse, as represálias no país
de origem, esta é uma questão fundamental, de outra forma, não teria explicação
(Depoimento, P12, Inspetor Chefe, UCRIF).
A capacidade de agir dos migrantes, sujeitos a exploração e tráfico de pessoas, sofre limitações
significativas, pois o medo é uma verdadeira corrente.
A privação delas à liberdade de movimento vai muito além da detenção ilegal, existem
prisões invisíveis, porque às vezes, o controle te impede de tomar decisões pessoalmente,
se estou sendo ameaçada constantemente, não precisa nem ficar acorrentada
(Depoimento, P10, Advogado).
Os ritmos e as condições de trabalho, amplamente ilustrado nos parágrafos anteriores, são exaustivos e
difíceis Se trabalha sempre, até quando chove, faz frio (quando se trabalha nas ruas) ou não se está bem, e
o contato com o externo é quase que inexistente, mesmo quando se trabalha no club. Não confiam na
policia – entre as quais existem pessoas que abusam do poder que tem, conseguindo o programa de graça
– e os clientes são, muitas vezes, indiferentes, quando não são violentos.
Até quando a gente tava menstruada tinha que trabalhar também, não tinha dia de folga,
a gente não podia parar, não deixavam, mas, graças a Deus, não tive nenhum problema de
saúde (Estorias de vida, V2, Mari, Romênia).
Nos dias mais quentes em Sevilha, ou quando chovia muito, tinha que trabalhar até 12
horas. Este tipo de coisa ninguém gosta, a gente suporta só porque existe um medo muito
muito grande, e com razão, pelas consequências (Depoimento, P12, Inspetor Chefe,
UCRIF).
Normalmente elas tem poucas relações sociais, embora, frequentemente são as colegas
do club ou do trabalho na rua que as ajudam quando decidem sair do circuito. Mas como
bem sabemos, não é sempre assim, muitas das mulheres são muito sozinhas e se sentem
muito sós, talvez um dos requisitos iniciais é se cercar de pessoas com quem se sentir
segura e protegida, porque, num outro contexto, não confiam muito nas pessoas
próximas (Depoimento, P1, Assistente Social, FSA).
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As romenas desconfiam mais ainda é da policia, pois acham que estejam envolvidos com
as redes de exploração, e as nigerianas desconfiam pela experiencia que tiveram com a
policia no país de origem e durante a viagem para a Europa. Mesmo que pareça estranho,
é claro que elas mesmas nos dizem bem claramente que os policiais são consumadores da
prostituição, e ainda com benefícios, sem ter que pagar o “programa”, de graça
(Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
Pedi ajuda a muitos clientes mas ninguém me ajudou. Não sei se tinham medo porque eu
contava a eles a minha situação e o fato que eu não pudia tentar fugir porque o cara
conhecia muita gente. Uma dessas pessoas mentiu pra mim, era um médico. Me pediu
dinheiro e disse que ia voltar pra me ajudar, mas não fez nada. Mas levou embora meu
dinheiro. Outros clientes me disseram que pra me ajudar, teria que ir sair com eles (de
graça). Eu achava melhor não, porque, sair dali pra ficar com outro, melhor não. Me
diziam que me alugariam um apartamento e que quando quisessem, eu tinha que ficar
com eles. Ou seja, escrava de novo (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
Com os clientes, eu também vivi diversas situações de desentendimento, porque se dizia
uma coisa lá embaixo, e depois, quando subiam, falavam uma coisa completamente
diferente, quando chegavam, queriam forçar a gente, bater e estuprar (Estorias de vida,
V5, Alma, Brasil).
São uns idiotas, filhos da puta. Nojentos, querem fazer tudo aquilo que não se pode, e
ainda por cima, querem que seja bem feito (Estorias de vida, V5, Alma, Brasil).
No geral, falta um contexto relacional de apoio, e isto vale, particularmente, para as romenas, as quais não
podem confiar nem nas outras mulheres com quem trabalham.
Não podia falar com as meninas do club porque ele me ameaçava, e mesmo se eles me
fizessem perguntas, pois queriam me ver triste e toda machucada. Além disso (falar com
eles) era um problema, pois em um certo momento que pedi ajuda à outras garotas
romenas, estas foram contar pro dono do club, isto quem me contou foi uma espanhola,
amiga de um outro romeno, que conhecia meu cafetão Cercaram o club e não consegui
escapar, e o dono do club me disse que queria me ajudar mas o seu patrão não queria
problemas e falou pra ele me mandar embora. Assim, no fim foi de mal a pior, e o meu
cafetão me colocou em um outro club. Ali, era uma garota espanhola ficava de olho em
mim e passava todas as informações ao meu cafetão No ultimo club, quem me controlava
era uma romena (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
Deste ponto de vista, as nigerianas parecem menos solitárias Existe uma comunidade de referencia,
embora não sem ambivalências, e mesmo em situação de trafico de pessoas, podem nascer momentos de
solidariedade, amizade e apoio pratico, além do emocional.
100
1.6.3. Exploração e fatores de riscos à saúde
A própria condição do trafico de pessoas a fins de exploração sexual apresenta fatores de riscos à saúde
(tema melhor detalhado no paragrafo dedicado à pesquisa na Itália): os riscos ligados às condições e aos
ritmos de trabalho; aqueles ligados à má alimentação – carência ou alimentação inadequada e insalubre - ;
aqueles ligados às praticas sexuais sem proteção, com os clientes e com os cafetões; e enfim, os riscos
ligados ao consumo de álcool, maconha e cocaína
Se prostituem em condições miseráveis, passando muitas horas na rua. Não tem roupas
adequadas para o inverno, em nenhum momento do dia, não só nos momentos em que
são exploradas, visto que não ficam com nenhum dinheiro para satisfazer as necessidades
básicas; até a alimentação. não podem nem comprar um lanche. Muitas delas, acredito,
que não podem nem se proteger das doenças sexualmente transmissíveis, pois
encontramos muitos casos de doenças venéreas menores. Mesmo nos apartamentos, a
prostituição se dá em condições muito precárias, sem aquecimento de inverno, pouca
comida.. ou tomam café da manha ou almoçam, ou jantam, comem só uma vez ao dia, ou
então quando conseguimos oferecê-las um almoço. Às vezes até podem perder a
credibilidade, mas isso se deve, principalmente à situação complicada em que se
encontram. Dizem geralmente de terem tido que enfrentar abortos contra a própria
vontade ou em condições de risco, e esconder a gravidez até o fim, e visto que são
malnutridas, elas até conseguem fazer isso, porque (a barriga) dá pra notar só quando
estão pra parir (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
Com o cafeta, elas tem relações sem proteção, pois pensam que não é necessário usar
este tipo de proteção com as pessoas que elas consideram seus companheiros. Isto é um
risco, pois os cafetões normalmente têm mais de uma namorada. Com relação aos
clientes, normalmente elas usam proteção e até colocam o preservativo no cliente sem
que ele perceba, nas penetrações orais ou vaginais (Depoimento, P8, Assistente Social,
V.T.).
Do ponto de vista da alimentação, identificamos vários problemas, nos clubs comem
sempre as mesmas coisas e se trata de comida muito gordurosa, tivemos até muitos casos
de anorexia porque as garotas comem pouco e consomem muita cocaína, álcool e
maconha. Mesmo se a gente disser pra elas que fazendo isso elas se tornam ainda mais
vulneráveis Identificamos um consumo de cocaína em 40% dos casos. E em casos de
programas indoor, muito consumo de bebidas alcoólicas, pois elas acabam de beber o que
sobrou do drinque em muitos casos. Em outros casos, são os homens que querem que
elas consumam cocaína antes de sair com eles (Depoimento, P4, Medico, MdM).
Depois, existe uma dimensão mais fugaz, menos visível e talvez, mais difícil de curar, que é o bem estar
psíquico Sofrer violência e viver no medo, provocam feridas invisíveis que marcam as pessoas, à vezes, pra
sempre.
101
A saúde emocional e psicológica é desastrosa, dizem ter vivido o medo e o terror. Olhando
pra elas, são tímidas, quase não falam, tem medo de tudo, são contraditórias e, às vezes,
isto nos confunde (Depoimento, P2, Assessora, ACCEM).
1.6.4. E depois?
Mesmo no trafico de pessoas, as garotas conseguem manter a sua capacidade de agir, e algumas
conseguem encontrar um meio para sair das amarras da exploração A sociedade, porém, parece ter pouco
a oferecer a mulheres migrantes ex-prostitutas. O trabalho é uma raridade, especialmente em tempos de
crise, e de qualquer maneira, é instável e precário Quem investiu tanto de si para ir atras de um sonho não
pode se dar ao luxo de esperar muito tempo, assim nasce a frustração, e a prostituição parece ser o único
caminho.
Neste momento econômico que estamos atravessando, menos ainda. Muitas das
mulheres conseguem tem um emprego precário, quase sempre um trabalho domestico, e
por nada estável É difícil que elas consigam se inserir do ponto de vista social, e que sejam
garantidas as condições adequadas (para o inserimento) (Depoimento, P1, Assistente
Social, FSA).
O problema maior é o do emprego. As que não denunciam, acabam ficando sem seus
documentos, e mesmo pra aquelas que denunciam, o processo é demorado. Não ter um
emprego com salario fixo gera preocupação, sabia? Elas tem que ter rapidamente aquela
sensação de ganhar o dinheiro delas, de ter a casa delas, de serem independentes. A
questão da autonomia. E isto traz consigo a questão da educação, de se preparar, de fazer
as coisas como se deve, existem muitas preocupações e o medo de não estar preparada
adequadamente. A nível psicológico, existe muita frustração, sabe? Cada vez que
procuram uma estrada e encontram dificuldades, se afundam. O que acontece é que
acabam projetando a raiva contra tudo o que está em volta delas (Depoimento, P9,
Psicologa).
Algumas nos diziam que tinham que voltar a se prostituir porque não encontravam outra
solução, e de fato, voltaram para o circuito (Depoimento, P3, Diretora, ACF).
Além disso, tem o problema do estigma. Uma vez que você vende sexo em troca de dinheiro, você é e
sempre será uma prostituta, uma cidadã pela metade, uma mulher de serie B, e nunca poderá se dar ao
luxo de sonhar o que é considerado normal e desejável para as mulheres de bem: uma família.
102
Agora a minha família já sabe. Eu gostaria muito de formar uma família, mas acho que não
vai ser possível (Estorias de vida, V1, Rosa, Romênia).
Os cenários ilustrados até o momento nos falam de uma difícil e dolorosa realidade, mas gostaríamos de
encerrar com um depoimento positivo, até mesmo para ressaltar o fato de que as chamadas “vitimas do
trafico de pessoas” não são somente vitimas, mas continuam sendo pessoas capazes de resistir, e disto,
muitas vezes, nasce a oportunidade de voltar a se enxergar plenamente como dona do próprio destino.
Bom, o que mais posso falar? Que pra mim, tudo o que me aconteceu, foi uma
experiencia, me fez entender que realmente podem existir momentos ruins na vida de
uma pessoa, mas se você sabe lutar, ir em frente, isso pode ser uma saída e pode ser até
em grande estilo. Podemos conseguir muitas coisas. É só querer (Estorias de vida, V2,
Mari, Romênia).
103
2. TRAVESTIS E TRANSEXUAIS BRASILEIROS: MIGRANTES OU TRAFICANTES?
(Cristina Pidello)
Como parte do projeto ETTS, foi feita uma pesquisa sobre o fenômeno da migração interna no Brasil e para
a Europa, protagonizando a população transexual, e então, além de identificar quais são as principais rotas
- também foram levadas em consideração as motivações que levam essas pessoas a migrar, e quais são as
"redes sociais" que trabalham para garantir que isso aconteça. As informações sobre o fenômeno em
questão foram recolhidos através de uma pesquisa bibliográfica e aplicação de entrevistas de testemunhas
privilegiadas, inseridas no mercado de trabalho, relacionado com a questão do tráfico ou à tutela dos
direitos da população LGBTQ. As profissões dos entrevistados variavam desde advogados, psicólogos,
assistentes sociais, funcionários de centros de saúde, funcionários da Prefeitura de São Paulo e Guarulhos.
Além disso, foram realizadas três entrevistas a representantes de movimentos e de associações italianas
pelos direitos dos travestis e transexuais. O trabalho de pesquisa foi realizado por Cristina Epiteloide,
recém-formada pela Universidade de Turim, e Rejane Alexander da Costa, coordenadora do “Posto
Avançado de Atendimento aos Migrantes” do Aeroporto de Guarulhos, serviço de acolhença do migrante,
gerenciados pelo Serviço de Assistência Social da cidade de Guarulhos. A analise das entrevistas foi
realizada utilizando um método qualitativo: identificação de palavras-chave quando comparamos as
respostas obtidas das diversas testemunhas privilegiadas, levando em consideração o contexto de trabalho
no qual eram inseridas. Os resultados das entrevistas tiveram o apoio da contribuição da pesquisa
bibliográfica
2.1 Introdução. A migração interna do Brasil.
No Brasil, assim como na Itália, as pessoas TT se afastam principalmente das zonas rurais e dos pequenos
centros urbanos, onde a cultura essencialmente machista e a tradição de uma sistema familiar patriarcal
estão enraizados na população. Há uma maior influência do papel masculino na sociedade, que
desencadeia mecanismos de rejeição, muitas vezes violentas, para com as pessoas que adotam
comportamentos que desviam da figura masculina da raça humana. Não é aceito pela sociedade o rapaz ou
o homem que, ao invés de expressar sua própria virilidade ou masculinidade, se veste de mulher e se
comporta como uma mulher. Em sociedades mais tradicionais, os papéis são claramente definidos e
expectativas são criadas em relação àquelas pessoas que, se espera, cumpram seus papéis, visto o papel
que possuem. Discriminação e violência são dois fatores que têm um papel importante na decisão de
migrar de uma pessoa TT. Você decide emigrar nos grandes centros urbanos, onde o individualismo
prevalece e não si é mais vinculado a uma comunidade de referência, com uma certa moral ou atribuição
de funções específicas.
Nos últimos anos, foi registrado no Brasil, um grande afluxo de pessoas que se transferem de áreas mais
rurais do interior do país - onde não há uma infraestrutura adequada de serviços públicos – aos centros
urbanos, este fenômeno foi denominado como “despovoamento interno”.
Em particular, esta migração está ocorrendo no Estado do Amazonas, a maior região do Brasil, cuja capital
é a cidade de Manaus. Este fenômeno de abandono das áreas internas do Brasil para se deslocar para
centros mais populosos também foi encontrado em uma pesquisa de 2013, realizada pelo Ministério da
Justiça em colaboração com o UNODC (United Office on Drugs and Crime) e ICMPD (International Centre
For Migration Policy Development).
Foram detectados migração de grupos específicos da população, incluindo a migração da população de
travestis e transexuais. Os principais afluxos de pessoas de TT que foram detectados, são:
104
•
No Estado do Acre, a maioria eram pessoas com identidade de mulher, que se deslocam de
pequenas cidades como Tarauacá, Brasileia e Cruzeiro do Sul em direção à capital Rio Branco.
Quando chegam na cidade grande, muitas começam a se prostituir pra poder ganhar a grana
necessária para poder se deslocar para outros estados do Brasil, em especial para as cidades de
Belo Horizonte, Cuiabá, Curitiba e Foz de Iguaçu (Secretaria Nacional de Justiça Governo do Brasil,
2009);
•
Um outro estado onde existe essa mesma tendencia de se deslocar de áreas menos povoadas em
direção à capital, é o Mato Grosso do Sul, onde o fluxo migratório acontece na cidade de Campo
Grande, em seguida, saem do estado em direção a outras grandes cidades brasileiras, como São
Paulo, Curitiba, Campinas, São Carlos e Cuiabá.
A maioria das vitimas de trafico de TT são brasileiras, principalmente de áreas mais pobres, ao norte do
país: Amazônia, Pará, Ceará, Amapá
O filosofo francês Henri Lafebvre identifica o espaço urbano como um lugar do encontro com a diversidade:
um território onde pode existir situações de opressão por parte de grupos minoritários que estão à procura
de reconhecimento pela sociedade de referencia (U. Rossi, A. Vanolo, 2010). A experiencia urbana reforça a
identidade de quem você é e de onde você vem e, ao mesmo tempo, questiona você ter que “pertencer à
grupos que se revindicam essenciais, como os religiosos, étnicos, de gênero ou preferência sexual” (U. Rossi,
A. Vanolo, 2010). A cidade se torna o espaço urbano onde conhecer pessoas que lutam pelos mesmos
direitos, frequentam mesmos espaços comuns, portanto a cidade representa um lugar mais seguro e
protegido, no entanto, muitas vezes isso não se reflete na figura do Estado e da comunidade internacional,
que em muitos casos, são protagonistas em cometer injustiças, discriminações e o não reconhecimento das
minorias de gênero
As características demográficas da população migratória mudam conforme o lugar de origem. A
distribuição de homens e mulheres, neste fluxo migratório, é uma das primeiras analises feita em estudos
sobre as migrações. Muitas vezes existem claras discrepâncias entre homens e mulheres que compõe a
onda migratória que chega em um determinado lugar.
Pode ser identificada como uma migração de gênero na qual, no entanto, é unicamente considerado o
componente feminino e masculino, talvez pela menor dimensão do fluxo migratório de travestis e
transexuais que, como mencionado anteriormente, é muitas vezes difícil de detectar.
A questão do gênero é um ponto-chave na analise do fenômeno do trafico de pessoas e da exploração
sexual. A maioria das pessoas traficadas são do sexo feminino e são exploradas sexualmente no mercado
nacional ou internacional, discrepância de gênero também em parte devido aos vários significados e
diferentes papéis que se criam em torno às figuras femininas e masculinas, e a sua influência nas relações
econômicas e sociais da sociedade de diversos países (Secretaria National de Justiça, 2013). Ocorre uma
“desumanização” do sexo feminino, que vem privado da sua dignidade e considerado como um mero
objeto do desejo sexual do homem, e que pode ser transportada de um lugar ao outro. A vulnerabilidade
deste grupo especifico é causada pelo fato que, ainda hoje no Brasil, as maiores taxas de analfabetismo são
encontradas na população feminina (mulheres, travestis e transexuais). As redes criminais envolvidas no
fenômeno do trafico de pessoas aproveitam-se das condições de vulnerabilidade das pessoas e de sua
capacidade de sonhar, esperar de poder obter mais e mais, esperar de mudar a própria vida: mas acontece
o contrario, uma vez que você se torna uma vitima do trafico, você se encontra em uma situação onde
todos os sonhos são negados (Secretaria National de Justiça, 2013). Fenômenos criminosos como,
exploração da prostituição e trafico de pessoas, se aproveitam de contextos de desconforto social, e se
aproveitam não só da vulnerabilidade econômica das pessoas, mas também do fato que se encontrem em
uma condição onde são excluídas do próprio contexto social de referencia, um fator que pesa sobre a
consequente dificuldade de ser capaz de competir por empregos de vários tipos. Muitas vezes, empresa
105
fecham as portas do mundo do trabalho para a população TT, assim, se torna uma das poucas alternativas
para poder ganhar dinheiro.
2.1.1. Migrar para se prostituir
Falando de transexualidade, ainda é muito difuso o esteriótipo que, travestis e transexuais são quase todos
prostitutos, e fazem este trabalho por escolha própria, quase que, como se não quisessem fazer outra coisa
na vida, e como se fosse normal vê-las por aí, à noite, a prostituir-se. Acredita-se que os transexuais
escolham este trabalho porque a exibição do corpo, e a oferta de serviços sexuais aos clientes, seja parte
daquilo que é o fenômeno transexual. Um ativista à proteção dos direitos das pessoas LGBTQ no Brasil,
durante a entrevista 3C, declarou o seguinte:
No que diz respeito à população LGBTQ, em especial, os TT, todos acreditam que se
prostituem porque querem, que todos os homossexuais e os travestis são prostitutas, só
que ninguém vai procurar saber a historia de cada um, ou porque elas fazem tudo o que
fazem, ninguém nunca ofereceu um trabalho diferente a essa pessoa [Entrevista 3C –
ativista pelos direitos da população LGBTQ no Brasil]
De acordo com uma pesquisadora da Universidade de Campinas, Adriana Piscitelli, é necessàrio distinguir
prostituição voluntaria e prostituição forçada (A.A. Piscitelli, 2011). No caso dos travestis e transexuais, a
decisão de se prostituir autonomamente, faz parte de um percurso de formação da própria identidade,
onde podem sentir-se desejados, apreciados, e não unicamente ligado à questão de ter que ganhar seu
próprio dinheiro. Muitos dos travestis e transexuais que abandonam seu núcleo familiar, uma vez fora de
casa, mesmo assim, mandam remessas com dinheiro que, muitas vezes, com o dinheiro que conseguem
economizar, compram casa ou carro novo para os pais. O sustentamento da família se torna um modo para
conseguir “ser aceito” e conseguir uma posição hierárquica dentro do próprio mundo das trans (Ministério
da Justiça, 2011). Sair de casa se torna uma possibilidade de poder crescer, se conhecer, mudar a própria
condição econômica e social.
É relevante no Brasil, o fenômeno migratório de travestis e transexuais, que decidem ir trabalhar em
grandes centros urbanos e também no exterior, para poder ganhar mais e, assim, ter dinheiro suficiente
para fazer outras cirurgias plasticas para transformar o corpo.
106
2.2. Código Penal brasileiro: não se refere somente à mulheres, mas à “pessoas”
Quanto à definição de trafico de pessoas no Brasil, a referencia legislativa é o Código Penal brasileiro, nos
art. 206, 207, 231 e 231, apresentados abaixo:
Art. 206 –Art. 206 - Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território
estrangeiro. (Redação dada pela Lei nº 8.683, de 1993).
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 8.683, de 1993) Aliciamento
de trabalhadores de um local para outro do território nacional
Art. 207 – Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:
Pena - detenção, de dois meses a um ano, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.
Pena - detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho,
dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda,
não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante,
indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)
Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a
transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição: (Incluído pela
Lei nº 11.106, de 2005) Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.106, de
2005) Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata este artigo o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 231
deste Decreto-Lei. (Incluído pela Lei nº 11.106, de 2005)
Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício
da prostituição ou outra forma de exploração sexual: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Também é considerado trafico de pessoas, segundo o Código Penal brasileiro, o simples fato de acolher
uma pessoa em casa que depois possa prostituir-se. Além disso, ajudar ou facilitar o deslocamento de
pessoas que estão indo de um lado para o outro, dentro do território nacional para depois poder exercitar
a profissão de prostituta ou para ser explorada sexualmente, é considerado crime de trafico de pessoas.
Em 2008, foi publicada uma pesquisa conduzida por Flávia do Bonsucesso Teixeira, na época era
doutoranda em Ciências Sociais e hoje é uma docente da Universidade Federal de Uberlândia (Minas
Gerais), tal pesquisa foi apresentada em um seminário sobre as questões de gênero em relação ao trafico
de pessoas, realizada pelo Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp e do projeto de Combate ao
Trafico de Pessoas do Escritório da Organização Internacional do Trabalho no Brasil.
107
No texto, são afrontadas questões sobre o trafico de pessoas transexuais em relação à condição social em
que vivem e ao sonho de viajar pra Europa, a fim de encontrar uma melhor situação de vida, do ponto de
vista econômico e social. Este sonho, sempre presente, está relacionado com as mudanças que foram feitas
no Código Penal brasileiro em 2005, onde eram acusados e considerados como forma de trafico de pessoas
também os comportamentos de facilitação ou ajuda em viagens de uma pessoa em direção ao exterior. O
risco é aquele de não conseguir distinguir entre as trans que decidem se prostituir e possuem os
documentos em ordem, e aquelas que são traficadas e estão sem documentos. Uma nova mudança feita
no Código Penal foi a substituição da palavra “mulheres” com “pessoas” dentro do discurso sobre trafico de
pessoas, podendo assim abranger também a população de transexuais e travestis como vitimas deste
fenômeno.
O Código Penal brasileiro não considera a possibilidade de que uma pessoa possa decidir, por vontade
própria, emigrar para poder se prostituir no exterior, ou em outro lugar do Brasil. No que diz respeito à
população TT, é criminalizado toda e qualquer forma de ajuda com finalidade de facilitar o exercício da
prostituição, o problema é que não é reconhecido nenhuma forma de ajuda por parte das redes sociais que
se criam informalmente. Nesta pesquisa da FlaviaTexeira, é dada atenção a como o Protocolo de Palermo e
o Código Penal dão uma definição ao trafico de pessoas, que não se enquadra às circunstancias particulares
de cada caso e à compreensão das diversas razoes que uma pessoa TT pode ter.
Durante uma entrevista a um advogado inglês, que mora já há muitos anos no Brasil, e presidente da ONG
“SOSdignity”, é discutida a importância de analisar os casos de migração/ trafico de travestis e transexuais,
considerando também o contexto social do lugar de onde vieram, e o que viveram, analisando caso por
caso:
Aqui no brasil, como funciona o trafico interno de pessoas transexuais?
É necessário ter uma visão do fenômeno também sob o ponto de vista delas, que não se
consideram vitimas. Especialmente na região de Belém do Pará, muitos adolescentes
provém dali, onde as pessoas tem origens indígenas, e a fisionomia é mais arredondada e
é muito mais fácil para um homem virar uma mulher. No nordeste do Brasil, os homens
fazem sexo com cabras, galinhas e frangos, muitas crianças trans, por volta dos oito anos
de idade, já tiveram relações sexuais com os primos, ou o pai, tios, não têm nenhum
problema emocional, só que quando a pessoa começa a se sentir uma e a querer virar
mulher, a família mandar embora de casa, porque existe uma cultura muito machista,
mandam pra fora de casa, daí se prostituem e vivem nas ruas sozinhos, com 13-14 anos,
na sua cabeça não existe o desejo de se estudar e ter uma educação, mas pensa somente
em conseguir chegar em São Paulo, por peitos e ir pra Europa pra ganhar mais dinheiro, é
o único sonho que eles tem. Assim, buscam oportunidades que são oferecidas por outras
pessoas. Claro que são vitimas, são crianças adolescentes, mas também é preciso
entender o ponto de vista deles antes de julgá-los É importante primeiro conhecer o
ponto de vista da pessoa e, em seguida, colocá-las em categorias, não acreditar muito nas
coisas que algumas pessoas te dizem, sim, são vitimas, mas não pensam como tais, não se
consideram vitimas. Para elas, é uma oportunidade de ter a passagem do ônibus paga, pra
chegar até São Paulo [Intervista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que oferece
assistência legal à população TT]
Aquilo que para a legislação nacional e internacional é frequentemente considerado como o exploração ou
tráfico de pessoas, para vários travestis e transexuais é considerada como uma oportunidade de mudar de
vida, uma possibilidade que é oferecida a eles. Como criar um sistema adequado de acolhimento para as
vítimas, quando elas próprias não se identificam como tais?
108
O problema da migração/ trafico interno no Brasil, no que diz respeito à população TT, foi também
evidenciado durante a entrevista conduzida por Rejane Alexander da Costa à coordenadora do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo:
J: Na verdade, na maioria dos casos, as pessoas não querem ir ao exterior, querem ficar
aqui. Todas as garotas que conseguimos recuperar, jovens, adultas, algumas delas
gostariam de viajar pra fora do país, mas o interessante é que diziam assim: "se fico aqui,
sei que não irei precisar de nenhum empréstimo, não terei nenhuma divida pra pagar, vou
só ter que trabalhar duro, ganhar meu dinheirinho aqui e depois ir pro exterior”, a maioria
das mulheres, adultas, nos diziam isso, enquanto as adolescentes não haviam mesmo
nenhuma intenção de viajar pra fora do país, exceto no caso de uma adolescente, um caso,
que não significa que não existam adolescentes que venham ao Brasil com a intenção de,
mais tarde, viajar pra outros países, mas acredito que seja equivocado pensar sobre o
problema da imigração dos travestis adolescentes, ou dos travestis do Norte e Nordeste
que vem pra São Paulo, imaginando que o desejo deles seja aquele de ir pra Europa,
devemos, na verdade, nos preocupar com os problemas internos do Brasil, porque estão
migrando dentro do Brasil, porque não vão diretamente para a Europa, é esta a pergunta
que deveriam fazer, mas é que as pessoas gostam de americanizar o fenômeno, eu brinco,
dizendo que quero glamorizar o fenômeno, ao invés de simplificar, se somente as vitimas
tivessem ideia do que acontece aqui no Brasil antes de ir pro exterior, não ousariam vir a
São Paulo, Cumbica, mas iriam diretamente pra Itália Porém, não é assim que acontece,
elas vem direto pra São Paulo, por uma serie de motivos, primeiro, elas precisam de
dinheiro, precisam se organizar para depois viajar pra Europa, precisam fazer contatos, e
em São Paulo existe esta oportunidade, elas vêm pra cá porque, de onde elas vem, elas são
discriminadas, não encontram trabalho, não tem estudo, vivem em uma cultura onde os
preconceitos são muito fortes, existe uma dificuldade em lidar com situações de conflito
familiar, e essas coisas todas, então quando você ouve as estorias destes adolescentes,
você percebe que eles sofrem como qualquer adolescente de uma família pobre, e esta
pobreza não é relacionada à fome, não!, é pobre porque o pai bate na mãe, ou porque o
pai é sempre ausente, ou é o irmão que agride a mãe, ou a mãe que tem muitos filhos e o
pai trabalha muito, então, ainda não tiveram uma situação melhor e mais estruturada
para ser capaz de dizer aos filhos de seguir o exemplo deles. Existe também um fator
cultural, isto é, não tenho nenhum apoio em casa, então, me viro por aí para encontrar
figuras de referencia, e é assim que entro no mundo dos transexuais, o mundo deles é
formado por pessoas que passaram por situações de violência, por isso a tendencia é um
mundo violento, intolerante, onde explorar é normal, é sério, é normal que na minha casa
vivam 10 trans, e lhes faço pagar a diária, coloco um valor, se eles vão se prostituir, não
me interessa, mas vão ter que se drogar ou então, vão ter que vender droga pra mim, e se
não o fizerem, serão castigadas. Portanto, a violência deste universo é resultado da
violência vivida individualmente, faço aos outros o que fizeram comigo.. este é o meu
ponto de vista. [Entrevista 1R – coordenadora do núcleo de combate ao trafico de pessoas
da região de São Paulo (Brasil)].
109
2.3. O abandono do próprio contexto social de referência
Em seguida, será mostrado um trecho da entrevista feita a um travesti que se prostitui pelos redores da
cidade de São Paulo (BRA), [entrevista 2C]:
Eu tinha treze pra catorze anos quando comecei a descobrir minha identidade, porém
meus pais não me aceitaram e me mandaram pra fora de casa, assim comecei a me
rebelar e a cair em depressão, o psicologo dizia que eu era louca, aí decidi ir embora […]
Quando digo, nós travestis, me refiro àqueles que caíram no mundo da prostituição e que
são obrigadas – eu sou um travesti que fui obrigada a cair na noite, a minha vida me
obrigou, porque minha mãe me pôs pra fora de casa quando eu tinha 15 anos, venho do
nordeste do Brasil, e vim pra cá porque não tinha mais jeito de ganhar a vida, pra comer
ou pra ter um lugar pra dormir, as pessoas de onde eu venho, não me aceitaram e, aí,
cheguei em Sã Paolo que eu era um “bicho do mato”.
[…] Vou te explicar como eu cheguei até São Paulo. Eu tinha 15 anos e consegui tirar,
escondida da minha mãe – se não ela não iria deixar – o meu documento de identidade,
mesmo eu sendo menor de idade, minha mãe me pôs pra fora de casa sem sequer me dar
uma orientação do tipo: “vai viver com fulano ou faz isso assim”, nada. A partir daquele
momento, eu sabia que na cidade onde morava, não teria nenhuma oportunidade, nasci
ali, a cidade era pequena e pobre, então não conseguiria fazer nada. E então o que eu fiz?
Saí à procura de alguma coisa
Você se prostituiu na tua cidade?
