Anne Perry

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Anne Perry
Esse é um livro produzido pela parceria dos grupos:
Projeto Democratização da Leitura e Projeto Revisoras Traduções.
Anne Perry
Série Pitt, Livro 04
O Beco dos Ressucitados
Título original: Resurrection Row
Um fato insólito sacode as ruas de Londres: vários cadáveres exumados aparecem
em diferentes pontos da cidade. O inspetor Pitt suspeita que esta macabra profanação de
tumbas não seja obra de um simples psicopata, porém uma cortina de fumaça para desviar
a atenção da polícia. O cadáver de um tal Godolphin, pintor de certa fama, acorda de
maneira especial seu interesse; pelo visto, é o único que não morreu por causas naturais.
Ao investigar a vida do finado artista, o inspetor Pitt e sua esposa Charlotte deverão entrar
nos mais sórdidos ambientes dos bairros pobres londrinos.
Para Meg, por toda sua ajuda.
Capítulo 1
A névoa formava redemoinhos na rua, espessa e rude, obscurecendo as distâncias e
turvando a luz que arrojavam os altos lampiões de gás. O ar, úmido e cortante, esfriava as
gargantas, mas não assim o entusiasmo que embargava aos espectadores que saíam em
turba do teatro, entre os quais havia quem e punha a entoar fragmentos improvisados de
alguma canção da nova ópera do Gilbert e Sullivan, O Mikado. Uma moça inclusive dava
saltos de um lado a outro imitando à pequena heroína japonesa, até que sua mãe lhe
recordou bruscamente que devia comportar-se com o decoro que sua família tinha direito a
esperar dela.
A duzentos metros de distância o senhor Desmond Cantlay e sua esposa se dirigiam
lentamente para o Leicester Square com o propósito de chamar uma carruagem de
aluguel; não tinham levado sua própria carruagem devido à dificuldade que era achar um
lugar adequado onde reunir-se com o cocheiro depois do espetáculo. Em uma noite de
janeiro como aquela ninguém desejava ter os cavalos parados ou dando voltas pela zona.
Era difícil conseguir dois que formassem um bom par realmente bom, assim não tinha
sentido pôr em perigo sua saúde de maneira desnecessária. As carruagens de aluguel
abundavam e estavam reunidas, como não podia ser de outro modo, à saída do teatro.
— Gostei — disse lady Gwendoline, deixando escapar um suspiro de prazer que se
converteu em um estremecimento quando uma espiral de névoa formou redemoinhos em
torno dela e a umidade lhe roçou o rosto. Tenho que comprar as partituras de algumas das
canções para tocá-las eu mesma; são realmente maravilhosas. Sobre tudo essa canção
que canta o herói. — Tomou ar, tossiu e a seguir cantou com voz muito doce: — "Sou um
histrião errante, feito de farrapos e remendos..." Como continuava, Desmond? Lembro-me
da melodia, mas não da letra.
Ele a pegou pelo braço e a afastou do meio-fio no momento em que uma carruagem
passava a seu lado rangendo e espalhando os excrementos depositados naqueles lugares
que tinham ficado sem limpar devido à retirada cedo do varredor.
— Não sei, querida. Tenho certeza de que figurará na partitura. Que noite mais rude;
passear é realmente desagradável. Temos que achar uma carruagem imediatamente. Por
aí vem uma. Espera aqui, que vou chamá-la.
Baixou ao meio-fio no momento em que um cabriolé aparecia entre a névoa; o cavalo
avançava com a cabeça encurvada, quase sem rumo, e o repicar de suas ferraduras ficava
amortecido pela umidade que cobria a rua.
— Vamos! — disse Desmond Cantlay com irritação. — O que lhe ocorre, homem?
Não quer levar passageiros?
O cavalo se deteve junto a ele e ergueu a cabeça, erguendo as orelhas ao ouvir a
voz.
— Chofer! — exclamou Desmond imperiosamente.
Não obteve resposta. O cocheiro permanecia imóvel na boléia, com as rédeas
frouxas sobre a barra e a gola do sobretudo levantada de tal modo que a maior parte de
seu rosto ficava coberto.
— Chofer! — repetiu Desmond, cada vez mais irritado. — Se não me equivoco está
livre, não é assim? Minha esposa e eu queremos ir ao Gadstone Park.
O homem continuou sem mover-se e sem segurar o cavalo, e este se movia
pausadamente, repousando primeiro sobre uma pata e logo sobre a outra e pondo em
perigo ao Gwendoline, que tratava de subir à carruagem.
— Por amor de Deus, homem! Ocorre-lhe algo? — Desmond estirou o braço, pegoulhe as abas do sobretudo e puxou com força. — Segure seu animal!
Com horror viu como o homem se inclinava para ele e, perdendo o equilíbrio, caía
enfraquecido da boléia e dava com seu corpo no chão, ante seus pés.
A primeira idéia que veio ao Desmond à cabeça foi que o homem tinha perdido o
sentido devido a um excesso de álcool. Não seria nem o único cocheiro que se protegia
das intermináveis horas exposto a aquela penetrante névoa ingerindo mais álcool de que
podia suportar. Compreendia-o perfeitamente, embora nem por isso deixasse de ser um
aborrecimento de mil demônios, e não tivesse sido porque Gwendoline podia ouvi-lo e ele
estava obrigado a conter a língua, teria soltado uma enxurrada de juramentos.
— Está bêbado — observou com exasperação.
Gwendoline avançou e o olhou.
— Não podemos fazer algo? — perguntou sem ter idéia do que podia ser esse algo.
Desmond se inclinou e pôs ao homem de barriga para cima no preciso momento em
que o vento removia a névoa e a luz da luz iluminava seu rosto.
Por terrível que pudesse parecer, saltava à vista que estava morto; mais ainda, que
estava há tempo morto. Ainda mais espantoso que a carne pálida e inchada era o
adocicado aroma da putrefação e os restos de terra que tinha no cabelo.
Por um instante reinou o silêncio, um instante bastante longo para tomar ar e fazer
um gesto de asco; então Gwendoline soltou um grito e agudo que a noite afogou
imediatamente.
Desmond ficou em pé lentamente, com o estômago revolto, e tentou interpor-se entre
ela e o corpo que se estendia sobre o pavimento. Achava que Gwendoline ia desmaiar e
mesmo assim não sabia o que fazer. Ao ver que lhe vinha em cima, segurou-a, mas seu
peso era tal que só com muita dificuldade conseguiu manter o equilíbrio.
— Socorro! — gritou desesperadamente. —Ajudem-me!
O cavalo estava acostumado ao indescritível bulício das ruas de Londres e não se
alterou pelo grito de Gwendoline. O grito do Desmond nem sequer o alterou.
Este voltou a gritar ao mesmo tempo em que procurava evitar que Gwendoline lhe
escorregasse das mãos e caísse ao sujo pavimento. Tinha que achar a maneira de livrarse do horror que tinha a suas costas antes que ela recuperasse a consciência e ficasse
completamente histérica.
Pareceram-lhe minutos os que passou rodeado pelas volutas de névoa em
companhia da impotente presença da carruagem, cujo silêncio só era rompido pela
respiração do cavalo. Finalmente ouviu uns passos e uma voz, e viu uma figura.
— O que ocorre? O que acontece? — Um homem enorme se materializou na névoa.
Levava um cachecol de lã e um casaco cujas abas se agitavam. — O que ocorreu?
Atacaram-os?
Desmond seguia sustentando a Gwendoline, quem por fim começava a avivar-se.
Olhou ao homem e viu um rosto carente de atrativo mas que refletia inteligência e senso
de humor. Visto no nimbo que formava a luz de gás, o homem não era enorme mas
simplesmente alto, e levava uma quantidade excessiva de roupas de abrigo, nenhuma das
quais parecia posta corretamente.
— Atacaram-os? — repetiu o homem.
