baixa - Avatares Antenados
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A PRESENÇA DO ROMANESCO NO CINEMA ITALIANO DO PÓS-GUERRA LUCIANA DE GENOVA RIO DE JANEIRO 2016 A PRESENÇA DO ROMANESCO NO CINEMA ITALIANO DO PÓS-GUERRA LUCIANA DE GENOVA Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos; opção: Língua Italiana). Orientadora: Professora Doutora Annita Gullo RIO DE JANEIRO Fevereiro 2016 FICHA CATALOGRÁFICA De Genova, Luciana. A presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra /Luciana De Genova. – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2015. 173f. : 30 cm Orientadora: Annita Gullo Dissertação (mestrado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016. Referências Bibliográficas: f. 167-173. 1. Romanesco. 2. Variação diafásica. 3. Roma città aperta. 4. Il sorpasso. 5. Viaggi di nozze. 6. Cinema italiano do pós-guerra. I. Gullo, Annita. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. A presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra. A PRESENÇA DO ROMANESCO NO CINEMA ITALIANO DO PÓS-GUERRA LUCIANA DE GENOVA Orientadora: Professora Doutora Annita Gullo Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos; opção: Língua Italiana). Examinada por: ___________________________________________________________________________ Presidente, Professora Doutora Annita Gullo - FL/UFRJ __________________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Lizete dos Santos - FL/UFRJ ______________________________________________________________________ Professor Doutor Rafael Ferreira da Silva - UFC ______________________________________________________________________ Professor Doutor Carlos da Silva Sobral - FL/UFRJ ______________________________________________________________________ Professor Doutor William Soares dos Santos - FE/UFRJ RIO DE JANEIRO Fevereiro 2016 RESUMO A presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra. Luciana de Genova Orientadora: Professora Doutora Annita Gullo Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos; opção: Língua Italiana). Esta dissertação propõe observar a presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra. O corpus a ser examinado é constituído por recortes de diálogos transcritos de três filmes italianos de diferentes períodos: Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini; Il sorpasso (1962), de Dino Risi; e Viaggi di nozze (1995), de Carlo Verdone. A escolha deste corpus tem como objetivo geral observar as mudanças e a evolução do uso desta variedade linguística no cinema, tendo como base teórica os estudos de Sergio Raffaelli (1992) e Eusebio Cicotti (2001). Quanto ao aspecto metodológico, Fabio Rossi (1999) nos dá apoio para a identificação do critério de coleta e tratamento dos dados. Com base nesses estudos, o critério de seleção será a escolha dos fenômenos fonéticos, considerados reveladores da variação diafásica; a frequência de tais traços permitirá identificar o nível de formalidade/informalidade dos diálogos dos atores (fala fílmica) de cada filme e verificar se há a presença do continuum linguístico romano. Para o estudo sobre as características e a evolução do romanesco, temos ainda as contribuições de Tullio De Mauro (1993) e Pietro Trifone (1992, 2008), que nos auxiliarão na identificação dos traços fonéticos desta variedade presentes nas falas fílmicas, objeto principal de nossa pesquisa. Palavras-chave: romanesco, variação diafásica, Roma città aperta, Il sorpasso, Viaggi di nozze, cinema italiano do pós-guerra. RIO DE JANEIRO Fevereiro 2016 RIASSUNTO A presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra. Luciana de Genova Orientadora: Professora Doutora Annita Gullo Riassunto da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos; opção: Língua Italiana). Questo studio propone di osservare la presenza del romanesco nel cinema italiano postguerra. Il corpus che verrà esaminato è costituito da ritagli di dialoghi trascritti di tre film italiani di differenti periodi: Roma città aperta (1945), di Roberto Rossellini, Il sorpasso (1962), di Dino Risi e Viaggi di nozze (1995), di Carlo Verdone. La scelta di questo corpus ha l‘obbiettivo generale di osservare le variazioni e l‘evoluzione dell‘uso di questa varietà linguistica nel cinema, avendo come base teorica gli studi di Sergio Raffaelli (1992) e di Eusebio Cicotti (2001). Per quanto riguarda l‘aspetto metodologico, Fabio Rossi (1999) ci supporta nella identificazione del criterio di raccolta e trattamento dei dati. Sulla base di questi studi, il criterio di selezione sarà la scelta di fenomeni fonetici considerati rivelatori della variazione diafasica; la frequenza di tali tratti permetterà di identificare il livello di formalità/informalità dei dialoghi degli attori (parlato fílmico) di ogni film e di verificare se siamo in presenza di continuum linguistico romano. Per quanto riguarda lo studio sulle caratteristiche e l‘evoluzione del romanesco, possiamo contare sui contributi di Tullio De Mauro (1993) e Pietro Trifone (1992, 2008), che ci aiuteranno nel processo di identificazione dei tratti fonetici di questa varietà linguistica presenti nel linguaggio filmico, oggetto principale della nostra ricerca. Parole-chiave: romanesco, variazione diafasica, Roma città aperta, Il sorpasso, Viaggi di nozze, cinema italiano post-guerra. RIO DE JANEIRO Fevereiro 2016 ABSTRACT A presença do romanesco no cinema italiano do pós-guerra. Luciana de Genova Orientadora: Professora Doutora Annita Gullo Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos Neolatinos; opção: Língua Italiana). This study aims to observe the presence of the ―Romanesco‖ (Romanesque) in the Italian cinema from the Second World War to the present day. The corpus under examination consists of transcribed dialogues clippings of three Italian films from different periods: Roma città aperta (1945) by Roberto Rossellini, Il sorpasso (1962), by Dino Risi and Viaggi di nozze (1995), by Carlo Verdone. The choice of this corpus has the general objective of observing the changes and developments in the use of this linguistic variety in the movies, having as theoretical basis the studies of Sergio Raffaelli (1992) and Eusebio Cicotti (2001). For the methodological aspect, Fabio Rossi (1999) gives us support in the identification of criteria for the data collection and data processing. Based on these studies, the selection criteria will be the choice of phonetic phenomena, that could be considered useful for revealing the diaphasic variation; the frequency of such traits will allow to identify the level of formality / informality of the dialogue of the actors (―fala fílmica‖: movie speaking) of each film and to verify if there is the presence of the Roman linguistic continuum. For the study of the characteristics and evolution of the ―Romanesco‖, we still have the contributions of Tullio De Mauro (1993) and Pietro Trifone (1992, 2008), which will assist us in identifying the phonetic features of this variety present in the movie speaking, main object of our research. Keywords: romanesco, diaphasic variation, Roma città aperta, Il sorpasso, Viaggi di nozze, postwar italian cinema. RIO DE JANEIRO Fevereiro 2016 AGRADECIMENTOS A meus pais, por terem sempre feito de tudo para me dar a possibilidade de estudar. À minha mãe Janete, que sempre acreditou em mim, apoiando-me sempre, mais do que qualquer pessoa, apesar da distância que nos separava. À minha saudosa avó Irene Leão, que sempre me deu lições de doçura e bondade. À Annita Gullo, que me acolheu tão bem e me aceitou como sua orientanda. Pela paciência, pelo auxílio e pelas ideias e sugestões valiosas que direcionaram esta pesquisa. Ao meu marido e companheiro, Marco, por ter entendido os meus momentos de ausência, pelas horas dedicadas à revisão das transcrições dos filmes, pelos incentivos e pela paciência nos momentos de desabafo. Aos meus filhos Felipe e Henrique, que compreenderam a minha ausência como mãe e me ajudaram nos momentos mais difíceis. À Leyda, por ser mais que uma amiga, imprescindível para a realização das edições dos três filmes do corpus. À Professora Doutora Maria Lizete dos Santos, ao Professor Doutor Rafael Ferreira da Silva e ao Professor Doutor William Soares dos Santos, que aceitaram gentilmente participar desta banca. A todos os Professores que me ajudaram a refletir sobre os rumos desta pesquisa, mas em especial à Professora Doutora Maria Lizete dos Santos, pelo auxílio intelectual e pela disponibilidade nestes dois anos de Mestrado. Aos colegas Maria Lucilene Moreira Alves, Vitor da Cunha Gomes, Jefferson Evaristo e Larissa Arruda, pelo suporte e companheirismo. À CAPES, pela bolsa de estudo que financiou esta pesquisa. Dedico esta Dissertação de Mestrado: aos meus pais, João de Genova e Janete Luiza da Silva, aos meus filhos, Felipe Ristuccia e Henrique Ristuccia, e ao meu marido, Marco Saverio Ristuccia. LISTA DE TABELAS Tabela Tabela 1: Diferenças entre comunicação escrita, falada e fílmica Tabela 2: Traços fonéticos do personagem Pina no filme Roma Città Aperta Tabela 3: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Roma città aperta Tabela 4: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos do filme Roma città aperta Tabela 5: Traços fonéticos do personagem Bruno no filme Il sorpasso Tabela 6: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Il sorpasso Tabela 7: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos no filme Il sorpasso Página 87 108 112 114 132 134 137 Tabela 8: Traços fonéticos do personagem Ivano do filme Viaggi di nozze 152 Tabela 9: Traços fonéticos do personagem Giovannino no filme Viaggi di nozze 153 Tabela 10: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Viaggi di nozze Tabela 11: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos no filme Viaggi di nozze 157 159 LISTA DE FIGURAS E GRÁFICOS Figura Figura 1: Exemplo do uso do programa AntConc 3.4 4w Gráfico Página 95 Página Gráfico 1: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 1 110 Gráfico 2: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 2 111 Gráfico 3: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 3 111 Gráfico 4: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 1 115 Gráfico 5: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 2 115 Gráfico 6: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 3 116 Gráfico 7: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 1 133 Gráfico 8: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 2 134 Gráfico 9: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 3 134 Gráfico 10: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 1 138 Gráfico 11: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 2 138 Gráfico 12: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 3 139 Gráfico 13: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 1 Gráfico 14: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 2 Gráfico 15: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 3 155 156 156 Gráfico 16: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 1 160 Gráfico 17: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 2 161 Gráfico 18: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 3 161 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 14 1 LÍNGUA E CINEMA ITALIANO A PARTIR DO PÓS-GUERRA.................................... 17 1.1 Alguns conceitos fundamentais ................................................................................................... 17 1.2 A relação da língua com o cinema italiano ................................................................................. 30 1.2.1 Língua italiana e dialetos antes do Neorrealismo ................................................................. 31 1.2.1.1 Os anos de ―Freddi‖ ...................................................................................................... 33 1.2.1.2 Os anos de guerra .......................................................................................................... 34 1.2.2 Língua italiana e dialeto no cinema italiano do pós-guerra .................................................. 35 1.2.2.1 Dialetalidade imitativa – Neorrealismo (1945-1952) .................................................... 35 1.2.2.2 Dialetalidade estereotipada – Neorrealismo rosa (1952-1962) ..................................... 45 1.2.2.3 Dialetalidade expressiva e reflexa (1962–final dos anos 1980) .................................... 49 1.2.2.4 Os últimos anos ............................................................................................................. 54 2 O ROMANESCO E SUA EVOLUÇÃO ................................................................................ 61 2.1 Das origens ao século XIV .......................................................................................................... 62 2.2 Séculos XV E XVI ...................................................................................................................... 65 2.2.1 A toscanização do século XV ............................................................................................... 65 2.2.2 A variação de registro e de classe na Roma do século XV .................................................. 66 2.2.3 A ―língua cortesã‖ ................................................................................................................ 69 2.2.4 Os efeitos linguísticos do Saque de 1527 ............................................................................. 69 2.3 Do século XVII à unificação ....................................................................................................... 70 2.3.1 Língua e dialeto no teatro romanesco do século XVII ......................................................... 71 2.3.2 Os romanos Peresio, Berneri e Micheli ................................................................................ 72 2.3.3 Giuseppe Gioachino Belli .................................................................................................... 72 2.4 Da unificação até os dias atuais................................................................................................... 73 2.4.1 Um modelo de língua burguesa ............................................................................................ 74 2.4.2 As principais variedades do repertório romano de hoje ....................................................... 77 2.4.3 O neorromanesco juvenil ..................................................................................................... 81 3 METODOLOGIA DA PESQUISA ....................................................................................... 83 3.1 Aspectos teórico-metodológicos ................................................................................................. 83 3.1.1 Observações sobre as transcrições e citações dos filmes ..................................................... 90 3.2 Coleta e tratamento dos dados ..................................................................................................... 94 4 ANÁLISE DO CORPUS ....................................................................................................... 97 4.1 Roma città aperta ........................................................................................................................ 97 4.1.1 Ficha técnica......................................................................................................................... 97 4.1.2 Sinópse de Roma città aperta............................................................................................... 97 4.1.3 Comentário linguístico ......................................................................................................... 98 4.1.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Roma città aperta ....... 112 4.2 Il sorpasso ................................................................................................................................. 116 4.2.1 Ficha técnica....................................................................................................................... 116 4.2.2 Sinópse de Il sorpasso ........................................................................................................ 116 4.2.3 Comentário linguístico ....................................................................................................... 117 4.2.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Il sorpasso................... 134 4.3 Viaggi di nozze .......................................................................................................................... 139 4.3.1 Ficha técnica....................................................................................................................... 139 4.3.2 Sinópse de Viaggi di nozze ................................................................................................. 139 4.3.2 Comentário linguístico ....................................................................................................... 140 4.3.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Viaggi di nozze ............ 157 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 162 6 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 167 14 INTRODUÇÃO O principal interesse deste estudo é observar a presença do romanesco, a variedade dialetal urbana de Roma, no cinema italiano a partir da Segunda Guerra Mundial até os dias atuais. Tal observação será feita através da análise de uma seleção de falas fílmicas (diálogos dos atores) em romanesco extraídas de três filmes italianos de diferentes períodos históricos: Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini; Il sorpasso (1962), de Dino Risi; e Viaggi di nozze (1995), de Carlo Verdone. O desejo de estudar a relação existente entre o romanesco e o cinema do pós-guerra surgiu a partir da nossa experiência em Roma, onde, ao longo dos treze anos de nossa permanência, pudemos ter contato com as diferentes variedades que compõem o repertório linguístico romano. Essa longa permanência em Roma sempre foi marcada por interrogações no que se refere à complexa realidade linguística italiana. Neste contexto, pudemos nos deparar com vários dialetos, que se diferenciam conforme a região, compondo um quadro de grande riqueza cultural, reflexo da mosaica identidade italiana. Ao mesmo tempo, surgia uma questão intrigante: a questão do emprego de muitas variedades linguísticas no cinema italiano, com a predominância do romanesco. Todas estas interrogações traduziram-se no interesse ainda maior pela cultura italiana e pelos seus aspectos linguísticos, consolidando-se, anos depois, em um estudo sobre a identidade italiana que fizemos com nossa orientadora, a Profª Drª Annita Gullo, através da disciplina Papel da língua na constituição da identidade, cursada como aluna especial no ano 2013. A partir desta experiência, fundamental para a escolha do tema da nossa pesquisa, o nosso olhar voltou-se sempre mais para a possibilidade de reunir todas as nossas indagações e tentar elucidá-las através do cinema italiano, dada a sua particular relevância como propagador da língua italiana na Itália pós-unitária, além de sua efetiva contribuição para a consciência da presença dos dialetos no país, como atestado por Tullio De Mauro (1995). No que diz respeito à frequência do romanesco no cinema italiano, pudemos notar a presença dessa variedade com tendência a tornar-se predominante na cinematografia italiana, já na primeira metade do século XX, através da popularidade dos atores Aldo Fabrizi e Anna Magnani, seguidos por Alberto Sordi, dentre outros. De fato, em certas situações comunicativas, quase sempre informais, não nos foi raro ouvir de amigos romanos, e também de italianos de outras regiões, frases de filmes pronunciadas por atores como Alberto Sordi e 15 Carlo Verdone, o que pode comprovar que tais códigos linguísticos tenderam sempre mais para a projeção nacional, superando as barreiras geográficas. Partindo desses pressupostos, caminhamos para a descrição do nosso trabalho, que será dividido em cinco capítulos. No primeiro capítulo, apresentaremos alguns dos conceitos que serão tratados nesta dissertação, a partir da sociolinguística, tais como: variedades linguísticas, língua, dialeto, língua standard, língua neostandard ou italiano médio, continuum linguístico, entre outros fundamentais para o entendimento da realidade sociolinguística italiana. Para isso, contaremos com as contribuições de Gaetano Berruto (1995, 2015), Ugo Vignuzzi (1994), Tullio Telmon (1993), Michele Cortelazzo (1992). Também examinaremos algumas relações existentes entre língua italiana, dialeto e o cinema do pós-guerra, com foco no romanesco, tendo como suporte teórico os estudos de Tullio De Mauro (1989, 1995), Sergio Raffaelli (1985, 1986, 1992), Gian Piero Brunetta (2001), Fabio Rossi (1999, 2006, 2007), Antonella Stefinlongo (2012), Eusebio Ciccotti (2001), entre outros. No segundo capítulo abordaremos os pontos principais da história linguística de Roma, assim como da evolução do romanesco. Como base teórica, utilizaremos os trabalhos de Tullio De Mauro (1989, 1995), Pietro Trifone (1992, 2008), Paolo D‘Achille (2012), Antonella Stefinlongo (2012), entre outros estudiosos do tema. Além disso, trataremos da questão das variedades que compõem o continuum linguístico romano, que será relevante para a identificação do grau de formalidade/informalidade das falas fílmicas (diálogos dos atores). No terceiro capítulo, trataremos dos aspectos metodológicos que servirão de base para a análise do nosso corpus. Partiremos das contribuições de Fabio Rossi (1999), no que se refere à definição de fala fílmica, bem como das suas características com relação à fala espontânea e à fala escrita. O método utilizado pelo estudioso na análise dos filmes consiste na identificação da frequência de alguns fenômenos fonéticos, morfossintáticos e lexicais, de um ponto de vista linguístico, e não semiológico, nem estético. Convém destacar que, para o presente trabalho optamos por fazer um recorte da metodologia proposta por Rossi, focando, assim, somente na identificação dos traços fonéticos para a identificação do grau de formalidade/informalidade da língua usada, ou seja, a variação diafásica. Além dos estudos acima nominados, que servirão de alicerce para a metodologia, buscaremos, nas obras de Pietro Trifone (2008), Paolo D‘Achille (2012) e Antonella Stefinlongo (2012), os traços fonéticos indicadores de informalidade, fundamentais para a identificação e categorização das variedades presentes no continuum romano. Além disso, para que o nosso corpus possa ser introduzido ao leitor, indicaremos, no mesmo capítulo, alguns links do canal YouTube com trechos dos três filmes selecionados. 16 No Capítulo 4 analisaremos as transcrições das cenas dos filmes que compõem o nosso corpus. Primeiramente, reportaremos a ficha técnica com algumas informações relativas a cada filme. Sucessivamente, apresentaremos a sinópse do filme, seguida pelos nossos comentários, com exemplos de trechos transcritos, além de um quadro relativo a cada filme com os traços fonéticos identificados e o seu número de ocorrências, seguido de outro quadro comparativo em que são evidenciadas a presença e/ou a ausência de cada traço fonético. Por último, apresentaremos alguns gráficos ilustrativos dos traços relevados e comentados. Passemos, então, ao desenvolvimento desta tese, que não têm a pretensão de ser conclusiva ou de emitir juízo, mas, sim, objetiva ressaltar os aspectos mais relevantes das análises das falas fílmicas, e assim, quem sabe, auxiliar novos caminhos de pesquisa na área de língua italiana. . 17 1 LÍNGUA E CINEMA ITALIANO A PARTIR DO PÓS-GUERRA Tendo em vista o foco principal de nossa dissertação - a observação da presença do romanesco no cinema italiano a partir do segundo pós-guerra até os dias mais recentes -, proporemos, na primeira parte deste capítulo (1.1), a definição de alguns conceitos referentes à situação sociolinguística italiana, haja vista a realidade multicultural e plurilíngue da península italiana. Na segunda parte (1.2), introduziremos a relação do cinema com a língua italiana e os dialetos, e destacaremos a sua importância para a unificação linguística pósunitária: no subitem 1.2.1, apresentaremos esta relação desde o nascimento do cinema sonoro até o período de guerra, como introdução ao 1.2.2 quando abordaremos o período do pósguerra, que coincide com toda a produção do Neorrealismo, passando pelo Neorrealismo rosa, pela comédia à italiana, até o início do século XXI. 1.1 Alguns conceitos fundamentais Apresentamos, a seguir, alguns conceitos que se referem à realidade sociolinguística italiana. Para tanto, começaremos pela noção de sociolinguística, disciplina que estuda a diversidade e a variedade da língua (das línguas), que fundamenta nosso discurso sobre a presença do romanesco no cinema italiano. Esclareceremos, também, os objetivos dessa ciência e a concepção de língua adotada pelas pesquisas nessa área. Sendo assim, trazemos a definição de sociolinguística por Berruto (1994, p. 4-5): [...] a sociolinguística é a disciplina que estuda a diversidade e a variedade da língua (das línguas); e dado que as possíveis classes de variação da língua (das línguas) são essencialmente quatro, dependem, isto é, de quatro variáveis fundamentais, ela estudará principalmente como a língua (as línguas) é diversificada e muda (são diversificadas e mudam): 1) através do tempo; 2) através do espaço; 3) através das classes sociais; 4) através das situações sociais. Se quisermos privilegiar a visão sincrônica, e excluirmos, então, o ponto 1), teremos que o objetivo da sociolinguística é, em suma, segundo uma feliz fórmula ―jornalística‖ de Fishman, procurar determinar quem fala qual variedade de qual língua, quando, com qual propósito e com quais interlocutores. E podemos adicionar como, por que e onde. 1 1 [...] la sociolinguistica è la disciplina che studia la diversità e la varietà della lingua (delle lingue); e poiché le possibili classi di variazione della lingua (delle lingue) sono essenzialmente quattro, dipendono cioè da quattro fondamentali variabili, essa studierà in particulare come la lingua (le lingue) é diversa e cambia (sono diverse e cambiano): 1) attraverso il tempo; 2) attraverso lo spazio; 3) attraverso le classi sociali; 4) attraverso le situazioni sociali. Se vogliamo privilegiare la visuale sincronica, ed escludiamo quindi il punto 1), avremo che il compito della sociolinguistica è insomma, secondo una felice formula ―giornalistica‖ di Fishman, cercar di determinare chi parla quale varietà di quale lingua, quando, a proposito di cosa e con quali interlocutori. E vi possiamo aggiungere come, perché e dove. (Todas as traduções para as citações retiradas de textos em italiano são de nossa autoria). 18 Para o Gaetano Berruto, o assunto fundamental que levou ao desenvolvimento da perspectiva sociolinguística sobre os fatos da língua foi a constatação de que a linguagem verbal, além de ser uma das capacidades inatas dos seres humanos, formada por uma estruturação autônoma, ao mesmo tempo é inerente à vida social e aos comportamentos interacionais dos indivíduos. Portanto, segundo o supracitado estudioso, torna-se necessário, para uma melhor compreensão global dos fenômenos linguísticos, levar em conta as inter-relações entre a língua e o ambiente social em que esta é empregada. Sendo assim, a língua é considerada pela sociolinguística [...] um sistema construído segundo os próprios princípios, mas é afetado também pelas características dos usuários e das situações de uso. De alguma maneira, a língua reflete dentro de si também os seu falantes, se assim quisermos dizer (BERRUTO, 2005, p. 37). 2 Ainda para língua, podemos usar três definições de Berruto (1995, p. 215): uma linguística – «é todo sistema linguístico, organizado em paradigmas e regras, com suas peculiaridades em termos de características estruturais» 3 –; uma variacionista – «é a soma de variedades de língua, que formam um diassistema» 4 –; e uma tipicamente sociolinguística: é todo sistema linguístico socialmente desenvolvido, que seja uma língua oficial ou nacional em qualquer país, que desenvolva muitas funções na sociedade, que seja padronizado e que esteja em um nível superior com relação a outros sistemas linguísticos subordinados presentes no uso da comunidade (que se são emparentados com esta serão os seus dialetos). 5 A partir dessa definição, faz-se necessário, antes de tudo, a distinção entre dois conceitos: o de língua e o de dialeto. Isso porque, ao pensarmos na realidade linguística italiana, deparamo-nos com outras línguas que se diferem da língua oficial nos planos morfológico, sintático, lexical e fonológico, embora não sejam reconhecidas como línguas, sendo chamadas de dialetos. 2 [...] la lingua è un sistema costruito secondo i propri principi, ma risente anche delle caratteristiche degli utenti e delle situazioni d‘uso. In qualche modo, la lingua riflette dentro di sé anche i parlanti, se vogliamo dire così. 3 è grosso modo ogni sistema linguistico (insieme di forme, paradigmi, regole, organizzato in numerosi sottosistemi a diversi livelli d‘analisi) con una sua peculiarità in termini di caratteristiche strutturali. 4 5 è una somma di varietà di lingua, formanti un diassistema. una lingua é ogni sistema linguistico socialmente sviluppato, che sia lingua ufficiale o nazionale in qualche paese, che svolga un‘ampia gamma di funzioni nella società, che sia standardizzato e sia sovraordinato ad altri sistemi linguistici subordinati eventualmente presenti nell‘uso della comunità (che se sono imparentati geneticamente con essa saranno i suoi dialetti). 19 Para Berruto (1995, p. 222-23), os dialetos são: as variedades linguísticas definidas na dimensão diatópica (geográfica), típicas e tradicionais de uma região, área ou localidade. Como tais, os dialetos não são nunca uma variedade standard (embora possam gozar de certo grau de padronização e codificação), mas são subordinados a uma língua standard. Para estabelecer se um sistema linguístico X é um dialeto da língua Y, são necessárias três condições: a) que X tenha uma estrutura próxima da Y; b) que X tenha Y como língua-teto; c) que 6 X tenha parentesco genético com Y . Partindo do fato de que os dialetos são sempre subordinados a uma língua standard, apresentamos a definição a seguir, também de Berruto (1995, p. 215-16), segundo o qual língua standard é "uma variedade de língua sujeita à codificação normativa e que vale como modelo de referência para o uso correto da língua e para o ensino escolar. Toda língua que tiver uma reconhecida variedade standard é uma língua standard." 7 O autor (1995, p. 220) utiliza ainda as definições de Ammon (1986), que qualificam uma língua ou variedade de língua standard: «a) deve ser codificada, b) ―supra regional (sic)‖, c) elaborada, d) própria das classes médio-altas, e) invariante, f) escrita)».8 Levando-se em conta as noções de língua, dialeto e língua standard ou padrão, podemos afirmar que estas e outras variedades compõem um repertório linguístico, definido por Berruto (1995, p. 72) como «o conjunto dos recursos linguísticos possuídos pelos membros de uma comunidade linguística, ou seja, a soma de variedades de uma língua ou de mais línguas empregadas em uma certa comunidade social» 9. A este propósito, Berruto (1995, p. 73) afirma que tal soma de variedades não deve ser entendida como uma soma linear, mas como uma relação de hierarquia e normas de emprego, que, nas palavras de Coseriu (1981b), será chamada de «arquitetura da língua». Partindo, então, da ideia de que o repertório linguístico é uma soma de variedades, Berruto, em Fondamenti della sociolinguistica (1995, p. 75-76), define o termo variedade 6 sono le varietà linguistiche definite nella dimensione diatopica (geografica), tipiche e tradizionali di una certa regione, area o località. In quanto tali, i dialetti non sono mai una varietà standard (anche se possono godere di un certo grado di standardizzazione e codificazione); ma sono subordinati ad una lingua standard. Per stabilire che un certo sistema linguistico X è un dialetto della lingua Y sono quindi necessarie tre condizioni: a) che X abbia una buona vicinanza strutturale con Y; b) che X abbia Y come lingua tetto; c) che X abbia parentela genetica con Y. 7 varietà di lingua soggetta a codificazione normativa e che vale come modello di riferimento per l‘uso corretto della lingua e per l‘insegnamento scolastico. Ogni lingua che abbia una riconosciuta varietà standard è una lingua standard. [...]. 8 lo standard è tale in quanto è: (a) codificato, (b) sovraregionale, (c) elaborato, (d) proprio dei ceti alti, (e) invariante, (f) scritto. 9 l‘insieme delle risorse linguistiche possedute dai membri di una comunità linguística, vale a dire la somma di varietà di una lingua o di più lingue impiegate presso una certa comunità sociale. 20 como «um conjunto de traços congruentes de um sistema linguístico que co-ocorrem com um certo conjunto de traços sociais, caracterizando os falantes ou as situações de uso» 10. Neste sentido, as variedades de uma língua podem ser divididas em cinco dimensões: diacronia, diatopia, diastratia, diamesia e diafasia. As variedades diacrônicas – do grego khrónos: tempo – são aquelas que se diferenciam ao longo do tempo em uma determinda comunidade linguística. Como exemplo, tem-se a comparação entre o italiano contemporâneo e o italiano do início do século XX. As variedades diatópicas ou geográficas – do grego tópos: lugar – se diferenciam com base nos lugares onde são faladas, como, por exemplo, o italiano de Roma e o italiano de Milão. As variedades diastráticas acontecem no âmbito das diferentes classes sociais – do grego dia: através de, e do latim stratum: camada, estrato. Elas ocorrem na relação do locutor para com o interlocutor, em decorrência dos seguintes aspectos: faixa etária, sexo, escolaridade, profissão, meio de convivência e classe social. Já o plano diamésico – do grego mésos: meio (de comunicação) – diz respeito às variedades que se diferenciam com base no meio ou canal da comunicação, como, por exemplo, língua falada e língua escrita. Com o nascimento dos meios de comunicação, tem-se uma terceira modalidade, que se coloca em uma posição intermediária entre a escrita e a fala, denominada língua transmitida (SABATINI, 1997), ou seja, o italiano empregado nas transmissões radiofônicas, nas conversas telefônicas, nas transmissões televisivas, no cinema e, mais recentemente, na comunicação digital (e-mails, SMS, chat, redes sociais, entre outros) 11 . Finalmente, na dimensão diafásica – do grego phásis: expressão, modo de falar – temos as variedades que se manifestam através das diferentes situações comunicativas, que consistem nos diferentes modos pelos quais são realizadas as mensagens linguísticas em relação ao contexto presente na situação. O falante faz um uso diferenciado da língua de acordo com o grau de monitoramento, formalidade, que será necessário no ato da comunicação oral. 10 un insieme di tratti congruenti di un sistema linguistico che co-occorrono con un certo insieme di tratti sociali, caratterizanti i parlanti o le situazioni d‘uso. 11 As principais características da língua transmitida, bem como as suas diferenças com relação à língua escrita e falada, serão retomadas e aprofundadas no item 3.1. 21 Dentro da dimensão diafásica, existem dois tipos de variedade: a primeira é ligada à finalidade do ato comunicativo, gerando as línguas especiais (língua da matemática, dos meios de comunicação etc.); a segunda vai depender do maior ou menor grau de intimidade entre os falantes e do nível de formalidade estabelecido entre eles, os chamados registros. Os registros podem ser de caráter formal e informal. Dada a impossibilidade de se dissociar completamente esses dois registros e de identificar os limites que os separam, tornase necessário colocá-los dentro de um continuum linguístico, que nos permitirá o entendimento da relação entre as variedades a partir dos dois polos nos quais se encontram as duas variedades mais distinguíveis, como explicado anteriormente. Apresentaremos aqui as características gerais dos registros formal e informal, uma vez que se encontram nos pontos extremos desse continuum e nos ajudarão na identificação do grau de formalidade/informalidade nas falas fílmicas. Segundo Berruto (2015, p. 171), o registro formal coincide com o italiano standard e o italiano neostandard, sendo usado pelos falantes quando não se conhecem, ou quando não têm intimidade, ou, ainda, quando há a necessidade de expressar respeito ou posição hierárquica. Ainda de acordo com Berruto (2015, p. 171-72), a formalidade é um caráter extrínseco de uma situação comunicativa, determinado por fatores sociais e culturais: uma situação é mais formal quando é mais baseada no respeito e nas normas de comportamento vigentes na comunidade; e é mais informal quando, ao contrário, essas normas de comportamento são menos respeitadas. Nesse sentido, o grau de formalidade de cada ocasião se situa em um continuum que vai do máximo formal ao máximo informal e depende também de como a situação é ―construída‖ pelos participantes. Isso vai se refletir no comportamento linguístico através do controle e do cuidado ao se falar e escrever. Já no que diz respeito ao registro informal, Berruto (2015, p. 173) afirma que ele é usado quando há familiaridade entre os interlocutores da comunicação ou em situações descontraídas, ou quando o grau de planificação é mínimo. Também é usado em situações em que há um forte envolvimento emocional ou quando quem está falando está cansado; enfim, em todas as situações em que há um menor monitoramento linguístico. 22 Para Berruto (2015, p. 175), nos registros informais a velocidade de elocução é normalmente mais alta do que nos registros formais e vai se realizar em vários níveis (lexical, morfossintático, fonético). A seguir, optamos por apresentar somente os fenômenos ligados ao nível fonético, uma vez que este é o recorte utilizado no presente trabalho: a) alta tendência a apócopes, especialmente na primeira e terceira pessoa do plural (sò/sono ‗sou‘; sò/sono ‘somos‘) e no infinitivo dos verbos (fà/fare ‗fazer‘), com queda da vogal final quando é precedida por uma nasal ou vibrante (fan/fanno ‗fazem‘); b) tendência à simplificação de nexos consonânticos ―difíceis‖, através da assimilação (arimmetica/aritmetica ‗aritmética‘), da inserção de vogais de transição epentéticas (in Isvizzera/ in Svizzera ‗na Suíça‘) e do cancelamento de consoantes (propio para proprio ‗mesmo‘). Para Berruto (2015, p. 175), ainda no que diz respeito à pronúncia, nos registros informais é mais evidente a interferência de um substrato dialetal: devido a uma menor atenção e a um menor cuidado no momento da fala, além de um menor controle da enunciação, os falantes bilíngues produzem mais traços dialetais do que os que se exprimem em um registro mais formal; e, no italiano regional de falantes monolíngues, tende-se a eliminar menos elementos e traços localmente marcados. Tendo em vista que essas cinco dimensões são variações da língua, passaremos agora ao conceito de variação, partindo de uma ótica sociolinguística. Segundo Berruto (Enciclopedia Treccani, 2011) 12 , variação linguística é o caráter mutável das línguas, apresentando-se através das diferentes formas de comportamento dos falantes. Para o estudioso, as línguas e as variedades de língua presentes no repertório de uma comunidade não estão igualmente à disposição, ao mesmo tempo que não são possuídas na mesma medida por todos os membros da comunidade. Nesse sentido, a variação se manifesta nos comportamentos linguísticos não somente no uso de formas diferentes da língua, mas também através do acesso diferenciado às variedades de língua e à escolha da variedade a ser utilizada em uma certa interação verbal, o que é fortemente condicionado pela faixa social à qual o falante pertence, como também pelo seu grau de instrução e, por último, pelas características da comunidade deste falante. 12 http://www.treccani.it/enciclopedia/variazione-linguistica_(Enciclopedia_dell'Italiano)/ (Acesso em 20/01/2016). 23 Partindo desses conceitos-chave da sociolinguística, apresentaremos, a seguir, a noção de continuum, com exemplos do continuum linguístico romano. Para o enquadramento das falas fílmicas nas respectivas variedades linguísticas, faremos uma breve descrição dessas variedades, fundamental para a apresentação da cronologia do cinema italiano que será feita na segunda parte deste capítulo. Para tanto, contaremos com as contribuições de Gaetano Berruto (2015), Tullio Telmon (1993), Michele Cortelazzo (1992), Francesco Sabatini (1985a, 1990), Paolo D‘Achille (1990, 2010), Alberto Sobrero (1992), Antonella Stefinlongo (2012), entre outros. Berruto (2015, p. 19-27), em Sociolinguistica dell‟italiano contemporaneo, afirma que as variedades de língua, classificadas conforme as dimensões vistas anteriormente, se dispõem hierarquicamente em um certo espaço linguístico segundo uma rede de relações, constituindo a «arquitetura da língua», assim denominada por Eugenio Coseriu (1981b). Neste sentido, para entendermos estas relações existentes entre as variedades da arquitetura do italiano, utilizaremos a noção de continuum, que poderá ser útil também para a compreensão da situação linguística não só italiana, como também romana, uma vez que o foco da nossa pesquisa é o romanesco. Para uma noção inicial de continuum, Berruto (2015, p. 30-33) faz referência à coexistência de diferentes variedades, entre as quais não há confins nítidos e drásticos, mas graduais e esfumaçados, com pontos focais bem distintos e com margens sobrepostas. Na situação linguística italiana, a língua-padrão, ou standard, e o dialeto local poderiam constituir os extremos do continuum, entre os quais existem variedades intermediárias. Essas duas variedades situadas nos extremos do continuum representariam, dessa maneira, a variedade ―alta‖ e a variedade ―baixa‖ em uma situação de diglossia. Nesse sentido, Sgroi (1981, p. 214-5) identifica uma situação de diglossia toda vez que um idioma (dialeto, língua etc.) do repertório de uma comunidade goza de um status social diferente, superior com relação aos outros, ou seja, toda vez que esse idioma tem um maior prestígio social. Voltando o nosso olhar para a situação linguística romana, Antonella Stefinlongo (2012, p. 22) afirma que, ao contrário de outras metrópoles italianas, onde coexistem pelo menos dois códigos linguísticos estruturalmente muito distantes (o italiano standard e os dialetos locais), o panorama linguístico de Roma é muito homogêneo e compacto, devido a dois fatores: a) Uma forte coincidência de traços em todas as variedades do repertório; b) A forte interação e parcial sobreposição de cada variedade do continuum com as variedades imediatamente adjacentes. Tudo isso faz de Roma um ótimo exemplo de continuum linguístico urbano, devido à pouca diferenciação das variedades no seu interior. 24 Contudo, apesar dessa relativa homogeneidade, Stefinlongo (2012, p. 22) ressalta que os polos do continuum se diferenciam: de um lado, tem-se a variedade alta (ou ―de prestígio‖), representada pelo italiano (muito próximo ao standard); de outro, a variedade baixa (ou ―de menor prestígio‖), muito próxima do dialeto. Consequentemente, as condensações desse continuum coincidem com as faixas intermediárias, nas quais standard, variedades e dialeto se misturam consideravelmente. A variedade alta, ou ―de prestígio‖, é, segundo Stefinlongo (2012, p. 22-23), aquela de língua falada na cidade pelas classes médio-altas, já no século XVIII, sendo muito próxima do toscano. Apesar de ter a maioria dos traços em comum com o standard, esta parte do continuum não está totalmente isenta dos traços marcados regionalmente e de intrusões das variedades do continuum, que podem manifestar-se no léxico, nas estruturas morfossintáticas e especialmente na fonética. No extremo oposto da variedade alta, encontra-se a variedade baixa ou ―de menor prestígio‖, considerada por Stefinlongo (2012, p. 23) a variedade dialetal. A esse respeito, a autora observa que a interpretação dessa parte do continuum por alguns estudiosos é incerta e discordante. Sendo assim, optamos, neste trabalho, pela denominação utilizada por Stefinlongo, variedade dialetal urbana, obviamente sem deixar de lado a visão que alguns estudiosos têm do romanesco como um dialeto e/ou italiano regional. Stefinlongo (2012, p. 24) justifica a sua escolha por esse termo explicando que, apesar do número relevante de traços fonomorfológicos que se contrapõem ao italiano, o romanesco tem pouca autonomia no que diz respeito à sintaxe e ao léxico. Nesse sentido, segundo a autora, o problema não está tanto no fato de constatar-se, de um ponto de vista estritamente linguístico, que existe um código diferente que se contrapõe àquele dominante. O problema está em estabelecer se esse código possui autonomia funcional e cultural, além de linguística, e se é reconhecido e sentido pela comunidade como próprio. Neste último caso, a estudiosa afirma que as respostas são negativas, pois, além do preconceito por parte da própria comunidade relacionado ao uso dessa variedade dialetal, há todo um contexto cultural que diz respeito a costumes e tradições que foram desaparecendo, o que acaba tornando difícil a sobrevivência do romanesco. Já no que tange à sua funcionalidade, podemos antecipar que o fato de o romanesco não constituir um código alternativo ao italiano – no caso, para o uso informal – mas ser considerado uma língua estigmatizada, utilizada pelas classes menos favorecidas, comprova 25 que o uso dessa variedade não é visto pelo viés da função, mas pelo conceito de valor social e de prestígio. 