Não, não cheguei a me prostituir na minha cidade. Pegava carona de cidade em cidade
[…], sabe que os homens, diante de um rapaz gay, se aproveitam, e me pediam o meu
“buraquinho” em troca da carona, e olha que da minha cidade até aqui, eu tive que pedir
muitas caronas, até me escondi dentro de um caminhão de presuntos. [Entrevista 2C –
travesti que se prostitui na cidade de Guarulhos e de São Paulo (Brasil)]
Na Constituição da Republica Federal do Brasil, ao interno do art.5, afirma-se a liberdade de se mover
livremente dentro do território nacional:
Art. 5º: XV. É livre a circulação por todo território nacional em tempos de paz; é permitido a todos, segundo
previsto pela lei, entrar, permanecer, ou sair com seus pertences.
A presidenta de uma ONG de Guarulhos (Brasil), durante a entrevista 6C, afirma que, o pensamento a
respeito do direito de se locomover livremente pelo Brasil, também se estendeu para pessoas de 12 a 18
anos:
Os adolescentes de 12 a 18 anos podem viajar sozinhos dentro do Brasil, mas o Protocolo
de Palermo considera como “crianças” pessoas de 0 a 18 anos de idade, […] sair do Brasil é
muito fácil, no trafico interno são os adolescentes a serem mais vitimizados, sejam eles
transexuais ou não, porque no Brasil os adolescentes podem viajar sozinhos. Não por
acaso, Dilma, há alguns meses atrás, deu uma entrevista onde falou da necessidade de se
110
conseguir criar um mecanismo capaz de tutelar os adolescentes que viajam sozinhos, sem
ter que limitar o seu direito de “ir e vir” livremente no país No aeroporto de Guarulhos,
deveriam ser registrados os adolescentes que viajam sozinhos, juntamente às informações
sobre sua origem e destino, e sobre a família. Mas essas informações não existem,
portanto, no caso de adolescentes desaparecidos, não tem nada que possa ser feito
porque não se sabe qual foi a rota tomada. [Entrevista 6C – presidenta da ONG de
Guarulhos, responsável pelo acolhimento de vitimas de violência e do trafico de pessoas]
A entrevistada que, há mais de 10 anos é responsável pela assistência às vitimas do trafico, mostra como a
falta de tutela e controle dos deslocamentos de menores pelo território brasileiro, facilitando a ação das
redes criminais para aliciar e translocar suas vitimas. A grande dimensão do território brasileiro dificulta um
controle mais rígido dos vários deslocamentos que ocorrem ao interno do país e nas áreas de fronteira,
particularmente nos confins das Fronteiras Secas:
Quanto aos outros países, estamos agora em um período em que as cidades são o centro
de imigração brasileira para pessoas de Haiti, Bolívia, mas não há condições para
acomodar essas pessoas. Por exemplo, no Mato Grosso a fronteira seca é de 700
quilômetros, entrar e sair é muito fácil, basta confiar em uma pessoa para ajudá-lo, ou
tenha já saído e entrado no Brasil e que conheça os pontos menos controlados, tem
muitos travestis e transexuais que atravessam a fronteira com o Suriname ou a Guiana
Francesa. Estamos tentando ir trabalhar no Amapá Estamos tentando criar uma parceria
com a universidade para ser capaz de investigar o fenômeno. [Entrevista 6C - presidente
da ONG Guarulhos ASBRAD]
Quando decidem deixar a própria casa, é necessário decidir também pra onde ir, deste modo se ativam as
redes sociais. Se procura entrar em contato com algum trans ou travesti nativo para pedir ajuda e
conselhos. Os trans que conseguem concluir todo o processo de transformação do próprio corpo, que
talvez tenham vivido na Europa, e tenham conseguido comprar um carro ou uma casa nova, representam
um ponto de referencia para outros trans no inicio de seu percurso de descoberta da própria identidade de
gênero, quase um modelo a seguir e se inspirar. Através dos contatos, conseguem organizar a viagem ou
decidem de emigrar. No caso de Paula, ela tinha contato em São Paulo, e para a viagem, teve que se virar
sozinha, oferecendo serviços sexuais em troca de carona. Em outros casos, há um apoio logístico e
econômico o deslocamento do lugar de onde a pessoa mora ao lugar onde quer se transferir.
2.3.1 A figura e o papel da “Cafetina”
Quanto ao transporte, em alguns casos, encontramos a presença da “cafetina”. O termo “cafetina” se
refere à uma mulher ou trans que administra e organiza a prostituição de uma garota ou de um trans, e
exige uma porcentagem de seus ganhos. O mundo da prostituição de travestis e transexuais é estruturado
e organizado de forma diversa da prostituição de mulheres. É, de fato, menos controlado por parte das
organizações criminais estruturadas, porém é indispensável a figura da cafetina que, muitas vezes, é um
111
trans ou travesti, e que, por sua vez, também já foi prostituta. Um dos principais problemas que facilitam a
discriminação e a exclusão social de pessoas TT é próprio a falta de informações e de conhecimentos sobre
a transexualidade e sobre a existência ou não de serviços sócio-humanitários específicos para estas
pessoas. No momento em que uma pessoa TT descobre quem é, sua identidade de gênero, e não consegue
apoio dentro do contexto social onde vive, torna-se vulnerável Neste caso, a primeira pessoa encontram e
que, diferentemente de todas as outras, demonstra compreender e saber escutar, se torna facilmente uma
referencia. Se vai em busca de um lugar onde ser aceito e, por vezes, acabam nas grande cidades. Acabam
indo trabalhar para uma cafetina, graças ao boca-a-boca e aos contatos que se tem, “... sabe, tenho uma
amiga que pode te ajudar a fazer as cirurgias que precisa e achar um trabalho...”.
Na entrevista 5C, o entrevistado conta como as cafetinas muitas vezes financiam e facilitam a viagem de
travestis e transexuais:
Quem são essas pessoas que bancam as viagens? Elas fazem parte da comunidade?Quem
são?
São as cafetinas de lá [Europa] que tem acordo com as cafetinas daqui [Brasil], às vezes
são os próprios trans de lá que procuram pessoas pra poder mandar pra São Paulo
sozinhas e com documentos falsos de identidade, chegam em São Paulo, procuram uma
casa, e dizem que tem 18 anos, porque cafetina boa, que não explora, não aceita pessoas
com menos de dezoito anos, por isso, já chegam com os documentos falsos. Algumas são
levadas, outras chegam sozinhas e vão viver na casa de uma cafetina, mas vão pra rua se
prostituir. De acordo com o Protocolo de Palermo, só o fato de acolher e explorar e - no
caso de menores de idade, basta só acolher – para que seja considerado como crime de
trafico de pessoas. Então estes adolescentes vem até aqui e começam a trabalhar com
idade entre 15 e 17 anos, às vezes, a policia os pega, quando a policia te pára, eles querem
ajudar a vitima voltar para sua família, porém os trans não se sentem vitima, está bem,
embora seja claro que não está bem, porque é pobre, explorada e, por vezes, espancadas,
mas na sua cabeça, tá tudo bem, não quer voltar pra família, que já a expulsou uma vez.
[Entrevista 5C – presidente de uma ONG de São Paulo que oferece assistência legal à
população TT]
Quando chegam na cidade grande, a primeira coisa pra se achar, é um lugar pra ficar. Depois que a viagem
foi financiada, a mesma rede de contatos oferece uma habitação, uma cama pra dormir. Obviamente, nada
é de graça, assim, começam a acumular uma serie de dividas. Os aluguéis são altos, lucram com o fato que,
poucas pessoas oferecem uma casa a travestis ou transexuais: ou aceitam ou acabam na rua. Além do
aluguel, é preciso acrescentar as despesas para as roupas, comida, injeções de silicone industrial,
hormônios, e a divida aumenta, e então não há nada a fazer, a não ser, trabalhar. Normalmente vivem na
casa da própria cafetina, outras vezes, moram em outra casa. Se cria uma relação estranha, uma relação de
poder, confiança, respeito e de afeto em relação à cafetina. É uma referencia, que usa o bastão quando as
regras ou pagamentos não vêm respeitados, mas que também sabe ajudar nas diversas fases da construção
da verdadeira identidade das trans. Numa entrevista a um assistente social que trabalha próximo a um
centro de cura e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis de Guarulhos (SP), são descritas as
condições de moradia de alguns trans que se beneficiam do serviço de assistência sanitária:
Temos dois casos: Fabíola, que vive com outra oito pessoas, e Sara, que vive com dez.
Dividem casa porque suas famílias não lhes aceitam mais, lhes mandam pra fora de casa,
112
daí pra onde eles vão? Vão bater na porta da casa da amiga, chega uma, chega outra, mas
não sei quais são as condições de vida no apartamento, porque elas não abrem a porta,
são muito reservadas, e não falam destas coisas, imagina, com a gente elas já são mais
abertas e nos contam muitas coisas. Deve ser uma forma de defesa, se protegem entre
elas.. a amiga que a ajudou, deu comida, como faz a denunciá-la?[Entrevista 11C –
assistente social do DIET, Centro de Assistência para a Cura de Doenças Sexualmente
Transmissíveis da cidade de Guarulhos]
Não existem muitas alternativas, ou você paga, respeita as condições da cafetina, acha uma tua função no
sistema de exploração, ou acaba na rua. Muito explicativo foi o depoimento de um trans que trabalha na
cidade de Brasília e que, no passado, durante as primeiras fases de transformação do seu corpo, foi
afastada de onde trabalhava antes e teve que se prostituir porque não conseguia achar nenhum tipo de
trabalho (entrevista 12C):
Existem casas de cafetinas onde até as calcinhas são vendidas dentro daquelas paredes,
remédios que, na farmácia, custariam 1 real, lá são vendidos a 10; a vulnerabilidade para
extorquir e praticar crimes é baseada na vulnerabilidade em si, e não precisa de muitos
meios de proteção, porque ameaça de uma cafetina é botar você na rua, e então, o que
você vai fazer? Pra onde vai? Ou paga ou rua. [Entrevista 12C – Transexual que trabalha na
prefeitura de Brasília]
Em uma entrevista a um trans que se prostitui na cidade de Guarulhos (SP), disse que existem mesmo
pessoas que acompanham o processo de transformação das trans, convencendo-as a realizar todas as
operações necessárias para mudar o próprio corpo:
Depois, quando eu cheguei em Guarulhos, encontrei minha amiga trans, que já tinha se
“embutido” toda e já tinha morado na rua, e ela me disse “eu vou te ajudar, mas você vai
ter que trabalhar pra mim”, então eu lavava, limpava e fazia os afazeres de casa pra ela,
em troca de casa e comida. Quando comecei a me transformar, e ela percebeu que eu era
bem formada, tinha um peito bonito pra poder trabalhar na rua, e então me trouxe pro
seu mundo, me abriu a porta, eu não a culpo por isso. Não me cobrava juros porque
morávamos juntas. Só que, depois de um tempo, alguns pontos da prostituição decaem,
por exemplo, onde trabalhava fizeram uma nova rodovia, e tive que mudar, procurar
outro lugar, e tive que pagar... foi assim que comecei a ser uma “explorada por cafetinas”,
fui explorada por cafetão, por cafetina. Hoje não sou mais explorada, tem um lugar fixo
pra eu trabalhar, e nos protegemos entre nós, amigas, e não deixamos mais que isto
aconteça porque nós já sofremos muito com isso no passado.
Falando de “cafetina”, aquelas que “convidam” pra vir a São Paulo são as mesmas que te
“ajudam” a viajar ao exterior?
113
Não, a cafetina é como um dos jogadores de futebol, cada time tem um. Cada cidade tem
uma cafetina, cada bairro tem uma cafetina. O que é uma cafetina? É uma prostituta que
já trabalhou muito na rua e por aí, e não precisa mais ir pra rua e vender seu corpo. Então
o que faz? O aluno se torna professor: torna-se professor na escola onde aprendeu tudo,
ensinando outros alunos, é a mesma coisa. A cafetina já sofreu, muito, vendeu seu corpo e
depois, conseguiu se levantar, se ergueu e hoje pode seguir o seu caminho. Assim chega
uma bela jovem, começa a fazer o tratamento hormonal e começa a admirar a casa e o
carro da cafetina, e lhe pergunta “como conseguiu obter tudo isso?” e la senhora lhe
explica que conseguiu tudo isso se prostituindo, mas que foi muito difícil, sem brincadeira.
Assim, de frente a todas as dificuldades, a garota entende que precisa daquela pessoa, e
assim a cafetina a acompanha ao local onde deverá se prostituir, e a garota, sendo jovem
e bonita, começa a ganhar bem, mas tudo tem um preço. Disse a ela que a ajudariam, e
que a ela seria dada a essência do perfume, mas que vai ter que pagar porque nada é de
graça. E assim começa, e aquela garota bonitinha se transforma em outra garota bonitinha
com uma linda peruca [Entrevista 2C – transexual que se prostitui na cidade de Guarulhos
e de São Paulo (Brasil)
E' um ciclo continuo: se descobre a própria identidade e procura uma pessoa para te ajudar – e em alguns
casos, até explorar – no processo de “construção” do seu próprio corpo e depois, uma vez pronto, quando
você se torna finalmente o que você queria ser, começa a ter o mesmo comportamento de exploração
contra alguém.
2.3.2 A via das dívidas
Para se prostituir na rua, tem que pagar, se paga a proteção, a segurança de saber que tem alguém que
cuida para que ninguém te agrida, mas se você não paga, começam a fazer ameças, violência, de modo que
você é obrigada a pagar pra poder trabalhar tranquila.
Na cidade de São Paulo, parece que, nos últimos dez anos, graças ao intenso trabalho da policia, o domínio
das ruas por parte das redes criminais da prostituição, diminuiu, especialmente no que diz respeito à
prostituição de transexuais. Uma noite, graças ao me amigo que trabalha em defesa dos direitos dos
travestis e transexuais, pude adentrar nas ruas da prostituição do centro de São Paulo, passei por um lugar
que fica na rua Frei Bento, um barzinho que fica aberto a noite toda, e é um lugar de encontros e de
passagem de muitas prostitutas trans. Entrando no bar, Barry me leva pros fundos e me faz sentar na
ultima mesa da sala que fica aos pés de uma escada, que leva ao andar de cima, ao lado, uma janela que dá
pra rua. Barry me conta que até 2007, aquele bairro era controlado por uma “cafetina” muito famosa,
dizem que foi a cafetina mais importante do centro de São Paulo e que substituiu uma outra cafetina,
muito importante, que nos anos 80 controlava a prostituição de travestis e transexuais na cidade de São
Paulo (Brasil). Esta cafetina que controlava a prostituição do centro de São Paulo até 2007, ela frequentava
aquele bar, era o seu quartel general. De alguns anos pra cá, devido à contínuos controles e blitz da policia,
o trabalho na rua para a maioria das prostitutas (trans) não é mais dependente e controlado pelas
cafetinas, as quais no entanto continuam a financiar, com juros altíssimos, as cirurgias de transformação
das trans, além de organizar e administrar a viagem até São Paulo, caso elas não sejam da cidade, e o
aluguel do lugar onde vão ficar. À estes empréstimos, são aplicados juros muito altos, isso é toda a divida
que as trans tem com as cafetinas. Na cidade de São Paulo é menos pronunciada a exploração direta da
prostituição, mas tem toda a questão do aliciamento e reembolso de dividas com aplicação de juros que
114
são bem acima dos legalmente reconhecidos. Durante a entrevista 3C, foi contada uma coisa que
aconteceu nos anos 80:
Nos anos 80, o controle da prostituição de travestis e transexuais estava nas mãos de uma
transexual, Keila [nome fictício], período em que o uso do silicone industrial começou a
ter uma grande repercussão. Keila era uma grande cafetina de São Paulo, dava muitas
entrevistas, tinha muitas boates, controlava as ruas: pra poder se tornar um travesti ou
transexual e poder trabalhar na esquina ali da rua em São Paulo, precisava pedir
permissão à Keila, ela te dava permissão, mas tinha que pagar uma porcentagem dos seus
ganhos pra ela. Ela se responsabilizava por todo o processo de transformação do corpo,
desde as cirurgias para colocar as próteses de silicone, às injeções de silicone industrial e
cirurgia de transformação dos genitais, ela te orientava e te mandava para as pessoas
certas, de modo a começar o processo de transformação, obviamente, tudo tem um
custo. Era uma mafia, e ela oferecia até proteção às prostitutas, dando-lhes permissão pra
trabalhar na rua, tinha também o apoio da policia, eu vi tudo isso, na época eu tinha uns
17 anos quando conheci Keila, a policia passava pelas boates da Andréa e pegava uma
grana pra poder deixar em paz as trans da rua, nos tempos da Keila tinha isso, mas depois
que ela foi assassinada, não houve mais um controle assim forte.
Durante a seguinte entrevista, quando se fala sobre as politicas para a “diversidade sexual” de São Paulo,
foi expresso como, de fato, no que diz respeito à população TT, não se trate, na maioria dos casos, do
fenômeno do “trafico de pessoas”, mas de “exploração da prostituição” [entrevista 8C]:
Aqui na Secretaria da Justiça, onde se encontra a Coordenação da Diversidade Sexual
existe um Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas e eles são responsáveis
especificamente pelo trafico de pessoas. Apoiamos e ajudamos no trabalho do NETP,
quando se trata de vitimas da população LGBTQ, quando se fala de travestis e transexuais,
geralmente, não é trafico de pessoas, mas exploração da prostituição Tivemos muitos
casos de menores que chegavam principalmente do Pará e vinham pra cá porque eram
discriminados pela própria família, pelo ambiente social onde vivem e querem começar a
tomar hormônios, a colocar próteses de silicone, e injetar silicone industrial para poder
transformar o corpo, e acabam chegando aqui. Muitas chegam iludidas e enganadas pela
internet, com promessas de que poderão ir à São Paulo, onde encontrarão trabalho e
poderão realizar todas as cirurgias de transformação do corpo. Chegam aqui e acabam na
casa das cafetinas, muitas delas também travestis, e são exploradas sexualmente em troca
de casa e comida, e muitas delas que fazem aplicação de silicone são chamadas de
bombardeiras, elas mesmas se injetam silicone industrial. Acabam se endividando com as
cafetinas e não podem fazer outra coisa que não seja se prostituir. Pra te dar uma ideia,
na semana passada, uma noite, estava aqui na coordenadoria às 19.00 e chegaram duas
garotas menores de idade, uma de 15 e outra 16, que tinham fugido da casa de uma
cafetina travesti, estavam em São Paulo há cinco meses e fugiram porque não queriam
mais ficar lá, tinham passado uma semana na rua antes de chegar até nós em busca de
ajuda. Eu contatei a coordenadora do “Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas”, a
qual, por sua vez, contatou o Conselho Tutelar visto que se tratava de menores de idade,
assim, conseguimos encontrar um abrigo pra elas. Agora as duas garotas estão pensando
se voltar ou não para o lugar de onde vieram, uma era do Pará e a outra de Minas Gerais.
Descobrimos que onde estavam estas duas garotas, existe um processo em andamento
contra as pessoas que as exploravam sexualmente. Elas tinham liberdade pra sair da casa
115
onde ficavam, mas rolava uma exploração da prostituição, elas tinham que se prostituir
pra poder conseguir pagar a divida, e uma delas se injetava silicone, acho que já estava
aplicando na parte inferior do corpo, e era a cafetina travesti que fazia essas aplicações de
silicone industrial. No que diz respeito ao trafico de pessoas interno de travestis e
transexuais, acontece mais ou menos isso, muitas garotas menores de idade vem pra cá
com essa intenção, viaja, sem problemas porque qualquer pessoas tem a liberdade de ir
de um lugar a outro, mesmo que seja menor de idade [Entrevista 8C – responsável pelas
politicas sobre a “diversidade sexual” na cidade de São Paulo (Brasil)]
A entrevista 8C se refere também ao papel das “bombardeiras”2 no processo de construção do corpo de
um travesti ou transexual.
2.3.3. As bombardeiras: a transformação do corpo por vias informais e ilegais
A experiencia pessoal da entrevistada 2C a levou a fazer uso de silicone industrial para arredondar as linhas
do seu corpo e torná-lo mais feminino. [entrevista 2C]:
Você usou silicone industrial, tomou hormônios?
Cheguei a tomar hormônios no período dos dezessete aos dezenove anos, e comecei
também a me injetar silicone industrial nas coxas, porque não existem próteses de anca,
não existe este tipo de cirurgia, então, se recorre ao uso de silicone industrial que, porém,
é ilegal. Tem que dar sorte de encontrar uma boa “bombadeira” que consiga te deixar
com uma boa anca, como a minha. Alguns não conhecem bem estas substancias e
misturam coisas diferentes, é muito perigoso. [Entrevista 2C – transexual que se prostitui
na cidade de Guarulhos e de São Paulo (Brasil)]
O utilizo do silicone industrial e da sua aplicação por pessoas não qualificadas e adequadamente formadas
para realizar tal operação, é um problema muito grave dentro da população trans, que se instalou devido à
falta de serviços específicos públicos, mas também privados, que oferecem a possibilidade de poder
realizar as cirurgias de transformação do corpo, que uma pessoa trans necessita.
A presidenta de uma ONG de Fortaleza, que lida com proteção e promoção dos direitos da população trans,
durante a entrevista 9C, menciona o fenômeno das Bombadeiras:
2
Trans (travesti ou transexual) que aplicam injeçoes de silicone industrial e se responsabilizam pela transformaçao do
corpo da pessoa trans, mesmo não tendo nenhuma licença medica, nem autorizaçao para aplicar tais substancias que,
na maioria dos casos, resultam ilegais.
116
No Brasil, existe também o fenômeno das Bombadeiras, é considerado crime usar silicone
não através de cirurgia, e que é muitas vezes realizada por outras pessoas. Até que ponto
as bombardeiras são monstros, ou seriam fadas? Porque conseguem transformar em
corpos belíssimos, mas existem casos onde a travesti teve que amputar a perna por culpa
do silicone industrial.
Hoje no Ceará, colocar prótese de silicone custa uns 6000 reais, imagina quantos clientes
ela tem que atender para poder ter grana suficiente pra colocar peito, fazer uma
rinoplastia, quanto silicone elas tem que injetar pra ter umas pernas lindas e delineadas.
Esta busca da feminilidade é permanente na vida de um trans, não muda porque a
transformação do corpo representa aquela afirmação que, a elas é negada
cotidianamente.. elas fazem cirurgias, colocam silicone no corpo, mas pela sociedade, elas
são chamadas com o nome de batismo, ou seja, nome de homem. Por isso fazemos este
trabalho pela garantia dos direitos, mas sabemos que será necessário ainda muito tempo
para conseguir gozar desses direitos. [Entrevista 9C – presidenta de uma ONG de
Fortaleza, responsável pela tutela dos direitos da população trans]
“Até que ponto as bombardeiras são fadas, e até que ponto são monstros”? As aplicações de silicone
industrial são feitas dentro da própria casa e pelas próprias trans. Obviamente custam menos respeito às
operações da medicina tradicional, oferecida como serviço privado, dando a possibilidade de reduzir o
tempo de espera, para finalmente ver o aspecto físico que deseja. Infelizmente, o custo não é somente
monetário, os efeitos colaterais – desta substancia química injetada no corpo – são vários: em alguns casos,
ter até que amputar um membro, enquanto em outros casos, a falta de informação sobre o estado de
saúde da pessoa, pode levar até à morte. Outro efeito colateral devido ao uso de silicone industrial é que,
depois de um certo período, ou após um forte trauma, esta substancia pode descer para as zonas inferiores
do corpo, desfigurando a pessoa: aparece como um forte inchaço nos tornozelos. Durante a entrevista 5C,
foram mostradas fotos de trans que tiveram “o silicone industrial que desceu” e explicado porque às vezes
isso acontece?
O silicone das pernas descem para os pés?
Sim, e às vezes, os policiais batem nas prostitutas trans, bem nas pernas de proposito pra
fazer descer o silicone.
Quando o silicone desce, normalmente, as prostitutas procuram serviços de saúde publica
ou privada em busca de tratamento?
Não há muito o que fazer porque se trata de silicone industrial, injetado diretamente no
músculo: já é caro conseguir injetá-lo, imagina para tirá-lo então. [Entrevista 5C –
presidente de uma ONG de São Paulo que fornece assistência legal à população trans]
Para um trans, a transformação do corpo é fundamental porque lhe permite de não ter que se espelhar
todo dia em uma figura que reconhece: o corpo é algo que esta com a gente a todo momento, e a todo
momento nos faz lembrar quem somos e o que não gostaria de ser. A decisão em relação à qual aparência
física assumir, é também ditada pelos modelos de feminilidade perpetrados pela sociedade. Durante a
entrevista 9C, se explica como estes modelos estão ligeiramente mudados em relação ao passado:
117
Você pode me falar sobre o fenômeno das Bombadeiras?
O fenômeno das bombardeiras hoje não é muito forte, esta cultura e ideia do corpo ideal
para as trans, não é mais assim tao forte, acho que as travestis de hoje são bem diferentes
daquelas dos anos 90, hoje estão sempre em busca do estilo e da estética europeia, mais
ossudas e mais magras, se aproximando mais à feminilidade da mulher, ao contrario dos
anos 90, onde a moda era mulher formosa, grande, com um grande traseiro e grandes
tetas. As bombardeiras se aposentaram. Hoje, o que acontece é que outras trans ou
mulheres mesmo, mas especialmente travestis, fazem uso destas injeções de silicone
industrial, que custam por volta de 500 a 700 reais ao litro, com risco de gangrena e
amputação Tem uma garota que conheço que se injetava silicone, perdeu um braço e uma
perna. Hoje as garotas usam muito as próteses, é um mercado que aumentou muito, por
exemplo, eu já coloquei duas vezes.
Não tem nenhuma assistência oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde)?
Não, não. Tenho amigas cabeleireiras e que tiveram que economizar dinheiro por três
anos para fazer esta operação, iam trabalhar de ônibus ao invés de pegar o carro pra
economizar, você viu como é difícil se mover de ônibus nesta cidade! Para fazer a cirurgia
dos genitais, tem que separar por volta de 20000- 27000 euros ou arriscar ir pra Tailândia
ou pra Itália, por conta, muitas vão pra Itália por conta, muitas garotas vivem o resto da
vida delas na fila, esperando pra fazer a cirurgia no SUS, é um processo que demora muito
devido à fila de espera e de todo percurso de tratamento físico e psicológico para
preparação a operação As garotas que viviam ou vivem em função da prostituição tem
medo de fazer a operação por causa das complicações que podem surgir, e por problemas
com o HIV, e porque sabem que só esta operação não é suficiente, mas é também
necessária toda uma preparação seja antes que depois, como uma rinoplastia, você não
pode fazer tudo de uma vez, é preciso um minimo de duas intervenções. [Entrevista 9C –
presidenta de uma ONG de Fortaleza que se ocupa da proteção dos direitos da população
trans]
A saúde é uma questão muito delicada dentro da população trans brasileira: se por um lado encontramos a
falta de serviços específicos adequados de assistência sanitária, por outro lado, no Brasil, o sistema de
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis é muito desenvolvido e facilmente acessível.
A entrevista 8C descreve qual é o nível das ofertas de assistência para as trans, e de como esta falha é
devido à não disponibilidade de pessoal médico devidamente especificados, a fim de oferecer a devida
assistência aos problemas de saúde de travestis e transexuais
E quanto às condições de saúde?
A questão da saúde é muito complexa, ainda temos um alto numero de doentes,
portadores do HIV, na população trans. Aqui em São Paulo tem o ambulatório de saúde
integral para TT, gerido pelo Estado. Este ambulatório oferece uma assistência especifica à
esta população, mas ainda hoje, a demanda é grande e só este ambulatório não basta. O
ambulatório se localiza perto da estação Santa Cruz do Metrô, é o primeiro da América
Latina e é um centro que oferece assistência medica a 360 graus, desde neurologista,
ginecologista, endocrinologista, e quando começam o processo de hormonizaçao, o
118
psicologo. Trata-se de um ambulatório que procura atender às exigências de saúde das
pessoas TT. Existe, porém, uma carência enorme de médicos especializados para atender
as necessidades das trans, este é um problema que estamos enfrentando aqui no estado
de São Paulo. Por exemplo, a cirurgia para mudança do sexo é feita no Hospital das
Clinicas, mas todo o processo dura pelo menos uns dois anos, são feitas, no total, dez
cirurgias por ano, nem mesmo uma por mês, isto acontece devido à falta de médicos
especializados em fazer tais cirurgias. Muito preocupante é a questão do HIV, pois ainda é
muito elevado o numero de pessoas infectadas por não se protegerem adequadamente.
O serviço de assistência à cura do HIV é bem organizado aqui?
Nós temos um programa de prevenção do HIV, usando de alta tecnologia, moderno, a
politica de prevenção, aqui no interior do Estado de São Paulo, é muito boa. Foi realizada
uma pesquisa pela Santa Casa, na região central de São Paulo, com jovens de 15 a 24
anos, e a percentual de HIV era altíssima, principalmente entre os homens que fazem sexo
com outros homens, esta pesquisa trouxe à tona um dado muito preocupante de pessoas
infectadas pelo HIV entre os jovens trans, um dado alarmante. [Entrevista 8C –
responsável pela politica sobre a “diversidade sexual” da cidade de São Paulo (Brasil)]
Em alguns casos, bebem muito, dentro e fora de casa, muitas prostitutas trans se embebedam para
suportar as duras condições em que trabalha. Em relação à droga, a mais usada é a cocaína, com ou sem
cliente.
As ruas da cidade se enchem, geralmente a prostituição transexual se concentra em determinadas zonas,
desde centro até periferia. Ser uma prostituta e trabalhar na rua implica muitos perigos, principalmente
porque si entra em contato com o mundo da criminalidade e das drogas. Não são todas as prostitutas que
se drogam, algumas decidem não usar, enquanto outras recorrem à utilização destas substancias para
suportar a vida que levam. Outras vezes é o próprio cliente que deseja se drogar antes/depois da
performance sexual e em alguns casos, ele também convida a prostituta a drogar-se. Os traficantes de
droga usam as prostitutas para ampliar o mercado de trabalho deles, muitas vezes aproveitando que os
travestis se prostituem em zonas isoladas e escuras. Na entrevista 10C a um agente da policia de transito,
emerge o seguinte:
Já tiveram vários casos de travestis que foram presas por porte de drogas, traficavam ao
próprio cliente, além de fazer serviços sexuais, consumiam e vendiam drogas aos clientes,
tocando pra frente dois mercados ao mesmo tempo. Nem todas estão envolvidas com o
trafico de drogas, não podemos generalizar, algumas se drogam essencialmente, outras
acabam virando traficantes, também porque trabalham em lugares que facilitam o
crescimento destes tráficos ilegais, em lugares escondidos, pouco iluminados e pouco
frequentados. [Entrevista 10C – agente da policia de transito de São Paulo (Brasil)]
A droga consome o corpo e torna as pessoas ainda mais vulneráveis, para as prostitutas toxicodependente,
consequentemente, a relação com o cliente assume um caráter mais violento e se faz menos atenção às
medidas de proteção contra as doenças sexualmente transmissíveis (DST). É desta maneira que se
119
propagam as doenças entre as prostitutas trans, como HIV, sífilis e muitas outras. O corpo fica debilitado e
a vulnerabilidade aumenta. Para responder a esses fenômenos, durante os últimos dez anos, houve uma
considerável ativação no que diz respeito aos serviços de prevenção e cura de DST. Se uma prostituta
precisa fazer o teste para saber se é ou não soropositiva, pode ter acesso a diversas estruturas, o
importante é saber onde achá-las Considere que a transexualidade se tornou parte do debate publico
graças à questões relacionadas à cura do HIV.