Desmond fez um esforço por recuperar, na medida do possível, a serenidade.
— Não. — Agarrou a Gwendoline com mais força, beliscando-a sem querer. — Não,
mas... mas o cocheiro está morto. — limpou a garganta e tossiu ao notá-la fria como
consequência da névoa. — Acredito que está morto há certo tempo. Minha esposa
desmaiou. Se fosse amável de me ajudar, senhor, vou tentar reanimá-la; logo acredito que
deveríamos chamar à polícia. Suponho que se fazem encarregadas deste tipo de coisas. É
espantoso. A este pobre homem não pode deixar aqui.
— Eu sou a polícia — replicou o homem afastando o olhar para observar a forma que
jazia no chão.— Sou o inspetor Pitt. — Procurou distraidamente em seu bolso um
documento de identificação e tirou um canivete e um novelo de corda. Renunciando à
busca, inclinou-se junto ao cadáver e lhe tocou o rosto por um momento e a seguir a terra
que tinha no cabelo.
— Está morto... — comentou Desmond. — Inclusive... inclusive parece quase como
se o tivessem enterrado e... desenterrado.
Pitt ficou em pé e esfregou as mãos no flanco como se assim pudesse fazer
desaparecer a sensação que lhe tinha causado o contato com o cadáver.
— Sim, acredito que está certo. É terrível... realmente terrível.
Gwendoline, que havia voltado a si, ergueu-se e liberou Desmond de seu peso,
embora continuasse apoiada contra ele.
— Tudo vai bem, querida — se apressou a dizer ao mesmo tempo em que procurava
mantê-la de costas ao inspetor e o cadáver. — A polícia se tomará conta do assunto. — Ao
dizer isto, olhou com gesto severo ao Pitt tentando fazer com que suas palavras
parecessem uma ordem. Já ia sendo hora de que aquele homem fizesse algo mais útil que
limitar-se a lhe dar a razão a respeito do que era claro.
Antes que Pitt pudesse responder, uma mulher surgiu da escuridão, bela e com uma
calidez nas feições que se conservava apesar da umidade que inundava a rua aquela noite
de janeiro.
— O que ocorre? — Olhou ao Pitt.
— Charlotte — respondeu ele hesitante, sem saber por um instante quanto devia lhe
contar, — este cocheiro está morto. Parece que leva certo tempo sem vida. Terei que me
encarregar de tudo. — voltou-se para o Desmond. — Minha esposa, senhor... — Deixou a
frase inacabada.
— Desmond Cantlay. — A Desmond incomodou apresentar-se socialmente à esposa
de um policial, mas o inspetor não lhe tinha deixado nenhuma alternativa cortês. — E esta
é lady Cantlay — acrescentou com um leve gesto da cabeça em direção à Gwendoline.
— Muito prazer, senhor Cantlay — replicou Charlotte com surpreendente moderação.
— Lady Cantlay.
— Encantada — respondeu Gwendoline com um fio de voz.
— Seriam amáveis de me dar seu endereço? — perguntou Pitt. — É só se por acaso
se abre uma investigação. Tenho certeza de que desejam chamar outra carruagem e ir
para casa quanto antes.
— Sim — se apressou a admitir Desmond. — Sim... Vivemos no Gadstone Park, no
número vinte e três. — Queria fazer notar que não lhe seria possível colaborar em
nenhuma investigação, já que não conhecia homem nem tinha a menor ideia a respeito do
que lhe tinha ocorrido. Não obstante, no último momento compreendeu que o melhor seria
não tocar naquele assunto. O mero fato de poder partir já era motivo suficiente de
satisfação.
Até que ele e sua esposa se acharam em outra carruagem a caminho de casa não
reparou que a esposa do policial teria que voltar para sua casa só ou esperar junto a seu
marido que chegasse a carruagem do depósito de cadáveres para lhe acompanhar a ele e
ao cadáver. Talvez devesse haver-se oferecido a levá-la. Mas já era muito tarde, e o
melhor era esquecer aquele desagradável assunto o antes possível.
Charlotte e Pitt continuavam na rua ao lado do cadáver. Pitt não podia deixar partir
sozinha sua esposa com a névoa que fazia, mas tampouco podia deixar de vigiar o
cadáver. Voltou a procurar em seus bolsos e por fim achou seu apito. Fê-lo soar
energicamente algumas vezes.
— Como é possível que um cocheiro esteja morto há tanto tempo? — perguntou
Charlotte com voz calma.— O cavalo o teria levado a casa.
Pitt enrugou a fronte e franziu seu largo e curvada nariz.
— Isso seria o lógico.
— Como terá morrido? De frio? — Sua voz denotava pena.
Ele a acariciou com suavidade na face, um gesto que a confortaria mais do que ele
pudesse dizer em uma hora.
— Não sei — murmurou por fim. — Mas está morto há bastante tempo, talvez uma
semana ou mais. E tem terra no cabelo.
Charlotte empalideceu.
— Terra? — repetiu. — Em Londres? — Sem olhar ao cadáver, perguntou— : Como
morreu?
— Não sei. O forense...
Mas antes que tivesse tempo de expressar a idéia que tinha na cabeça, um agente
de polícia surgiu repentinamente da escuridão seguido pouco depois por outro. Pitt
explicou em poucas palavras o acontecido e lhes disse que se encarregassem de tudo.
Levou-lhe dez minutos para achar outra carruagem de aluguel, mas as onze e quinze ele e
Charlotte já estavam em casa.
Embora silenciosa, a casa estava quente depois do frio penetrante da rua. Jemima,
sua filha de dois anos, passava a noite com a senhora Smith, que vivia na casa de frente.
Charlotte tinha preferido deixá-la ali em lugar de despertá-la àquelas horas.
Pitt fechou a porta e deixou fora o mundo, os Cantlay, os cocheiros mortos e a névoa;
tudo exceto as notas de música que lhe recordavam o regozijo e a cor da ópera. Ao casarse com ele, Charlotte tinha renunciado sem pigarrear à comodidade e a posição social da
casa de seu pai. Esta era a segunda vez que tinha podido levá-la ao teatro, e portanto era
uma ocasião digna de celebrar-se. Tinha passado toda a noite olhando alternativamente o
cenário e o rosto de sua esposa, e o júbilo que tinha visto nela valia todos os esforços
econômicos realizados e todos os pennies economizados para a ocasião. Sorrindo,
apoiou-se contra a porta e a estreitou suavemente entre seus braços.
A névoa se transformou em chuva e esta em neve. Dois dias depois, Pitt estava
sentado em seu escritório da delegacia de polícia quando um sargento entrou com uma
careta de desgosto. Pitt ergueu a vista e perguntou:
— Do que se trata desta vez, Gilthorpe?
— Recorda o cocheiro morto que achou anteontem à noite, inspetor?
— O que acontece? — tratava-se de algo que Pitt teria preferido esquecer; era só
uma tragédia mais, e bastante habitual, salvo o tempo que levava morto o homem.
— Bom... — Gilthorpe carregou seu peso sobre o outro pé.— Pelo visto não era
cocheiro. Encontramos uma tumba aberta...
Pitt ficou gelado; em algum canto recôndito de sua mente temeu um algo quando
tinha visto aquele rosto torcido e tinha apalpado a úmida terra aderida ao cabelo; era algo
repugnante e indecente, mas não lhe tinha dado importância.
— A de quem? — perguntou com serenidade.
As feições do Gilthorpe se endureceram.
— A de um tal lorde Augusto Fitzroy-Hammond, inspetor.
Pitt fechou os olhos como se não vendo o Gilthorpe pudesse apagar o que este
acabava de dizer.
— Morreu faz apenas três semanas, inspetor. — A voz do Gilthorpe prosseguiu
inexoravelmente. — Foi enterrado faz quinze dias. Um funeral por toda regra, conforme
dizem.
— Onde? — inquiriu Pitt mecanicamente, seguindo adiante apesar de que sua mente
ainda tratava de escapar.