13 Partindo, então, do conceito de continuum, com ênfase para a realidade sociolinguística romana, continuaremos com a descrição das outras variedades linguísticas, importantes para o entendimento do nosso trabalho. Tal descrição se dará a partir do conceito de língua standard ou padrão, uma vez que há a necessidade de elucidar alguns pontos fundamentais. Primeiramente, Berruto (2015, p. 67) observa que nos últimos anos houve um processo de repadronização do italiano, no sentido de que está se consolidando uma nova norma que, em muitos aspectos, contrasta com a norma tradicional. Esse processo levou a uma aproximação entre a escrita e a fala, visto que também a escrita típica está considerando e acolhendo como normais traços até então tidos como peculiares da fala. De uma forma geral, isso significa que também os traços substandard se aproximam da esfera do standard, dando lugar ao italiano neostandard, ou italiano médio (expressão criada por Sabatini), considerado a variedade-base na arquitetura do italiano contemporâneo. No âmbito italiano dessa variedade, Francesco Sabatini (1985a) a nominou italiano dell'uso medio, enquanto que Gaetano Berruto (2015) falou de neostandard. Com tais escolhas terminológicas, os dois estudiosos tendem a enfatizar, respectivamente, a ampla convergência da comunidade linguística sobre tal modalidade expressiva e a função de nova referência normativa que esta assumiu. Com relação a essa variedade, apresentamos o conceito de Alberto Sobrero (1992, p. 5), o qual, por sua vez, utilizou a terminologia de Berruto (1987): O neostandard é difundido nas classes médio-altas e na parte mais culta da população e é realizado mais na fala oral do que na escrita. A etiqueta de neostandard refere-se ao fato de que neste nível, hoje em plena evolução, encontramos um grande número de formas que aos poucos ―vieram‖ dos níveis inferiores (substandard): antes relegadas à área das formas "coloquiais" (ou, como diziam os vocabulários, "triviais"), agora se difundem e são aceitas na língua nacional. O standard, assim, por sua vez, amplia os próprios confins. 14 Partindo, então, das noções de standard e neostandard, utilizaremos o critério de Ciccotti (2001, p. 296) para identificar essas duas variedades nas falas fílmicas: quando 13 Todos esses aspectos serão mais aprofundados no capítulo relativo à evolução do romanesco, mais precisamente no item 2.4.1. 14 Il neo-standard è diffuso nelle classi medio-alte e nella parte più acculturata della popolazione, ed è realizzato nel parlato più che nello scritto. L'etichetta di neo-standard si riferisce al fatto che su questo livello, oggi in piena evoluzione, troviamo un gran numero di forme che via via "risalgono" dai livelli inferiori (sub-standard): prima relegate nell'area delle forme "colloquiali" (o, come dicevano i vocabolari, "triviali"), ora si diffondono e sono accettate nella lingua nazionale. Lo standard così, a sua volta estende i propri confini. 26 ocorrem diálogos em italiano não fortemente regionalizado na direção da variedade alta, estes estarão entre o neostandard e o standard. Sendo assim, chamaremos de standard as falas fílmicas que seguem uma gramática correta e têm uma sintaxe e fonologia de base florentina, com pouquíssimas entonações regionais; de neostandard, em contraposição, chamaremos os diálogos com aberturas fonológicas para o regional mais marcadas, mas não tão fortes como o italiano regional. Ainda na visão de Berruto (2015, p. 26), o neostandard é, por um lado, um conglomerado com o standard, mas sendo, por outro, sensível à diferenciação diatópica, correspondendo fundamentalmente, portanto, nos usos concretos dos falantes, com um italiano regional culto médio. As duas etiquetas são quase sinonímicas e são utilizáveis indistintamente de acordo com os aspectos que queremos colocar em evidência: com italiano neostandard, acentuamos os aspectos unitários, sobretudo morfossintáticos, que constituem a larga base comum dos empregos do italiano comum em falantes cultos (muito cultos ou mediamente cultos); com italiano regional culto médio, acentuamos a diferenciação geográfica 15 que será percebida na grande maioria dos utentes [...]. Os italianos regionais, pertencentes às variedades diatópicas, na visão de Tullio Temon (1993, p. 100), são «sistemas dialetais intermédios, autônomos, coerentes, dinâmicos e dialetal ‗primário‘» 16. Michele Cortelazzo (1992, p. 269) completa essa definição afirmando que é: «um subconjunto coerente de italiano fortemente influenciado, em todos os níveis, pelo dialeto, ao ponto de que os traços identificadores desse italiano, que o diferenciam de um (hipotético) italiano médio, são quase sempre traços locais». 17 Já a noção de italiano popular sempre foi muito debatida por vários linguistas 18, mas é com Tullio De Mauro (1970a) e com Cortelazzo (1972) que tal noção encontra a sua primeira definição conceitual. Para o primeiro, configura-se como o «modo de se exprimir de um inculto que tenta utilizar, sem muita intimidade, a língua ‗nacional‘, o italiano» e representa «uma modalidade, [...] uma norma de uso da língua italiana que pode denominar-se 15 conglobato con lo standard da un lato, ma dall‘altro sensibile a differenziazione diatopica, e corrispondente quindi fondamentalmente nei concreti usi dei parlanti a un italiano regionale colto medio. Le due etichette sono quasi sinonimiche, e sono usabili intercambiabilmente a seconda degli aspetti che vogliamo mettere in rilievo: con italiano neostandard mettiamo l‘accento sugli aspett unitari, soprattutto morfossintattici, che constituiscono la larga base comune degli impieghi dell‘italiano da ritenere normali presso parlanti colti (molto colti o mediamente colti); con italiano regionale colto medio mettiamo l‘accento sull‘emergere della differenziazione geografica che sarà percepibile nella gran maggioranza degli utenti [...]. 16 sistemi dialettali intermedi [...], autonomi, coerenti, dinamici, e relativamente strutturati, nei quali l‘interferenza di completamento è costituita dal sostrato dialettale primario. 17 un sottoinsieme coerente di italiano fortemente influito, a tutti i livelli, dal dialetto, al punto che i tratti identificanti di questo dialetto, quelli che lo differenziano da un (ipotetico) italiano medio, sono proprio, e quasi solo, quelli locali. 18 (DE MAURO, [1963]; CORTELAZZO, 1972; BRUNI, 1984; MIONI, 1983a; FORESTI, 1983; SANGA, 1984; D‘ACHILLE, 1994). 27 ‗italiano popular unitário‘» 19 (DE MAURO, 1970a, p. 49). Posteriormente, o segundo descreve o italiano popular como «o tipo de italiano imperfeitamente adquirido por quem tem como língua-mãe o dialeto» 20 (CORTELAZZO, 1972, p. 11). Berruto (2015, p. 133) observa que as definições de De Mauro e Cortelazzo fundaram duas diferentes linhas interpretativas do conceito: a primeira atenta aos impulsos comunicativos e expressivos e à realização de uma tendência de o falante usar o italiano de qualquer maneira; a segunda, mais voltada ao caráter do produto, que parece um produto anormal, ―imperfeito‖, derivante do contato direto com o dialeto. Berruto (2015, p. 157) afirma que, nos últimos anos, os debates sobre esse conceito e sobre sua sobrevivência continuam; neste sentido, o estudioso concorda com D‘Achille (1994, p. 45-6), quando este sublinha que italiano popular é a etiqueta que indica a produção linguística dos semicultos e acrescenta que esse conceito «não se refere somente à produção oral e escrita destes, mas também àquela dos incultos quando falam em italiano e não em dialeto» 21 , recuperando também a dimensão social da variedade, que, ainda segundo o autor, muitas vezes é deixada de lado pelos linguistas. A respeito da sobrevivência do italiano popular unitário 22 , D‘Achille (2010a) concorda com os autores que afirmam que há o enfraquecimento do italiano popular no repertório italiano atual; mas Berruto (2015, p. 158) se posiciona diversamente, argumentando sobre a sua vitalidade e o reconhecimento da sua existência atual como variedade diastrática baixa na arquitetura da língua. Já para o conceito de italiano literário ou italiano standard literário, seguimos a definição de Berruto (2015, p. 26): o italiano standard literário não quer dizer tout court ―língua das obras literárias‖ [...] mas, sim, ―língua de nível literário‖, apoiada na tradição literária. Trata-se da língua que é descrita e regulada pelos manuais de gramática; em princípio, não é 23 marcada nem diatopicamente, nem socialmente. 19 modo di esprimersi di un incolto che, sotto la spinta di comunicare e senza addestramento, maneggia quella che ottimisticamente si chiama la lingua ‗nazionale‘, l‘italiano» e representa «una modalità, [...] una norma d‘uso della lingua italiana che può denominarsi ‗italiano popolare unitario. 20 il tipo di italiano imperfettamente acquisito da chi ha per madrelingua il dialetto. 21 non si riferisce solo alla produzione scritta e orale dei semicolti, ma anche a quella orale degli incolti quando parlano in italiano e non in dialetto. 22 23 O termo ―unitário‖, neste caso, indica o período pós-unitário. l‘italiano standard letterario, che non vuol dire tout court ‗lingua delle opere letterarie‘ [...] piuttosto ―lingua di livello letterario‖, apoggiata nella tradizione letteraria. Si tratta della lingua che è descritta e regolata dai manuali di grammatica; in linea di principio, non è marcata né diatopicamente, né socialmente. 28 Na realidade, segundo o autor, além de ser pouco representado na fala, o italiano literário é levemente marcado diastraticamente, dado que, em virtude das características da história linguística italiana, ele é verificável somente em pequenas elites intelectuais ou, mais tipicamente, em grupos profissionais específicos (atores, speakers, falantes que fizeram curso de dicção). A seguir, trazemos também a definição de fala dos jovens, uma vez que esta variedade também estará frequente na cinematografia italiana. Segundo Michele Cortelazzo (1994, p. 292-93), a fala dos jovens, ou ―linguagem dos jovens‖ (termo utilizado pelo estudioso), é o resultado da mistura de variedades: italiano coloquial, dialeto, gírias, língua da publicidade e dos meios de comunicação e línguas estrangeiras. Dada essa presença de muitas fontes linguísticas, o italiano dos jovens não pode ser considerado uma única variedade, mas, sim, uma soma delas. Sendo assim, é considerado unanimemente pelos estudiosos (COVERI, 1988; SOBRERO, 1992) uma variedade diafásica do italiano: o uso da linguagem dos jovens não é condicionado somente pela adesão a um grupo de jovens, mas, sim, pela situação comunicativa – dificilmente um jovem usará esta variedade quando fala de política ou quando desenvolve alguma atividade escolar. Segundo Cortelazzo (1994, p. 294), não podemos esquecer, no entanto, que a adesão a um grupo é condição necessária para o uso desse tipo de linguagem, tornando-a também uma variedade diastrática, uma vez que a análise sociológica mostra que a utilização dessa linguagem caracteriza, em diferentes modos, os jovens pertencentes às classes sociais médiobaixas, mas não os jovens da classe social alta. Como esclarece o estudioso, a fala juvenil pode ser definida como a variedade de língua oral usada por aqueles pertencentes aos grupos juvenis em determinadas situações comunicativas (conversações espontâneas dentro do grupo e sobre temas centrais comuns a todos, como a escola, o amor, o sexo, as amizades, as drogas etc.). Dessa maneira, a colocação desta variedade pode ser representada no modelo proposto por Berruto (2015, p. 24), situando-se, no eixo da dimensão diafásica, em um ponto em que a dimensão diastrática está orientada para baixo e a dimensão diamésica, na direção da escrita oral. Sua colocação resultaria, assim, contígua à das gírias. O uso de uma forma particular de italiano pelos jovens teria três funções de acordo com Cortelazzo (1994, p. 294-95): uma função identitária, que tem a finalidade de marcar a adesão a um grupo; uma função lúdica, que se realiza através da deformação e hibridação de outros sistemas linguísticos (dialeto, línguas estrangeiras); e uma função de autoafirmação dentro do próprio grupo. 29 Os elementos dialetais são usados pela sua forte expressividade, especialmente são utilizadas as áreas semânticas das palavras de baixo calão (incazzato ‗bravo‘; scazzato entediado‘), das características físicas e morais consideradas negativas (ciospa ‗moça feia‘; pirla ‗estúpido‘) e do sexo (arrapato ‗excitado‘, frocio ‗homosexual‘). A linguagem dos jovens goza também de uma dimensão internacional, com empréstimos linguísticos que demonstram um conhecimento das línguas estrangeiras maior do que as gerações precedentes: anglicismos ligados ao mundo da droga (trip, overdose, pusher…) e à música amada pelos jovens (heavy metal, reggae, rap…). A influência anglo-americana se nota também nas interjeições expressivamente marcadas do mundo dos gibis (slurp, splash…) e no léxico da informática (hardware ‗aspecto físico‘; è stato un floppy ‗foi um fracasso‘). Os hispanismos, têm função lúdica através da cunhagem de pseudo-estrangeirismos (cucador ‗quem entende de mulheres‘; arrapescion ‗excitação sexual‘; los dineros ‗o dinheiro‘). Devido à rápida substituição geracional, a linguagem dos jovens é extremamente mutável: cada geração tende a se diferenciar da anterior e muitos neologismos caem em desuso, como, por exemplo, a palavra matusa para indicar os pais, que era muito difundida nos anos 1960 (RADKE, 1993, p. 191-235). Tendo em vista que a base da linguagem dos jovens é o italiano coloquial (CORTELAZZO, 1994, p. 300), passaremos à apresentação dessa categoria. O italiano coloquial constitui, juntamente com o italiano popular, o núcleo principal do italiano substandard, uma vez que compartilham alguns traços, sendo até confundidos entre si. Segundo Berruto (2015, p. 163), o traço discriminante entre as duas variedades consiste na correlação com a proveniência social dos falantes: o italiano coloquial pode ser empregado independentemente da classe social, por falantes de todas as classes e com qualquer grau de instrução; tê-lo à disposição depende, em parte, da estratificação social, na medida em que os falantes culturalmente desfavorecidos têm acesso somente ao italiano popular, mas os traços que o caracterizam não o correlacionam com fatores diastráticos. 24 Ainda de acordo com Berruto (2015, p. 163-65), a sua manifestação se dá no âmbito oral, mas pode aparecer em usos escritos não formais, como na correspondência familiar ou em diários etc. Trata-se, portanto, de uma variedade situacional, ou diafásica, que se reveza com outras variedades situacionais dependendo do grau de formalidade, do empenho e dos interlocutores, necessários para a situação comunicativa que se deseja instaurar. 24 l‘italiano colloquiale può essere adoperado in maneira independente dalla classe sociale di appartenenza, da parlanti di ogni ceto e ogni grado di istruzione; l‘averlo a disposizione dipende in parte dalla stratificazione sociale, nella misura in cui parlanti culturalmente sfavoriti hanno accesso solo all‘italiano popolare, ma i tratti che lo caratterizzano non correlano con fattori diastratici. 30 Berruto considera o italiano coloquial um ―superregistro‖, que cobre uma ampla gama de registros situados entre um extremo levemente informal e um extremo muito informal (BERRUTO, 2015, p. 139). O nível que mais caracteriza o italiano coloquial é o do léxico e o da fraseologia, com uso de termos genéricos e expressivos, como: far fuori ‗matar‘; fregare ‗enganar‘, ‗roubar‘; scocciare ‗importunar‘; pizza ‗coisa chata‘; rompiscatole ‗importuno‘. São também frequentes os diminutivos com valor atenuante na afirmação: un attimino ‗um segundinho‘; un filino ‗um pouquinho‘; un momentino ‗um momentinho‘. 1.2 A relação da língua com o cinema italiano Antes de iniciarmos este excursus através do cinema italiano, cabe esclarecer, de pronto, que a relação entre cinema e língua italiana percorreu uma via de mão dupla, segundo Rossi (Enciclopedia dell‟italiano, 2010): a língua escrita e oral sempre foram influenciadas, seja no léxico, seja no estilo, pelo cinema, assim como este sempre teve que se confrontar com o italiano escrito e falado para criar uma comunicação funcional e eficaz e, ao mesmo tempo, aceitável e agradável, realista e compreensível para um vasto público cultural e linguisticamente heterogêneo. Isso, nas palavras do estudioso, é um «objetivo nada fácil, dada a história linguística do italiano, caracterizada pela fragmentação dialetal e pela tardia realização de uma fala média nacional» 25. Completando as observações de Rossi, De Mauro (1995, p. 120) sublinha a relevância do cinema italiano para a unificação linguística italiana no período pós-unitário, uma vez que ele foi responsável pela propagação de modelos linguísticos italianos em ambientes regionais e sociais onde o dialeto dominava. Portanto, o estudioso afirma que o cinema foi, para uma grande parte da população, «a primeira fonte de conhecimento da língua nacional» 26, sobretudo a partir do nascimento do cinema sonoro, em 1930. No que se refere aos dialetos, segundo Rossi (2007, p. 25), o seu uso também acompanhou o cinema desde as suas origens. Mais especificamente, sobre o romanesco, Tullio De Mauro, em Storia linguistica dell‟Italia unita (1995, p. 124), sustenta que «o romanesco do século XX, o que restava do velho dialeto de Roma, fortemente marcado por 25 Obiettivo tutt‘altro che facile, data la storia linguistica dell‘italiano, caratterizzata dalla frammentazione dialettale e dal tardivo conseguimento di un parlato medio nazionale. http://www.treccani.it/enciclopedia/cinema-e-lingua_(Enciclopedia_dell'Italiano)/ (Acesso em 28/12/15). 26 il cinema sonoro é stato dunque la prima fonte di conoscenza della lingua nazionale. 31 meridionalismos, sempre foi muito usado pelo cinema para dar forma linguística a histórias de conteúdos populares ou popularizantes» 27. Partindo destas últimas considerações, Anna Maria Boccafurni (2012, p. 131), em seu ensaio Il romanesco nella cinematografia, afirma que o romanesco se faz ainda hoje muito presente na cinematografia italiana. Além de destacar sua ampla utilização, a autora chama a atenção para a sua capacidade de exprimir-se de maneira ―colorida‖ e eficaz, tendendo a levar para a tela situações da vida cotidiana, colocando-se numa dimensão realística e fazendo com que os espectadores se identifiquem com as histórias contadas. A autora afirma ainda que, depois dos personagens inesquecíveis de Alberto Sordi em Un americano a Roma, de Vittorio Gassman em I soliti ignoti e de Gigi Proietti em Febbre da cavalo, o romanesco encontrou lugar também nas falas de outros atores, como Montesano, Verdone, De Sica, Brignano, Tirabassi. Mas, para compreendermos a presença do romanesco no contexto cinematográfico, descreveremos os acontecimentos históricos que fizeram de Roma uma realidade única, se comparada às outras metrópoles, os quais serão comentados no Capítulo 2. Na segunda parte deste item (1.2), traçaremos um panorama histórico geral do cinema a partir da Segunda Guerra Mundial (1.2.2), que coincide com o movimento chamado de Neorrealismo, até os dias mais recentes, com alguns exemplos de falas fílmicas e comentários sobre alguns filmes, tendo como base os estudos de Sergio Raffaelli (1983, 1992, 1996) e Fabio Rossi (1999, 2006, 2007). Sobre o emprego do romanesco fílmico na cinematografia italiana, além dos autores já citados, utilizaremos as contribuições de Eusebio Ciccotti (2001), o qual fez um panorama sobre a utilização dessa variedade linguística no cinema no período que vai de 1943 a 1995. Mas, antes, para um maior entendimento dos períodos em questão, não podemos deixar de comentar brevemente o período que antecede o Neorrealismo e que coincidiu com o nascimento do cinema italiano sonoro (1.2.1). Assim podemos trazer à luz a realidade italiana daquela época, responsável por grandes transformações no cinema nacional. 1.2.1 Língua italiana e dialetos antes do Neorrealismo Segundo Raffaelli (Enciclopedia del cinema, 2003) 28, o cinema sonoro (1930) impôs aos produtores a elaboração de soluções linguísticas que fossem adequadas tanto às situações 27 il «romanesco» del Novecento, quello che resta del vecchio dialetto di Roma, fortemente venato di meridionalismi, è stato ed è sempre più largamente adoperato dal cinema per dare forma linguistica a contenuti popolari o popolareggianti. 32 comunicativas do filme quanto à capacidade receptiva dos espectadores. A Itália, ao contrário dos outros países da Europa, possuía uma língua nacional elaborada e transmitida através da escritura, sendo falada por poucos; ou seja, era uma língua privada de fluida coloquialidade, fundamental na interação entre personagens fílmicos, o que acabou tornando obrigatória a criação de uma linguagem fílmica adequada a essa necessidade. Rossi (2006, p. 161) afirma que, na Itália, a língua escrita e a língua falada no filme refletiam a real fragmentação geográfica e sociolinguística do país e, por outro lado, respondiam à dupla natureza do cinema como meio de comunicação de massa: espelho e escola de língua (SIMONE, 1987). Portanto, a tendência à normatização linguística de tipo literário e a exigência de alcançar todo o público nacional contrapunham-se ao desejo de despertar a identificação do público local através da adoção de expressões populares e dialetais. Tal cruzamento de variedades linguísticas (dialeto, italiano standard, italiano regional, italiano literário, italiano popular, italiano médio) acompanhará a fala fílmica durante toda a sua história. Além disso, Rossi (2006, p. 162-63) esclarece que, quando se fala de dialeto cinematográfico, na verdade se trata ora de italiano regional, ora de uma língua híbrida (criada pelo cinema e para o cinema), que combina, geralmente num mesmo diálogo, fenômenos regionais com traços de italiano standard. Para o estudioso, são poucos os filmes em dialeto puro e, quando é utilizado, tem como principal função ―colorir‖ o filme: é mais falado por figurantes ou, no máximo, por personagens secundários; é mais falado por homens do que por mulheres; mais por idosos do que por jovens; mais por pobres do que por ricos. Voltando à cronologia delineada por Raffaelli (1992, p. 80), temos: de 1930 a 1945, a fase dos ―anos da Cines‖ (de 1929 a 1934, com traços fonéticos regionais nos primeiros filmes), a fase dos ―anos de Freddi‖ (de 1935 a 1939, rigorosamente dialetófobos) e a fase dos ―anos de guerra‖ (com um uso mais consistente dos dialetos, da caricatura ao realismo). A seguir, para melhor compreensão desses diferentes momentos, comentaremos brevemente sobre os anos que antecederam o Neorrealismo, principalmente a partir dos ―anos de Freddi‖ (de 1935 a 1940), marcados pelo fascismo, levando à proibição do uso do dialeto fílmico. 28 http://www.treccani.it/enciclopedia/lingua-del-film_(Enciclopedia-del-Cinema)/ (Acesso em 17/10/15). 33 1.2.1.1 Os anos de “Freddi” Segundo Raffaelli (1992, p. 91), em 1935 a política linguística do regime estendeu-se também ao cinema, até 1939, influenciando as escolhas linguísticas, contrárias às manifestações regionalistas e estrangeiras e favoráveis a um monolinguismo de tipo literário. O termo usado por Raffaelli para designar essa fase deve-se ao dialetofobo Luigi Freddi, que comandava a Direção Geral para a Cinematografia de 1934 a 1939, permanecendo moderador influente da política cinematográfica do regime até 1943. Raffaelli (1983, p. 125-26) observa que a língua dos meios de comunicação nesses anos, inclusive a cinematográfica, é submetida a uma ―normatização linguística‖ em que vigora o controle sobre as ―palavras proibidas‖, ou porque estrangeiras ou, se italianas, porque dissonantes do caráter ―romano‖ e ―imperial‖ da Itália. Na mesma direção de Raffaelli, Rossi (2006, p. 168-69) constata que foram raros os testemunhos dialetais desses anos. Alguns cômicos, como Totò, limitavam a dialetalidade a variações regionais fonéticas do italiano. O dialeto era tolerado, todavia, nos personagens secundários, como nos filmes do período do ―telefone branco‖, e em outros gêneros, cujo uso servia mais para caracterizar personagens secundários e figurantes no sentido étnico e social do que reproduzir fielmente a realidade linguística italiana. Os filmes italianos do período do ―telefone branco‖, de 1930 a 1943, eram caracterizados por ambientes burgueses, com decoração ostentosamente moderna e elegante, onde aparecem telefones brancos à vista, símbolos de ascendência social. Parte da crítica define este gênero como ―comédia húngara‖: são filmes ambientados principalmente na Hungria e, muitas vezes, dirigidos por diretores húngaros ou inspirados em comédias húngaras, em voga na Itália nos anos 1930 e 1940. A ambientação húngara servia para prevenir a intervenção da censura, pois eram argumentos recorrentes o divórcio (na época ilegal na Itália) ou então o adultério (ROSSI, 2007, p. 31). Mas, apesar das leis do período fascista, que iam desde a aversão aos dialetos e línguas estrangeiras à proibição do pronome pessoal de cortesia ―Lei‖, Rossi (2007, p. 36-37) afirma que o cinema gozava de uma liberdade maior do que outros meios de comunicação e expressão artística. Essa liberdade pouco vigiada devia-se à distração dos legisladores e governantes, os quais preferiam confiar a outros meios de comunicação, como os jornais e os documentários, as mensagens propagandistas. No cinema dos anos 1930 e 1940, portanto, 34 dialetos, gírias, variedades baixas e termos estrangeiros podiam circular bem mais que em outras formas de comunicação. 1.2.1.2 Os anos de guerra Nos anos de guerra (1939-1945), o uso fílmico do dialeto adquiriu mais vivacidade e expressividade, apesar do período de repressão pelo qual ainda passava. Mas, como observa Rossi (2006, p. 174), o regime fascista possuía uma alma dupla: por um lado, queria passar uma imagem moderna e eficiente, principalmente no exterior, de uma única e ilustre língua para uma nação compacta e forte, o que não condizia com a ruralidade e fragmentação dialetal próprias da realidade do país; por outro, não queria renunciar a atitudes populistas, ligadas às origens populares e dialetais dos italianos. Raffaelli (1992, p. 99) afirma que, durante a guerra, a dimensão dialetal afirmou-se também na produção dramática, mas nem sequer nessa fase as inserções – mesmo que amplas e frequentes – conseguem ter mais que função simbólica, como a identificação étnicogeográfica, social e psicológica dos personagens ou a exaltação da Itália ―humilde‖. Rossi (2006, p. 179) salienta que muitos atores provenientes do teatro dialetal trouxeram uma substancial bagagem dialetal ao cinema: depois de Petrolini, Viviani e Dina Galli, chegam outros atores dialetais célebres nos anos 1930, como o catanês Angelo Musco, o veneziano Cesco Baseggio, Erminio Macario, os irmãos De Filippo, Anna Magnani e Totò, e, em 1942, debutam também no cinema o ator genovês Gilberto Govi e o romano Aldo Fabrizi. Com relação ao último ator, Rossi (2006, p. 181) afirma que os três filmes estrelados por ele (Avanti c‟è posto..., 1942, e Campo de‟ Fiori, 1943, ambos de Mario Bonnard; e L‟ultima carrozzella, 1943, de Mattoli, sendo os dois últimos com Anna Magnani) inauguram um romanesco realista das pessoas pobres, que, graças a Roma città aperta (com Fabrizi e Anna Magnani), abrirá o caminho para o Neorrealismo. Em Avanti c‟è posto, Fabrizi personifica totalmente o romanesco, e, de acordo com Raffaelli (1992, p. 99-100), certas expressões usadas por ele, como «Che me ne frega», «Mo‟ questo viè», «Basta che se magna»29, entram em sintonia com uma Roma documentária, em pleno clima de guerra. Segundo Rossi (2006, p. 185-86), os três filmes acima comentados confirmam a tendência do romanesco de tornar-se predominante na cinematografia italiana, sobretudo pelo fato de Roma ser a capital do cinema, onde as histórias eram contadas e ambientadas. Além 29 Respectivamente: «Eu não me importo», «E agora ele vem», «Desde que eu coma». 35 disso, tais filmes foram responsáveis por introduzir gradualmente as temáticas da guerra e pobreza, típicas do Neorrealismo. 1.2.2 Língua italiana e dialeto no cinema italiano do pós-guerra Como informamos anteriormente, apresentaremos a seguir um panorama sobre o emprego e a relação entre língua italiana, línguas e dialeto depois de 1945 até os dias atuais, partindo das contribuições de Sergio Raffaelli (1983, 1992), Fabio Rossi (1999, 2006, 2007) e Eusebio Ciccotti (2001). Começaremos apresentando a reconstrução cronológica feita por Raffaelli (1992, p. 102), o qual dividiu seu estudo sobre o dialeto fílmico em três grandes etapas: 1) etapa da ―dialetalidade imitativa‖ (entre 1945 e 1952); 2) etapa da ―dialetalidade estereotipada‖ (até 1962); e 3) etapa da ―dialetalidade expressiva e reflexa‖ (a partir de 1962 até os anos 1980). 1.2.2.1 Dialetalidade imitativa – Neorrealismo (1945-1952) Antes de iniciarmos a apresentação dos filmes pertencentes à corrente cultural Neorrealista, é intenção discutir algumas definições, à luz dos estudiosos do tema. Sobre as origens do termo Neorrealismo, Stefania Parigi (2014, p. 19-20) afirma que tal termo entra no debate sobre o cinema italiano somente nos primeiros meses de 1948, quando muitas obras do pós-guerra já tinham sido realizadas. Todavia, a autora aponta o estudioso Sadoul (1947), o qual afirmava que tal palavra seria de origem francesa e teria sido usada já nos anos 1930. De fato, o uso do termo no cinema precede o pós-guerra italiano e está relacionado às obras dos autores do realismo poético: Jean Renoir, Marcel Carné, Julien Duvivier. Para a reconstrução do uso do termo Neorrealismo na Itália, Parigi (2014, p. 21) cita os estudos de Gian Piero Brunetta (1993), que observa que o vocábulo é oficializado no campo literário em 1928, por Ettore Lo Gatto. Este intitula de ―Dal futurismo al neorealismo‖ o primeiro capítulo do seu livro Letteratura soviettista. Apesar de o uso da palavra ter tido início na literatura, boa parte dos intelectuais reconheceu o cinema, devido a seu sucesso internacional, como primeiro detentor e centro irradiador deste termo, conforme atesta Gianfranco Contini (1968) em Letteratura dell‟Italia unita: «a etiqueta de Neorrealismo se atribui, antes mesmo que à narrativa, ao cinematógrafo 36 do pós-guerra» 30. Mas, ainda conforme Parigi (2014, p. 24), passariam muito anos antes que os próprios diretores se reconhecessem sob uma etiqueta que julgavam limitada e constritiva. No que concerne às origens do Neorrealismo, não podemos deixar de considerar os movimentos literários que anteciparam e foram a base para o desenvolvimento dessa corrente, como o naturalismo. Roncoroni (1989, p. 239-40) relata que o naturalismo nasce na França na metade do século XIX e tem como protagonistas escritores como Flaubert, Maupassant, Balzac e Zola, sendo este último o fundador e maior teórico do movimento. Através da observação direta da sociedade, Émile Zola determinou os princípios dessa corrente estética na teoria do Romance experimental, que se contrapunha à literatura construída artificialmente de até então. Segundo Zola, o escritor não deveria escrever da sua mesa de trabalho, mas deveria estar no meio das pessoas, vivendo as situações nos lugares onde seriam inseridos os personagens de seu romance; deveria anotar todas as suas impressões e, em casa, transcrever de modo imparcial e distante, como um cientista relata o seu experimento. Nesse sentido, os naturalistas se concentravam nos personagens que até então a literatura havia esquecido, especialmente a plebe parisiense, os deserdados que viviam à margem da sociedade, os minadores e o proletariado em geral, todos analisados em direta relação com o ambiente que os circundava. Na Itália, em 1870, essa tendência ao real nasce com o nome de verismo, movimento que se apropria das principais características do naturalismo, tais quais: o escritor-cientista que reproduz a realidade vivida; a realidade social analisada e estudada cientificamente, tendo como leis a hereditariedade e o condicionamento ambiental; e a escrita refletindo a realidade como um documento objetivo, sem deixar transparecer a opinião do autor. Tendo em vista a peculiar história italiana, no que tange à ―questão social‖ os veristas da época acrescentam a ―questão meridional‖, caracterizada pela divisão do país entre Norte e Sul em um atrasado processo de industrialização, tendo como argumento principal as duras condições dos seus lugares de origem, uma vez que a maioria dos escritores vinha do Sul da Itália. Sendo assim, Roncoroni (1989, p. 240) afirma que o verismo adquiriu um ―caráter regionalista‖, já que a realidade italiana mudava conforme a região. Na realidade italiana, além de todas as características acima citadas, havia a questão da língua, que, segundo o movimento, deveria aderir aos fatos e, portanto, abandonar as formas retóricas e românticas; a língua devia ser «a expressão substancialmente objetiva do mundo representado» 31 e compreender elementos dialetais como documentos da realidade. O 30 l‘etichetta di neorealismo si applica, ancor prima che alla narrativa, al cinematografo dell‘immediato dopoguerra. 37 maior representante do verismo foi Giovanni Verga (1840-1922), o qual representou objetivamente nos seus romances as pessoas humildes e oprimidas da sua Sicília, mas mostrou também que a impessoalidade e a objetividade absolutas eram inalcançáveis e que o papel do escritor era fundamental na descrição direta da realidade (RONCORONI, 1989, p. 241). Parigi (2014, p. 32) observa que os críticos cinematográficos Alicata e De Santis propõem que a obra de Verga é fonte de inspiração para um cinema que procure representar a realidade das pessoas humildes e oprimidas, tornando-se o modelo de uma arte revolucionária. Mas, além da influência verista, são de muita importância para os cineastas e realizadores da época os ensinamentos de Umberto Barbaro, que, juntamente com Luigi Chiarini, representa a voz de referência para a geração de jovens que se formaram no Centro Sperimentale di Cinematografia em pleno regime fascista. Barbaro apresenta não somente os clássicos soviéticos, as teorias de Pudovkin, Ejzenštejn, Balázs, Arnheim, mas elabora uma ideia de cinema militante, baseada na contraposição com o cinema cômico-sentimental (telefones brancos), propondo como alternativa um realismo de caráter nacional impregnado da tradição meridionalista. Seguindo as afirmativas de Parigi (2014, p. 33-35), a paixão verguiana de Alicata e De Santis é compartilhada por Visconti: é desse período o seu primeiro projeto não realizado, uma adaptação de L‟amante di Gramigna, censurada; além disso, havia a ideia de levar às telas a Sicília de I Malavoglia, que se concretizará somente muitos anos depois com La terra trema (1948). Mas a obra-manifesto do Neorrealismo, segundo a estudiosa, será Ossessione (1943), que rompe com o cinema fascista e recebe influências da literatura americana e do cinema realista francês de Carné e Renoir. Nesta obra, Visconti revoluciona a concepção do personagem, que não corresponde mais à artificialidade da comédia dos telefones brancos, mas encarna um homem vivo, que tem a faculdade de criar o ambiente através das próprias paixões e de dar um sentido às coisas que estão ao seu redor (PARIGI, 2014, p. 36). A propósito dessa afirmação, Parigi (2014, p. 37-38) enfatiza que havia controvérsias sobre a relação de Ossessione com o Neorrealismo, pois a crítica italiana considerava a obra viscontiana um forte gesto de ruptura com o período pré-guerra e lhe dava o papel de ponte entre o velho e o novo, enquanto que no exterior o filme acabou sendo englobado no corpo neorrealista. De qualquer maneira, a autora observa que a estética de Visconti, muito diferente da estética de De Sica e de Rossellini, apresenta em Ossessione algumas características que se 31 l‘espressione sostanzialmente obiettiva del mondo rappresentato. 38 repetirão em La terra trema: permanece a descrição da vida de pessoas comuns, em ambientações que até então não eram consideradas pelo cinema, e a descrição de situações da vida cotidiana. Devido a esses fatores, o filme, acompanhado de outros filmes dos anos 1940, mostrou sinais de mudanças, sendo considerado pela crítica um dos precursores do Neorrealismo italiano. Durante a guerra, os críticos veem no cinema de propaganda dos primeiros anos 1940 alguns elementos propulsores de uma nova orientação realista, como é o caso da trilogia de guerra de Rossellini: La nave bianca (1941), sobre a marinha; Un pilota ritorna (1942), sobre a aviação; e L‟uomo dalla croce (1943), sobre o exército. As características principais desses filmes são a ausência de atores famosos e a presença de atores não profissionais; há também o desejo de documentar, de modo que as gravações são ao aberto, as histórias são relacionadas à atualidade e os personagens não são heróis de romance, mas homens comuns. Parigi (2014, p. 40-41) observa que a crítica da época denominou essas obras como «documentário romanceado», indicando-as como filmes de propaganda «veristas», com intenções patrióticas e antirretóricas: em vez da exaltação da guerra fascista, tem-se um olhar piedoso na direção do sofrimento e das feridas dos indivíduos. Assim como Roma città aperta e Paisà, os filmes de propaganda rossellinianos já contavam com a presença do coro e do encontro/desencontro de culturas, etnias, ideologias e classes sociais. Além desses fatores, Parigi (2014, p. 42) sublinha o filme Un pilota ritorna, que introduz o plurilinguismo de Paisà. Para Raffaelli (1992, p. 107), a principal contribuição do Neorrealismo foi ter dado ―dignidade‖ ao dialeto: «pela primeira vez na história da cinematografia italiana, o dialeto encontrava-se ao lado do italiano e também das línguas estrangeiras, em uma posição de total igualdade» 32. O dialeto exibe a própria ―dignidade‖ já em Roma città aperta, filme que, segundo Raffaelli (1992, p. 107), oferece uma representação linguística verossímil da Roma de 19431944. Temos, de um lado, o alemão dos militares ocupantes e, de outro, o romanesco do povo e o italiano dos pequenos burgueses e dos não romanos: é o alemão como código da guerra, o italiano da razão, o ―dialeto dos afetos‖; o romanesco e o italiano, dependendo da situação, podem revezar-se ou mudar o grau de formalização, características que comentaremos na análise do nosso corpus, no quarto capítulo. Com relação ao uso do dialeto, Raffaelli (1996, p. 590) afirma que em Roma città aperta o romanesco foi usado para criar uma relação de entendimento e sintonia emotiva 32 per la prima volta nella storia della cinematografia italiana, il dialetto si trovava accanto l‘italiano e anche delle lingue straniere in una posizione di totale parità. 39 entre os romanos: «O dialeto, usado para criar laços exclusivos de entendimento e de sintonia emotiva entre romanos, moveu-se ao longo de uma escala de variações que ia da espontaneidade à ênfase vigiada». 33 Como exemplo, temos Pina com o filho e seu desabafo- confissão a don Pietro (os traços fonéticos em romanesco são destacados em negrito): (P: Pina) *P: T‘ho detto tante vorte che nun ce devi stà su da Romoletto... Je devi dì che devi venì subbito. Sbrighete. Nun te pèrde pe strada, eh! *P: E la vita diventa sempre peggio... Ma chi ce la farà dimenticà tutte „ste sofferenze, tutte „ste ansie, ‗ste paure... Raffaelli (1992, p. 107) observa que o italiano também apresentou oscilações no filme. Por exemplo, na conversa de Francesco com Pina, com a passagem gradual do momento de afeto em forma dialetal («Piagni? Viè un po‘ de là») para afirmações universais (ausência de dialeto): (Personagem: *F: Francesco) *F: Noi lottiamo per una cosa che deve venire. Forse la strada sarà un po‘ lunga e difficile... ma arriveremo, e lo vedremo, un mondo migliore! E soprattutto lo vedranno i nostri figli. Voltando às características do Neorrealismo, Rossi (2006, p. 189-90) aponta outro aspecto inovador importante do movimento: o fato de ter dado voz central aos personagens que antes eram apenas figurantes, abrindo caminho para a língua falada em dialeto. Para o estudioso, isso tudo aconteceu em um momento em que a Itália estava finalmente conquistando uma língua falada unitária e, portanto, podia reavaliar e pôr em cena, sem ter vergonha, o plurilinguismo dialetal. O autor afirma que não foi por acaso que o aumento da dialetalidade nos filmes subiu com o aumento da competência linguística dos italianos: de fato, ele observa que os filmes neorrealistas registraram um sucesso de ―elite‖ (críticos e intelectuais), enquanto que em nível popular foram preferidos filmes como Catene, de 1950, de Raffaello Matarazzo, cujos protagonistas (um mecânico e uma dona de casa) não falavam o napolitano de 1949, mas um italiano standard. A partir do Neorrealismo, portanto, o cinema deixa de exercer a função de escola de língua (de 1954 até os anos 1970-1980, deixará à televisão tal incumbência) para assumir o papel de «espelho das línguas» (SIMONE, 1987). 33 Il dialetto, usato per creare legami esclusivi d‘intesa e di sintonia emotiva fra romani, si mosse lungo una scala di variazioni che andava dalla spontaneità all‘enfasi sorvegliata. 40 Mas será sempre um espelho simplificador, devido à estereotipia presente no cinema ou às deformantes soluções expressionistas. Contudo, como argumenta Raffaelli (1992, p. 103), a expansão do dialeto não foi imediata e imponente, tanto é que a maior parte da produção italiana continuou a ser integralmente italófona, dando-se preferência muitas vezes ao italiano standard, como nos filmes: Miserabili, 1947, de Riccardo Freda; Cuore, 1948, de Duilio Coletti; Fabiola, 1948, de Blasetti; In nome della legge, 1949, de Pietro Germi, além dos filmes melodramáticos, como Catene, já mencionado anteriormente. Apesar disso, o estudioso evidencia que começou a difundir-se uma corrente produtiva muito heterogênea, que desenvolveu uma tendência existente já em plena guerra, aceitando inserções dialetais em um contexto italófono. Tal uso novo do dialeto – novo nos objetivos, nas modalidades, nos resultados – foi de grande importância histórica a partir de Roma città aperta, 1945, de Roberto Rossellini, filme que marca o início da fase da ―dialetalidade imitativa‖. Uma vez que o presente estudo é centrado no componente linguístico dos filmes, combinando o estilo dos diálogos com as outras características típicas do Neorrealismo (as intenções ideológicas, gravações ao aberto, atores não profissionais, sujeitos não literários, presença do coro etc.), acreditamos ser necessário esclarecer o critério utilizado por Fabio Rossi (2006), que chama de neorrealistas somente os seguintes oito filmes: Roma città aperta, 1945, de Roberto Rossellini (roteiro de Rossellini, Sergio Amidei, Federico Fellini); Paisà, 1946, de Rossellini (roteiro de Rossellini, Fellini, Amidei, Klaus Mann); Il sole sorge ancora, 1946, de Aldo Vergano (roteiro de Vergano, Guido Aristarco, Giuseppe De Santis, Carlo Lizzani); Sciuscià, 1946, de Vittorio De Sica (roteiro de De Sica, Cesare Zavattini, Amidei, Adolfo Franci, Cesare Giulio Viola); Ladri di biciclette, 1948, de De Sica (roteiro de De Sica, Zavattini, Oreste Biancoli, Suso Cecchi D‘Amico, Franci, Gherardo Gherardi, Gerardo Guerrieri); La terra trema, 1948, de Visconti (roteiro de Visconti e Franco Zeffirelli, além dos habitantes de Aci Trezza e atores não profissionais do filme); Il cammino della speranza, 1950, de Pietro Germi (roteiro de Germi, Fellini, Tullio Pinelli); e Umberto D., 1952, de De Sica (roteiro de Zavattini) (ROSSI, 2006, p. 102). Nesta mesma direção, Raffaelli (1992, p. 109-110) observa que os filmes do Neorrealismo e do pós-guerra foram numericamente poucos e inevitavelmente alterados pelo processo de elaboração fílmica, sendo, para ele, confiáveis apenas os primeiros filmes neorrealistas, como: Roma città aperta e Sciuscià, em que predomina o romanesco «‘Sto morto de fame!»34 em contraposição psicológica e social ao italiano dos adultos; e Paisà, 34 Este morto de fome!. 41 1946, de Roberto Rossellini, filme de guerra que se desenvolve em seis etapas – da Sicília (julho de 1943) ao Delta padano (abril de 1945), impõe-se como perfil de uma Itália linguística, sobretudo dialetófona, em contato brutal com a língua estrangeira: (uma mulher) «Ricuzzo! Madonna mia, cu è? Che volete, chi siete!?» ‗Ricuzzo! Minha Nossa Senhora, quem é? O que querem, quem são?‘; (um soldado americano) «What can I do?» ‗O que posso fazer?