2.4. Migrar para fora do país: a Europa vista como o paraíso das travestis
A Europa é o continente com o mais alto fluxo imigratório; em 2010, o balanço entre imigrante e emigrante
foi positivo, com mais de 900 mil unidades. Em media, nos vários países europeus, os estrangeiros
constituem 6% da população nacional, e os principais países europeus metas dos estrangeiros são: França,
Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha (Santis, 2010). Durante os últimos anos, as pessoas começaram a
migrar não somente buscando a prospectiva de uma vida melhor, sob o ponto de vista econômico, mas se
encontram sempre mais migrantes que chegam na Europa por varias razoes, por exemplo, houve um
aumento de refugiados políticos, que decidiram deixar o pais onde viviam devido à situação de conflito que
envolve o seu Estado, pessoas que são expulsas dos seus próprios países por motivos políticos, refugiados
ambientais, forçados a abandonar um território, já todo devastado por desastres naturais; ou migrantes
que pertencem ao fenômeno chamado “brain drain”, ou seja, pessoas que emigram para lugares onde
possam crescer e valorizar seus conhecimentos e habilidades.
Com o crescimento do fenômeno migratório, os países mais industrializados começaram a fazer algumas
mudanças nas leis migratórias, para tentar controlar o forte aumento dos imigrantes no país deles. Um
problema que ainda é muito importante, é a falta de uma politica e uma regulamentação sobre a questão
da imigração, e que seja comum em toda a União Europeia.
A população migratória que se estabelece em um novo país, pode constituir uma força de trabalho,
portanto, fazer parte da população ativa, tornando-se um recurso econômico para o país. Mas o desejo e a
vontade de ir viver em um outro território não são suficientes para poder depois se estabilizar
regularmente no país hospedeiro. Na Itália, por exemplo, precisa ter todos os documentos de identidade
em ordem, e possuir visto de ingresso – o visto turístico tem validade de 3 meses – se tiver que prolongar o
período, é necessário pedir outro “permesso di soggiorno” (autorização de permanência) dentro de 8 dias
uteis da chegada no território italiano. O permesso di soggiorno deve ser pedido na delegacia da cidade
onde se tem intenção de permanecer. A validade do permesso di soggiorno corresponde àquela indicada
no visto de entrada, e pode variar: de 6 a 9 meses, no caso de trabalhador sazonal; 1 ano, no caso de
motivo de estudo; até chegar a 2 anos, no caso de trabalho autônomo ou de reagrupamento familiar.
Quando vencer esta autorização, é possível pedir pra ser renovada. A emissão desta autorização por parte
da delegacia da cidade onde se mora, é ligada a uma avaliação previa da identidade pessoal, e onde estão
indicados, não só dados pessoais mas também tem uma imagem facial e as digitais da titular, para garantir
uma mair segurança no reconhecimento do titular do documento, evitando formas de falsificação do
documento em questão.
Os primeiros fluxos migratórios de trans brasileiros foram identificados nos anos 70, pelo estudioso Don
Kulick, a França foi o principal destino até os anos 80, durante o qual a Itália começou a crescer como meta
preferencial pelas pessoas TT migrantes; os motivos principais desta mudança de rota migratória pode ser
devido a semelhança da língua italiana com a língua brasileira, e os vestidos de marca da moda italiana
como simbolo de feminilidade, de glamour entre as trans (Teixeira, 2008). A La presidenta de uma
associação italiana que é responsável pela tutela dos direitos da população trans brasileira, confirma que os
120
primeiros fluxos migratórios das trans brasileiras tinham como objetivo, como meta, a capital francesa, e
nos fornece interessantes detalhes que conhece bem, graças ao seu envolvimento direto com o mundo
trans nos anos 70 [Entrevista 14C]:
Os fluxos que partiam do Brasil para a Europa existiram desde quando se começou a falar
de experiencia trans, porque estamos falando disso, e não de outra coisa, mas não eram
só do Brasil, pessoas de todos os lugares do mundo queriam ir à Paris, porque Paris era
meio que uma meta, era uma cidade que abrigava todos, onde o teu espaço era
garantido, então, o fluxo sempre teve, talvez não era bem claro a sua finalidade: se falava
de espetáculo, mas também de prostituição, mas era tudo muito aleatório porque ainda
estava começando. Em seguida, lentamente, começa a ganhar forma a prostituição trans
nas ruas, com seus pontos definidos, suas modalidades e suas características, e Paris é,
sem duvidas, um destino, e também uma cidade- simbolo, sob este ponto de vista, Bois de
Boulogne é apenas uma indicação, os pontos de chegada eram Paris e, também Marsília,
eram essas duas cidades, depois foram inseridas outras como Lyon. O fluxo então era de
São Paulo para o Rio de Janeiro, Espanha (Madrid ou Barcelona) e de lá se passava na
França. Os fluxos não eram muito controlados, não havia um controle nas estações de
trem, estava ainda em fase de instalação na Europa, e entrar na Espanha, que era um país
muito geminado com a América do Sul, era mais tranquilo. Isso mais ou menos até o
começo dos anos 80 quando, com a explosão da AIDS, que pegou um pouco todos
despreparados, incluindo os Governos, que deu o alarme, mesmo no Bois du Boulogne,
houve ataques o tempo todo, instalações foram fechadas. E como a “fome aguça o
engenho”, a trans começou a explorar outros lugares, então, você sabe, os boatos correm,
ficaram sabendo que na Itália se trabalha muito na rua, e a Itália correspondia também à
modalidade de pratica da prostituição, acredito que existam diversas modalidades, por
exemplo, tem a modalidade Mediterrânea de ficar na rua, mas é porque o clima assim
permite, claro que ao norte, em países como a Alemanha e Holanda, na rua ninguém fica.
Então, será por este motivo ou porque na Itália, naquela época, se trabalhava bem, por
uma serie de coisas, elas começaram – e digo no sentido figurado - a espremer “além dos
Alpes”. As italianas começaram a saber que os “bárbaros” pressionavam nas fronteiras, no
sentido figurado, eram mesmo os bárbaros que, do outro lado, pressionavam. Naquele
período eu tava na rua, trabalhando, e as outras todas passavam, e faziam uma verdadeira
ronda, “ah, as brasileiras estão chegando!” Era como se tivesse um exercito de hunos do
outro lado dos Alpes, forçando para entrar, eu, particularmente, nunca tinha visto uma
brasileira antes. A coisa mais absurda é que, quem dava o alarme era brasileira também, a
única, que morava em Roma há anos, e sempre dizia: “ah, olha que elas tão chegando”,
sabia até alguns nomes, dizia que “ aquelas, quando chegam, quebram tudo”, por isso
tinham essas patrulhas que, toda noite, saiam pra controlar a praça, porque parecia que
estavam chegando os Lanzichenecchi (Soldados mercenários alemães, contratados para
marchar sobre Roma por Carlos V em 1527. Com o tempo, a referência para o
Landsknecht assumiu o significado geral de "invasores”). Então apareceu a primeira,
depois a segunda e aí, porrada, porque elas eram as duronas do pedaço, mas o fato é que,
continuavam a aumentar e aumentar, porque então, as brasileiras agiram com inteligencia
e adotaram uma estrategia: ao invés de ficar ali fazendo guerra e dando porrada, elas
fizeram um pouco como “Cavalo de Troia”, entraram em silencio, contataram aqueles
boss (chefões), que então, são fáceis de identificar. Na Itália havia apenas dois clãs: os
napolitanos e os sicilianos. As napolitanas, falavam alto e eram muito alegres e as
sicilianas, quietinhas quietinhas, controlavam varias regiões Então, o que fizeram,
contataram as “boss” italianas, contataram aquelas que estavam piorzinhas, com AIDS
talvez – muito comum naquele período – e pagando, se enfurnaram em algum pedaço de
território, e começaram a chegar as outras também, e se tornou uma presença concreta e
evidente, no começo, em grandes cidades como Milão, Turim, para depois se transferir lá
onde o esta pratica é mais rentável [Entrevista 14C – presidenta de uma associação
italiana, sede em Bolonha, que se ocupa da tutela dos direitos da população TT]
121
A pesquisadora Larissa Pelucio observou novas metas de destino de migração da população TT para a
Europa, a partir do ano 2000, particularmente nações como a Espanha, Suíça, Holanda e Portugal
começaram a se tornar metas migratórias escolhidas com maior frequência pelas pessoas TT brasileiras
(Larissa Pelucio, 2007).
A pesquisadora da Universidade de Campinas (SP- Brasil), Adriana Piscitelli, levanta a questão da relação
entre o trafico de pessoas e a migração voluntaria das trabalhadoras do mercado do sexo (Piscitelli, 2011).
As pessoas que migram para trabalhar na industria internacional do sexo muitas vezes comparecem nas
estatísticas migratórias, classificadas como vitimas, e não como migrantes que vão ao exterior em busca de
um trabalho num setor especifico (mercado da industria do sexo), por culpa daqueles valores enraizados
pela sociedade moderna, e que alimentam os movimentos de abolição da prostituição, seja esta forçada ou
voluntaria. No Brasil, os “setores” da industria do sexo mais desenvolvidos e conhecidos são o turismo
sexual e a migração internacional, e ambos são sujeitos ao fenômeno do trafico de pessoas. Muitas
associações feministas dizem que tanto a industria do sexo ou a própria mulher que oferece serviços
sexuais a pagamento, são reduzidas a meros objetos, mercadorias, por isso, qualquer tipo de prostituição é
considerada degradante para o ser humano. Existem também outras correntes de pensamento, onde a
prostituição é considerada como qualquer outro emprego, e como tal, deve ser realizado em condições de
segurança, respeitando os direitos comuns a todos os trabalhadores. Esta questão da relação entre
prostituição e trafico de pessoas é também abordada durante a entrevista à presidenta de uma ONG de
Guarulhos:
Então, é um grande equivoco pensar que o trafico de pessoas para exploração sexual
esteja intimamente ligado à prostituição?
D: Sim, um grande equivoco, na realidade são dois países abolicionistas que pensam deste
modo, isto é, que a prostituição é a porta de entrada para o trafico de pessoas, a
prostituta é destinada a ser vitima do trafico de pessoas, portanto, acabar com a
prostituição significaria atingir o objetivo maior, acabar com o trafico de pessoas. Na
realidade, devemos respeitar a liberdade da mulher, sei que não é um assunto pacifico, no
Brasil é difícil conduzir um debate sobre a prostituição, vista como trabalho, com
reconhecimento como trabalhadoras do sexo, porque existe um grande preconceito, nem
nos movimentos feministas é um assunto tranquilo, existe um grande segmento que
considera a prostituição como uma grave violação dos direitos humanos, existe um outro
segmento que considera que a mulher tem autonomia sobre o próprio corpo, então, eu vi,
não só no Brasil, mas em alguns países, prostitutas autônomas que eram tratadas como
traficantes, como vitimas do trafico, e que, corajosamente se defenderam, porque elas
eram prostitutas autônomas, porque não teriam o direito de estar ali? Estavam só
ganhando a grana delas e não praticando nenhum crime, mas acabaram ali.
INT: Neste sentido, se nós observarmos a dinâmica da rede que trabalha com trans, é meio
confuso, não? Porque se trata de um grupo mais vulnerável do que os outros.
D: Não, existe uma grande discriminação em relação à população trans, primeiro, a
sociedade é muito cruel. Em todos estes anos trabalhando no aeroporto, vimos que,
quando fazíamos o acolhimento das travestis, que chegavam principalmente da Itália,
eram pessoas mais abertas para contar a estoria delas em comparação com as mulheres.
Por que? Porque vendo esses seres humanos, por pior que sejam as condições onde
vivem, seja em Paris, Milão ou Roma, são menos discriminadas que aqui no Brasil, não só
pela sociedade, mas existe uma grande pressão por parte das instituições publicas, então
tem também esta questão, das instições publicas que descriminam e, às vezes até
122
perseguem as travestis, enquanto que, em países da Europa, apesar da dificuldade de
sobrevivência, elas têm muito mais condições de ter uma vida de menos preconceito e de
maiores possibilidades, e não é por acaso que o sonho dos travestis é morar na Europa.
Ora, ninguém pode impedir ninguém de sonhar, mas é nosso dever trazer informação à
essas pessoas, pois a informação pode ajudá-las a não cair na armadilha. [Entrevista 2R –
presidenta de uma ONG de Guarulhos que se ocupam do acolhimento da vitima de
violência e de trafico de pessoas].
No entanto, a prostituição não é o único trabalho procurado por trans que, muitas vezes optam por
emigrar em busca de uma novo emprego tipo cabeleireira, esteticista ou na área do espetáculo
Infelizmente, são pouquíssimos os casos de trans que conseguem um emprego normal no exterior, por
culpa do preconceito da sociedade em relação a eles e à delicada questão dos documentos, não somente
pelo fato de ser estrangeiro, mas pelo fato de ter um documento de identidade onde as informações
reportadas são sobre o sexo biológico da pessoa.
Na Itália, a cirurgia para mudar de sexo é regida pela Lei 164 de 14 de abril de 1982, denominada
“normativas de retificação referente ao sexo”. Durante a entrevista com o vice presidente de uma
associação LGBTQ de Turim (Itália), emerge como esta seja, praticamente, a única lei relacionada aos
direitos da população LGBTQ na Itália Conforme previsto na lei, a pessoa que quiser fazer todo o processo
de transformação do corpo, primeiro de tudo, deve pedir autorização ao tribunal, apresentando uma
instancia na zona onde mora, no caso em que a pessoa transexual fosse casada, deve ser notificado aos
filhos e ao cônjuge sobre o ato de autorização à intervenção, e a apresentação desta solicitação resulta na
dissolução do casamento:
LEI 164/82- Art. 4
A sentença de retificação referente ao sexo não tem efeitos retroativos. Provoca a
dissolução do cas amento ou a cess ação dos efeitos civis res ultantes da trans crição do
casamento celebrado no religioso. S ão aplicadas as normas do código civil e da lei de 1
de dezembro de 1970, n.898, e sucessivas alterações .
Uma vez emitida, pelo tribunal, a sentença de autorização para a operação cirúrgica, a pessoa interessada
poderá se dirigir à um hospital especializado, para assim, submeter-se à intervenção cirúrgica. O
procedimento para alterar os dados pessoais, em relação ao sexo da pessoa, poderá ser iniciado somente
após a operação de mudança de sexo, depois disso, poderá ser enviado um pedido ao tribunal para a
retificação dos dados pessoais. As pessoas trans decidem vir para a Itália para fazer as cirurgias necessárias
para ter aquele corpo tão desejado, com o qual se identificam, mas as condições de clandestinidade as
impede de ter acesso aos processos sanitários para a transformação do físico, reconhecendo apenas o
direito à assistência em caso de emergência. Durante a entrevista a uma trans, presidenta de uma
associação italiana que se ocupa da tutela dos direitos das pessoas TT, se fala de, como na realidade, as
trans brasileiras que decidem ir para o exterior para se prostituir, transformam seus corpos para tornaremse objeto de desejo sexual dos clientes: ir trabalhar no continente europeu por um período limitado
representa a possibilidade de ganhar mais dinheiro de quanto ganhariam no Brasil, fazendo o mesmo
trabalho. Uma outra motivação que estimula a pessoa trans a migrar para a Europa, é o desejo de
submeter-se a cirurgias, particularmente, aquela para mudança de sexo. No artigo LGBTQ Neighbourhoods
and ‘New Mobilities’: Towards Understanding Transformations in Sexual and Gendered Urban Landscapes,
escrito pelos autores C. J. Nash e A. Gorman-Murray (2014), se fala sobre o tema das “mobilities” da
população LGBTQ, se questionam qual seja o valor atribuído ao deslocamento dos corpos. O artigo faz
123
distinção entre a mobilidade que acontece devido ao deslocamento físico de um território a outro, e a
mobilidade quotidiana, representada por fluxos de caixa, pela tecnologia da comunicação, pela divulgação
das informações sobre as formas de viagem e das conexões entre um lugar e outro, que alteram a distancia
espaço-tempo nas diversas áreas geográficas Os dois autores consideram a mobilidade como uma
componente intrínseca do cidadão moderno, de fato, se usa a expressão: “modern citizen is a mobile
citizen”. Graças à mobilidade dos indivíduos é possível fortalecer algumas relações de poder, já notaram
que, quando as trans migrante retornam ao seu lugar de origem, em muitos casos, têm o respeito das
pessoas da própria comunidade, e são reconhecidas e respeitadas pela sociedade, mesmo quando, antes
de abandonar a própria casa, eram vitimas de inúmeras discriminações e atos de violência O estudioso
Cresswell foi também citado, ele acredita que foi próprio essa mobilidade da população gay, que começou
a partir do final da segunda guerra, que permitiu um emponderamento em relação aos aspectos
econômicos e políticos da comunidade homossexual, graças também à criação dos gay village, ou seja,
bairros inteiros habitados quase que exclusivamente por homossexuais (C J. Nash, A. Gorman-Murray,
2014).
A migração internacional é intimamente ligada à migração interna, pois na maioria dos casos, o
deslocamento da pessoa trans de regiões mais rurais para as regiões metropolitanas brasileiras, a
finalidade é conseguir ganhar o dinheiro necessário para, em seguida, se mudar para o exterior. Uma das
rotas identificadas durante a pesquisa sobre o trafico de pessoas, foi aquela da região do Pará, norte do
Brasil: as pessoas TT sairiam de Belém em direção a São Paulo, para depois ir trabalhar na Europa.
(Ministério da Justiça 2013).
2.4.1. Fluxos migratórios fantasmas
Mesmo no caso da migração internacional, forçada ou voluntaria, permanece o problema de conseguir a
quantificar o fluxo migratório das pessoas TT, que emigram do Brasil. Esta falta de dados e devida ao fato
que, no momento em que se deixa o Brasil, são pouquíssimas as trans que já conseguiram obter o
reconhecimento do nome social em nome civil, motivo pelo qual o controle dos documentos feitos na
fronteira, serão registrados com o nome de batismo, ou seja, com a identidade do gênero de sexo biológico
Ainda na entrevista 5C foi descrito como este problema afeta a transição para os controles fronteiriços:
Na viagem para a Europa, as trans tem que viajar vestidas de homem, devido a
fiscalização e ao controle dos documentos quando chegam na Europa? No documento
normalmente o que aparece é o nome civil, e não o social, ou seja, o nome de trans. O que
pensa a respeito?
Elas tem sempre o documento onde comparece o nome de homem, são pouquíssimas as
que conseguiram obter reconhecimento civil do nome social, esta ONG onde trabalho,
fazemos este tipo de trabalho, agora estão começando a oficializar o nome social. Quando
viajam, devem viajar vestidas de homem, porque se quando chega no aeroporto, não sabe
falar a língua e está vestido de mulher, não vai conseguir entrar no pais, te mandam de
volta pra casa porque é obvio que você esta indo lá só pra se prostituir, então,
normalmente na primeira vez que viajam, vão “desmascaradas”.
124
Este tema foi igualmente citado, durante a entrevista a um ativista brasileiro pelos direitos da população
LGBQT, que chama a atenção sobre como este procedimento de controle, que obriga uma pessoa, que há a
identidade de gênero diferente do biológico, a negar sua identidade de gênero, isso é uma mera
formalidade que afeta a dignidade da pessoa [entrevista 3C]:
Após as vitimas serem individuadas e aliciadas, como fazer para obter os documentos de
viagem, e como é organizada a viagem?
É como uma viagem de turismo normal, só que a mafia paga tudo: passagem, impostos,
roupas, tudo. E as vitimas viajam normalmente. As trans, principalmente as travestis,
muitas delas quando viajam ao exterior, para passar pelo controle dos documentos, onde
é feito o reconhecimento físico da pessoa, devem viajar não travestidos, alguns usam
perucas e roupas de homem, para não despertar suspeitas se ser um travesti ou trans,
porque o problema está no documento onde a pessoa ainda comparece com uma
identidade do sexo masculino, então, a pessoa tem que viajar como um homem para
poder chegar no país desejado, e depois trabalhar como mulher. Existe este problema de
identificação no aeroporto da Itália, da Espanha, mas os agentes reconhecem, de qualquer
forma, estas pessoas, toda a Europa conhece bem este fenômeno, porque quando as
trans vão à estes países, em 80% dos casos é para se prostituir, este processo é somente
uma forma de tentar inibir, não que seja contra, mesmo porque, existe mesmo um
preconceito em relação a essas pessoas, algumas delas vão realmente para trabalhar, eu
tenho uma amiga que trabalha lá como modelo, conseguiu achar um trabalho normal
como modelo, e outras que são comerciantes. Na Europa existe um prejuízo em relação a
essas pessoas, porem de maneira mais amena que no Brasil.
A falta de dados também afeta o retorno ao Brasil das pessoas que voltam do exterior, e também de
pessoas que morreram na Europa. As trans que morrem no exterior e ainda não tinham obtido o
reconhecimento legal do nome social são enterradas com a identidade do sexo biológico e, em alguns
casos, é até difícil recuperar a identidade real desta pessoa. Isto faz sim que se tenha mais noticias sobre o
desaparecimento de pessoas trans que vivem no exterior, principalmente se clandestinamente e sem uma
autorização de permanência em dia. (Teixeira, 2008).
2.4.2. Traficantes ou redes sociais?
Segundo uma pesquisa conduzida em 2013 pelo Ministério de Justiça brasileiro sobre o tráfico de pessoas,
mais especificamente, no que diz respeito à população trans, a viagem se daria por meio de canais formais
e legais. Normalmente a passagem aérea é paga pela pessoa que financia o custo total da viagem, para
depois serem adicionados os juros ao total, que deverá ser devolvido quando a pessoa chega na Europa. As
trans chegariam na Europa pedindo o visto turístico, permitindo-lhes permanecer regularmente por um
período máximo de 90 dias. A intermediação de uma pessoa externa não serve só para oferecer suporte na
organização da viagem, serve também para criar um contato com as pessoas que já trabalham no local
onde a trans quer ir, indicando onde e com quem ir morar e em que zona trabalhar.
A socióloga presidenta da associação italiana pela proteção dos direitos da população trans, durante a
entrevista 14C, menciona uma semelhança entre a estrutura social na qual se baseia a comunidade trans
125
napolitana e aquela brasileira, particularmente no que diz respeito às redes que se criam com a finalidade
de organizar a viagem do Brasil até a Itália:
Sempre notei semelhanças entre as trans brasileiras e as napolitanas, digo o que eu
penso. Por que digo isso? Porque vivi muito no meio das napolitanas, foram meio que a
minha escola, eu me prostitui por muitos anos junto com elas. No mundo trans dos anos
setenta, oitenta e metade dos anos noventa, quando então o fenômeno muda
completamente, e aí o nível de exploração ou exploração consciente não eram claros, os
limites não eram bem delineados, não se sabe se era exploração ou tradição, sei la, um
'jeito-de-fazer', etc, sabíamos claramente que eram de Nápoles, mas se transferiam para
praças que rendiam; as praças do norte, i.e., Turim, Milão, Bolonha, Florença e em outras
cidadezinhas onde circulava dinheiro, mas para se prostituir naquela época, e ainda hoje
também, para viver você tem que ser residente, se não, você recebe uma advertência, e
consequente expulsão. O que acontecia: as trans da época eram muito visíveis, uma trans,
à luz do dia, não passava desapercebida, e nem de noite, mas à noite estavam nos seus
locais de trabalho e então tudo, digamos, tinha um contexto diferente. Mas se a policia te
pegava de dia, enquanto você passeava por Bolonha, mas você não era residente, te
levavam pra delegacia e faziam a “carta de expulsão”, que seria um aviso, e você tinha
dois dias para retornar ao teu lugar de residencia e para assinar este aviso. Se não o
fizesse, já era considerado crime porque você não validou o tal aviso. Se você voltasse e te
pegassem novamente na mesma cidade, era considerada uma violação à carta de
expulsão e você era presa, ficava uma mês, quarenta dias na prisão, e eu poderia até te
fazer uma lista comprida de amigas minhas que tiveram este tipo de problema. Um pouco
como acontece hoje com as trans brasileiras que vem pra Itália, bem assim mesmo!
Você precisava da residencia, mas quem te dava a residencia? Só a tua amiga que já era
residente aqui podia te ajudar. Mas uma amiga, por uma leitura distorcida da Lei Merlin,
era passível à exploração da prostituição, ao favorecimento da mesma, e por que? Porque
a pessoa te hospedava em casa, então, “você fica em casa e pega a residencia”, porém é
um risco. Este risco, este favor, esta gentileza, deve ser recompensada com uma outra
gentileza. Então, esta gentileza era entendida como parte do percurso. Ninguém
enxergava uma exploração nisso: “eu estou arriscando te oferecendo um lugar pra você
ficar pra pegar residencia, coisa que ninguém faria”. Para as brasileiras é mais ou menos a
mesma coisa. Quando é então que a pessoa percebe que a estão explorando? Quando isto
não é mais um fato isolado que envolve só uma ou duas pessoas, mas torna-se
sistemático, o que aconteceu com as brasileiras. As brasileiras contribuíram para que se
tornasse sistemática esta modalidade de hospedagem e recompensa à hospitalidade.
Começou assim e depois foi se estruturando como um verdadeiro sistema que atuava um
pouco no Brasil, um pouco na Itália, 50-50, que arruma a tua passagem, a viagem, o voo, a
recepção na Europa, mais especificamente na Itália, onde garantiam a casa e o lugar para
exercer uma serie de coisas, com uma especie de usura onde, no começo era combinado
um preço, e quando chegavam, era outro e, como nas verdadeiras leis da usura, era
sempre mais alto. [Entrevista 14C – presidenta de uma associação italiana com sede em
Bolonha e que é responsável pela tutela dos direitos das pessoas TT]
Ao contrario do que acontece com a maioria das mulheres biológicas envolvidas no trafico de pessoas, no
caso das trans é mais difundida a ideia de ir pra Europa se prostituir, uma vez chegadas ao destino da
migração, mesmo porque, a maioria destas pessoas já se prostituíam em território brasileiro. Não é
aplicado nenhum método repressivo para forçar a pessoa trans a trabalhar no exterior, em alguns casos,
sugere-se, mas raramente são enganados ou forçados à ir trabalhar fora do país. Na entrevista 9C foi
apresentado um exemplo do raciocínio que é feito para convencer uma pessoa a vir para a Europa:
126
[…] Na verdade funciona que, quem está lá, indica umas amigas que estão aqui: “sabe,
você podia ganhar muito dinheiro na Europa, por que a gente não se manda deste mundo
onde não conseguimos ganhar dinheiro?” “ok, eu topo, mas como é a viagem?” - “não se
preocupe, nós pagamos a tua passagem de ida e depois você nos paga”
Abandonar um mundo de discriminação pra ir viver em um país que te respeita por aquilo que você é, e o
respeito é uma das principais expectativas das pessoas TT que emigram do Brasil. Durante a entrevista com
um agente da policia de transito de São Paulo, foi confirmado que a viagem se daria por via aérea com um
passaporte valido, porém uma vez chegada ao destino, cairia em um sistema de “cativeiro”, começando
pelo sequestro do passaporte.
E como viajam?
Viajam normalmente, com passaporte e de avião, com toda a documentação, porque do
contrario, não conseguiriam entrar no país, estas organizações pagam tudo, desde
documentos até passagem, para depois cobrar o dinheiro com juros muito altos, quando
chegam, já lhe sequestram o passaporte e acabam vivendo em regime carcerário e
trabalhando como escravas do sexo, e em alguns casos, não conseguem mais voltar pro
Brasil, outras chegam até a suicidar-se porque não conseguem suportar psicologicamente
esta situação, e se drogam muito também […] [entrevista 10C – agente da policia de
transito de São Paulo (Brasil)]
O passaporte é retirado como garantia do pagamento da divida, sem o documento de viagem, a pessoa
imigrada não poderá retornar ao Brasil facilmente, e corre o risco de ser parada pela policia, no caso de ser
pega sem documento de identidade, portanto, o sequestro dos documentos de viagem representa uma
tática para se certificar que as trans não procurem as autoridades competentes. A vulnerabilidade das
pessoas TT que emigram ao exterior não é, portanto, causada apenas pelo fato de que elas têm uma divida
monetária com altas taxas de juros. A condição de clandestinidade faz sim que as pessoas TT sejam
facilmente sujeitas a extorsões ou ameaças, que se somam à discriminação, sendo por muitas vezes,
vitimas, devido à transfobia e preconceitos da sociedade. Além disso, o fato de ir ao exterior pra se
prostituir, expõe estas pessoas à outros tipo de dificuldades, aumentando lhes a condição de
vulnerabilidade ( “cfr” Teixeira, 2008).
Em alguns casos, no que diz respeito ao fluxo migratório para a Itália, a viagem não é direta, são previstas
algumas etapas intermediarias, para tentar confundir os controles mais severos e passar as fronteiras via
terrestre, e não aérea: algumas vezes, o voo é direto até a Romênia ou Suíça, onde as pessoas migrantes
encontram as pessoas que as estão esperando e que as “transportarão” até a Itália, destino final. Durante a
pesquisa ETTS em Guarulhos, sobre o fenômeno do trafico de pessoas trans, em uma entrevista à
presidenta de uma ONG de Fortaleza, que trabalha para garantir os direitos civis e políticos das pessoas
trans, foi mencionado como existem alguns casos em que a pessoa trans não pede nenhuma ajuda para
conseguir chegar à Europa:
127
Tenho uma amiga que foi pra Espanha e pra França, e ficou em varias cidadezinhas, ela foi
autonomamente, sem depender de ninguém para viajar, mas obtendo ajuda das amigas
para viver na Europa. Ela me contou que conseguiu encontrar um esquema para trabalhar
21 dias em cada cidade, no começo você é novidade, ganha muito. Na Europa, as pessoas
alugam quartos de maneira diferente do que no Brasil, aqui não temos essa cultura de
alugar espaços da nossa casa. Ela criou uma pagina na internet, e em cada cidade, alugava
um canto onde recebia os clientes e, após 21 dias, ia pra outro lugar. Ficou mais ou menos
um ano e meio na Europa, e ali gastava tudo, até mandava uma parte pra família, porque
o dinheiro pra família é mandado sempre.[Entrevista 9C – trans presidenta de uma ONG
de Fortaleza que se ocupa da tutela dos direitos da população trans]
Conseguir organizar sozinha uma viagem pra fora do país precisa ter um bom grau de instrução e
conhecimento de quais são os documentos necessários para viajar e para entrar legalmente no país
europeu que se deseja emigrar.
2.4.3. L’arrivo nel “Bel Paese”: l’Italia
“Uma Itália forte em termos de contraste, e se ajudasse, seria uma Itália mais solidaria mas
também mais legal, seria uma Itália onde seria condenado até mesmo o trabalho
clandestino e também o trafico criminoso relacionado à exploração sexual, onde tem muita
reciclagem de dinheiro sujo... seria a Itália dos primeiros anos da entrada em vigor do
art.18, que havia se tornado um país não muito atraente para os traficantes, pois era muito
solidaria com as vitimas e muito determinada contra os traficante. Aquela Itália porém,
hoje é uma vaga lembrança.. as organizações criminosas agradecem”. (Mirta da Pra
Pocchiesa, 2007, p. 18)
Durante a entrevista 5C, foi mencionado como as pessoas TT ficam, inicialmente, assustadas e
desorientadas quando chegam na Itália, mas a entrevista mostra também como, depois de entender alguns
aspectos básicos (códigos de conduta esperados, pessoas ponto de referimento, etc), conseguem conduzir
uma vida melhor e mais digna em relação ao que elas faziam no Brasil:
[…] Quando chegam lá, alguém do grupo vai no aeroporto buscar e depois leva pra onde
será a futura moradia. No começo tinha muito medo, muito, porque não estou
acostumada com o frio europeu, a cafetina aqui também faz papel de mãe, além de
explorar, de alguma forma, toma conta também das meninas. A mafia italiana e siciliana
são caracterizadas por questões relacionadas à honra e ao respeito, mas ao mesmo
tempo, existe uma forma de aterrorizar, meter medo, e a cafetina é a mesma coisa:
assume o papel de “mãe” mas não deixa de ser exploradora. Elas têm muito medo no
começo, até se acostumar, a entender qual é a situação e como funciona, se são
inteligentes, começam a fazer amizades e começam a entender que é vida é muito melhor
que aqui no Brasil, aqui vivem em quartos com beliches, dividindo com mais pessoas, lá
128
vivem em apartamentos limpos e lindos, é diferente e começam a se acostumar a uma
melhor qualidade de vida.