— No Saint Margaret, senhor. Apostamos um guarda, é claro.
— Para que? — Pitt abriu os olhos. — Que mal pode fazer alguém a uma tumba?
— É pelos olheiros, senhor — respondeu Gilthorpe sem alterar-se. — Alguém poderia
cair nela. É muito difícil sair de uma tumba. As paredes são muito altas e estão muito
úmidas nesta época do ano. Além disso o ataúde continua a estar ali — acrescentou
adotando uma postura firmeza para indicar que já tinha terminado e esperava ordens.
Pitt ergueu a vista e o olhou.
— Suponho que devo ir ver a viúva para que identifique o cadáver. — ficou em pé
soltando um suspiro. — Diga aos do necrotério que arrumem tudo o possível, de acordo?
Vai ser muito desagradável, tanto se for ele como se não for. Onde vive?
— No doze do Gadstone Park, inspetor. As casas por ali são todas majestosas; não
estranharia que fossem muito ricos.
— É possível — disse Pitt laconicamente. Curiosamente, o casal que tinha
encontrado o cadáver também vivia ali. Toda uma coincidência. — Muito bem, Gilthorpe.
Diga aos do necrotério que preparem a sua senhoria para a visita.
Agarrou seu chapéu e, depois de encasquetá-lo colocou o cachecol e saiu à rua,
onde continuava chovendo.
Tal como havia dito Gilthorpe, Gadstone Park era uma zona muito rica, formada por
grandes casas se separadas da rua e um elegante parque no centro onde cresciam louros,
rododendros e umas requintadas magnólias; ao menos isso pensou ver ao fixar-se em seu
raquítico aspecto invernal. A chuva havia tornado a dar passagem à borrasca, e a
escuridão do dia anunciava neve.
Estremeceu ao notar uma gota de água que lhe rolava pelo pescoço e escorria
friamente pelas costas. Por muitos cachecóis que pusesse, sempre tinha que lhe acontecer
aquilo.
O número doze era a clássica casa georgiana, com um meio-fio curva que se
estendia sob o portal da entrada. As dimensões lhe foram agradáveis. Apesar de que
desde sua infância como filho de um guarda-florestal nunca havia voltado a viver em um
lugar semelhante, satisfazia-o vê-lo. Aquelas casas agraciavam a cidade e proporcionavam
a todo mundo um motivo para sonhar.
Ao ver que uma rajada de vento sacudia um enorme louro situado ao lado da porta e
cobria a ele de água, enfiou o chapéu ainda mais. Tocou à campainha e aguardou.
Abriu a porta um lacaio vestido de negro. Pitt pensou fugazmente que aquele homem
não tinha atendido a sua verdadeira missão na vida: a natureza o tinha destinado para ser
coveiro.
— Sim... senhor? — O tom evidenciou uma leve vacilação. O lacaio tinha reconhecido
a um homem de classe inferior e o tinha classificado imediatamente entre as pessoas que
deviam ir à porta de serviço.
Pitt estava mais que habituado a aquela classe de olhares, por isso não o
surpreendeu. Não tinha tempo para joguinhos de engenho e era menos cruel dar a notícia
sem rodeios, sem deixar que se abrisse caminho pouco a pouco através da hierarquia dos
criados.
— Sou o inspetor Pitt, da polícia. Venho por um assunto relacionado com a tumba do
falecido lorde Augusto Fitzroy-Hammond. Cometeu-se uma atrocidade. Desejaria falar com
lady Fitzroy-Hammond a fim de resolver este assunto o mais rápida e discretamente
possível.
O lacaio se sobressaltou e abandonou sua fúnebre compostura.
— Entre... entre, por favor.
Pôs-se a andar e Pitt o seguiu, muito desconfortável ante o encontro que devia
confrontar para agradecer ainda o calor da casa. O lacaio o conduziu à sala das manhãs e
deixou— o, possivelmente para comunicar ao mordomo a terrível noticia e lhe transferir a
responsabilidade da próxima decisão.
Pitt não teve que esperar muito tempo. Lady Fitzroy-Hammond entrou na sala com o
semblante pálido e se deteve logo que cruzado a soleira. Pitt esperava uma mulher muito
mais velha; o cadáver aparentava ao menos sessenta anos, possivelmente mais;
entretanto, aquela mulher não podia ter mais de vinte. Nem sequer o negro do luto
conseguia ocultar a cor e a textura de sua pele ou o ar hesitante de seus movimentos.
— Diz que se cometeu uma... atrocidade, senhor...? — perguntou com voz calma.
— Inspetor Pitt, senhora. Assim é. Lamento-o muito. Alguém violou a tumba. — Não
havia forma agradável de dizê-lo, nem delicadeza com que dissimular o repugnante do ato.
— De qualquer modo encontramos o cadáver, e nós gostaríamos que nos confirmasse se
é o de seu finado marido.
Por um momento Pitt temeu que a mulher fosse desmaiar. Tinha sido uma estupidez
de sua parte; talvez devesse ter esperado que estivesse sentada, talvez inclusive que a
acompanhasse uma criada.
Avançou com ideia de sustentá-la se se desabava, mas ao ver que o olhava com
expressão de alarme, sem compreender o que estava fazendo, deteve-se, consciente de
que temia sua proximidade física.
— Quer que chame a sua criada? — disse com serenidade ao mesmo tempo em que
deixava cair as mãos.
— Não — respondeu ela com um gesto de negação. Continuando, fazendo um
esforço por dominar-se, passou lentamente por seu lado em direção ao sofá. — Obrigada,
estou perfeitamente bem. — Respirou fundo. — É realmente necessário que vá A...?
— A menos que haja algum parente próximo... — respondeu ele, desejando poder
responder de outra maneira. — Possivelmente um irmão O...— Esteve a ponto
de
acrescentar "filho", mas percebeu que seria uma falta de tato. Não sabia se se tratava da
segunda esposa do falecido. De fato, esqueceu-se de lhe perguntar ao Gilthorpe a idade
de sua senhoria.
— Não — respondeu ela. — Só há Verity, a filha de lorde Augusto, e sua mãe, é
claro, mas é uma anciã e está um pouco inválida. Irei eu. Pode me acompanhar minha
criada?
— Sim, é claro. Será preferível que assim seja.
Lady Fitzroy-Hammond ficou em pé e puxou o cordão da campainha. Quando
apareceu a criada, pediu-lhe que dissesse a sua criada que trouxesse sua capa e se
preparasse para sair à rua. Depois de ordenar que tirassem a carruagem, voltou-se para o
Pitt e perguntou:
— Onde... onde o acharam?
Não tinha sentido lhe contar os detalhes. Tanto se o tivesse amado como se se
casara com ele por conveniência, não era necessário que se inteirasse do ocorrido à saída
do teatro.
— Em um cabriolé, senhora.
Ela enrugou o rosto.
— Em um cabriolé? Mas... por que?
— Não sei.
Ao ouvir vozes no vestíbulo, abriu-lhe a porta, acompanhou-a fora e Ajudou-a a subir
na carruagem. Ela não fez mais perguntas, e durante o trajeto até o necrotério
permaneceram em silêncio, enquanto a criada retorcia as luvas com as mãos e evitava
inclusive dirigir um olhar fortuito ao inspetor.
A carruagem se deteve e o lacaio estendeu uma mão a lady Fitzroy-Hammond para
que descesse. A criada e Pitt o fizeram sem ajuda de ninguém. O edifício do necrotério
estava no final de um curto atalho ladeado por árvores nuas de onde caíam gotas de água
estremecedoramente gélidas e que salpicavam de maneira incessante e infeliz cada vez
que o vento as arrastava.
Pitt tocou à campainha. Um homem jovem de rosto rosado abriu a porta
imediatamente.
— Somos o inspetor Pitt e lady Fitzroy-Hammond. — Pitt se fez a um lado para deixála passar.