‘. A seguir, apresentaremos algumas reflexões feitas pelos estudiosos sobre os filmes considerados neorrealistas. Em Il sole sorge ancora, de Aldo Vergano, Rossi (2006, p. 196) verifica que houve a utilização do dialeto lombardo, com exceção do protagonista, dublado, e das protagonistas. O estudioso observa a discrepância entre o italiano dos personagens principais e o dialeto das figuras secundárias do filme de Vergano, o que estaria de acordo com filmes dos anos 1930; por outro lado, mostraria vários pontos em comum com Roma città aperta, sobretudo no uso simbólico do plurilinguismo: além do italiano e do dialeto (com função ora ideológica, ora afetiva), tem-se o alemão dos soldados ocupantes, o italiano dos alemães e o latim presente na reza de don Camillo. Outro detalhe importante apontado pelo autor é que esse filme foi financiado pela Associazione Nazionale Partigiani d‟Italia, tornando-o mais ideológicodidático que mimético-documentário e, talvez por essa razão, tenha sido visto como fora do grupo de filmes neorrealistas por alguns críticos. Rossi (2006, p. 196) concorda com a afirmação de Raffaelli no que diz respeito à língua realista de Sciuscià, de De Sica, filme que representou quase sem censura o mundo linguístico dos adolescentes marginais, recorrendo muitas vezes ao uso de palavrões – a fijo de „na mignotta! ‗filho da puta!‘ – e a formas de dialeto arcaicas dichi/dici ‗diz‘. Tendo em vista que em todos os filmes da época a língua das crianças era sempre artificial e muito mais italianizada que a dos adultos, esse filme teve um forte impacto sobre o público. Já a partir do título Sciuscià (deformação dialetal do inglês shoe-shine – em português, engraxate), percebese o desejo de se distanciar do italiano standard. Mas é, segundo Rossi (2006, p. 199-205), Ladri di biciclette, também de De Sica, o filme que melhor representa o Neorrealismo, pois sintetiza as características de documentário do contexto histórico com uma estrutura narrativa e visual de grande efeito que não afeta a fluidez natural da história. Para o estudioso, quase todo o mérito do filme se deve aos diálogos, que perdem as características retóricas e moralistas da fonte 35 apesar da pós- sincronização – presente em todos os filmes aqui comentados, com exceção de La terra trema. Os dialogistas do filme optaram por um romanesco de nível médio-baixo para os 35 O filme é baseado no livro de Luigi Bartolini, Ladri di biciclette, 1946. 42 protagonistas e para os personagens secundários, em contraposição com o italiano formal da burguesia. Como exemplo, temos a cena da missa beneficente organizada por um grupo de pessoas ricas e religiosas, mas ao mesmo tempo insensíveis ao drama de Antonio; o italiano standard e o latim tornam-se códigos da frieza, da hipocrisia e da indiferença da igreja, quando se relaciona às pessoas pobres, todas dialetófonas. La terra trema, de Luchino Visconti, é, para Rossi (2006, p. 208), um dos poucos filmes nos quais o dialeto foi integralmente reproduzido, já que todos os personagens - não atores, mas habitantes do lugar -, recitam utilizando a variedade catanese de Aci Trezza. O filme é inspirado na obra verista I Malavoglia, de Verga, mas a moral do romance é derrubada: em vez da fatalista aceitação do próprio status, Visconti apresenta a luta social e a tentativa de emancipação por parte dos pescadores. Mas Rossi observa que, quanto à escolha linguística, este filme demonstra uma artificialidade do ponto de vista pragmático e sociolinguístico: os diálogos viscontianos foram, de fato, escritos em italiano e depois traduzidos pelos próprios atores, com a ajuda de Franco Zefirelli e Francesco Rosi; tal processo de tradução tornou os diálogos se tornassem longos e articulados, não combinando com o ambiente social, perdendo, assim, a sua espontaneidade popular. Comentando sobre o filme Il cammino della speranza, de Pietro Germi, Raffaelli (1992, p. 111-12) observa que a maioria dos personagens se exprime em um italiano quase sem sotaque, com exceção de alguns personagens secundários nos quais se verifica presença de sicilianismo fonético nos mafiosos menores, embora a intenção de denúncia pudesse pedir a adoção do dialeto. Mas, ao mesmo tempo, o filme apresenta-se como um diário coral de uma transmigração de sicilianos à procura de trabalho no exterior, através da Península e das suas diversidades linguísticas, participando, desse modo, do clima neorrealista. Concluindo os comentários sobre os filmes neorrealistas, Raffaelli (1993a, p. 31-32) observa que em Umberto D., 1952, de De Sica, diferentemente dos filmes precedentes, a trama dá espaço a um protagonista único: o ator-professor Carlo Battisti 36. O filme mostra o seu engajamento social, dedicado ao problema das aposentadorias muito baixas e da depressão dos idosos. De um ponto de vista linguístico, o texto de Umberto D. «propõe uma representação verdadeira e artisticamente funcional do vasto repertório dos recursos comunicativos verbais de uma Roma etnicamente e socialmente heterogênea» 37 . De fato, temos o italiano formal e sem sotaque: «Vorrei tenerlo ancora un po‟ qui, per fargli la cura completa» ‗Gostaria que o senhor ficasse mais para lhe fazer o tratamento completo‘; o 36 37 Sobre a figura de Carlo Battisti, professor e ator, e a sua relação com o cinema neorrealista BANFI (1993). propone uno spaccato veritiero, oltre che artisticamente funzionale, del composito repertorio delle risorse comunicative verbali d‘una Roma etnicamente e socialmente eterogenea (RAFFAELLI 1993a, p. 31). 43 italiano de uso médio: «Al trenta le butto fuori la valigia; riceverà lo sfratto!» ‗No dia trinta vou mandá-lo embora com a mala; será despejado‘; o italiano standard com sotaque setentrional do protagonista: «Siédi, cara; prendi lo sgabello» ‗Sente-se, cara, pegue o banquinho‘; os dialetos centro-meridionais: «Poss‟assette cche» ‗Posso sentar-me aqui‘. Raffaelli (1992, p. 112) faz uma relação do cinema neorrealista com o público, afirmando que tais filmes não tiveram muito sucesso de bilheteria: Roma città aperta ficou em primeiro lugar na temporada 1945-1946, com 162 milhões de liras; Paisà ficou em nono na temporada seguinte, com 100 milhões (em primeiro, ficou Rigoletto, de Gallone, com 224 milhões); Ladri di biciclette colocou-se em décimo primeiro na temporada 1948-1949, com 252 milhões (em primeiro, veio Fabiola, de Blasetti, com 572 milhões). Foram desastres comerciais Sciuscià e, sobretudo, La terra trema, com custo de 120 milhões de liras, e 35 de entrada. Portanto, o estudioso deduz que estes célebres filmes não foram capazes de fornecer uma competência linguística ativa aos italianos e que pouco contribuíram para o enraizamento da consciência do caráter regional dos dialetos. Como consequência desse insucesso, houve uma preocupação em conciliar as instâncias expressivas com as resistências do mercado italiano, o que levou os cineastas da época a diminuir o emprego dos dialetos (RAFFAELLI, 1992, p. 113) e adotar o romanesco, muito semelhante ao italiano ou, então, limitar a diálogos isolados as inserções em dialeto. Assim fizeram De Sica e Zavattini em Umberto D., filme que mostra um italiano composto da Roma de 1950. Paralelamente aos filmes neorrealistas, desenvolveu-se uma produção mais tradicional, com tendência a um italiano menos vigiado, que aceitava alguns diálogos em dialetos de várias proveniências. Entre outros exemplos, temos: Anni difficili, de Luigi Zampa (siciliano); Molti sogni per le strade, de Camerini (romanesco); e Il mulino del Po, de Alberto Lattuada (emiliano), todos de 1948 (RAFFAELLI, 1992, p. 114). Contudo, segundo Raffaelli (1992, p. 115), nem este tipo de produção foi capaz de fornecer competências novas ao público do pós-guerra. É importante observar, porém, que a sua incidência linguística, mesmo que indireta, determinou um clima de tolerância com relação ao uso do dialeto fílmico, sobretudo no âmbito fonético, diferentemente do modelo oferecido pelo rádio, pelo cinema nacional (de atualidade, documentário) e pelo cinema estrangeiro dublado. Além dos filmes neorrealistas acima nominados e comentados, Ciccotti (2001, p. 274) nos apresenta outros filmes dessa época em que há o emprego do romanesco fílmico, inspirados em um recorte realístico, porém mais no âmbito da comédia: Natale al “Campo 119”, 1947, de P. Franscisci; Mio figlio professore, 1946, e Sotto il sole di Roma, 1948, 44 ambos de R. Castellani; Roma città libera, 1948, de M. Pagliero; Una domenica d‟agosto, 1949, de L. Emmer; e Emigrantes, 1949, de A. Fabrizi. Para Ciccotti (2001, p. 274), o objetivo principal nesse período, no que diz respeito ao emprego do romanesco, era o «de reforçar a sensação de realidade transmitida pelas histórias» 38 . Por isso, era comum que autores não romanos, como Visconti, Amidei, Castellani, Comencini, Flaiano, Fellini, Pasolini, tentassem apropriar-se dessa variedade romana ou se apoiassem em autores romano-laciais (Zampa, Rossellini, De Sica, Cecchi D‘Amico, De Santis); ou, ainda, utilizassem atores romanos (A. Magnani, A. Fabrizi) ou, enfim, pedissem a tradução dos diálogos do italiano para o romanesco, como aconteceu em Mio figlio professore. Em Sotto il sole di Roma, Ciccotti (2001, p. 275) nos mostra a utilização de algumas formas sintáticas do italiano standard – provenientes da área setentrional e toscana: (voz do narrador) «[...] stava in casa»/―estava em casa‖, em vez de a casa como se usa no Centro-Sul – juntamente com o romanesco ―clássico‖ – (a mãe a Ciro) «Almeno va‟ a aprì, non senti che soneno!» ‗Pelo menos vai abrir, não está escutando que tocam a campainha!‘; (um dos rapazes na cena da academia de boxe) «È „na parola entrà, me dichi tu come?» ‗Parece fácil entrar, me fala como?‘ – e um italiano regional – «A papà so‟ tutte così le donne?» ‗Papai, todas as mulheres são assim?‘. No caso da palavra ―dichi‖, de fato, esta é considerada pertencente ao romanesco ―clássico‖, ou ―de segunda fase‖ (VIGNUZZI, 1994, p. 29) 39. No mesmo grupo dos filmes antes mencionados, Ciccotti (2001, p. 275) observa que em Emigrantes há a presença de um mistilinguismo italiano-espanhol no personagem de Aldo Fabrizi («Buenos dias [...] Ecco, scusi, siccome io dovrei tomare una casetta, una casita, m‟hanno chiesto dos mesi di deposito [...]» ‗Bom dia [...] Desculpe, como tenho que alugar uma casa, me pediram dois meses de depósito‘) e de uma alternância de códigos: do romanesco («Domani venghi a lavorà qui che ho parlato co ingegnere te pija come idraulico» ‗Amanhã venha trabalhar aqui, que eu falei com o engenheiro, te pega como hidráulico‘) para o italiano standard e regional. Todavia, o autor considera pouco verossímel o italiano da jovem filha do casal romano, que usa um italiano standard, sem inflexão; ao mesmo tempo, o autor explica que tal ―língua falsa‖: era aceita pelo público porque o personagem popular, pobre, falando um italiano rico de léxico e estruturas sintáticas, sem regionalismos, tornava-se uma imagem 38 39 di rafforzare il senso di realtà trasmesso dalle storie. O conceito de romanesco de segunda fase será explicado no segundo capítulo, quando trataremos da questão da evolução do romanesco. 45 projetiva para jovens italianos do pós-guerra, que se moviam entre miséria e ignorância à procura de uma promoção social, também através de uma moça humilde, mas linguisticamente ―vencedora‖. 40 A seguir, apresentaremos alguns exemplos de filmes pertencentes ao período que vai de 1952 a 1962, denominado Neorrealismo rosa. 1.2.2.2 Dialetalidade estereotipada – Neorrealismo rosa (1952-1962) A união entre a comunicação verbal cotidiana e a fala fílmica, que o Neorrealismo havia instaurado em suas obras-primas, começou a se enfraquecer depois de 1948, pelos motivos já exemplificados anteriormente. Como consequência disso, a língua fílmica iniciou uma fase de pesquisa linguística que durou até os anos 1960. A transformação profunda da realidade italiana e, portanto, também da língua como, por exemplo, a contração e diluição dos dialetos, expansão compensadora de um italiano marcado por traços locais, aumento do contato com estrangeiros, provocou reflexos brandos e alterações superficiais na fala fílmica daqueles anos. A depressão industrial e criativa do cinema nacional obrigou os produtores e cineastas, por óbvios motivos de mercado, a escolher uma produção mais leve e convencional, moldando o código originário de acordo com as exigências da compreensão e da atratividade (RAFFAELLI, 1996, p. 320-21). Nesta fase, que Raffaelli (1992, p. 118) denomina ―dialetalidade estereotipada‖, ou ―Neorrealismo rosa‖, temos a presença generalizada de uma «língua falada formal, construída no pleno respeito das regras sintáticas, morfológicas e fonológicas» 41 (BRUNETTA, 1982), que continuou a prevalecer na produção nacional, seja de alto nível (em Giulietta e Romeo, 1954, de Castellani), seja popular (em Arrivano i dollari!, 1957, de Costa), e foi rigorosamente adotada em toda a produção estrangeira dublada. Este italiano, com o apoio da rádio e, a partir de 1954, também da televisão, incidiu na formação linguística dos italianos; mas foram os filmes dialetais a darem o maior impulso à evolução linguística daqueles anos. Raffaelli observa que tanto Menarini (1955, p. 174) como Migliorini (1990, p. 117) haviam notado que muitos destes filmes de menor valor exerciam grande influência, e cita De Mauro (1995, p. 123-24), que afirma que tal influência favoreceu a criação de uma «variedade 40 era accettata dal pubblico perché improvisamente il personaggio popolare, povero, vestendo un italiano impeccabile, ricco di lessico e strutture sintatiche, privo di regionalismi, diveniva immagine proiettiva per giovani italiani del dopoguerra, che si muovevano tra miseria ed ignoranza, alla ricerca di un ricatto sociale, anche attraverso una figura di ragazza unole ma linguisticamente ―vincente. 41 lingua parlata formale, costruita nel pieno rispetto delle regole sintatiche, morfologiche e fonologiche. 46 popular unitária de italiano» 43 42 e a difusão da «consciência do caráter regional dos dialetos» . Em sua análise diacrônica, Raffaelli (1996, p. 323) nos faz perceber, na filmografia italiana da década de 1950, a presença complementar dos dialetos, que muitas vezes se cruzavam como reflexo da formação de centros urbanos pluridialetais. Isso pode ser observado não só nos filmes de atualidade (com atores dialetais como o lombardo Scotti, o romano Fabrizi, o napolitano Taranto), mas também em filmes dramáticos e históricos, como Senso, 1954, de Luchino Visconti, com inserções vênetas: «la senta, siora»/‖escute-a, senhora‖. Contudo, segundo afirma o autor (RAFFAELLI, 1992, p. 119), até os anos 1960 as manifestações dialetais não foram capazes de fornecer aos telespectadores novas competências ativas, como também não ajudaram na compreensão dos dialetos desconhecidos. A contribuição maior ao processo de transformação linguística continuou sendo indireta, instaurando-se uma familiaridade com as realizações verbais anômalas e compostas. Todavia, o autor relata que, na metade dos anos 1950, houve uma variação relevante: a redução dos filmes pluridialetais e o aumento do uso do romanesco, com um retorno dos dialetos de várias proveniências, juntamente com a corrente napolitana, já no final da mesma década. Sobre o uso do romanesco fílmico, Ciccotti (2001, p. 277-79) nos dá outros testemunhos da cinematografia italiana daqueles anos: Bellissima (1951), de Visconti, com o uso de um romanesco clássico: «A Ni‟ come li tenevi l‟occhi, aperti?» ‗Ni‘, você estava com os olhos abertos?‘; no mesmo ano, Europa ‟51, de Rossellini, onde o autor observa, na cena das prostitutas, que o contexto neorrealista é reforçado pelo romanesco conservador: «[...] T‟abbotto er grugno!» ‗Vou te encher de tapa na cara!‘ / [...] / [...] «Va‟ a morì ammazzato!» ‗Quero que você morra!‘. Outros filmes são: Roma ore 11 (1952), de De Sanctis, história dramática de mulheres romanas; e Le ragazze di Piazza di Spagna (1952), de Emmer, sobre as desventuras/aventuras de três garotas plebeias. Ciccotti (2001, p. 277) observa que, nos dois filmes, o romanesco aparece muito próximo do italiano, que se reveza com o italiano popular. O romanesco fílmico se impôs, portanto, na metade dos anos 1950, competindo com a língua nacional, em uma relação de recíproca influência, mas permanecendo inadequado como solução linguística alternativa ao italiano na comunicação cotidiana dentro da própria 42 varietà popolare unitaria di italiano. 43 coscienza del carattere regionale dei dialetti. 47 Roma. É um romanesco cativante, simpático, mas que não existe: é construído pelos roteiristas e produtores, denominado por Rafaelli (1992, p. 122) romanesco “di maniera‖. Entre 1953 e 1956, como observou Raffaelli anteriormente, veremos o uso desse romanesco ―di maniera‖ com a intenção apenas de ―colorir‖, como no filme Anni facili (1953), de Zampa, apontado por Ciccotti (2001, p. 277). Isso porque os produtores achavam que o romanesco tivesse cansado o público, além do fato de que a crítica queria ouvir um italiano standard. Outros filmes desse período elencados pelo autor são: Racconti romani (1955), de Franciolini (baseado no livro de Moravia); e I pappagalli (1955), de Paolinelli, com o romanesco conservador de Aldo Fabrizi e o romanesco conservador-italianizado, típico de A. Sordi. Mas, segundo Ciccotti (2001, p. 279), é com o filme popular Poveri ma belli (1956), de Risi, que se consuma o ―homicídio‖ do romanesco conservador, «responsável por mostrar à plateia cansada os restos neorrealistas» 44 . Nele, os protagonistas falam um italiano quase standard, improvável na boca de pessoas do povo da época, refletindo a ideologia consoladora do filme; segundo Rossi (1999, p. 451), «desaparecem os traços mais populares do romanesco, para dar espaço a um código misto bem mais artificial que o italiano regional médio efetivamente falado em Roma» 45. Ciccotti (2001, p. 280) exemplifica o romanesco “di maniera” com o filme de Risi, que se configura sob dois aspectos principais – nos níveis lexical e frasal: a) romanesco “di maniera” lexical: quando uma ou duas formas lexicais são inseridas no contexto do ―italiano médio-standard‖ com o objetivo de ―coloração linguística local‖: «Ah ma allora quella ci provoca, ci stuzzica, quell‟impunita, burina, analfabeta. Domani appena la vedo sai che le dico? Le dico [...] ‗Ah, mas então ela nos provoca, aquela impune, caipira, analfabeta. Amanhã assim que a vir, sabe o que lhe digo? Vou lhe dizer [...]‘; b) romanesco “di maniera” frasal: quando aparecem algumas expressões famosas: «A Romolo quanno t‟acchiappo te faccio (s)sta a (l)letto „na settimana» ‗Romolo, quando eu te pegar, te faço ficar na cama uma semana‘; «Ahó sai che (t)tu‟ sorella s‟è (f)fatta carina? Tra due anni è (b)bona pure subbito!» ‗Ehi, sabe que a sua irmã ficou bonita? Daqui a dois anos será linda, já é agora!‘. Portanto, Ciccotti (2001, p. 281) concorda com Raffaelli quando este afirma que, com exceção de alguns diálogos, o romanesco de Poveri ma belli é artificial e está mais nas 44 45 responsabile di mostrare alle stanche platee gli stracci neorealisti. scompaiono i tracci più popolari del romanesco, per lasciar spazio a un codice misto ben più innaturale dell‘italiano regionale medio effettivamente parlato a Roma. 48 falas dos personagens secundários, enquanto que os protagonistas, mesmo que pouco escolarizados e humildes, falam quase sempre um italiano standard. Para Ciccotti (2001, p. 281), é somente com Le notti di Cabiria (1957), de Fellini, com a consultoria de Pasolini, que «o romanesco ―clássico‖ reencontra o seu ―papel‖ cinematográfico» 46. Conclui esta década La notte brava (1959), de Bolognini, com roteiro de Pasolini, que «anuncia, dentro do romanesco ―duro‖, a união pasoliniana de romanesco conservador e de segunda fase (de variedade médio-baixa)» 47. Os anos 1960 serão fundamentais para o romanesco de Pasolini, que, a partir de uma visão pessoal do proletariado e de sua linguagem, repropôs o romanesco ―especial‖ dos marginalizados das favelas da periferia romana com Accattone (1961), Mamma Roma (1962) e La ricota (1963). A proposta dialetal pasoliniana, mimética e expressiva de uma linguagem viva, produziu reações no mundo do cinema e fez as manifestações dialetais genuínas voltarem a ser vistas com respeito; mas, de acordo com Raffaelli (1992, p. 123), «exerceu pouca incidência sobre o público, que, depois de anos de estereotipia, se mostrou relutante e não preparado para receber tais obras» 48 . Entretanto, como ressalta Ciccotti (2001, p. 281), esta década será inaugurada ainda por um romanesco conservador: no filme Era notte a Roma (1960), de Rossellini: «Ma non ponno stà (q)qui! E lasseme pèrde! M‟avete fregato!» ‗Mas não podem estar aqui! Me deixem em paz! Vocês me enganaram‘. No fim dos anos 1950 e início dos 1960, com a ajuda da televisão e de uma produção local menos evasiva, houve o aumento de soluções linguísticas mais verossímeis. Apareceu um italiano simples e marcado por traços regionais e dialetais autênticos: em 1958, em Venezia la luna e tu, de Dino Risi, em que Alberto Sordi e Nino Manfredi fazem o papel de gondoleiros venezianos; e em 1959, em La grande guerra, de Mario Monicelli, que mistura variedades regionais e dialetos. Outro filme importante desta fase, segundo Raffaelli (1992, p. 124-25) foi Rocco e i suoi fratelli (1960), de Visconti, com o seu italiano modulado em vários registros e com diálogos em dialeto lucano e milanês. E de grande relevo linguístico foram os filmes de Ermanno Olmi: Il posto (1961), que traz um italiano do formal ao marginalizado, passando pelo italiano regional multiforme – de cidade, do operário, do funcionário, do aposentado, dos jovens – e pelo dialeto regional; e Il tempo si è fermato (1959), em que havia 46 il romanesco ritrova il suo ―ruolo‖ cinematografico. 47 annuncia all‘interno del romanesco ―duro‖, la commistione pasoliniana di conservativo e romanesco di seconda fase (di varietà medio-bassa). 48 esercitò poca incidenza sul pubblico, che dopo anni di stereotipia si mostrarono rilutanti e non preparati a ricevere tali opere. 49 a contraposição de registros nos diálogos de um montanhês idoso e de um estudantetrabalhador da cidade. Assim finalizamos os comentários sobre esse período do Neorrealismo Rosa, com a apresentação, a seguir, de outros exemplos e comentários de filmes que marcaram o cinema italiano dos anos 1960 até meados dos 1980. 1.2.2.3 Dialetalidade expressiva e reflexa (1962–final dos anos 1980) Segundo Raffaelli (1992, p. 127, 1996 p. 326), o cinema italiano entrou em uma nova era linguística em 1960. Com a mudança de setores e aspectos da vida italiana (processo de industrialização no Norte da Itália e migrações do Sul para essa região; aumento da italofonia e diminuição dos dialetos; constituição de um ―italiano popular unitário‖; atenuação dos traços dialetais sob o influxo do italiano; uso reflexo dos dialetos rurais etc.), o cinema italiano modificou a própria linguagem, adotando um repertório sempre mais articulado e funcional de recursos verbais. Pela primeira vez, o cinema foi capaz de elaborar com liberdade uma fala fílmica que aderisse às diversas situações comunicativas presentes em cada filme. As principais inovações desta fase, que afirmaram um italiano fílmico vário, foram: a adaptação das soluções gramaticais na direção de um italiano médio, a expansão de variedades miméticas de um italiano médio-baixo, a modulação expressiva dos recursos fonéticos de matriz dialetal e a abertura aos léxicos das linguagens setoriais (RAFFAELLI, 1996, p. 327). O emprego mimético de um italiano marcado por traços fonéticos, morfossintáticos e lexicais de matriz dialetal (italiano regional), que se impunha como código nacional de comunicação com o apoio do rádio e da televisão, constituiu a inovação mais importante de toda a história linguística do cinema italiano: além de contribuir para reduzir a distância entre língua nacional e fala fílmica, conseguiu impor-se como variante privilegiada de todo o repertório do cinema nacional sucessivo, a partir da ―comédia à italiana‖ (RAFFAELLI, 1996, p. 329). Fabio Rossi (2007, p. 48) nos explica que, na ―comédia à italiana‖ ou ―comédia italiana‖, o estilo linguístico está quase sempre ligado ao uso dos italianos regionais, principalmente do romanesco, que aparece também em formas híbridas. De acordo com Raffaelli 49 , será somente a partir dos anos 1960 que o cinema influenciará linguisticamente os italianos: 49 Raffaelli em (CARPITELLA/DE MAURO/RAFFAELLI/NAPOLITANO, 1986, p. 171). 50 O cinema é capaz de influenciar diretamente a competência linguística dos italianos somente a partir dos anos 1960, quando a adesão da comédia à realidade leva o cinema a modelar a linguagem fílmica na língua coloquial, considerada por muitos um italiano regional. 50 Segundo Raffaelli (1992, p. 130), o filme inaugural desta tendência linguística foi Il sorpasso (1962), de Dino Risi (segundo filme analisado no corpus). Ciccotti (2001, p. 281) nos fala que foi um filme que uniu o italiano standard e o romanesco atualizado pela gíria do boom econômico dos anos 1950. O protagonista Bruno, segundo Rossi (2006, p. 347-48), é: um personagem fanfarrão e patético, como pode-se perceber através da sua língua, ―romanamente‖ colorida e repleta de referências culturais baratas e superficiais, [...] O italiano médio e o italiano regional começarão a ser vistos como ―normais‖ aos ouvidos dos italianos [...]. 51 A esse respeito, verificamos o uso do romanesco (em negrito, a seguir) no diálogo entre os protagonistas, enquanto eles ultrapassam de carro uma família em uma ―sidecar‖: [Bruno]: E nonno/ non è voluto venì? L‘avete lasciato a casa? Le belle famiglie italiane// Buon viaggio! ―E io me la portai al fiume credendo che fosse una ragazza e invece aveva marito‖// Eh/ la so a memoria// Ho messo il disco di Foà da Terracina a Roma// E... come si chiama... la... La sposa infedele/ di di/ coso/ quello spagnolo/ quello un po‘... [Roberto]: Garcìa Lorca// [Bruno]: Ah/ ce l‘hai pure tu il disco// Tiè/ metti questo// È Modugno// Perchè a me la poesia mica me convince tanto// Me piace la musica a me// Questa per esempio/ questa è forte// È mistica/ „na cosa che te fà pensà/ la musica// A me Modugno mi piace sempre// Quest‘Uomo in frac me fa impazzì... Perché... pare ‟na cosa da niente/ invece/ ahó/ c‘ tutto: la solitudine/ 50 Il cinema in grado di influire direttamente sulle competenze linguistiche degli italiani soltanto a partire dagli anni Sessanta, quando l‘aderenza anche della commedia alla realtà induce a modellare il parlato filmico sulla lingua quotidiana, che per molti un italiano con varianti per cos dire ‗regionali‘. 51 un personaggio nel contempo sbruffone e patetico, come ben risulta dalla sua lingua, romanamente colorita e infittita di riferimenti culturali spiccioli e superficiali, [..] L‘italiano dell‘uso medio e l‘italiano regionale (realisticamente eseguito) cominciano a entrare stabilmente negli schermi e a risuonare ―normali‖, negli orecchi degli italiani [...]. 51 l‘incomunicabilità/ poi quell‘altra cosa/ quella che va de moda oggi/ la... l‘alienazione/ come nei film d‘Antonioni/ no? L‘hai vista L‟eclisse? [Roberto]: S // un film... [Bruno]: Io c‘ho dormito: ‟na bella pennichella// Bel regista/ Antonioni// 52 Entre as primeiras comédias à italiana em que há o uso do italiano regional, temos La voglia matta (1962), de Luciano Salce; do mesmo ano, I nuovi angeli, de Ugo Gregoretti. Este italiano regional estendeu-se também aos filmes de denúncia Le mani sulla città (1963), de Francesco Rosi, e Indagine su un citadino al di sopra di ogni sospetto (1970), de Elio Petri, entre outros. Raffaelli (1996, p. 330) observa que a adoção de um léxico das linguagens setoriais tornou-se comum nesse período, como podemos ver em títulos e filmes da comédia à italiana como Il sorpasso, Il pollo ruspante, La congiuntura. Mas o que deu novo impulso à renovação da fala fílmica foi o abandono da adoção dialetal mimética pelos cineastas, que preferiram explorar expressivamente os fenômenos dialetais. Tal utilização expressiva dos dialetos de várias proveniências – com prévia modificação para um italiano de uso local, ou ainda, com prévia deformação caricatural – é uma novidade que caracterizará mais de uma década, a partir de 1962. Nesse sentido, foi frequente a inserção de partes em dialeto em um contexto italiano, com a atenuação e quase anulação de suas funções comunicativas, como em alguns filmes de Fellini: 8½ (1963), no episódio em que a avó anda pela casa adormecida; e mais ainda em I clowns (1971), Amarcord (1973) e Il Casanova (1977), filmes em que o dialeto romanholo assume conotações melódico-esotéricas (RAFFAELLI, 1992, p. 132-35). Como já dito anteriormente, outro importante cineasta a fazer um uso expressivo do dialeto foi Pier Paolo Pasolini, já em Accattone (1961) e Mamma Roma (1962), elaborando liricamente o romanesco dos marginalizados para depois entrar no setor do multilinguismo, em Vangelo secondo Matteo (1964), Edipo re (1968) e Medea (1969), entre outros. Dois filmes que foram expansão dessa corrente multilíngue, de acordo com Raffaelli (1992, p. 136), foram L‟armata Brancaleone (1966) e Brancaleone alle crociate (1970), de Monicelli: neles, a língua é uma mistura ―macarrônica‖ de ―alto-italiano‖, de latinismos, francesismos, vários dialetos, ou seja, um ―pastiche” gaddiano. A procura da expressividade tirou proveito dos recursos linguísticos de várias origens, o que se pode observar pela presença de palavras estrangeiras nos filmes de Fellini, a partir de La dolce vita (RAFFAELLI, 1996, p. 332); mas essa expressividade teve maior êxito 52 Rossi (2006, p. 348) indica a proveniência de todas as citações sobre este filme: (RAFFAELLI, 1996a, p. 32930). 52 no âmbito do italiano regional, explorando as peculiaridades fonéticas de matriz dialetal, como nos filmes de Germi Divorzio all‟italiana (1961) – que tinha como objetivo criticar os costumes itálicos exasperando (com fins caricaturais) alguns traços linguísticos dos sicilianos — e Sedotta e abbandonata (1964), mais significativo e também de ambiente siciliano, que deformava caricaturalmente os diálogos (RAFFAELLI, 1992, p. 135). Para Raffaelli (1992, p. 135-36), é digna de menção a cineasta Lina Wertmüller, que utilizou em muitos de seus filmes os traços fonéticos das falas meridionais, misturadas e deformadas até o limite da compreensão, com o objetivo de criar recitativos e melodias de ópera com conotações irônicas. Essas deformações fonéticas estão presentes em alguns filmes, como Mimì metalurgico ferito nell‟onore (1972), com variações melódico-linguísticas de dueto de ópera engraçada; Tutto a posto e niente in ordine (1974); e Fatto di sangue fra due uomini per causa di una vedova (1978), este último, segundo um jornal, retirado de cartaz porque os diálogos eram incompreensíveis para os próprios espectadores meridionais. Ciccotti (2001, p. 283) afirma que, nos anos 1970, há o retorno do romanesco cinematográfico: Graças ao ator S. Citti (falante de uma variedade quase belliana), depois também diretor, apoiado pelo ―pesquisador‖ Pasolini [...], começa uma certa recuperação do conservador para mesclar-se com um romanesco de segunda fase, neste caso de periferia e, portanto, mais permeável a neoformas, geralmente gírias, expressão das novas casas populares. 53 Alguns filmes do ator-diretor são: Ostia (1970), Storie scellerate (1973) e Casotto (1977); já quase nos anos 1990, temos Mortacci (1989), que oferece os últimos testemunhos do romanesco conservador: «Che c‟avete prescia?» ‗Vocês estão com pressa?‘ (CICCOTTI, 2001, p. 283). Ciccotti (2001, p. 283-84) observa que também em Roma (1972), de Fellini, temos o romanesco conservador e romanesco normatizado ―neogíria‖, a exemplo da expressão: «A(a) faciolari!» ‗Vocês não servem pra nada!‘, neoforma dos anos 1970 hoje em desuso; ou então, ao contrário, temos construções metafóricas que resistem até hoje: «Sta proprio (b)bene!» ‗Mulher bonita e sexy‘. Outro filme lembrado pelo estudioso é La proprietà non è più un furto (1973), de E. Petri, em que o mesmo argumentava sobre a necessidade de se utilizar o romanesco para «identificar as pessoas com as histórias contadas» 54. 53 grazie all‘attore S. Citti (parlante di una varietà quasi belliana), poi anche regista, e sotto l‘incoraggiamento del ―ricercatore‖ Pasolini [...], prende avvio un certo recupero del conservativo da fondere ad un romanesco di seconda fase, in questo caso di periferia, quindi più permeabile a neoforme spesso gergali, espressione delle nuove aree di caseggiate popolari. 53 Ciccotti (2001, p. 284) afirma ser de grande relevância para a história do cinema italiano o ator Alberto Sordi, que em suas falas utilizava o romanesco “di maniera”, em contraste com o italiano médio/standard. São alguns exemplos de filmes em que isso acontece: Racconti d‟estate (1958), de Franciolini; e Il commisario (1962), de Comencini. Mas, segundo o estudioso, o ator não foge a (raras) aberturas ao romanesco conservador, utilizado em vários dos seus personagens, como em: Il seduttore (1954), de Rossi; Lo scapolo (1955), de Pietrangeli; Il marito (1957), de Nanni Loy e Gianni Puccini; Ladro lui, ladra lei (1958), de Zampa; Lo scopone scientifico (1972), de Comencini; Nestore (1995), de A. Sordi, entre outros. Para o neorromanesco de periferia e conservador reconstruído, Ciccotti (2001, p. 284) cita Ettore Scola e os seus filmes Brutti sporchi e cattivi (1976), Una giornata particolare (1977) e La terrazza (1980). Além destes, o autor nos apresenta outros filmes em que há a presença desse neorromanesco de periferia com inserções de gírias 55 : a ―série‖ dirigida por S. Cobucci, com T. Milian como protagonista, dublado por Ferruccio Amendola – Squadra antifurto (1976), Squadra antiscippo (1977), Squadra antritruffa (1977), Squadra antimafia (1978) e Assassinio sul Tevere (1979). Como o estudioso observa, são utilizadas algumas expressões do romanesco conservador como venghi – venha; índole – índole; puro (para pure) – também; etc. Do final dos anos 1970 aos 1980, Ciccotti (2001, p. 285) nos conta sobre o encontro entre o romanesco normatizado e romanesco ―neogíria‖, estudado, na comédia, pelo atordiretor Carlo Verdone. O ator observou os jovens do pós-1977 – desiludidos com a política e o engajamento ―social‖ – e reconheceu a fala estática do adepto budista, do jovem arrogante do bar, do plebeu-mammone ‗filhinho da mamãe‘ reprimido, do fanático centauro etc. Já nos anos 1980, impõe-se a dialetalidade reflexa, até então quase ausente na filmografia italiana. Essa tendência, caracterizada pela utilização de dialetos em extinção, encontrou espaço em pequenas ou médias empresas produtivas, que tinham como objetivo reviver histórias de núcleos sociais linguisticamente homogêneos e fechados do passado. Tal tendência foi considerada por Raffaelli (1992, p. 139-41) uma operação aristocrática, seja porque impôs códigos familiares a poucos (como em La terra trema), seja porque pareceu não ser capaz de enriquecer as competências linguísticas do público. Dois filmes representam o uso reflexo dos dialetos: o bergamasco L‟albero degli zoccoli (1978), de Olmi, e o friulano Maria Zef (1981), de Vittorio Cottafavi. O filme de Olmi evoca liricamente o mundo 54 55 far identificare la gente con le storie raccontate (RAFFAELLI, 1992, p. 133-34). segundo o autor, somente algumas delas existem até hoje: trucido – sujo; madama – polícia; monnezza – para alguém que não vale nada. 54 camponês bergamasco, adotando o dialeto local dos idosos, ambientado no final do século XIX. Já Maria Zef, inspirado em um romance de Paola Drigo, utiliza o dialeto friulano para contar uma história de degradação moral e social nas montanhas da Carnia no início do século XX. Concluindo esta cronologia, essa nova presença do ―dialeto reflexo‖, segundo Ciccotti (2001, p. 285), foi fruto de uma exigência, por parte dos autores, de retornar a certo realismo, abandonado por anos, e se dará sempre na direção de um uso mais integral e menos estereotipado do dialeto, como veremos a seguir. 1.2.2.4 Os últimos anos Para Fabio Rossi, (2006, p. 392-93), o período do cinema italiano que vai de meados dos anos 1980 até a primeira década do novo milênio é muito difícil de se analisar devido à impossibilidade de observar com distanciamento uma fase não concluída, em virtude da variedade dos resultados e da escassez de estudos. Mas o autor ressalta dois aspectos relevantes desse período, que tiveram consequências linguísticas: em primeiro lugar, o retorno da gravação ao vivo e a criação da identidade ―voz-rosto‖, reivindicação feita pelos próprios atores em que um intérprete italiano não pode ser dublado por outra pessoa sem a sua prévia autorização. Em segundo, o uso sempre mais frequente de dialetos não estereotipados, com momentos de integralismo dialetal, que convém às temáticas sociais de muitos filmes denominados pela crítica da época como neoneorrealistas. De acordo com Rossi (2007, p. 109), somente um público totalmente italófono e que tivesse superado o complexo de inferioridade quanto ao modo de se exprimir seria capaz de apreciar uma produção dialetal, não mais parcialmente italianizada por pudor ou por censura. Nesse sentido, o dialeto assume novas funções, não sendo visto somente como estigma das classes desfavorecidas, mas como uma marca de adesão a um grupo, com uso de gírias, por exemplo, no caso dos adolescentes que falam em dialeto, representados pelos cineastas Francesca Archibugi e Paolo Virzì (ROSSI, 2006, p. 393, 2007, p. 109). Alguns atores-cineastas (os ―novos cômicos‖, segundo a crítica), como Roberto Benigni, Francesco Nuti, Carlo Verdone, Massimo Troisi, Nanni Morettie e Maurizio Nichetti, revitalizaram as inserções dialetais, reduzindo a mecanicidade e atenuando os tons ridículos. Rossi (2006, p. 395-96) afirma que sobretudo Troisi alcançou níveis expressivos de importância, colocando em cena não somente o napolitano, mas todas as incertezas e impurezas da língua falada, os tics linguísticos, bem como as dificuldades de integração sociocultural de uma pessoa pura de espírito em contato com as contradições da civilização do 55 progresso. O napolitano de Troisi é, ao contrário do napolitano de Eduardo e Totò, tão distante do italiano que o seu sucesso de público foi surpreendente. Apesar da progressiva italianização, Troisi conseguiu mostrar a arte da incomunicabilidade com leveza, através de fragmentos de palavras, repetições, balbucios e sons inarticulados; para o autor, nunca como nos filmes de Troisi a fala da insegurança, da timidez e da espontaneidade foi representada com tanto verismo poético, com tanto esforço para dar voz ao não dito e ao indizível. Ainda para Rossi (2007, p. 118), a característica de maior importância dos filmes dos últimos anos foi a redescoberta dos dialetos distantes de qualquer tipo de italianização, hibridismo e estereotipia. Trata-se de filmes gravados ao vivo, caracterizados por um forte realismo e por temáticas quase sempre ―engajadas‖ que vão da análise sociológica ao aprofundamento psicológico. São exemplos: Immacolata e Concetta, l‟altra gelosia (1980) e Le occasioni di Rosa (1981), ambos de Salvatore Piscicelli, em um napolitano do subproletariado; Libera (1993) e I buchi neri (1995), ambos de Pappi Corsicato; L‟amore molesto (1995), de Mario Martone, em um napolitano arcaico; e, mais recentemente, Certi bambini (2004), de Andrea e Antonio Frazzi. O dialeto siciliano também foi representado, e como exemplo podem ser citados: os fimes de denúncia Mery per sempre (1989) e Ragazzi fuori (1990), ambos de Marco Risi; Buttane (1994), de Aurelio Grimaldi; o filme crítico-lúdico Tano da morire (1997), de Roberta Torre; o filme psicológico-expressionista Respiro (2002); e o legendado Nuovomondo (2006), de Emanuele Crialese. Os novos diretores recorreram também a variedades pouco usadas na cinematografia italiana, como o dialeto barese ―críptico‖ do primeiro filme de Alessandro Piva, Lacapagira (2000), rico em palavras dialetais e gírias. Mais próximo do italiano é o posterior Mio cognato (2003), no qual o protagonista fala em barese enquanto os outros personagens adotam o italiano. Nesse sentido, Rossi (2006, p. 398) observa que a lógica se inverte com relação à corrente da comédia à italiana, que quase sempre recorria ao dialeto somente para os personagens secundários. Outra característica da língua dos filmes italianos dos últimos anos verificada por Rossi (2006, p. 400) é a relação osmótica com a televisão. Isso ocorreu devido à transmigração de ―artistas‖ de um meio para o outro, a exemplo de Benigni e Troisi e dos casos mais recentes: Albanese, Littizzetto, Greggio e Panariello. A televisão, aliás, em alguns filmes é mostrada como a responsável por elevar a valores a futilidade, a ignorância e a imprecisão também linguísticas. Nesse sentido, Verdone e Moretti são os primeiros a esboçar figuras que se exprimem de modo ridículo, sobretudo no que diz respeito ao abuso de anglicismos mal pronunciados e ao uso irreflexo de estereótipos, imitando personagens 56 conhecidos. É o caso da jornalista de Palombella rossa (1989), de Moretti, que fala uma língua cheia de frases feitas e vazias e de estrangeirismos (tensione morale, matrimonio a pezzi, Kitsch – tensão moral, casamento arruinado, brega). Como exemplo mais recente, podese recordar um dos muitos personagens interpretados por Verdone, o jornalista-músico de Maledetto il giorno che t‟ho incontrato (1992), que usa o romanesco de forma menos estereotipada do que o habitual (apesar da influência de Sordi) e procura adotar, inicialmente, a fala dos jovens para, sucessivamente, sair da Roma geográfica e linguística. Rossi (2006, p. 401) ainda observa que muitos filmes utilizaram a linguagem dos jovens, quase sempre um ―italiano desfeito‖ de Roma: Mignon è partita (1988) e Il grande Cocomero (1993), de Archibugi; Evelina e i suoi figli (1990), de Livia Giampalmo; Come te nessuno mai (1999), de Gabriele Muccino; Dillo con parole mie (2003), de Daniele Luchetti; e Che ne sarà di noi (2004), de Giovanni Veronesi. Foi utilizada também a língua dos adultos em crise, em: Piccoli equivoci (1989), de Gabriele Salvatores; e L‟ultimo bacio (2001) e Baciami ancora (2010), de Muccino. Para o estudioso, de maior originalidade e identidade italiana foram os filmes Io sono um autarchico (1977) e Ecce Bombo (1978), de Moretti; e Un sacco bello (1980) e Bianco rosso e Verdone (1981), de Verdone. Além dos citados anteriormente, Ciccotti (2001, p. 285) nos apresenta mais comentários e exemplos de filmes em romanesco: Amore tossico (1983), de Caligari, filme em que a língua simboliza a crueza da trama, sobre a toxicodependência e a deterioração da periferia; Storia d‟amore (1986), de Maselli; Mignon è partita (1988), de Archibugi, que traz expressões romanescas e neogírias; além de alguns filmes de Verdone e Moretti. Destes filmes, Ciccotti (2001, p. 286) nos chama a atenção para os dois primeiros: ambos recorrem ao neorromanesco ―duro‖ e ―integral‖ de periferia, com conotações documentárias. Segundo o mesmo autor, sobretudo Amore tossico, em que se utiliza a técnica do pedinamento (ato de seguir alguém de perto), permanece um documento do romanesco e das gírias dos toxicodependentes, já demonstrados em estudos como o de M. Trifone (1993), intitulado Aspetti linguistici della marginalità nella periferia romana. Portanto, com o final dos anos 1980 e início dos 1990, o romanesco cinematográfico «sai da normatização que tinha sido obrigado desde os anos 1950 (com exceção de alguns filmes de autor antes comentados), retomando vigor principalmente graças àquele que chamamos de ―Neoneorrealismo‖» 56, tendência cultural dos anos 1990, que vai reunir muitos filmes de caráter realista e documentário e que compartilha algumas características próprias 56 esce dalla normalizzazione cui era stato costretto sin dai Cinquanta (tranne le eccezioni d‘autore di cui si parlato) riprendendo vigore soprattutto grazie a quello che qui chiamiamo il ―neo-neorealismo‖ (CICCOTTI, 2001, p. 286) . 