E lá ganham mais que aqui?
Ganham bem lá na Europa, conseguem mandar dinheiro para a família e conseguem pagar
a divida depois de mais ou menos um ano. O principal motivo de ir para o exterior, é o
fato de poder ganhar mais. Elas sabem onde se está bem e onde não é legal, as cafetinas
tem preços variados, 7000, 12000, 20000 euros, e a rede de informações é muito rápida,
em qualquer bairro, as informações passam muito rapidamente, na semana passada,
terça-feira, recebi uma mensagem no Facebook de uma amiga da França, que me escrevia
dizendo que uma outra amiga minha, trans, tinha morrido em Londres. Estas informações
rodam rapidinho, antes era o Orkut, agora Facebook. A rede de inteligencia é muito rápida
A circulação das informações é importante, e as estorias que chegam ao Brasil, constroem uma imagem do
mundo europeu e das possibilidades que este mundo pode oferecer para melhorar as condições de vida e a
“posição” social das pessoas migrantes. Nos salões de cabeleireiros, nos salões de beleza e nos espaços de
socialização de pessoas trans no Brasil, as estorias e os depoimentos das trans que viveram uma
experiencia na Itália, e conseguiram voltar ao Brasil, além de ter conseguido economizar algum dinheiro,
que lhes permitiu de comprar casa ou ajudar economicamente a própria família, tudo isso alimenta o
sonho de morar no exterior. Ir pra Europa e voltar pro Brasil, mostrando que foi capaz, que conseguiu
melhorar as próprias condições de vita, representa quase uma forma de emancipação para as pessoas TT.
Durante uma entrevista feita a uma trans, funcionaria do Posto Avançado de Atendimento aos Migrantes
de Guarulhos, com finalidade de obter dados para a pesquisa do projeto ETTS, surgem informações
interessantes sobre o que acontece uma vez que se chega na Itália:
ENT: Vamos falar com Cristina (nome fictício), uma trans que chegou da Itália há pouco
tempo, e é assistida pelo Posto Avançado de Assistência Humanizada. Cristina, porque
você decidiu ir pra Itália?
C: Porque tinha uma amiga minha brasileira que morava na Itália há mais de 5 anos, e ela
me convidou pra ir pra lá
ENT: Você já se prostituía no Brasil?
C: Nunca, nunca tinha feito um programa sexual sequer no Brasil, debutei na Itália
ENT: Quantos anos você tinha quando deixou o Brasil?
129
C: Eu tinha 20
ENT: E esta amiga tua que te convidou, ela já fazia programas sexuais no Brasil e depois,
na Itália?
C: Sim, ela sim
ENT: E como rolou este convite, o que ela te garantiu em relação à viagem, o que ela te
prometeu?
C: Garantiu tudo, desde a viagem até o local onde iria trabalhar, a casa, o “ponto”, ou seja,
tudo isso me foi garantido, e mantido. Quando cheguei na Itália, ela já estava me
esperando, e manteve tudo o que prometeu, mas, depois de alguns dias, quer dizer,
depois de algum tempo, ela mudou comigo, virou outra pessoa.
ENT: Me diz uma coisa, quanto tempo você trabalhou pra ela?
C: Um ano e meio
ENT: E neste ano e meio, tudo o que você ganhou tinha que dar a ela?
C: Sim, tudo.
ENT: Você não tinha nenhum dinheiro com você?
C: O suficiente pra comprar cigarro e só.
ENT: Me diz uma coisa, quais eram os dias da semana que você trabalhava, e quais eram
os horários?
C: De domingo a domingo, das quatro da tarde até às seis da manhã
ENT: Nada de descanso?
C: Nada, não existe dia de descanso neste tipo de trabalho
130
ENT: Em media, quantos programas sexuais você fazia em uma noite?
C: Digamos, cinco, seis, oito
ENT: E quanto você levava pra casa em media, em euros?
C: Quatrocentos, quinhentos euros. [Entrevista 3R – Trans vitima do trafico de pessoas,
assistida pelo serviço de acolhimento de migrantes do Aeroporto de Cumbica (GuarullhosSP-Brasil)]
Em uma entrevista realizada em um centro de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, na
cidade de Guarulhos, foi ilustrada a um assistente social do serviço de saúde, a importância para uma trans,
que vai morar fora do país, mandar dinheiro para a própria família:
Ouço falar muito da Itália, algumas foram também pra Espanha, mas ouvimos mesmo é
falar da Itália Elas vão pra lá e a primeira coisa que fazem quando voltam pra casa é
comprar uma casa. Foi a primeira coisa que a Valeria e a Soule fizeram, restruturaram a
casa da mãe, Cheril conseguiu comprar um pequeno apartamento e abrir um salão de
beleza e começou a trabalhar, um pouco também porque a idade não permite mais de
trabalhar na rua. No nosso trabalho, sabemos que a coisa mais importante é conseguir
achar um trabalho para aquelas que querem parar de se prostituir, então o que fazer?
Além do mais, a maioria delas não há uma qualificação porque abandonaram os estudos
cedo demais. Outro dia, consegui inserir uma trans na “bolsa desemprego” , um programa
onde você recebe 200 reais por mês, e ainda te oferecem um curso profissionalizante de
um ano, para depois ser inserido no mundo do trabalho, esta é uma ótima oportunidade,
mas na hora da entrevista de trabalho, como vai ser? Como será o inserimento no
ambiente de trabalho? [Entrevista 11C – assistente social brasileira que trabalha em um
centro de prevenção e cura de doenças sexualmente transmissíveis da cidade de
Guarulhos (Brasil)]
A pesquisadora Adriana Piscitelli ressalta a importância do dinheiro que ganham na Europa e mandam pro
Brasil, dinheiro que será gasto em território brasileiro e que representa uma fonte de riqueza para a
economia do país ( A. Piscitelli, 2011). As remessas das trans que trabalham na Itália, representam também
uma boa desculpa para reforçar e dar poder à imagem da trans brasileira em relação à sua família, que,
talvez, alguns anos antes, a mandou pra fora de casa porque não aceitava a sua identidade de gênero. Se
trata de dinheiro que é facilmente enviado pra casa graças ao sistema econômico globalizado ou através do
suporte de redes sociais que se criam entre trans. O dinheiro ganho na Europa assume, portanto, um
significado simbólico, reforçando as relações sociais no país de origem. A estudiosa Beth Fernandez relata
um episodio onde uma trans lhe contou que, antes de ir pra Europa, o pai dela batia muito nela, enquanto,
depois, graças a todo dinheiro que ela manda pra família, o pai começou a “beijar-lhe os pés” (Ministério
da Justiça, Brasil, 2011). A imagem e o status social que elas assumem, graças ao dinheiro que ganham na
131
Europa, faz sim que as trans que vão trabalhar no exterior dificilmente se considerem como vitimas do
trafico de pessoas:
As trans que vão pra Europa para se prostituir, não se sentem traficadas pois é um status
conseguir ir pra Europa e trabalhar lá A minha comunidade de trans considera ainda como
um status, porque vão para um mundo civilizado, e estas pessoas que conseguem voltar
da Europa, vendem a imagem de que a Europa é tudo, vendem esta imagem às mais
jovens, dizendo que a Europa é um lugar onde elas são respeitadas como garotas,
mulheres e, aquele corpo masculino, que foi transformado em feminino na Europa, é
muito valorizado. Existe este mito da Europa para muitas jovens travestis, considerando
que o nordeste do Brasil é machista e sexista, e quando você nasce em um corpo que não
é teu, e consegue ter a oportunidade de transformar o teu corpo naquilo que você é, é
muito importante pra nós, é fundamental na transformação do nosso corpo. Se você tem
a possibilidade de morar em um lugar civilizado, onde pode também transformar o teu
corpo, muitas de nós não considera isto como trafico de pessoas. As trans veem deste
modo a Europa, mas não conseguem ver todos os outros fatores relacionados a esta
oportunidade de ir pra Europa. Chegam lá já com uma divida de três anos de trabalho, por
causa do custo da viagem que, na verdade, é antecipado e deve ser devolvido, mas com
um valor que é duas a três vezes mais alto que o original, devem pagar taxas diárias muito
altas, e devem pagar também o “ponto”, porque os “ponto” tem donos, e são eles
próprios a criar este cenário idílico da Europa. [Entrevista 9C]
A presidenta da ONG de Fortaleza, que se ocupa da tutela dos direitos da população TT, coloca a questão
do fato que, muitas vezes as pessoas TT brasileiras não se sentem traficadas, mesmo quando inseridas
dentro de um giro de exploração, que aplica altos juros ilegais a financiamentos antecipados. De acordo
com protocolos e acordos internacionais, estão presentes todos os elementos que caracterizam situações
de trafico de pessoas mas, como dito anteriormente, no caso da população TT, não há presença de uma
rede criminosa organizada, seria mais como uma ativação de redes informais que, por um lado ajudam,
oferecendo a possibilidade de emigrar, mas por outro, podem também adotar comportamento de
exploração e controle. Durante a entrevista 9C, se chama a atenção para como a imposição de certos
modelos de feminilidade esperados pelas sociedades capitalistas e a própria exigência de mercado, sejam
os responsáveis por acionar este ciclo vicioso da “exploração” de pessoas trans:
As trans que moram na Europa sabiam que iam pra lá pra se prostituir, o problema da
falta de denuncias é que elas não se consideram exploradas sexualmente, e não se sentem
vitima do trafico. Eu faço parte dessas que pensam que este mercado se aproveita da
fragilidade destas pessoas, usam a ideia de transformar o corpo e a exclusão social como
um meio fácil para poder criar um mercado. A pessoa é tao vulnerável que não tem
escolha, é estigmatizado e induzido a viver exclusivamente em função de seu corpo. A
ideia do capitalismo que sustenta o nosso corpo é a de que elas estão à venda, pra quem
quiser comprar. Isto é muito interessante porque, até que ponto elas estão à venda? A
partir de um conceito de transformação do corpo feminino sobre aquele masculino, e a
partir da transformação da pessoa e da sua identidade, estão à venda, elas estão à venda
até um certo momento. Assim, entram em jogo todos os elementos da vulnerabilidade
deste processo, porque se sabe que na Europa, quando é inverno, as garotas tem que
trabalhar, não podem ficar fechadas em casa, tem que trabalhar pra pagar a diária, a
comida, e então, vão trabalhar na rua também durante o inverno, e se sabe que as trans
132
tem que mostrar o corpo, porque elas se vendem só de se mostrar, claro que não vão
trabalhar toda vestida, o nosso corpo é a nossa vitrine e por isso vão vestidas em modo
que se promovam mais facilmente. Entram em jogo questões sobre drogas, o fato que
estejam dispostas a fazer sexo com um cliente sem uso de preservativo, só porque pagam
mais. Considerando todos esses elementos, é possível compreender melhor todas as
dificuldades destas pessoas e do ciclo vicioso que se cria. Se você for pra Europa e passar
dois anos ganhando 50 euros para cada programa sexual, aí chega aqui no Brasil e vai
cobrar 30 reais? Fazer um serviço completo por 30 reais e voltar a morar no Ceará, dentro
deste sistema de exploração? É tudo uma serie de coisas que giram em torno a esta
condição, se tem consciência da existência do trafico de pessoas, se sabe que existe o
trabalho-escravo, e estes argumentos são muito discutidos hoje em dia. [Entrevista 9C –
trans presidenta de uma ONG de Fortaleza que se ocupa da tutela dos direitos da
população TT].
A presidenta da ONG de Fortaleza (Ceará) identifica o fenômeno migratório das pessoas TT como trafico de
pessoas, mas afirma que a situação de exploração que podem viver as trans, quando decidem emigrar,
representa uma alternativa quase obrigatória, porque é preferível ir pro exterior do que ficar nesta
condição em que vivem aqui no Brasil, e depois, ganha-se muito melhor: o dinheiro volta a justificar uma
condição de exploração.
2.4.4. As condições de moradia das pessoas TT brasileiras na Itália
Durante a entrevista 5C foi confirmado que o dinheiro é um dos principais motivos que levam as pessoas TT
a emigrar para a Europa:
[…] mas quando elas querem ir pra Europa, e sabem que o único modo pra ganhar mais
dinheiro é indo pra Europa, porque aqui no Brasil ganham muito pouco, sabem muito bem
que não podem simplesmente comprar uma passagem de avião e chegar na Europa pois
pode ter problemas com quem já trabalha lá, e você nem sabe onde ir trabalhar, então,
precisa de alguém que te ajude, que fale com uma cafetina que tá envolvida no trafico,
essa diz que pode ajudar a tentar trabalhar na Europa, mas vai custar 10.000 ou 20.000
euros. Cada um tem um preço. Às vezes, a cafetina pressiona as pessoas que vivem com
ela em casa, para ir trabalhar na Europa, a diferença entre a exploração de homens e
mulheres, em relação aos trans, é que quando estas ultimas, quando conseguir quitar a
divida, estão livres. Esta divida é composta pelo dinheiro gasto para comprar a passagem
aérea, para trabalhar e para viver, porém vão se juntando sempre outras despesas que se
acumulam, como aquela referente à proteção e segurança na rua. Às vezes, a cafetina que
manda um grupo de trans pra Europa, se por acaso encontra dificuldade para entrar na
Itália, manda elas para a Romênia, e alguém vai pega-las no aeroporto da Romania, e
depois as levam até Milão ou até a França, Suíça Uma vez que a divida é quitada, elas
ficam livres.
133
O pagamento da divida se dá em tempo muito mais breve em relação ao trafico de mulheres (biológicas),
as quais, em alguns casos, a divida não acaba nunca, e as pessoas ficam presas nas mãos dos exploradores.
No caso das pessoas trans, a divida é quitada no prazo de um ano, na maioria dos casos. Uma vez que a
divida é quitada, as pessoas TT podem continuar a se apoiar a uma cafetina no que diz respeito ao aluguel
ou o “ponto” onde trabalham ou, ao contrario, podem decidir tornarem-se completamente autônomas,
porém esta é uma condição que implica em algumas dificuldades a causa da irregularidade dos
documentos de permanência e da condição de clandestinidade de onde saíram Os juros que são aplicados
aos empréstimos que são feitos para pagar a viagem e todos os outros gastos, são aceitos e justificados
pelas trans que moram no exterior (Piscitelli, 2006). Se a pessoa é clandestina, até pra alugar um
apartamento ou um quarto precisa de uma pessoa intermediaria que tenha a cidadania e os documentos
em ordem. As condições em que moram as pessoas TT migrantes, em alguns casos, parecem melhores do
que as que moram no Brasil, a tendencia é de não dividir o apartamento com muitas pessoas.
Normalmente, os apartamentos onde estas pessoas vivem são vizinhos uns dos outros, muitas vezes,
inteiros condomínios são alugados só por pessoas TT estrangeiras (especialmente se clandestinas) e se
organizam através de um intermediário que empresta o nome para fazer o contrato de aluguel clandestino.
Na entrevista 3C foi descrito como vivem as TT na Itália:
Como são as condições de vida no exterior? Onde moram? Quais são as condições
higiênicas?
Moram juntas, em quartos do mesmo edifício, moram no máximo quatro trans num
mesmo apartamento, algumas vivem em “villaregios”(tipo casa de campo), as que moram
sozinhas é porque são independentes, também não dependem de nenhuma organização
criminosa, conseguem ter uma vida normal, vivendo em prédios onde vivem famílias, ao
contrario do que acontece com a “mafia”, eles tem que ter o controle da situação, tem
que saber onde moram e com quem, existe um grupo pra controlar isto também. Além
disso, no que diz respeito as travestis, rola muito ciumes, e surgem problemas entre elas,
brigam muito, por isso não podem morar em muitas juntas porque se não daria muitos
problemas de brigas continuas. Eu estive em dois “cativeiros”, e no máximo viviam quatro
pessoas, estes apartamentos não pareciam “cativeiros”, eram apartamentos normais,
ninguém poderia imaginar a que servia. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da
população LGBTQ no Brasil]
Em uma pesquisa antropológica conduzida por Flávia Teixeira e publicada em 2008, foram realizadas
entrevistas a trans brasileiras que tinham passado um período na Itália a se prostituir, e é se descreve como
as condições de vida tendem a ser percebidas como melhores em relação ao Brasil, e mesmo se fossem
iguais, as pessoas não se sentiriam tanto exploradas ou em condições pobreza ou precariedade (Teixeira,
2008). De acordo com Flávia Teixeira, é preciso definir o limite da pobreza dependendo do país em que se
encontra, porque isto mudaria a percepção e a identificação das pessoas que vivem em situações
degradantes.
Existem também situações onde trans brasileiras dividem apartamento com a dona da casa, que cobra
delas uma diária, correspondente à moradia e comida, uma cifra, na maioria dos casos, muito mais alta que
os preços de mercado. O uso dos espaços públicos para as trans brasileiras está relacionado ao fato de
estar ou não ilegal. Uma trans que anda na rua, normalmente, não passa desapercebida, então é perigoso
sair publicamente de dia, principalmente na época do verão, onde as cidades se esvaziam, é maior o risco
que ser preso pela policia. A tendencia então é ficar em casas e longe do controle da policia. Durante a
134
entrevista 14C, emerge hoje como a prostituição da população trans tende cada vez mais a deslocar-se
para lugares fechados:
[…] o exercício da prostituição trans está se deslocando de maneira clara e evidente para
lugares fechados, i.e., casas, apartamentos, portando, não é mais um fenômeno que se vê
nas ruas, que nos salta aos olhos. Hoje, tudo se deslocou aos apartamentos e aos lugares
fechados, tornando-se invisível Os sinais disso não são só os anúncios nos jornais ou nos
sites, se der uma olhada nas paginas do jornal ou naqueles sites, você vai ter uma noção
da consistência do fenômeno: claro que por trás de um numero não existe uma pessoa só,
mas existem muitas outras, três, quatro. Então é difícil e complicado observar e mapear o
fenômeno, e traçar as fronteiras e as características Fazem praticamente tudo em casa, ou
seja, o exercício da prostituição, e todo o resto. Repito: existem áreas onde moram só
trans, muitas destas são daquelas que funcionam no verão, e fecham no inverno.
[Entrevista 14C – presidenta de uma associação italiana com sede em Bolonha e se ocupa
da tutela dos direitos das pessoas TT]
A maior parte da comunidade trans permanece oculta e torna-se mais difícil de detectar e
observar, para ser capaz de desenvolver estratégias para a implementação de serviços que
atendam às suas necessidades
2.4.5. Ordem de expulsão
Como foi referido anteriormente, a tendência mais difundida entre as pessoas migrantes TT, é
viajar com documentos regulares, exigindo um visto de turista assim que chega na Itália, para
poder ficar até 90 dias no território italiano. Quando termina o período de visto de turista, a
pessoa se torna clandestina, e para obter um permesso di soggiorno (autorização de permanência)
é muito difícil, em alguns casos, pode ser concedido se se provar que foram perseguidos em seu
país de origem, no caso das trans brasileiras que trabalham no mercado do sexo, não é de fato
possível obter um permesso di soggiorno per lavoro, ou seja, para fins de trabalho, sendo que a
prostituição não é reconhecida como um trabalho normal, que te permite fazer contribuições para
o Estado italiano. Na pesquisa conduzida por Flávia Teixeira (Teixeira, 2008) emerge como na
ultima década tem sido percebida pela população TT, uma maior repressão em relação aos fluxos
migratórios pra Itália, se referem muito à “folha de via” ou seja, à ordem de expulsão, dada às
pessoas que não possuem o permesso di soggiorno. Na maioria dos casos de imigrantes
clandestinos, a ordem de expulsão acontece por três razoes diferentes:
por ter entrado irregularmente no país; por ter permanecido em condições irregulares; por terem
violado uma ordem do Questor previamente imposta ao estrangeiro que não havia sido aceito ou havia
sido expulso do território nacional por motivos administrativos, regido pelo art.13 da Lei Consolidada
sobre a Imigração
135
De acordo com as disposições da Diretiva 2008/115/CE sobre a repatriação de cidadãos estrangeiros em
situação ilegal nos Estados Unidos, como resultado de uma ordem de expulsão deve dar preferência ao
regresso voluntário de imigrantes no prazo de 30 dias, a contar da comunicação da decisão de expulsão. No
entanto, o Estado italiano continua a favorecer a escolta forçada ao país do estrangeiro (Savio, Bonetti,
2012).
A situação se complica para as pessoas que são deportadas para o Brasil antes de terem acabado de pagar
a divida do contrato para migrar e achar casa e trabalho no país hospedante.
Se forem capturadas pela policia, a divida é anulada?
Não, por exemplo, na Itália ou na Espanha, mesmo se forem presas pela policia por pouco
tempo - porque não passa muito para que sejam deportadas ao país de origem - no
momento em que são deportadas, a mafia tenta manter o contato com elas para lembrálas que a divida tem que ser paga. Quando chegam no Brasil, os olheiros as procuram e
lhes dizem: “você tá nos devendo, nós não esquecemos” e ela volta novamente ao país
que a expulsou.
Elas tem que voltar novamente?
Tem que voltar, porque o que acontece? Muitas delas economizam um dinheirinho,
quando conseguem pegar um pouco pra elas, escondem na casa, elas tem vários truques,
por exemplo, descosturar o forro da jaqueta, escondem o dinheiro e costuram
novamente, de modo que, qualquer coisa que aconteça, se a policia pegar e mandar elas
de volta pro Brasil, pelo menos elas tem certeza de estar com todo o dinheiro que
conseguiram economizar. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da população LGBTQ no
Brasil]
Portando, a divida não acaba quando elas voltam pro Brasil depois de serem expulsas do país hospedante.
A cafetina que financiou a viagem sabe bem onde mora a família da trans que ela financiou a viagem pra ir
pra Europa que, em alguns casos, é igualmente responsável por controlar o exercício da prostituição e de
alugar um lugar pra morar. Neste caso são feitas até ameaças à pessoa TT ou à sua família, aí fazem de tudo
para conseguir pagar a divida. Voltar para a Itália se torna ainda mais complicado porque, agora, os dados
pessoais da pessoa que foi expulsa pela autoridade competente, já estão registrados depois te ter recebido
a ordem de expulsão, e não se pode retornar ao país por um período que pode variar desde três a cinco
anos. Uma das questões levantadas ao longo das entrevistas, é o modo como as trans brasileiras são
deportadas, como recebem a ordem de expulsão, a ativista pelos direitos LGBTQ, durante a entrevista 3C,
fala sobre as modalidades de deportação:
Não concordo com o modo como são deportadas, como são tratadas, viajam algemadas e
o próprio tratamento da companhia aérea não é respeitoso: é um tratamento humilhante,
uma humilhação muito grande. É difícil entender se ela é realmente uma vitima do trafico
de pessoas ou se ela foi por livre e espontânea vontade. De qualquer maneira, é
136
necessário fazer essa distinção no tratamento, porque se trata de vitimas, depois de tudo
que passaram, corre-se o risco que este tratamento feito dessa maneira possa danificar
psicologicamente ainda mais essas pessoas. [Entrevista 3C – ativista pelos direitos da
população LGBTQ no Brasil]
Mas não é sempre que são expulsas do país, no caso da Itália, um advogado inglês, durante a entrevista 5C,
explica o que pode acontecer a trans que é presa pela policia:
Quando a policia te pega, podem acontecer duas coisas: expulsão ou deportação ao país
de origem ou, se a pessoa denuncia a organização criminosa, pode ficar na Itália, mas o
que acontece? O traficante ameaça estas pessoas, que se elas abrirem o bico pra policia,
elas morrem, ou ameaçam de matar alguém da família. A policia permite a permanência
na Europa somente se é feita a denuncia. A trans se encontra novamente em uma
situação terrível, porque se denunciar mas não tem certeza de poder confiar na policia
porque, às vezes, mais no Brasil do que na Itália, a policia não é honesta, existem muitos
casos onde a policia é corrompida pelos traficantes. [Entrevista 5C – presidente de uma
ONG de São Paulo que fornece assistência jurídica à população trans]
Na Itália, graças ao art.18 da Lei Consolidada sobre a Imigração, uma pessoa, vitima do trafico de pessoas,
que decide denunciar, terá o direito de gozar dos direitos de um sistema de proteção à vitima, no caso de
estar em situação de perigo de vida, consequente às ameaças das redes criminosas, além do direito de
permanecer regularmente no país.
Infelizmente, são poucas as vitimas trans que denunciam à policia as suas condições de exploração Não
denunciam por dois motivos principais: nem todas as vitimas de trafico conhecem os direitos e os serviços
de assistência social que podem usufruir, não conhecem nem quais são os processos burocráticos para
regularizar os documentos, também pela dificuldade com a língua, a maioria das TT imigradas só sabe da
condição de clandestinidade delas, por isso mesmo tem medo de ser denunciada por pessoas conhecidas,
pessoas que convive, ou até um vizinho de casa; um segundo motivo pelo qual não se denuncia a situação
de exploração é o fato que poucas pessoas trans se reconhecem como vitima, muitas acham que ir
trabalhar no exterior seja uma oportunidade, e que o preço pedido é equilibrado com o que lhes é
oferecido e as possibilidades de ganho que se abrem no novo país. Nos meses de março e abril de 2005, no
aeroporto internacional de Guarulhos, foi realizada uma pesquisa sobre as pessoas brasileiras deportadas
ou repelidas dos países europeus e emerge que, no que diz respeito as pessoas que foram inseridas na
industria do sexo, só uma pequena parte delas declarou ter sido enganada, privada de sua liberdade ou
vitima de atos coercitivos, praticamente, a maioria das pessoas que não se reconhecia como vitima da
violência ou do trafico de pessoas, era trans.
137
2.4.6. Assistência às trans vitimas do trafico
No caso em que a pessoa trans fosse vitima do trafico de pessoas, e se reconhecesse como tal, na Itália,
graças ao art.18 da Lei da Imigração, a vitima teria direito de se beneficiar de uma sistema de acolhimento
e apoio para vitimas do trafico, quando esta decide denunciar às autoridades competentes, a situação de
exploração que está sofrendo. Anteriormente, afirmou-se que, na Itália, de acordo com o artigo 18 da Lei
da Imigração, um estrangeiro que denuncia as redes criminosas envolvidas nas ações de exploração ou
tráfico de pessoas, tem o direito a um permesso di soggiorno regular por um período de tempo
estabelecido. Quando a pessoa faz a denuncia, automaticamente, se está autodeclarando vitima do trafico,
mas nem sempre é oferecido um apoio adequado para pessoas que, por causa desta violação dos direitos
humanos que sofreram, estão em um estado de grande vulnerabilidade física, psicológica, social e
econômica .
A vitima se envolve em situações onde é discriminada ou “revitimizada” devido à falta de serviços
adequados de acolhimento das vitimas do trafico de pessoas, ou de pessoal adequadamente capacitado
para receber grupos especiais de pessoas.
A Itália é um dos países europeus com um dos sistemas legislativos mais avançados em matéria de
combate ao trafico de pessoas, mas infelizmente este instrumento não é aproveitado em seu pleno
potencial. Em particular, o inovativo artigo 18 da Lei da Imigração foi usado como exemplo para a
formulação de diretrizes europeias, e é objeto de estudo nos Estados Unidos, apesar disso, de 1998 até
hoje, houve cortes nos financiamentos que apoiavam ações de assistência à vitimas do trafico, e este artigo
é aplicado em poucos casos, e o tempo de emissão do permesso di soggiorno é longo, em parte pela
demora do poder judiciário, que muitas vezes é lento devido à falta de verba e de pessoal capacitado
continuar com as investigações Todos estes fatores contribuem para que as pessoas tenham pouca
confiança nos serviços de assistência à vitimas do trafico e sejam céticas a respeito do fato que as
autoridades competentes possam combater as organizações criminosas envolvidas no trafico de pessoas.
A jornalista Mirta da Pra Pocchiesa, responsável pelo Projeto Prostituição e Trafico de Pessoas do Grupo
Abele de Turim, se queixa do crescente desinteresse da politica italiana em relação a este tema, e ressalta
que o serviço de assistência às vitimas do trafico é oferecido por instituições religiosas e não religiosas que,
porém, tendo que lidar com as necessidades básicas destas pessoas em condição de vulnerabilidade, não
possuem meios para desenvolver serviços que garantam uma assistência mais completa à vitima, capaz de
organizar também um serviço de reinserimento na sociedade para as pessoas que denunciam, e buscando
de qualquer maneira, combater o crime organizado. Entre 2010 e 2011, até o “serviço telefônico gratuito
nacional anti-trafico – 800 290 290” foi suspenso, e a ausência de um serviço fundamental para facilitar o
contato entre a vitima e os serviços de assistência, repercutiu negativamente em todo o sistema de
acolhimento das vitimas do trafico pessoas. A falta de um projeto de ação bem estruturado e eficaz contra
o trafico de pessoas, abre as portas às organizações criminosas que agem bem onde o sistema de controle
e de “punição” é mais fraco. Caso a vitima seja deportada ao Brasil, a questão é igualmente complexa. A
presidenta da ONG de Guarulhos, durante a entrevista 6C, ressalta a falta de uma rede de acolhimento
adequado para receber as vitimas do trafico de pessoas:
Como é feito o acolhimento às pessoas trans?
Raramente são acolhidas, pois não há lugares adequados para acomodá-las, geralmente
são mandadas de volta para a casa, infelizmente, porque não é o que elas querem ou
138
precisam, estas vitimas dois dias depois que chegaram na cidade delas, elas já se
organizam pra ir embora de novo.
Quando se reconhece como vitima, quais são as suas necessidades?
Todas as vitimas são levadas ao Núcleo de Enfrentamento ao Trafico de Pessoas para que
possam ser registrados os casos de trafico, mas o problema é que o núcleo não há espaço
e capacidade de acomodar e encaminhar estas vitimas aos centros de acolhimento.
[Entrevista 6C – presidenta ONG de Guarulhos responsável pelo acolhimento de vitimas da
violência e do trafico de pessoas]
Um sistema de registro de casos de vitimas e de informações de casos isolados de trafico de pessoas, que
não é adequado nem eficiente, é uma das razoes pelas quais o Brasil não desenvolveu um sistema
adequado de acolhimento para as vitimas do trafico de pessoas, transgêneros e transexuais, e as
instituições também se encontram tendo que enfrentar a falta de espaços onde poder acomodar uma
vitima do trafico, ainda não é possível fazer uma estimativa precisa de quantas são as pessoas TT que
precisam dos serviços de acolhimento para vitimas do trafico:
Qual é a dimensão do fenômeno do trafico de pessoas transexuais aqui no Brasil?
Ninguém sabe, não temos dados por varias razoes: estas pessoas são discriminadas dos
próprios agentes públicos; eu trabalhei em Santos, e a baixada santista é composta por
nove municípios, naquela região chegavam muitas pessoas traficadas e exploradas, mas
falta uma rede de apoio e acolhimento, então é impossível fazer um levantamento real
das vitimas, mesmo porque não é feita uma distinção entre prostituta explorada e
prostituta autônoma No caso de adolescentes e crianças de 0 a 18 anos, qualquer ação é
relacionada diretamente ao trafico de pessoas, e é uma outra confusão que é feita.