— Ah, bom dia, bom dia. — Alegremente, o jovem os fez entrar e conduziu-os pelo
vestíbulo até uma habitação cheia de macas discretamente tampadas com lençóis. —
Você deve estar atrás da pista do número quatorze. — Seu rosto resplandecia de orgulho
profissional.
Ao lado da maca havia uma cadeira provida de uma bacia, presumivelmente para os
casos em que os familiares de visita se sentissem indispostos, e uma jarra de água e três
copos sobre uma mesa situada ao fundo da sala.
A criada tirou seu lenço por precaução e Pitt se preparou para prestar ajuda física se
fosse o caso.
— Com efeito. — O jovem ajustou os óculos sobre o nariz e afastou o lençol para
descobrir o cadáver. Tinham-lhe tirado a roupa e penteado o escasso cabelo que
conservava, apesar do que continuava oferecendo um aspecto repelente. A pele, coberta
de manchas, tinha começado a desprender-se em algumas partes e o aroma era muito
intenso e repugnante.
Lady Fitzroy-Hammond se cobriu a rosto com as mãos, deu um passo para trás e
derrubou a cadeira. Pitt a levantou com presteza e a criada ajudou sua senhora a sentarse. Ninguém disse nada.
O jovem voltou a jogar o lençol sobre o cadáver e atravessou a sala apressadamente
em busca de um copo de água. Fê-lo com a mesma imperturbabilidade como se se
tratasse de um acontecimento cotidiano. Provavelmente o era. Voltou e o entregou à
criada, quem o segurou diante de sua senhora.
Esta bebeu um gole e o segurou com ambas as mãos, mostrando a brancura dos nós
dos dedos.
— Sim — disse a meia voz— , é meu marido.
— Obrigado, senhora — respondeu Pitt sobriamente. Aquilo não punha fim ao caso,
embora com toda probabilidade era tudo o que chegaria a saber sobre ele. Embora o
roubo de tumbas fosse, naturalmente, delito, não nutria esperanças de averiguar quem era
o responsável por aquela indecência e o motivo da mesma.
— Sente-se bem para ir-se? — perguntou. — Tenho certeza de que estará mais
cômoda em casa.
— Sim, obrigado.
Ficou em pé, teve um momento de fraqueza e a seguir, seguida de perto pela criada,
avançou sem muita firmeza em direção à porta de saída.
— Isso é tudo? — inquiriu o jovem com voz um pouco mais baixa mas ainda
sadiamente alegre. — Posso classificá-lo já como "identificado" e dar ordem de que o
enterrem?
— Sim, pode fazê-lo. Chama-se lorde Augusto Fitzroy-Hammond. Certamente a
família o informará sobre que preparativos deseja — respondeu Pitt. — O cadáver não tem
nada estranho, suponho.
— Nada absolutamente — respondeu o jovem animadamente. As mulheres já tinham
saído e não podiam ouvi-lo.— Faleceu faz três semanas e já tinha sido enterrado. Imagino
que você está à corrente de tudo isto. — Meneou a cabeça e teve que ajustar os óculos.
— Não compreendo que motivo pode ter alguém para fazer algo assim... Refiro-me a
desenterrar a um morto. Nem sequer realizou a cirurgia ou algo parecido, como
costumavam fazer os estudantes de medicina ou os magos de magia negra. O cadáver
está intacto.
— Não tem nenhuma marca? — Pitt não sabia por que perguntava aquilo. Não
esperava que o cadáver as tivesse. Tratava-se de um simples caso de profanação, nada
mais. Tê-lo-ia feito algum transtornado de mente retorcida.
— Nenhuma — lhe assegurou o jovem. — Um cavalheiro de idade avançada, bem
cuidado, bem alimentado, um pouco entrado em carnes, mas não mais que as pessoas de
sua idade. De mãos suaves e muito limpas. Jamais tinha visto um lorde morto, ao menos
que eu saiba, mas tem exatamente o mesmo aspecto que esperava.
— Obrigado — disse Pitt. — Em tal caso não há muito mais que eu possa fazer.
O inspetor assistiu ao segundo enterro por uma questão de rotina. Havia a
possibilidade de que o responsável pela atrocidade fosse ver o efeito que sua ação tinha
tido sobre a família. Possivelmente aquele fora o motivo, um ódio latente que ainda não
tinha achado desafogo, nem sequer através da morte.
Naturalmente, tudo se levou a cabo com discrição; evita-se levantar revoo ao enterrar
uma pessoa pela segunda vez. Apesar disso, reuniu-se um considerável número de
pessoas para apresentar seus respeitos, talvez por condolência pela viúva mais que por
render uma nova homenagem ao finado. Foram todos vestidos de luto e suas carruagens
traziam fitas negras. Avançaram em procissão até a tumba e ali ficaram, com a cabeça
curvada sob a chuva. Só um homem cometeu a insensatez de levantar a gola do capote
para maior comodidade. Todos os outros passaram por cima o gesto fingindo que não
tinha tido lugar. O que supunha o pequeno aborrecimento de umas gotinhas frias
escorregando pelo pescoço quando se enfrentava a solenidade da morte?
O homem que levantou a gola do capote era magro, mediria uns cinco centímetros
acima da média mostrava nos cantos de seus delicados lábios as profundas rugas próprias
de uma pessoa com senso de humor. Era um rosto caracterizado pela ironia, de
sobrancelhas bicudas; sua expressão, entretanto, não evidenciava a menor jovialidade.
O policial que vigiava a zona se achava ao lado do Pitt para lhe indicar qualquer
pessoa que fosse desconhecida.
— Quem é esse homem? — murmurou Pitt.
— O senhor Somerset Carlisle, inspetor — respondeu o agente. — Vive no parque,
no número dois.
— A que se dedica?
— É um cavalheiro, senhor.
Pitt não insistiu. Inclusive os cavalheiros tinham de vez em quando ocupações fora de
seu âmbito social; de qualquer modo não tinha importância.
— Aquela é lady Alicia Fitzroy-Hammond — prosseguiu o agente ociosamente. —
Tudo isto é muito triste. Contraíram matrimônio faz só uns anos, conforme soube.
Alicia estava pálida, mas bastante serena; provavelmente sentia alívio de que todo
aquele assunto chegasse virtualmente a seu fim. A seu lado, também completamente de
negro, havia uma mulher mais jovem, de uns vinte anos, com o cabelo castanho mel, e os
olhos baixos como era de rigor.
— Miss Verity Fitzroy-Hammond — se apressou a lhe informar o agente. — Uma
jovem senhorita muito agradável.
Pitt não considerou necessário responder. Seu olhar passou ao homem e a mulher
que estavam atrás da jovem. Ele era robusto, provavelmente teria tido um físico atlético em
sua juventude, e não parecia sentir-se incômodo de pé. Tinha a testa limpa, o nariz largo e
reto e, se não fosse por certo defeito que tinha na boca, seu aspecto seria muito agradável.
Em todo caso se tratava de um homem de aparência agradável. A mulher que havia a seu
lado tinha uns bonitos olhos escuros e o cabelo negro com uma maravilhosa mecha
prateada que lhe caía da têmpora direita.
— Quem são aquele homem e aquela mulher? — perguntou Pitt.
— Lorde e lady St. Jermyn — respondeu o agente com um tom mais alto do que Pitt
teria desejado. Com o silêncio que reinava no cemitério, inclusive a queda da chuva era
audível.
O enterro chegou a seu fim e, um a um, todos os assistentes foram dando meia volta
para partir. Pitt reconheceu ao senhor Desmond Cantlay e a sua esposa, a quem
recordava da saída do teatro, e confiou em que tivessem tido o tato de não mencionar a
parte que lhes havia tocado naquela questão. Era possível que o tivessem tido; o senhor
Desmond Cantlay lhe tinha parecido uma pessoa não carente de consideração.