57 do Neorrealismo, como por exemplo, o ator e o coro, o pedinamento, o estrangeiro, os temas sociais e, enfim, a língua (CICCOTTI, 2001, p. 289-90). Para o autor (CICCOTTI, p. 287), vários filmes realizados entre Mery per sempre (1989) e Cuore cattivo (1995) podem ser definidos como ―realistas‖ ou talvez ―neoneorrealistas‖: Mery per sempre (1989), Ragazzi fuori (1990), Muro di gomma (1991) e Il branco (1994), todos de Marco Risi; Ultrà (1991), de Ricky Tognazzi; La stazione (1990), de Sergio Rubini; Verso sud (1992), de Pasquale Pozzessere; Teste rasate (1993), de Claudio Fragasso; La scuola (1995), de Daniele Luchetti; Senza pelle (1994), de Alessandro D'Alatri; Sud (1993), de Gabriele Salvatores; Chiedi la luna (1991), de Giuseppe Piccioni; Ladro di bambini (1992), de Gianni Amelio; Pummarò (1990), de Michele Placido; Romanzo di un giovane povero (1995), de Ettore Scola; e Cuore cattivo (1995), de Umberto Marino. Quanto à primeira característica, o ator e o coro, conta-se com a presença de atores achados na rua (Mery per sempre, Ragazzi fuori, Ladro di bambini, Il branco); atores com instrução média, mas não provenientes de escolas de recitação (Ultrà, Verso sud); atores que se afirmaram a partir das suas imagens ―culturais e populares‖ (Ghini, Amendola, Orlando no considerado ―tipo de função‖). O pedinamento, ato de seguir o personagem, já mencionado antes, se verifica em filmes como Ragazzi fuori, Verso sud, Ultrà, Senza pelle, Il branco e Cuore cattivo. No que diz respeito à presença do estrangeiro no cinema neorrealista, esta é quase sempre militar, sendo ele ―o que ocupa‖ ou ―o que liberta‖ – o indígena está quase sempre em posição subalterna (como se pode ver nos primeiros três episódios de Paisà), e mesmo quando há compreensão entre culturas diferentes, como em Roma città aperta, a situação histórica beneficia o estrangeiro na escala de valores. Já no cinema neoneorrealista, a situação do estrangeiro é outra: ele vive a mesma sujeição econômico-psicológica-linguística do ―indígena‖. O estrangeiro é o imigrado do terceiro mundo e do leste europeu; socialmente, tomou o lugar dos refugiados políticos gregos ou sul-americanos do pós-1968, presentes em Pummarò, Teste rasate. Enquanto que o estrangeiro militar impõe a sua língua, o imigrado tenta aprender a língua do país hospedeiro. Como consequência, este desenvolve o bilinguismo, enquanto que o militar tende a impor um monolinguismo que reflete as relações de poder. Finalmente, tanto nos filmes neorrealistas como nos neoneorrealistas, há a forte presença dos dialetos, da língua dos jovens e das gírias de algumas faixas da sociedade (romanesco conservador, romanesco normatizado e neorromanesco). Ciccotti (2001, p. 292) finaliza a questão do Neoneorrealismo propondo uma leitura: 58 O Neoneorrealismo dos anos 1990 finaliza o projeto do romanesco (ou de outros dialetos) como específico autêntico, preso nos anos 1950, que brilhou com Pasolini, marginalizado com Citti e Scola, Caligari e Maselli, mas somente na última década do século legitimado como ―espelho‖ das importantes mudanças sociais. 57 Isso porque, segundo o mesmo estudioso, tanto a democratização da sociedade como também o interesse da indústria cultural, sobretudo audiovisual, deixaram de lado o obstáculo que o dialeto encontrou com os produtores com o fim do Neorrealismo. A seguir, explicitaremos alguns filmes em que há a presença do romanesco nos anos 1990, apoiados nos comentários de Ciccotti (2001, p. 293-315), para concluirmos com Viaggi di nozze (1995), terceiro e último filme pertencente ao nosso corpus. Os anos 1990 serviram de palco para muitos filmes com um romanesco duro, recheado de novas gírias que representavam a degradada periferia da capital (CICCOTTI, 2001, p. 293). Em Ultrà (1991), de M. Risi, os dois antagonistas, Er Principe e Red, falam um romanesco de variedade baixa, aberto a neologismos. A única vez em que Er Principe utiliza o italiano é na prisão, em função imitativa, quando faz o comentário do jogo de futebol (Le squadre sono un po‟ più guardinghe/ le squadre cercano di impostare le azioni d‟attacco/ [...] ‗Os times estão mais cautelosos/ os times estão tentando definir as ações de ataque [...]‘). Mas, minutos depois, quando vem a saber de sua liberação, volta rapidamente ao dialeto, como confirmação de sua ―potência‖ readquirida (Te o finisci te er campeonato/ e pallette però me e porto via ‗Você vai acabar o campeonato/ mas as bolas eu vou levar comigo‘ ). O único personagem que utilizará um italiano neostandard (um standard com mais aberturas fonológicas regionais) será Fabio, um menino de onze anos que, para Ciccotti (2001, p. 295), em contraste com os outros personagens, representa a inocência. Para concluir esse breve panorama do cinema italiano, reportamos alguns comentários dos vários estudiosos a respeito do terceiro filme selecionado para o nosso corpus, Viaggi di Nozze (1995), do romano Carlo Verdone. É nesta fase que temos o retorno da gravação ao vivo e, portanto, o abandono da dublagem. Ressaltamos que, apesar da influência de Sordi, nota-se que Carlo Verdone utiliza o romanesco como a ―fala dos jovens‖ em alguns filmes, a exemplo de Un sacco bello (1980) e Bianco, Rosso e Verdone (1981). Depois, no entanto, se distancia dessa variedade em Maledetto il giorno che t‟ho incontrato (1992), «na direção de uma fala juvenil sóciolinguisticamente mais verossímil e depois saindo totalmente da Roma geográfica e 57 Il neo-neorealismo degli Novanta porta a compimento il progetto del romanesco (o di altri dialetti) come specifico autentico, bloccato nei Cinquanta, riesploso con Pasolini, emarginato con Citti e Scola, Caligari e Maselli, ma solo nell‘ultimo decennio del secolo, ―specchio‖ legittimato dei notevoli mutamenti sociali. 59 linguística» (COVERI, 1994, p. 82) 58. De fato, quando Verdone faz uma declaração sobre o Maledetto il giorno che t‟ho incontrato, esclarece: «Eu o ambientei em Milão e em Cornovaglia porque queria ter a certeza de que os personagens secundários não tivessem diálogos como ―anvedi‖, ―li mortacci tua‖, ―te possino‖».59 É com Viaggi di Nozze (1995) que se percebe o retorno do romanesco dos arrogantes da periferia. O filme segue a estrutura on the road de Bianco, Rosso e Verdone, no qual o mesmo ator interpreta três personagens. De fato, em Viaggi di Nozze Verdone representa novamente três personagens: Raniero Cotti Borroni, Ivano e Giovannino, que fazem uma viagem de lua de mel com as respectivas esposas. Em alguns diálogos entre Ivano e Jessica, podemos constatar o retorno do uso do romanesco fílmico: Ivano: O famo strano? Jessica referindo-se a Florença: Ammazza quant‘ vecchia 'sta città! Quando fala ao telefone com os amigos: Ivano: A stronzi! 'Ndo state? Che fate? 'Nd'annate? Mo taa do. (Passa o telefone a Jessica): Mirko e Mara. Jessica: A stronzi! 'Ndo state? Che fate? 'Nd'annate? [...] A Ivà ce semo mai stati ar Prognosi Riservata? Ivano: Negativo, se pò fà! Segundo Ciccotti (2001, p. 312), os dois personagens falam uma mistura de romanesco e gírias que coincide com o modo de eles fazerem amor, podendo-se notar o uso de palavras e expressões fora do comum: o famo strano ‗vamos fazer diferente‘. Como observa o estudioso, Ivano e Jessica procuram continuamente novas realidades, outros tipos sociais, o que os leva a situações fictícias que requerem uma nova relação com o código linguístico. Um exemplo disso é quando, comunicando-se por escrito, simulam pertencer a uma classe social mais elevada: Ivano: La trovo molto stupenda. La posso invitare al mio tavolo? 58 nella direzione di un parlato giovanile anche sociolinguisticamente pi credibile e poi uscendo decisamente dalla Roma geografica e linguistica. 59 L‘ho ambientato a Milano e in Cornovaglia perché volevo essere sicuro che non ci fossero nei personaggi di contorno battute come ―anvedi‖, ―li mortacci tua‖, ―te possino‖. 60 Jessica: Grazie ma lei core un po‘ troppo. Em seguida, Ivano vai até a mesa de Jessica e se apresenta tentando usar ainda um italiano neostandard, típico de uma pessoa ―fina‖ e ―importante‖: Ivano: Io comunque mi chiamo Ivano. Jessica: Piacere, Jessica. De acordo com Ciccotti (2001, p. 313), os arrogantes de C. Verdone, apesar de certo exagero no tom recitativo, testemunham a existência de outro mundo marginal (como o dos filmes comentados anteriormente: Ultrà, Teste rasate, Cuore cattivo), que está situado em uma rede sociolinguística tendencialmente fechada. Ciccotti (2001, p. 314) exemplifica essa realidade sociolinguística fechada com a nasalização ―da moda‖ do início dos anos 1980. Iniciada como traço de distinção snob de alguns bairros pequeno-burgueses (de P. Mazzini a Trionfale), depois se propaga para áreas mais populares (Portonaccio, S. Giovanni) até as periferias (Giardinetti). Atualmente, os jovens de cultura média não nasalizam mais, e se Carlo Verdone faz com que Jessica nasalize, é, segundo o pensamento de Ciccotti, para evidenciar um comportamento fonético superado por uma classe, mas não pela classe menos culta, que o mantém vivo como sinal de ―elevação‖ social. Mas, e assim finaliza o autor, se uma classe (popular) cristaliza algumas formas consideradas ultrapassadas por outra (culta), é também verdade o fenômeno contrário: por exemplo, a periferia, fonte inesgotável de renovação linguística, cria neoformas com forte base romanesca que foram absorvidas não só pelas variedades do neoromanesco, mas também pelo italiano neostandard – trucido ‗sujo‘ aparece pela primeira vez em Ecce bombo (1978), e sòla ‗engano‘, nas falas de M. Costanzo e T. Solenghi. Finalizamos aqui este breve estudo cronológico e sociolinguístico da relação da língua italiana/dialeto com o cinema, a partir de alguns exemplos de filmes e pequenos diálogos para um maior entendimento das várias fases linguísticas da cinematografia, aqui em questão. Como o foco da nossa pesquisa é a observação do uso do romanesco nas falas fílmicas dos filmes selecionados, propomos, sucessivamente, um panorama da evolução desta variedade, desde as origens até os dias atuais, partindo das reflexões dos principais teóricos do tema. 61 2 O ROMANESCO E SUA EVOLUÇÃO O presente capítulo procurará identificar os pontos principais da história linguística de Roma, tendo como foco os acontecimentos que contribuíram para a evolução do romanesco, com base nos trabalhos de Tullio De Mauro (1995, 1989), Pietro Trifone (1992, 2008), Paolo D‘Achille (2012), entre outros estudiosos do tema. No item 2.1, que trata da origem do romanesco até o século XIV, apresentaremos alguns exemplos de documentos escritos, como o grafito das catacumbas de Commodilla, e obras-primas, como a Cronica, que tiveram importância para o estudo do romanesco; esta última, devido a sua forte dialetalidade, serviu como ponto de referência para o conhecimento do romanesco antigo ou de primeira fase, caracterizado por uma clara fisionomia centromeridional, mas com algumas convergências com o toscano, segundo especialistas. Já no item 2.2.1, trataremos da importante toscanização da língua escrita e do uso médio-alto, que prepara a passagem do romanesco de primeira fase para o de segunda fase dos séculos XV e XVI. Fatores internos, como o retorno do papa a Roma, causaram fortes mudanças na cidade, a ponto de acelerar a crise do romanesco de primeira fase. O período pré-unitário, comentado nos itens de 2.3 a 2.3.3, trata da presença da Igreja na sociedade romana, além da censura sobre o dialeto. A literatura dialetal reflexa será, portanto, a fonte documentária mais importante para reconstruir a evolução do romanesco até chegarmos à obra-prima de Belli, com os Sonetti. Os itens de 2.4 a 2.4.3 serão dedicados ao estabelecimento da relação língua-dialeto após a unificação política, que abrirá uma nova fase na história política italiana, também sob o aspecto linguístico. O romanesco será o dialeto mais presente no cinema, no rádio, na propaganda, fazendo com que algumas vozes de origem romana entrem também na linguagem juvenil, na política e no esporte, devido à centralização de Roma, como também à proximidade do romanesco com o italiano (D‘ACHILLE, 2012, p. 9). Outro aspecto importante que será abordado tem relação com a extensão e o domínio da italofonia da classe média emergente e com a imigração pós-unitária. Mais um ponto a ser discutido é a falta de contraposição entre língua italiana e dialeto romanesco, como também a pequena distância entre os vários níveis do repertório linguístico. Para concluir, comentaremos a influência da neodialetalidade juvenil no quadro linguístico contemporâneo romano. 62 2.1 Das origens ao século XIV Pietro Trifone (2008, p. 11) afirma que o primeiro documento em romanesco foi uma escritura exposta: o Graffito della Catacomba di Commodilla, do século IX. Tal grafito, esculpido em uma parede da catacumba, é um tipo de advertência informal para uso interno dos eclesiásticos, que recomenda aos celebrantes da missa para não pronunciar as orações em voz alta (le segrete). Trifone (2008, p. 11) observa que a frase é totalmente ―vulgar‖: imperativo proibitivo formado por non (não) + infinitivo dicere (diga); valor de artigo de ille; plural em a de secrita ‗secreta‘. Outro ―vulgarismo‖ é a presença de betacismo, ou seja, a passagem de v a b, a bocce ‗em voz alta‘ para indicar a consoante reforçada, além de outros fatores de ordem gráfica como a vogal i por e em secrita, típico do latim pré-carolíngio (TRIFONE, 1992, p. 342-43). Segundo Rosa Casapullo (2011), O termo língua vulgar (ou simplesmente vulgar) refere-se às línguas faladas (e depois também escritas) por todos na Idade Média, pelos aristocratas e pelo povo, pelos eruditos e pelos ignorantes, pelos religiosos e pelos laicos, em todas as situações informais da vida cotidiana. A língua da comunicação formal, falada e escrita, era o latim (ou gramática, como era chamado na Idade Média), praticado 60 unicamente pelos eruditos ou literatos. É importante ressaltar que em Roma, desde o início, escrever no idioma local implicava uma transgressão, ou uma expressividade baixa e violenta. Trifone (1992, p. 543) fala de uma verdadeira impressão genética ligada a uma acentuada percepção do prestígio linguístico em uma sociedade multiforme e estratificada. É o que comprova a Iscrizione di San Clemente, do fim do século XI, com a evidente dicotomia entre latim e vulgar para caracterizar, também no plano linguístico, a distância entre os dois mundos: de um lado, a vox divina de Clemente (Duritiam cordis vestris saxa traere meruistis); de outro, o hiperrealístico palavrão de seu perseguidor pagão, Sisinnio, que ordena aos servos que conduza o Santo ao martírio (Fili de le pute, traite/Figli di puttane). O vulgar se qualifica como «um instrumento de expressão culturalmente e socialmente inferior ao latim» (TRIFONE, 1992, p. 544). 60 Il termine lingua volgare (o semplicemente volgare) si riferisce alle lingue parlate (e poi anche scritte) nel medioevo da tutti, aristocratici e popolani, dotti e ignoranti, religiosi e laici, in tutte le situazioni informali della vita quotidiana. La lingua della comunicazione formale, parlata e scritta, era, invece, il latino (o gramatica, com‘era chiamato nel medioevo), praticato unicamente dai dotti, o litterati. http://www.treccani.it/enciclopedia/lingua-delle-origini_(Enciclopedia_dell'Italiano)/ (Acesso em: 22/12/15). 63 Trifone (1992, p. 545) relata também que em Roma, nos séculos XII e o XIII, o vulgar se desenvolveu positivamente, resultado de uma renovação da identidade urbana provocada pelo nascimento e pela consolidação do regime municipal e pela ascensão da burguesia agrária e mercantil – contrária ao poder temporal da Igreja – à direção política da cidade (renovatio Senatus de 1144). Nos anos do governo popular de Brancaleone degli Andalò (1252-1258), período de maior efervescência das estruturas e dos ideais de município, têm origem Storie de Troja et de Roma e Miracole de Roma, as duas obras em prosa mais relevantes da Itália mediana do século XIII. As Storie de Troja et de Roma são uma tradução anônima em vulgar romanesco do século XIII das Multe Ystorie et Troiane et Romane, também anônima, escrita em Roma um século antes com o objetivo de oferecer algumas noções históricas e lendárias a um público alfabetizado, mas com pouca intimidade com o latim. O estudioso (TRIFONE, 1992, p. 545) observa que o texto chegou até nós através de três cópias toscanas dos séculos XIII-XIV; em duas cópias manuscritas, percebe-se um colorido linguístico primitivo com alguns latinismos: ao lado de formas dialetais como castiello (castelo) e cuorpo (corpo), com os ditongos metafônicos próprios do antigo romanesco, encontramos castello e corpo, que poderiam ser tanto latinismos como toscanismos introduzidos nas cópias. Já no que diz respeito à obra Miracole de Roma, Trifone (1992, p. 545-47) observa que trata-se de uma ―vulgarização‖ de Mirabilia Urbis Romae, do século XII, considerada o mais antigo ―guia turístico‖ escrito em italiano vulgar. Tal obra fala das maravilhas arquitetônicas e dos acontecimentos históricos da antiga Roma; como nas Storie, tem-se a presença do latim e do romanesco, na tentativa de dar vida a um ―vulgar‖ literário e de diminuir os traços dialetais extremos. Segundo o mencionado autor, o início do século XIV marca o ponto mais baixo da história do romanesco, com o famoso julgamento de Dante, que afirmou no De vulgare eloquentia que a fala urbana era a mais feia da Itália e ligou o caráter bruto da língua à depravação dos costumes (TRIFONE, 1992, p. 547). Mas muitos foram os acontecimentos históricos da época que contribuíram para a mudança da sociedade romana do século XIV, a exemplo do exílio do papado para Avignon, de 1309 a 1377, que, por um lado, bloqueou as importantes atividades econômicas e culturais ligadas a cúria e, por outro, favoreceu a democratização dos organismos políticos do município e o fortalecimento da iniciativa privada. Os efeitos disso podem observados a partir da metade do século: a revolução de Cola di Rienzo, a crise do baronato, a reforma dos Estatutos de 1363 e, sobretudo, a ascensão dos mercantes e dos empreendedores agrícolas, detentores de toda a estrutura produtiva e comercial, o que resultou em uma nova consciência 64 do vulgar urbano e uma grande literatura municipal (MANCINI, 1987a, p. 46-49; DE CAPRIO, 1987, p. 495-505). De acordo com D‘Achille (1989, p. 11), o romanesco, nos últimos anos do século XIV, ganha novos espaços e demonstra ter «uma dignidade linguística também nas faixas sociais elevadas» 61 , aparecendo, pela primeira vez, também nos atos notariais. O uso do romanesco nesses documentos dependia de uma necessidade jurídica e de um fator emotivo. Nesse sentido, o importante era a correspondência entre o que se dizia e o que se escrevia para alcançar o entendimento entre as partes. Mas Trifone (1992, p. 548) relata que, já na segunda metade do século XV, a partir do retorno do pontífice a Roma, percebe-se o declínio do uso dessa variedade. O auge do momento de vitalidade do dialeto se deu com a anônima Cronica, escrita por volta de 1357-1358. A obra narra os acontecimentos europeus dos anos de 1325 a 1357, mas principalmente a história de Cola di Rienzo, escrita em vulgar, já que o público era constituído por mercantes alfabetizados, mas que não sabiam o latim. Segundo Trifone (1992, p. 548-550), a Cronica representa a «atestação mais alta e dramática do esforço de autonomia urbana» 62 antes da afirmação definitiva do papa, sendo o ponto de referência para o conhecimento do romanesco antigo ou de primeira fase antes do influxo toscano. Quanto à fisionomia desse dialeto de primeira fase, Trifone (1992, p. 550) observa que possui características ―centro-meridionais‖ (mediano-meridionais) com algumas aberturas para o toscano, podendo ser identificados pelo menos dois traços fonéticos típicos do romanesco original que se aproximam dos dialetos toscanos e se opõem àqueles medianomeridionais: a) as tônicas fechadas e e o: nero, neri, rosso, rossi ‗preto‘, ‗pretos‘, ‗vermelho‘, ‗vermelhos‘ contra a restante área mediana e meridional que nos mesmos casos substituiu as vogais internas e e o com i e u: niru, niri, russu, russi; b) além disso, o romanesco compartilha com o toscano o único êxito –o de –O e –U latinas: HOMO > omo, BONUM > buono ‗homem, ‗bom‘, enquanto que os dialetos medianos conservam a átona final originária e, portanto, a distinção entre –o e –u (omo, bonu). Já entre os vários casos de aproximação do romanesco com os dialetos centromeridionais, Trifone (2008, p. 28) observa que, em primeiro lugar, vem a ditongação 61 una sua dignità linguistica anche presso fasce sociali elevate. 62 attestazione più alta e drammatica dello sforzo di autonomia urbana. 65 metafônica de e, o tônicas abertas, muito diferente do toscano porque independe da estrutura da sílaba, sendo condicionado pela presença de Ī e Ŭ finais: tiempo, dienti, cuorpo, uocchi ‗tempo‘, ‗dentes‘, ‗corpos, ‗olhos‘. Em suma, os exemplos antes citados comprovam que na Roma medieval podia-se ouvir formas como pede, omo, sem os ditongos toscanos; por outro lado, havia formas como tiempo, uocchi, com os ditongos meridionais. Concluindo as considerações sobre o período que antecede a toscanização do século XV, o mesmo estudioso (TRIFONE, 2008, p. 29) elenca alguns traços característicos do romanesco de primeira fase, de um ponto de vista fonético: a) assimilação progressiva de NB, MB a nn, mm (quanno/quando ‗quando‘; piommo/piombo ‗chumbo‘); b) africação da sibilante: penzare/pensare ‗pensar‘; apparze/apparse ‗apareceu‘. c) ditongação metafonética: tiempo/tempo ‗tempo‘; dienti/denti ‗dentes‘; cuorpo/corpo ‗corpo‘; uocchi/occhi ‗olhos‘; d) b inicial e intervocálica >v: vocca/bocca ‗boca‘; civo/cibo ‗comida‘; vraccio/braccio ‗braço‘; livro/libro ‗livro‘; e) passagem de v a b em posição reforçada: a bboce/a voce ‗em voz alta‘; f) êxito j diferente do toscano, que tem g (i): iente/gente ‗gente‘; g) passagem de RJ a r: macellaro/macellaio „açougueiro‘; e de SJ a s surda: camisa/camicia ‗camisa‘; h) assimilação regressiva KS> ss: cossa/coscia ‗coxa‘; i) passagem de GN a n: lena/legna ‗madeira‘; j) epítese de –ne: ène/è ‗é‘. 2.2 Séculos XV E XVI 2.2.1 A toscanização do século XV Trifone (1992, p. 553) relata que o período mais fecundo do ―vulgar‖ romanesco foi o século XV, devido à enorme quantidade de material documentário, pois sempre foi mais utilizado pelos falantes nas crônicas, nos diários, nas escrituras práticas, na literatura popular. Mas, por outro lado, nesse período inicia-se o processo de ―toscanização‖ da língua escrita, ou o uso mais formal, que prepara a passagem do romanesco ―de primeira fase‖ àquele ―de segunda fase‖ ou ―desmeridionalizado‖, quando há o declínio das características dialetais meridionais do romanesco. 66 Nesse sentido, segundo De Mauro (1995, p. 24), o processo de italianização linguística se deu em Roma com uma antecipação de séculos, diferentemente de em outras cidades da península, onde se dará somente nas décadas pós-unitárias. Trifone (1992, p. 554) nos explica que tal acontecimento está diretamente relacionado aos acontecimentos históricos de Roma desse período, especialmente a volta definitiva do papado a Roma, com Martino V (1420), que deu início à desmunicipalização da vida política e social urbana. O poder passa para as mãos dos curiais, os quais, por vários motivos, preferem confiar no capital financeiro e na iniciativa comercial de Florença e, devido a isso, na metade do século XV há uma forte presença de florentinos de todos os níveis: intelectuais, mercantis, artesãos. Com o passar do tempo, quando a Igreja reabsorve a cidade para si, a identificação cultural da classe dirigente ―romanófona‖, junto com o seu idioma, tende a enfraquecer-se. 2.2.2 A variação de registro e de classe na Roma do século XV Como nos textos citados acima, a ―toscanização‖ do século XV reflete especialmente a produção escrita ou formal da classe alta da sociedade romana, e é no século XVI que o processo de enfraquecimento dos traços meridionais do romanesco atingirá todos os falantes. A esse respeito, Trifone (1992, p. 554) observa que a história linguística de Roma se caracteriza pela lacuna existente entre o uso escrito e falado, causada pelos desníveis sociais e culturais acentuados da sociedade mais heterogênea de toda a Itália. Devido a isso, alguns traços recorrentes nos textos em vulgar, como, por exemplo, a polimorfia (annamo/andamo/andiamo ‗vamos') ou a hipercorreção, serão hábitos que acompanharão toda a história do romanesco. Quanto à relação entre comunicação escrita e comunicação oral, Trifone (1992, p. 554-55) observa que Roma é o oposto de Florença: enquanto os documentos dos arquivos florentinos são escritos em vulgar, cujas formas, desde as origens, espelham a realidade dialetal, os arquivos romanos contêm muitos documentos, primeiramente, em latim, e depois em toscano ou quase toscano. Essa distinção entre escrita e fala atingirá o romanesco, como observou Migliorini (1932, p. 114), que verificou uma decadência desse dialeto. Posteriormente, esta tese é contestada por Mancini (1987a, p. 44), que identifica no romanesco médio, pertencente à classe média, o elemento que faltava para a reconstrução miglioriana. Tal variedade, dotada de uma autonomia ausente na variedade alta, representa o ponto de união entre o romanesco de primeira fase e o de segunda fase. Nesse sentido, Trifone é do parecer de que a hipótese 67 manciniana ultrapasse a hipótese miglioriana, que fala de uma mecânica «decadência», já que a primeira identifica uma variedade média, capaz de construir um itinerário evolutivo próprio. Também para Serianni (1989a, p. 266-67), tal «decadência» do romanesco pode ser contestada devido à «presença de vários traços fonéticos inovadores autônomos, ausentes no romanesco mais antigo e característicos do romanesco do século XVI», 63 além da «continuidade de outros fenômenos que resistem às pressões ―toscanizantes‖ ainda hoje». 64 Alguns traços dialetais se difundiram após a Cronica, tais como: a) o ditongo metafônico eu ao lado de uo do século XV e início do XVI: cuerpo/corpo ‗corpo‘; lueco/luogo ‗lugar‘; b) a monotongação de uo em o aberta: bono/buono ‗bom‘, a partir do século XVI; c) o declínio da lateral palatal (gl ‗lh‘) a j: fijo, presentes nos escritos de Peresio a partir do século XVII; d) a apócope da sílaba final nos infinitivos, que se afirmou entre os séculos XV e XVI: èsse/essere ‗ser‘; parlà/parlare ‗falar‘. Sendo assim, Trifone (1992, p. 555-56) faz uma reconstrução do status do vulgar em Roma no século XV a partir do esquema de Mancini (1987a) (variedade alta, média e baixa), que consegue explicar, graças à noção de romanesco «médio», a sobrevivência dos requisitos de individualidade e vitalidade do dialeto, mesmo em pleno regime de toscanização linguística. A variedade alta ou ―oficial‖ compreende os estatutos, os avisos e os documentos curiais, nos quais a toscanização é total. Nesse sentido, o mencionado autor explica que a noção de ―oficial‖ não indica tanto uma diferença de classe, mas, sim, uma diferença de registro, o qual se distingue em literário ou formal e usual ou informal. De fato, havia romanos capazes de utilizar os dois registros, conforme a situação, como testemunham os Diari, de Stefano Caffari, rico mercante pertencente à cúria que vivia uma realidade de trilinguismo latino-romanesco-toscano. Quanto ao romanesco médio, Trifone (1992, p. 556) enfatiza a dificuldade de estabelecer os limites entre uma variedade e outra do repertório, devido ao caráter de continuum em todas as faixas de textos, indo do nível alto informal aos níveis médio e popular da descrição de Mancini; já a variedade baixa será caracterizada pela produção dos semicultos. 63 presenza di diversi tratti fonetici innovativi autonomi, sconosciuti al romanesco più antico e caratteristici del romanesco post-cinquecentesco. 64 dalla continuità di altri fenomeni che resistono alle spinte toscanizzanti‘ ancora oggi. 68 Alguns exemplos de romanesco médio citados por Mancini (1987a) são: para o registro literário, um ―lamento‖ em tercetos de Paolo Petrone e um poema do notário Antonio De Tomeis; para o registro usual, o Diario della città di Roma, de Antonio De Vasco; para a variedade popular e o registro literário, há textos religiosos como os Tractati, de padre Giovanni Mattiotti, sobre a santa Francesca Romana; e, para o registro usual, o livro de receitas de medicina prática de Stefano Barocello. Nos textos há pouco citados, Trifone (1992, p. 556-57) chama a atenção para a homogeneidade linguística e, de um ponto de vista quantitativo, ele nota que o ditongo metafônico aparece pouco, e só no tipo ie (vitiello/vitelo ‗bezerro‘), nos Diari de Caffari; é também rara sua ocorrência no poema de Del Tomeis, em que há as duas formas: ie e eu. Já nos Tractati, aparecem muito os ditongos ie e uo (fierro/ferro ‗ferro‘ e gruosso/grosso ‗grande‘). Quanto aos outros fenômenos que separam o romanesco de primeira fase do romanesco de segunda fase, temos como exemplo: a conservação de j (ietta/getta ‗joga‘) e a troca de b e v (boce/voce – ‗voz‘). Os traços citados, próprios do nível mais popular, foram progressivamente abandonados pelos falantes, enquanto que os traços do nível médio resistiram, a exemplo da manutenção de E protônica de (di ‗de‘) e de AR átono (sufixo – areccio); das assimilações de KS em ss (lassare/lasciare ‗deixar‘) e de NB, MB em nn, mm (quanno/quando ‗quando‘; piommo/piombo ‗chumbo‘); da passagem de NS, LS, RS a nz, lz, rz (penzo/penso ‗penso‘; polzo/polso ‗pulso‘; perzo/perso ‗perdido‘); e da redução de RJ a r (sufixo –aro). Trifone (1992, p. 558) menciona uma parcial toscanização das escrituras médio-altas do século XV, de modo que ainda não se pode dizer que havia uma ―desmeridionalização‖ do romanesco falado, ocorrida apenas no século XVI. A presença maciça dos mercantes florentinos inseridos na sociedade romana, capazes de constituir um grupo de referência também linguística, não foi suficiente para determinar a crise do dialeto falado; somente com a revolução demográfica da primeira metade do século XVI é que se pode falar de uma verdadeira mudança linguística em Roma. De fato, Trifone (2008, p. 59) afirma que: A reviravolta demográfica causada pelo Saque de 1527 e pelo sucessivo repovoamento da cidade causa uma aceleração à crise do romanesco de primeira fase. A forte imigração centro-setentrional daquele período, forte a ponto de causar a ―desmeridionalização‖ étnico-linguística da cidade, terá a Toscana em primeiro lugar, graças à política pró-florentina de Clemente VII de‘ Medici. 65 65 Il rivolgimento demografico causato dal Sacco del 1527 e dal successivo ripopolamento della città imprime un moto di accelerazione alla crisi del romanesco di prima fase. La forte immigrazione centro-settentrionale del secondo quarto del Cinquecento, tale da determinare la smeridionalizzazione etnico-linguistica della città, vede in prima linea la Toscana, grazie alla politica filo-fiorentina di Clemente VII de‘ Medici. 69 2.2.3 A “língua cortesã” A nação dos florentinos, formada durante o século XV, alcança o seu apogeu durante os dois pontificados Medici, de Leone X (1513-1521) e de Clemente VII (1523-1534). Assim, a consequente toscanização se torna um aspecto simbólico de promoção social, almejada pelos setores emergentes de um núcleo urbano em contínuo movimento. Isso vai fazer com que esses grupos em ascensão, sensíveis à moda linguística lançada pela cúria, avaliem negativamente o vulgar romanesco (TRIFONE, 1992, p. 559). Outro fator importante neste período, de acordo com as palavras de Trifone (2008, p. 46), foi a imigração de vários humanistas de várias regiões da Itália à corte pontifícia (como, por exemplo, Bembo, Calmeta, Trissino). Estes eram a favor da língua cortesã como instrumento comunicativo supraregional, de um vulgar que fosse prestigioso e ―comum‖. Todo esse movimento causará efeitos linguísticos diretos especialmente no uso cortesão; mas, por outro lado, a melhoria do tom cultural reforça a tendência das classes superiores urbanas de assumirem um comportamento crítico com relação ao próprio dialeto nativo e a evitá-lo nos registros elevados. Trifone (1992, p. 560), entretanto, verifica que a mesma «invasão» florentina nos primeiros quinze anos do século XVI não justificou a intensidade e a rapidez do declínio dos traços meridionais do romanesco. Para entendermos, então, como se deu tal mudança, é necessário trazemos alguns dados relativos à população de Roma. 2.2.4 Os efeitos linguísticos do Saque de 1527 Trifone (1992, p. 562) nos apresenta um documento descoberto recentemente – o «Número de todas as bocas que estavam em Roma no ano de 1551» 66 – e relatado por Antonucci (1989c, p. 63) que esclarece o momento de aceleração do processo que causou a crise do romanesco de primeira fase: entre 1527 e 1551, a cidade passou de 30 mil habitantes (logo depois do Saque) para 80-85 mil habitantes, com um aumento de aproximadamente 50 mil pessoas. Se pensarmos que apenas 30 mil habitantes sobreviveram ao Saque de 1527, chegaremos à conclusão de que os ―não romanos‖ eram mais da metade; portanto, Trifone 66 Numero di tutte le bocche che si trovavano in Roma l‘anno 1551. 70 (1992, p. 563) levanta a hipótese de que, em 1550, a população de Roma era formada por 7580% de imigrados ou filhos de imigrados. A partir destas e de outras pesquisas, pode-se perceber a predominância centrosetentrional (96%) no quadro de imigrantes. Em primeiro lugar, vem a população proveniente da Toscana, graças à política pró-florentina de Clemente VII de‘ Medici. Segundo Trifone (1992, p. 563), o número de toscanos devia ser igual ao de romanos: isso explicaria o binômio toscanização/permanência dos traços locais. Como dito anteriormente, o Saque de 1527 teve um impacto fortíssimo sobre a história de Roma. Isso porque, de acordo com De Mauro (1989, p. 20), acabou enfraquecendo a já precária identidade étnico-linguística dos romanos, reduzidos a poucos milhares de indivíduos, além da forte onda migratória de origem centro-setentrional. Com isso, os romanos foram obrigados a usar «plataformas linguísticas de mediação» 67 com os muitos romanos-não-romanos, dos quais a maioria era toscana, explicando-se, assim, a preferência pela variedade toscanizada. Sendo assim, no final do século XVI, o processo acaba investindo globalmente os horizontes do romanesco, em todas as camadas e em todos os seus empregos. 2.3 Do século XVII à unificação Trifone (1992, p. 566) cita os números de Castiglioni (1881) e Friz (1974) para comprovar o forte aumento demográfico em Roma, sobretudo em virtude da população proveniente do Lácio e das outras regiões do Estado Pontifício após os acontecimentos do século XVI. Em 1600, os habitantes são mais de 100 mil; em 1700 (ano jubilar), chegam a aproximadamente 150 mil, mantendo-se assim até 1800 e ultrapassando os 200 mil em 1870. Paralelamente ao crescimento demográfico, Trifone verifica também que o desenvolvimento do comércio estimulou o interesse pelo uso funcional da escrita. Como resultado disso, houve grande procura por instrução, e, com o consentimento da autoridade pontifícia, promoveu-se o ensino elementar como meio de controle ideológico e social. Nasce assim, em Trastevere, em 1597, a primeira escola popular gratuita da Europa, obra do sacerdote espanhol Giuseppe Calasanzio, aberta aos filhos homens de famílias pobres e administrada por religiosos. Durante os séculos XVII e XVIII, as estruturas escolares se consolidam e estendem a instrução também às mulheres. Todavia, Trifone (1992, p. 566) observa que, para quase todas as mulheres e para muitos homens, a educação se restringia à 67 piattaforme linguistiche di mediazione. 71 leitura, enquanto que o treinamento da escritura era dedicado somente a quem tinha exigências profissionais especiais. Trifone (2008, p. 61) nos relata que a Igreja tinha uma influência tão forte sobre as massas populares que chegava a condicionar a vida da cidade, já que a presença de religiosos na capital do catolicismo era mais consistente do que em qualquer outra cidade da Itália, chegando a 5% da população. Roma se transforma em uma cidade de prestígio, devido às suas relações com os ambientes culturais e europeus, graças às bibiotecas e também à Universidade de Roma, que atraía estudantes vindos de todas as regiões da Itália e também do exterior. 2.3.1 Língua e dialeto no teatro romanesco do século XVII Trifone (1992, p. 568) observa que o bom nível da instrução pública e a censura social sobre o romanesco influenciará a escrita dos falantes-escritores, o que explica o desaparecimento desta variedade dialetal nos textos após o século XVI. Em virtude disso, a literatura dialetal reflexa será a única fonte documentária para a reconstrução da sua evolução. A partir do contato com esses textos, Trifone (1992, p. 569) pôde verificar que algumas comédias do século XVII apresentavam personagens populares que falavam em romanesco e quase sempre eram figuras de servos, como já na comédia Le stravaganze d‟amore, de Castelletti (1587). Diferentemente de Belli, os autores dos séculos XVII e XVIII procuravam, ao usar o romanesco, um efeito bizarro e de diversão, como podemos perceber na comédia Falsi mori, de Giovanni Battista Pianelli (Roma, 1638), em que o arrogante Iacaccia é caracterizado através do uso do dialeto. Em Fausto ovvero il sogno di Don Pasquale, de Francesco Maria De Luco Sereni (Roma, 1665), o autor define, no prefácio, o romanesco dos personagens como uma «linguagem vil» 68, que revela a origem plebeia e, no caso de Pasquale, a sua deficiência intelectual. Trifone (1992, p. 569) verifica também que, a partir da comparação da língua destas comédias com o romanesco ainda de primeira fase da Stravaganze d‟amore, percebe-se o avanço da toscanização. Mas, ao mesmo tempo, observa-se a presença de gírias, que serviriam para devolver um ―colorido‖ lexical ao dialeto; no diálogo de Ciumaca, em Torti vendicati, há uma forma relevante do ponto de vista do dialeto: carche/qualche ‗alguma‘, com a redução de qu- a simplesmente k- e a passagem da l pré-consonântica a r (rotacismo). Este último fenômeno se estabiliza no romanesco a partir do século XVII; todavia, carche já pode ser encontrado em Stravaganze d‟amore. 68 linguaggio vile. 72 No plano morfológico, aparece a segunda pessoa do plural do perfeito mettessivo/metteste ‗vocês colocam‘, além de outras formas, como a assimilação de ND a nn, a africação da sibilante em parze/parse ‗pareceu‘ etc. Nesse caso, a caracterização cômica da linguagem de Ciumaca deve-se à bizarria do léxico da gíria, representado por palavras como bruna/notte ‗noite‘ e pietro/mantello ‗manto‘. Em seguida, falaremos também um pouco sobre alguns poemas do século XVII, importantes por constituirem documentos da progressiva evolução do romanesco. 2.3.2 Os romanos Peresio, Berneri e Micheli Alguns poemas heroico-cômicos em dialeto datam das últimas décadas do século XVII: Jacaccio, de Giovanni Camillo Peresio, e Meo Patacca, de Giuseppe Berneri, cuja fala foi considerada por Micheli, no século sucessivo, «[...] hermafrodita, não sendo nem bom romanesco, nem bom toscano» 69 (TRIFONE, 2008, p. 66). Mas, como observa Trifone (1992, p. 570), o estudo dos poemas deste período também indica que o romanesco continuava a ser usado para a caracterização de pessoas vulgares. De fato, em Il Jacaccio overo il Palio conquistato, o autor faz uso do dialeto do «povo vulgar», que, «para se distinguir dos nobres e cidadãos romanos, é chamado de romanesco» 70 . Tal juízo confirma a acentuada estratificação linguística da cidade, em que o italiano convive com o romanesco do povo, enquanto que esta última variedade é instável e influenciada pela língua de prestígio. Segundo Trifone (1992, p. 571), Benedetto Micheli (1699-1784) foi a maior testemunha da fala urbana, uma vez que conseguiu captar a variabilidade característica do dialeto de Roma, resultado do cruzamento da variedade alta e baixa. 2.3.3 Giuseppe Gioachino Belli No século XIX, Giuseppe Gioachino Belli (1791-1863) escreve em romanesco os Sonetti, uma obra-prima da poesia italiana. Já na Introduzione ai Sonetti, é possível perceber o juízo negativo de Belli com relação ao romanesco: uma «língua defeituosa e corrompida», 69 ermafrodito, non essendo né buon romanesco, né buon toscano. 70 popolari del volgo; per distincione dei nobili e cittadini romani sono chiamati romaneschi. 73 que não pode chamar-se «italiana e nem romana, mas romanesca», filha bastarda de uma «plebe ignorante» 71. Trifone (2008, p. 74) verifica que nos Sonetti é possível perceber a pressão do italiano sobre o romanesco: no âmbito fonético, percebe-se o italianismo (varda > guarda ‗olha‘; immriaco > imbriaco ‗bêbado‘); já quanto ao léxico, há a alternância de palavras em romanesco com sinônimos em italiano (mo/adesso ‗agora‘; zompá/sartà ‗pular‘). Ainda de acordo com Trifone (1992, p. 573-4), a sensibilidade linguística e a capacidade de captar a polimorfia do romanesco presentes em Belli podem ser verificadas através da passagem de rr a um só r, constituindo a mais importante inovação fonológica do romanesco daquele período. Trata-se de um fenômeno presente no uso comum da cidade, que pode ser demonstrado no soneto L‟astrazione de Roma, com a palavra terina/terrina ‗sopeira‘, primeira forma usada pelo povo comum. Tal fenômeno se introduz em Roma entre os séculos XVI e XVII, em decorrência da imigração do restante do Lácio e das outras zonas do Estado Pontifício, onde a substituição do tipo tera por terra ‗terra‘ é muito difundido, mas se afirma somente nos sonetos de Chiappini, depois de 1865. Isso explica por que com Belli as formas com dois rr prevalecem, embora já constituam um grupo relevante: teremoto ‗terremoto‘, vorebbe ‗gostaria‘, aringrazià ‗agradecer‘ e muitas outras. Trifone (2008, p. 77-78) nos faz perceber a adesão belliana à realidade instável e multiforme do romanesco do século XIX, um dialeto cuja interferência com o italiano havia se fixado no uso culto. Concluímos esse período com o balanço feito por Tullio De Mauro (1995, p. 26), o qual observa que na metade do século XIX Roma era o único centro não toscano em que a italofonia era uma obrigação social, sendo compreensível em toda a Península logo após a unificação. Diferentemente dos outros estados italianos pré-unitários, em Roma o dialeto era o idioma desprezado das classes subalternas, relegado aos níveis sociais mais baixos. 2.4 Da unificação até os dias atuais De acordo com Trifone (2008, p. 577), a unificação política inaugura uma nova fase da história italiana com Roma como capital. Fatores como a centralização dos órgãos administrativos e burocráticos do Estado, das agências jornalísticas e, no século XX, das principais casas cinematográficas, do rádio e da televisão fazem de Roma um fundamental 71 favella tutta guasta e corrotta; italiana e neppure romana, ma romanesca; plebe ignorante. 74 centro de irradiação da língua nacional, determinando uma tendência à italianização dos dialetos, liderando o processo de formação dos italianos regionais. Trifone (1992, p. 577) relata um período marcado pelo debate pós-ressurgimento sobre a relação entre «questão romana» e «questão da língua», ligado à exigência política de um polo unificador. Sendo assim, durante o regime fascista, foi reproposta a velha solução da «língua toscana em boca romana» inspirada no ―eixo linguístico Roma-Florença‖. De fato, a localização das instalações cinematográficas, radiofônicas e televisivas na capital favoreceu a promoção nacional de uma pronúncia florentina neutra, próxima à variedade usada pelos romanos mais cultos em circunstâncias muito formais, desativando, assim, o provincianismo linguístico. 2.4.1 Um modelo de língua burguesa Segundo Stefinlongo (2012, p. 19), houve um enorme fluxo migratório para a Roma pós-unitária, de modo que o número de habitantes cresceu exponencialmente: 212.432 em 1871; 422.411 em 1901; 930.926 em 1931; 1.651.754 em 1951; 2.781.993 em 1971; até chegar a 2.830.569 em 1981. Já o censo de 2001 registra uma flexão demográfica que privilegia as cidades próximas: em 2001, o número de habitantes diminui quase 300 mil pessoas com relação a 1981, enquanto que no mesmo período os habitantes da província se estabilizam em cerca de 3,7 milhões. Usando a definição de Stefinlongo (1999), o transbordamento da cidade no subúrbio favorece a ―neorromanização‖ de uma periferia sempre maior. Na longa fase de expansão romana, a maior contribuição para o aumento populacional teve origem nas regiões centro-meridionais, com o Lácio em primeiro lugar, mas sem deixar de lado a contribuição setentrional, sobretudo dos piemonteses. De acordo com Trifone (2008, p. 97), essa forte presença de imigrados vindos de regiões diferentes colaborou, principalmente, para o enfraquecimento dos seus próprios dialetos e do dialeto local, fazendo com que se estendesse o domínio da italofonia. Segundo Trifone (2008, p. 98), o impulso à italofonia constitui o elemento linguístico do programa de avanço social de uma classe média emergente, composta por funcionários, professores, comerciantes, pequenos empreendedores e profissionais, que tinham interesse na nova liderança e mostravam-se fechados quanto à classe mais baixa. Já o comportamento da aristocracia e da alta burguesia era diferente. Eles recorriam ao romanesco como marca de classe, como forma reacionária e ―antipiemontesa‖: segundo De Mauro (1989, XIV), «como já tinha acontecido nos últimos anos da Revolução francesa e do 75 movimento giacobino, o dialeto foi para os papalinos romanos o símbolo de uma identidade que eles achavam que estivesse comprometida por causa do Estado unitário» 72 . Como consequência disso, por muitos anos, os mesmos falantes cultos da burguesia urbana continuaram a usar um tipo de italiano com peculiaridades locais, sobretudo nos registros familiares e cotidianos, mas também com reflexos na escrita e no uso formal. De Mauro (1995, p. 150) observa que há uma situação de movimento no dialeto devido à forte corrente imigratória, principalmente de origem centro-meridional, provocando um processo de ―neomeridionalização‖ linguística (STEFINLONGO, 2012, p. 21). Esse processo se manifestou através de uma maior difusão, inclusive na classe média, de traços tipicamente meridionais, antes presentes somente nas áreas suburbanas e entre as classes sociais mais baixas. Todo esse movimento no dialeto contribuiu para alguns fenômenos descritos primeiramente pelo crítico Porena, em 1925: a) redução definitiva de rr a uma só consoante r (guera/guerra ‗guerra‘); b) tendência à queda da letra d na preposição de („n pezz‟e pane/un pezzo di pane ‗um pedaço de pão‘); c) desenvolvimento de um traço novo: o desaparecimento de l nos artigos, nas preposições articuladas, nos pronomes pessoais, no demonstrativo: quello>quelo ‗aquele‘, a mojje/la moglie ‗a esposa‘, daa tera/dalla terra ou della terra ‗da terra‘, nu mmoo dì/non me lo dire (‗não me diga‘), eccaa/eccola (‗aqui está‘), que bbestie/quelle bestie (‗aqueles animais‘). A redução de l nas preposições articuladas (dello/delo ‗do‘, della/dela ‗da‘) e no pronome demonstrativo (quello/quelo ‗aquele‘) já tinha sido assinalada no século XVIII por Benedetto Micheli, em Avvertimenti linguistici do poema La libbertà romana. Mas Porena faz uma descrição nestes termos: geralmente, o l reduzido cai; no início da frase, conserva-se antes de vogal tônica ou átona (l‟ovo/l‟uovo ‗o ovo‘, l‟amichi/gli amici ‗os amigos‘); no meio da frase, conserva-se somente antes da vogal tônica (coci l‟ovo/cuoci l‟uovo ‗cozinhe o ovo‘, quanno l‟apro/quando l‟apro ‗quando o/a abro‘ (TRIFONE, 2008, p. 100). Mas, como afirma Trifone (1992, p. 581), se, por um lado, alguns traços dialetais novos aparecem, por outro, o processo de italianização progride, especialmente com relação à anafonese, que se afirma transformando definitivamente lengua e fongo dos textos antigos em lingua e fungo (―língua‖ e ―cogumelo‖). Desaparecem, além disso, algumas formas verbais típicas, como as do imperfeito annamio/andavamo ‗íamos‘, vedemio/vedevamo ‗víamos‘ e 72 come era già avvenuto negli anni della Revoluzione francese e dell‘ondata giacobina, il dialetto fu per papalini e codini romani il simbolo di una identità che temevano ora compromessa dallo Stato unitario. 