Quando é pronunciada uma sentença, que é raro, se buscam as referencias na legislação
especial, por exemplo, no que diz respeito ao trafico de pessoas adolescente, refere-se à
244 A do Estatuto da Criança e Adolescente, porque o trafico é uma forma de exploração
sexual, portanto é necessário especificar o 244 A e o 231, se for trafico interno, mas este
ultimo principalmente, não vem comunicado, 231 A é trafico interno segundo o Código
Penal, e 244 A é a lei especial do Estatuto de Crianças e Adolescentes, na documentação
como toda a estoria das vitimas, se encontra “trafico de pessoas”, mas na parte onde está
especificado o crime, onde é vitima a pessoa, não aparece mais como trafico de persona,
mas se tiver constatado estupro, exploração sexual, privação da liberdade, não aparece o
trafico de pessoas, e isto cria problemas na identificação da vitima do trafico de pessoas,
dificultando a compreensão da dimensão do fenômeno. [Entrevista 6C – presidenta da
ONG de Guarulhos responsável pelo acolhimento das vitimas da violência e do trafico de
pessoas]
Com o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), aprovado no Brasil pelo decreto 7.037 del
21/12/2009, é inserido como objetivo estratégico, a luta contra o trafico de pessoas, e é sugerida a criação
de um sistema nacional de acolhimento de pessoas vitimas do trafico, particularmente se forem crianças,
139
mulheres, travestis ou transexuais. Apesar disso, hoje no Brasil, ainda tem muito trabalho a ser feito por
parte das instituições para ter recursos adequados que permitam a realização e a manutenção de serviços
específicos para as vitimas do trafico, que possam atender as exigências de cada caso, ou pelo menos, dos
vários grupos específicos Por exemplo, no caso da população TT, durante a entrevista 5C, são elencadas as
dificuldades de garantir o direito à assistência a pessoas trans, vitimas do trafico:
[…] quando a policia pára a pessoa, esta só querendo ajudar a vitima e mandá-la para a
sua família, mas a trans não se sente vitima, está bem, mesmo que é evidente que não
está bem porque é pobre, explorada e, às vezes, maltratada, mas na sua cabeça, está tudo
bem, não quer voltar para a sua família porque já foi expulsa uma vez. Então, o que
acontece? Não podem ir aos centros de acolhimento para meninos porque seria
estuprado, não pode ir para um abrigo de meninas porque não é reconhecida como
menina, pode somente ir para centros da igreja evangélica, onde é considerado doente e
tentam curar o seu mal, porque pensam que seja uma doença espiritual. É preciso uma
solução, um serviço adequado de acolhimento para estas pessoas.
O Posto Avançado de Atendimento aos Migrantes do aeroporto de Guarulhos elaborou um esquema do
procedimento a ser adotado em casos de assistência a pessoas migrantes travestis ou transexuais,
mostrado na figura 1:
Figura 1 Esquema de acolhimento e assistência à vitimas do trafico de pessoas, travestis ou transexuais, que chega ao
Posto Humanizado de Atendimento aos Migrantes do aeroporto internacional Cumbica de Guarulhos (BRA).
140
No caso em que uma migrante TT em dificuldade procure o serviço de assistência dirigido pelos serviços
sociais da Prefeitura de Guarulhos, é importante primeiro ouvir o que a pessoa TT tem a dizer e, ao mesmo
tempo, conseguir verificar se se trata ou não de uma violação dos direitos humanos, e se existe qualquer
indicio de trafico de pessoas. A decisão da pessoa de expor denuncia, no caso em que se encontrasse em
situação de exploração, influencia as medidas a serem tomadas sucessivamente, e sobre a escolha de quais
serviços acionar. No caso do trafico de pessoas, pode ser acionado o Núcleo de Enfrentamento ao Trafico
de Pessoas, para posteriormente buscar uma acomodação para a vitima, que seja segura, e onde os direitos
humanos não sejam violados, em muitos casos, se os recursos permitem, pode-se acompanhá-la à
estruturas hoteleiras conveniadas, para superar o problema da falta de espaços adequados para o
acolhimento das pessoas TT. Além disso, é necessário garantira o estado de saúde da pessoa assistida, e
verificar se possui ou não os seus documentos em dia. O fato de ter elaborado um sistema de
procedimento direcionado para pessoas migrantes travestis e transexuais, é já um passo avante na
tentativa de garantir uma assistência adequada a estas pessoas, infelizmente, porém, a teoria tem que
encarar a realidade, ou seja, falta de recursos financeiros, estruturas, vontade politica e pessoas
qualificadas. O que emerge das entrevistas que foram realizadas é que, por trás do fenômeno migratório
trans, não se vê uma rede criminosa real, mas sim uma ambiguidade entre exploração e oportunidade que
se desenvolve dentro do próprio mundo trans. É um ciclo vicioso onde a trans que, quando jovem era
explorada e teve que contar com redes informais, para conseguir sobreviver e ganhar a vida; uma vez
estabelecida na society, graças ao dinheiro que ganha para colocar em pratica os mesmos comportamentos
característicos de uma cafetina. É surpreendente que, se por um lado a população trans brasileira
conseguiu se organizar para tentar reivindicar seus direitos com a capacidade de acessar uma gama de
serviços (embora em muitos casos, ilegais) necessários para a transformação do corpo e da identidade de
trans, por outro, esta mesma comunidade se auto-construiu, internamente, um sistema de “exploração”
pelos membros da própria comunidade, onde parece predominar o “instinto de sobrevivência” do
indivíduo. Outro aspecto que dificulta a solução dos casos mais graves de exploração, é o fato que não
basta somente conseguir reconhecer se existe ou não uma situação de trafico ou de exploração, mas é
necessário assegurar que essas vitimas tenham a possibilidade de usufruir de um sistema adequado de
acompanhamento psicológico, social e econômico, se decidirem denunciar os próprios “traficantes”.
141
3. MASCULINIDADE EM CENA. CLIENTES E REPRESENTAÇÕES NO MERCADO DO
SEXO NA ITÁLIA (Sebastiano Benasso)
3.1. Premissa
Esta parte do relatório faz reflexões construídas a partir do material através de diferentes instrumentos de
pesquisa e focalizado, principalmente nos pontos de vista dos clientes do sexo pago. A finalidade deste
aprofundamento é portanto uma perspectiva complementar àquela que, tradicionalmente, a literatura
científica de referência propõe, portanto a análise das pontos de vista das pessoas que vendem sexo em
troca de dinheiro. Em particular modo as informações recolhidas miraram reconstruir quais eram o
imaginários, independentemente do fato de serem ou não clientes, são veiculados no sentido comum
reforçando (ou cirando) algumas crenças em matéria de gênero e relações de poder entre os gêneros.
No imaginário comum, de fato, prostituição é “o trabalho mais antigo do mundo” e o cliente é
cenograficamente escondido atrás da janela do carro. Um cliente que é todos e ninguém. Um cliente que é
protagonista e motor primeiro da existência do comércio do sexo, mas que permanece constantemente
como pano de fundo nos discursos da opinião pública assim como na produção científica. O cliente
permanece o grande ausente (Abbatecola, 2006). De resto, em um domínio simbólico caracterizado por um
masculino dominante [Bourdieu 1998], se tende a não refletir sobre o masculino. Tudo o que é dominante
não necessita de explicação [Jacose 1996], portanto se tende a supervalorizar o nexo estreitíssimo entre
narrações sobre prostituição e representação da sexualidade masculina [Bellassai 2006; Ciccone 2009]. A
prostituição tende a ser contada como um mal necessário [Danna 2004], em virtude de uma sexualidade
masculina por natureza disruptiva, instintiva, incontrolável, ativa. Diante de um homem cujas exigências
fugiriam ao controle racional, a sexualidade responderia a impulsos que poderiam degenerarem-se diante
de uma vazão não adequada.
Na história se pode considerar extraordinariamente frequente uma auto-representação da identidade
masculina como realidade estratificada entre a luz e a sombra, moralmente dupla: composta, por um lado
de um corpo intrusivo, de qualquer forma baixo, sujo, brutal, cujo potencial violento é mais ou menos
latente e do qual o desejo sexual constituiria a voz imediata; por outro de uma racionalidade e ou
espiritualidade superior e capaz de domesticar a “fera” que se esconde nos obscuros recônditos do homem
(como não lembrar do drama vitoriano do monstro e o médico?) A percepção do próprio corpo, e então
também do próprio desejo, como dimensão ignóbil da identidade é um trecho de longo período na história
do imaginário do gênero dos homens [Bellassai 2006].
Neste sentido, a prostituição representaria a garantia de proteção das mulheres de bem da decência da
inteira sociedade. Este tipo de pensamento, aparentemente rigoroso no plano lógico, “freia” a sua própria
problematização, e assim raramente se reflete sobre o fato que (Abbatecola, 2012):
-
o enfrentamento da prostituição nos pede para fazer as contas com uma imagem da
sexualidade masculina muito pobre e limitada de uma “descarga” fisiológica na esfera
emocional e relacional, proposta seja pelos jovens estupradores nas suas desculpas, que pelos
que a apoiam a inevitabilidade da prostituição e quase da sua função social de “contentora”
das expressões da sexualidade masculina [Ciccone: 2009: 40];
-
conhece-se pouco sobre os clientes, se não o fato que estes podem ser qualquer um
[Chetwynd, Plumridge 1994; Benson, Matthews 1995; Mckeganey, Barnard 1996; Leonini 1999;
O’ Connell Davidson 2001), mas no fundo isto nos basta. É a prostituta que nos interessa
[Abbatecola 2011]; é ela a catalizadora dos incômodos, dos protestos e das estratégias
repressivas. É ela o mau, principalmente de migrantes e clandestinos.
142
3.2. Breve nota metodológica.
Para conduzir esta parte do projeto ETTS foram utilizados diversos instrumentos de pesquisa com a
finalidade de recolher informações úteis para as análises:
-
10 entrevistas em profundidade com clientes do sexo pago; todas as pessoas entrevistadas
eram homens biológicos numa faixa etária entre 34 e 65 anos e um único entrevistado
declarou uma tendência homossexual;
-
15 entrevistas semi-estruturadas por rapazes (8) e moças (7) dos últimos anos da escola média;
-
una experiência radiofônica das representações dos clientes;
-
6 entrevistas com sex worker; uma única pessoa entrevistada era uma mulher, enquanto as
restantes eram transexuais;
-
a releitura crítica das conversas online do fórum para clientes do sexo pago denominado
“Gnocca3 fórum”.
No que se refere à experiência radiofônica, se escolheu de referência um análoga pesquisa italiana
conduzida em Milão já no final dos anos 90 (Leonini, 1999). A Universidade de Gênova escolheu portanto
contatar um rádio local (Radio Babboleo), propondo-lhes de dedicarem um espaço de reflexão pública
sobre o tema do mercado do sexo e da compra do sexo. A direção da rádio demonstrou-se imediatamente
muito disponível e nasceu assim uma transmissão rádio do título evocativo “Alô, quem compra?”
A transmissão foi ao ar, com frequência semanal, durante todo o mês de novembro de 2012, todas às
quintas-feiras, das 9 às 10. Na rádio havia uma locutora profissional, que introduzia uma representante do
“Comitê das Graciosas” (Comitê para os Direitos das Prostitutas), colaboradoras da Universidade no projeto
ETTS (veja anexo 1).
Durante os 4 programas decidiu-se de nunca mencionar a pesquisa, para não condicionar os ouvintes.
O objetivo era lançar temas de reflexão para depois ouvir o ponto de vista das pessoas. A este propósito, a
universidade tinha preparado diversos instrumentos. Mais especificamente, os ouvintes podiam contatar o
Comitê das Graciosas em muitos modos:
3
-
mandando mensagens no celular da rádio;
-
telefonando em direta;
-
utilizando uma página específica do Facebook intitulada “Alô, quem compra? Vozes sobre o
sexo pago”;
-
escrevendo um e-mail ([email protected]);
-
telefonando depois do programa a um número específico, que inicialmente ficou ligado das 10
às 11, e depois o dia todo, até dia 30 de novembro.
Termo que em gíria significa “gostosona”.
143
Para cada telefonema tinha sido preparada uma ficha para fornecimentos de informações, cujo esquema
era o seguinte:
-
Sexo/idade
-
Nível cultural/ profissão
-
Estado civil
-
Cliente/não cliente/habitual/esporádico
-
(se cliente) preferências: mulheres, T, homens
-
Relações protegidas não protegidas
-
Argumentos telefonema
-
Observações
O programa de rádio foi promovido através de vários canais, como a internet, Facebook e jornais locais.
O conjunto das informações recolhidas foi “condensado” nas análises apresentadas nas páginas a seguir
mas, com relação às citações laterais, se escolheu referir-se somente às entrevistas em profundidade e às
conversas do “Gnocca Fórum” para garantir e manter a centralidade do olhar do cliente.
3.3. O espelho mágico. Reflexões das palavras dos clientes e análises dos seus imaginários
Quando os homens entrevistados contaram as suas experiências em termos de compra e fruição das
relações sexuais, emergiu um quadro muito centrado nos protagonistas – clientes. Em sentido metafórico,
os clientes aparecem ao mesmo tempo como diretores, roteiristas e protagonistas de “quase monólogos”
nos quais o papel de “ator secundário” é reduzido ao mínimo e, maior parte dos casos narrados, resulta de
qualquer forma colocado em uma posição subalterna no que se refere ao poder de definição dos roteiros e
das cenas. Nas narrações relativas aos encontros com a sex worker4, a dimensão racional é muitas vezes
removida e a presença da outra pessoa é assimilável àquela de um “espelho mágico”, necessário para o
bom êxito da encenação desejada pelo cliente.
5
…porém não sei como lhe explicar... é como…. lhe digo uma belinata … com jogar nas
máquina… você para e joga! [Manuel; 44 anos; heterossexual]
E’ como uma bebida amarga, não sei.. e como quem participa conscientemente de uma
farsa onde ele é o ator de uma farsa, não? E então aceita este teatro como verdadeiro,
com a consciência que não é verdade, não é? Isto é um pouco mais sutil como
pensamento…. mas eu acho que isto também acontece. [Adriano; 42 anos; heterossexual]
Talvez você faz isto para não ter problemas, para aliviar a pressão, para se descarregar
sem criar compromissos de todo… e qualquer tipo. Faz porque ao menos não tem
problemas de nenhum tipo… se por acaso você é casado, ou está com uma mulher que
você não quer deixar… para fazer alguma coisa diferente, procura uma pessoa que não lhe
cria problemas, para mim sempre foi uma forma de masturbação, para mim é igual a
4
Considerando que um único cliente entervistato declarou ter relações homosexuais pagas, no texto o termo sex
worker e sinônimos serão declinados no feminino.
5
Expressão dialetal genovesa que significa “coisa de pouco valor”.
144
importância que se dá é a mesma, isto para mim …. quanto aos outros não sei […] Eu acho
que muitas pessoas procuram porque ao menos não devem dar muitas explicações, não
se devem colocar em jogo com elas, acho … não se deve colocar à mesa e falar e talvez
não concordam, entram em paranoia com uma mulher se estão sozinhos certos homens,
eu conheço alguns … talvez sejam inseguros. Ao invés com elas não estão nem ai, mesmo:
se você tem dinheiro decide, vai, volta depois de meia hora e você já resolveu o seu
problema. [Luigi; 39 anos; heterossexual]
Em conclusão, se trata, banalmente, de uma descarga hormonal … na verdade se trata de
ter relações [pagas]... geralmente prefiro bater uma punheta em casa… com as mulheres
dos meus amigos, as faço falar com a voz delas mesmas, como dizia Gaber ... [ri]… acho
que tem …. retorna aquele elemento solipsístico, retorna aquele elemento de necessidade
que, na verdade, é uma necessidade que todos temos nas nossas relações. [Leonardo; 38
anos; heterossexual]
Não por acaso em diversas passagens das entrevistas a relação sexual com uma sex worker foi assimilada a
uma forma não solitária de masturbação, explicitando o quanto a presença da outra pessoa é meramente
funcional para a própria excitação. Neste quadro não existe espaço para negociação nem em termos de
qualidade das práticas sexuais nem, tanto menos, na possibilidade por parte da sex worker de afirmar os
próprios desejos. Existem obviamente alguns pactos “a priori” em relação aos quais as profissionais do sexo
podem definir um perímetro de práticas consentidas, excluindo divagações e transgressões da regra –
criando, ao mesmo tempo, um contexto de potencial negociação que parece particularmente atraente para
os clientes, um exemplo, neste sentido, é a questão do uso dos preservativos – mas a natureza econômica
da troca e constante reafirmação da desigualdade dos poderes entre as partes estabelece a
“superioridade” do cliente.
A única coisa que eu pedia era para tocar os seios, e tinham vezes que elas queriam cobrar
6
mais, que divertido! Eu também pedi para me fazer um boquete sem gondone … uma me
fez, eu gostei e me intrigou muitíssimo, e por isto eu voltei algumas vezes …. era uma da
rua, simpática, eu gostava muito, isto é eu gostava muito do boquete assim, feito por uma
que não era a minha namorada, mas parecia, não sei …. Demais, excitante. [Marco; 44
anos; heterossexual]
[…] depois acontece também que elas fogem, talvez, porque quando são 10 anos, doze
que você procura uma pessoa, lhe pede: “Olha, agora eu quero que você mije na minha
boca”….ok, e ela não quer fazer, foge, vai embora e não volta mais, isto é …. então
provavelmente você não deve pedir, porém eu sei que ele sabe o que é a este ponto,
porque é vinte anos, é dez anos que eu levo você para cama ... [no tempo] eu empurrei
você além do limite, porque aprendi, nestes anos, então aprendi determinadas coisas que
eu achava que, também para mim, me enojavam, experimentei, gostei, algumas, outras
eu experimentei, mas não gostei, continuo a achar que não são pra mim. Então,
reproponho … procuro fazer com que eles evolvam também neste pseudo-casal, entre eu
e este … eu evolvo, eles não evolvem se eu não evolver com eles. [Enrico; 43 anos;
homossexual]
Em particular modo para os clientes heterossexuais, relacionar-se com uma profissional do sexo equivale e
medir-se em um exercício de representação (por isto o espelho é necessário) da própria masculinidade,
mas se trata de um jogo desejável somente no caso em que a vitória seja garantida a priori. De
consequência, na maior parte dos casos este exercício de auto-representação é vivido como gratificante
somente se a mulher envolvida participa à farsa e aceita o roteiro preestabelecido utilizando a própria
6
Expressão dialetal genovesa que significa “preservativo”.
145
função de “espelho” para restituir uma imagem retalhada sobre os desejos do cliente (por isto o espelho
deve ser mágico, portanto pronto para mentir quando necessário).
Onde eu me divertia mais era nos casos onde tinha também um mínimo de relação
humana, porque afinal elas também têm um outro modo de serem envolvidas. Sobretudo,
eu estou falando das etnias da América do Sul… porque também é preciso fazer distinção.
Porque na vida eu procurei principalmente prostitutas da América do Sul. Então a
dimensão lúdica é absoluta, obviamente não se pode comparar com uma relação
completa com uma pessoa com a qual você tem uma história. De qualquer forma,
algumas coisas você não faz. Elas fazem em você. Seria também uma coisa burra da parte
de um homem pensar que exista um envolvimento. No final o aspecto mecânico existe.
Elas fazem constantemente com outras pessoas. Onde se cria um pouco de relação depois
para mim era mais divertido, eu sentia que elas se envolviam. Com uma em particular
[ri]… [Giovanni; 40 anos; heterossexual]
A propósito do “pacto de cena” implícito que se cria no momento em que se negocia uma
relação sexual, um entrevistado acrescenta uma interessante leitura, afastando-se das visões
expressas pelos outros homens envolvidos na pesquisa. Nestas narrações recolhidas, existe
uma das passagens nas quais se restitui uma narração onde é considerado também o ponto de
vista do “ator secundário”
Muitos dizem... “Ou é ninfomaníaca, ou ela não liga muito, ou não sente nada”…. Mas na
categoria “não sentir nada” é engraçado porque …. primeiro porque não é verdade que a
categoria do sentir … isto é alude ao orgasmo com certeza [ri]... mas a categoria do sentir
não acaba ali … a categoria do sentir tem também o seu contrário entende? Isto é sentir
dor … porque ter uma dor no corpo, não é uma coisa boa e por mais que você se habitue
…. isto então … eu não faço aquele trabalho lá e não sei, mas eu imagino que por mais que
você se acostume … isto é, até que você é uma mulher … consciente … isto é, não você
não é ..se te tiraram metade do cérebro tá? Mas se você usa a cabeça não é que …. você
está sempre ali… é um tipo de resposta como quando aqueles que dizem “o pugilista não
sente os golpes” … não, não! O pugilista sente os golpes exatamente como você, mas está
habituado a receber … então falta a experiência sensorial, isto é a experiência do mundo
… é igual: murro na cara igual a murro na cara, só que ele já tomou assim tantos que é
capaz de enfrentar, tá? Mas não de anular a informação, mas sei estou sendo claro … do
mesmo modo acho que as prostitutas fazem assim …tipo, ficar com um cara que fede ..
entende? Que tira a roupa e fede … e acho que são coisas que acontecem com elas todos
os dias … não é uma coisa agradável … e ela sente o mau cheiro tanto quanto eu sinto,
você sente, só que, ao invés de dizer algo … sei lá, algumas dizem... “Vai embora, vai”..
muitas respiram fundo e vão em frente, não é? Porém isto não anula a informação e,
então os caras dizem “Não sente nada” … é um julgamento grosseiro, decididamente é
como dizer auto-referido, no sentido que …. “Problema seu” … isto é, no sentido que não
é uma pessoa … não é bem pensado como julgamento, isto, como julgamento, porque não
corresponde à realidade, eu acho. [Adriano; 42 anos; heterossexual]
Neste âmbito o repertório das representações roda ao redor das diferentes faces do que, em sentido em
geral, poderia ser definida como uma masculinidade “tradicional”: o homem caçador, o homem
sexualmente exuberante e capaz de satisfazer a companheira, o homem hiperativo sexualmente, o homem
potente em termos econômicos e consciente de poder comprar os serviços desejados.
Uma noite éramos 5 e por aposta queríamos ver a duração de cada um … então
consumimos a relação, mas fizemos sexo oral, né? E … foi quase … uma brincadeira: quem
durava mais, né? Quem tivesse perdido teria pago para todos […] Acho que é como…estou
146
pagando uma coisa, isto é estou escolhendo sei lá… uma malha de lã… é uma comparação
horrorosa… porém o meu discurso é: se vou comprar uma blusa de lã, escolho aquela
blusa aliás não aquela, enquanto se você me dá de presente a blusa de lã que se eu gosto
ou não gosto não posso dizer nada … repito não estou dizendo que o meu raciocínio está
certo … porém… eu estou comprando uma coisa, então naquele momento tenho vontade
de ter uma coisa e sei que posso pagar, entendeu? E não tenho tempo de dá em cima de
uma menina ou fazer estas coisas … [Gennaro; 38 anos; heterossexual]
[Em um bordel na Alemanha] numa tarde eu fiz 5 vezes … eu achava que não ia dar conta,
falando a verdade, mas foram elas que me disseram “Imagina, você vai conseguir muito
fácil” porque já depois da primeira … sinceramente eu não achava que chegar a 5 numa
tarde pelo simples fato que não … eu disse é “humanamente impossível” …” [ri]… porém
todas as vezes que eu voltava e dizia “Estou cansado” talvez uma menina se aproximava
de novo e eu dizia: “Tudo bem me dá 5 minutos que estou um pouco cansado agora e vou
beber uma coisa”… Não, não você consegue, fica tranquilo, que você consegue …” [ri]...
alguma coisa deste tipo porque… com certeza elas sabem que mudando de menina se
consegue …. Isto é a mesma não consegue, não consegue manter o mesmo interesse por 5
vezes em seguida numa tarde. [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
A função do “ator secundário” interpretado pelas sex workers é limitada por uma série de papéis
determinados pela busca de complementariedade em relação ao protagonista masculino, então
dependendo dos relatos falou-se de caça a ser conquistada, de profissionais que – em razões das
capacidades particulares dos entrevistados – vêm, às vezes, do prazer sincero “esquecendo” de aplicar o
destaque funcional do papel de sex workers, de ninfomaníacas e, nos casos frequentes nos quais as
mulheres não fossem de origem italiana, de particulares expressões do caráter étnico.
Algumas seriam putas, mesmo que não fossem pagadas, então tem já aquela vocação pra
fazer aquele trabalho, ficam à vontade e sofrem menos do que as outras, talvez.... você
percebe pelo modo como elas se comportam, você vê que elas também gostam. Porque
algumas gostam um pouco menos de fazer, você vê ... é como quando uma pessoa faz um
trabalho qualquer, você vê se a pessoa faz com paixão ao fazer a coisa ou ela faz porque
tem que fazer, entendeu? […] Claro… de todo modo eu sempre penso que ela finge... não
digo no fato de fingir o orgasmo ou coisas do tipo, você percebe no comportamento dela,
não? Se a pessoa que se esforça que coloca mais paixão ... depois pode ser muito boa no
que faz com mais profissionalismo ... porém eu acho que ela tem que ser assim, se não
não consegue, assim, tanto ... em algumas coisas não dá pra fingir ... assim tanto ... [Luigi,
39 anos; heterossexual]
[No bordel alemão] existem duas categorias, têm aquelas que ... eu e o meu amigo assim que entramos
na recepção praticamente logo ficaram na nossa frente duas meninas, lindíssimas, loiríssimas [ri],
completamente nuas, que nós já tínhamos visto que tinha todo este giro de mulheres ... eu insisti como o
meu amigo para dizer “Não, espera um minuto, vamos no andar de baixo onde tem a sauna e ... tomamos
banho, fazemos a sauna com calma nos relaxamos um pouco, coisas assim […] então duas se ofereceram
para um de nós dois [ri]… mais do que qualquer outra coisa se colocaram em mostra neste sentido ... isto
é estavam procurando atrair o cliente, outras invés se colocam tipo como se fossem numa vitrine, existem
outras dos sofás comuns, dos sofás esféricos um pouco mais rosados, um pouco mais ... um pouco mais
estilo bordel, vamos dizer [ri] como a gente imagina no velho oeste, isto.... onde elas se deitam, se
colocam em posição lânguida e esperam que o cliente chegue ... é um pouco o jogo vítima – caçador ...
você é um pouco cortejado... na verdade não é um verdadeiro cortejo ... ou se é você que escolhe, então
para na menina , começa a conversar e depois lhe diz “Está bem, vamos para o quarto” ... eu prefiro o
aspecto “escolho eu” talvez porque na realidade ... ao menos eu não estou convencido que na realidade
depois na verdade são elas que escolhem [ri] ... isto é nós homens somos meros fantoches [ri] Isto é, um
pouco é porque, praticamente ... ela te faz sentir-se como deve sentir Brad Pitt que quando entra em um
147
bar e diz [estala os dedos]: “Você, você e você venham comigo [ri] imediatamente patrão... [Giuliano; 34
anos; heterossexual]
A estereotipagem na base étnica é de fato uma característica decididamente frequente nas narrações dos
clientes entrevistados e, no sentido mais amplo, representa uma aspecto determinante na necessária
objetivação das sex worker nas visões dos clientes, objetivação que aparece essencial exatamente como
proteção do bom êxito das representações encenadas durante o encontro enquanto mecanismo de
remoção das interrogações em mérito das motivações para as quais as sex worker estão no mercado.
A categorização é bastante rígida: as mulheres da América do Sul seriam mais alegres e orientadas a uma
abordagem lúdica ao sexo, as mulheres e os homens provenientes da África subsaariana manteriam uma
ligação com a terra que corresponderia a comportamentos sexuais animalescos, as mulheres chinesas e as
do leste da Europa seriam bastante destacadas e frias durante o ato sexual. Neste sentido, as sex workers
italianas (cuja oferta é no parecer dos entrevistados drasticamente diminuída nas últimas décadas) seriam
mais propensas a não esconderem os aspectos de dificuldade ligados à própria profissão, acabando por
serem muitas vezes julgadas como menos atrativas ou de qualquer forma menos “governáveis” pelo
cliente.
A sensação é que a italiana seja sempre muito mais irritada em fazer aquilo que está
fazendo. A chinesa é um pouco autônoma ... é também por isto que não procurei muitas
vezes, se não como uma pessoa que era totalmente divertida pela situação me fazia
divertir muito também. Notei que a mulher sul-americana é mesmo uma pessoa positiva.
Isto é, positiva mesmo, na abordagem, quando fala com você, quando pergunta se você
quer um chá depois, ao invés as italianas eu sempre achei muito muito irritadas.
[Giovanni; 40 anos; heterossexual]
O negro é mais tímido o africano negro é mais tímido, é menos sexuado, também se é
muito ... uso um termo brutal, é um pouco mais rude, isto é vem de um território ... são
mais ... são mais selvagens, quer dizer, poderiam ser mais selvagens ... mas, por exemplo,
o negro afro latino não, aquele que vive na África, isto é Moçambique, Cabo Verde está
mais próximo do Brasil, mais próximo de Cuba, mais próximo de Santo Domingos, está
mais próximo daquele modo de fazer sexo, então nosso, latino, então mais saliente, então
menos controlado, mais prazeroso e sem nenhum limite. Se não quero fazer o passivo,
porque não gosto, finjo que é um cachimbo e faço o que você quiser, e brincamos, é
divertido passar a noite, fazemos quatro .... O africano você deve conduzi-lo um pouco, é
bom ... é bom para fazer de cachimbo, é bom na cama, os melhores trepadores no mundo
são os árabes. [Enrico; 43 anos; homossexual]
[Referindo-se à primeira sex worker com a qual esteve] Eu acho que era dos países do
Leste ... acho que ... sim quase com certeza ... isto é mais do que outra coisa não sei,
porque praticamente além da barreira linguística que já ... não tinha nem mesmo não sei
como dizer ... uma vontade de comunicar ... não sei ... era fria, com um par de olhos de
criança, da boneca barbie um pouco ... um pouco da serie “Vamos lá …” [Giuliano; 34
anos; heterossexual]
Mas agora ... vamos dizer ultimamente são todas sul-americanas então ... mas eu
geralmente gosto mais das sul-americanas mesmo .... antigamente eram mais italianas, as
estrangeiras não existiam [ri] eu que já tenho uma certa idade que ... tenho quase
cinquenta anos, quando eu tinha vinte as estrangeiras você não achava ... nem romenas
nem ... eram só italianas nas ruas ou nos apartamento [...] Talvez as sul-americanas
tenham um modo de ser que... não sei, mais jovial, não sei como explicar ... não estou
falando sexualmente. Mas a primeira abordagem ... são mais cordiais, não sei explicar,
talvez mais ingênuas ... não sei se também ingênuas é o adjetivo correto, são ... parece
quase que os problemas delas ... que o problemas delas elas passem por cima em relação
às outras [...] em média acho que as italianas são mais problemáticas, ou de qualquer
148
forma tem em si mais problemas do que as sul-americanas ... isto independentemente de
ser prostituta ou não, falo mesmo da mulher em geral. [[Manuel; 44 anos; heterossexual]
Também as narrações em mérito a experiências julgadas negativas pelos entrevistados parecem confirmar
as expectativas por parte dos clientes em relação à “naturalidade” dos papéis feitos pelas sex workers; na
quase totalidade dos episódios contados como insatisfatórios ou mesmo frustrantes como de fato é a não
coincidência das profissionais em relação ao cenário esperado a determinar um êxito indesejado. Também
inoportuno são as julgadas ocasiões – voluntárias ou acidentais – de emersão dos aspectos ligados aos
bastidores da vida das sex workers. Num certo sentido, é como se, saindo dos perfis impostos pelo roteiro,
a subjetividade das profissionais do sexo nestas ocasiões roubassem parte da cena denominada pelos
protagonistas – clientes, criando curto-circuitos mal tolerados por quem compra – também porque o
próprio fato de comprar deveria corresponder ao direito de diretor na cena -. Exemplares neste sentido são
as passagens das entrevistas nas quais o comportamento das sex workers é narrado como excessivamente
distante e pouco envolvido, para sublinhar a “traição” que estas mulheres fizeram às expectativas do
cliente
Você já consegue ver pelo comportamento ... algumas não são mesmo capazes ... algumas
se vê que não tem vontade ... fiquei com algumas que me pareciam drogadas ... eu não
faço uso de drogas e nem de álcool, porém algumas vezes eu vi algumas que ou tinham
bebido ou estavam cheias de cocaína ... aconteceu de eu ver ... pelos comportamentos,
claro ... é de se pensar.. eu às vezes paguei e fui embora sem fazer nada .. devo lhe dizer a
verdade ... não como lhe explicar ... se a coisa já começa mal dai eu vou me embora sem
fazer nada, mas vou embora logo, não é que você tem que pagar ... porém às vezes
aconteceu que ... no meio da relação você vê certas coisas que não .... que não gosta e
então ... a coisa feita sem vontade ... isto é ... uma ameba ... um mínimo de participação,
não? De qualquer forma quando um homem procura uma prostituta, compra, não? Entre
aspas compra sexo ... se você fica com uma que parece uma tábua ou de qualquer
maneira vê uma drogada que tem o hálito com cheiro de uísque … [Manuel; 44 anos;
heterossexual]
Muitos anos atrás eu estava em férias na Suíça sozinho e .... eu tinha uns vinte e cinco
anos ...na época eu estava ainda na casa dos meus pais então o meu salário era
praticamente todo meu, então eu escolhia um hotel a caso ... era um belo hotel de 5
estrelas... quando subo no quarto olhando ao redor encontrei não o cardápio [ri], mas
uma série de cartõezinhos de publicidade […] e dai... chamando diretamente a recepção
que falavam italiano fiz mandar esta menina […] depois de pouco tempo ela chegou, eu
paguei diretamente a menina e foi uma experiência extremamente decepcionante ...
parecia uma consulta médica ... uma mulher muito, muito, muito bonita, digamos como
uma modelo de revista ... mas como dizer ... muito fria como experiência e ... tanto é
verdade que não repeti, isto é a relação sexual aconteceu, mas foi vivida com bastante ...
frustração ... porque de qualquer modo você não conhece a pessoa ... de qualquer modo
sem ter tido uma conversa inicial durante a noite, ter encontrado numa discoteca e
termos bebido todos os dois, uma coisa deste gênero, isto é não com a dinâmica comum
da relação que não é paga, onde existe digamos ... se não, se não se cria uma verdadeira
intimidade, de qualquer forma se cria uma certa proximidade ... isto ... e além do que ..
existe uma contínua ... troca de preservativo a cada posição ... parecia uma coisa um
pouco obrigada ... mecanicamente como se costuma dizer ... uma consulta ... o modo
melhor para definir me parece uma consulta médica [ri] quase... isto para dar uma ideia ...
praticamente me vestiu... isto é me desvestiu e me vestiu de novo ... uma coisa um pouco
como se ... isto é, como se eu fosse uma espécie de boneca. [Giuliano; 34 anos;
heterossexual]
Chegando a este ponto das reflexões talvez fosse oportuno fazer uma digressão e considerar o ponto de
vista de algumas sex workers envolvidas na pesquisa. Por quanto também neste âmbito não se possam
149
considerar representativas da complexidade dos diferentes pontos de vista das profissionais do sexo, as
narrações recolhidas fornecem algumas perspectivas úteis de “inversão” das crenças veiculadas pelos
clientes. Antes de tudo, como na verdade nos parece óbvio, a pretensão de um comportamento neutro e
sobretudo não judicante por parte das sex workers é desmentida pelas próprias que, aliás, contam que
compartilham as histórias, apelidos e opiniões em mérito aos clientes, se dando o direito de recusar quem
não entra em determinados padrões comportamentais, estéticos e/ou higiênicos. A propósito da função de
espelho pretendida pelas sex workers, também, algumas profissionais transexuais narraram diversos
episódios nos quais uma vez terminado a relação sexual com papel passivo, o cliente exprimia raiva e
desprezo pelas sex workers. Como se, terminada a relação sexual, o espelho perdesse a sua magia e fosse
necessário “convencê-lo” a restituir a imagem desejada, que, provavelmente, não é aquela “real” do
momento. Muitos clientes teriam portanto a exigência de afirmarem, em modo agressivo, “Olha que eu
não sou gay” às pessoas das quais acabaram de receber uma penetração, procurando deste modo afastar
as evidências que, naquele contexto, poderia minar a própria percepção do homem exclusivamente atraído
por relações e pelas práticas heterossexuais tradicionais.