O último assistente a sair, acompanhado por um homem bastante corpulento de rosto
amável e pouco atraente, foi uma anciã alta e magra de porte majestoso e uma dignidade
quase imperial. Inclusive os coveiros titubearam e se tocaram a aba do chapéu enquanto
aguardavam que se afastasse para começar seu trabalho. Pitt a viu claramente só por um
momento, mas com isso lhe bastou. Conhecia aquele nariz largo e aqueles olhos
brilhantes com pálpebras avultadas. Em seus oitenta anos ainda tinha mais beleza que a
maioria das mulheres jamais chega a possuir.
— Tia Vespasia. — A surpresa o fez esquecer as circunstâncias e exclamar em voz
alta.
— Perdão, senhor? — perguntou o agente.
— A última senhora em ir-se era lady Cumming-Gould, não é? — disse Pitt voltandose para ele.
— Sim, senhor. Vive no número dezoito. Mudou-se aqui no outono. O ancião senhor
Staines morreu em fevereiro de 1885, quer dizer, faz quase um ano. Lady Cumming-Gould
comprou a casa nos finais do verão.
Pitt se lembrava perfeitamente do verão anterior. Tinha sido então, durante o
escândalo do Paragon Walk, quando tinha conhecido a Vespasia, a tia avó de Emily, a
irmã do Charlotte. Melhor dizendo, era a tia do marido do Emily, Lorde George Ashworth.
Não esperava voltar a vê-la, mas se lembrava do muito que tinha gostado de sua
mordacidade e sua desconcertante franqueza. De fato, se Charlotte tivesse contraído
matrimônio acima de seu nível social em lugar de por baixo, teria cabido a possibilidade de
que com o tempo se convertesse em uma anciã igualmente devastadora.
O agente o estava olhando de cima abaixo, com expressão de cepticismo.
— Então a conhece, inspetor?
— Por outro caso. — Pitt preferiu não dar explicações. — Viu a alguém que não vive
no parque ou que não seja conhecido da viúva ou a família?
— Não, não vi a ninguém exceto às pessoas que alguém esperaria ver.
Possivelmente os ladrões de tumbas não retornam ao lugar do crime ou possivelmente
retornam de noite.
Pitt não estava de humor para sarcasmos, e menos ainda se estes vinham de um
agente de ronda.
— Talvez devesse postá-lo aqui, agente — disse com mordacidade. — No caso de...
Escureceu o rosto do agente, mas voltou a iluminar-se assim que deduziu que Pitt só
estava usando seu engenho.
— Se pensar que servirá para algo, inspetor... — respondeu friamente.
— Só para constipar-se — replicou Pitt. — vou apresentar meus respeitos lady
Cumming-Gould. Fique aqui vigiando o resto da tarde — acrescentou com malícia —, se
por acaso vem alguém lançar uma olhada.
O agente soltou um grunhido e o transformou em um espirro bastante ineficaz.
Pitt se afastou e, apertando o passo, alcançou a tia Vespasia. Ela não fez conta. Não
se fala com os criados durante um funeral.
— Lady Cumming-Gould — disse com clareza.
Ela se deteve e se voltou lentamente, disposta a fulminá-lo com o olhar. Então viu
algo em sua estatura e na maneira em que as abas de seu casaco se agitavam que lhe era
familiar. Procurou seus óculos e os segurou diante dos olhos.
— Deus santo! Thomas! Que demônios faz você aqui! OH, claro... Suponho que está
procurando à pessoa que desenterrou ao pobre Gussie. Não consigo entender que alguém
possa fazer algo semelhante. É verdadeiramente repugnante. Não supõe mais que
trabalho para todo mundo e é de qualquer ponto desnecessário. — Olhou-o de cima
abaixo. — Não parece ter mudado absolutamente, se excetuarmos que leva mais roupa
em cima. Não pode pôr algo que se harmonize? Onde comprou esse espantoso cachecol?
Emily teve um filho, sabia? Claro, como não iria saber? Chamará Edward, como seu pai.
Melhor esse nome que George: é um chateio chamar um menino igual a seu pai; nunca se
sabe de qual dos dois se está falando. Como está Charlotte? Diga-lhe que me chame;
morro de aborrecimento com a gente que vive no parque. A única exceção é esse
americano com cara de bolo. É o homem menos bonito que conheço, mas é realmente
encantador. Não tem a menor ideia de como em que comportar-se, apesar de ser mais rico
que Creso. — Em seus olhos brilhou uma faísca de ironia. — Não sabem o que fazer com
ele, se mostrarem-se atentos com ele por causa de seu dinheiro ou fugir de seu trato
devido a suas maneiras. Espero sinceramente que fique.
Pitt sorriu apesar de que a chuva lhe caísse pelo pescoço e de que as molhadas
barras da calça grudavam aos tornozelos.
— Transmitirei a Charlotte sua mensagem — disse fazendo uma pequena inclinação
— adorará saber que a vi e que se encontra bem.
— É claro! — exclamou tia Vespasia soltando um grunhido. — Diga-lhe que venha
cedo, antes das duas. Desse modo não se encontrará com nenhuma das pessoas que
vêm me visitar, que não têm outra coisa que fazer que competir com seus vestidos.
Tia Vespasia guardou os óculos e desceu rapidamente pelo atalho, sem dar
importância que as saias do vestido se manchassem de barro.
Capítulo 2
No domingo, Alicia Fitzroy-Hammond se levantou como de costume, passadas as
nove, e tomou um ligeiro café da manhã de torradas e geléia de damasco. Verity já tinha
tomado o café da manhã e agora estava escrevendo cartas na sala das manhãs. A viúva
lady Fitzroy-Hammond, mãe de Augusto, tomaria o café da manhã em seus aposentos,
como sempre. Embora houvesse dias em que se levantava, o normal era que não o
fizesse. Permanecia na cama com seu xale índio bordado sobre os ombros e relia suas
velhas cartas, que compreendiam um período de sessenta e cinco anos e se remontavam
a quando tinha completado os dezenove, em 12 de julho, exatamente cinco anos depois da
batalha do Waterloo. Seu irmão tinha sido alferes do exército do Wellington e seu segundo
filho tinha morrido na Crimea. A anciã também conservava velhas cartas de amor escritas
por homens falecidos muito tempo atrás.
De vez em quando ordenava a sua criada, Nisbett, que descesse para ver o que
acontecia na casa. Pedia uma lista de todas as visitas, quando chegavam e quanto tempo
ficavam, se deixavam cartão e, sobre tudo, como estavam vestidas. Alicia tinha aprendido
a aguentar. Entretanto, o que ainda considerava intolerável, eram as constantes inspeções
da marcha da casa que levava a cabo Nisbett, quem passava o dedo pelas superfícies
para ver se tirava o pó todos os dias e abria o armário da roupa branca às escondidas para
contar os lençóis e as toalhas e comprovar se todos os cantos estavam engomados e
cerzidos.
No domingo era um dos dias em que a velha senhora se levantava. Gostava de ir à
missa. Sentava-se no banco da família e via entrar e sair a todo mundo. Embora fingisse
surdez, em realidade tinha um ouvido excelente. Preferia não falar, exceto quando queria
alguma coisa, e o fato de que não a entendesse, circunstância que se dava de vez em
quando, talvez não fosse um desacerto.
Também ia vestida de negro. Apoiando-se pesadamente sobre sua bengala, entrou
na sala de refeições e golpeou fortemente a porta para chamar a atenção da Alicia.
— Bom dia, sogra — disse esta. — Me alegro de que se sinta com forças para
descer.
A velha dama se aproximou da mesa e, enquanto esperava a que onipresente Nisbett
lhe aproximasse uma cadeira, posou um olhar de desagrado no aparador.
— É isso tudo o que há para tomar no café da manhã? — resmungou.
— O que gostaria de tomar no café da manhã? — A educação recebida por Alicia
durante toda sua vida tinha estado encaminhada a um único objetivo: ser cortês em todas
as situações.