76 partimio/partivamo ‗partíamos‘, preferidas por Belli e ainda usadas até a metade do século XX. Segundo Trifone (1992, p. 582), o romanesco consegue sobreviver em pleno processo de italianização. O autor concorda com os estudiosos Marano (1984, p. 222), Stefinlongo (1985, p. 48-51), Vignuzzi (1988, p. 633) e Ernest (1989, p. 319-20) quando estes dizem que a proximidade estrutural da língua italiana faz com que o dialeto não se imponha como código alternativo, dotado de função específica, porque é visto como um «italiano incorreto, vulgar», usado por pessoas incultas e vulgares (os valentões e arrogantes ―coatti” das periferias) ou para as comunicações de caráter informal, inibindo ou reduzindo muito a sua capacidade de se desenvolver de forma autônoma. Consequentemente, Stefinlongo (2012, p. 23) afirma que, ainda nos dias de hoje, a oposição fundamental em Roma não é tanto entre falar italiano, dialeto ou qualquer outra língua, mas entre ―falar bem‖ – ou seja, como uma ―pessoa decente‖ (em um italiano correto, formal, sem regionalismos) – e ―falar mal‖ – ou seja, em um italiano errado, dialetal, típico de ―pessoa vulgar‖. Além do juízo negativo relacionado ao uso do romanesco por parte da própria comunidade, o que mais contribuiu para o enfraquecimento do romanesco foi a falta de um substrato cultural e material que o alimentasse. Nesse sentido, Stefinlongo (2012, p. 24) afirma que os costumes, as tradições e muitas das profissões que caracterizavam um modo de viver específico desapareceram. Além disso, mudou o tipo de relação do cidadão romano com o seu ambiente, com o bairro (rione), a rua, como mudou também o modo de ver a vida, o valor da família, do trabalho, dos amigos, a ponto de tornar problemática a definição de ―romanesquidade‖. Tornou-se difícil também identificar em quais bairros a cultura e o dialeto romanesco mantêm uma identidade e vitalidade próprias; no máximo, é possível identificar alguns bairros sobreviventes, como Borgo, Monti, Trevi, Testaccio, Trastevere, e algumas classes sociais: sobretudo pequenos comerciantes, artesãos e operários, de faixa etária mais alta. Quanto à funcionalidade, Stefinlongo (2012, p. 24) afirma que o romanesco não é utilizado como língua alternativa ao italiano, conforme a situação comunicativa; também em contextos informais (em família, com os amigos), a maior parte das pessoas usa o italiano ou um tipo de italiano regional, ou, ainda, um italiano popular com traços dialetais, mas raramente usará o verdadeiro dialeto em toda a conversação, nem terá a consciência de estar usando outro código. Portanto, no sistema sociolinguístico romano: 77 o dialeto não pode ser considerado a língua para o uso informal e descontraído, mas a língua das classes que, segundo o grau de instrução, o tipo de cultura, estão no ponto mais baixo da escala social: ou seja, a linha de demarcação entre a língua italiana, a variedade dialetal ou o dialeto tout court não passa pelo conceito de função, mas pelo valor social e de prestígio. 73 Como já foi dito anteriormente, os próprios habitantes de Roma não consideram o romanesco uma língua verdadeira, mas uma pronúncia errada e vulgar do italiano, juízo que tem suas raízes já em Belli, que recusava a definição de dialeto e etiquetava este italiano mal pronunciado de «língua miserável e engraçada» 74, falada pelo povo. Por todas essas e outras razões que já foram explicitadas anteriormente, Stefinlongo (2012, p. 25-27) afirma que não se deveria falar de um verdadeiro dialeto, mas, sim, de uma variedade dialetal urbana que quase sempre corresponde ao registro baixo, regional, popular do italiano. 2.4.2 As principais variedades do repertório romano de hoje Trifone (2008, p. 106) traça as principais linhas do atual repertório linguístico romano, mas não através da articulação comum variedade alta/ variedade média/ variedade baixa. Isso porque o continuum romano não permite fazer cortes precisos entre um nível e outro, apresentando uma situação de ―confim muito difundido‖ entre as variedades. As categorias estabelecidas pelo autor são desenhadas levando em conta o comportamento do falante romano com relação ao italiano standard, e são: O italiano de Roma ou italiano standard inclui as mesmas particularidades de pronúncia que as pessoas instruídas (capazes de dominar o código escrito) costumam conservar, muitas vezes involuntariamente, também quando ―falam bem‖. O chamado ―italiano de Roma‖: é próprio dos romanos instruídos quando não se preocupam em ―falar bem‖, mas também dos romanos não instruídos quando, inversamente, tentam ―falar bem‖. O verdadeiro dialeto urbano: é a variedade mais distante do italiano standard. 73 il dialetto non può essere considerato come una lingua adibita istituzionalmente all‘uso pi informale e disinvolto, ma come la lingua di quei ceti che, per grado d‘struzione, tipo di cultura, si pongono negli scalini più bassi della scala sociale: la linea di demarcazione tra lingua italiana, varietà dialettale o dialetto tout court, non passa cioè attraverso il concetto di funzione, ma attraverso quello di valore sociale e di prestigio. 74 lingua abbietta e buffona. 78 Para Stefinlongo (1985, p. 52), o resultado é uma tripartição, que tem a vantagem de não cortar em nenhum lugar o continuum e, portanto, reflete melhor a realidade linguística romana: por exemplo, um mesmo falante romano poderia usar o italiano standard com estranhos, o italiano de Roma com os familiares ou os amigos e a variedade dialetal no estádio. Na parte central do continuum, o falante tem a possibilidade de «revezar continuamente traços do standard com traços do italiano ―romano‖ e de dialeto». Trifone (1992, p. 582) relata que Tullio De Mauro (1995, p. 159) foi o primeiro a indagar sobre o percurso de aproximação entre os dialetos e a língua standard, distinguindo quatro principais variedades de italiano: setentrional, toscano, romano e meridional. No italiano de Roma (ou italiano standard), as características articulatórias e entonativas têm muita relevância, enquanto que há divergências com relação à pronúncia normativa. Um exemplo dessa divergência é o uso da vogal e, que pode variar entre aberta e fechada: o romano farébbe ‗faria‘, léttera ‗carta‘, trènta ‗trinta‘ em contraposição ao florentino farèbbe, lèttera, trénta; o romano colònna ‗coluna‘, dòpo ‗depois‘, pòsto ‗lugar‘ em contraposição ao florentino colónna, dópo, pósto. Para Trifone (2008, p. 107) os fenômenos mais característicos do italiano de Roma ou standard são: a) perda do elemento oclusivo na africada c(i), já presente na obra belliana na distinção entre pasce/pace ‗paz‘ e pesce/pece ‗betume‘; b) reforço de b e g(i) nos tipos robba/roba ‗coisa‘, Luiggi/Luigi ‗Luís‘; c) africação da sibilante depois de líquida ou nasal: penzo/penso ‗penso‘, borza/borsa ‗bolsa‘, falzo/falso ‗falso‘. Já entre as características mais significativas do ―italiano de Roma‖, ou variedade média, em primeiro lugar encontra-se a e protônica, nos clíticos ti, mi, si, ci e na preposição di – fenômeno já presente no romanesco de primeira fase, que antecede o influxo toscano (TRIFONE, 2008, p. 29). Outros fenômenos característicos desta segunda variedade romana são: a) semissonorização das oclusivas surdas tênuas p, t, k, quase como em ibodega/ipoteca ‗hipoteca‘; b) passagem de gl a j intensa, que pode se reduzir a j (fijjo/fijo/figlio ‗filho‘) e a i fio/figlio – fenômeno que se desenvolveu entre os séculos XV e XVIII (D‘ACHILLE, 2012); c) passagem de rr a r, como em guera/guerra ‗guerra‘ – fenômeno que se desenvolveu entre os séculos XVI e XVII (TRIFONE, 2008, p. 77), sendo, portanto, considerado 79 romanesco de segunda fase, afirmando-se definitivamente após a forte corrente migratória pós-unitária, vinda sobretudo do centro-sul (TRIFONE, 2008, p. 120); d) palatalização de nj: gnente/niente ‗nada‘; e) aférese dos artigos indefinidos un, una („n no lugar de un ‗um‘; „n‟ e „na no lugar de una ‗uma‘; „no no lugar de uno ‗um‘) e da vogal antes da nasal (me „nteressa/mi interessa – ‗me interessa‘; se „mpegnano/si impegnano – ‗se empenham‘). A aférese indica a queda da vogal inicial de uma palavra e é muito comum na língua falada (especialmente nos níveis diafásicos e diastráticos baixos) (SORIANELLO & CALAMAI, 2005; MAROTTA, 2005); f) aférese da sílaba inicial nos pronomes demonstrativos: „sto/questo ‗este‘, „sta/questa ‗esta‘, sti/questi ‗estes‘; g) infinitivos apocopados: parlà/ parlare ‗falar‘ com retração de acento nos verbos da segunda classe: véde/vedere ‗ver‘. A apócope silábica indica a queda da sílaba final da palavra (BATTAGLIA & PERNICONE, 1951; SERIANNI, 1989), afirmando-se entre os séculos XV e XVI; h) apócope no verbo essere na 1ª pessoa do singular e 3ª do plural (―sou‖ e ―são‖): da forma sò para sono. Ao extremo inferior do repertório, Trifone (2008, p. 109) apresenta a terceira variedade, o romanesco, que os próprios habitantes da cidade às vezes denominam romanaccio quando se referem não tanto à variedade, mas a alguns componentes considerados mais vulgares. Pertencem a este nível, além dos já citados para as duas classes precedentes: a) mudança do monotongo ò para o ditongo uò: bono/buono ‗bom‘ – romanesco de primeira fase (TRIFONE, 2008, p. 28); b) passagem de a protônica a e nas proparoxítonas: levete/levati ‗saia‘; c) assimilação progressiva de nd a nn (quanno/quando ‗quando‘) e de ld somente em callo/caldo ‗calor‘ e derivados – romanesco de primeira fase ou antigo (TRIFONE, 2008, p. 29); d) rotacismo do l antes da consoante (cortello/coltello ‗faca‘) e no artigo masculino singular (er/il ‗o‘) – fenômeno que se estabiliza no romanesco a partir do século XVII, embora já estivesse presente em Stravaganze d‟amore (1587); e) lex Porena: variação de dois ll a um l nas preposições articuladas (delo/dello, dela/della „do‘, ‗da‘) e no pronome demonstrativo (quelo/quello ‗aquele‘) (MAROTTA, 2002-2003 e 2005); e vocalização total do l nos artigos definidos e nas 80 preposições articuladas (a mojje/la moglie ‗a esposa‘; daa tera/dalla terra ou della terra ‗da terra‘), com concomitante alongamento da vogal (oo/lo) – traço desenvolvido em decorrência das migrações pós-unitárias, afirmando-se nas últimas décadas do século XX e levando o nome do crítico que, em 1925, o descreveu (Manfredi Porena). Em Roma città aperta e Il sorpasso, observamos que não há casos do fenômeno da passagem de ll a l; já em Viaggi di nozze, este é um traço predominante nas falas de Ivano; f) palatalização de ng em gn: magnà/mangiare ‗comer‘ – fenômeno que se desenvolveu entre os séculos XV e XVIII, sendo parte do romanesco de segunda fase (D‘ACHILLE, 2012); g) variação de tt a um t: matina/mattina ‗manhã‘; h) duplicação: das consoantes iniciais em llì ‗ali‘, llà ‗lá‘, ppiù ‗mais‘, cchiesa ‗igreja, ssedia ‗cadeira‘; de m em nummero ‗número‘; de d em luneddì/lunedì ‗segunda-feira‘; de l em ce ll‟ho/ce l‟ho ‗eu tenho‘; i) apócope dos alocutivos: perda da sílaba átona final, como em dottó!/dottore! ‗doutor!‘ e Marcè!/Marcello! ‗Marcelo!‘; j) apócope pós-vocálica: indicada pelo apóstrofo na língua escrita (SERIANNI, 1989, p. 81), é muito usada em algumas variedades regionais do italiano falado, sobretudo em contextos diafásicos baixos, com muitas classes morfológicas, como, por exemplo: apócope dos possessivos (mi‟/mio padre ‗meu‘) e dos numerais (du‟/due ‗dois‘); k) u protônica no lugar de o: nun/non ‗não‘, que pode se reduzir a n‟; l) apócope de r em per e de n em con: pe/per ‗para‘ ‗por‘, co/con ‗com‘; m) enfraquecimento da consoante v intervocal: davero/davvero ‗verdade‘. Para Stefinlongo (1985, p. 51), estas e outras peculiaridades não constituem um idioma unitário, alternativo com relação ao standard, e sim uma «variedade dialetal urbana» do italiano. Neste sentido, o estudioso Bernhard (1992) sugere a denominação de ―romanesco de terceira fase‖ para tal variedade pós-belliana, uma vez que se caracteriza pelo declínio de alguns traços dialetais e, por outro lado, por alguns traços inovadores, como, por exemplo, o tipo anafonético fongo substituído por fungo, ou as formas do imperfeito do indicativo, como stamio/stavamo ‗estávamos‘, quase desaparecidas; ou, ainda, a generalização da redução de r (guera) e o enfraquecimento do l nas condições da ―lex Porena‖. Trifone (2008, p. 111) ressalta que a etiqueta de ―romanesco de terceira fase‖ introduz alguns elementos de desequilíbrio na periodização. Isso porque, se pensarmos que cada tipo de romanesco, seja o de primeira fase ou o de segunda fase, durou aproximadamente 81 meio milênio, o romanesco de terceira fase teria pouco mais de um século. A propósito disso, Vignuzzi (1994, p. 29), diferentemente, prefere usar a fórmula ―romanesco de segunda fase e meia‖. De fato, considerando a escolha de Vignuzzi, Trifone ressalta que, devido à dificuldade de interpretar um processo ainda em andamento e que poderia durar por um tempo indefinido, não se pode dizer com certeza se a etiqueta ―romanesco de terceira fase‖ se caracteriza principalmente pelo desenvolvimento de novos elementos dialetais ou pela italianização ou pelas duas coisas. Portanto, para Trifone (2008, p. 111), o romanesco belliano já poderia ser definido de ―segunda fase e meia‖, se considerarmos as suas diferenças comparado com o romanesco dos séculos XVI e XVII, quando o dialeto estava em plena segunda fase. Nesse sentido, de acordo com o estudioso, a fórmula proposta por Vignuzzi abrangeria um princípio de validade geral: a evolução linguística não prossegue tanto por fases, mas, sim, por meias fases, como é o caso atual do romanesco, que atravessa uma fase intermediária, com desenvolvimentos futuros imprevisíveis. 2.4.3 O neorromanesco juvenil Trifone (2008, p. 117-18) observa que nos últimos anos há uma presença de uma ―nova dialetalidade heterodoxa‖, ou seja, um neorromanesco mais expressivo, que parece uma gíria e que vai se apropriar das linguagens da marginalização e do mundo da droga. O estudioso mostra como o cinema, o teatro e a narrativa penetraram nesses ambientes, com resultados de muito interesse linguístico, como o filme Amore tossico (1983), de Claudio Caligari. Ainda segundo o autor, essa linguagem dos jovens tem uma circulação muito maior, afirmando-se também no italiano regional das gerações adultas e no próprio italiano standard de registro informal, sendo depois propagada pelos meios de comunicação, os quais recorrem a locuções e termos da gíria – como una cifra ‗muito‘, coatto ‗pessoa ignorante‘, rosicare ‗ter inveja‘ – com o claro objetivo de dar atualidade e energia ao texto, com um olhar sem preconceitos e não conformista. Mas, como ressalta Giovanardi (2001) em Note sul linguaggio dei giovani di borgata, é necessário diferenciar o comportamento linguístico dos jovens de periferia, para os quais o neorromanesco constitui o único recurso disponível, do dos jovens de condição social e cultural mais alta, os quais possuem um leque expressivo mais amplo, incluindo o italiano ou uma variedade próxima do standard. Diferentemente dos primeiros, que não conseguem 82 sair do monolinguismo de base, os últimos escolhem o dialeto urbano e a gíria dos jovens com finalidades lúdicas, como uma provocação à língua dos pais, dos professores, dos adultos em geral. Uma característica da fala juvenil é a rapidez de pronúncia; tal tendência, acompanhada por pouco cuidado elocutivo, faz com que estejam presentes alguns traços que na fala dos adultos não aparecem ou são menos acentuados, como a tendência de transformar o som de c de ciao e certo quase em sciao e scerto (som de x). Concluindo esse panorama sociolinguístico sobre a evolução do romanesco, Trifone (2008, p. 121) afirma que, nos últimos anos, a neodialetalidade juvenil foi a responsável por restituir vigor ao romanesco, mas ao mesmo tempo contribuiu para a perda de prestígio da variedade romana de italiano, sendo percebida ainda hoje pela própria comunidade como uma língua vulgar. 83 3 METODOLOGIA DA PESQUISA 3.1 Aspectos teórico-metodológicos Como já informado, a realização desta pesquisa tem como base as teorias propostas e defendidas por Sergio Raffaelli (1992) e Fabio Rossi (1999, 2006, 2007). Especificamente, o objeto de nosso trabalho são as falas fílmicas em romanesco de três filmes selecionados de três períodos históricos diferentes: Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini; Il sorpasso (1962), de Dino Risi; e Viaggi di nozze (1995), de Carlo Verdone. Portanto, o primeiro objetivo da nossa pesquisa é observar o grau de formalidade/informalidade das falas fílmicas através da maior ou menor presença de traços fonéticos do romanesco, levando em consideração o continuum linguístico romano. Para tanto, foi necessário um estudo sobre a história do cinema e da sociedade italiana nos períodos considerados. Mas, antes de prosseguirmos, esclarecemos que a escolha do corpus foi com base em dois critérios: filmes que tivessem tido impacto sobre o público e que retratassem a situação sociolinguística daquele período. Neste sentido, quanto ao primeiro filme do nosso corpus, Roma città aperta, pensamos em abordar um filme neorrealista, devido a sua importância e a sua inovação linguística na história da cinematografia italiana: o Neorrealismo dá ao dialeto a dignidade perdida nos anos do regime fascista, ganhando um relevo histórico incomparável (RAFFAELLI, 1992, p. 107), que ia ao encontro com as temáticas daquela época, como a guerra. Neste sentido, como aprofundado no item 1.2.2.1, Roma espelha a realidade plurilíngue daqueles anos de guerra: de um lado temos o alemão dos ocupantes, o italiano dos pequeno-burgueses e dos não romanos e o romanesco utilizado pelos romanos como «código dos afetos». O segundo filme analisado por nós, Il sorpasso, comentado no item 1.2.2.3, também vai espelhar as mudanças sociais dos anos 1950, como por exemplo, a euforia causada pelo boom econômico, se pensarmos que o filme aborda o processo de industrialização pelo qual passava o país, como podemos ver já pelo título do filme. Além disso, outro aspecto desse período que nos interessou foi o fato de o cinema italiano ter conseguido colher todas essas mudanças sociais e também linguísticas que estavam ocorrendo na sociedade (entre as quais o contato direto entre dialeto e italiano que resultou nos italianos regionais) e modifica a própria linguagem, adotando um repertório sempre mais coloquial, depois de anos de estereotipia dos filmes do Neorrealismo rosa. De 84 fato, em Il sorpasso, vemos algumas inovações linguísticas da época, segundo Raffaelli (1992, p. 127): emprego mimético de um italiano marcado por traços fonéticos, morfossintáticos e lexicais de matriz dialetal (italiano regional) e a abertura aos léxicos das linguagens setoriais, como por exemplo, todas as vezes que o protagonista, Bruno, faz comentários sobre seu carro e sobre a máquina distribuidora de cigarro. Outro fator importante que nos levou a essa escolha, foi devido à importância desse filme para a cinematografia: além de inaugurar esta nova tendência linguística, tornou-se fenômeno de culto nos Estados Unidos: o diretor Dennis Hopper inspirou-se em Il sorpasso para escrever o cult movie Easy Rider 75 . Também faz parte, juntamente com Roma città aperta, da lista dos «100 filmes que mudaram a memória coletiva do País entre 1942 e 1978». 76 Já no que diz respeito ao terceiro filme, escolhemos Viaggi di nozze devido ao desejo de abordar uma obra de Carlo Verdone, cineasta-ator romano considerado herdeiro de Alberto Sordi, dada a sua capacidade de reviver também em seus filmes a figura do romano, representante da classe média. De fato, em Viaggi di nozze Verdone mostra três tipos de romanos daquela época caracterizados diastraticamente: Raniero, médico rico, representante de uma classe social de bem-sucedidos; o outro representado pelo italiano de classe média e, o terceiro, representado pelo novo rico arrogante de periferia, na figura de Ivano. Especialmente sobre o último personagem, Ivano, Ciccotti (2001, p. 292), entrevistando seus alunos, verificou que todos respondiam que gostavam do cinema de Verdone porque reconheciam estas figuras popolares: «Os tipos assim falam e se movem assim. Alguns eu vejo no bar perto de casa‖» 77 . De acordo com Montini (1997, p. 98), este filme representa a apoteose do cinema de Verdone, além de ter sido uma retomada de dois de seus precedentes filmes de sucesso Un sacco bello (1980) e Bianco rosso e Verdone (1981). A partir da cronologia exposta no item 1.2 sobre a relação entre língua italiana e dialetos do cinema italiano, ficou evidente que, especialmente depois dos anos 1960, o cinema adotou sempre mais um repertório linguístico com tendência à coloquialidade, que culminou, nos anos Noventa, com o retorno da gravação ao vivo e o uso sempre menos estereotipado do dialeto por parte dos cineastas. 75 http://www.treccani.it/enciclopedia/il-sorpasso_(Enciclopedia-del-Cinema)/ (Acesso no dia 22/01/16). 76 100 pellicole che hanno cambiato la memoria collettiva del Paese tra il 1942 e il 1978. http://www.corriere.it/spettacoli/08_febbraio_28/elenco_cento_film_d83cacd8-e5ce-11dc-ab610003ba99c667.shtml (Acesso no dia 22/01/16). 77 I tipi cos parla(/e)no e se movo(/e)no proprio cos . Certi ce l‘ho sotto ar baretto de casa mia! 85 Todos estes fatores nos levaram a escolher um filme de Verdone. É neste período que, de acordo com Ciccotti (2001, p. 292), o romanesco se torna ―espelho‖ legitimado das importantes mudanças sociais. Quanto à análise do corpus escolhido, teremos como base o trabalho de Fabio Rossi (1999, p. 16), o qual fez um estudo da frequência de alguns fenômenos fonéticos, morfossintáticos, pragmáticos e lexicais para a identificação do grau da variação diafásica (formal/informal) em seis filmes italianos, compreendidos no período que vai de 1948 a 1957. Tendo em vista estes objetivos, as características da fala fílmica podem ser resumidas da seguinte forma: a fala fílmica possui uma múltipla natureza, ou seja, nasce como texto prescrito, para ser recitado, não sendo, portanto, espontâneo. Outros fatores que diferenciam esta fala são as várias passagens que constituem o meio que a reproduz, a começar pelas próprias características técnicas do meio (gravação e dublagem das vozes; montagem, etc). Essas características, somadas aos vínculos ideológico-econômicos - exigência de ser compreensível para toda a plateia e desejo de não perturbar a sensibilidade de um público que deseja ver encenado um discurso limpo, conforme a gramática, distante do discurso cotidiano – vão separar a língua do cinema da língua falada e da língua escrita. Todavia, Fabio Rossi (1999, p. 18) afirma que a copresença dos canais fônicos e visuais no cinema sonoro, bem como a exigência de compreensibilidade por todos e de reprodução do mundo e da língua com verossimilhança, além das características técnicas do meio, são fatores que no final tornam o cinema ―realista‖. Sobre este tema, concorda Pasolini (1972, p. 229), quando afirma que o cinema é a língua escrita da realidade e, portanto, representa a realidade através da realidade: Se o cinema não é outra coisa além da língua escrita da realidade (que se manifesta sempre em ações), significa que não é arbitrário nem simbólico: e representa, portanto, a realidade através da realidade. Concretamente, é através dos objetos da realidade que uma câmera, momento após momento, reproduz [...]. A este ponto pode-se identificar a relação da minha noção gramatical do cinema com aquela que é, ou pelo menos acredito ser, a minha filosofia ou o meu modo de viver: que não me parece outra coisa a não ser um alucinado, infantil e pragmático amor pela realidade. 78 Todavia, se levarmos em conta a estrutura da fala fílmica, percebemos que, quando se fala de realismo no cinema, é preciso considerar as suas características dialógicas, pois são 78 Se il cinema altro non è dunque che la lingua scritta della realtà (che si manifesta sempre in azioni), significa che non è né arbitrario né simbolico: e rappresenta dunque la realtà attraverso la realtà. In concreto, attraverso gli oggetti della realtà che una macchina da presa, momento per momento, riproduce [...]. Ecco, a questo punto si può individuare il rapporto della mia nozione grammaticale del cinema con quella che è, o almeno io credo essere, la mia filosofia, o il mio modo di vivere: che non mi sembra altro, poi, che un allucinato, infantile e pragmatico amore per la realtà. 86 muito diferentes das da fala real, o que é assim sintetizado por Emanuela Cresti (1987a, p. 6265): O diálogo cinematográfico é geralmente mais lento do que o espontâneo, as palavras são pronunciadas com mais exatidão porque falta a possibilidade de pedir confirmação; a articulação dos argumentos, ou mais precisamente da informação nos enunciados, é obtida graças às pausas entre um bloco e o outro; e assim por diante. Mas a comparação entre a fala espontânea e a fala cinematográfica [...] deve levar em consideração que uma troca comunicativa real é constituída por atos linguísticos e que o aspecto pragmático da relação intersubjetiva determina a forma linguística dos enunciados, decidindo quais aspectos lexicais e sintáticos serão utilizados. A obra fílmica, por sua vez, é uma representação de acontecimentos e de relações intersubjetivas, e não uma série de atos; portanto, a linguagem desta fala não tem valência pragmática de relação [...]. Assim, a diversidade técnica do diálogo fílmico leva, por um lado, a uma maior exatidão de pronúncia, a pausas entre os blocos de informação e, logo, a uma lentidão geral com relação à fala; por outro, o seu diferente valor pragmático leva à concentração de uma história para fins representativos. O diálogo cinematográfico deve conciliar estes dois parâmetros, sob alguns aspectos opostos, em todo caso diferentes, à velocidade e à dispersão do diálogo real. A naturalidade dialógica, portanto, deve ser entendida como o resultado de uma recriação linguística que, respeitando a lentidão e a concentração fílmica, ofereça, todavia, uma impressão de espontaneidade. Tudo isso pode ser alcançado com o uso de sábias elisões e de oportunas redundâncias que imitem procedimentos próprios da fala ou com a impostação sintática dos enunciados. 79 Tendo em vista tais pressupostos teóricos, esclarecemos, nesta sede, que a nossa escolha pela expressão fala fílmica, utilizada por Rossi (1999, p. 33), teve como finalidade reduzir equívocos e interferências com outro âmbito de estudo, o semiológico, que considera ―língua‖ e ―linguagem‖ todo o sistema de sinais do filme, e não somente os diálogos dos atores: Prefiro a expressão ―fala fílmica‖ em vez de outras possíveis (―língua fílmica‖, ―língua filmada‖, ―linguagem cinematográfica‖, todas atestadas) a fim de reduzir o risco de equívocos e de interferências com outro âmbito de estudos, o semiológico, que com ―língua‖ e ―linguagem‖ entende um aspecto muito mais complexo: todo o 79 Il dialogo cinematografico è in genere più lento di quello spontaneo, le parole sono pronunciate con più accuratezza, perché manca la possibilità di chiedere conferma; l‘articolazione degli argomenti, o pi propriamente dell‘informazione negli enunciati, viene ottenuta grazie a delle pause tra un blocco e l‘altro, e cos via. Ma il confronto tra il parlato spontaneo e quello cinematografico [...] deve tener conto del fatto che uno scambio comunicativo reale costituito da atti linguistici e che l‘aspetto pragmatico del rapporto intersoggettivo determina la forma linguistica degli enunciati, decidendone aspetti lessicali e sintattici. L‘opera filmica, invece, una rappresentazione di avvenimenti e di rapporti intersoggettivi, e non una serie di atti; per cui il linguaggio non ha in essa valenza pragmatica di rapporto [...]. La diversità tecnica del dialogo filmico, dunque, porta da un lato ad una maggiore accuratezza di pronuncia, alle pause tra i blocchi di informazione e quindi ad una complessiva lentezza rispetto al parlato, dall‘altro il suo diverso valore pragmatico porta invece alla concentrazione di una storia per fini rappresentativi. Il dialogo cinematografico deve conciliare questi due parametri per certi aspetti opposti, in ogni caso diversi, alla velocità e alla dispersione del dialogo reale. La naturalezza dialogica, quindi, deve essere intesa come il risultato di una ricreazione linguistica che pur assecondando la lentezza e la concentrazione filmica, offra tuttavia un‘impressione di spontaneità. Tutto ciò può essere raggiunto con l‘uso di sapienti elisioni e di opportune ridondanze che imitino procedimenti propri del parlato o con l‘impostazione sintatica degli enunciati. 87 sistema de sinais do filme (imagens, palavras escritas e orais, barulhos e sons), não somente os diálogos dos atores. 80 Sendo assim, torna-se imprescindível o estudo das características da fala fílmica com relação à fala escrita e oral, tendo como base as contribuições de Fabio Rossi (2007, p. 7-16), o qual esclarece que a fala fílmica se enquadra na categoria da língua transmitida (língua dos meios de comunicação) 81, isto é, veiculada por um sistema técnico de reprodução sonora e/ou visual. Entre as características principais dos ―transmitidos‖, sobretudo do fílmico, estão sua natureza intermédia entre escrito e falado e a tendência à simplificação, à atenuação das variedades e à normatização linguística. Os principais aspectos da língua transmitida podem, então, ser resumidos em sete pontos: não compartilhamento do contexto por parte dos emitentes e destinatários; unidirecionalidade do ato comunicativo (ausência de feedback); multiplicidade dos emitentes (produção coletiva da mensagem); heterogeneidade dos destinatários (destinação de massa da mensagem); distância entre o momento de preparação do texto, o momento da sua execução e o da sua recepção; ―simulação‖ da fala espontânea; presença de um aparato técnico-econômico para a preparação e a transmissão da mensagem. Quanto às principais diferenças entre comunicação escrita, falada e filmada, trazemos o esquema idealizado por Rossi (2007, p. 14): Tabela 1: Diferenças entre comunicação escrita, falada e fílmica Diferenças entre comunicação escrita, falada e fílmica Traços linguísticos Escrito Oral Fala fílmica Uniformidade das unidades linguísticas (turnos, frases, enunciados) - - + Tendência à monologicidade + - +/- Extensão das unidades (turnos, frases, enunciados) + - +/- 80 Preferisco l‘espressione ―parlato filmico‖ ad altre possibili (―lingua filmica‖, ―lingua filmata‖, ―linguaggio cinematografico‖, tutte attestate) per ridurre il rischio di equivoci e di interferenze con un altro ambito di studi, quello semiologico, che con «lingua» e «linguaggio» del film intende un aspetto molto pi complesso: l‘intero sistema di segni del film (immagini, parole scritte e orali, rumori e suoni), non soltanto le battute degli autori. 81 (SABATINI, 1997). 88 Sobreposições, contaminações e outros‖ acidentes‖ dialógicos - + - Planejamento, coerência e coesão + - + Recurso a elementos para e extralinguísticos - + + Complexidade morfossintática + - +/- Densidade lexical + - +/- Presença de dialeto - + +/- Polarização com base no gênero + + - Aqui, explicaremos brevemente a terminologia técnica utilizada para elencar as características principais da língua transmitida e as principais diferenças entre comunicação escrita, falada e filmada do quadro. Feedback é a capacidade que o falante tem de perceber e controlar o que está dizendo e eventualmente se autocorrigir e é um aspecto que está presente somente nos intercâmbios comunicativos realmente recíprocos, não ocorrendo, portanto, no cinema. O termo ―simulação‖ se refere à natureza realística da fala fílmica, a qual, mesmo que se distancie do nível coloquial, é sempre mais próxima da fala espontânea do que de um texto escrito, devido à ausência, no segundo, dos elementos paralinguísticos (pausas, entonações) e extralinguísticos (tom de voz, gestos e mímica facial). ―Turno‖ ou ―diálogo‖ é uma porção de texto oral pronunciada por um só locutor e delimitada pela tomada de palavra de outros locutores ou pelo fim do diálogo. ―Enunciado‖ é uma porção de texto oral que corresponde a um período ou uma frase no texto escrito. ―Contaminações‖ e ―acidentes dialógicos‖ são todos os elementos que tornam uma conversação hiper-realística: sobreposições de diálogos, palavras interrompidas, interjeições (ROSSI, 2007, p. 13-15). No que diz respeito à ―densidade lexical‖, pode-se dizer que um texto é lexicalmente denso quando o número de suas palavras cheias (de significado autônomo: substantivos, adjetivos, verbos, quase todos os advérbios) ultrapassa o número de palavras vazias (palavras gramaticais: conjunções, preposições, artigos etc.) e quando ele contém poucas repetições. Rossi (2007, p. 15) comenta que alguns estudos recentes mostram que a fala fílmica se encontra entre a baixa densidade lexical da fala espontânea e coloquial e a alta densidade da língua escrita, além de ser mais complexa que a fala, mas menos que a escrita, no que se refere à sintaxe e à morfologia. A ―extensão dos turnos e dos enunciados‖ é superior no filme com relação aos diálogos reais, de tal forma que há muitas cenas em que a fala se aproxima do monólogo. 89 Quanto à diferença de gênero e de estilo (trágico/cômico, mais ou menos literário), percebe-se que, tanto na escrita quanto na língua falada, há uma maior diversificação linguística; já a linguagem fílmica é menos polarizada: também nas escolhas lexicais, os diálogos fílmicos não se distanciam das palavras do vocabulário de base, excluindo ou reduzindo gírias, dialetalismos, tecnicismos, arcaísmos etc. (ROSSI, 2007, p. 15). Podemos resumir as ―anomalias‖ linguísticas e textuais do filme: todo filme nasce de um texto escrito (feito por uma equipe: diretor, roteirista, fotógrafo, montador, atores, dubladores, produtores etc.), que, só nas últimas fases, se transforma em imagem, o que leva a uma precariedade da palavra e a um distanciamento da fala cotidiana. De fato, a fala fílmica é o resultado de uma série de passagens: pode ter como guia o ―tratamento‖ (que articula a estória em blocos narrativos, muitas vezes acompanhados por esboços de diálogos) ou então o ―roteiro‖ (que amplia o ―tratamento‖, seja com comentários sobre a divisão das cenas, a ambientação, a cenografia, seja com uma nova versão dos diálogos etc.). Portanto, a fala fílmica pode ser definida como um texto simulador da fala (MANCINI, VEDOVELLI, DE MAURO, 1993, p. 121) que é lido em voz alta ou recitado; é um texto escrito para ser dito como se não fosse escrito, ou melhor, é uma fala reproduzida (RAFFAELLI, 1992, p. 152). Desse modo, a fala fílmica, inserida na tipologia geral de ―língua transmitida‖ (SABATINI, 1997) e veiculada por um meio audiovisual, pode se colocar em uma posição intermediária entre a escrita e a fala, com tendência à simplificação, à atenuação das variedades, à normatização linguística e à redução dos dialetos para maior compreensão por parte do público, como já dito anteriormente. Mas, segundo os estudiosos Sergio Raffaelli (1992), Gian Piero Brunetta (2001) e Fabio Rossi (1999, 2007), ainda há poucos estudos sobre a fala fílmica, os quais foram iniciados com Menarini (1955) e Carlo Battisti (1952). O primeiro dedicou à língua do cinema uma importante seção dos próprios estudos sobre a gíria e o dialeto bolonhês, criando uma nova disciplina: a «filmologia linguística»; o segundo criou as bases metodológicas da análise linguística do filme e identificou todos os caminhos, tocando nos problemas do dialeto, dos desvios da norma, das variabilidades diastrática e diafásica, da dublagem e da relação entre a imagem e a palavra no cinema. Será somente nos anos 1970 que a palavra fílmica suscitará interesse entre os especialistas de cinema e de língua e sairá da marginalidade; como afirmou Brunetta (1970, p. 90 37 apud ROSSI, 1999, p. 43): «O cinema interessou os estudiosos de semiologia e os estruturalistas, mas não provocou o interesse dos linguistas». 82 Para a sua recuperação historiográfica, contribuíram, de um lado, a rápida diminuição do preconceito teórico e estético em relação à conexão fílmica da palavra com a imagem e o aumento da acessibilidade a importantes filmes de um passado recente e dos primórdios; e, de outro, a aplicação de critérios atualizados pela linguística e pela semiótica à análise do conjunto verbal dos filmes. Nesse sentido, Rossi (2006, p. 23; 2007, p. 8) afirma que Sergio Raffaelli e Gian Piero Brunetta foram os primeiros a se ocupar da língua do cinema italiano e a traçar seu panorama linguístico, seguidos de outros pesquisadores nos últimos anos. Quanto ao aspecto metodológico, Fabio Rossi (1999) nos dá apoio na identificação do critério de coleta e tratamento dos dados. Com base nesses estudos, como já foi dito anteriormente, o critério de seleção será a escolha dos fenômenos fonéticos considerados reveladores da variação diafásica (formal/informal) – a frequência de tais traços permitirá a identificação do nível de formalidade/informalidade das falas fílmicas (diálogos dos atores) de cada obra em questão. Com base nestas afirmações, passemos à descrição das etapas seguidas para a efetivação da análise do nosso corpus. 3.1.1 Observações sobre as transcrições e citações dos filmes A primeira etapa de nossa análise consistiu na transcrição dos diálogos dos três filmes escolhidos (Roma città aperta, Il sorpasso, Viaggi di nozze) em que se verifica a presença do romanesco, o que permitirá a avaliação da frequência dos fenômenos fonéticos. Ressaltamos que, pelo fato de não se encontrarem disponíveis os roteiros dos filmes, foi necessário assistir aos mesmos para que então pudéssemos transcrevê-los, contando com o apoio de uma segunda pessoa, nativa romana. Rossi (1999, p. 21) afirma que o único modo de analisar diálogos de filmes é transcrevendo-os, levando-se em conta a impossibilidade de uma fidelidade absoluta. Nesse sentido, o estudioso baseou-se em Halliday (1992, p. 71), o qual ressalta a importância da transcrição afirmando que «enquanto a língua falada não for transcrita, permanecemos inconscientes dela» 83 e sugere também que, devido à impossibilidade de reproduzir todos os 82 Il cinema ha interessato gli studiosi di semiologia e gli strutturalisti, ma sempre rimasto un po‘ estraneo all‘interesse dei linguisti. 83 finché la lingua parlata non viene trascritta, si resta largamente inconsapevoli di essa. 91 detalhes, o que se deve fazer é «[...] decidir quais características são importantes para o nosso objetivo e deixar de lado as outras» 84. Para uma maior legibilidade do texto, adotaremos o alfabeto standard no lugar do alfabeto fonético. Além disso, ressaltamos que foram abandonados alguns sinais de pontuação tradicionais (pontos e vírgulas para a descrição das pausas e das entonações da fala), sempre de acordo com a metodologia de Rossi (1999). A seguir, apresentaremos de modo esquemático os sinais de transcrição que utilizaremos com base em Rossi (1999, p. 22-31), que, por sua vez, se fundamentou nos estudos de Pagliaro (1970), Voghera (1992c), Bazzanella (1994, p. 84-92) e MacWhinney (1995): a) *: indica os personagens do filme. O nome do locutor é escrito com letras maiúsculas, seguido por dois pontos e pelo texto do turno; b) ?: indica o fim de um enunciado concluído com uma entonação interrogativa (ascendente ou descendente-ascendente); c) !: indica o fim de um enunciado concluído com uma entonação exclamativa (ascendente-descendente); d) ?!: indica o fim de um enunciado concluído com uma entonação intermédia entre pergunta e exclamação (antes ascendente e de repente descendente no final do enunciado); e) //: substitui o ponto-final. Indica o fim de um enunciado concluído com uma entonação de tipo assertivo; f) /: substitui a vírgula. A barra simples indica o fim de uma unidade tonal, não necessariamente acompanhada de pausa; g) ...: indica o fim de um enunciado, ou de parte de um enunciado incompleto, deixado no ar ou pronunciado em tom de hesitação (ascendente), seja por interrupção por parte de um interlocutor, seja por outro motivo. Os três pontos somente assinalam o fim de um enunciado se seguidos pela inicial maiúscula (com exceção dos nomes próprios) ou por outro turno ou por outra cena. Caso contrário, indicam hesitação no âmbito do mesmo enunciado; h) #: indica pausa prolongada, de cinco a quinze segundos; e ##: indica pausa mais longa que quinze segundos. Não são indicadas as pausas com menos de cinco segundos; 84 decidere quali caratteristiche sono importanti per lo scopo al quale si lavora e lasciare fuori le altre. 92 i) [ ]: serve para indicar as porções de texto parcialmente incompreensíveis (seja devido ao mau estado da trilha sonora, seja por efeitos de sobreposições de vozes e de sons criados pelo diretor) e não reconstruídas totalmente; j) [...]: indica texto totalmente incompreensível; k) < >: indica o fenômeno da sobreposição de turno; l) « »: indica os trechos de texto somente escritos, e não recitados; m) ― ‖: indica os trechos de textos lidos, recitados ou cantados; n) inicial maiúscula: usada no início de cada turno e de cada enunciado, para os nomes próprios e para os títulos (de canções, livros etc., e em todos os casos previstos pela norma linguística italiana); o) cena: como unidade de medida e de referência para as citações, considerou-se, em primeiro lugar, o turno dialógico – entendido como o trecho de um texto recitado por um mesmo ator, ainda que endereçado a diferentes interlocutores – e, depois, a cena – entendida como uma porção de narração fílmica que contém unidade de tempo e de lugar (se os interlocutores passam de um lugar ao outro sem elipse temporal, a cena não muda; se na mudança de lugar tem-se uma mudança radical de todos os atores e da situação, a cena muda), demarcada por pausas longas e, sob uma perspectiva linguística, por mudança «relevante» de situação comunicativa (as elipses temporais e espaciais fazem com que o tema dos diálogos mude de uma cena para outra). Segundo Rossi (1999, p. 27), de um ponto de vista ligado à imagem fílmica, o conceito de cena é considerado impreciso e sujeito a interpretações subjetivas; p) nas citações dos filmes do corpus, indicaremos sempre a cena e o turno de onde foi retirado o trecho: a abreviação c. indica a cena, seguida pelo número da cena. Cada filme do corpus foi citado de forma abreviada, com a primeira palavra do título (por exemplo: Roma = Roma città aperta). Em seu trabalho, Rossi (1999, p. 28-31) indica alguns critérios de transcrição dos traços fonéticos em casos de distinção de palavras homófonas que serão adotados no presente trabalho, sendo compartilhados também por D‘Achille (2012) e Trifone (2008): a) nos polissílabos apocopados, colocou-se sempre o acento (e nunca o apóstrofo: annà/andare ‗ir‘). Os monossílabos e as formas aferéticas não apresentam acento nem apóstrofo, a menos que não tenha sido útil distinguir os homófonos: 'o/lo ‗o‘ para diferenciar da conjunção o ‗ou‘; nu „o so/ non lo so ‗não sei‘; vo‘/vuole ‗quer‘ diferenciado da vo/vado ‗vou‘; „sto(a)/ questo(a) ‗este(a)‘ diferenciados da primeira e 93 da terceira pessoa do presente do indicativo do verbo stare ‗estar‘, mas sti(e)/questi(e) ‗estes(as)‘ sem apóstrofo, já que não homófonos. Para fare ‗fazer‘ e stare ‗estar‘, foi necessário distinguir três homófonos: fa ‗faz‘ e sta ‗está‘ na terceira pessoa do presente indicativo; fa‟ ‗faça‘ e sta‟ ‗esteja‘ no imperativo; e fà ‗fazer‘ e stà ‗estar‘ no infinitivo apocopado. Para dare ‗dar‘ e dire ‗dizer‘, fizeram-se as seguintes distinções: da‟ ‗dê‘ e di‟ ‗diga‘ no imperativo; e dà ‗dar‘ e di‟ ‗dizer‘ no infinitivo apocopado. Neste segundo caso, é inevitável a homografia entre o imperativo e o infinito apocopado di‟, uma vez que a forma acentuada dì quer dizer giorno ‗dia‘. No caso de palavras constituídas por apenas uma consoante, como, por exemplo, as aféreses dos monossílabos no romanesco, o autor utilizou o apóstrofo ('l/ il ‗o‘; 'r [= er]/ il ‗o‘; 'n/ non ‗não‘ etc.) para facilitar o reconhecimento destas formas, nem sempre transparentes em uma leitura inicial. O autor utilizou acentos e apóstrofos todas as vezes em que havia a necessidade de desambiguar a leitura e a compreensão, mantendo um critério econômico e homogêneo 85; b) utilizou-se o j para indicar a pronúncia semiconsonântica da lateral palatal (fijo, mejo); c) empregou-se š para a pronúncia da sibilante pré-consonântica e para a pronúncia fricativa da c palatal surda intervocálica: špinaši/spinaci ‗espinafre‘, prešiso/preciso ‗claro‘; d) empregou-se z para a africação da sibilante: penzo/penso ‗penso‘, falzo/falso ‗falso‘; e gn para a palatalização de nğ: piagne/piange ‗chora‘ e para mostrar a típica pronúncia palatal romana de nj + vogal: gnente/niente ‗nada‘; e) para finalizar, na transcrição de palavras estrangeiras, o autor preferiu manter a grafia da língua original, com exceção de alguns termos que entraram em uso no italiano e que já foram adaptados à sua pronúncia, como, por exemplo as palavras occhei ‗ok‘ e sciampo ‗shampoo‘. Além disso, o autor incluiu na transcrição e na análise somente os textos de músicas cantados pelos personagens dos filmes, sendo assim considerados parte integrante do texto fílmico e da trama, e não simples acompanhamento musical (ROSSI, 1999, p. 30-31). 