Voltando ao “roteiro” dos encontros pagos, resulta muito claro como as referências à própria vida privada
devam ser administradas pelas sex workers no modo mais discreto possível, quase como se tratasse de
contos genéricos que se referem a outras pessoas (possivelmente) outros lugares.
Então... existem algumas que eu frequentei um pouco... bem, digamos, bastante ...
procurando várias vezes mas sempre no nível de conversa ... isto é sempre limitadas a
saber onde moravam, quantos filhos têm ... isto é, não mais de ... nunca tive relações fora
do sexo, sair junto estas coisas ai não ... conversas só no nível .... das famílias delas, de
onde vêm, a vida delas em geral ...mas só conversa, tempo de tomar um café entre aspas
como dizer ... sabe, enquanto se você se veste... [Manuel; 44 anos; heterossexual]
Aconteceu de falar com as meninas que lhe contam algumas histórias também ... mas
como você todo dia tem problemas ... de qualquer forma seja ... falando do trabalho, não?
Existe o problema que não se consegue pagar o financiamento da casa, depois não se fica
medindo qual problema é mais grave, porem para mim o problema que não consigo pagar
o financiamento da casa é igual para ela ser espancada por vários meses. Isto é aquilo que
eu quero dizer ... isto é a um certo ponto não sei como pagar o financiamento da casa
você fica chateado, porém uma vez que você sai daqui não é que diz “Ah, espera ai que
dou duzentos euros assim você para a prestação do financiamento “ entendeu, eu vejo a
coisa assim… [Gennaro; 38 anos; heterossexual]
Objeto de particular censura são também todos os possíveis adiamentos da questão da exploração: a
tendência é a de (re)construir os perfis das pessoas das quais se esta comprando uma relação sexual
procurando “provas” que confirmem as suas escolhas auto-empresariais; quase todas as sex workers
citadas pelos entrevistados estariam – segundo a opinião dos clientes – no mercado por uma questão de
escolha individual feita em plena liberdade e consciência. O nivelamento da relação em roteiro rigorosos
descritos nas páginas anteriores, assim como a remoção, mas narrações compartilhadas no momento do
encontro dos detalhes aprofundados em mérito ao vivido pelas sex workers, não permite todavia poder
estabelecer se as pessoas das quais se está comprando sexo sejam na verdade livres de constrições e qual
eventualmente seja a intensidade destas (da coerção física e chantagens econômica e sentimental).
Tirando as chinesas, porque se você pensa como é estruturada a cultura chinesa é
evidente que estão na mão do crime organizado – eu como de fato procurei bem pouco as
chinesas – a sul-americana, isto eu lhe digo com certeza, porque eu me tornei amigo de
algumas, é sempre independente. A cultura católica representa outra abordagem a toda a
dinâmica da prostituição. Porém se não por outra coisa você ali vai com uma pessoa que
ganha a vida assim, assertivo, que escolheu viver assim. E também diante – ao menos
daquilo que elas me disseram – diante da possibilidade de fazer outros trabalhos estas
150
mulheres, estas pessoas muitas vezes respondem “Não, eu me ajeitei assim. Sou
independente, ganho um x por mês, e nunca voltaria atrás” [Giovanni; 40 anos;
heterossexual]
Partindo desta limitada possibilidade – e provavelmente também o desejo – de aprofundar quais são os
motivos pelos quais a sex worker se vende, as pessoas entrevistadas parecem ter a tendência a restituir
uma representação estetizada das condições de vida as pessoas das quais compram relações sexuais,
acentuando algumas características do comportamento das sex workers: em diversas passagens foram
descritas como mulheres particularmente alegres e divertidas (com ulterior referência às suas
características do caráter “originárias” determinadas pela base étnica) ou se fez referência a contextos e
lugares para os quais a construção de uma moldura imputável às dimensões do luxo e da atmosfera
relaxada funcionaria, por si só, como garantia de um alto nível de qualidade da vida para as pessoas que
trabalham no seu interior. As indicações mais evidentes, neste sentido, são os bordeis suíços ou alemães,
contextos nos quais as atividades das sex workers que trabalham são descritas através de lentes
suavizadas, com frequentes a menções à retórica livre escolha (seja em termos de escolha de vida que em
termos de seleção dos clientes) e as praxes do controle sanitário (que neste discurso são percebidas como
garantia de pleno respeito dos direitos das trabalhadoras). Por quanto, de fato, nos contextos de rua e do
bordel de luxo aconteçam contradições e dinâmicas substancialmente similares entre os clientes e a sex
worker, a moldura diferente na qual está enquadrada a situação como um “spa” parece legitimar também
um compartilhamento mais livre das experiências que acontecem no seu interior, como bem destacado no
trecho da entrevista a seguir.
Eu estava indo de férias a Berlim entre as tantas coisas na pesquisa que eu fiz ... por
motivos turísticos ... me encontrei lendo muitos comentários sobre um local que seria
praticamente um spa, sauna, massagem, hidromassagem, banho turco assim ...que se
chama Ártemis ... em Berlim muito famoso e acabei por ter muitas informações sobre este
lugar, também porque quando eu dizia que estava indo a Berlim para muitos dos meus
colegas de trabalho, também às pessoas assim, que conheço também gente de certa
idade, uns cinquenta anos ... todos diziam e “Vai ao Ártemis” dizem que é uma coisa
maravilhosa.... é como dizer quando você está em paris e vai à Disneyland ... isto é a maior
parte das pessoas nunca foi ... você não é uma criança então noventa por cento não é que:
me estou divertindo ... porém todos sabem mais ou menos que existe. Digamos que talvez
teve uma visibilidade maior durante o campeonato mundial na Alemanha, porém a
prostituição lá acho que é legal faz ao menos vinte anos ... eu entre outras coisas antes de
ir viajar li muitas coisas na internet ... vi como funcionava: fazem uma consulta médica
toda segunda-feira em todas as meninas, como de fato na segunda está fechado ... para as
diferentes doenças sexualmente transmissíveis, todas as semanas para que possam ter a
renovação da licença para trabalhar ... depois tive também outras informações no
momento em que falava com as próprias meninas sobre o funcionamento da estrutura.
Para a menina funciona assim: paga cem euros, tem o direito a todas as bebidas e estas
coisas assim ... e mais o direito de pegar o quarto, porque ela é que administra todas estas
coisas aqui ... […] Digamos que a primeira experiência [com uma prostituta] eu contei
somente para os amigos mais próximos, enquanto a partir da segunda não provo ... isto é
nenhum embaraço ... então para mim não é uma vergonha falar abertamente a respeito,
eu falei para as minhas amigas, para os meus amigos para pessoas que conheço mas com
quem não tenho intimidade ... porém é uma coisa não sei como dizer ... é um pouco como
se eu tivesse ido na Disneyworld ... porque na verdade é uma coisa assim fora da realidade
... é como ter vivido dentro de um filme, não sei como explicar ... isto é muitas meninas
para quem eu contei, uma em particular modo, disseram quase que segundo elas não
seria trair se a mesma coisa tivesse acontecido com um homem casado, porque na
verdade é uma coisa fora talvez.... isto é além do sexo, porém além do sexo o que pode
ser... não sei ...por exemplo quem é casado, com três filhos e de noite procura uma trans.
[Giuliano; 34 anos; heterossexual]
151
Tenho alguns amigos que foram à Suíça não sei se você escutou falar.... são locais onde
você entra, paga um quantia ...acho que agora tá cem euros ... e tem todas estas meninas
deste tipo, as hidromassagens ... você circula de roupão, eu nunca fui ... já ouvi falar,
porém eu gostaria ... gostaria de ir não é que ... falo por outras pessoas se eu tivesse ido
eu lhe diria, porque de qualquer forma agora tem quase quatro anos que [ri] estou
fazendo férias coletivas e não posso me dar este luxo. [Manuel; 44 anos; heterossexual]
Partindo da palavras dos entrevistados é possível reconstruir dois perfis de sex worker: de um
lado são todas colocadas como obrigadas a se prostituir sobretudo na rua, enquanto do lado
oposto são descritas como profissionais liberais que administram o próprio trabalho em
autonomia e se apoiam (comprando) os serviços oferecidos pelo bordel. Independentemente
do “status” dado às sex workers, a tendência geral parece ser a de despersonalizar as
mulheres das quais se comprou sexo, nivelando a descrição sobre elas a aspectos meramente
estéticos ou comportamentos contextuais ao encontro. Também os entrevistados que
declararam-se mais abertos e “laicos” em relação ao desejo de não julgar moralmente as
prostitutas parecem de qualquer modo temer o julgamento que “o resto da sociedade” teria
feito em relação a eles caso a relação com a trabalhadora fosse aprofundada. Neste sentido,
então, também nos casos em que as mulheres foram representadas como “livres” e quase
“divertidas” no cumprimento do próprio trabalho, a presença delas na cena pública parece
poder ser verificada somente na condição em que não violem os limites dos seus papéis de
profissionais do sexo.
Com uma em particular nos tornamos um pouco amigos, como cliente, isto é eu chegava
com a pizza e com a cerveja, ficava ali e falávamos uma horinha e lei me mostrava as fotos
de Cuba [...] depois obviamente além da questão humana, se a menina tem uma bela
bunda e dois seios lindos! Óbvio! Vamos deixar desta hipocrisia de fazer caridade...
Obviamente tinha um aspecto lúdico. [Giovanni; 40 anos; heterossexual]
…de qualquer forma são atividades que eu acho você pode fazer por um certo período de
tempo e finalizadas a poupar um pouco de dinheiro ... para depois ter uma vida real ...
porque eu acho que de qualquer forma você não pode ter uma vida normal ... isto é ,
onde você pode, tranquilamente, ser médico, ferroviário, carteiro e ao mesmo tempo ter
uma família .. se você é um prostituto ou uma prostituta, você não pode ter uma família,
segundo o meu parecer .. mas nem mesmo uma atriz pornô … se você ouve os artistas
pornô nestes que fazem estes casamentos, são casados têm filhos .. para mim é uma coisa
louca ... isto é se você é um ator pornô ou uma atriz pornô sinto muito mas não pode ter
uma família .. isto é tudo bem interromper um pouco aquilo .. que de qualquer modo não
sei .. talvez eu seja preconceituoso neste sentido ... posso compreender ... isto é posso
muito ver uma pessoa que de manhã vai operar, guiar um trem ou vai entregar cartas e de
noite volta para casa ... mas uma mulher que de manhã faz uma orgia com 4-5 pessoas e
depois volta para casa à noite, isto é beija seus filhos não sei... também porque depois
quando se deve dizer à criança que você é um carteiro. é bastante simples ... quando à
criança se tem que dizer que você trepa de manhã até à noite, é uma bagunça ... isto é se
pode explicar a um adulto uma coisa deste tipo … [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
3.4. As primeiras experiências e a caracterização dos “outros” clientes
As primeiras experiências de compra de relações sexuais, na maior parte dos casos, são contadas como de
qualquer modo inevitáveis e estreitamente ligadas a condições contextuais. Os relatos das primeiras
abordagens ao mundo da prostituição são um dos aspectos de maior homogeneidade entre as narrações
152
recolhidas: para quase todos os entrevistados se trata de uma experiência vivida ao redor dos dezoito anos
e elaboradas, a distância de anos, como momentos conotados de um intento lúdico – exploração nos quais
a dimensão divertida do compartilhamento com um grupo de amigos é muito indicada como um dos
impulsos principais para medir-se com a dimensão das relações sexuais – que para a maior parte dos
entrevistados resulta quase totalmente desconhecida no momento da primeira relação com uma sex
worker – através do canal “facilitado” das relações pagas.
7
Como dizer ... sabe ... o período dos puta tour … você dá uma volta, vai li um pouco para
digamos... no início realmente por pura diversão, pode ser que faça, contrata, mas não ...
pode ser que não vai, de noite onde se está em 4 no carro. À noite que sai ao invés ...
pode ser que se fica em dois, à noite então se diz talvez ... você bebeu alguma coisinha a
mais que fez um pouco de efeito a mais ... pode ser ... vai e digamos que conclui a coisa:
Com certeza quando jovem talvez ... repito você faz mesmo por brincadeira, era uma
questão de brincadeira de ... chateação talvez às vezes também, não? Então fazia alguma
coisa de diferente,... aliás que você bebia ... talvez ao invés de ir nos locais para beber.. ia
ali… às vezes porque talvez faltava aquela ... a namoradinha ... de qualquer modo que seja
.. você então naquele ponto ali pode ser que tirava a pressão, de vez em quando ia
[Gennaro; 38 anos; heterossexual]
A primeira vez eu era um adolescente ... porém não é que eu fui demais... não é uma coisa
que eu gostei, porém depois nós fizemos com os outros ... entendeu? A primeira vez sabe
... 2 ou 3 fomos juntos .. por volta dos dezoito anos até mais para frente ... mas foram
mesmo esporádicas ... que íamos juntos fazer o puta tour, e outras trepadas daquele tipo
ali ... depois .. mas aconteceu poucas vezes assim, depois aconteceu mais para frente
quando eu era um pouco mais velho talvez. [Luigi; 39 anos; heterossexual]
Eu era um meninote na época era um pouco um modo de .... como dizer ... era uma coisa
8
de iniciação, entende? Isto é ... procurar uma bagascia era um pouco ... “Oh vamos lá” ...
ao redor dos dezoito anos, eu era enrolado, então tinha iniciado no sentido que ... depois
tanto se revelou uma coisa bastante ... assim ... fria ...não interessante, depois um
adolescente compreende que tinha poucas ou nenhuma experiência sexual, era uma coisa
que colocava você em estado de embaraço confusão de ... assim é... depois sobretudo o
que acontecia ... sai de casa com o amigo, você tinha juntado umas liras, na época, para
fazer a coisa, então ia, se ia para o centro histórico e tinha toda esta ... também este
desafio então, o mais tímido, não? Para a série... “Você é o azarado, eu sou o maior” ou
seja esta busca de uma masculinidade que encontrava também o seu carimbo, o seu
segredo no primeiro ato ... eram os primeiros anos 80 e elas eram mulheres italianas
meridionais. No meu caso era uma senhora de uma certa idade ... sabe-se la a idade dela ..
mas o contexto era: a “prostituta” estava na porta, já tinha ido o amigo do amigo, então
levava você talvez ... em dois um esperava fora o outro entrava ... e.. “Como foi? Sim,
pode ir tranquilo” isto é era uma senhora que depois se dava conta que estava lidando
com meninotes portanto fazia as coisas mais rápido ... realmente um mínimo de atenção
... provavelmente tinha medo ou ficava embaraçada com os dois meninotes que iam lá.
[Adriano; 42 anos; heterossexual]
O fio condutor destas passagens nos relatos é talvez identificável na reverberação que a tradição da “visita
ao bordel” tem nas suas representações dos entrevistados. Para estas pessoas o significado da primeira
experiência com uma prostituta parece coincidir, ao menos em parte, com o valor do rito de passagem de
iniciação para a idade adulta, por quanto seja provavelmente sempre menos radicada a ideia segundo a
qual este rito seja uma necessária confirmação de uma “saudável” masculinidade. Considerando como
7
O “puta tour” é uma prática mais difundida sobretudo no final da adolescência entre os rapazes que, geralmente em
grupo, passam com o carro nas ruas onde as sex workers trabalham esboçando as primeiras tentativas de negociação
que, geralmente, não se concluem com a compra efetiva de uma relação.
8
Termo dialetal genovês que significa “prostituta”.
153
idade média das pessoas entrevistadas aquela ao redor dos trinta e cinco anos, se pode hipnotizar que esta
geração de homens tenha vivido em primeira pessoa a fase de mudança dos significados culturalmente
dados pela experiência de fruição do sexo mercenário: para as gerações imediatamente anteriores as
dicotomias opositivas entre mulheres e amantes, mães e prostitutas, amor sagrado e profano eram um
pressuposto cultural tão difundidos ao ponto de tornar o bordel um local considerado necessário para as
primeiras experiências da própria sexualidade, enquanto para as gerações posteriores a progressiva
legitimação do desejo sexual feminino – por quanto, como veremos depois, diversas resistências culturais
freiem a sua aceitação plena seja no discurso público que no privado – comportou uma disponibilidade
mais ampla de ocasiões e encontros paritários entre os dois gêneros, então não regulados pelas lógicas
econômicas de troca tarifa –prostituição.
A minha primeira vez paga ... ah no meu caso vamos dizer que antes de tudo tinha uma
solidão de fundo ... porque de qualquer forma também naquela época eu não tinha
namorada ... eu sempre tive dificuldade para ter namorada ... e tive muitas relações,
porém não muitíssimos em relação a muitos outros das minha geração, que de qualquer
forma é uma geração sexualmente muito livre ... porém não tive ... eu sempre tive muita
dificuldade para criar relações constantes ... na verdade nunca senti muita necessidade na
minha vida, dei umas derrapadas, porém digamos que limitadas, que consigo contar nos
dedos de uma mão ... só de uma mão ... e é só ..., se fala de sexo ... e no final precisou de
pouco, eu estava sozinho … [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
Nunca tive muita sorte com as meninas, sobretudo quando eu era jovem. Não era bonito,
era tímido, enrolado... naquela época então no bairro se falava das prostitutas, sei lá onde
eu já tinha ouvido falar, também em casa de brincadeira, ou entre os amigos, como fazer
para trepar a primeira vez ... caminhando pelos ruelas você as via ... me lembro que as
primeiras vezes, ou talvez exatamente a primeira, antes de ir eu pensei a respeito, e dava
voltas e mais voltas nas ruelas para vê-las. Um dia, eu tinha cerca de dezessete anos,
arranjei dinheiro e fui. Era um fim de semana, me lembro, uma tarde, e enquanto eu
caminhava me lembro que eu estava ... emocionado, não sentia as pernas, não queria ser
visto por ninguém, e estas ruelas na sombra, com pouca gente ... em uma ruela lateral vi
uma moça jovem, ela também me parecia tímida, e fui com ela. [Marco; 44 anos;
heterossexual]
Neste sentido são particularmente sugestivas as palavras com as quais o entrevistado conta como, para
uma geração de adolescentes norte africanas que chegaram em Gênova nos primeiros anos 90, o fato de
não serem aceitas como clientes pelas prostitutas do centro histórico (não obstante a oferta de meninas
seja tradicionalmente muito consistente na área), temiam diferentes transtornos, como se estes meninos
quisessem reivindicar o seu direito a medirem-se com o ritual de passagem assim importante na sua
concepção de “tornarem-se adultos” e, em um certo sentido “tornarem-se adultos e inclusos” na sociedade
recebedora. Na sua narração o entrevistado descreve em modo muito eficaz como sobre um tema assim
denso como o da descoberta da sexualidade na idade da adolescência, intervenham fatores de caráter
fisiológico mas também, e sobretudo, de caráter cultural, ilustrando como à algumas práticas é designado o
valor simbólico do rito de passagem.
Portanto nos primeiros anos 90 chegaram os primeiros fluxos de migrantes do Marrocos,
o centro histórico encheu de marroquinos ... somente homens ... me lembro que estava
na M. [área do centro histórico genovês na qual tradicionalmente a oferta de prostituição
diurna é particularmente ampla] na época e sobretudo aqueles que digamos dos
adolescentes para cima, não estou falando das crianças por motivos óbvios, mas dos
adolescentes para cima, tinham um grande problema porque não, não ... tanto viviam em
uma condição de isolamento total aqui, no sentido que as suas possibilidades de encontro
social, isto é de vida, eram muito pequenas, eram obrigados a vender flores, viviam nestes
apartamentos, estas casas caindo aos pedaços que dividiam até mesmo a cama com outra
154
pessoa, se alternavam ... estas coisas, depois os mais jovens eram obrigados também a
cumprir o papel de dono de casa, preparar a comida, etc... ou seja uma vida difícil e zero
possibilidade de ter historias com italianas, nada ... naquela época ainda ... depois mudou
um pouco, mas nos primeiros anos ... porque chegavam pessoas decididamente azaradas
entende... depois era uma ondada que chegava do interior, eram camponeses então ..
culturalmente ... entende com poucos instrumentos, depois ficavam deslumbrados com o
mundo da vitrine do ocidente, tinham as calças bonitas, os sapatos eh... higienicamente
devastador, isto eu com certeza pelas condições em que viviam aqui, mas tenho motivo
para acreditar que mesmo nos seus países de origem ... um pouco como aqui, meu pai era
camponês e se lavava uma vez cada morte de papa, cultura camponesa […] bem, nem as
prostitutas queriam saber deles, este era o ponto ... se gerava um clima de ódio ... eles
isto é realmente quando falavam das prostitutas ... porque se sentiam excluídos .. pelas
excluídas, entende? Que não talvez quando conseguiam vender um pouco de meias, um
pouco de tranqueiras, isqueiros coisas que davam quarenta mil liras ... esperavam poder
... e estas aqui davam pra trás: “Eu com você, com os marroquinos não vou” esta era a
coisa que os fazia ficar nervosos ... se tornavam pejorativos, agressivos e não se podia
tocar neste argumento, ficavam uma fera ... eu entendo que […] e este raciocínio faço com
você acaso... porque existe esta leitura ... como se fosse materialista ... funcional ... como
se o corpo do homem tivesse que ejacular, não? o que em abstrato é verdadeiro, mas
tanto quanto aquele da mulher, no sentido do ponto de vista do prazer ... mas é tudo
aquilo que gira entorno que faz ... isto é estes aqui ficavam com raiva não porque como
dizer não conseguiam ter um orgasmo com uma mulher ... talvez também mas ... por tudo
que girava ao redor por ... isto é pela porta batida na cara, pelo azar, do azar, do azar que
sentiam na pele, entende? [Adriano; 42 anos; heterossexual]
Depois das primeiras experiências o contato com o mercado do sexo alguns entrevistados dizem ter
mantido uma certa regularidade de compra, enquanto outros tendem a sublinhar o próprio perfil de cliente
“ocasional”. Independentemente da frequência com a qual os entrevistados declaram de usufruir do sexo
pago, uma tendência comum foi aquela de relatar as próprias experiências de compra de relações sexuais
como se tratasse de episódios “distantes” de si, ao menos em termos de familiaridade em relação à prática.
Para os clientes esporádicos há sempre um “antes” no qual colocar as próprias experiências distanciandoas do presente e um “não mais”para delinear a escolha de não usufruir ulteriormente do sexo pago.
Bem então ... agora são anos que não pago mais porque trabalho tanto sozinho ... as
saídas são muito raras. [Gennaro; 38 anos; heterossexual]
De qualquer forma não comprei sexo muitas vezes, não é uma coisa que eu goste, que eu
tenha gostado muito.. gosto porque, o que eu gosto de fazer com as mulheres .. antes de
tudo, gosto de dar prazer à mulher, de consequência ali sei já que ... e depois tantas coisas
que gosto de fazer como uma mulher geralmente ali com elas [as sex workers] não pode
fazer ... sou um enjoado então na casa de uma já fico com nojo ... me meter na cama
dela... visto que já estiveram outros homens … [Luigi; 39 anos; heterossexual]
A um certo ponto “parei”, como se diz com as drogas, por outro lado podemos ver que
existem alguns aspectos de dependência. Não era pesado para mim, naquele caso, porque
de qualquer forma eu tinha uma namorada bonita, eu fazia tanto amor, então não me
passava absolutamente pela cabeça. [Giovanni; 40 anos; heterossexual]
Eu disse somente para os amigos mais íntimos, poucos mesmo, só para aqueles com quem
compartilhava algumas coisas, mas posso dizer que procurei as prostitutas por muitos
anos, porém com pouca frequência! ... quero dizer, não tanto, não sempre... só de vez em
quando. [Marco; 44 anos; heterossexual]
155
A tomada de distância não é porém unicamente de caráter temporal, se considerarmos como os
entrevistados diferenciam as suas auto-representações enquanto clientes do estereótipo (para a maior
parte dos casos, negativo) que estes compartilham em relação aos “outros” clientes. A construção de um
“outro” é estratégica como um modo de se diferenciar do próprio perfil, e existem, particularmente, alguns
detalhes que servem como critério distintivo. Os “outros” clientes são, por tanto, estigmatizados devido à
frequência do uso deste tipo de “serviço”, em uma certa maneira, acostumar a procurar pessoas que
trabalham nas ruas ao invés de usar somente o mercado do “no apartamento” (isto é, o que representa em
uma hierarquia de valores compartilhados pelos entrevistados, se apresenta em nível superior em
comparação ao mercado das ruas), a tendencia em negociar com as sex workers, vitima de exploração ou
então a ingenuidade delas, que as fazem confundir serviço a pagamento com relação amorosa
Existem pessoas que são extremamente fanáticas, existem pessoas que, na minha opinião,
não conseguem nem ter uma ereção.. bebem o dia todo por aí, talvez vão todos os fins de
semana atras das putas... não consigo imaginar como podem conseguir fazer alguma coisa
naquelas condições, caindo de bêbados, o que você espera que façam à noite? Talvez vão
ao night club e gastam um monte de dinheiro mas não conseguem concluir nada. Talvez
eles levam a garota para a casa deles, vai saber, ou não. Situações nojentas, é uma coisa
que nunca fiz e nunca vou fazer, tipo levar a garota em casa, tem gente que leva, que faz a
garota vir na casa, eu não.... eu hein! Que coisa horrível! Mas tem gente que vai sempre à
procura.. fora aquelas pessoas que não conseguem mesmo ter um relacionamento e daí
estas saídas podem se tornar uma dependência.. é uma coisa que vem juntamente com a
bebida, eles bebem e, quando estão meio alegrinhos, eles tem vontade ... daquilo! [Luigi;
39 anos; heterossexual]
Como acontece com as garotas que se vendem nas ruas, eu nunca tive vontade de sair
com elas porque, muitas vezes, você as via tristes. Então você pensa imediatamente no
fato que trepar seja um trabalho errado, e vem na tua cabeça um filme com o mixe, a
garota obrigada a se prostituir, é uma situação vulnerável, como nos filmes, sabe.. às
vezes eu ia dar um role e encontrava garotas que pareciam tranquilas, então eu também
me tranquilizava, embora o pensamento não me deixava em paz... As afro descendentes
eram as mais tristes, pobrezinhas. Se soube, depois, que eram todas exploradíssimas,
sabe, o trafico das negras... não me lembro, acho que li no jornal. Às vezes escrevem que
elas foram praticamente raptadas, ou ameaçadas. Depois disseram que as albanesas
estavam na mesma situação, por causa da mafia albanesa e tal, e são aquelas que estão
nas ruas, né? E aí eu entendi a tristeza dessa gente e parei. [Marco; 44 anos;
heterossexual]
Lembro-me que, às vezes, alguns piemonteses que vinham ao centro histórico de Gênova
atras das prostitutas, e elas faziam o maior teatrinho, fingindo ciúmes por causa deles,
sabe? Eles tinham aquele jeitão meio tímido, caipira.. e elas diziam: “mas você não
apareceu mais.. arrumou outra, foi?”... aí eles desconversavam né? Eles pensavam que
elas estavam falando serio. Eles acreditavam. [Adriano; 42 anos; heterossexual]
Em suma, a nível de escolhas individuais, a habitude de procurar o sexo a pagamento é uma habitude de
muitos dos entrevistados, como uma coisa meio proibida, e um aspecto considerado determinante, pode
ser aceito somente por ser uma alternativa ocasional às relações da vida “real”, onde é mais tolerada uma
ampla margem de discussão da virilidade dos homens envolvidos. Este aspecto provavelmente marca uma
mudança de caráter geracional na a população de clientes: o fato de recorrer sempre ao sexo a pagamento
passa desde uma condição quase inevitável e necessária para a pratica “em si", da qual se sente vergonha,
ainda mais nos casos onde essa praxe resulta em ocasiões de busca de parceiros sexuais. É como se a
masculinidade se tornasse cada vez menos uma categoria considerada forte, independentemente de
qualquer coisa, e a constatação disso fosse a conquista sexual, contrariamente ao que ocorreu à geração
imediatamente antes desta, tal conquista deve ser obtida através da relação e da negociação que seja mais
ou menos em pé de igualdade com o parceiro.
156
Sabe… eu era baixinho e gordinho. Tímido Não praticava esportes, estudava numa escola
profissionalizante e, às vezes fazia uns bicos, ajudando um amigo do meu pai. Eu tinha
alguns amigos, mas não muitos, éramos aqueles tipos chatos que vão pro pub tomar uma.