— Já é muito tarde — disse a anciã friamente. — Terei que me arrumar com o que
há. Nisbett, me sirva uns ovos e algo desse presunto e esses rins, e me passe as torradas.
Imagino que irá a missa esta manhã Alicia.
— Sim, sogra. Você também vai?
— Jamais falto à missa, a menos que esteja muito doente para me pôr em pé.
Alicia não se deu ao trabalho de responder. Nunca tinha conseguido saber com
exatidão que doença sofria a anciã, se é que sofria alguma realmente. O médico a visitava
regularmente e lhe dizia que tinha o coração fraco, para o qual lhe receitava digitalina. Não
obstante, Alicia pensava que não se tratava mais que da idade e o desejo de que lhe
prestassem atenção e obediência. Augusto sempre a tinha atendido, possivelmente devido
a um costume adquirido ao longo de toda uma vida e ao fato de que detestava as
desavenças.
— Imagino que você também virá — disse a anciã com as sobrancelhas erguidas
antes de levar uma enorme porção de ovos à boca.
— Sim, sogra.
A anciã assentiu com a cabeça, pois tinha a boca cheia.
Chamaram a carruagem às dez e meia, e Alicia, Verity e a anciã receberam, uma a
uma, ajuda para subir a ela, a mesma que receberam mais tarde para descer quando
chegaram à igreja do St. Margaret, onde durante mais de cem anos a família tinha
ocupado seu próprio banco. Que se soubesse, ninguém que não fosse um FitzroyHammond se sentara nele.
Chegaram cedo. À anciã gostava de sentar-se no fundo da igreja e ver chegar a
todos os assistentes e depois, quando faltava um minuto para as onze, ir ao banco. Aquele
domingo não seria uma exceção. Tinha sobrevivido às mortes dê todos seus parentes
carnais, exceto Verity, com a suprema serenidade que exigia a um aristocrata. O segundo
enterro de Augusto não tinha por que supor nenhuma diferença.
Dois minutos antes das onze se levantou e abriu a marcha em direção ao banco
familiar. Ao chegar se deteve em seco: tinha ocorrido algo inconcebível. Já havia alguém
sentado nele, um homem que, com a gola do capote levantado, estava inclinado em
atitude de oração.
— Quem é você? — replicou-lhe a anciã. — Vá-se daqui, senhor! Este banco
pertence a minha família.
O homem nem se alterou.
A anciã golpeou sua bengala fortemente contra o chão para chamar a atenção do
desconhecido.
— Faça algo, Alicia! Fale com ele!
Alicia passou a seu lado com dificuldade e tocou ao homem suavemente no ombro.
— Desculpe...
O homem cambaleou, caiu de lado e ficou deitado no banco de barriga para cima.
Alicia gritou. Inconscientemente sabia que a anciã o reprovaria, e também os
paroquianos, mas o grito lhe saiu da garganta sem que ela pudesse remediá-lo. Era
Augusto uma vez mais, com seu rosto de morto, branco e exânime, olhando-a boquiaberto
do banco de madeira. As cinzas colunas de pedra oscilaram em torno dela; ouviu sua
própria voz, que continuava gritando como se de um som imaterial se tratasse. Desejava
que cessasse, mas não tinha domínio sobre ela. A escuridão desceu sobre ela, e teve a
impressão de que alguém lhe segurava os braços e lhe dava tapinhas nas costas.
Não teve consciência de nada mais até que abriu os olhos e se achou deitada na
sacristia. O vigário, pálido e suarento, achava-se acocorado junto a ela, agarrando-lhe a
mão. A porta estava aberta e o vento entrava na sala em rajadas, como se fosse um rio
gelado. A anciã se achava em frente do vigário, com o rosto escarlate e suas negras saias
estendidas em torno de si como se fossem um globo amarrado a terra.
— Vamos, vamos — dizia o vigário com tom de preocupação. — sofreu uma terrível
comoção, querida senhora. Realmente terrível. Não sei aonde iremos parar se se permite
que os loucos continuem soltos entre nós. Vou escrever aos jornais e a meu representante
no Parlamento. Tem que fazer-se algo. Isto é intolerável. — Tossiu e voltou a lhe dar
tapinhas na mão. — E também vamos rezar todos, é claro. — A posição lhe era já muito
incômoda e começava a sentir cãibras nas pernas. Levantou-se. — mandei que
chamassem o médico para que atenda a sua desventurada sogra. O doutor McDuff, não
é? Estará aqui em seguida. É uma lástima que não estivesse entre os paroquianos. — Sua
voz denotava certa recriminação. Sabia que o doutor McDuff era escocês e presbiteriano,
algo que ele desaprovava energicamente. Um médico atribuído a uma zona como aquela
não tinha direito a ser um inconformista.
Alicia fez um esforço para sentar-se. Os primeiros pensamentos que foram a sua
cabeça não foram dirigidos à anciã, mas à Verity. Até esse momento a jovem nunca tinha
estado em presença da morte, e Augusto era seu pai, apesar de não terem tido uma
relação estreita.
— Verity... — balbuciou com a boca seca. — Como está Verity?
— Não se agite, senhora!
A possibilidade de uma crise de histeria inquietava ao vigário. Não tinha idéia de
como fazer frente a aquela situação, e menos ainda na sacristia de sua igreja. A missa da
manhã já era um completo desastre; os paroquianos foram para casa ou ficaram
aguardando sob a chuva, impelidos pela curiosidade de ver a última e horripilante parte
daquele episódio. Chamou-se à polícia para que acudisse diretamente ali, à igreja, e o
assunto se converteu em um escândalo sem remédio. O vigário desejava vivamente ir para
casa e almoçar; ali arderia o fogo na lareira e teria a companhia de uma governanta
sensata que sabia guardar as emoções para si.
— Minha querida senhora — prosseguiu o vigário —, por favor, tenha a certeza de
que a senhorita Verity foi atendida com o maior esmero. Lady Cumming-Gould a levou a
casa em sua carruagem. Estava realmente consternada, é claro; quem não o estaria,
espantoso que foi tudo... Não obstante devemos aguentar estas cargas com a confiança
de que a graça de Deus nos assiste. OH! — Algo próximo à satisfação iluminou seu rosto.
A gorda figura do doutor McDuff acabava de entrar na sacristia e tinha fechado a
porta de um golpe. Por fim o vigário poderia declinar sua responsabilidade, talvez inclusive
transferi-la por completo. Ao fim e ao cabo, o médico devia ocupar-se dos vivos, enquanto
que ele tinha a obrigação de cuidar dos mortos, já que ninguém mais estava capacitado
para tal mister.
O doutor McDuff se aproximou da anciã, desentendendo-se das outras duas pessoas
pressentes. Agarrou-lhe o pulso, tomou-o durante uns segundos e a seguir lhe olhou o
rosto.
— Uma comoção — diagnosticou laconicamente —, uma grave comoção. Aconselhoa que volte para casa e tome todo o descanso necessário. Que lhe levem todas as
refeições à cama, e que não receba visitas, exceto as dos familiares mais próximos, e nem
sequer estas se você não o desejar. Não realize esforços e evite desgostar-se por
qualquer motivo.
O rosto da velha dama se relaxou de satisfação e o intenso rubor que o coloria cedeu
ligeiramente.
— Bem — disse ao mesmo tempo em que ficava em pé com ajuda do médico. —
Tinha certeza de que você saberia o que fazer. Já não posso mais... Não sei aonde iremos
parar. Nunca vi coisa igual em minha juventude. Uma pessoa sabia qual era seu lugar e
não se movia dele. A pessoa estava muito ocupada trabalhando para ir por aí profanando
tumbas. Hoje em dia se educa às pessoas equivocadamente; essa é a origem do
problema. Agora têm interesses e apetites que não lhes valem para nada. Não é normal!