85 Para o uso do acento e do apóstrofo, o autor (ROSSI, 1999, p. 28) se baseou nos estudos de Serianni (1988, p. 29-30 e 68-69). 94 3.2 Coleta e tratamento dos dados A análise dos dados da pesquisa será realizada por meio de ferramentas de quantificação de dados, como o programa AntConc 3.4.4w, criado por Laurence Anthony, cuja principal característica é listar as ocorrências de uma determinada palavra ou frase de um corpus. Os dados coletados no corpus desta pesquisa serão os traços fonéticos presentes nas falas fílmicas dos personagens em que há a presença de traços fonéticos do romanesco com o objetivo de verificar o grau de formalidade/informalidade, a partir das transcrições efetuadas por mim, que constituiu na primeira etapa da análise. Para a análise propriamente dita, elencamos, a seguir, algumas constatações que fizemos ao longo de nossa pesquisa que nos levaram naturalmente a algumas escolhas, bem como a elucidação de alguns critérios utilizados no tratamento dos dados: Na impossibilidade de se analisar todos os personagens envolvidos nos três filmes, correndo o risco de gerar resultados imprecisos e discutíveis, optamos por nos concentrar somente nos personagens protagonistas que mais utilizaram o romanesco em suas falas. Desta maneira, para o filme Roma città aperta, escolheremos a personagem Pina; já no segundo filme, Il sorpasso, o personagem Bruno, e para o último filme, Viaggi di nozze, serão escolhidos dois dos três protagonistas: Ivano e Giovannino; Partindo sempre das transcrições integrais de cada filme, faremos um primeiro levantamento dos traços fonéticos relacionados às três variedades presentes no continuum linguístico romano: variedade alta ou ‗de prestígio‘, variedade média ou italiano de Roma e variedade baixa ou ‗de menor prestígio‘, apresentadas no item 2.4.2, tendo como base os estudos de De Mauro (1995, p. 159), Trifone (2008, p. 106) e D‘Achille, Giovanardi (2001). Uma vez identificados os traços e observada a frequência destes, os agruparemos de acordo com a variedade que lhe pertence. Esses dados servirão para a confecção dos quadros de ocorrências e frequências dos traços fonéticos presentes nos três filmes; Uma vez feito este levantamento geral, isolaremos das transcrições totais as falas dos quatro personagens em questão: Pina, Bruno, Giovannino e Ivano e procederemos ao mesmo tratamento de dados feito anteriormente; 95 Para podermos chegar a um resultado final, ou seja, à média de ocorrência de cada traço, quantificaremos também aquelas mesmas palavras sem o traço fonético, sempre partindo do correspondente em romanesco. Por exemplo, após termos identificado a frequência da apócope dos verbos no infinitivo, passaremos para a identificação dos verbos no infinitivo não apocopados nas três conjugações are, ere, ire. Para tanto, utilizaremos o asterico (*) seguido de are, ere e ire e assim obteremos o total, como exemplificado pelo programa AntConc 3.4.4w. Na Figura 1 a seguir, apresentamos um exemplo do uso do programa acima mencionado: Figura 1: Exemplo do uso do programa AntConc 3.4 4w Para que o leitor da presente pesquisa possa ter acesso aos três filmes do corpus, apresentamos a seguir os links dos trechos que foram retirados a partir do canal Youtube: a) para Roma città aperta, encontramos o link do filme completo: https://www.youtube.com/watch?v=zCcIpAYLQ8c; b) para Il sorpasso, encontramos alguns trechos: as cenas iniciais – https://www.youtube.com/watch?v=O7aIg8dWTo&list=PLMdTmRmI17qWPRmQY1LBjBmCRJFulYSfk&index=2; a cena que sucede a visita aos parentes de Roberto – https://www.youtube.com/watch?v=PD9NEvnPRz0; a cena em que dão carona a um senhor: https://www.youtube.com/watch?v=lggFtPoln1A; 96 c) já para Viaggi di nozze, encontramos alguns trechos de cenas entre Ivano e Jessica: em viagem de carro (O famo strano) – https://www.youtube.com/watch?v=- 5NUA709xC0&index=4&list=PLr9SDiv9WDGUs3zuPEthmuudd4P-JaU_8; com os amigos depois da ida à https://www.youtube.com/watch?v=HkOFPVXspbQ; Giovannino, o trecho da cena de e, discoteca para seu o – personagem casamento – https://www.youtube.com/watch?v=pRvOHMWe6jA. A seguir, no tópico dedicado à análise propriamente dita, comentaremos os traços fonéticos em que há a presença do romanesco identificados nos três filmes analisados. 97 4 ANÁLISE DO CORPUS Tendo como base metodológica os estudos de Rossi (1999), faremos, neste capítulo, a análise da presença do romanesco em três filmes italianos de diferentes períodos: Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, Il sorpasso (1962), de Dino Risi e Viaggi di nozze (1995), de Carlo Verdone. Começaremos com a apresentação da ficha técnica (além do título e ano), na qual são indicadas as seguintes informações: D. = diretor; R. = roteiristas; I. = intérpretes principais (seguidos do nome do personagem interpretado em itálico). Para cada filme, será feita uma sinópse, seguida pelo comentário relativo aos traços linguísticos descritos no capítulo anterior. A análise dos dados será realizada por meio do programa AntConc 3.4.4w. Sucessivamente, será apresentada uma tabela com os traços fonéticos e o número de frequência relativos a cada filme analisado. 4.1 Roma città aperta 4.1.1 Ficha técnica Roma città aperta, 1945. D.: Roberto Rossellini. R.: Sergio Amidei, Federico Fellini, Celeste Negarville, Roberto Rossellini. I.: Anna Magnani: Pina; Aldo Fabrizi: Don Pietro Pellegrini; Marcello Pagliero: Giorgio Manfredi; Maria Michi: Marina Mari; Carla Rovere: Lauretta; Francesco Grandjacquet: Francesco; Giovanna Galletti: Ingrid; Harry Feist: major Fritz Bergman; Vito Annichiarico: Marcello; Nando Bruno: Agostino. 4.1.2 Sinópse de Roma città aperta Entre 1943 e 1944, Roma, sob ocupação nazista, é declarada cidade aberta, para evitar bombardeios aéreos. Neste cenário, comunistas e católicos aliam-se para combater os alemães e as tropas fascistas. Giorgio Manfredi, militante comunista e representante da resistência, foge da polícia e se refugia na casa de Francesco, um tipógrafo antifascista, o qual, no dia seguinte, deveria se casar com Pina, uma viúva, mãe de Marcello. A irmã de Pina, Lauretta, trabalha como artista em uma casa de shows, junto com a amiga Marina, que no passado foi ligada sentimentalmente a Manfredi; don Pietro, o pároco local, ajuda os perseguidos políticos e torna-se porta-voz dos partigiani, passando facilmente pelo controle dos soldados alemães e da SS, sem despertar suspeitas. 98 Manfredi foge a outra perseguição alemã enquanto que Francesco é preso, e, no momento em que ele sobe no caminhão que o levará embora, Pina sai gritando tentando alcançá-lo, mas acaba morrendo sob o fogo de metralhadoras na frente de don Pietro e do filho. Mais tarde, Francesco consegue escapar e se esconde, com Manfredi, na casa de Marina. Esta, depois uma discussão entre os dois, decide denunciá-los a Ingrid, agente da Gestapo, em troca de droga. Manfredi, juntamente com don Pietro, é capturado; Francesco consegue escapar. O primeiro sofre terríveis torturas e morre, enquanto don Pietro é fuzilado na última cena do filme. 4.1.3 Comentário linguístico «De todos os filmes neorrealistas, talvez o menos conotado no sentido dialetal seja o próprio inaugural, o qual gozou, diria também por este motivo, de maior sucesso entre o público» 86 (ROSSI, 2006, p. 190). Com essas palavras, Fabio Rossi concorda também com Raffaelli (1992, p. 107) quando este afirma que a refinada modulação linguística de Roma città aperta parecia responder a intenções mais simbólicas do que realistas; e aqui reportamos mais uma vez a sua declaração a respeito: «o alemão como código de guerra; o italiano da consciência, o dialeto dos afetos» 87. Ainda segundo Rossi (1999, p. 67), a língua de Roma tendeu muito mais para a formalidade, rica de «costui» ‗ele‘, «coloro» ‗eles‘, «il quale» ‗o qual‘ (don Pietro: «Per coloro che si sacrificano non è un sacrificio» ‗Para aqueles que se sacrificam não é um sacrifício‘); de particípios em concordância com o objeto (Marina: «Se tu m‟avessi veramente amata m‟avresti cambiata» ‗Se você tivesse me amado de verdade, ter-me-ia mudado‘). Levando em consideração tais pressupostos, iremos nos concentrar somente no emprego do dialeto, a fim de entender, a partir da transcrição dos diálogos em que há a presença do romanesco, qual a frequência dos fenômenos fonéticos nas diversas cenas que envolvem personagens romanos. Transcrevemos, como exemplo, as cenas iniciais do assalto ao forno, entre romanos, em que percebemos a presença do romanesco. Os diálogos, com exceção de alguns movimentos assíncronos dos lábios, têm todas as características de uma conversação ao vivo, como, por exemplo, a presença de sobreposições dialógicas, rumores e 86 Tra tutti i film neorealisti, forse il meno fortemente connotato in senso dialettale è proprio quello inaugurale, il quale ha goduto, direi anche per questo motivo, del maggior successo tra il grande pubblico. 87 il tedesco come codice della belluinità, l‘italiano della consapevolezza, il dialetto degli affetti. 99 partes de turno pouco compreensíveis. Quanto aos traços fonéticos, estes serão sempre enfatizados em negrito e itálico para melhor identificação no texto: (Personagens: *B: Brigadeiro, *A: Agostino, *P: Pina, *M1: mulher 1, *M2: mulher 2, *FF: funcionária forno, *H: homem) 1*B: Piano/ piano! calma// Calma!! Uffa! Non ne posso più! 2*A: Ma che succede? 3*B: E non lo vedete? Hanno assaltato il forno// 4*A: E voi che fate? 5*B: Eh/ Io purtroppo sono in divisa// (Gritam: Pane! Pane! Brigadiere Volemo er pane!) Ma che vonno? Io non posso far niente! Questo è furor di popolo! Calma// Io sono impotente// 6*A: Lo so/ lo so/ ma co cento grammi ar giorno.... 7*M1: Brutta carogna/ pure li pasticcini ci aveva! Guardate qua! 8*B: Oh/ questo è grave! 9*M2: E poi diceva che non ci aveva farina// Ahó! 10*B: Boni! Però! 11*M1: Ahó Agostino/ perché non te li vai a pijà da te/ eh? 12*A: Io mica posso// io sò sagrestano// Poi vado a finì all‘inferno// 13*M1: Beh/ allora i pasticcini te li magnerai ‘n Paradiso! 14*P: E lasciate stà! Uffa! 15*B: Sora Pina/ ma è una pazzia nel vostro stato! 16*P: E che devo morì de fame? 17*FP: Brigadiere! Aiuto! 18*P: Ma va‘ a mmorì ammazzata va‘! 19*B: V‘accompagno io! ‗Spettate! 20*P: Ah! 21*B: Eccoci arrivati// 22*P: Grazie tanto// 23*B: Dovere.... volete che ve la porti fino a su? 24*P: No// 25*B: È pesante// 26*P: ... faccio io// Ecco/ così pesa meno// (dá um pouco de pão ao Brigadiere) 27*B: Veramente non dovrei... ma c‘ho una fame arretrata! Sora Pì/ ma che dite voi/ esisteranno veramente questi americani? 28*P: Pare de sì// 100 29*B: Già! 30*H: A sora Pì/ le volete l’ova a sedici? 31*P: Ma piantala/ va‘! 32*B: Ma come vi permettete/ in mia presenza! Questa è borsa nera! 33*P: Ahahah/ a brigadié/ lasciate pèrde ch‘ mejo// Arrivederci... Dentre as razões que levaram ao uso da forma dialetal por Rossellini, Amidei, Fellini e os outros autores, havia o desejo de «―surpreender‖ e representar acontecimentos autênticos e atuais», sendo assim obrigatório «assumir uma fisionomia linguística composta e mutável, às vezes pluridialetal e plurilíngue» 88 (RAFFAELLI, 1992, p. 106), como foi o caso de Roma città aperta. De fato, percebemos que o romanesco, colocado em uma posição de ―igualdade‖ com relação a outras línguas, vai estar presente tanto nas falas dos personagens secundários como nas dos protagonistas, como pudemos perceber na cena anterior. Desse modo, de um ponto de vista fonético, podemos afirmar que todos os personagens envolvidos na cena, com exceção do Brigadeiro (que utiliza somente a expressão boni ‗calmos‘ e parece não ser romano, mas, sim, napolitano), falam um romanesco verossímil, apesar de todas as oscilações próprias de Roma, devido à pouca distância entre dialeto, italiano regional e italiano standard. Vejamos os fenômenos fonéticos identificados (lembramos que, na escala de variedades, mostraremos sempre os exemplos partindo do romanesco, seguido da barra /, depois o italiano, seguido da tradução em português entre uma aspa „‟): a) 1 caso de rotacismo de l pré-consonântica no artigo indefinido er/ il ‗o‘ (er pane ‗o pão‘), e 1 na preposição articulada ar/al ‗ao‘ (ar giorno ‗por dia‘); b) o artigo definido masculino plural li/i ‗os‘ (li pasticini) se reveza com i ‗os‘ (i pasticini ‗os doces‘); c) a e protônica permanece no lugar do i toscano na preposição de/di ‗de‘ (e che devo morì de fame? ‗tenho que morrer de fome‘ e pare de sì ‗parece que sim‘); d) os verbos no infinitivo são todos com apócope (finì/finire ‗acabar‘, morì/morire ‗morrer‘, stà/stare ‗estar‘, pèrde/perdere ‗perder‘), enquanto que a apócope silábica se faz presente na primeira pessoa do verbo essere ‗ser‘ (sò sagrestano „sou sacristão‘); e) os nomes próprios usados na função alocutiva são quase sempre apocopados (1 sora Pì contra 1 sora Pina ‗senhora Pina‘ ; brigadié/brigadiere ‗brigadeiro‘); 88 ―sorprendere‖ e rappresentare vicende autentiche [...] e attuali [...] non poteva non assumere una fisionomia linguistica composta e mutevole, a volte pluridialetal e plurilingue. 101 f) a lateral palatal é realizada sempre como semiconsoante palatal intensa (pijà/pigliare ‗pegar‘, mejo/meglio ‗melhor‘), e há a passagem de ng a gn em magnerai/mangerai ‗comerá‘ (te li magnerai); g) 1 caso de monotongação em ova/uova ‗ovos‘ (le volete l‟ova ‗quer ovos‘). Na cena imediatamente sucessiva, em que Pina conhece Giorgio, amigo de seu futuro marido, Francesco, percebemos que há uma tentativa de elevação da variedade mais baixa para a médio-alta, em uma situação formal com estranhos, sendo utilizadas expressões do tipo: mi dica/ che desidera? ‗diga-me o que deseja?‘; le apro subito/ prendo la chiave eh! ‗abro logo, vou pegar a chave‘ ou ainda mi scusi/... ‗desculpe-me‘; S‟accomodi... Prego! ‗Entre... por favor!‘. Mas, logo após, vemos o retorno à variedade dialetal, quando Pina, a pedido de Giorgio, chama seu filho Marcello e lhe pede para ir buscar don Pietro: 62*P: Marcello! Marcelloo!! Marcello! 63*M: Che voi? 64*P: Viè giù ‘n momento! 65*M: Non posso! 66*P: Devi andà da don Pietro/ sbrighete! 67*M: E mo c‘ho da fà! 68*P: Viè giù subbito t‘ho detto! 69*M: Uffa...! 70*P: T‘ho detto tante vorte che nun ce devi stà su da Romoletto/ pericoloso... Va‘ da don Pietro/ cammina... 71*M: Che je devo dì? 72*P: Je devi dì che deve venì qui subbito// Sbrighete// Nun te pèrde pe strada eh! Nessa breve passagem, podemos observar a forte presença de elementos fonéticos que comprovam o uso do romanesco em contextos familiares: a) todos os verbos no infinitivo serão apocopados (andà/andare ‗ir‘, fà/fare ‗fazer‘, stà/stare ‗estar‘, dì/dire „dizer‘, venì/venire ‗vir‘, pèrde/perdere ‗perder‘); b) há 2 casos de apócope do verbo venire na 2ª pessoa do imperativo: viè/ vieni ‗vem‘; c) há 1 caso de apócope em per ‗para‘: pe; d) há 1 caso de monotongação: voi/ vuoi ‗quer‘; e) há 2 casos de passagem de a pós-tônica a e nas proparoxítonas: sbrighete/sbrigati ‗apresse-se‘; 102 f) ocorre passagem de b a bb: 2 casos de subbito/subito ‗imediatamente‘; g) há 1 caso de aférese do artigo indefinido un/„n ‗um‘ e, na negação, 2 casos de nun/non ‗não‘; h) ocorre o rotacismo de l: vorte/ volte ‗vezes‘; i) há 2 casos de e protônica em ce/ci ‗lá‘ e te/ti ‗se‘; além de 2 casos de passagem de gl a j: je/gli ‗lhe‘. Podemos verificar que, nas cenas antes apresentadas, Pina utilizou variedades diferentes, modulando-as de acordo com a situação formal ou informal, como na cena em que conhece Giorgio e quando conversa com o filho, como atestamos anteriormente. Porém, é interessante observar que, durante sua conversa com Giorgio, Pina muitas vezes vai da variedade standard a um italiano com alguns traços dialetais; passado o momento inicial de formalidade entre Giorgio e Pina, esta oscila de uma variedade mais alta para a médio-baixa: poi stamattina se sò fregati ‘n par de scarpe e ‘na bilancia... ‗hoje de manhã roubaram um par de sapatos e uma balança‘, em que há a presença de e protônica no clítico se/si ‗si‘ e na preposição de/di ‗de‘; a apócope do verbo auxiliar essere ‗ser‘ na 1ª do sing. e 3ª do pl. sò/sono; a aférese dos artigos indefinidos „n/un ‗um‘ e „na/una ‗uma‘, par em vez de paio ‗par‘: (Personagens: *P: Pina, *G: Giorgio) 73*P: È andato... don Pietro sarà qui fra poco... 74*G: Oh grazie// 75*P: Stamattina abbiamo assaltato un forno... 76*G: Ah sì? 77*P: Eh/ è il secondo nella settimana... 78*G: Come vanno le donne? 79*P: Oh dio... qualcuna lo sa perché lo fa... ma la maggior parte arraffano più sfilatini che ponno... uhm... qualcuna... poi stamattina se sò fregati ‘n par de scarpe e ‘na bilancia// De fato, recordamos que Trifone (2008, p. 106-07) nos fala da presença das três variedades do continuum linguístico romano identificando diastraticamente os falantes. Levando-se em conta que a variação diastrática acontece no âmbito das diferentes classes sociais (BAGNO 2007, p. 46) –, podemos observar e entender as oscilações presentes nas falas de Pina como características de uma pessoa pouco instruída que se esforça em ―falar bem‖. A esse propósito, identificamos esse comportamento no estudo de Stefinlongo (2012, p. 103 23) – já mencionadas neste trabalho – quando esta afirma que o italiano de Roma (variedade média) é falado pelas pessoas instruídas quando não se preocupam em ―falar bem‖, mas também pelas pessoas não instruídas quando, inversamente, se esforçam em ―falar bem‖. Em outro diálogo entre Pina e Giorgio, que transcreveremos a seguir, é possível verificar a alternância de variedades: (Personagens: *G: Giorgio, *P: Pina) 100*P: È mia sorella! 101*G: Ah/ Sua sorella!! 102*P: Si meraviglia Lei/ eh? Chissà quante bugie gli avrà raccontato... che abita chissà dove... eh/ se vergogna de noi perché dice che lei fa l‘artista... e noi siamo poveri operai... ma io non mi ci cambierei con lei... 103*G: Ah/ La capisco... 104*P: No/ mica perché è cattiva... è stupida! Ma... Lei/ come la conosce Lauretta? Oh/ scusi tanto/ sono indiscreta! 105*G: No... Lauretta è molto amica di una ragazza che io conosco... 106*P: Chi/ Marina? 107*G: Ah/ La conosci? 108*P: Oh/ da quando è nata... La madre faceva la portiera a via Tiburtina/ dove mio padre ci aveva un negozio da stagnaro... Lei e Lauretta se pò dì che sò cresciute insieme... oh/ ma me raccomando/ non dica niente a Marina di... di quello che gli ho detto... mi raccomando proprio/ eh// Nesta passagem, em que Pina conta a Giorgio que é irmã de Lauretta e que esta e Marina (ex-caso amoroso de Giorgio) são amigas, percebe-se o predomínio do italiano standard (presença do pronome de tratamento Lei; de scusi ‗desculpe‘; e de non dica ‗não diga‘), mas com oscilações para alguns traços fonéticos pertencentes às variedades médiobaixas do continuum linguístico romano: alternância do uso da e protônica na preposição de (se vergogna de noi ‗tem vergonha de nós‘ em contraposição a non dica niente a Marina di... di quello che gli ho detto... ‗não diga nada a Marina de... daquilo que lhe falei‘) e no clítico me (ma me raccomando em contraposição a mi raccomando proprio/ eh ‗eu lhe peço mesmo‘). A seguir, apresentaremos a cena em que o filho de Pina (Marcello) chama don Pietro à sua casa. Com isso, temos o objetivo de mostrar como a língua das crianças muda nos filmes neorrealitas, considerando as palavras de Rossi (2006, p. 196), quando afirma que «a 104 língua das crianças sempre foi adoçada e italianizada ainda mais artificialmente que a dos adultos» 89: (Personagens: *d.P.: don Pietro, *M: Marcello, *A: Agostino) 123*d. P.: Ah/ sei tu? Che miracolo vederti all‘oratorio... 124*M: Ce sò venuto perché mi ci ha mandato mi’ mamma... 125*d. P.: Ha fatto bene! Farà bene anche a te! 126*M: Don Piè.... Fatemi finì de parlà... Dice che dovete venì subito a casa nostra... è ‘na cosa importante... 127*d. P.: Cosa? 128*M: Io non lo so... con me ha fatto la misteriosa... ma ci dev‘èsse quarcuno a casa de Francesco... 132*d. P: Perché non vieni pi all‘oratorio? 133*M: E come se fa d’sti momenti a pèrde tempo all‘oratorio? 134*d. P: Ma cosa stai dicendo? 135*M: Lei è un prete/ non può capì/ ma bisogna strìnge un blocco compatto contro il comune nemico// 136*d. P: Ma d un po‘/ chi te le dice queste cose? 137*M: Me l‘ha detto Romoletto// 138*d. P: Ah Romoletto dice queste cose? 139*M: Don Pié/ me raccomando/ non lo dite a nessuno! 140*M: Ecco Purgatorio! 141*A: Oh/ don Piè... 142*d. P.: Che c‘hai qua? 143*A: Ho fatto spesa... 144*M: Ammappete quanti sfilatini.... che è tutta la [...] 145*A: Neanche un bolino... 146*d.P.: Come mai tanto pane? 147*A: Non so... stamattina hanno voluto festeggià... 148*d. P.: Cosa? 149*A: Non so che festa era... nemmanco er fornaro ce lo sapeva... scusatemi don Piè/ io vado// 150*M: Ma che sarà ‘sta festa? 89 la lingua dei bambini è sempre stata edulcorata e italianizzata ancora più artificialmente di quella degli adulti. 105 151*d.P.: Uhm... non capisco... 152*M: Speriamo che mi’ madre l‘abbia saputo.... Vejamos, a seguir, os traços fonéticos mais relevantes da cena anterior: a) todos os casos de apócope silábica nos infinitivos (finì/finire ‗acabar‘, parlà/parlare ‗falar‘, pèrde/perdere ‗perder‘, èsse/essere ‗ser‘, capì/capire ‗entender‘, strìnge/stringere ‗apertar‘; b) 2 casos de apócope nos alocutivos (don Piè/ don Pietro); c) 1 caso de apócope no possessivo (mi‟/mia ‗minha‘); d) 1 caso de rotacismo do l (quarcuno/qualcuno ‗alguém‘); e) 2 casos de aférese do pronome demonstrativo (sti/questi ‗nestes‘, „sta/questa ‗esta‘) e 1 caso de aférese do artigo indefinido („na/una ‗uma‘); f) e protônica na preposição de/di ‗de‘, e 1 caso no clítico me/mi ‗me‘. Porém, apesar da tentativa por parte do diretor e dos roteiristas de propor uma língua menos artificial para as crianças, através do uso do dialeto, verificamos ainda falas de Marcello – como Speriamo che mi‟ madre l’abbia saputo.... ‗tomara que minha mãe tenha sabido disso‘ – em que vemos a correta utilização do subjuntivo (l‟abbia saputo), pouco provável na boca de uma criança. A próxima passagem transcrita por nós relata a volta das crianças para casa em pleno toque de recolher e a reação furiosa dos pais preocupados. Nesta cena, observa-se o desejo do autor de aproximar o máximo possível a fala dos personagens à língua coloquial: (Personagens: *M: Marcello, *G3: Garoto 3, *PG3: pai do G3, *P: Pina, *F: Francesco) 287*G3: Sarebbe mejo che entramo uno alla vorta! 288*M: C‘hai ragione/ entra prima te// 289*P: Ah/ siete qui/ brutte canaje// Sò tornati! 290*PG3: Mascarzoni! 291*P: Adesso v‘acchiappo/ adesso ve concio io pe le feste/ brutte carogne/ a famme morì de crepa core// Va‘ dentro! 292*F: Vado un momento de là/ sennò succede ‘n macello// 293*P: Guarda come se sò ridotti! 294*D: Dove siete stati? 295*G3: Da Romoletto// 296*P: N‘ vero/ non ce stava nessuno su// 106 297*M: Stavamo giù// 298*D: Giù dove? 299*P: Ma che jelo chiedete a fà? Non vedete che stanno mentendo// 300*PG3: Io l‘ammazzo [...] 301*P: Gli ammazzo io/ gli ammazzo/ de sganassoni... sti du’ delinquenti// Me fate morì... 302*F: Filate a letto voi due/ su! (a Pina) Ma stai bona! 303*P: Eh/ nun se ne pò più/ co sti regazzini! 304*F: Eh/ Vabbè .. Sò regazzini/ no? Nesta cena, observamos a alta frequência de traços fonéticos do romanesco pertencentes à variedade mais baixa do continuum linguístico romano. Essa talvez seja a mais verossímil de todas as cenas do filme, em que verificamos que há o respeito das características típicas das variantes mais informais do romanesco. A maior frequência dos fenômenos que serão elencados a seguir mostram, portanto, uma maior aproximação da fala informal e popular romana, comprovando a presença das variações diafásica e diastrática nas falas fílmicas. A cena retrata uma situação de tensão dos pais que esperavam apreensivos os filhos que não voltavam para casa, neste caso, justificaria o maior uso da variedade dialetal: a) todos os verbos no infinitivo são apocopados (morì/morire ‗morrer‘; fà/fare ‗fazer‘); b) o mesmo fenômeno vai se repetir no verbo essere na 3ª pessoa do plural (3 casos de sò/sono ‗são‘), nas preposições con e per (co/con ‗com‘; pe/per ‗para‘) e no numeral due (du‟/due ‗dois‘); c) está presente a e protônica nos clíticos (me/mi ‗me‘; se/si ‗se‘; ce/ci ‗lá‘) e na preposição de (3 casos de de/di ‗de‘); d) há 2 casos de e pré-tônica em regazzini/ragazzini ‗crianças‘; e) há 3 casos de monotongação (core/cuore ‗coração‘; bona/buona ‗tranquila‘; pò/può ‗pode‘); f) há 2 casos de rotacismo do l (vorta/volta ‗vez; mascarzoni/mascalzoni ‗canalha‘); g) há 2 casos de passagem de gl a j (canaje/canaglie ‗canalhas‘; jelo/glielo ‗a ele‘). Antes de concluir as considerações sobre Roma, ressaltamos que, a partir da verificação da presença de muitos traços fonéticos do romanesco nos diálogos dos atores (deixamos de fora os aspectos morfológicos, sintáticos, entre outros, por motivos já explicitados), acreditamos que houve um claro desejo por parte dos roteiristas de colocar o dialeto nas falas não só dos personagens secundários, mas também nas falas dos 107 protagonistas, com o objetivo de se aproximar da língua falada das pessoas pertencentes à classe menos favorecida. Percebemos o desejo dos autores de caracterizar diastraticamente os personagens; vemos a pessoa instruída que fala um italiano standard e as pessoas do povo que falam a variedade dialetal, como ocorre com don Pietro e Agostino. Respectivamente, estes representam, de um lado, a figura do sacerdote – portanto caracterizada pelo uso do italiano standard – e, de outro, a figura do sacristão – o qual utiliza sempre a variedade mais baixa do romanesco (evidenciada sempre em negrito e itálico). Vemos essa oposição diastrática entre os dois personagens no diálogo em que Pina e Agostino esperam don Pietro em sua casa: (Personagens: *d.P.: don Pietro, *A: Agostino) 195*d.P.: Buonasera Pina/ buonasera... Ti ho detto tante volte che non devi cucinare sulla stufa... e poi i cavoli... 196*A: Per me se vo’ ce posso cucinà pure i polli// 197*d. P.: Agostino/ non rispodere// 198*A: Ma insomma/ bisogna decìde/ o accennemo la stufa o accennemo la cucina// 199*d. P.: Continua/ continua... 200*A: Sempre libri... non ci avemo i soldi pe comprà da magnà e Lei sempre a comprà i libri// 201*A: Ma che/ vole uscì ‘n’altra volta? Fra venti minuti c‘ il coprifoco! 202*d.P.: Non importa! I medici e i sacerdoti possono circolare... 203*A: Sì/ pure le levatrici// 204*d.P.: Beh? 205*A: L‘ho letto sul manifesto.... Però lo scuro facile pijasse ‘na schiopettata... co sti delinquenti! Apesar de o ator Aldo Fabrizi ser romano, seu personagem, don Pietro, exprime-se em italiano standard, com exceção da presença de dois traços do romanesco, sempre no nível fonético. Como exemplo, temos uma cena em que o personagem fala com uma criança (Uhm/ va bene/ andiamo// Gilberto? Senti tu.... Lèvete... Adesso verrà Agostino/ tu dirigi il gioco... mi raccomando non fate i cattivi/ eh? ‗Uhm está bem/ vamos// Gilberto? Você... Saia... Agora virá Agostino/ você comanda o jogo... eu não quero briga/ tá? ) e com Agostino (Ah/ ho capito// Ecco/ te basteranno// Ah/ entendi// Isso vai te bastar). Já em todas as falas de Agostino, observamos a presença de traços fonéticos do romanesco: 108 a) estão sempre presentes as apócopes dos verbos no infinitivo (comprà/comprare ‗comprar‘; decìde/decidere ‗decidir‘; uscì/uscire ‗sair‘; cucinà/cucinare ‗cozinhar‘); b) estão sempre presentes as apócopes das preposições pe/per ‗para‘; e co/con ‗com‘; c) ocorre a monotongação de uo (forma apocopada vo‟/vuole ‗quiser‘ com oscilações: vole/vuole ‗quiser‘; coprifoco/coprifuoco ‗toque de recolher‘); d) ocorre a aférese do artigo indefinido una ( n‟/una e „na/una ‗uma‘); e) ocorre a aférese do pronome demonstrativo questo (sti/questi ‗estes‘); f) há a assimilação progressiva de nd a nn (accennemo/accendiamo ‗acendemos‘); g) há a passagem de gl a j na combinação infinitivo + clítico (pijasse/pigliarsi ‗levar‘). Concluindo os comentários sobre o filme Roma città aperta, apresentamos a seguir um quadro dos traços fonéticos encontrados somente nas falas de Pina, seguidos dos gráficos que vão explicitar melhor as percentuais de uso das três variedades de Roma pela personagem. Tabela 2: Traços fonéticos do personagem Pina do filme Roma Città Aperta Apócope nos verbos no infinitivo: 36 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 6 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: 26; Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, e na preposição: de: 15 vi, si, ci: 15; e na preposição: di : 8 Apócope no verbo essere: (1ª pes. do sing. e Ausência de apócope no verbo essere (1ª pes. 3ª do pl.: sò): 13; e no verbo venire: (3ª pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 1; e no verbo do sing.: viè): 4 venire (3ª pes. do sing.: viene): 0 Apócope nos alocutivos: 3 Ausência de apócope nos alocutivos: 29 Apócope nas preposições: co: 4 e pe: 12 Ausência de apócope nas preposições: con: 4 e per: 7 Apócope nos possessivos: mi‟: 1, tu‟: 0; e Ausência de apócope nos possessivos mio: 5, numeral du‟: 1 tuo: 0; e numeral due: 2 Assimilação nd a nn: 2 Ausência de assimilação nd a nn: 15 Rotacismo de l: 3 Ausência de rotacismo de l: 12 Monotongação de uo: 6 Ausência de monotongação de uo: 3 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 10 indefinidos un, una: 7 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes 109 „sta, sti: 2 demonstrativos: questo, questa, questi: 2 Lex Porena: 0 Ausência de Lex Porena: em tudo Palatalização de gli a j: 8 Ausência de palatalização de gl a j: 11 Agrupando os traços para as respectivas variedades média e baixa, percebemos que, para a variedade média, tanto a apócope silábica nos verbos no infinitivo, quanto a e protônica nos clíticos e na preposição, e a apócope nos verbos essere e venire são mais presentes do que os correspondentes sem o traço: são 36 casos de apócope nos verbos no infinitivo e 6 casos de ausência. Para o segundo traço: 26 casos nos clíticos e e na preposição di: 15, enquanto que registram-se 15 casos de ausência nos clíticos e 8 na preposição. Já quanto à apócope no verbo essere: (sò/sono): 13 casos; e no verbo venire: (viè/ viene): 4, contra 1 sem o traço para o verbo essere (sono) e nenhum caso para o verbo venire (vieni ou viene). Outros traços pertencentes à variedade média são: aférese vocálica nos artigos indefinidos com 10 casos e 7 casos de ausência do mesmo traço; aférese nos pronomes demonstrativos: 2 casos contra 2 também da ausência do traço. Para o último da variedade média temos a palatalização de gli a j: 8 casos contra 11 casos de ausência deste traço. Já quanto à variedade baixa, tanto a apócope nos alocutivos, quanto a apócope nas preposições e nos possessivos são menos frequentes com relação aos casos em que há a ausência destes traços, como por exemplo, são 29 casos de ausência da apócope nos alocutivos contra 3 casos de ocorrência; são 4 casos de con e 7 de per contra 4 de co e 12 de pe e, por último, são 5 casos de mio e 2 do numeral due, contra 1 de mi‟ e 1 caso do numeral du‟. O mesmo acontece com os outros traços pertencentes a esta variedade: a assimilação de nd a nn acontece 2 vezes contra 15 casos de ausência do mesmo; são 3 ocorrências de rotacismo de l e 12 sem este traço. O único traço que ocorre mais vezes é a monotongação de uo: 6 casos contra 3 casos de ausência do mesmo. Esses números nos mostram que Pina utilizou muito mais a variedade média do que a baixa em suas falas. Sendo que quase todos os traços pertencentes à variedade baixa foram utilizados nos momentos de maior intimidade entre romanos e com seu filho, quando lhe diz para ir buscar don Pietro e, principalmente, quando se enfurece com ele, porque ainda estava na rua com os outros rapazes em pleno toque de recolher. Esses dados também indicam a alternância das duas variedades (média e baixa), como por exemplo, a e protônica nos clíticos se/si ‗se‘, me/mi ‗me‘ e na preposição de/di ‗de‘, como pudemos observar nos diálogos com Giorgio quando já havia uma maior intimidade 110 entre os dois, que poderia efetivamente acontecer na realidade sociolinguística romana, uma vez que a distância entre as variedades é menos forte que em outras áreas italianas (ROSSI, 1999, p. 196). Em seguida, apresentamos os gráficos referentes ao uso e ao não uso de traços fonéticos por parte de Pina. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). Gráfico 1: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 1 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope nos verbos Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) 111 Gráfico 2: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Assimilação nd a nn Rotacismo de l Gráfico 3: Uso de traços fonéticos por parte de Pina (filme Roma città aperta) – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Lex Porena Palatalização de gl aj A seguir, apresentaremos os traços fonéticos e o número de frequência identificados no filme Roma città aperta. 112 4.1.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Roma città aperta Tabela 3: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Roma città aperta Apócope Apócope da sílaba final de verbos no infinitivo finì (finire): 3; morì (morire): 4; andà (andare): 4; fà (fare): 9; stà (stare): 2; venì (venire): 3; dì (dire): 6; pèrde (perdere): 3; capì: 2; strìnge (stringere): 1; festeggià (festeggiare): 1; parlà (parlare): 6; lascià (lasciare): 1; comprà (comprare): 2; decìde (decidere): 1; vénde (vendere): 1; campà (campare): 2; tirà (tirare): 1; dimenticà (dimenticare): 1; vedé (vedere): 2; rómpe (rompere): 1; litigà (litigare): 1; chiamà (chiamare): 1; preparà (preparare): 1; bussà (bussare): 1; piantà (piantare): 1; mangià (mangiare): 1; trovà (trovare): 1, cucinà (cucinare): 1; rìde (ridere): 1. Total: 65 Apócope dos verbos sò (sono): 24; viè (vieni): 7. Total: 31 Apócope pós-vocálica nos adjetivos possessivos mi’ e numerais du’ mi‘ (mia): 3; du‘ (due): 1. Total: 4 Apócope da consoante final nas preposições con e per co (con): 7; pe (per): 12. Total: 19 Apócope nos alocutivos sora (signora) Pì: 3; brigadié (brigadiere): 2; ragazzì (ragazzi ou ragazzini): 1; Lauré (Lauretta): 1; don Piè: 6; Ire (Irene): 1. Total: 14 Passagem de a pós-tônica não final a e sbrighete (sbrigati): 3; lèvete (levati): 1. Total: 4 Rotacismo de l pré-consonântica vorte (volte): 1; par (paio): 1; quarche: 1; vorta: 2; er (il): 1; ar (al): 1; mascarzoni (mascalzoni):1; l‘urtima (l‘ultima): 1; l‘artro (l‘altro): 1; quarcuno (qualcuno): 1; carze (calze): 1; armeno (almeno): 1. Total: 13 Assimilação progressiva de nd a nn 113 annamo (andiamo): 1; annà (andare): 1; arrivanno (arrivando): 1; accennemo (accendiamo): 1; rm a mm: confessamme (confessarmi): 1; famme (farmi): 1; rc a cc: pensàcci (pensarci): 1; rv a vv: mètteve (mettervi): 1; rs a ss: raccomandasse (raccomandarsi): 1. Total: 9 Aférese Aférese de sílaba inicial em pronomes demonstrativos d‘sti (di questi): 1; ‗sta (questa): 3; sti (questi): 4; ‗ste (queste): 3; ‗st‘ (questo): 1. Total: 12 Aférese dos artigos indefinidos ‗n (un): 4; ‗na (una): 1. Total: 5 Aférese da vogal átona inicial „spettate (aspettate): 1. Total: 1 Aférese vocálica: queda das vogais no início de palavra quando seguidas de consoante nasal (m, n, gn) ‗nsomma (insomma): 1. Total: 1 Monotongação em ò para o ditongo uò bono (buono): 2; bona (buona): 1; boni (buoni): 1; coprifoco (coprifuoco): 2; core (cuore): 1; bonanotte: 2; pò (può): 3; Voi (vuoi)‘: 2; l‘ova (le uova): 1; vo‘ (vuoi): 1. Total: 16 Palatalização de gli a j mejo (meglio): 4; fijo (fglio): 1; canaje (canaglie): 1; jelo: 1; je (gli): 4; vojo (voglio): 2; pijà (pigliare): 1; j‘ (a lei): 2; je (a loro): 4. Total: 20 Passagem de a pré-tônica inicial a e regazzini (ragazzini): 2. Total: 2 Desenvolvimento da nasal palatal (mudança do grupo ng em gn) magnata (mangiata): 1; magnerai (mangierai): 1; magnà (mangiare):1. Total: 3 E protônica nos clíticos ti, mi, si, ci e na preposição di ce (ci): 9; de (di): 29; te (ti): 10; me (mi): 11; se (si): 13; fateme (fatemi): 1; ve (vi): 1. Total: 74 Passagem de rr a r guera (guerra): 1. Total: 1 114 U protônica no lugar de o em non nun (non): 7. Total: 7 Tabela 4: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos do filme Roma città aperta Apócope nos verbos no infinitivo: 65 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 75 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: 45; Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, e na preposição: de: 29 vi, si, ci: 103; e na preposição: di : 51 Apócope no verbo essere: (1ª pes. do sing. e Ausência de apócope no verbo essere (1ª pes. 3ª do pl.: sò): 24; e no verbo venire: (3ª pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 18; e no verbo do sing.: viè): 7 venire (3ª pes. do sing.: viene): 4 Apócope nos alocutivos: 14 Ausência de apócope nos alocutivos: 76 Apócope nas preposições: co: 7 e pe: 12 Ausência de apócope nas preposições: con: 16 e per: 36 Apócope nos possessivos: mi‟: 3, tu‟: 0; e Ausência de apócope nos possessivos mio: 8, numeral du‟: 1 tuo: 0; e numeral due: 3 Assimilação nd a nn: 4 Ausência de assimilação nd a nn: 27 Rotacismo de l: 13 Ausência de rotacismo de l: 109 Monotongação de uo: 16 Ausência de monotongação de uo: 32 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 5 indefinidos un, una: 25 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 12 demonstrativos: questo, questa, questi: 28 Lex Porena: 0 Ausência de Lex Porena: em tudo Palatalização de gli a j: 20 Ausência de palatalização de gl a j: 6 Em seguida apresentamos os gráficos referentes ao uso e não uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). 115 Gráfico 4: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 1 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope nos verbos Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) Gráfico 5: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Assimilação nd a nn Rotacismo de l 116 Gráfico 6: Uso de traços fonéticos no filme Roma città aperta – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Lex Porena Palatalização de gl aj 4.2 Il sorpasso 4.2.1 Ficha técnica Il sorpasso, 1962. D.: Dino Risi. R.: Dino Risi, Ettore Scola, Ruggero Maccari. I.: Vittorio Gassman: Bruno Cortona; Catherine Spaak: Lilly Cortona; Jean-Louis Trintignant: Roberto Mariani; Luciana Angiolillo: Gianna; Claudio Gora: Bibì. 4.2.2 Sinópse de Il sorpasso O início da estória se passa em Roma, em pleno feriado de agosto (ferragosto), com o personagem Bruno Cortona à procura de um telefone público e de cigarros pela cidade. Na primeira cena, Bruno, depois de rodar com o seu carro pelas ruas desertas, depara-se com o estudante de Direito Roberto Mariani na janela de sua casa e lhe pergunta se pode fazer uma ligação para ele. Roberto, contra a vontade, deixa-o entrar. Depois do telefonema, Bruno convida o dono da casa para um passeio, e Roberto logo é persuadido a acompanhá-lo na sua Lancia conversível. A partir deste momento, a vida do estudante mudará radicalmente e para sempre. Os dois personagens começam, assim, uma longa viagem, percorrendo a via Aurelia, estrada que os levará a vários lugares, entre os quais a casa dos parentes de Roberto, o mar e até a casa da ex-mulher e da filha de Bruno. Para o estudante, esta experiência o fará perder a visão ingênua sobre a vida, rever alguns conceitos morais e analisar suas relações familiares e 117 amorosas, quase como uma autoanálise, até chegar o trágico final: depois de uma das dezenas de ultrapassagens arriscadas, para evitar a colisão com um caminhão, o carro acaba caindo de um precipício. Bruno se joga do carro e consegue, assim, se salvar, enquanto que Roberto não escapa e morre. 4.2.3 Comentário linguístico Il sorpasso (no Brasil, ―Aquele que sabe viver‖) é um filme italiano de 1962 dirigido por Dino Risi e considerado um clássico da comédia à italiana, gênero caracterizado por um humorismo doce-amargo, geralmente mordaz e crítico no que diz respeito a alguns valores da pequena e média burguesias italiana. Os temas preferidos deste gênero são a ambição, a corrupção, a traição, o contraste entre a cultura conformista e os desejos modernistas (ROSSI, 2007, p. 48). Lembramos ainda o que já foi dito por Rossi (2007, p. 48) no capítulo 2 desse trabalho: na comédia à italiana, o estilo linguístico era ligado quase sempre ao uso dos italianos regionais, principalmente do romanesco; de fato, podemos perceber que em Il sorpasso há o uso de um italiano marcado por traços dialetais, como veremos a partir dos exemplos da transcrição do filme. Mas, antes de iniciarmos a análise das falas fílmicas, ressaltamos que, de todos os personagens principais, Bruno Cortona será o único a utilizar o romanesco; os outros (Roberto, Lilli, Bibì, Gianna, zio Michele, zia Enrica), não sendo romanos, falarão um italiano standard, conforme as normas gramaticais. A análise, portanto, será centrada principalmente nas falas de Bruno, com o objetivo de observar qual a frequência da utilização dessa variedade romana e de verificar o grau de formalidade/informalidade. A partir da transcrição do filme, percebemos o desejo dos autores de construir um personagem cuja fala representasse as características sociais de uma classe emergente em pleno boom econômico. Bruno Cortona é, segundo Brunetta (2010 [1991], p. 322-23), «o protótipo do italiano novo produzido pelo milagre econômico; é hiperativo, hipermóvel, hiperloquaz e agressivo» 90 e encarna a ignorância, o desejo de sucesso a qualquer custo e a vitória do mito do bem-estar, representados pelo automóvel como força motriz econômica e social de uma nação. Percebemos também uma caracterização mais psicológica do que social do uso da língua pelos personagens Bruno e Roberto. Do lado de Bruno, temos uma mistura de italiano 90 il prototipo dell‘italiano nuovo prodotto dal miracolo economico. Un personaggio in stato di eretismo perenne, iperattivo, ipermobile, iperloquace [...] e agressivo [...]. 118 neostandard e romanesco, que vai refletir bem o seu caráter extrovertido, brincalhão: ele utiliza todo o repertório linguístico do continuum linguístico romano, de acordo com a situação, seja formal e/ou informal. Podemos constatar isso já a partir das primeiras falas fílmicas: apesar de a situação inicial pedir um diálogo formal (situação típica italiana), uma vez que os personagens em cena não se conhecem, os diálogos de Bruno oscilam na direção da variedade média – embora ele utilize a forma de cortesia Lei ‗o Senhor‘, combinando-a com os verbos na 3ª pessoa do singular senta ‗escute‘, me lo fa un piacere ‗me faz um favor‘, se lo recorda ‗se lembra‘, chiede di ‗pergunta de‘, mi fa ‗me faz‘, e use também o imperativo Le dica ‗Diga-lhe‘, notamos a presença de traços fonéticos do romanesco, como nos diálogos iniciais entre os dois: Cena 1 (Personagens: *B: Bruno, *R: Roberto) 1*B: Ei Lei/ dica un po‘... Ahó/ ma che fa/ scappa? Senta/ qui tutto chiuso/ che c‘ha il telefono? 2*R: Sì// 3*B: Me lo fa un piacere? 4*R: Sì/ certo... 5*B: Mi fa il 1326624// Chiede di Marcella// Grazie/ eh// Le dica che arivo subito ..... aspetti// Cosí passiamo a prendere gli altri// Se lo ricorda il numero? È facile: 13/ raddoppia 26/ inverte 62 e ci ammolla il 4// 6*R: 1326624// Chiedo di Marcella/ le dico che arriva// Chi arriva/ ma non mi ha neanche detto il suo nome// Sent /Senta! 7*B: Ha già chiamato? 