Aos meus amigos eu não falava que às vezes eu saia com as putas, tinha vergonha, era o
tipo de coisa de gente azarada, concorda? Eu já não tinha namorada, era como se
estivesse escrito na minha cara que se eu não pagasse, não podia trepar ou, como
costumavam dizer “ninguém vai dar pra você”... Isso nos primeiros anos […] Enquanto que
hoje, com os colegas, casados, às vezes se conversa aqui e ali, com os mais velhos, os
casados, aí rola aquele assunto e naquele momento, o azarado não existe. Não é um
assunto do qual eu falo diariamente, pelo contrario, falo muito pouco, mas o assunto
pode sempre rolar. [Marco; 44 anos; heterossexual]
Mas na minha opinião, digamos que se uma pessoa não é casada, ou há qualquer
problema em ser vista, acho que não tem sentido procurar uma puta.... falo por mim,
porque eu nunca tive problema com as mulheres.. digamos, se eu tivesse problema de
achar mulher com certeza eu sairia mais com as putas. [Luigi; 39 anos; heterossexual]
…se o meu filho saísse com uma prostituta, eu lhe diria, com essas palavras aqui.... se você
saí com uma puta que pegou na rua, com uma coitada que foi raptada de sua família...
você é um nojento... no sentido que, se ele sai com aquela suíça, com a australiana, com a
alemã, etc, essas garotas que ganham montes de dinheiro, tem garota que escolheu
mesmo essa vida, mesmo porque, objetivamente, que elas ganham, elas ganham.. então
eu digo, “Beleza.. mas você não tem que considerar este ambiente a tua única esfera
sexual”, quer dizer, a única coisa que eu lhe diria esse tipo de atitude não deve ser
substitutiva, mas sim algo diferente. [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
Quando porem as opiniões foram expressas, considerando um nível mais abstrato e geral, os
entrevistados concordaram em declarar-se à favor da legalização da prostituição, muitas vezes
repetindo o discurso nostálgico que... “quando as casas eram fechadas (bordéis), havia
também um maior controle, limpeza e respeito – então, tais opiniões são expressas para
tentar construir uma representação estilizada – e, consequentemente, moralmente aceitável –
da prostituição
Eu sou favorável à reabertura dos bordéis. Seria a coisa mais justa, na minha opinião.
Tanto, não é que você vai acabar com o problema. Você pode tirá-las das ruas, mas
existem os apartamentos... Portanto, vou repetir, este é o trabalho mais antigo do mundo,
não é? Nunca vai acabar. A única coisa que se poderia fazer, ao meu ver, é como fizeram
com os jogos de azar... antes eram ilegais, por debaixo do pano, né, aí colocaram as
9
maquinas de jogos no tabacchino . Jogo do bicho, por exemplo, sempre existiu, mas não é
explicito.. então eu vejo por esse lado. Acho que, a este ponto, deveriam aproveitar a
ocasião: você tem o controle das garotas, estão todas legais, com documentos etc, garotas
limpas, sem rabo preso com ninguém, como podem ter essas garotas que trabalham nas
ruas. [Gennaro; 38 anos; heterossexual]
Posso te dizer brincando que é o trabalho mais antigo do mundo. É razoável fazer uma
distinção Aos 20 anos você não se questiona sobre o que tem por traz de uma prostituta.
Porque você só tem 20 anos. Sabe nada da vida ainda. Você é só um idiota, ainda não tem
maturidade suficiente para se perguntar este tipo de coisa, e ir além. Aí você vai, paga um
serviço que você acha que te dará muito prazer, mas na verdade, o prazer é bem poco e
você nem se questiona. Aí, nos tornamos adultos, e começamos a nos questionar, pelo
menos eu me questionava. Se por traz de uma prostituta existe um mundo de exploração,
é um dever ético para a mim não alimentar este mundo, entendeu? Se devo sair com uma
9
Loja onde você pode comprar monopólios estatais como cigarros e bilhetes de loteria loteria e muito mais; cujo
nome oficial é a revenda de tabaco e sal
157
prostituta que sei que é explorada – e esse é meu modo de pensar agora, com quarenta
anos – neste caso, se torna muito imoral se eu o fizer. Esta é a prova de que a pessoa está
tao concentrada nela mesma e não se questiona sobre o que rola por traz disso tudo.
Porem, onde o fato de se prostituir é um gesto independente, eu não vejo nada de errado.
É uma troca, onde na verdade você contratou um serviço, onde um homem – limpo,
educado, honesto – há necessidade de ter uma relação sexual e procura uma pessoa que
não esteja envolvida com ninguém, e de maneira limpa, educada e honesta, presta um
serviço. entendeu? Então eu não acho que haja algo de errado em sair com as prostitutas.
[Giovanni; 40 anos; heterossexual]
Os pontos de vista dos entrevistados são até que bem parecidos em termos de tendência em estigmatizar
as pessoas que praticam o turismo sexual. Na construção do arquétipo do turista sexual estão presentes
todas aquelas características que os próprios clientes usam para criticar o comportamento dos “outros”
clientes. Em particular, o fato de saber que existem lugares apropriados e discretos para os encontros com
as sex workers de ambiente familiar, e outros lugares com o clássico rótulo genérico, “terceiro mundo”,
acaba revelando o segredo (da ineficácia) de alguns dispositivos simbólicos que os clientes usam para
justificar suas próprias ações
Bem então, o turismo sexual eu já vi... já vi até ao vivo e a cores... me lembro quando
estive em Cuba, há uns anos atrás, de férias... fui com minha mãe e minha irmã. era um
período em que eu tava meio.. em dificuldade mesmo... e então eu fui viajar […] e me
lembro da primeira noite quando cheguei no hotel, ainda meio confuso por causa do vão,
da viagem, essas coisas todas.. aí eu disse “vou sair tomar uma” .. e eu gosto de beber,
sou quase um alcoólatra (risos) e então eu disse “to indo.. vou ali, tomo um rum.... assim
me relaxo um pouquinho”...aí cheguei neste lugar, ali tudo eles chamam de Centro
Cultural, mas são baladas, basicamente, porque são todos do Estado, então não são
Centros Culturais... bom, pra resumir.. to ali tranquilo, nos primeiros 5 minutos, nada, aí
depois chega uma menina.. naquela época eu tinha uns vinte e sete anos... e chega esta
menininha, devia ter uns dezesseis, dezessete anos.. nos dias de hoje é impossível saber
se uma garota tem dezoito ou tem quinze anos... não é? .. todas parecem ser super
jovens... e te vem aquela duvida […] fazia uns cinco minutos que eu estava ali, e ela se
oferece pra mim por 5 dólares.. me afasto... aí um carinha me pára e me oferece a sua
amiga por outros 5 dólares... me afasto novamente... começo a falar com uma garota..
esta era um pouco mais velha que as outras, devia ter seus vinte... depois de 10 palavras
que trocamos, ela me vem com uma frase do tipo “você é mais importante que meu pai e
minha mãe” … aí eu disse “ boa noite à todos” e fui embora para o hotel... passei a noite
toda chorando, e a trocar mensagens com uma minha amiga dizendo “Mas que raio de
lugar me trouxeram (risos) onde é que eu vim parar? No país dos horrores?”... porque eu
imaginava as piores coisas... claramente, depois de 8 dias que passei lá, e ainda por cima
conversando com esses italianos de sessenta anos, aposentados, que vivem ali 8 meses
por ano, foi aí que eu entendi que não se trata de um problema cultural do ponto de vista
que são atrasados, e então as mulheres praticamente não valem nada, e se você é homem
então você tem que pegar na enxada, se você é mulher então você.. quer dizer, você não
serve para ajudar a família, então, digamos que, já de cara existe pouquíssima
consideração pela mulher porque elas não são entidades produtivas, na opinião da
família.. então.. Uma outra coisa, eles não morrem de fome de jeito nenhum.. na verdade
o que falta ali é tudo aquilo que faz parte da nossa sociedade ocidental, e isto é,
maquiagens, essas bobeirinhas, este tipo de coisa... é triste... precisam é de uma politica
correta.. sei lá.. tipo, elas não são exploradas [diretamente] por ninguém... isto é, uma
coisa é uma mulher que diz “prefiro trabalhar 8 horas por dia e ganhar mil e quatrocentos
euros, numa estrutura onde, em qualquer modo, tenho cobertura sanitária” [como
acontece nos locais de encontros com as suíças ou as alemãs ]… e ganhar mil euros em um
dia, e trabalhar nisso por uns quinze anos... porque eu acho que mais do que isso elas não
podem trabalhar... mas elas ganham quantias tais que até justificaria a coisa... que na
verdade é sã sexo... a maior parte das pessoas há relações sexuais com pessoas que elas
158
nem dão a minima, principalmente se tem esse envolvimento sexual... muitas de minhas
amigas me contam que saem até com homens que elas não gostam.. acontece.. de
repente porque naquele dia estava meio tristes, aí... [Giuliano; 34 anos, heterossexual]
Bom.. vamos falar de mundos paralelos: um cidadão de Gênova, burguês, de boa família,
casado, com filhos, e que vai praticar o turismo sexual. Pratica o turismo sexual, então ele
se fecha em um mundo onde ele pode tudo e mais um pouco, e volta pra casa. Será
possível esta atitude não tenha consequências ou repercussões? Quero dizer, é um
processo de dissociação.. de repente, este mesmo cidadão é daqueles que coloca
videocâmaras por toda a casa, com medo que alguém violente a sua filha de catorze
anos...[Leonardo; 38 anos; heterossexual]
O fato de se encontrar em países onde as desigualdades de oportunidades entre lideres e subalternos são
tão pronunciadas que se tornam auto-evidentes, e segundo a opinião dos entrevistados, o comportamento
do turista sexual, excessivamente imprudente é uma coisa substancialmente inaceitável, a ponto de ser
considerado – ao menos potencialmente – pior do que o comportamento do turista sexual infantil.
Pra mim é um absurdo... é coisa de gente doente ir à esses lugares com um único
objetivo.. não sei, talvez porque eu nunca tive problemas com isso.. na minha opinião,
nem precisa sair daqui.. um lugar é igual ao outro, não importa onde vai... a menos que
você tenha aquela tara especifica de praticar turismo sexual com menininhas que vão pra
Tailândia, estes então são doentes mesmo, inseguros, loucos... que talvez tenham
problemas em se relacionar com uma mulher aqui, então o único jeito é sair com outras
desesperadas lá, jovens, mais desesperadas ainda porque vieram justamente por
desespero.. é uma coisa que eu não faria nunca! Não conseguiria jamais... mas não pelo
fato de serem jovens, mas pelo fato da questão de se aproveitar de uma pessoa
desesperada.. entendeu? É uma coisa que me dá nojo! [Luigi; 39 anos; heterossexual]
Nós italianos temos um grande registro no que diz respeito ao turismo sexual. E é visível...
é interessante como funciona a percepção de um povo... Conheci uma garota de Camboja
uns anos atrás, estávamos conversando e eu lhe disse que um tio meu tinha estado ali nos
anos cinquenta, e ela, a primeira coisa que me diz é: “e ele gostava de menininhas”?
[Leonardo; 38 anos; heterossexual]
Neste discurso, mesmo a adesão aos estereótipos construídos com base na etnia das sex workers, parece
ser menos rigorosas, como se o "jogo" de dar determinadas características de jovialidade, de caráter
erótico ou de apaziguamento, funcionasse plenamente, se apenas fossem reformuladas as áreas onde o / a
profissional do sexo é representado principalmente como um migrante.
Por um lado, essa coisa do turismo sexual me deixa curioso.. como eu gosto muito de
viajar... gostaria muito de conhecer o Brasil e outros lugares da América do Sul... gostaria
de conhecer os lugares mesmo... porém, podemos sempre unir o útil ao agradável, sei lá...
pra experimentar coisas novas […] ali, com certeza, existem coisas diferentes... pelo que
eu ouvi falar... primeira coisa é o custo... a gentileza... a gentileza que quero dizer é.. o
jeito que essas garotas tem de chegar em você... eles dizem (os amigos que praticam o
turismo sexual) que ali é como se você tivesse uma “namorada”.. então, mas você sabe,
né... o motivo é fácil de entender: elas tem fome.. e então.. estão com você porque você
paga a comida pra elas [Manuel; 44 anos; heterossexual]
Que eu saiba, eles agora estão indo... bem, agora vão pra Ucraína, em lugares assim.. ou
então vão pra Tailândia.. tenho amigos que iam até duas vezes no ano... iam só pra isso...
eram dois solteirões... dois agentes alfandegários que viajavam sempre […] depois, tem
lugares tipo Cuba... países assim pobres, onde tem gente que arranja namorada à
distancia e continua namorando... dementes que pagam as contas daqui (risos), recarga
159
telefônica, mandam dinheiro... caramba... e aí, cada um saía com uma e depois trocavam
entre eles... estes são os desesperados, pessoas que se comportam assim nunca vão achar
uma mulher, entende? E se você os vir, são pessoas que parecem não ter problemas, no
entanto, se vê que, psicologicamente eles têm sim […] Além disso, eu conheço um cara...
um homem normal fisicamente, mas que sofreu o pão que o diabo amassou com essa
mulher.. ela o deixava louco, pedia dinheiro para o passaporte, pra poder vir pra cá, aí
gastava todo o dinheiro e não vinha... no fim das contas, ele deu a ela rios de dinheiro e
ela nem veio... e quando ele fez ela vir, era uma chata de galocha (risos)... era cubana,
mais jovem, mas era feia pra caramba […] Um homem que sai com uma prostituta é algo
mais normal... porque, imagina, você.. você vai lá pra fazer o papel do namoradinho
enquanto está lá... não vão ali, pagam e basta, eles meio que alugam uma garota... essas
garotas grudam em você logo quando você chega lá, e vêm que você tem grana.. alguns
nem pagam as garotas, no sentido que, levam elas pra jantar, elas dormem no hotel com
eles, mas elas vão porque estão desesperadas... é uma coisa muito mesquinha, a mim não
daria nenhuma satisfação [Luigi; 39 anos; heterossexual]
3.5. A remoção do desejo feminino e da "deslegitimação" da masculinidade hegemônica
As ideias apresentadas nas paginas anteriores têm a ver, diretamente, com as experiências e os pontos de
vista que se têm em relação ao mercado do sexo. Porém, quando pensamos em termos de continuidade
(do imaginário, do status, das práticas, etc.) entre clientes e não-clientes, é igualmente importante explorar
o que os entrevistados tem a dizer sobre o mundo feminino, pois é também com relação a estas
representações que a compra do sexo é dotada de significado por seus protagonistas.
De boa parte das estorias contadas, vem à tona, já de cara, a crença de que a distancia entre a sexualidade
feminina e masculina levaria a expectativas diferentes em relação ao sexo, tanto em termos de desejo
quanto em termos da escolha do parceiro. Segundo estes pontos de vista, a sexualidade masculina haveria
uma conotação puramente hormonal e, consequentemente, levariam a uma atitude orientada à procura de
uma certa quantidade de parceiros e encontros, enquanto que a sexualidade feminina teria, antes de mais
nada, “menos” urgência, do ponto de vista fisiológico e, no que diz respeito à escolha do parceiro, existem
outras coisas envolvidas, que vão além da questão da atracão física.
Eu consigo compreender essas duas sexualidades diferentes... mentalmente... ou seja, o
homem é mais apto a provar múltiplas experiencias das próprias necessidades instintivas,
porém, de algum modo, ele foi feito pra conseguir se defender também destas relações...
no sentido psicológico, é mais sob esse ponto de vista aí... menos passional talvez...
enquanto que a mulher, objetivamente, se distingue, porque elas precisam do parceiro,
do companheiro.... essencialmente porque querem ter filhos... ou seja, um laço... não é
como um homem que pode lá dar a sua trepadinha e depois cair fora […] Eu sou um
verdadeiro machista [risos] …bem, vamos pegar eu de exemplo... antes, devo dizer que eu
nunca entendi as mulheres... sei lá, porque falam uma coisa e depois fazem totalmente o
contrário daquilo que falam, ou seja, você nunca consegue entender... às vezes passam
por situações com uma calma que, sinceramente, te surpreende, e você diz, “ eu já estaria
todo perdido”.. outras vezes elas vivem mal situações que, na verdade, são super normais,
ou seja, depende muito do dia […] e depois, uma é totalmente diferente da outra, então...
enquanto nós, bem ou mal, somos guiados por 4 ou 5 estímulos que, em qualquer modo,
nos simplificam, mesmo porque, temos a tendencia maior de viver em grupos, enquanto
que, com as mulheres, o grupo em questão é o núcleo familiar, então.. a companhia de
amigos, normalmente, são os homens que tem, porque temos esse instinto da
dependência... provavelmente vem do fato que tínhamos que caçar antigamente, e então,
para ter êxito na caça, era necessário andar em grupo, porque éramos mais fracos e sem
os instrumentos necessários à sobrevivência... nós homens somos mais simples, é isso, e
as mulheres, eu as vejo mais complicadas... [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
160
E’ como quando vejo uma mulher bêbada. Se você pensar, é normal: como pode
acontecer comigo, pode acontecer também com uma mulher. Mas se você pensar nas
baladas que, por acaso rolou de estar em companhia de mulheres bêbadas, talvez até
passando mal mesmo, elas fazem uma zona... me incomoda, é como se elas perdessem a
feminilidade, quando exageram, me incomoda muito. Mas também se pensar em um
homem, um amigo, quando já bebeu todas, me incomoda do mesmo jeito, então, talvez
depende da pessoa que está bêbada e do quanto ela bebeu... caramba, se eu penso ao
quanto me incomodava quando um de nós bebia todas e aprontava!! As vezes tinha que
dirigir, nem te falo, mesmo que fosse amigo, homem, me incomodava muito.. então talvez
não tenha muito a ver se si trata de homem ou mulher neste caso, mas acho que em
relação ao sexo, fica mais difícil, não é?!? [Marco; 44 anos; heterossexual]
Talvez fosse uma necessidade, fisiológica (sair com prostitutas), uma fraqueza. Talvez eu
tenha citado a fraqueza porque meio que faz parte do pacote todo.. hoje eu falo
“fraqueza”, mas na época eu não enxergava dessa maneira. O que me estimulava era a
necessidade, namorada, ora tinha, ora não, mas aquela ideia de já ter feito e de saber o
quanto é bom, o quanto é engraçado ter ejaculações, daí, você sente mais essa
necessidade. Quando você começa a sua vida sexual, ou seja, a fazer sexo, dependendo da
pessoa, torna-se uma necessidade. [Giovanni; 40 anos; heterossexual]
Muito interessante também, neste sentido, é a estória que um dos entrevistados
conta, de um encontro ocasional entre ele e uma mulher desconhecida: o fato de que
esta mulher, “Particularmente significativo neste sentido, é a estória que um
entrevistado conta sobre o seu encontro casual com uma mulher desconhecida: o fato
de que esta mulher, "apropriando-se" do papel do "predador masculino" – portanto,
aproveitando a ocasião para satisfazer seu desejo sexual, minimizando os
componentes relacionais – foi explicitamente desaprovado por parte do entrevistado.
Por mais que o entrevistado tenha contado esta estória com um certo grau de ironia
no que diz respeito à experiencia que teve, é bastante evidente essa vontade de
enfatizar a sua distância desta mulher que conheceu e que, nesta estória, transgride
diferentes expectativas de papéis, dando vida a uma reflexão sobre essa categoria, sob
o ponto de vista do entrevistado.
Veja, quando decidi trocar duas palavrinhas com o psicologo e enfrentar alguns aspectos
de uma vida que, naquele momento, não ia bem, por culpa de uma coisa que me deixou
muito impressionado, que aconteceu em Roma.. entrei num barzinho, com meu olho
clinico, já saquei quem era a ninfomaníaca de plantão. meu modo brincalhão de chamálas, talvez com um quê de machismo... dá pra reconhecer porque dá pra ver as rendinhas
da calcinha, de tão curta que é a saia, e fica sempre do lado esquerdo do balcão. é aquela
que te diz, “oi” mas fica só com cinquenta por cento do trabalho. Fui pra cama uma vez,
sexo incrivelmente violento, que me fez mudar o meu ponto de vista em relação às
mulheres. Não é que eu tenha uma visão das mulheres, como Dante tem de sua Beatriz,
mas tenho uma visão incrível a respeito delas: o mundo das mulheres é um mundo que
me agrada muito... porém já sofri uma violência e uma vingança.. que me assustaram
muito. Bom, o problema não é entender o que ela sentiu, mas o que eu senti. Desculpe,
mas tento me defender um pouco (risos). E na manhã seguinte, acordei naquela casa, e
me perguntei “poxa, como pude chegar a isso?”. Non teve nem aquela coisa gostosa do
encontro.. sempre gostei de encontros casuais, é isso. E esta situação me assustou de um
jeito que quando voltei pra minha cidade, fui diretamente à um psicologo (risos).
[Leonardo; 38 anos; heterossexual]
161
Após essas premissas, a ideia de imaginar uma mulher no papel de cliente que procura
sexo a pagamento, passou pela cabeça da maioria dos entrevistados como uma
provocação divertida, porém totalmente fora da realidade.
Nas viagens que fiz pela internet, vi que tem um lugar em Las Vegas, tipo um puteiro
enorme (para clientes mulheres) e praticamente diziam que, no ano passado ou neste ano
mesmo, queriam refazer esse tipo de oferta, obviamente respeitando os tempos
femininos... então.. tipo, umas duas horas de conversa.. pelo que dizia o jornalista, […]
mas é uma coisa que nunca funcionou.... isto é, a mulher não vive esta coisa do sexo como
nós homens a vivemos. [Giuliano; 34 anos; heterossexual]
Pra mim a ideia é muito estranha (de uma mulher comprar sexo), porque, de maneira
geral, pra uma mulher é mais fácil fazer sexo com um homem, independentemente se é
bonita ou feia.. ela acha um homem... talvez não um modelo de homem, mas... já para um
homem é mais difícil achar uma mulher. A menos que seja um homem bonito, ou então
famoso... e aí, se for famoso, tem dinheiro... e então não é um mero mortal.. [Manuel; 44
anos; heterossexual]
Eu já me convenci do fato que as mulheres são um pouco diferentes de nós sob este
ponto de vista... talvez porque elas.. não todas, porque tem mulher que é pior que muito
homem... mas, no geral.. por exemplo, se fosse a minha ex-mulher a fazer uma coisa do
tipo, eu já iria imaginar que ela está psicologicamente envolvida com o rapaz. [Luigi; 39
anos; heterossexual]
Neste contexto, então, o sistema de pensamento que se baseia em uma visão hegemônica da
masculinidade exerce o seu poder criando uma contradição que permite identificar e,
possivelmente, censurar as expressões indesejadas. Por um lado, a dicotomia contraditória do
desejo feminino “romântico” x desejo masculino “fisiológico”, determina a condição através da
qual é possível justificar a exigência masculina em buscar diferentes parceiras para satisfazer
as próprias necessidades fisiológicas, por outro lado as expressões do erotismo feminino
“descontrolado” abrem campo às atribuições sobre as “reputações sexuais” negativas.
Se por acaso, mesmo cruzando as fronteiras desse assunto meramente erótico, e fazendo
referência à dimensão do senso comum, a questão da “cidadania” da feminilidade aparece
constantemente na bíblia; vários trechos das entrevistas acenam algo como a discussão sobre
argumento e a deslegitimação daquele tradicional papel do homem de família, quando se fala
de casal “oficial”. De acordo com essa linha de pensamento, de fato, o âmbito das relações de
casais estáveis deveria consistir, na maioria dos casos, em uma série de obrigações e encargos
para o componente masculino, em um sistema de expectativa, que não deixaria espaço para
momentos de “desligamento” e compartilhamento lúdico e erótico Este último, no entanto,
parece ainda mais significativo quando se considera o fato de que a maioria dos entrevistados
relataram não ter procurado, na relação mercantilizada, oportunidade de conhecer as práticas
sexuais diferentes, porque tais práticas foram já praticadas com a parceira. Portanto, não se
trata de uma comparação entre costumes sexuais repressivos e desinibidos, normalmente
transmitido pela dicotomia “amor sagrado x amor profano”, mas sim daqueles momentos de
buscar uma fuga da vida de casal, onde o conflito ainda está à espreita. Normalmente, a
qualidade destas saidinhas aumentam com a diminuição da parcela de comprometimento e
envolvimento que o encontro pode ter, razão pela qual se opta por esse tipo de relação, ao
invés de uma aventura extraconjugal que não seja a pagamento.
Se uma pessoa tem a necessidade de dar vazão aos hormônios, com uma outra pessoa
que não é sua mulher, na minha opinião, faz muito bem, porque se não, se não existissem
162
as putas, ia procurar uma mulher normal por aí que.. de repente se envolve, eles sabem
do risco, sabem que podem se comprometer, e depois, os homens não são todos iguais.
Tem aqueles que pensam que, se sair com uma prostituta, vai estar traindo a sua mulher,
e tem aqueles que não pensam assim, entendeu? Não é traição, porém, sob o ponto de
vista da mulher, é. [Luigi; 39 anos; heterossexual]
Voltando aos casados.. talvez seja porque quem é casado não tem que provar nada a
ninguém... Quer dizer, não tem mais que mostrar que ele pode catar uma mina, pelo
contrario, se diz que “quem sai com puta é porque..”, é porque gosta da fruta, não é
porque o cara é casado, que vai deixar de gostar da fruta, porém, se é casado, não pode
aprontar, arrumar amante, etc.. tem que ter tempo, dinheiro, compromisso, sair contando
mentiras... Em vez, se você sair com uma puta de vez em quando, você elimina tudo isso,
e satisfaz o teu desejo. [Giovanni; 40 anos; heterossexual]
Alguns entrevistados falam, particularmente, de um mundo feminino “perigoso” e
povoado por “sereias” prontas para atrair o mais ingenuo dos homens, para satisfazer
seus próprios desejos (como vimos, quase sempre tem mais a ver com questões
econômicas, e não eróticas). Juntamente a este assunto, existe mais uma inversão na
construção de esteriótipos sobre as prostitutas: nesta lógica, o trabalho da sex worker
é estetizado como uma figura ideal de pureza, honestidade e transparência, para
contrastar com as “outras”, portanto, mulheres que encondem suas próprias
intenções, com as quais é necessário negociar a sua própria autoridade masculina.
Depois da experiencia que tive com minha mulher (que o traiu) e nos separamos... eu
acho mais... mais honesta uma que trabalha com isso (trabalha como sex worker). Muitas
porque precisam, outras porque estão em casa e fazem porque estão a fim, entende? De
qualquer forma, é uma fonte significativa de renda, e depois, falando sério, se já tem o
aspecto econômico, e a pessoa faz independentemente disso, só dá e não pede nada, e
consequentemente não tem nenhum respeito.. eu acho que pessoas assim, tipo uma
esposa que volta pra casa e finge que nada aconteceu - e olha que existe gente assim! - do
mesmo jeito que a gente faz, elas fazem também; então, eu respeito mais uma pessoa
que faz isso como trabalho mesmo, porque, de qualquer maneira, é um trabalho; passei
por situações na minha vida que também tive que me virar de algum modo... mas, vou te
dizer, melhor isso do que ter uma esposa em casa que, chegou da rua, te preparou a janta
e tal, enquanto que, de tarde, saiu com outros, então... [Gennaro; 38 anos; heterossexual]
Neste contexto, a oferta do sexo a pagamento assume características de um “serviço
social subsidiário”, funcionando como uma válvula de escape, considerada necessária
para a manutenção das relações “oficiais”
Se puder citar um exemplo, tenho um primo que mandou a família pelos ares porque
começou a trair a mulher, de maneira tao baixa, que uma puta é mais digna. Isto é, a
prostituta é uma trabalhadora, trabalha pra cara***. Uma volta uma me disse, “se
encontro um homem como você, limpo, decente, com quem posso bater um papo, o meu
trabalho se torna menos infame”. Quando o meu primo era em super crise com a esposa,
e tudo girava em torno da falta de sexo, ele dizia “eu sei que se eu a trair, vou mandar
pelos ares a nossa família” e eu, meio rindo, meio sério, lhe disse “A este proposito, as
prostitutas oferecem um excelente serviço, porque me diz que, fisicamente, você tem
uma grande carga sexual inibida, que te deixa agressivo, e pra essa finalidade, elas são
uma ótima alternativa social... mas ele, em vez disso, mandou pelos ares a família, com
uma pessoa que sempre traiu seus homens, aprontava todas, então.. [Giovanni; 40 anos;
heterossexual]
163
3.6. As conversas do “Fórum da Gostosona” como palco da masculinidade hegemônica
Esta parte da pesquisa usa como material de analise, as conversas registradas no
“fórum da gostosona” (FG), um fórum online que tem como tema a prostituição e é
utilizado a nível nacional. Este fórum é dividido em diversas categorias temáticas e
geográficas e, no geral, funciona como um agregador de opiniões em relação ao
desempenho e aos serviços oferecidos pela sex worker.
Do ponto de vista metodológico, o material proveniente do fórum pode ser somado ao
quadro de informações secundárias, aquelas que não foram obtidas no âmbito da
pesquisa em curso; este aspecto implica no fato de não ter nenhuma possibilidade de
controlar e verificar os processos de construção de tais informações que, no entanto,
podem ser consideradas significativas para as ideias propostas neste trabalho. Vários
fatores se combinam para tornar essas conversas online, de uma certa maneira,
“representativas”, em comparação à alguns sentimentos que, em modo menos
explicito, circulam pelo senso comum. Especificamente, o fato de poder se expressar
usando o próprio avatar (imagem escolhida para simbolizar o próprio perfil de usuário
em comunidades online) – portando, possivelmente omitindo alguns aspectos de sua
identidade offline – e um forte senso comunitário e de compartilhamento que (como
veremos adiante) une os membros do fórum, criando condições para que os usuários
possam construir, neste site, o próprio perfil de consumidor do sexo a pagamento,
exagerando propositadamente nas características de alguns aspectos, e censurando,
quando retém necessário, as informações que poderiam “comprometer” a maneira
que escolheu de se apresentar. Se o objetivo principal desta pesquisa é o de pensar
sobre a representação da masculinidade e de como se apresenta nos “palcos” das
relações sexuais a pagamento, então o material obtido do “fórum da gostosona” é
significativo, como uma narração espontanea e coerente, quando comparado a alguns
condicionamentos culturais específicos Na verdade, lendo os posts do fórum, nota-se
uma certa analogia ao temas recorrentes, nas palavras das pessoas entrevistadas nesta
pesquisa, mas o arquivo onde estes temas foram apresentados é, definitivamente,
muito mais rico de referencias explicitas, espetaculização.
O fórum possui uma atividade constante e desafiadora, a cada dia, novos posts, em
março de 2014, o numero de usuários registrados era superior a oitenta e três mil, e
um numero de posts que chega quase a novecentos mil. O enorme volume das
conversas dá uma ideia imediata, independentemente do fato que os usuários
poderiam inventar boa parte das estorias compartilhadas. De fato, sob alguns
aspectos, as narrações onde o componente imaginário é utilizado por varias vezes,
podem ser consideradas ainda mais relevantes, porque representam as tentativas de
adesão “perfeita” ao esteriótipo que os usuários do fórum consideram relevantes.
Neste sentido, portanto, o fórum representa um “amplificador” que, mesmo
distorcendo, consegue reproduzir um “barulhinho de fundo” que circula nos discursos
públicos e privados, permitindo novas reflexões sobre o quadro cultural que evidencia
o perfil dos vários clientes, assíduos, esporádicos, ocasionais e potenciais.
Um dos aspectos imediatamente evidentes quando você se entra no fórum, é a
ocorrência constante de posts que tratam de aspectos regulamentares, tanto em
termos de etiqueta “dentro” da comunidade do fórum, por questões comportamentais
e relativas aos momentos de encontro com a sex worker. Os dois exemplos a seguir
164
mostram dois tipos de post: um aviso em relação aos códigos internos de conduta e
um manual de boas praticas, recomendado aos clientes (chamados de “punter” na
linguagem do fórum).
Apesar dos repetidos avisos da administração e dos supervisores, parte dos punter são
falsos, agressivos, com aqueles discursos de sempre, para dizer o minimo, rudes, ofensivos
que, em alguns casos podem implicar em difamação de outros usuários do FG, e também
difamação e violência domestica contra garotas de programa. Por violência domestica, art.