Veja o que aconteceu aqui! Inclusive a igreja deixou de ser um lugar seguro! É pior que se
os franceses nos tivessem invadido! — concluiu e pôs-se a andar coxeando. Ao sair deu
um furioso golpe com sua bengala à porta.
— Pobre senhora — murmurou o vigário. — foi uma comoção espantosa para ela, e
na sua idade, além disso, quando já deveria haver ganhado uma pausa dos pecados do
mundo...
Alicia continuava sentada no banco da sacristia exposta ao frio. De repente tomou
consciência da grande aversão que sentia pela a anciã. Não conseguia recordar nem um
momento desde que tinha contraído matrimônio com Augusto em que se sentiu confortável
com ela. Até agora o tinha oculto a si mesma, pelo bem de seu marido, mas já não havia
necessidade disso. Augusto estava morto.
Subitamente se lembrou do cadáver que tinha visto sobre o banco e sobre a tábua do
gélido necrotério, e daquele homenzinho vestido de branco que não deixava de mostrar
sua repulsiva alegria em sua sala cheia de cadáveres. Graças a Deus, o policial ao menos
se comportara com mais sobriedade; de fato tinha dado mostras, a sua maneira, de uma
grande discrição.
Como se o tivesse chamado com o pensamento, a porta se abriu e Pitt entrou na
sacristia, meneando-se como se tratasse de um cão grande e molhado, salpicando água
das abas e das mangas de seu casaco. Alicia não recordava que a polícia tinha que vir, e
agora se amontoaram em sua mente todo tipo de pensamentos desagradáveis. Por quê?
Por que havia tornado a levantar-se Augusto de sua tumba como se fosse uma pertinaz e
indecente lembrança de seu passado que a impedisse de entrar no futuro? Seu futuro
parecia tão adulador... Tinha conhecido novas pessoas, especificamente a um homem,
magro, elegante e com todo o bom humor e o encanto de que Augusto carecia. Talvez em
sua juventude tivesse contado com tais virtudes, mas não o tinha conhecido então. Ela
queria dançar, fazer brincadeiras corriqueiras, cantar algo no cravo que não fossem hinos
e baladas solenes. Queria apaixonar-se, dizer coisas extravagantes e divertidas, ter um
passado digno de ser recordado, como o da anciã, que se dedicava a repassar sua
juventude mediante a leitura de centenas de cartas. Sem dúvida haveria tristeza nelas,
mas também paixão, se é que havia algo de verdade no que dizia quando relatava seu
conteúdo.
O policial a olhou fixamente com seus brilhantes olhos cinza. Era a criatura de
aspecto mais desalinhado que jamais tinha visto, até o ponto de que seu direito a entrar na
igreja resultasse discutível.
— Lamento-o — disse Pitt com voz calma. — Achava que o assunto tinha ficado
concluído.
Não ocorreu nenhuma resposta a Alicia.
— Conhece alguma pessoa capaz de fazer isto? — prosseguiu.
Ela ergueu a vista para olhá-lo no rosto e todo um abismo de terror se abriu ante ela.
Tinha dado como claro que seria um delito anônimo, obra de vândalos de má estirpe.
Tinha ouvido falar de roubos de tumbas, de ladrões de cadáveres, mas agora compreendia
que aquele polícia pensava que o ocorrido poderia tratar-se de algo pessoal e dirigido
expressamente contra Augusto ou inclusive contra ela.
— Não! — respondeu, e se fez um nó na garganta. Engoliu em seco e acrescentou:
— Não, é claro que não. — Podia sentir o sufoco que lhe acalorava o rosto. O que
pensaria o resto das pessoas? Tinham aberto a tumba de Augusto em duas ocasiões;
alguém parecia não estar disposto a que o finado descansasse ou, em outras palavras,
que ela se esquecesse dele.
Quem podia querer algo semelhante? A única pessoa que lhe ocorria era a anciã.
Certamente lhe irritaria saber que ela podia voltar a casar-se tão rapidamente... e além
disso, por amor desta vez.
— Não tenho a menor ideia — disse com toda a calma possível. — Se Augusto tinha
inimigos nunca me falou deles; e me é difícil imaginar que alguém que ele conhecesse
possa ter feito algo semelhante, quaisquer sejam seus sentimentos.
— Sim. — Pitt fez um gesto de assentimento. — O ocorrido sai de uma vingança
normal... Aqui faz um frio terrível; será melhor que volte para casa, entre em calor e vista
algo. Não há nada que possa fazer agora. Encarregar-nos-emos do assunto e nos
ocuparemos de que cuidem do corpo decentemente.
Acredito que seu vigário já ordenou que se tomassem medidas necessárias. —
dirigiu-se à porta, mas antes de sair se voltou e acrescentou: — Suponho que está
completamente certa de que se tratava de seu marido. Viu seu rosto com clareza, não é?
Não seria outra pessoa?
Alicia negou com a cabeça. Podia ver ante si o cadáver, com sua pele cinzenta, mais
real que as frias paredes da sacristia.
— Era Augusto, senhor Pitt. Não tenho nenhuma dúvida a respeito.
— Obrigado, senhora. Lamento-o profundamente. — Saiu e fechou a porta.
Uma vez fora, Pitt se deteve um momento para observar aos paroquianos que ainda
não se foram, todos quem afetavam atitudes de condolência ou fingiam achar-se naquele
lugar por acaso e estar a ponto de seguir seu caminho. Seguidamente continuou andando
pelo atalho e saiu à rua. O Ocorrido tinha afetado-o mais do que a relativa seriedade do
delito justificava. Embora todos os dias aconteciam coisas muito piores (surras, extorsões
e assassinatos), este caso tinha um componente de desumana indecência que perturbava
a parte de sua mente que previamente tinha permanecido em silêncio, aquela que dava
por sentado que ao menos a morte era intocável.
Por que demônios alguém quereria continuar desenterrando o cadáver de um ancião
aristocrata cuja morte tinha sido perfeitamente natural? Ou acaso se tratava de uma
retorcida embora inescapável maneira de dizer que esta não tinha sido assim? Cabia supor
que lorde Augusto tinha sido assassinado e que alguém sabia?
Depois da segunda profanação Pitt não podia passar por cima aquela questão. Não
podiam limitar-se a enterrá-lo uma vez mais e ficar de braços cruzados.
Entretanto, não havia nada que pudesse fazer aquele dia, se não quisesse cometer
uma indiscrição. Tinha que guardar o decoro exigido pelas circunstâncias, porque do
contrário não obteria cooperação das pessoas mais próximas ao finado, as que com maior
probabilidade saberiam ou suspeitariam algo a respeito do acontecido. Mesmo assim, não
esperava obter muita ajuda. Ninguém queria ouvir falar de assassinatos nem ter à polícia
em casa nem suportar investigações e perguntas.
Se por acaso tudo isto fosse razão suficiente, no domingo era seu dia livre. Queria ir
para casa. Estava construindo um veículo para a Jemima que se podia puxar com uma
corda. Conseguir que as rodas ficassem redondas lhe estava sendo mais difícil do que
esperava; entretanto, sua filha estava encantada e lhe falava incessantemente com uma
mescla de sons ininteligíveis que para ela certamente tinham um importante significado.
No meio da manhã da segunda-feira saiu em direção ao Gadstone Park em meio de
uma espessa névoa com o propósito de começar os interrogatórios. A perspectiva não era
tão deprimente como caberia supor, pois tinha pensado ver em primeiro lugar à tia avó
Vespasia. A lembrança que tinha dela no caso do Paragon Walk era muito grata, de tal
sorte que se surpreendeu sorrindo a sós no cabriolé.
Tinha escolhido aquela hora com cuidado: o suficientemente tarde para que a anciã
tivesse terminado de tomar o café da manhã mas muito cedo para que tivesse saído de
casa.