8*R: No/ pensavo che/ se vuole salire su/ così chiama Lei stesso// 9*B: Buona idea/ che interno è? 10*R: Quattro// 11*B: Arivo// Senta/ mi dia ‘n’occhiata alla macchina/ che qui a feragosto co tutta ‘sta gente in giro... che ha detto/ interno 4? Vengo/ vengo ..... ―con le pinne il fucile e gli occhiali‖ .... Arivo! Notamos alguns traços fonéticos pertencentes à variedade média, ou italiano ―de‖ Roma (TRIFONE, 2008, p. 108), do continuum linguístico romano: a) a passagem de rr a r: 3 casos de arivo/arrivo ‗estou indo‘, e 1 caso de feragosto/ferragosto ‗feriado nacional‘; 119 b) a aférese do artigo indefinido „n‟/una ‗uma; c) a apócope da preposição con: co ‗com‘ (pertencente à variedade baixa). Tudo isso faz com que essas falas se aproximem de um registro mais informal. De fato, quando Roberto convida Bruno a subir e telefonar ele mesmo à sua amiga, Bruno começa a cantar uma famosa música daquela época (―con le pinne il fucile e gli occhiali‖), sinal evidente de informalidade. Por outro lado, Roberto encarna o rapaz de família tradicional, ingênuo, tímido e, portanto, muito formal, ou seja, o oposto de Bruno. Nesse sentido, os autores contrapõem o italiano standard de Roberto, formal, ao italiano neostandard de Bruno, recheado de traços regionais locais com tendência à informalidade: 14*B: Scusi tanto// Ma da mezz‘ora che giro/ tutto chiuso/ Roma sembra ‘n cimitero// Permette/ Bruno Cortona// 15*R: Roberto Mariani// 16*B: Guardi che l‘ho sporcata/ sò tutto zozzo... Faccio in un momento eh/ abbia pazienza... studente eh? ―La risoluzione di un atto per eccessiva onerosità‖// Ma che robba è? Procedura civile// Ai/ un bel mattone... che fa/ studia legge? 17*R: Si/ sono al 4° anno// 18*B: Chi è ‘sta cicciona? 19*R: È mia mamma// 20*B: Ah/ perbacco/ bella donna! Guarda ‘sta burina/ è già uscita! Porco giuda/ sti cornuti/ l‘appuntamento era alle 11 e a mezzogiorno già sò andati via! Se lo sapevo restavo ad Amalfi invece di famme ‘sta scarpinata... Due ore e mezza de macchina... 21*R: Da Amalfi a qui 2 ore e mezza? 22*B: Eh sì/ mi sono fermato dieci minuti per cambiare le candele/ guarda come me sò ridotto/ faccio schifo/ mannaggia... Oh scusi/ ho sporcato// Diceva qualcosa? 23*R: Io? Sì/ se vuole... darsi una lavatina... 24*B: Ah/ magari/ grazie// Una sigaretta non ce l‘ha? 25*R: No/ io non fumo// 26*B: Male! 27*R: Guardi il bagno sta.... 28*B: Non si preoccupi/ lo trovo da me... sicchè Lei non fuma/ eh? Attento/ le può far male/ sa? Accidenti che bel bagnetto.... che è/ Vietri? 120 29*R: <―La nullità di un atto processuale .... si distingue dall‘annullabilità perché quella può essere rilevata dal giudice mentre... mentre l‘annullabilità può essere rilevata solo su istanza della parte interessata...‖> 30*B: <“Guarda come dondolo...‖> 31*R: Ah/ lo devo avvertire di non toccare la mensola .... l‘ha toccata// 32*B: Porc ... ho rotto la mensolina// 33*R: Non si preoccupi... 34*B: Sono veramente sorry.... mi dispiace/ ma stava proprio appiccicata con lo sputo// Che c‘ ? 35*R: Ma l c‘ qualcuno..... 36*B: Embè? 37*R: No/ è la portiera// Siccome sapevo che erano partiti.... 38*B: Che sò amici suoi? 39*R: No/ no/ li conosco così di vista// 40*B: Ah// Abita solo qua? 41*R: Sì/ i miei genitori stanno a Rieti// 42*B: Porca miseria... quando vedo la città deserta così/ co le strade vote/ co i negozi chiusi/ io m‘avvilisco... Lei no? 43*R: Beh/ no/ per studiare è meglio! 44*B: Ah sì/ per studiare sì// Beh/ Le ho fatto perdere tempo/ eh? È ora che me ne vada// Me sa che me tocca passà il ferragosto co mamma... Grazie di tutto e buona procedura// Non studi troppo! 45*B: Senta un po‘/ ma Lei/ che fa? Sta tutto il giorno chiuso in casa a studià? 46*R: Sì/ ho gli esami a settembre e sono ancora indietro// 47*B: Vabbé/ ma oggi è feragosto// Mamma dice che il lavoro dei giorni festivi non rende// 48*R: Deve essere vero/ oggi non ho combinato niente oggi/ infatti// 49*B: Pe colpa mia/ lasci almeno che Le offra un aperitivo/ sempre che troviamo un bar aperto/ naturalmente! <Vieni/ andiamo/ forza!> 50*R: <Non posso! Ma non insista!> 51*B: Ma come non può/ per carità! 52*R: Le chiavi! 53*B: Eccole... le ho prese io/ stavano attaccate allo stipite della porta.... dai cammina/ lo sai chi ho visto ad Amalfi? Jaqueline Kennedy! Elencamos, a seguir, os traços fonéticos presentes nas falas de Bruno: 121 a) apócope vocálica das preposições con e per: 2 casos de co/con ‗com‘, e 1 de pe/per ‗por‘; b) aférese dos pronomes demonstrativos: 3 casos de „sta/questa ‗esta‘, e 1 de sti/questi ‗estes‘; c) passagem de rr a r: feragosto, mas com oscilação em ferragosto; d) apócope do infinitivo: 2 casos – passà/passare ‗passar‘, studià/studiare ‗estudar‘; e) monotongação: 1 caso – vote/vuote ‗vazias‘; f) e protônica nos clíticos – 2 casos de me/mi ‗me‘ – e na preposição de/di ‗de‘; g) assimilação progressiva de rm a mm: famme/fammi ‗fazer-me‘. Mais uma vez, observamos a oposição diafásica entre os dois personagens: sempre de um ponto de vista fonético, Bruno modula, reveza fenômenos dialetais típicos romanos com o italiano standard – Ah si/ per studiare si// Beh/ Le ho fatto perdere tempo/ eh? È ora che me ne vada// Grazie di tutto e buona procedura// Non studi troppo! ‗Ah, sim/ para estudar, sim/ Bom/ Eu lhe fiz perder tempo, né? Está na hora de ir embora// Obrigado por tudo e bom procedimento// Não estude demais!‘. Temos os verbos no infinitivo sem apócope; o emprego da forma de cortesia Lei; o uso do subjuntivo (è ora che me ne vada). Como podemos verificar nos últimos exemplos, são poucos os casos de fenômenos fonéticos do romanesco (15 no total), o que nos leva a crer que havia um desejo por parte dos autores de caracterizar diastraticamente o personagem Bruno como um italiano de classe média, que tem à disposição todo o leque do repertório linguístico e que tem a capacidade de escolher a variedade diafásica que mais lhe serve em determinado momento. No caso dessa cena, Bruno não só é linguisticamente capaz de transformar uma situação formal em informal (a partir da presença dos traços fonéticos; da passagem do tratamento formal – Ma come non può/ per carità! ‗Mas como não pode, por favor!‘ – para o informal; do imperativo na 2ª pessoa do singular tu ‗você‘ – dai cammina/ lo sai chi ho visto ad Amalfi? Jaqueline Kennedy! ‗vamos, anda, você sabe quem eu vi em Amalfi? Jaqueline Kennedy!‘), como consegue, com o seu jeito desinibido e intrusivo, convencer Roberto a sair com ele para um aperitivo. Já no que tange aos personagens romanos secundários, é relevante ressaltar como os autores quiseram caracterizá-los diastraticamente, a exemplo da dona do restaurante romano, que se exprime utilizando muitos traços fonéticos do romanesco no momento em que Bruno lhe pergunta se o local estava fechado: Cena 2 (Personagens: *B: Bruno, *D.R: dona do restaurante) 122 64*B: Ma che fate/ avete chiuso? 65*D.R: Nun se magna [...] 66*B: Perché? 67*D.R: Pure noi c‘avemo er diritto de fà vacanza un giorno/ che ve credete// 68*B: Ma quale diritto? 69*D.R: Er diritto de li mortacci tua... e de tu’ nonno!! 70*B: ‘Sto bidone! Beh/ peggio per lei/ ha perso un cliente// Io qua non ci vengo più/ davero// Nas falas da dona do restaurante, percebemos uma maior frequência dos fenômenos fonéticos característicos da variedade mais baixa do continuum linguístico romano: a) rotacismo de l pré-consonântica no artigo masculino singular: er/il ‗o‘; b) mudança do grupo ng para gn: magna/mangia ‗come‘; c) apócope do verbo no infinitivo fà/fare ‗fazer‘ e do pronome possessivo tu‟/tuo ‗seu‘; d) e protônica: 3 casos na preposição de/di ‗de‘ e 2 nos clíticos se/si ‗se‘, ve/vi; e) u protônica no lugar de o em non: nun/non: 1 caso. Nesse sentido, segundo Rossi (1999, p. 84-85), uma das características do uso fílmico do dialeto é a proporção inversa existente entre a importância do personagem e a frequência dos fenômenos dialetais. De fato, em Il sorpasso, as formas mais dialetais, de um ponto de vista fonético, estão mais presentes nos personagens secundários (dona do restaurante) do que no protagonista Bruno que, muitas vezes, utiliza um italiano mais próximo do neostandard: andiamo em vez de annamo ‗vamos‘; cambiare em vez de cambià ‗trocar‘. Tal prática sempre esteve presente no cinema italiano, tanto que, na maioria das vezes, o dialeto teve a função de ―colorir‖, e não de sustentar o discurso narrativo, não sendo também autenticamente mimetizado – com exceção dos filmes neorrealistas, em que o dialeto era falado também pelos protagonistas. Segundo Rossi (2006, p. 169), muitos cineastas eram simpatizantes dessa prática, como, por exemplo, Mario Mattoli, o qual afirmava: «Eu sempre fui um promotor do dialeto no personagem secundário, porque acredito que dê vida à história».91 Para concluir sobre o uso do dialeto fílmico, não podemos deixar de lado a questão da distribuição de alguns fenômenos linguísticos entre homens e mulheres. Com relação aos fenômenos fonéticos, podemos verificar que, com exceção da dona do restaurante e de algumas mulheres da estação rodoviária de Civitavecchia, o traço dialetal é quase sempre 91 Io sono stato sempre un fautore del dialetto nel personaggio secondario, perché credo che dia vita alla vicenda (TINAZZI, 1983a, p. 24). 123 limitado aos homens. Para confirmar o fato – muito conhecido em sociolinguística – de que as formas diafásica e diastraticamente mais baixas geralmente não se encontram nas mulheres, as quais adotam variedades de maior prestígio, trazemos a citação de Berruto (1993b, p. 69): «Diferenças entre homens e mulheres são vistas em comportamentos sociolinguísticos: parece que as mulheres são, de fato, mais propensas do que os homens a adotar as variantes normativas ou dotadas de maior prestígio» 92. Voltando à análise do protagonista Bruno Cortona, observamos também como ele passará, continuamente, da variedade média à variedade mais baixa e vice-versa, utilizando um italiano neostandard quando trata de argumentos mais sérios, como trabalho: (Personagens: *R: Roberto, *B: Bruno) 135*R: Ma è vero che sei nei frigider? 136*B: Sì/ come no? È il ramo mio/ per ora vanno bene// Se domani cambia il mercato/ è saturo/ io mi cambio/ eh figurati.... Ho fatto una decina di mestieri/ non so... domani vanno i mobili antichi e io mi metto a battere la campagna e ti scopro la cassapanca del Settecento// Va forte la pittura e io t‘aggancio Guttuso e cos via... Repentinamente, o personagem passa para uma situação mais engraçada e informal, como na cena com o ciclista, utilizando muitos traços da variedade dialetal: 139*B: Fatte ‘na vespa! Vuoi ‘na spinta? E daje! Te voi attaccà? Ahó/ fa‘ come te pare! Non rientrà tardi! Neste exemplo, temos 2 casos de infinitivo apocopado: attaccà/attaccare ‗pendurar‘ e rientrà/rientrare ‗volte‘; 3 casos de e protônica nos clíticos: 1 em fatte/fatti ‗compre‘ e 2 em te/ti ‗se‘; 2 casos de aférese nos artigos indefinidos „na/una ‗uma‘; e 1 caso de monotongação de uo: voi/vuoi ‗quer‘. Logo a seguir, Roberto pergunta a Bruno o motivo de estar errando tudo na vida, e Bruno volta a utilizar o italiano mais formal, com ausência de traços fonéticos, usando, por exemplo, os verbos no infinitivo sem apócope silábica (salire ‗subir‘, studiare ‗estudar‘, lotizzare ‗lotear‘); pode ser observada também a ausência da e protônica nos clíticos (mi ‗me‘, si ‗se‘, ci ‗nos‘) e na preposição (di ‗de‘). O retorno do romanesco ocorrerá somente no final desta cena, quando Bruno exclama, feliz, que poderá fumar, passando, automaticamente, a 92 Differenze tra uomini e donne sono da vedere in atteggiamenti sociolinguistici: pare che le donne siano infatti più propense degli uomini, ad adottare le varianti normative ou dotate di maggior prestigio. 124 uma situação mais informal (apócope do alocutivo: Robè/Roberto; assimilação de nd a nn: annamo/andiano ‗vamos‘; e protônica no clítico: se/si ‗se‘): Cena 3 (Personagens: *R: Roberto, *B: Bruno) 146*R: Senti/ perché hai detto che sto sbagliando tutto? 147*B: Ah/ beh niente/ così... Ecco/ per esempio/ quando mi hai fatto salire a casa tua/ che stavi studiando? 148*R: Io ti ho fatto salire? Nullità e annubilità degli atti processuali// 149*B: Ecco lo vedi/ a che serve? Scusa/ sarà roba di cent‘anni fa! 150*R: Anche di mille! 151*B: Meglio ancora! Io capirei/ non so/ studiare diritto spaziale! 152*R: Diritto spaziale? 153*B: Certo! Due astronavi si scontrano... chi è che paga/ no? Oppure... i terreni sulla luna si possono lotizzare? Hai capito? Vabbé che quando arriva Krushow... già ci trovano le palazzine delle immobiliarie// Annamo Robè/ se fuma! Também no início da cena 4 (diálogo 202), quando Bruno conta a Roberto um episódio de quando era adolescente vivido com sua professora, observamos a utilização de um italiano muito próximo do neostandard (em vez do típico traço dialetal romano annavo, o personagem utiliza andavo; prendere no lugar de prénde; si, e não se etc.): (Personagens: *B: Bruno, *R: Roberto) 202*B: Anch‘io ero timido quand‘ero ragazzino! C‘era un periodo che andavo a prendere ripetizioni da una maestrina/ Rosa Maltini si chiamava... Maltini eh/ non Maltoni// Una sera le misi una mano dentro la scollatura// Beh/ lei mi diede un‘occhiata/ ma un‘occhiata tale che diventai tutto rosso... come un peperone/ te lo giuro! No diálogo seguinte (204), quando dá carona a um senhor camponês, o personagem passa automaticamente a usar a variedade dialetal, como podemos verificar a partir dos exemplos Raccojamo il rottame? Guarda com‟aranca il poraccio!, que contêm traços pertencentes à variedade médio-baixa: passagem de gl a j em raccojamo/raccogliamo ‗vamos pegar‘; e enfraquecimento de rr em aranca/arranca ‗caminha‘. Por outro lado, o senhor, assim como os outros personagens secundários, utilizará mais a variedade dialetal (imagina-se que ele não seja romano, e sim um camponês da região do Lácio; nota-se que alguns traços 125 correspondem ao romanesco, como, por exemplo: o clítico me/ mi ‗me‘; o possessivo „sta/questa ‗esta‘; nun modificado para non ‗não‘: (Personagens: *B: Bruno, *R: Roberto, *S: Senhor) 204*B: Raccojamo il rottame? Forza! Guarda com‘aranca il poraccio! 205*R: Ma/ ma scusa/ ma perché fai così? Si può sapere che gusto ci provi? 206*B: Beh/ così... pe rìde/ no? Per vederlo arancà! Vuoi che gli diamo un passaggio? Annamo/ forza lavoratore della tera! Fallo salì/ va// ‘nnamo? Forza! Dai/ fallo séde in mezzo// 207*B: Che vai a vénde le ova nonnè? 208*S: No/ le ho comprate// 209*B: Ahahaha... È simpatico er vecchietto... c‘ha ‘n bel profilo... 210*R: Mi scusi/ ma non potrebbe buttarlo via questo sigaro? 211*S: Perché? 212*R: Non c‘ pi niente// 213*S: Sì/ questo me dura fino a stasera// 214*B: Tu/ le sigarette non ce l‘hai? 215*S: Le sigarette puzzano// 216*B: Mannaggia ahó/ pare ‘no scherzo/ ma qua è da stamatina che non se fuma! 217*S: Tiè// 218*B: Beh/ grazie/ famme accénde Robè! Mejo che niente! 219*S: Ma come/ ‘sta macchina nun cure? 220*B: Ah/ voi córe? Manco accende questo! Mo te faccio vedé io! Attento nonno/ che te perdi er borsalino! Te piace córe? Vuoi un po‘ de musica? A Robè/ metti ‘sto disco che divertiamo er villico/ è ‘n appassionato de musica moderna// Na cena citada, percebe-se claramente a passagem de uma situação mais séria a uma situação informal nas falas de Bruno, levando-se em conta a quantidade de traços fonéticos dialetais encontrados. Além dos já citados no parágrafo anterior, temos: a) a apócope em pe/per ‗para‘ e em todos os verbos no infinitvo: rìde/ridere ‗rir‘, arancà/arrancare ‗correr‘, salì/salire ‗subir‘, séde/sedere ‗sentar‘, vénde/vendere ‗vender‘, accénde/accendere ‗acender‘, córe/correre ‗correr‘, vedé/vedere ‗ver‘; b) 2 casos de assimilação de nd a nn: annamo/ andiamo ‗vamos‘; c) 2 casos de monotongação: voi/vuoi ‗quer‘ (mas com oscilações do tipo vuoi) e ova/uova ‗ovos‘; 126 d) apócope em todos os alocutivos (2 casos de Robè/Roberto e nonnè/nonnetto ‗vovozinho‘); e) a passagem de rr a r (tera/terra ‗terra‘), de tt a t (stamatina/stamattina ‗hoje de manhã‘), de cc a c (machina/macchina ‗carro‘); f) o rotacismo do l no artigo definido er/il ‗o‘, embora também se observe o uso de il; g) a e protônica nos clíticos (me/mi ‗me‘; se/si ‗se‘) e na preposição di (2 casos de de/di ‗de‘). Mas, à medida que os personagens se distanciam de Roma, nota-se que haverá uma diminuição desses traços fonéticos do romanesco: por exemplo, já na casa dos parentes de Roberto, Bruno quase sempre fará uso da variedade mais alta do continuum linguístico romano: Cena 7 (Personagens: *R: Roberto, *B: Bruno, *ZM: zio Michele, *ZE: zia Enrica) 337*ZM: Robertino! 338*R: Zio Michele... 339*ZM: Attenzione eh! 340*R: Zia Enrica! 341*ZM: Ma che piacere di rivederti! 342*R: Vi presento un... 343*B: Cortona... chanté signora/ molto lieto// 344*ZM: Onoratissimo! Ma accomodatevi! 345*B: Grazie... a che servono sti cosi? 346*ZM: È per lo scolo d‘acqua// 347*B: Ah/ le fognature... interessante!! 348*ZE: Venga/ venga! 349*B: Brava signora/ abbiamo dei bei capelli corvini/ eh? Tipo spagnolo? <Discendenza spagnola?> 350*ZE: <Barcellona// Sì/ effettivamente la mi mamma era di Barcellona//> 351*B: <Ah/ Barcellona! Ce l‘ho azzeccato... la nonnina ha scherzato con il torero... bella noce questa// Vedo dei bei mobili da queste parti...> 127 Vemos essa formalidade também na despedida de Bruno e Roberto (no diálogo 435, Bruno fala com zio Michele utilizando a forma de tratamento tu em vez de Lei), mas com poucos traços regionais (somente a apócope do verbo essere na 3ª pessoa do plural: sò/sono ‗são‘; e da preposição pe/per ‗per‘): Cena 7 (Personagens: *R: Roberto, *B: Bruno, *ZM: zio Michele, *ZE: zia Enrica, *EA: esposa de Alfredo) 429*B: Eh/ mi dispiace interrompere questa bella riunione di famiglia/ ma qui si è fatto tardi... forza Roberto! Ahó/ che ti sei incantato? Andiamo! 430*R: Ci volevi passare la vita in campagna... 431*B: Eh vabbè/ ma sò tre ore che stiamo qui// <No/ per carità/ lui deve tornare a Roma/ io c‘ho impegni// Tanto piacere/ arrivederci... Eh/ niente incroci cugino Alfredo/ zia Enrichetta! 432*ZE: <Vi accompagno//> 433*B: <No/ perché vi dovrei disturbare... Hai visto Roberto/ e pure il fattore si vuol disturbare...> 434*EA: Senta/ Lei che vive a Roma/ com‘ Sophia Loren? 435*B: La Loren... beh ecco/ in un certo senso la metto fra le tombe etrusche e il Monte Fumaiolo.... <un‘altra volta glielo spiego>... <E l‘orologino lo mando a prendere eh/ al trasporto ci pensi te... Bacetto zia Enrichetta ... addio Alfredo/ attenti ai contadini... quelli ti mandano pe stracci ....> A diminuição do uso dos traços fonéticos nas falas de Bruno será ainda mais evidente quando eles chegam à casa da sua ex-mulher, Gianna, e da filha, Lilli: a partir desse momento, Bruno falará um italiano neostandard próximo do standard com a ex-esposa, a filha e o namorado desta; Roberto será praticamente o único com quem ele ainda falará em um italiano com alguns traços fonéticos do romanesco (mas com notável diminuição dos traços) como, por exemplo, quando chegam na casa de Gianna, sua ex-esposa. Os poucos traços fonéticos nas falas de Bruno com Roberto vão se resumir a alguns casos de e protônica (2 na preposição de/di ‗de‘ e nos clíticos de levate/levati ‗tira‘ e me/mi ‗me‘), comprovando que a menor frequência do uso do romanesco por parte de Bruno pode estar ligada também ao desejo de o personagem de demonstrar mais seriedade em certas situações, através do uso de um italiano mais próximo da variedade alta do continuum, como a que será citada a seguir: 128 Cena 9 (Personagens: *B: Bruno, *R: Roberto, *G: Gianna) 537*B: Pista! Ahahah... Vai! Bravo/ te stai scafando ... albero/ l‘hai passato fina... Vai piano/ ahó... volta a sinistra/ no sull‘albero!! Vai piano! Frena/ fre frena! 538*B: Ahó/ sei arrivato! Ammapete come te sei ‗mbriacato... dai/ levate la maschera/ forza! E levate la maschera! 539*R: Però però io non sono ubriaco... <tu lo sei...> 540*B: <Sì/ vabbé sono io>/ però adesso stai calmo e bonino/ eh? 541*R: Ahahah... ma qua non c‘ nessuno.... 542*B: Ci sono/ ci sono... solo che se permetti/ a quest‘ora la gente per bene dorme// 543*R: Oh... che ne sai tu della gente per bene? 544*B: Lo vedi se ci sono? Stai buonino eh/ educatino/ mi raccomando! 545*R: Piano/ piano piano.... ―Guarda come dondolo...‖ 546*B: Eh/ no... piantala di ridere/ forza/ che sò conosciuto qua// Dai/ stai disinvolto// su/ Cammina dritto! 547*B: Ciao Gianna/ dormivi? <Scusa eh!> 548*G: <Certo!> 549*B: Permetti/ ti presento un amico... Roberto/ questa è mia moglie// 550*R: Molto piacere signora... 551*B: Dai/ levati ‘sta maschera... Non so che gli successo/ un‘avvocato... una persona seria... dai... 552*G: Lo vedo... 553*B: Ti dispiace? Passavamo di qui/ allora ho detto al mio amico/ andiamo un momento a dare un salutino// 554*G: Sì/ va bene/ adesso vi preparo la camera// 555*B: No/ no/ non ti preoccupare Gianna... abbiamo già prenotato la camera in albergo// 556*B: La pianti! 557*B: Mi hai già fatto fà una brutta figura... me pari un ragazzino/ me pari... 558*B: Scusa tanto eh Gianna/ scusa del disturbo... Na mesma cena, com a chegada da filha, Lilli, e de seu namorado, Bibì, Bruno abandona definitivamente o uso dos traços romanescos para falar um italiano neostandard muito próximo do standard falado pelos outros interlocutores: Cena 9 (Personagens: *B: Bruno, *R: Roberto, *G: Gianna, *L: Lilli, *Bi: Bibì) 129 581*B: Eccola/ questa è Lilli... Aspetta/ aspetta Gianna/ non ti muovere! La ricevo io// Le voglio parlare io alla pupa// E pure al ragazzetto gli voglio dire due paroline// 582*L: Ciao Bruno/ da dove sbuchi? Ciao mamma... 583*B: Oh Lilli/ vieni un po‘ qua/ fatti vedere... ma che hai fatto/ sei cambiata? 584*L: Mah/ pare che si debba crescere! Buonasera! 585*R: Buonasera! 586*B: Permette/ scusi sa/ sono il padre di Lilli// 587*Bi: Mi chiamo Danilo Borelli// 588*B: Tanto piacere// 589*Bi: Amico Suo? 590*B: Hum hum.... 591*R: Roberto Mariani// 592*Bi: Mariani? No/ non conosco nessun Mariani// Romani/ vero? 593*B: Hum hum... 594*Bi: Io a Roma ci vado sempre mal volentieri... è triste/ umida e antilavorativa! Scusino eh/ ma io la penso così... Si può andare in qualsiasi città e ognuno resta quello che è... Un genovese un genovese/ un fiorentino un fiorentino... A Roma invece dopo tre giorni/ si diventa tutti romani... 595*B: Embè/ e allora? 596*G: Che cosa avete fatto stasera? 597*L: Abbiamo fatto un bellissimo giro: Punta Ala/ Cecina/ Livorno/ Viareggio/ Forte dei Marmi... 598*R: Perbacco!! Tutte in una sera? 599*B: Eggià/ volevano arrivare fino a Taormina ma poi s‘ fatto tardi... 600*Bi: Eccoli i romani... sempre pronti a sfottere il prossimo! ―A piglià pe i fondelli...‖ così che dite voi no? Oh/ intendiamoci... anche noi abbiamo i nostri diffetti... Per esempio quello di stare a chiacchierare alle due di notte in casa d‘altri... Signora... Signor Cortona... Buonasera... Ciao Lilli... 601*L: T‘accompagno Bib // 602*B: Bibì? A partir das citações dos diálogos entre Bruno e Bibì, verificamos o desejo dos autores de explorar os estereótipos do típico milanês e do romano: nesse caso, Bibì representa o típico homem de negócios milanês, representante também do boom econômico da classe empresarial de sucesso, enquanto Bruno é o romano fanfarrão. É relevante observar que a 130 situação em que Bruno se encontra vai obrigá-lo a utilizar a variedade mais alta do seu repertório linguístico (o fato de Bibì ser namorado da filha, de ser bem mais velho do que ela, de ser milanês e rico etc.). Desde o início dessa cena (9), Bruno fala um italiano próximo do standard para manter uma imagem mais séria de si, além de uma adequada consideração perante a ex-esposa e a filha – levando-se em conta que, a partir dos diálogos, percebe-se que a sua figura é de uma pessoa que não assume as próprias responsabilidades (quando Gianna diz que fazia três anos que ele não via a filha: 579*G: Perché? Che c‟è di strano? Anzi/ vai migliorando... L‟ultima volta/ tre anni fa sei arrivato vestito da sciatore con la gamba ingessata... ‗Por quê? O que tem de estranho? Pelo contrário/ está melhorando... A última vez/ três anos atrás você chegou vestido de esquiador com a perna engessada‘). O único momento em que vemos a presença de traços do romanesco é na fala de Bibì quando imita um romano: “A piglià pe i fondelli...” è così che dite voi no? „ ―Zombar‖... é assim que vocês falam, né?‘. Nesta frase, percebemos a ironia e o sentido pejorativo que o personagem Bibì emprega ao relacionar o modo de falar dialetal ao estereótipo do romano de pessoa pouco séria. Concluímos os comentários sobre o Il sorpasso mostrando a transcrição dos diálogos entre Bruno e a filha. O primeiro usa um italiano muito próximo do standard, que comprova seu desejo de manter a figura séria de pai perante a filha (com verbos no subjuntivo: se tu avessi ‗se você tivesse‘ e no condicional: potrebbe ‗poderia‘, non te ne andresti ‗não iria‘, mi vorresti far intendere ‗você gostaria que eu entendesse‘; e com a ausência de traços fonéticos do romanesco): Cena: 9 (Personagens: *B: Bruno, *L: Lilli, *R: Roberto, *G: Gianna) 603*B: E il nipote/ dove sta? 604*L: Quale nipote? 605*B: No/ dico/ non poteva venire lui? Perché ti ha fatto accompagnare dal nonno? 606*R: Eheheheheh... 607*L: Guarda questo genere di spirito farà ridere il tuo amico ma a me no... proprio per niente// 608*R: No no no... guardi che io... 609*B: certo... perché se tu avessi un po‘ del senso dell‘umorismo/ non te ne andresti in giro con un tipo simile/ eh? 131 610*L: Senti/ il tipo simile è un uomo molto in gamba/ di quelli che hanno sgobbato/ di quelli che si sono fatti una posizione solida... e hanno tutte le carte in regola per far felice una donna// 611*B: Beh/ a prescindere dal fatto che tu non sei una donna ma una ragazzina/ uhm? Ti rendi conto che quello potrebbe avere una figlia buona per tuo padre? 612*L: Non ci sperare... è scapolo! 613*R: Oh/ mi dispiace signora// Adesso raccolgo// 614*G: Lasci/ non si preoccupi// 615*B: Sicché adesso tu mi vorresti far intendere che sei innamorata di quel rudere? Como podemos constatar, portanto, diante da filha, de Gianna e de Bibì, Bruno é obrigado a comutar o código, ―subindo‖ à variedade de maior prestígio para se impor perante os seus interlocutores, no plano psicológico e diastrático. Sendo assim, ele não ―pode‖ falar em romanesco, pois perderia credibilidade. Como último exemplo de citação, apresentamos os diálogos entre Bruno e Lilli, em que esta desabafa com o pai. Em uma fala de Bruno (688), na cena 12, muito próxima do standard, vemos a utilização da apócope vocálica son/sono ‗verbo auxiliar essere na 1ª pessoa: estou‘. D‘Achille (1995, p. 406) já havia notado a presença desta forma tronca de son no romanesco dos anos 1990: «[...] son pode ser considerado pelo falante romano um tipo de convenção ou um modo de evitar a forma local» 93. De fato, segundo Ciccotti (2001, p. 298), a presença de son – e não da forma dialetal sò ou da forma italiana sono – indicaria um deslocamento para o alto, ou seja, conotaria diastrática e diafasicamente a frase, através do traço tipicamente setentrional son. Isso demonstraria como, nessa situação, Bruno queria demonstrar ter uma boa imagem, ser um bom pai: 688*B: Sai Lilli/ son contento di aver una figlia come te! Sai un sacco di cose/ sei inteligente...decisa... sicura.... Concluindo os comentários sobre o filme Il sorpasso, apresentamos a seguir um quadro com os traços fonéticos encontrados somente nas falas de Bruno, seguido dos gráficos 93 [...] son può esser considerato dal parlante romano una sorta di compromesso o un evitamento della forma locale. 132 que vão explicitar melhor os percentuais de uso das três variedades de Roma pelo personagem. Tabela 5: Traços fonéticos do personagem Bruno do filme Il sorpasso Apócope nos verbos no infinitivo: 56 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 82 E protônica nos clíticos me, te, ve, se, ce: 76; Ausência de e protônica nos clíticos mi, ti, vi, e na preposição de: 21 si, ci: 186; e na preposição di: 66 Apócope no verbo essere (1ª pessoa do Ausência de apócope no verbo essere (1ª singular e 3ª do plural: sò): 1; e no verbo pessoa do singular e 3ª do plural: sono): 19; e venire (3ª pessoa do singular: viè): 1 no verbo venire (3ª pessoa do singular: viene): 1 Apócope nos alocutivos: 22 Ausência de apócope nos alocutivos: 14 Apócope nas preposições co: 7; e pe: 3 Ausência de apócope nas preposições con: 32; e per: 39 Apócope nos possessivos mi‟: 0 e tu‟: 0; e no Ausência de apócope nos possessivos mio: 6 numeral du‟: 0 e tuo: 4; e no numeral due: 16 Assimilação nd a nn: 8 Ausência de assimilação nd a nn: 37 Rotacismo de l: 1 Ausência de rotacismo de l: 95 Monotongação de uo: 24 Ausência de monotongação de uo: 42 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 0 indefinidos un, una: 65 Aférese nos pronomes demonstrativos „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 26 demonstrativos questo, questa, questi: 23 Lex Porena: 0 Ausência de Lex Porena: em tudo Palatalização de gl a j: 7 Ausência de palatalização de gl a j: 62 Com base nestes dados expostos, destacamos os resultados mais relevantes. Verificase que há a alternância dos dois traços fonéticos pertencentes à variedade média mais presentes nas falas de Bruno: a e protônica e a apócope dos verbos no infinitivo. Com relação à e protônica, nos clíticos me, te, ve, se, ce, temos 76 casos; e na preposição de, 21 (total: 97). Se analisarmos a ausência deste traço, temos 186 de casos nos clíticos e 66 na preposição (total: 252). Já a apócope dos verbos no infinitivo aparece 56 vezes contra 82 casos de verbos no infinitivo não apocopados. 133 Estes números nos mostram que há menos casos de e protônica – 97 no total, contra 252 de casos sem este traço. Com a apócope nos verbos, acontece o mesmo: são mais casos de verbos no infinitivo não apocopados (82) do que apocopados (56). Também, se pensarmos na aférese nos pronomes demonstrativos, percebemos que há 26 casos do traço e 23 casos sem o mesmo traço. Outro traço pertencente à variedade média é a palatalização de gli a j, e há somente 7 casos em que aparece este traço, contra 62 sem. Já quanto aos traços pertencentes à variedade de menor prestígio, temos somente 3 casos de apócope das preposições con e per contra 39 casos de ausência do mesmo traço. Estes dados, juntamente com os comentários feitos anteriormente, mostram que o personagem Bruno utilizou mais traços pertencentes à variedade média do que os da variedade mais baixa, sendo que estes últimos foram empregados sempre em situações mais informais e com pessoas desconhecidas (como o ciclista e o senhor da carona). Portanto, a nossa hipótese inicial, de que Bruno poderia ser definido como um italiano instruído, confirmou-se a partir da constatação de que esse personagem é capaz de revezar traços do neostandard com traços do italiano de Roma e dialetais dentro do continuum linguístico romano dependendo da situação em que se encontra. Nossa hipótese se confirma principalmente nas cenas em que Bruno encontra a família, nos momentos mais sérios, em que há uma forte diminuição dos uso de traços fonéticos do romanesco. Em seguida, apresentamos os gráficos referentes ao uso e ao não uso de traços fonéticos por parte de Bruno. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). Gráfico 7: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 1 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope nos verbos Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) 134 Gráfico 8: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Assimilação nd a nn Rotacismo de l Gráfico 9: Uso de traços fonéticos por parte de Bruno (filme Il sorpasso) – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Lex Porena Palatalização de gl aj 4.2.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Il sorpasso Tabela 6: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Il sorpasso Apócope Apócope da sílaba final de verbos no infinitivo rìde (ridere):1; vènde (vendere):1; séde (sedere): 1; rientrà (rientrare): 1; uscì (uscire): 3; passà (passare): 3; chiamà (chiamare): 1; venì (venire): 2; scaricà (scaricare):1; vedé (vedere): 135 3; andà (andare): 2; attaccà (attacà): 1; guardà (guardare): 1; sentì (sentire): 3; fà (fare): 7; impiccià (impicciare):1; allungà (alungare): 1; superà (superare): 3; dì (dire): 1; parlà (parlare): 2; fumà (fumare): 1; tirà (tirare): 1; salì (salire): 1; impazzì (impazzire): 1; aspettà (aspettare): 1; scaricà (scaricare): 1; strillà (strillare): 1; trattà (trattare): 1; dà (dare): 1; ballà (ballare): 1; morì (morire): 1; sedé (sedere): 1; mètte (mettere): 1; guidà (guidare): 1; mangià (mangiare): 1; studià (studiare): 1. Total: 55 Apócope dos verbos sò (sono), 1ª p. do sing. e 3ª pl.: 16; tiè (tieni): 3; viè (vieni): 1. Total: 20 Apócope da consoante final nas preposições con e per pe (per): 4; co (con): 7. Total: 11 Apócope nos alocutivos: perda da sílaba átona final Robè (Roberto): 18; nonnè (nonnetto): 1; Michè (Michele); 2; commenda (commendatore): 1. Total: 22 Apócope silábica da palavra dove do‘ (dove): 1. Total: 1 Passagem de „rr‟ a „r‟ arancà (arrancare): 1; aranca (arranca): 1; fero (ferro): 1; arivo (arrivo): 3; feragosto (ferragosto): 4; tera (terra): 1; córe (correre): 2, cure (corre): 1. Total: 14 Passagem de a pós-tônica não final a e svegliete (svegliati): 1. Total: 1 Rotacismo de l pré-consonântica na preposição articulada ar (al): 1; e no artigo masculino singular er (il): 6. Total: 7 Assimilação progressiva de nd a nn; rm a mm; rl a ll sfonno (sfondo): 1; annamo (andiamo): 3; ‗nnamo (andiamo): 3; annà (andare): 1; famme (farmi): 1; ammazzalli (ammazzarli): 1. Total: 10 Aférese Aférese de sílaba inicial em pronomes demonstrativos ‗sta (questa): 9 ; sti (questi): 9; ‗sto (questo): 8. Total: 26 Aférese dos artigos indefinidos 136 ‗n (un): 10; ‗na (una): 15; ‗no (uno): 1. Total: 26 Aférese silábica ‗nnaggia (mannaggia): 1. Total: 1 Aférese da expressão mortacci tua ‗ccitua: 1. Total: 1 Monotongação em ò para o ditongo uò vote (vuote): 1; voi (vuoi): 6; move (muove): 1; fori (fuori); bono (buono): 2; bona (buona ): 3; boni (buoni): 1 ; bonino (buonino): 3; omo (uomo): 2; ova (uova): 1; l‘omini (gli uomini): 1; mòviti (muoviti): 2. Total: 23 Palatalização Palatalização de gli a j pjà (pigliare): 1; vojo (voglio): 1; je (gli): 2; sbajà (sbagliare): 1; mejo (meglio): 1; raccojamo (raccogliamo): 1. Total: 7 Palatalização de nj + vogal gnente (niente): 1. Total: 1 Desenvolvimento da nasal palatal (mudança do grupo ng em gn) magni (mangi): 1, magnato (mangiato): 1; magna (mangia): 7; spigne (spingere): 2; spigni (spingi): 1. Total: 12 „E‟ protônica nos clíticos ti, mi, si, ci e na preposição di: E protônica nos clíticos ti, mi, si, ci e na preposição di 1) te (ti): 33, provate (provati): 1, fidate (fidati): 2, levate (levati): 2, svegliete/ svegliate (svegliati): 2; beccate (beccati): 1; fatte (fatti): 1; méttete (mettiti): 1; 2); me (mi): 21; famme (fammi): 3, damme (dammi): 1; dimme (dimmi): 1; 3) se (si): 11; 4) ce (ci): 4; 5) de (di): 24. Total: 108 Passagem de “b” a “bb” e “g” a “gg” robba (roba): 1. Total: 1 U protônica no lugar de o em non nun (non): 1. Total: 1 Passagem de cc a c; de vv a v; de tt a t 137 machina (macchina): 2; davero (davvero): 1; stamatina (stamattina): 1; camina (cammina): 1. Total: 5 Tabela 7: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos do filme Il sorpasso Apócope nos verbos no infinitivo: 55 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 158 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: 84; Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, e na preposição: de: 24 vi, si, ci: 243; e na preposição: di : 97 Apócope no verbo essere: (1ª pes. do sing. e Ausência de apócope no verbo essere (1ª pes. 3ª do pl.: sò): 16; e no verbo venire: (3ª pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 34; e no verbo do sing.: viè): 1 venire (3ª pes. do sing.: viene): 10 Apócope nos alocutivos: 22 Ausência de apócope nos alocutivos: 61 Apócope nas preposições: co: 7 e pe: 4 Ausência de apócope nas preposições: con: 59 e per: 46 Apócope nos possessivos: mi‟: 2, tu‟: 3; e Ausência de apócope nos possessivos mio: 3, numeral du‟: 0 tuo: 3; e numeral due: 12 Assimilação nd a nn: 8 Ausência de assimilação nd a nn: 83 Rotacismo de l: 7 Ausência de rotacismo de l: 110 Monotongação de uo: 23 Ausência de monotongação de uo: 48 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 26 indefinidos un, una: 238 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 26 demonstrativos: questo, questa, questi: 11 Lex Porena: 0 Ausência de Lex Porena: em tudo Palatalização de gli a j: 7 Ausência de palatalização de gl a j: 100 Em seguida apresentamos os gráficos referentes ao uso e ao não uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). 138 Gráfico 10: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 1 29% 28% 27% 26% 25% 24% 23% 22% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope nos verbos Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) Gráfico 11: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Assimilação nd a nn Rotacismo de l 139 Gráfico 12: Uso de traços fonéticos no filme Il sorpasso – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Lex Porena Palatalização de gl aj 4.3 Viaggi di nozze 4.3.1 Ficha técnica Viaggi di nozze, 1995. D.: Carlo Verdone. R.: Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Carlo Verdone. I.: Carlo Verdone: Raniero Cotti Borroni, Giovanni De Berardi, Ivano Vecchiarutti, padre (que celebra o matrimônio de Giovannino e Valeriana); Veronica Pivetti: Fosca; Claudia Gerini: Jessica Sessa; Cinzia Mascoli: Valeriana Coli; Gloria Sirabella: Gloria Coli; Edoardo Siravo: Stefano; Nanni Tamma: Adelmo (o pai de Giovanni). 4.3.2 Sinópse de Viaggi di nozze Viaggi di nozze é um filme de 1995, dirigido por Carlo Verdone, que conta as histórias de três casais recém-casados, seguindo-os da cerimônia de matrimônio à viagem de núpcias. Ivano, jovem arrogante de família enriquecida, casa-se com Jessica, sua cópia exata. Depois da cerimônia, os dois partem para uma viagem on the road entre hotéis, discotecas e sexo em todos os lugares, com Ivano provocando a esposa com a famosa pergunta "O famo strano?". Depois de uma relação sexual fracassada, os dois entram em crise e, depois de tentar resolvê-la, sem sucesso, o casal se encontra com um casal de amigos romanos e discute no carro, constatando que não há mais nada de original no mundo do consumismo. 140 O médico Raniero Cotti Borroni pensa em trabalho 24 horas por dia, a ponto de nunca desligar o celular – nem no altar. Casa-se com a jovem e frágil Fosca, que, logo após o matrimônio, percebe que cometeu um grande erro. Durante a viagem de núpcias, que Raniero organizou para que fosse exatamente igual à que tivera com sua primeira esposa, Scilla, Fosca tenta de todo modo fugir do marido opressor, que, por sua vez, a entedia com suas pieguices – chega a ponto de programar a posição dos caixões onde os dois serão sepultados na capela da família. No final, desesperada, Fosca acaba por suicidar-se jogando-se da varanda do hotel em Veneza, a mesma que o marido e Scilla haviam ocupado na precedente viagem de núpcias. Já Giovannino e sua esposa, Valeriana, após um interminável sermão do padre (também interpretado por Verdone) que celebra seu matrimônio, embarcam finalmente em um cruzeiro no Mediterrâneo, mas, pouco antes de o navio partir, um telefonema inesperado obriga Giovannino a deixar Valeriana e voltar a Roma: o pai é, de repente, abandonado pela enfermeira albanesa e Giovannino tem que encontrar um lugar para ele. Enquanto isso, Valeriana é avisada sobre uma tentativa de suicídio da irmã e também desembarca para entender o que aconteceu. Giovannino é o único que consegue salvar o próprio matrimônio com Valeriana, embora os familiares façam de tudo para destruí-lo. 4.3.2 Comentário linguístico Como ressaltado por Fabio Rossi (2006, p. 393) no item 1.2.2.4, a partir dos anos 1980 o cinema italiano vai mudar muito do ponto de vista linguístico, com a volta da gravação ao vivo e o uso sempre mais frequente de dialeto não estereotipado pelos cineastas. Também alguns atores/diretores, considerados os ―novos cômicos‖, como Roberto Benigni, Massimo Troisi, Francesco Nuti, Carlo Verdone, entre outros, revitalizaram as inserções dialetais no cinema, que, todavia, nunca renunciou à caracterização dialetal no gênero cômico, sobretudo nos produtos de consumo. Com relação aos filmes de Carlo Verdone nos anos 1990, Brunetta (2010, p. 398-99) afirma que é nesses anos que o ator/diretor fará alguns filmes como Stasera a casa di Alice (1990), Maledetto il giorno che ti ho incontrato (1992), Al lupo, al lupo (1992) e Perdiamoci di vista (1994), em que se distanciou de algumas figuras caricaturiais e do uso do romanesco – presentes em seus primeiros filmes – elementos que serão retomados em Viaggi di nozze (1995). 141 Para Montini (1997, p. 98), essa volta ao passado é também uma retomada do transformismo 94 e da estrutura episódica dos filmes de estreia. De fato, assim como em Un sacco bello (1980) e Bianco, rosso e Verdone (1981), Viaggi di nozze baseia-se em três histórias paralelas. Neste último, temos como protagonistas três diferentes casais de esposos, sendo que cada marido é interpretado por Verdone, que também faz uma quarta aparição no papel de um logorroico padre. Os três protagonistas verdonianos, de acordo com Montini (1997, p. 98), são modelados nos outros personagens dos dois filmes estreantes: Ivano, homem de periferia, é a versão atualizada de Enzo, o valentão de Un sacco bello; o professor Raniero Cotti Borroni é uma variação de Furio, o insuportável marido de Magda em Bianco, rosso e Verdone; o tímido Giovannino é, enfim, um ―irmão‖ de Leo e de Mimmo, os dois bons rapazes dos outros dois filmes antes citados. Todavia, Montini (1997, p. 98) afirma que, com relação aos dois filmes precedentes, em Viaggi percebe-se uma maior maturidade cinematográfica: enquanto Un sacco bello e Bianco, rosso e Verdone conservavam algo de teatral, eram monólogos divertidos, Viaggi di nozze: mostra um maior esforço em articular as histórias, tem uma estrutura mais coral, e nos três episódios emergem prepotentemente os personagens femininos, interpretados por três jovens atrizes descobertas pelo diretor: Claudia Gerini, Veronica Pivetti e Cinzia Mascoli. [...] Viaggi di nozze é uma colagem de três pequenos filmes que se cruzam. 95 Levando em conta tais premissas, começaremos a comentar o último filme do nosso corpus. Segundo Montini (1997, p. 98-99), os três personagens masculinos (Ivano, Raniero e Giovannino) são três personagens simbólicos, três faces da Itália dos anos 1990. Partindo da visão e transcrição do presente filme, percebemos que, de um ponto de vista linguístico, Carlo Verdone caracterizou diastraticamente cada um dos protagonistas. Raniero Cotti Boroni, médico, é a encarnação da Itália cínica, satisfeita, cheia de si, que vai utilizar sempre e somente a variedade mais alta do continuum linguístico romano, o italiano standard, independentemente da situação, seja ela formal, como quando fala com um paciente no celular, no altar da igreja: 94 Em italiano, tal prática é chamada fregolismo, termo vindo do nome de L. Fregoli (1867-1936), ator famoso transformista e ilusionista. http://www.treccani.it/vocabolario/fregolismo/ (Acesso em 02/12/15). 95 Viaggi di nozze mostra uno sforzo maggiore nell‘articolare le storie, ha una struttura più corale, ed emergono prepotentemente in tutti e tre gli episodi i personaggi femminili, affidati a tre giovani attrici scoperte dal regista: Claudia Gerini, Veronica Pivetti e Cinzia Mascoli. [...] Viaggi di nozze è un collage di tre piccoli film che si intersecano. 142 (Personagens: *R: Raniero, *F: Fosca) *R: Pronto? No/ non mi disturba affatto/ mi dica! Ou informal, na noite de núpcias com a esposa Fosca: *R: Amore Fosca/ ti sei già lavata i denti? *F: Sì/ Raniero/ *R: Guarda che sul tavolinetto bianco/ accanto al deodorante analcolico/ troverai un rocchetto di filo interdentale/ zigrinato non cerato/ che è l'ideale per togliere i residui// D'altro canto hai mangiato quell'insalata di pollo/ che è quanto di più deleterio per la placca dentaria// Partindo, portanto, da constatação de que nas falas de Raniero estão ausentes traços fonéticos do romanesco, voltaremos nossa atenção principalmente às falas de Giovannino e Ivano, uma vez que verificamos a diversa utilização do romanesco nos dois personagens. Giovannino é o pequeno burguês compreensivo, de índole dócil e boa, caracterizado como um romano pertencente à classe média que, diferentemente de Raniero e Ivano 96 , vai utilizar principalmente um italiano neostandard, revezando com traços fonéticos do romanesco de acordo com a situação e o interlocutor. Na cena inicial do casamento, no momento do sermão infinito do padre, quando os esposos exprimem nervosismo por correrem o risco de perder o navio que os levaria à viagem de núpcias pelo Mediterrâneo, podemos observar que Giovannino responde exasperado ao pedido de Valeriana, utilizando traços fonéticos pertencentes à variedade média, como a passagem de gl a j (je/gli ‗lhe‘), a e protônica no clítico ti (te/ti ‗te‘), a aférese do artigo indefinido un („n/un ‗um‘) e a apócope do infinitivo (3 casos de fà/fare ‗fazer‘): Cena 4 (Personagens: *Gi: Giovannino, *V: Valeriana) 83*V: Tra due ore parte la nave e non ce la faremo mai/ eh! 84*Gi: Che te devo fà io/eh? Che je devo fà? Che posso fà io/eh? È ‘n pazzo/ è ... 85*V: Vabbè... o glielo dici te/ o glielo dico io... 86*Gi: Eh... zio... scusa tanto/ tra due ore ci parte la nave/ quindi... 87*V: S / c‘ il rischio di perderla.... 96 O primeiro vai se exprimir sempre com um italiano standard, e o segundo, com a variedade mais baixa do continuum linguístico romano. 