610 do código penal, se refere a pessoas que ameaçam escrever coisas ofensivas sobre o
fórum (não só o FG), ou sobre algumas garotas, se elas fazem / facilitam / pagam os
mesmos e, no caso de “obtenção de favores”, criticam, positivamente, o desempenho
delas. Pois então, a partir de agora, as coisas vão mudar um pouco... Aqueles que usarem
adjetivos, epítetos, estigmatizações ofensivas, ameaçadoras, violentas, contra as garotas
de programa e outros membros do FG, serão suspensos por 20 dias e seus posts serão
imediatamente cancelados (e se tiver algum tópico sugerido por esta pessoa, todo o
tópico será cancelado). No caso de recidiva, a suspensão será de 40 dias e, obviamente,
terá todos os seus posts cancelados, como dito anteriormente. Uma terceira vez,
implicará na exclusão definitiva do fórum. Ninguém tem o direito de zombar e escrever
mensagens que ofendam os supervisores, a pena é de um mês de suspensão, e se repetir,
implicará na remoção imediata do fórum O fórum vive graças ao trabalho absolutamente
gratuito dessas pessoas, que exercem o trabalho delas de maneira exemplar, aproveito a
ocasião para agradecer todos elas pelo ótimo trabalho e grande dedicação Disponibilizam
a própria energia, as próprias qualidades, o próprio tempo livre, por amor ao fórum
OBRIGADO OBRIGADO OBRIGADO. Nos posts, a partir de hoje, não terá mais espaço para
as considerações pessoais e os convites para sair ou não com uma garota de programa, e
aquelas clássicas frases encorajantes de sempre “eu voltaria/ não voltaria”, etc. Os
punters vão ter que se contentar em contar as experiencias que tiveram, sem excessos de
detalhes, sejam bons ou ruins, no que diz respeito ao desempenho da garota de programa
que é, e continuará sendo, uma pessoa, um ser humano, que tem seus sentimentos, seus
sonhos, suas desilusões, exatamente como todos vocês, punters. Se você então escrever
coisas ofensivas e maldosas, será imediatamente cancelado e os supervisores serão
avisados (receberá uma advertência), serão verificados e controlados todos os membros
e, serão imediatamente exclusos aqueles que possuem mais de um nickname, e aqueles
suspeitos de escrever em nome do próprio anunciante publicitário do site onde trabalha.
Em relação às garotas de programa, confirmo que é absolutamente proibido escrever, nos
tópicos dedicados a elas, qualquer coisa em relação a modalidade, tempo e qualidade do
desempenho delas, a pena é a exclusão imediata do fórum [post do “fórum da
gostosona”]
As 20 regras de ouro do putanheiro – inédito no “fórum da gostosona”: 1) Se você não
tem experiencia, peça conselhos a seus amigos e conhecidos ou procura informação na
internet sobre os tipos de garota que você pode chegar chegando, e as outras que você
deveria manter a distancia. 2) Fique longe da estação e das prostitutas que trabalham por
ali, vai encontrar só lixo, e em algumas cidades (Prato é uma delas) existe o risco concreto
de ter que pagar 400 euros de multa só porque você parou pra conversar (mesmo a pé,
por exemplo, para perguntar o preço ou fazer um elogio), e também de voltar pra casa de
táxi, porque levaram seu carro (no caso de você estar de carro e parar). 3) Fique longe dos
travestis, estão sempre bêbados e drogados. Muitas vezes praticam extorsão, furtos e
roubos. 4) Seja sempre limpo, gentil e educado. 5) Combine o valor ANTES pelo tempo e
os serviços desejados, se algo não está claro pra você, pergunte para não haver surpresas.
6) Se você é um cliente novo, no primeiro encontro, contente-se com o tratamento
padrão, quando você for um cliente mais conhecido, o tratamento vai melhorar, e você vai
continuar pagando como antes, ou terá até um desconto. 7) Quando estiver em
companhia de uma senhorita, não discuta com ninguém, muito menos com ela. Discutir,
nestas situações, pode colocar em risco a tua segurança e a tua privacidade. 8) Leve
contigo somente notas de 10 e 20 euros, elas nunca tem troco. Prepare o dinheiro antes, e
165
esconde a carteira no painel. Esconda também os óculos de sol, celular, chaves, e outros
objetos que são visados e podem ser roubados pelo valor que eles tem ou simplesmente
pra te fazer um despeito. 9) Não diga em momento algum que você é rico, non mostre
dinheiro ou objetos de valor, inclusive o celular. Se você tem um carro caro, diga sempre
que é emprestado ou que é do chefe da empresa onde você trabalha. 10) Prefira as noites
chuvosas que as noites de tempo bom. Geralmente, em noites assim, a visibilidade é
reduzida e a policia não desce do carro pra controlar um putanheiro. A noite ideal para ter
o campo livre de todo mundo, é durante as grandes partidas de futebol, como as
nacionais. 11) Prefira sempre uma puta que você sempre vê subir e descer de carros, ou
então aquelas onde os clientes estacionam os carros para esperá-las 12) Não sair com
prostitutas que você vê que estão sempre livres e sem clientes. Se ninguém quer, deve ter
um motivo, e eu te aconselho a não descobrir. 13) Não fique bêbado e não use drogas
antes de sair com uma p.. Tem certas situações que requerem tua atenção, então você
tem que estar lucido pra que não te passem a perna, ou mesmo para reagir de fronte a
uma situação de perigo. 14) Se você está mesmo a fim de sair com uma p.. nova, tenha em
mente que você pode estar jogando dinheiro fora, ou que você vai se divertir, em todos os
casos, é um mistério e uma surpresa. No caso de uma situação não satisfatória, tenha um
pouco de dinheiro de reserva para sair com uma puta de tua confiança, para remediar a
noitada. 15) Não se torne motorista particular de uma puta, não vá buscá-la para levar ao
trabalho, ou levá-la a casa. Podem te denunciar por favorecimento à prostituição Ninguém
te proíbe de sair com ela, mas fora do trabalho dela. 16) Se estiver de carro, estacione de
modo tal que você possa sair em caso de problemas, tenha cuidado com lama e as valas
na beira da estrada. Se não conhece o lugar onde ela está te levando, vá com cuidado para
não danificar os pneus e não ficar atolado, assegure-se de que não tem ninguém a te
esperar. 17) Não deixe a garota usar o teu celular, ela pode ligar para criminosos,
traficantes, cafetões e companhia com o teu numero. E mesmo se você esconder o
identificador de chamadas, os telefonemas permanecem nos registros telefônicos 18)
Apague o registro de chamadas, se você ligou pra ela, controla a tua carteira e o seu
conteúdo, celular, enfim, o carro todo. Controle também debaixo dos tapetes, dos
assentos, e nos consoles laterais da porta. Limpe o tapete dos resquícios de lama. A garota
pode ter deixado no teu carro elementos inequivocáveis, tipo a embalagem da camisinha,
a própria camisinha, lencinhos de papel e/ou outras coisas. Controle também o banco do
carro e o encosto de cabeça, pode ter ficado algum cabelo. Limpe o painel de eventuais
vestígios oleosos da camisinha. 19) Se fizer amizade com a prostituta, separe sempre a sua
vida privada do seu trabalho. Trate-a como uma tua boa amiga, que faz um trabalho
qualquer. Mas não se meta na sua vida, mesmo que tenha as melhores intenções. Você
pode acabar entrando no jogo dela, e se dar mal. 20) Lembre-se que sair com uma puta é
como ir ao parque de diversões, quando o dinheiro acaba, acaba também a diversão.
Então, divirta-se e non gaste tudo o que tem, porque ninguém vai te dar credito, se
souberem onde é que está sendo investido. [post Fórum da Gostosona]
A intenção de colocar tais regras, parece responder a varias exigências e, enquanto
alguma destas têm caráter pragmático de gestão de um grande numero de posts e
usuários que participam do fórum, os códigos de conduta contribuem para a
construção do perfil do cliente ideal. A enfase do uso de “boas maneiras” nas relações
com as sex workers, assim como o respeito e a consideração das necessidades das
profissionais, funciona como uma forma de proteção com relação às restrições morais
que filtram, até nas malhas de uma comunidade tão coesa. Neste fórum, é realmente
muito forte intenção de manter uma identidade comunitária especifica e diferente do
"resto do mundo". A primeira demonstração importante disto é o uso extensivo de um
código lingüístico que, na verdade, substitui todos os referimentos às praticas e aos
componentes sexuais, e também traduz os aspectos relativos à dimensão econômica
do dinheiro no comércio do sexo. O uso desta linguagem há, obviamente, uma função
pratica de evasão de possíveis filtros e da indexação pela web, de referencias sexuais
166
explicitas, mas, acima de tudo, é um componente fundamental de uma comunidade
que, através de uma linguagem comum e esotérica, reforça os próprios laços internos,
e compartilha o objetivo “narrativo”, adoçando e embelezando as relações entre
clientes e sex workers.
Agency = Agencia = A acompanhante se apoia a uma agencia
Anal = Sexo Anal= A acompanhante doa seu magnifico traseiro
BJ = Blowjob = Boquete
BBJ = Bareback Blowjob = Boquete descoberto (sem luva)
Bondage = Jogos sadomasoquistas
CID = Cum In Deep = Gozar dentro (raro)
CIF = Cum In Face = vide COF
CIM = Cum In Mouth = Gozada na boca
COB = Cum On Body = Gozada no corpo
COF = Cum On Face = Gozada na cara
Couples = Casais
Covered = Covered blowjob = Boquete protegido (com luva)
DATY = Dinner At The Y = chupar buceta
Deep throat = Garganta profunda (coloca o passarinho todo na boca, até o fim)
Doggie (style) = Sex from behind = De quatro
DP= Double Penetration= Penetração dupla, a garota é penetrada pela frente e por trás,
contemporaneamente
Extra = Taxa suplementar por desempenho opcional
Facial = vide COF
Fetiche = Salto alto e tudo mais
Fisting = Enfiar a mão inteira no primeiro canal (comumente conhecido como buceta)
French kiss (FK) = Kissing with tongue = Beijo de lingua
Full-Service = A acompanhante faz de tudo, e o faz muito bem.
GFE = Girl Friend Experience = Transa intima, como se fosse com a própria namorada.
HJ = Handjob = trabalho de mão = punheta, masturbação
Incall = A garota atende no seu apartamento
Independent = Independente = A acompanhante trabalha por conta, sem ajuda de
agencias
Lesbo show = Joguinhos lésbicos entre as garotas
Missionary (style) = Missionário (posição canônica)
O-Level = Oral sex = Sexo oral
Outcall = Escort visits you = A acompanhante vem até você
Overnight = Dormir com a acompanhante
OWO = Oral Without = vide BBJ
Petting = Preliminares
Pissing = Chuva de ouro (FAZER XIXI NA PESSOA)
PSE = Porn Star Experience = Experiencia como/com uma porno star
Punter = Escort amateur = Acompanhante amadora
Rai1 =Lado A= buceta
Rai2= Lado B= cu
Rate = Preço/Presentinho (€ £ $)
Rose = Preço
Rimming = Anilingus = Brincar com a língua do anus
Sado-Maso= Jogos de dominação: amarrar, pisar, dar e receber dores “prazerosas”
SBB = Sex Between Breasts = pau no meio das tetas (espanhola)
Services = Os serviços oferecidos pela acompanhante
Sex toys = Vibradores, pinto de borracha, bolinhas, etc.
S/M = vide Bondage
Squirting = Jorro/Jato = Ejaculação feminina (de seus líquidos)
69 = A acompanhante faz um boquete enquanto se deixa chupar a buceta
Straight sex =Intercourse = Fazer sexo (transar)
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Strip-tease = A acompanhante tira a roupa pra você
Swallows = Engole o esperma
Touching = Tocar-se, acariciar-se
Tour = A acompanhante vai a uma cidade diferente, gira um pouco.
Vibro show = Jogos com Sex toys (Vibradores e tudo mais)
VU= velocidade urbana = 50 km/h = 50 Euros [post Fórum da Gostosona]
Uma vez definidas, ainda que de forma muito breve, as regras da comunidade do
fórum, o grupo de clientes que decidir compartilhar comentários e opiniões de seus
encontros com as garotas, se analisarmos as conversas, nos faz pensar sobre alguns
aspectos de particular interesse para este trabalho.
Em primeiro lugar, de forma muito acentuada – mesmo comparando com as
entrevistas coletadas – existe essa tendencia de enfeitar as condições de vida e de
trabalho das prostitutas. As sex workers são também chamadas de “garotas de
programa” ou “acompanhantes”, com claro referimento às dimensões do auto
empreendedorismo e da liberdade de escolha. No geral, a questão da exploração é
tratada de forma ambígua, considerando que, no fórum tem sempre apelos à denuncia
de toda e qualquer situação de exploração (mesmo potencial) observada pelos clientes
que, porém, concordam com a subestimação do fenômeno, e então, a leitura sobre
este tema se torna decididamente parcial.
Na Itália, a prostituição não é crime, e em 97% dos casos, é uma liberdade de escolha da
mulher. Somente 20% (de acordo com outros dados, até 10%) das pessoas que se
prostituem, são vitimas (normalmente estrangeiras, se trata de mulheres que são trazidas
pra Itália com a ilusão de um emprego digno).[post Fórum da Gostosona]
Fico contente que somente uma minima parte seja obrigada a se prostituir... Espero que
algum dia, todas as mulheres tenham liberdade de escolha... Uma flor à todas as Nossas
Amigas [post Fórum da Gostosona]
Vender o próprio corpo tem suas vantagens em comparação ao trabalho dependente:
- Ninguém pode te mandar embora
- Mesmo que você tenha que pagar o ponto na rua, ou o apartamento, o resto dos ganhos
são teus e você administra como quer
- Não precisa pagar impostos
- Aceita dinheiro e não precisa fazer fiado aos clientes
- Você pode declarar às autoridades fiscais que não tem dinheiro (mas corre o risco de ser
descoberta)
- Tem o poder de "manter sob controle", a nível psicológico, os clientes
- Você pode fazer extorsão e chantagem com alto risco de sucesso e imunidade
- Este setor é forte!!! (No sentido que está sempre em aumento, não é?..) [post Fórum da
Gostosona]
Depois a gente reclama da taxa de desemprego, quando faltam enfermeiras, por exemplo.
Porque não tente oferecer uma OTR/Acompanhante como enfermeira pro teu avô..
imagina o que eles responderiam!! [post Fórum da Gostosona]
Mesmo os aspectos relacionados às transações econômicas são retirados, a sigla VU
(“Velocidade Urbana”) corresponde ao valor de 50 euros, e as metáforas que se
referem aos presentinhos (“flores”, “rosas”, etc), são utilizadas para disfarçar
simbolicamente a aquisição do serviço. Neste contexto, as razões pelas quais
trabalham as sex workers, são muitas vezes carregadas de significados
168
complementares àquele puramente econômico: em particular modo, as descrições de
uma sexualidade insaciável como método de avaliação das garotas em questão Alguns
trechos dos comentários do fórum mostram essa tendência:
[…] Ligo pra ela, marco o encontro e chego no lugar combinado. Me faz esperar alguns
minutos porque tem outro cliente saindo, a esse ponto, é a minha vez. Me abre a porta,
entro... bum... NAO E' ELA, não é a garota da foto.. mas já tinha me preparado pro pior,
então passo ao plano B, isto é, visto que não é a garota, saio com essa mesmo, ou não?
Olho bem pra ela, de cima em baixo.. acho que rola, então, fiquei. Ela é loira, cabelos
compridos, gostosa, curvas redondinhas, e alta 1,65 m. Ela estava sem salto, e com um
vestido bem recatado, quase toda coberta. Aí vocês me perguntam, o que foi que me
convenceu a ficar com ela? Foi aquela cara de biscate endemoniada, ninfomaníaca, com
uma bocona e dois olhos grandes, que me deixavam de pau duro a 10 metros de distancia.
Nem tive tempo de tirar a roupa e tomar um banho, que ela já começou um BBJ profundo
e salivoso, como se deve. Durante o serviço, a pedido meu, ela começa a cuspir na cabeça
do meu pau, e a chupar muito, com aquela boquinha perfeita (ela também tem piercing
na língua, e uma pinta muito charmosa, um mix perfeito). Depois de ter me colocado o
preservativo, começamos a RAI1 de quatro, poi a missionary (desempenho normal),
depois, lhe digo que quero entrar em RAI2, mas ela me diz que naquele momento não vai
rolar porque vai doer (disse que eu tenho o pau grande... bahhhhhhh) e poderia até rasgar
a camisinha... eu quase comecei a rir, nunca ouvi isso... então tentamos, e depois de ter
entrado metade do pau, ela me diz “PÀRA”, nada de RAI2. Então voltamos pra posição
“doggie” mais um pouco, daí ela tira a minha camisinha, e continua trabalhando bem com
a mão/ boca, deixando bem molhadinho, com cuspe em boca, e o pau que escorrega até o
fim daquela boca gostosa, mas sem engolir. [post Fórum da Gostosona]
[…] posso garantir que a garota é endemoniada, se ela for com a tua cara… [post Fórum da
Gostosona]
[…] a verdadeira M. não existe mais (era endemoniada de verdade... acho que é até um
pouco ninfomaníaca). [post Fórum da Gostosona]
A possibilidade de objetivação das sex workers é essencialmente ilimitada, no contexto
do fórum, e isto permite, entre outros aspectos, uma tendencia ao rotulamento
“étnico” das prostitutas
Olá a todos os amigos do fabuloso mundo made in China. Hoje tenho como companhia a
seguinte gueixa: […] Atitude: infelizmente, não é a especialidade da casa, é bem friinha No
entanto, emite alguns gemidos de prazer entre um golpe e outro […] Deixa muito a
desejar. Piadinha: quando cheguei ali, senti um fedor de peixe frito, tanto é que estava
sem coragem de abrir a porta de entrada. Mas, no geral, o preço, a vontade que eu tava
de pegar uma chinesinha, estava disposto a fazer este sacrifício [post Fórum da
Gostosona]
Olá a todos. Refaço o convite, alguém pode me ajudar a achar uma sul-americana saliente
que não seja aquelas putas profissionais de sempre, mas alguma que faz de vez em
quando, pra ajudar a pagar as contas no fim do mês. [post Fórum da Gostosona]
Alta, magra, corpaço de uma gazela africana, pernas bonitas, seios delicados, traseiro que
poderia satisfazer até os gostos mais difíceis, rostinho bonito com lábios que parecem ter
sido feitos para fazer feliz os nossos pintinhos. Se deixa tocar, mas me diz para não chupar
seus mamilos, mas nem me passava pela cabeça, mesmo porque, a higiene das garotas
africanas não é uma coisa que vem em primeiro lugar, BJ bem feito, com camisinha bem
fininha, e não aqueles pedaços de borracha chines, buceta quase selvagem, “doggie” e
169
“missionary”. […] Já era hora que as black girls começassem a trabalhar melhor... com o
corpo que elas tem, trabalhar mal é até pecado.. Talvez seja uma questão de
nacionalidade: as nigerianas são menos educadas que as de Gana... sei lá.. não sou um
esperto de cultura africana.. Ou talvez, mais provavelmente, se ligaram que não poderiam
continuar desse jeito.. Normalmente, quando uma afrodescendente me pára e insiste, no
final eu digo “ não, não saio com africanas”; as que entendem o que eu disse, me
perguntam o porquê, e eu respondo “porque vocês trabalham mal”.. sei lá. se elas
escutassem isso duas, três, quatro.. 20 vezes, quem sabe começam a entender algumas
coisas..[post Fórum da Gostosona]
Aproveitando-se de uma forma adicional de espelho útil na encenação dos aspectos
desejados da própria masculinidade, essa revisão e elaboração de relatórios de
encontros com profissionais do sexo se torna uma oportunidade para sublinhar o seu
próprio poder viril, dando origem a narrativas onde o ponto de vista parece prevalecer
sobre o desempenho sexual do homem, e não das sex workers. Deste modo, estorias
começam a tomar formas que, por causa de sua forte conotação performativa,
parecem responder aos questionamentos da masculinidade hegemônica. Em outras
palavras, diante de um mundo em constante mudança, e onde o papel do macho é
que está em crise, a comunidade do fórum se torna um lugar que “protege” e mantém
as representações tradicionais de uma masculinidade que, provavelmente na vida
offline, não encontra o reconhecimento desejado.
Vou contar pra vocês uma das minhas experiencias com L., depois de ter saído com ela
uma dezena de vezes. Trata-se de uma potrancona violenta, algo que inspira putaria. E
assim foi. Entro no apartamento, e ela me recebe com um FK que faz levantar qualquer
defunto. Me lavo rapidamente, dai eu faço ela ajoelhar pra eu poder apreciar a sua
carinha enquanto me chupa. O meu instrumento é grosso, e ela tinha quase dificuldade de
mantê-lo em sua boca, mas o buraco é mais em baixo.. Continuo assim por uns dez
minutos, daí decido que é chegada a hora de vestir a camisinha e começar a transar com
ela. E então, beijando-a, fazemos a mission (missionary), daí eu a viro e, com força, meto
minha broca na rai1. Aí chega o momento top: ponto rai2, particularmente estreito,
naquele momento ela me olha, como se pedisse pra não fazê-lo, dado o tamanho. Vocês
podem imaginar o quanto eu estava excitado: devagarinho vai entrando, e então começo
a dar um ritmo. Ela sofre um pouco, mas depois vai se soltando, e agora posso meter
sempre mais forte, e mais violentamente. Ela também está excitada e, a este ponto, pra
completar a ópera, decido de ir até o fim desta brincadeira de ator pornô: me levanto, tiro
a camisinha e a faço ajoelhar e começo a foder na boca dela. Estou quase gozando e, sinto
que ela esta pensando que eu vou me descarregar com um CIM mas, no auge, eu seguro a
cabeça do meu pinto com a mão esquerda, tiro e encho a sua linda carinha com uma
incrível quantidade de “leite”. Aprecio a sua carinha toda branquinha, e com o
instrumento ainda em tensão, o esfrego na sua boca, tentando abri-la para ver..se ela vai
querer me limpar com a boca. Não, ela decide de não, já fez demais por míseros .. VU.
Fomos nos lavar: ela vai pro banho, e na porta, me pergunta: “Quando você vai voltar?”
“Caramba”, digo a ela, “ você ainda não está satisfeita?”. Ela faz sinal de “não“, segura nas
minhas calças e si passa a língua nos lábios No dia seguinte, voltei pra encontrá-la..
Cara***, que trepada!!!! [post Fórum da Gostosona]
Deste modo, os homens hiper- performantes usam estrategias de resistência simbólica
para se proteger dos “ataques” que eles acreditam sofrer do mundo exterior;
particularmente, os inimigos comuns – aos quais o antagonismo é tradicionalmente
usado para fortificar os laços da comunidade – são encontrados no mundo dos
170
“politicamente corretos”, em outros homens que não são clientes (chamados de “ não
punter”) e, sobretudo, no mundo feminino, aquele não disponível ao mercado do
sexo.
Acho que cada um de nós já ouviu esta frase sair varias vezes da boca destes non punter
anônimos, que acreditam ser os fodões, dizendo que estão cercado de mulheres (mas
ninguém lembra de tê-los visto com uma sequer), e cada vez que o assunto é “encontros
mercenários”, fazem questão de deixar claro, segundo o ponto de vista deles, que quem
sai com prostituta, é um perdedor. Sabemos que as coisas não são bem assim, que muitos
punter (quase todos) são casados, ou tem namorada e tal, que vão à encontros a
pagamento também muitos homens que poderiam ter a mulher que quisessem (e sem
precisar pagar), tipo jogador de futebol, atores, apresentadores de TV, etc, mas se nos
basarmos somente nas declarações da maior parte dos homens, teremos que concluir
que, “oficialmente”, quando é a pagamento, ninguém vai. Ou melhor, ninguém fala que
vai, mas depois você dá um role pela cidade, e nota que a garota sai do carro de um
punter e já entra em outro. Até aqui, nada de excepcional, claro que ninguém coloca
cartazes pra dizer que pratica tal hobby. Porém, ao invés de defender um certo ponto de
vista, dizendo frases digna de um pseudo homem (que quando são ditas por certas
pessoas, é até engraçado), não seria mais inteligente dizer: “não saio com garotas a
pagamento porque: não gosto/ não tá a fim/ não me interessa, mas respeito quem pensa
diferente de mim”, concorda? Nem.. utopia. [post Fórum da Gostosona]
Eu sempre digo.. 90% das gostosas acabam virando putas, 90% das feiosas acabam
virando esposas... 90% dos maridos procuram as putas, porque os outros 10% procuram
os travecos... é sério isso... é porque vivemos num país de pessoas politicamente corretas,
e então “pagar pra sair com mulher” parece uma coisa marginalizada e que menospreza a
virilidade. [post Fórum da Gostosona]
A construção do próprio perfil, em termos de hiper virilização, representa um fator
quase que geral, por como os usuários do fórum da Gostosona participam à
comunidade; principalmente se, como vimos, existirem aqueles aspectos relativos à
própria performance (com particular referencia ao tamanho do pênis) e à própria
potencia sexual a serem narradas, e mesmo a escolha do nickname de inscrição ao site
e seu avatar, parecem ter a mesma lógica A escolha, neste contexto, é decididamente
ampla – tentam se “vender”: “TeoGato”, “Durão69”, “AmassaBatata”, “Goldman_Sex”,
“Garanhão”, “Paulofode” - mas o aspecto mais interessante é a utilização conjunta, ou
seja, nick e avatar, com diferentes referimentos explícitos e representações irônicas e
quase ingênuas, como se quisessem representar o que são, em um contexto simbólico
entre auto-ironia e autopromoção Deste modo, se mantém aberta a possibilidade de
exprimir posições e pontos de vista até bem violentos, e utilizando, quando necessário,
a justificação para a incompreensão da própria brincadeira de mal gosto. Alguns
exemplos de avatar mostram como, no momento da escolha, eles passam de uma
imagem de cavalheiros (da távola redonda) e brigantes, a uma situação do tipo com
harém e animais que se acasalam, até chegar em imagens onde o domínio masculino é
simbolizado através de referimentos explícitos sobre a violência contra as mulheres.
171
Alguns exemplos de avatar do Fórum da Gostosona
Dentre todos os aspectos, talvez aquele mais legível “nas entrelinhas” das entrevistas,
e que no fórum encontra a sua máxima expressão, é o aspecto relativo ao
compartilhamento de esteriótipos relacionados ao mundo feminino. O Fórum da
Gostosona é uma fonte muito rica neste sentido, há inúmeros referimentos às
segundas intenções, que algumas das “não a pagamento” visam com ganância e
cinismo, em um contexto onde a mulher, antagonista, age em diversos níveis de
disputa de papeis dominantes homens. A dimensão do cortejo e da sedução, na logica
deste contexto, é reinterpretado como a primeira oportunidade para extorquir
dinheiro, atenção e favores de homens mais ingênuos, em uma escala que representa
o casal estável – principalmente as casadas – como grau máximo de “castração” e
desvalorização do super macho.
Te digo uma coisa: é mais barato sair com uma garota de programa do que com a
namorada. [post Fórum da Gostosona]
A mulher que custa menos é aquela que você paga na hora. [post Fórum da Gostosona]
A mulher que você não paga, você não sabe o quanto ela te custa! [post Fórum da
Gostosona]
Eu comecei, ainda casado, em idade relativamente avançada, porque a minha ex mulher
não me dava mais! Estava sempre muito ocupada a gastar (o meu dinheiro!) e a fritar o
cérebro fazendo meditação e outras besteiras. Daí, depois da separação, eu tava
conversando com um amigo, e chegamos a conclusão que ter uma namorada estável é
pura utopia, a menos que você decida se transformar num caixa eletrônico, ainda por
cima, sem senha!!! [post Fórum da Gostosona]
Saio com garotas a pagamento porque, no momento, não encontro uma que não seja, e
também porque as que me aparecem, não são assim tão atraentes e então, ou eu fico
com uma só pra desafogar, e este lance de “só de vez em quando” acho que elas não
aceitariam, ou então vou ter que me contentar de nunca ser fiel a elas. [post Fórum da
Gostosona]
A razão essencial pela qual eu saio com as garotas de programa, diria que é por causa do
meu grande tesão.. sou muito fogoso, e isso me leva a buscar sexo com frequência Se
unirmos a tudo isso o meu grande defeito, como já descrito em um outro 3d, ou seja, a
preguiça, agora é só resolver a questão. Esta preguiça somada ao fato que, muitas vezes
as amantes/ namoradas te dão trabalho e problemas de vários tipos, me levou em todos
estes anos, a discar sempre, com mais frequência, o numero de telefone de uma garota de
programa do que de uma garota “normal”... mas na verdade, o mais importante é que
seja uma boa foda, independentemente se foi obtida com dinheiro ou por outros meios...
[post Fórum da Gostosona]
As mulheres, todas as mulheres, custam! Custam dinheiro, custam tempo, custam o
sentimento.... custam! Existe somente um valor a ser considerado, a dignidade... esta
deve ser bem mantida, o dinheiro gira.. vai e vem, não especulo sobre números que, no
fim das contas, não fazem mudar a vida .. mas com dinheiro você garante um minimo de
distanciamento... O tempo não volta, mas em certos jogos, se você quiser jogar, tem que
se empenhar. Os sentimentos são o lado perigoso, devem ser sentidos para haver
172
satisfação, porém controlados para proteger a dignidade. É um jogo perigoso, mas o que é
a vida se não um jogo? [post Fórum da Gostosona]
3.7. Conclusões
Este relatório foi construído, procurando manter uma orientação principal: abandonou
propositadamente a “busca da verdade”, no que diz respeito às praticas e habitudes
dos clientes, para concentrar-se em suas “performances”. Conhecer a gramatica
através da qual, os clientes contam suas aventuras – seja diretamente, nas entrevistas,
seja de maneira “anonima” e “amplificada”, nos posts do fórum – nos permite pensar
sobre quais são os aspectos que, mais do que outros, são considerados cruciais em
representar um certo tipo de masculinidade, que em várias fases deste trabalho foi
definida como masculinidade “hegemônica” (Connell e Messerschmidt, 2005). Alguns
condicionamentos culturais parecem de fato envolver, de forma transversal, tipos de
pessoas até muito diferentes do ponto de vista de sua classe ou status social. O grupo
de homens entrevistados, por exemplo, se caracterizou pela sua heterogeneidade em
termos de status: foram entrevistadas pessoas de diferentes idades, com nível de
escolaridade muito variado (desde o primário até os de pós graduação), profissões
divergentes (desde barista até professor) e diversas situações sentimentais. Mas,
acima de tudo, os homens envolvidos na pesquisa, mostraram diferentes perfis de si
mesmo, como clientes, delineando uma frequência que vai desde clientes assíduos aos
esporádicos, chegando a casos que a experiência do sexo a pagamento aconteceu
poucas vezes. Apesar desta heterogeneidade, no entanto, foi possível encontrar
pontos em comum entre as visões reconstruídas através das entrevistas e,
provavelmente, teriam compartilhado os mesmos estereótipos se entrevistássemos
alguns representantes da população dos “ não clientes”. Em particular, quando se trata
de falar sobre a questão da “cidadania” feminina – e aos seus relativos desejos – é que
os condicionamentos culturais intervém de modo a uniformizar as visões do senso
comum, porque o imaginário erótico é vivido por todos, homens e mulheres, clientes e
não clientes, e constitui aquela ideia na qual os indivíduos se formam como homens e
como mulheres, e é neste contexto que se reforçam ideias como aquela da
sexualidade masculina como uma válvula de escape e da sexualidade feminina como
uma sexualidade servil. Se, portanto, o mercado do sexo aparece incorporado na
sociedade e em seus modelos culturais, em seus processos de construção social do
masculino e do feminino, e no imaginário erótico pré-confeccionado, então, para
combater o trafico e o turismo sexual, seria apropriado desconstruir tais modelos e
refletir sobre como a gramatica do prazer – que aceita o desejo masculino como um
impulso – desresponsabilize a “masculinidade hegemônica” e legitime algumas de suas
praticas.
173
Anexação 1
174
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