143 88*Gi: C‘ il rischio di perderla// Eh eh eh... grazie di tutto perché sei stato di cuore/ ci hai detto delle frasi veramente belle/ noi te ringraziamo tantissimo!!! Depois (diálogos 86, 88), com o padre, Giovannino utiliza um italiano neostandard tendendo ao informal: usa a 2ª pessoa do singular tu em vez da 3ª pessoa Lei – o que poderia indicar intimidade entre os dois, uma vez que eram parentes ([...] zio... scusa tanto [...] ‗tio... desculpa mesmo...‘) –, com um único caso de e protônica (te/ti ‗te‘), que indicaria a intenção de Giovannino de se exprimir com veemência: noi te ringraziamo tantissimo!!! ‗nós te agradecemos muitíssimo!!!‘. De fato, a caracterização do personagem Giovannino é a de um italiano instruído que, ao enfrentar momentos de tensão, oscila muitas vezes no continuum, descendo da variedade média para a variedade baixa, mas com poucas incursões. Vejamos um desses momentos: quando Giovannino procura o irmão, Ugo (que trabalha como caixa nos Correios), o qual se recusa a ficar com o pai: Cena 6 (Personagens: *Gi: Giovannino, *U: Ugo, *S e *S2: senhores que estão na fila, [...]: vozes de outras pessoas) 210*Gi: Ugo! Ugo! Scusate sono il fratello// 211*S: <Dica signore/ dove va? Per favore/ fate la fila!> 212*Gi:< ... è una questione famigliare importante/ scusate... un minuto solo!> Ugo scusa! Signora/ per favore/ un minuto solo! Ugo/ si tratta di una cosa importante/ ti devo parlare di papà// Ti chiedo un minuto// 213*S2: Mica vorrà fare il furbo? [...] 214*Gi: No/no.... su Cristo in croce/ non sono un furbo... Ti chiedo un minuto soltanto per parlarti... 215*U: Si metta in fila... 216*Gi: Guarda/ è una cosa urgente/ riguarda lui/ è un minuto solo... 217*U: Le ho detto di mettersi in fila... 218*Gi: Mi metto in fila! 224*U: Dica? 225*Gi: Ugo/ papà sta solo/ l‘infermiera albanese se n‘ andata... ‘na tragedia! 226*U: E cercane un‘altra... 227*Gi: E come faccio? Cioè/ sto in viaggio di nozze... Ho lasciato Valeriana sola sulla nave/ è ‘na tragedia! 228*U: E che fai/ me lo molli a me? 144 229*Gi: Ma per dieci giorni/ dai... in fin dei conti papà me ne sono sempre occupato io/ no? 230*U: Eh/ no... tu non te ne sei occupato/ bello... Tu te lo sei oliato per benino! 231*Gi: Ma che dici? 232*U: Sennò mica te la regalava la casa/ e manco il viaggio di nozze ti pagava... A proposito/ dov‘ che vai/ eh? 233*Gi: Ma dove vado .... Faccio il giretto che fanno tutti/ Tunisi/ Cairo/ Luxor... 234*U: Ah/ Cairo... Santa Marinella/ io! A casa de mi’ socera me lo sò fatto il viaggio di nozze/ io! Nesta cena, quando Giovannino tenta passar na frente das pessoas que estão na fila para falar com Ugo, há a sobreposição de vozes dessas pessoas, barulhos, partes de turno pouco compreensíveis, todas estas características que indicariam uma conversação ao vivo. Ugo, por sua vez, utiliza um italiano muito formal com o irmão (Si metta in fila ‗Coloque-se em fila‘; Le ho detto di mettersi in fila... ‗Eu lhe disse para se colocar em fila‘; dica ‗diga‘), o que demonstra a sua vontade de manter uma relação impessoal, de distância, com Giovannino. Mas, na fala de Ugo, verificamos também a descida na direção de uma variedade médio-baixa: Ah/ Cairo... Santa Marinella/ io! A casa de mi’ socera me lo sò fatto il viaggio di nozze/ io! ‗Ah/ Cairo.... em Santa Marinella eu! Na casa da minha sogra eu fiz a viagem de núpcias‘; neste caso, a utilização de traços fonéticos dialetais, como a e protônica em de/di ‗de‘, a apócope pós-vocálica do possessivo mi‟/mia ‗minha‘, a monotongação de socera/suocera ‗sogra‘, indica a intenção do personagem Ugo de enfatizar com veemência que tinha passado a sua viagem de núpcias na casa da sogra, e não como Giovannino, o qual faria uma viagem de navio pelo mediterrâneo paga pelo pai. Como resposta à provocação do irmão, Giovannino também utiliza a variedade dialetal, embora com oscilações que, de acordo Rossi (1999, p. 196), são inerentes a um típico romano de classe média: a) 3 casos de verbos apocopados (ricordà/ricordare ‗lembrar‘; mangià/mangiare ‗comer‘; cenà/cenare ‗jantar‘) e um não apocopado (rinfacciare ‗jogar na cara‘); b) 3 casos de e protônica (1 em de/di ‗de‘; 2 no clítico te/ti ‗te‘), mas não no clítico mi ‗me‘; c) 2 casos de aférese do artigo indefinido („na/una ‗uma‘). 145 Todos estes traços pertencem à variedade média ou ao italiano ―de‖ Roma; somente um traço fonético da variedade mais baixa está presente: a apócope da preposição pe/per ‗por‘: 235*Gi: Ma perché devi sempre rinfacciare! Ma perché... perché allora io mi dovrei ricordà de quella sera/ che ero andato a mangià ‘na pizza/ e tu sei arrivato a casa mia/ quatto/ quatto/ te sei staccato tr ... due quadri/ due quadri/ te sei portato via sei sedie su otto/ dico/ sei su otto! Roba che ci ha fatto cenà a turno pe ‘na settimana a tutti! Ma è giusto? Non ho finito! Na cena 12, Giovannino procura a mãe, que vivia separada do pai, para pedir-lhe que fique com ele, já que não havia obtido nenhum tipo de ajuda por parte dos irmãos. Mais uma vez, vemos o uso de um italiano neostandard com tendência para a coloquialidade (presença de palavrões: figlia di puttana ‗filha da puta‘; stronzisimi ‗idiotas‘), com poucos traços fonéticos do romanesco (somente alguns casos de e protônica): (Personagens: *Gi: Giovannino, *M: Mãe de Giovannino, *A: advogado) 309*M: Eh... hai litigato con Valeriana? 310*Gi: Ancora no/ ma se va avanti così me divorzio in viaggio di nozze// Mi fai entrare che ti devo parlare un attimo? È urgentissimo! 311*Gi: Mamma/ guarda/ sto in un‘emergenza che se chiama emergenza rossa/ c‘ho papà solo qua sulle scale// 312*M: Oddio mio! 313*Gi: Non lo vuole nessuno/ stato abbandonato dall‘infermiera albanese/ questa figlia di puttana... Sono stato da Ugo/ da Loredana/ da zia Clelia/ dai quei tuoi stronzissimi cugini Goccialati/ dai Sessa/ dai Saporito// Mamma/ non ci sei rimasta che te/ perciò/ mamma/ fai la mamma/ salvami il matrimonio! 314*M: Ma Giovanni/ ma cosa ti viene in mente? Sono venticinque anni che siamo separati/ dopo vent‘anni di litigi e di tradimenti! Ormai io per tuo padre sono solo una che lui odia! Mas, à medida que Giovannino percebe que a mãe não tem intenção nenhuma de cuidar do pai enquanto ele faz a viagem de núpcias, vai ficando cada vez mais nervoso, e isso se reflete no aumento da presença do romanesco em suas falas, a partir da utilização também do traço pertencente à variedade mais baixa do continuum (rotacismo do l: sarvà/salvare ‗salvar‘): 146 336*Gi: Allora/ dove lo mando io/ in uno ospizio? Lo porto in una comunità? Che devo fà? Io pure me devo sarvà mamma/ dai/ eh? Já Ivano e sua selvagem esposa, Jessica, são os representantes de uma Itália rica, vulgar e inculta. Para Montini (1997, p. 99), Verdone percebe bem a transformação do modelo coatto (pessoa arrogante, vulgar) no tempo, que vai se dar sobretudo através da linguagem: Enzo falava sem parar, convencido de dominar a palavra e os seus significados. Ivano e Jessica comunicam por monossílabos, o vocabulário deles é de uma pobreza desconcertante; falam por slogans, incapazes de construir uma frase minimamente articulada. 97 É possível identificar essa pobreza de vocabulário logo na cena inicial, quando, a pedido dos convidados, os dois personagens tentam fazer um discurso: (Personagens: *I: Ivano, *J: Jessica, *P: pai de Ivano, *C: convidados, *P2: pai de Jessica, *I: irmão de Ivano) 47*C: Discorso! Discorso! 48*I: E che ve devo di’? È trovasse sposatii... è ‘na sensazione nova... che te fa sentire come... come se può di’... te fa sentì proprio strano... eh/ te fa sentì strano... Aa salute! 49*C: Jessica! Jessica! 50*I: Dai/ dai/ dai! 51*J: V‘ha già detto tutto lui!!! Ma che ve devo di’ de più io... Niente... è ‘na sensazione... nova... che te fa.... strano.... cioè/ che te fa sentì proprio strana! Grazie a tutti comunque/ soprattutto dei regali! 52*I: Grazie veramente! 53*P2: Bella de papà! 54*P: Ammazza che oratori! 55*I: Ma chi ve i scrive i testi a Ivà?! Se Ivano é incapaz de proferir um discurso articulado, Jessica será sua cópia, sendo incapaz de proferir um pensamento próprio; ela utilizará quase as mesmas palavras (sensazione ‗sensação‘, nova ‗nova‘, strana ‗estranha‘) e os mesmos traços fonéticos 97 Enzo parlava in continuazione, convinto di dominare la parola e i suoi significati. Ivano e Jessica comunicano per monossillabi, il loro vocabolario è di una povertà sconcertante, parlano per slogan, incapaci di costruire una frase minimamente articolata. 147 presentes na fala de Ivano (diálogos 48 e 51): a e protônica nos clíticos ve/vi ‗para você‘ e na preposição de/di ‗de‘; a apócope do verbo no infinitivo sentì/sentire ‗sentir‘; a montongação de uo em nova/nuova ‗nova‘. Diferentemente de Giovannino, Ivano é caracterizado mais diastrática do que diafasicamente, uma vez que utiliza somente o romanesco de variedade mais baixa do continuum linguístico romano, como podemos constatar nos diálogos entre Ivano e Jessica: Cena 14 (Personagens: *I: Ivano, *J: Jessica) 417*J: A Ivà? 418*I: Oh? 419*J: Viètte a prénde ‘na botta de sole che er cloro te sbianca/ eh? 420*I: Dichi? 421*I: Che me stavi a di’ prima? Perché te fa paura avé ‘n fijo? Perché te cambia aa vita/ te fa sentì più vecchia/ che è? 422*J: Beh/ la paura de sentì male... E pure l‘idea d’avecce ‘n’antra persona dentro... 423*I: Beh/ ma allora... tu’ madre/ mi’ madre/ er mondo... 424*J: Ah oo so/ ‘nfatti... 425*I: Se t‘uscisse fori ‘n maschio mi piacerebbe chiamallo... o Allan... o Kevin... mejo Kevin// 426*J: Oo fai pe Kostner? 427*I: Ma più che pe Kostner... oo faccio perché è un nome che me dà ‘n senso de rispetto/ capito? Oo senti come il nome c‘ha possenza/ capito? Kevin! Capito? Me piace! 428*J: Vabbè/ ma tutti maschi devono èsse? 429*I: Vabbè/ allora proponi/ daje! Proponi pure te! 430*J: A me me piacerebbe Maria! 431*I: Ma è ‘n nome da presepio/ Maria/ dai! Ma chi se chiama più Maria? 432*J: A me me piace perché è semplice... È poi nun è vorgare Ivà// 433*J: Che c‘hai ‘n mente Ivà? 434*I: Càricate d‘ossigeno e bùttate ‘n acqua... 435*J: Ma che o voi fà ‘n‘apnea? 436*I: Vojo fà Maria sott‘acqua... 437*J: Davero? Davero Ivà? 438*I: Va‘! Vai! Dentro aa piscina... 439*I: Aa vojo fà strana quaa pupa! Proprio strana! 148 Nesses diálogos verificamos a forte presença de traços fonéticos pertencentes tanto à variedade média quanto à variedade mais baixa: Apresentamos os seguintes traços da variedade média: a) todos os verbos no infinitivo são apocopados: di‟/dire ‗dizendo‘; prénde/prendere ‗tomar‘; sentì/sentire ‗sentir‘; èsse/essere ‗ser‘; avé/avere ‗ter‘; fà/fare ‗fazer‘ (3); b) 16 casos de e protônica: nos clíticos me/mi ‗me‘ (5); se/si ‗se‘ (1); bùttate/buttati ‗se joga‘ (1); càricate/caricati ‗carregue-se‘ (1); viètte/ vieniti ‗vem‘ (1); te/ti ‗te‘ (4); e na preposição de/di ‗de‘ (3); c) 6 casos de aférese dos artigos indefinidos: „un/uno ‗um‘ ( 4); „n‟/un‟ ‗uma‘ (1) e „na/una ‗uma‘ (1); d) palatalização de gli a j: vojo/voglio ‗quero‘ (2); mejo/meglio ‗melhor (1); fijo/figlio ‗filho‘ (1). E para a variedade baixa temos: a) 4 casos de apócope dos alocutivos: Ivà/ Ivano ‗Ivano‘; b) 3 casos de rotacismo de l: 2 no artigo definido masculino er/il ‗o‘, e 1 caso no adjetivo vorgare/volgare ‗vulgar‘; c) 8 casos de lex Porena dos quais: 6 casos nos pronomes diretos - oo so/lo so ‗eu sei‘; oo fai/lo fai ‗você diz‘; oo faccio/lo faccio ‗eu digo‘; oo senti/lo senti ‗tá escutando‘; o voi/lo vuoi ‗você quer‘. aa vojo/la voglio ‗quero‘ . 1 caso no pronome demonstrativo quaa/quella ‗aquela‘. 1 caso nos artigos definidos aa/la ‗a‘ e 1 na preposição articulada aa/alla ‗da‘; d) 2 casos de monotongação de uo em ò: voi/vuoi ‗quer‘ e fori/fuori ‗fora‘; e) 2 casos de passagem de vv a v: davero/davvero ‗verdade‘; f) 2 casos de apócope dos pronomes possessivos: tu‟/tua ‗sua‘ e mi‟/mia ‗minha‘; g) 2 casos de apócope na preposição pe/per ‗para‘; h) nun no lugar de non ‗não‘. O único momento em que Ivano mudará para um registro mais alto será na cena 17, quando, já em crise, o casal decide inventar uma situação em que não se conhecem. Os dois se encontram em um restaurante e fingem ser duas pessoas diferentes, socialmente elevadas; esta nova realidade imaginária vai pedir uma nova relação com o código linguístico por parte deles. No caso de Ivano, verificamos que em seus diálogos há a tentativa de mudar o código na direção da variedade mais alta, como podemos ver pela mensagem que envia a Jessica convidando-a para se sentar à sua mesa: La trovo molto splendida// La posso invitare al mio 149 tavolo? ‗Acho a senhora muito linda// Posso convidá-la para a minha mesa?‘. Jéssica, por sua vez, se esforça para personificar uma pessoa de classe social elevada utilizando um italiano standard com o garçom (Mi può dare la penna? ‗Pode me dar a caneta?‘, e Glielo porti pure ‗Entregue [a mensagem] a ele‘), mas entrega a sua origem de pessoa pouco instruída quando responde por escrito a Ivano: Grazie ma Lei core un po‟ troppo// ‗Obrigada, mas o Senhor corre demais‘, com a passagem de rr a r – core/corre ‗corre‘. Depois, Ivano vai, com uma garrafa de champagne, até a mesa onde estava Jessica e se apresenta procurando utilizar um italiano standard, típico de uma pessoa fina e importante, mas sem sucesso: (Personagens: *I: Ivano, *J: Jessica, *Ga: Garçon) 517*I: Le posso offrire un drink de fine pasto? 518*J: Ma io non La conosco... 519*I: Potrebbe essere questa l‘occasione per conoscerci... 520*Ga: Prego... 521*I: Io comunque mi chiamo Ivano! 522*J: Piacere/ Jessica! 523*I: Allora/ come dire... a questo nostro primo incontro! 524*J: S / anche se un incontro un po‘... 525*I: Un po‘? 526*J: Un po‘.... 527*I: Strano? 528*J: ‘Nfatti! 529*I: Aa salute! Nestes diálogos, percebemos que Jessica se esforça para manter o uso do italiano standard, que encontramos somente a aférese vocálica em „nfatti/infatti ‗é verdade‘; Ivano tende mais à informalidade: verificamos a presença da e protônica na preposição de e da lex Porena aa/alla ‗à‘, esta última pertencente à variedade mais baixa. Nas próximas falas, os dois continuam a encenação, desta vez no carro, com Jessica contando sua história como se fosse uma pessoa ―culta‖ – os pais seriam professores universitários e ela estudaria violino no conservatório: (diálogos 540 e 542) Allora/ niente... mio padre è professore universitario// ‗Então... meu pai é professor universitário‘; Mia madre/ pure// Io invece studio// Studio al conservatorio// ‗Minha mãe também// Eu estudo// Estudo no conservatório//‘: 150 (Personagens: *I: Ivano, *J: Jessica) 530*J: Ecco/ grazie/ io abito qui// 531*I: Ma il tempo per un gelatino aa Marina da Massa/ ‘n cono? 532*J: Che ore sono? 533*I: Sono/ le dieci e venti// 534*J: Mi dispiace/ non posso rientrare dopo le dieci e mezzo// 535*I: E vabè... 536*J: Sa/ mio padre un tipo un po‘ all‘antica/ sul vecchio stampo... 537*I: <Hum...> 538*J: Vabbè/ giusto dieci minuti per conoscerci meglio! 539*I: una buona idea! Senti/ perché non mi parli un po‘ di te/ della tua vita/ di quello che fai? Eh? 540*J: Allora/ niente... mio padre è professore universitario// 541*I: Cazzo! 542*J: Mia madre/ pure// Io invece studio// Studio al conservatorio// 543*I: <Cosa?> 544*J: <Prima studiavo arpa!> 545*I: <Ah!> 546*J: <Poi/ invece/> mi sono buttata più sul violino// Anche perché pensavo... Percebemos que Ivano não consegue deixar de lado os traços dialetais, como na fala 531, em que se verifica a presença da lex Porena (aa/alla ‗na‘) e da aférese do artigo indefinido „n/un ‗um‘; e na fala 541, em que temos a palavra de baixo calão cazzo, que poderia ter sido substituída por outra expressão de surpresa, como a palavra cavolo ‗caramba‘. Jessica retoma o uso do dialeto quando Ivano, impaciente, a beija à força, deixando-a furiosa: 547*J: Ahó! Ma che sta‘ a fà/ a scemo? 548*I: Che sto a fà? 549*J: Hai rovinato tutto! 550*I: De che? 551*J: Tutto hai rovinato! 552*I: Ho rovinato che? 151 553*J: A me me piaceva l‘idea de ‘sto corteggiamento.... sui tempi lunghi... stava a venì bene! Pareva ‘na cosa vera/ pareva! 554*I: Ma tempi lunghi de che? Sò pure quattro ore che annamo avanti co ‘sta sceneggiata! 555*J: Guarda che er bello era quello! Ch‘era ‘na situazione aperta dove te potevo al limite mannà pure in bianco! Quello era oo strano! Te invece subito co ‘sta mano! Co quaa lingua/ ahó! 556*I: Certo che sei strana/ eh? Tu’ padre te vó a casa ae dieci e mezzo? Mancano nove minuti/ famme affonnà l‘acceleratore/ che sto a fà io così? Che sto a fà? 557*J: No/ Ivà/ enne ci esse/ non ci siamo// Aridamme a fede/ va! 558*I: Piate a fede... E piate/ va... 559*J: Mejo.... Vejamos os fenômenos relevantes: a) todos os verbos no infinitivo foram apocopados (4 casos de fà/fare ‗fazer‘; 1 de venì/venire ‗ficar‘) e na 3ª pessoa do verbo essere (sò/sono ‗são‘); b) a e protônica apareceu no lugar da i toscana nos clíticos te, me (5 vezes) e na preposição de (3 vezes); c) o único nome próprio usado na função alocutiva aparece apocopado (Ivà/Ivano); d) o possessivo tuo ‗teu‘ aparece na forma apocopada (tu‟); e) o desaparecimento da lateral nos artigos e em todos os casos previstos pela chamada ―lex Porena‖ é muito presente: ocorre a vocalização total do l nos artigos definidos (2 casos de a/la ‗a‘), com 1 caso de vogal alongada (oo/lo ‗o‘), e nas preposições articuladas (1 caso de ae/alle ‗às‘); e 1 caso de assimilação vocálica no pronome demonstrativo (quaa/quella ‗aquela‘); f) ocorre o rotacismo do artigo definido (1 caso de er/il ‗o‘); g) aparecem 3 casos de assimilação progressiva de nd a nn (annamo/andiamo ‗vamos‘, mannà/mandare ‗mandar‘ e affonnà/ affondare ‗afundar‘); h) há a passagem de gl a j (mejo/meglio ‗melhor‘), que pode se reduzir a i (piate/pigliate/pigliati ‗pega‘); i) tem-se a aférese do artigo indefinido („na/una ‗uma‘) e do pronome demonstrativo „sta/questa ‗esta‘ e ‗sto/questo ‗este‘); j) há 2 casos de apócope da preposição (co/con ‗com‘). A seguir, faremos uma comparação das falas fílmicas de Giovannino e Ivano, com o objetivo de demonstrar quão significativa é a diferença dos registros utilizados por eles. 152 Para melhor entender essa comparação e ilustrar tudo o que foi dito anteriormente sobre o diferente emprego do romanesco nas falas dos dois personagens, apresentamos os percentuais e gráficos. Partimos da descrição dos principais traços dialetais presentes nas falas de Ivano, à qual se seguem as ocorrências correspondentes em que se verifica a ausência de tais traços. Tabela 8: Traços fonéticos do personagem Ivano do filme Viaggi di nozze Apócope nos verbos no infinitivo: 47 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 5 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: 48; Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, e na preposição: de: 13 vi, si, ci: 3; e na preposição: di : 7 Apócope nos verbos essere: (1ª pes. do sing. Ausência de apócope nos verbos essere (1ª e 3ª do pl.: sò): 8; e no verbo venire: (3ª pes. pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 1; e no verbo do sing.: viè): 2 venire (3ª pes. do sing.: viene): 0 Apócope nos alocutivos: 5 Ausência de apócope nos alocutivos: 7 Apócope nas preposições: co: 9 e pe: 4 Ausência de apócope nas preposições: con: 0 e per: 3 Apócope possessivos: mi‟: 1, tu‟: 4; e Ausência de apócope possessivos mio: 3, tuo: numeral du‟: 4 0; e numeral due: 0 Assimilação nd a nn: 10 Ausência de assimilação nd a nn: 5 Rotacismo de l: 14 Ausência de rotacismo de l: 10 Monotongação de uo: 6 Ausência de monotongação de uo: 1 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 25 indefinidos un, una: 14 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 3 demonstrativos: questo, questa, questi: 7 Lex Porena: 49 Ausência de Lex Porena: 3 Palatalização de gl a j: 21 Ausência de palatalização de gl a j: 1 Em seguida, apresentamos a mesma tabela referente aos traços fonéticos utilizados por Giovannino e seus correspondentes com a ausência dos mesmos: 153 Tabela 9: Traços fonéticos do personagem Giovannino do filme Viaggi di nozze Apócope nos verbos no infinitivo: 31 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 25 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: 29; Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, e na preposição: de: 15 vi, si, ci: 42; e na preposição: di : 24 Apócope nos verbos essere: (1ª pes. do sing. Ausência de apócope nos verbos essere (1ª e 3ª do pl.: sò): 10; e no verbo venire: (3ª pes. pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 11; e no verbo do sing.: viè): 0 venire (3ª pes. do sing.: viene): 0 Apócope nos alocutivos: 2 Ausência de apócope nos alocutivos: 6 Apócope nas preposições: co: 4 e pe: 2 Ausência de apócope nas preposições: con: 11 e per: 12 Apócope nos possessivos: mi‟: 0, tu‟: 0; e Ausência de apócope nos possessivos mio: 3, numeral du‟: 0 tuo: 2; e numeral due: 18 Assimilação nd a nn: 2 Ausência de assimilação nd a nn: 19 Rotacismo de l: 1 Ausência de rotacismo de l: 30 Monotongação de uo: 4 Ausência de monotongação de uo: 16 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 10 indefinidos un, una: 39 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 10 demonstrativos: questo, questa, questi: 9 Lex Porena: 0 Ausência de Lex Porena: em tudo Palatalização de gl a j: 5 Ausência de palatalização de gl a j: 26 Com base nestas duas tabelas, faremos alguns comentários a respeito dos aspectos que mais nos chamaram a atenção nos dois personagens. No que diz respeito aos primeiros traços de maior frequência nas falas, pertencentes à variedade média – a apócope dos verbos no infinitivo e a e protônica –, destacamos a sua alternância nas falas de Giovannino: 31 casos de apócope contra 25 casos de verbos no infinitivo não apocopados. Já quanto à e protônica, foram 29 casos deste traço fonético nos clíticos e 15 na preposição di, num total de 44 casos, contra os 66 casos sem a e protônica (42 nos clíticos e 24 da preposição di). Já Ivano se comporta diferentemente: são 47 casos de verbos apocopados contra somente 5 de verbos no infinitivo não apocopados, sendo que estes 5 foram proferidos em 154 duas situações formais – 1 no discurso na festa de casamento (48*I: E che ve devo di’? È trovasse sposatii... è ‘na sensazione nova... che te fa sentire come... [..] ‗O que eu falo pra vocês? Estar casado... é uma sensação nova... que te faz sentir como... [...]) e os 4 restantes (invitare, offrire, essere, dire) quando o personagem encenava ser uma pessoa instruída com Jessica no restaurante, como verificamos nos diálogos a seguir: 507*(Jessica lê a mensagem de Ivano): ―La trovo molto splendida// La posso invitare al mio tavolo?‖ 517*I: Le posso offrire un drink de fine pasto? 518*J: Ma io non La conosco... 519*I: Potrebbe essere questa l‘occasione per conoscerci... [...] 523*I: Allora/ come dire... a questo nostro primo incontro! O mesmo acontece com a e protônica: 61 casos nos clíticos e na preposição di, e somente 10 casos sem esse fenômeno. Levando em consideração também os outros aspectos fonéticos, podemos observar que nas falas de Ivano são respeitadas as características típicas das variantes mais informais do romanesco, como a assimilação progressiva de nd a nn: temos 10 casos de nn (ex.: affonnà/affondà/affondare ‗afundar‘) e apenas 5 ocorrências de nd (ex.: andamo/andiamo ‗vamos‘). Em contraposição, Giovannino utiliza esse traço somente 2 vezes, contra 19 casos de nd (andiamo). Tendo como base uma escala ideal de variedades (ROSSI, 1999, p. 198), partindo sempre do romanesco para o italiano, a fala de Ivano seleciona quase sempre as formas pertencentes ao grau mais baixo. Representamos os vários graus unidos por uma seta [→], de modo que o degrau das variedades diastráticas e diafásicas mais baixas está sempre à esquerda da primeira seta de cada série: fà→fare ‗fazer‘; magnà→mangià→mangiare ‗comer‘; vó→voi→vuoi ou vuole ‗quer‘; vor→vol→vole→vuol→vuole ‗quer‘; er→el→il ‗o‘. Tendo como referência as séries de escalas de variedades exemplificadas, vemos que, nas falas de Giovannino, os graus mais baixos são minoria, quando não estão totalmente ausentes – as apócopes do pronome possessivo (mi‟/mio ‗meu‘) e do numeral (du‟/due ‗dois‘), por exemplo, não aparecem. Já Ivano utiliza 8 vezes o mesmo traço apocopado contra 3 casos sem a apócope; ocorre também a contraposição entre as formas verbais magnà (variedade baixa), usada por Ivano, e mangià (variedade média), usada por Giovannino (apenas 1 155 ocorrência). O fenômeno chamado lex Porena não terá nenhuma ocorrência em Giovannino, contra 49 ocorrências em Ivano (o qual somente em 3 casos não reproduzirá este fenômeno). Para finalizar, o rotacismo do l aparece somente 1 vez na fala de Giovannino, com sarvà, enquanto que em Ivano temos 14 ocorrências (contra 10 casos sem o rotacismo). Neste sentido, tais oscilações do emprego dos traços fonéticos nas falas dos dois personagens podem acontecer, nos momentos de tensão, ou quando se tem o desejo de enfatizar uma coisa ou situação. Em seguida apresentamos os gráficos de comparação do uso e não uso de traços fonéticos dos personagens do filme. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). Gráfico 13: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 1 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope no verbo Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) Ivano Giovannino 156 Gráfico 14: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Ivano Assimilação nd a nn Rotacismo de l Giovannino Gráfico 15: Comparação do uso de traços fonéticos dos personagens do filme Viaggi di nozze – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Ivano Lex Porena Palatalização de gl aj Giovannino Todos esses dados nos levam a acreditar que tais diferenças fonéticas entre Giovannino e Ivano tenham sido o resultado do desejo de Verdone de representar as duas diferentes faixas sociais, o que comprovaria a nossa hipótese: de um lado, teríamos o pequeno burguês, Giovannino, capaz de utilizar todo o repertório linguístico romano – daí a alternância de traços fonéticos do romanesco, sendo a maior parte deles pertencente à variedade média –; do outro, teríamos o habitante da periferia, dotado de pouca instrução, Ivanno, que vai utilizar a variedade mais baixa com poucas oscilações na direção da variedade média, como pudemos constatar nos números e exemplos acima expostos. 157 Com esta afirmação, apresentamos o último quadro com todos os traços fonéticos identificados em Viaggi di nozze, e nos encaminhamos para as considerações finais. 4.3.4 Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Viaggi di nozze Tabela 10: Ocorrências, frequências dos traços fonéticos presentes no filme Viaggi di nozze Apócope Apócope da sílaba final de verbos no infinitivo lègge (leggere): 1; sse (essere): 5; dist ngue (distinguere): 1; dà (dare): 1; di‘ (dire): 13; sent (sentire): 5; cantà (cantare): 1; cambià (cambiare): 4; chiùde (chiudere): 1; levà (levare): 1; fà (fare): 26; passà (passare): 1; scherzà (scherzare): 1; guardà (guardare): 6; ricordà (ricordare): 1; mangià (mangiare): 1; cenà (cenare): 1; piglià (pigliare): 1, individuà (individuare): 1; vedé (vedere): 1; stà (stare): 8; partì (partire): 2; sapé (sapere): 1; prénde (prendere): 1; avé (avere): 5; barà (barare): 1; ricarburà (ricarburare): 1; parlà (parlare): 2; scarseggià (scarseggiare): 1; vomità (vomitare): 2; inventà (inventare): 1, ‗nventà: 1; ricr sce (ricrescere): 1; buttà (buttare): 1; risultà (risultare): 1; desiderà (desiderare): 1; camminà (camminare): 1; venì (venire): 1; rosicà (rosicare): 1; bàtte (battere): 1; cercà (cercare): 2; attecchì (attecchire): 1; criticà (criticare): 1; dormì (dormire): 1; imboccà (imboccare): 1; campà (campare): 1; andà (andare): 2. Total: 116 Apócope dos verbos sò (sono – 1ª sing. e 3ª pl.): 21; viè (viene): 3. Total: 24 Apócope pós-vocálica nos adjetivos possessivos mi’, tu’ e no numeral du’ tu‘ (tuo/tua): 5; mi‘ (mio/ mia): 2; du‘ (due): 4. Total: 11 Apócope da consoante final nas preposições con e per pe (per): 12; co (con): 23. Total: 35 Apócope nos alocutivos Ivà (Ivano): 18; Jè (Jessica): 5; regà (ragazzi): 2; Valerià (Valeriana): 2. Total: 27 Apócope da sílaba final átona de „dove‟ do‘ (dove): 2; ‗ndo‘ (dove): 5; na frente de nasal pré-consonântica: ‗nd‘ (dove): 2. Total: 9 Passagem de a pré-tônica não final a e 158 regazzini (ragazzini): 1. Total: 1 Rotacismo de l pré-consonântica cor (col): 3; der (del): 3; ar (al): 3; sur (sul): 4; quer (quel): 1; er (il): 11; carza (calza): 1; artra (altra): 2, mas com oscilações em ‗antra‘ (altra): 3; quarcuno (qualcuno): 1; quarcosa (qualcosa): 1; vor (vuol): 1; asfarto (alfalto): 1; vorgare (volgare): 1; vorta (volta): 2; risurtà (risultare): 1; salvà (salvare): 1. Total: 40 Assimilação progressiva de nd a nn; rl a ll; rm a mm annamo (andiamo): 10; sfonnato (sfondato): 1; quanno (quando): 1; affonnà (affondare): 1; annamose (andiamocene): 2; annate (andate): 2; annace (andarci): 1; chiamallo (chiamarlo): 1; falla (farla): 1; mannà (mandare): 1. Total: 21 Aférese Aférese de sílaba inicial em pronomes demonstrativos ‗sto (questo): 10; ‗sta (questa): 13; sti (questi): 3; ‗st‘ (questa): 1. Total: 27 Aférese dos artigos indefinidos ‗na (una): 32; ‗n (uno, una): 30. Total: 62 Aférese vocálica: queda das vogais no início de palavra quando seguidas de consoante nasal (m, n, gn) ‗ncazzo (incazzo): 1; ‗nventà (inventare): 1; ‗nventata (inventata): 1; ‗nvece (invece): 1; ‗nfatti (infatti): 7; ‗mazza (ammazza): 2. Total: 13 Monotongação em ò para o ditongo uò pò (può): 5; nova (nuova): 2; bona (buona): 2; bono (buono): 2; voi (vuoi): 5; socera (suocera): 1; fori (fuori): 1; buttafori (buttafuori): 2. Total: 20 Palatalização Palatalização de ng em gn spigni (spingi): 1; magnà (mangiare): 1. Total: 2 Palatalização de nj + vogal gnente (niente): 1. Total: 1 Palatalização de gli a j e i sbajato (sbagliato): 2; sbajata (sbagliata): 2; sbajate (sbagliate): 1; fijo (figlio): 3; fija (figlia): 159 1; dije (dirgli): 1; mejo (meglio): 7; je (gli): 5; vojo (voglio): 6; faje (fargli): 1; pjate (pigliati): 2; moje (moglie): 1; pia (piglia): 1; pija (piglia): 2; tajati (tagliati): 1. Total: 36 E protônica nos clíticos ti, mi, si, ci e na preposição di 1) te (ti): 40; 1) sbrigate (sbrigati): 1; vatte (vatti): 1; caricate (caricati): 1; buttate (buttati): 1; impiccate (impiccati): 1; sparate (sparati): 1; 2) me (mi): 34; aridamme (ridammi): 1; famme (fammi); 5; stamme (stammi): 2; 3) ce (ci): 17; riflettice (riflettici): 1; 4) ve (vi): 3; concentrateve (concentratevi): 1; 5) se (si): 21; trovasse (trovarsi): 1; de (di): 42. Total: 174 Lex Porena a (la): 23; aa (la, alla): 18; ae (alle): 1; daa (della): 3; quaa (quella): 3; quea (quella): 1; taa (te l‘ha): 1; eccaa (eccola): 1; maa (me l‘ha): 2; suaa (sulla): 1; a‘ (all‘): 1; o (lo): 9; oo ( lo): 8; too (te l‘ho): 1; moo (me lo): 1; ch‘ i (con i): 2; i (il,li): 15; ii (li, le): 2; i (gli): 2; sui (sugli): 1; tii (te li): 1; quei (quegli): 1; e (le): 1; dee (delle): 1. Total: 99 U protônica no lugar de o em non nun (non): 20 e ni (non): 1. Total: 21 Passagem de cc a c; de vv a v machina (macchina): 1; davero (davvero): 3. Total: 4 Tabela 11: Comparação das ocorrências da presença e ausência dos traços fonéticos do filme Viaggi di nozze Apócope nos verbos no infinitivo: 116 Ausência de apócope nos verbos no infinitivo: 37 E protônica nos clíticos: me, te, ve, se, ce: Ausência de e protônica nos clíticos: mi, ti, 132; e na preposição: de: 42 vi, si, ci: 116; e na preposição: di : 83 Apócope no verbo essere: (1ª pes. do sing. e Ausência de apócope no verbo essere (1ª pes. 3ª do pl.: sò): 21; e no verbo venire: (3ª pes. do sing. e 3ª do pl.: sono): 29; e no verbo do sing.: viè): 3 venire (3ª pes. do sing.: viene/vieni): 7 Apócope nos alocutivos: 27 Ausência de apócope nos alocutivos: 49 Apócope nas preposições: co: 23 e pe: 12 Ausência de apócope nas preposições: con: 30 e per: 45 Apócope nos possessivos: mi‟: 2, tu‟: 5; e Ausência de apócope nos possessivos mio: 8, numeral du‟: 4 tuo: 6; e numeral due: 8 160 Assimilação nd a nn: 19 Ausência de assimilação nd a nn: 20 Rotacismo de l: 40 Ausência de rotacismo de l: 118 Monotongação de uo: 20 Ausência de monotongação de uo: 29 Aférese vocálica nos artigos indefinidos „n, Ausência de aférese vocálica nos artigos „no, „na: 62 indefinidos un, una: 39 Aférese nos pronomes demonstrativos: „sto, Ausência de aférese nos pronomes „sta, sti: 26 demonstrativos: questo, questa, questi: 54 Lex Porena: 99 Ausência de Lex Porena: 168 Palatalização de gli a j: 36 Ausência de palatalização de gl a j: 67 Em seguida apresentamos os gráficos referentes ao uso e ao não uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze. Os gráficos representam, para cada traço fonético observado, a porcentagem de casos positivos em relação ao conjunto de casos positivos (presença do traço) ou negativos (ausência do traço). Gráfico 16: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 1 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nos verbos no E protônica nos clíticos: Apócope nos verbos Apócope nos alocutivos infinitivo me, te, ve, se, ce e na essere (1ª pes. do sing. e preposição: de 3ª do pl.: sò) e venire (3ª pes. do sing.: viè) 161 Gráfico 17: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 2 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Apócope nas preposições: co e pe Apócope possessivos: mi‘, tu‘, e numeral du‘ Assimilação nd a nn Rotacismo de l Gráfico 18: Uso de traços fonéticos no filme Viaggi di nozze – 3 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% Monotongação de Aférese vocálica Aférese nos uo nos artigos pronomes indefinidos ‗n, ‗no, demonstrativos: ‗na ‗sto, ‗sta, sti Lex Porena Palatalização de gl aj 162 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciamos a presente dissertação relatando nossa experiência pessoal na Itália e o momento em que despertou em nós o desejo de estudar a realidade linguística italiana através do cinema, tendo como foco as variedades linguísticas – o romanesco em especial. Como já dito na introdução, foi determinante para a escolha do tema da nossa pesquisa a disciplina intitulada Papel da língua na constituição da identidade, que cursamos como aluna especial com a Profa. Annita Gullo. Tal disciplina nos proporcionou uma visão não só histórica, mas também sociolinguística dos acontecimentos que atravessaram a Itália até os nossos dias, levando-nos a investigar o porquê do uso frequente do romanesco na cinematografia daquele país. Acreditamos ser relevante ressaltar que, durante esses dois anos de pesquisa, pudemos ir à Itália três vezes, o que nos permitiu ter contato direto com as obras dos estudiosos que nos nortearam durante esse percurso de trabalho, a partir de visitas às bibliotecas de Roma (Biblioteca Nazionale di Roma, Università della Sapienza e Università Roma Tre e Centro Sperimentale di Roma). O estudo diacrônico sobre o cinema italiano, apresentado no primeiro capítulo, foi fundamental para a nossa pesquisa porque pudemos entender a complexa relação existente entre o cinema, a língua italiana e os dialetos nos vários períodos históricos. Hoje, em pleno século XXI, podemos afirmar que o cinema, a partir da segunda metade do século passado, reflete o repertório do italiano nas suas variedades (CICCOTTI, 2001). De fato, hoje, as novas gerações recuperaram, mesmo que passivamente, um dialeto /italiano dialetal, através dos testemunhos linguísticos não tanto dos avós, mas dos atores cinematográficos, que é mais do que sabido sempre exerceram e ainda exercem forte influência sobre o público. Obviamente, não foi nossa intenção esgotar os assuntos relativos ao tema tratado aqui, mas somente iniciar o debate sobre o componente verbal no cinema italiano do pósguerra, o qual só começou a ser explorado pelos estudiosos nos últimos quarenta anos (ROSSI, 2006, p. 23; 2007, p. 8). Como esclarecido desde o início deste trabalho, focamos a nossa atenção no uso do romanesco nas falas de três filmes italianos: Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, Il sorpasso (1962), de Dino Risi e Viaggi di nozze (1995), de Carlo Verdone, representativos dos últimos cinquenta anos de história do cinema italiano. A partir dos exemplos dos filmes e de comentários feitos pelos estudiosos, verificamos que o componente verbal sempre esteve ligado não só às necessidades comerciais dos produtores, mas também aos acontecimentos históricos e sociais pelos quais passava a Itália em cada período, os quais determinavam o 163 maior ou menor emprego dos dialetos. E, dentro do panorama do uso dos dialetos, ficou evidente que o romanesco sempre ocupou um lugar de destaque, sendo, por sua proximidade estrutural com o italiano, a variedade linguística mais usada e a que mais respondia às necessidades dos produtores, além da mais compreendida pelo público. Outro fator que sempre acompanhou e determinou o maior ou menor uso dos dialetos era a mensagem e a ideologia que os autores queriam transmitir através da obra fílmica. De fato, verificamos que, no corpus analisado, houve uma atenção por parte dos autores de cada filme em caracterizar os personagens através do uso do dialeto e/ou da língua italiana. Em Roma città aperta, o romanesco foi usado para dar voz ao povo romano, em contraposição ao italiano standard dos pequenos burgueses e dos não romanos. Nesse sentido, verificamos que os personagens são conotados mais diastraticamente do que diafasicamente, uma vez que o romanesco esteve mais presente nas situações comunicativas entre romanos e e era utilizado pelas pessoas das classes menos privilegiadas. Em Il sorpasso, houve a preocupação em apresentar com um tom crítico a sociedade daqueles anos, resultado do boom econômico; os autores dedicaram atenção especial à escolha da língua daquela época, um italiano neostandard/ italiano regional (resultado das transformações linguísticas de então) mais tendente ao informal, com mais gírias e vocábulos setoriais, mostrado nas falas de Bruno Cortona. Já em Viaggi di nozze, Carlo Verdone preocupou-se em fazer um retrato da sociedade romana dos anos 1990, caracterizando-a diastraticamente através da utilização diferenciada do italiano standard, do neostandard e do romanesco pelos três casais protagonistas. Neste panorama cronológico apresentado sobre o cinema italiano, partimos da análise dos traços fonéticos presentes nos diálogos dos atores dos três filmes selecionados. Para tanto, foi imprescindível o estudo da história sociolinguística de Roma abordada no segundo capítulo. De fato, concordamos com De Mauro quando afirma em Storia linguistica dell‟Italia unita (1995), que o romanesco sempre foi usado no cinema para caracterizar a classe mais popular da sociedade. Tais estudos sociolinguísticos sobre o cinema italiano e sobre o romanesco (capítulos 1 e 2, respectivamente) nos levam a concordar também com a afirmação de que ainda hoje a oposição entre ―falar bem‖ e ―falar mal‖ em Roma é muito evidente (STEFINLONGO, 2012, p. 23). Tal oposição é considerada uma verdadeira impressão genética ligada à acentuada percepção do prestígio linguístico em uma sociedade multiforme e estratificada, de acordo com Trifone (1992, p. 543). 164 Essa peculiaridade sempre esteve presente na realidade linguística, como pudemos testemunhar com os primeiros escritos em romanesco (item 2.1): na Iscrizione di San Clemente, do século XI, já é possível perceber a dicotomia entre latim e vulgar. Também não podemos nos esquecer das comédias e poemas do século XVII, que apresentam personagens populares que falam em romanesco e são quase sempre figuras de servos, como visto no item 2.3.1. Foi possível perceber que essa mesma realidade está presente também no cinema, através da caracterização dos personagens populares e dos valentões e arrogantes ―coatti” das periferias romanas, como as figuras de Ivano e Jessica, em Viaggi di nozze. Verificamos que a maior parte dos traços fonéticos dialetais nas falas fílmicas desses personagens tem uma conotação diastrática, pois a presença do romanesco vai existir independentemente da situação. Isto nos remete às palavras de Stefinlongo (2012, p. 25), quando afirma que a variedade dialetal não passa pelo conceito de função, mas pelo de valor social ou de prestígio – no sistema sociolinguístico romano, o dialeto é a língua das classes menos privilegiadas, menos instruídas. Viaggi di nozze é a confirmação disto, pois vai representar claramente a sociedade romana no que tange ao uso ou não da variedade dialetal: temos Raniero, que vai utilizar somente a variedade mais alta; Giovannino, que usará a variedade média com algumas incursões na direção da variedade mais alta e mais baixa; e Ivano, que será incapaz de usar outro código que não seja a variedade mais baixa. Sobre a evolução do romanesco, a partir dos estudos de Stefinlongo (2012, p. 19), no item 2.4.1 vimos como na Roma pós-unitária o crescimento demográfico, resultado dos contínuos fluxos migratórios, levou a um transbordamento da cidade para uma periferia sempre maior, até as últimas décadas. Isso favoreceu a ―neomeridionalização‖ linguística, que alcançou também a classe média, com o aparecimento e a afirmação de alguns traços fonéticos. É possível perceber essa evolução também no cinema, através das falas de Bruno Cortona, Giovannino e Ivano, em Il sorpasso e Viaggi di nozze, respectivamente. Os três personagens utilizam traços do romanesco pertencentes à variedade médio-baixa, acompanhando a evolução ao utilizar dois traços significativos que se afirmaram no século XX: a redução definitiva de rr a uma só consoante r (guera/guerra ‗guerra‘) e o enfraquecimento e/ou o desaparecimento de l nos artigos, nas preposições articuladas, nos pronomes pessoais e nos demonstrativos (lex Porena), sendo que este último fenômeno é amplamente utilizado por Ivano. Outro fator relevante no que concerne à evolução do uso do romanesco no cinema nos últimos anos foi o aumento do número de histórias ambientadas na periferia romana dos 165 anos 1990 e, consequentemente, o retorno do romanesco integral, como relatado no item 1.2.2.4. É neste contexto de periferia entendida como uma rede sociolinguística fechada (CICCOTTI, 2001, p. 313) que Verdone caracteriza Ivano e Jessica, incapazes de utilizar outra variedade que não o romanesco, independentemente da situação comunicativa em que se encontrem. No Capítulo 4, quisemos evidenciar alguns aspectos, como a identificação do continuum linguístico romano nas falas fílmicas analisadas. Observar e identificar a sua presença nos diálogos dos atores foi importante para a nossa pesquisa, pois nos ajudou a reconhecer as incursões de uma variedade para outra nos momentos de passagem de uma situação formal a uma situação informal e vice-versa. De fato, a partir dos vários exemplos apresentados na análise das falas, pudemos perceber como a falta de contraposição entre a língua italiana e o romanesco, bem como a pequena distância entre os vários níveis do repertório linguístico favorecem tais incursões dos falantes, dependendo da situação, como pudemos verificar nas falas de Pina (Roma città aperta), Bruno (Il sorpasso) e Giovannino (Viaggi di nozze). Outro aspecto que colhemos a partir da análise das falas fílmicas de Il sorpasso e Viaggi di nozze (no episódio de Giovannino) foi a distância entre a língua dos personagens masculinos – mais tendente ao regionalismo – e a língua dos personagens femininos – mais formal. Diferenças análogas foram encontradas também na língua dos personagens secundários: mais dialetal do que a dos protagonistas. Estas últimas características não se encontram em Roma città aperta devido ao desejo ideológico dos autores de colocar o dialeto em uma posição de igualdade com relação ao italiano e às outras línguas. Podemos, portanto, deduzir que, assim como não existe um único italiano falado, escrito ou transmitido, mas muitos ―italianos‖, também existirão vários tipos de fala fílmica. Contudo, como visto no item 3.1, reconhecemos algumas tendências gerais do cinema: a simplificação, a atenuação das variedades, a normalização linguística e a redução dos dialetos para maior compreensão por parte do público. Observar a presença do romanesco ao longo dos cinquenta anos de história do cinema e da sociedade italiana foi uma experiência ímpar, de grande contribuição para a compreensão da realidade sociolinguística romana que, intuitivamente, já tínhamos – e que se firmou com a leitura das obras dos autores apresentados no decorrer desse trabalho. Esperamos que a relevância desse estudo tenha sido demonstrada através da abordagem da relação entre língua italiana e dialetos no cinema, tendo como carro-chefe a sociolinguística, que permitiu a interpretação do retrato da sociedade italiana através da sétima arte. 166 Concluímos esta dissertação com a pretensão de que nosso trabalho possa servir de ―norte‖ para outras pesquisas no campo sociolinguístico e identitário italiano. 167 6 REFERÊNCIAS 1- ANTONUCCI, L. Rilevazioni demografiche generali sulla popolazione di Roma nel XVI secolo. In: CHERUBINI, P. Roma e lo Studium Urbis. Spazio urbano e cultura dal Quattro e Seicento. Roma: Quasar, 1989c. 2- BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: Parábola, 2007. 3- BATTISTI, C. La lingua e il cinema: impressioni. In: Lingua Nostra, XIII, 2. Firenze: Le Lettere, 1952, p. 29-34. 4- BERNHARD, G. Per una caratterizzazione fenomenologica variazionale del "romanesco di III fase‖. 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