Entretanto, ficou aborrecido quando o lacaio lhe informou que tia Vespasia já tinha
companhia. Se o inspetor o desejasse, de qualquer modo, informaria a sua senhoria de
sua chegada.
Decepcionado, Pitt respondeu que sim, sim o desejava, depois do que deixou que o
conduzissem até a sala das manhãs para aguardar a resposta.
O lacaio voltou inesperadamente logo e o levou ao salão. Tia Vespasia estava
sentada em uma poltrona, com o cabelo recolhido meticulosamente sobre a cabeça e uma
blusa de renda da Guipure que lhe chegava até o queixo e lhe
conferia um ar de
enganosa fragilidade. Lady Cumming-Gould era tão delicada como um sabre de aço, como
Pitt bem sabia.
As pessoas que a acompanhavam eram o senhor Desmond Cantlay, lady St. Jermyn
e Somerset Carlisle. Quando se aproximou deles, Pitt observou seus rostos. Hester St.
Jermyn era uma mulher surpreendente; sua mecha prateada parecia natural e era
chamativa em contraste com seu cabelo negro.
Somerset Carlisle não era tão magro e anguloso como lhe tinha parecido ao vê-lo
vestido de luto junto à tumba; entretanto, seu nariz um tanto aquilino e suas curvas
sobrancelhas continuavam tendo o ar próprio de uma pessoa dotada de senso de humor.
— Bom dia, Thomas — disse tia Vespasia secamente. — Esperava que viesse me
visitar, embora haja de reconhecer que não tão logo. Imagino que já conhecerá meus
outros visitantes, embora não sei se eles o conhecerão — acrescentou voltando-se para
eles. — Conheço o inspetor Pitt há certo tempo. — Sua voz evidenciava todo um mundo
de significados tácitos.
Hester St. Jermyn e o senhor Cantlay lhe olharam com expressão de estupefação;
Carlisle, em troca, esboçou um sorriso e permaneceu impassível, algo que ao Pitt não
passou inadvertido. Tia Vespasia não parecia disposta a dar mais explicações.
— Estávamos falando de política — comentou ao Pitt. — Uma atividade pouco
habitual de manhã, verdade? Conhece os asilos para desamparados?
Os pensamentos do Pitt voaram a aqueles austeros e mal ventilados recintos repletos
de homens, mulheres e meninos selecionando e remendando camisas velhas para deixálas como novas em troca de um teto e um prato de sopa. Tinham os olhos cansados e as
extremidades intumescidas. No verão desmaiavam por causa do calor e no inverno sofriam
o açoite da bronquite. Mas o asilo era o único refúgio que havia para quem não tinha
família ou para as mulheres sós muito velhas, feias ou honradas para sair à rua. Olhou a
renda de tia Vespasia e as minúsculas nervuras de Hester e respondeu bruscamente:
— Sim, conheço-os.
Os olhos da anciã se iluminaram; tia Vespasia tinha adivinhado imediatamente os
pensamentos do Pitt.
— E está contra eles — disse lentamente. — São uns lugares abomináveis, sobre
tudo para as crianças.
— Assim é — disse Pitt.
— Mas necessários de todo modo, e tudo o que a insuficiente lei permite —
acrescentou ela.
— Assim é. — A resposta do Pitt soou severa.
— A política tem sua utilidade. — Com um leve movimento da cabeça tia Vespasia
indicou a outros. — Assim é como se transformam as coisas.
Pitt mudou sua opinião sobre ela e se desculpou para si mesmo.
— Vão tomar medidas para transformá-las?
— Vale a pena tentar... De qualquer modo, certamente está aqui por causa da
atrocidade de ontem na igreja. Foi uma baixeza realmente blasfema.
— Estar-lhe-ia agradecido se pudéssemos falar a sós, se não for aborrecimento. Há
certas investigações que é melhor levar a cabo com... discrição.
Ela soltou um grunhido. Sabia perfeitamente o que Pitt queria dizer: a discrição
permitia levar a cabo as investigações com menos esforço e provavelmente maior eficácia.
Entretanto, a presença de outros impedia Pitt de dizer, adivinhando seus pensamentos
pela expressão de seu rosto, sorriu.
Tia Vespasia compreendeu claramente o que ele estava pensando; seus olhos se
iluminaram, mas se negou a responder com outro sorriso.
Carlisle se levantou lentamente. Era mais corpulento e provavelmente mais forte do
que ao Pitt tinha parecido no enterro.
— Não acredito que possamos fazer muito mais neste momento — disse a Vespasia.
— Encarregarei que redijam nossas notas e assim poderemos voltar discutir. Parece-me
que ainda não temos toda a informação. Temos que lhe proporcionar ao St. Jermyn todos
os dados disponíveis; do contrário não poderá defender nossa causa ante aqueles que
vejam nela contradições.
Hester St. Jermyn também ficou em pé; Desmond Cantlay a imitou.
— Sim — disse este. — Tenho certeza de que está certa. Bom dia, lady CummingGould... — Olhou ao Pitt com vacilação, incapaz de dirigir-se a um policial como se fosse
um igual, e entretanto confundido pelo fato de que o tratasse como um convidado mais no
salão de sua anfitriã. Carlisle foi a seu resgate.
— Bom dia, inspetor. Espero que tenha êxito no assunto que o ocupa.
— Bom dia, senhor Carlisle. — Pitt inclinou levemente a cabeça. — bom dia, senhora
St. Jermyn.
Quando se foram e a porta se fechou, tia Vespasia olhou-o.
— Pelo amor de Deus, sente-se ordenou. — Faz com que me sinta desconfortável
ficando aí de pé como um lacaio.
Pitt obedeceu. O sofá, que tinha uma quantidade excessiva de estofado, era mais
acolhedor do que lhe tinha parecido; era bastante fofo e espaçoso para reclinar
comodamente nele.
— O que sabe sobre lorde Fitzroy-Hammond? — perguntou, deixando que a morte
voltasse para seus pensamentos; a morte e talvez o assassinato.
— Sobre Augusto? — Tia Vespasia o olhou fixamente. — Refere a se conhecer
alguém que pudesse ter pago a uns lunáticos para desenterrar ao pobre desventurado?
Pois não, não conheço ninguém. Não era uma pessoa de meu agrado; não tinha
imaginação e, portanto, como é natural, tampouco senso de humor. Mas não se pode dizer
que este seja motivo suficiente para desenterrá-lo; mas bem ao contrário, diria eu.
— Eu também — disse Pitt com voz calma. — De fato, é motivo de sobra para
desejar que acabasse na tumba.
A Vespasia lhe mudou o rosto. Pitt não recordava outra ocasião em que lhe tivesse
visto perder sua temperada equanimidade.
— Por Deus! — Deixou escapar um prolongado suspiro. — Não pensará que foi
assassinado, não é verdade?
— Tenho que considerá-lo ao menos como possibilidade. Tiraram-no da tumba duas
vezes, o que é mais que uma coincidência. Pode ser que seja obra de um demente, mas
não de um que age ao acaso. Seja quem for, está claro que quer que o pobre lorde
Augusto permaneça fora da tumba.
— Mas se era um homem muito normal... — disse ela com exasperação e certa
piedade. — Tinha dinheiro, mas não mais do que o habitual; o título não vale nada e, em
qualquer caso, não há quem pode herdá-lo. Não era um homem mau, bonito, mas não era
atraente e, além disso, era muito enrijecido para ter uma aventura romântica. Realmente
não me ocorre... deteve-se e fez um pequeno gesto de cansaço com as mãos.
Pitt aguardou. Entendiam-se tão bem que teria seria insultante de sua parte tratar de
convencê-la de algo. Tia Vespasia era tão capaz como ele de perceber os diferentes
matizes da suspeita e do medo.
— Suponho que é preferível que eu lhe diga a que se inteire pelos falatórios da
criadagem — disse, irritada não com ele mas com as circunstâncias.
Ele compreendeu.
— E é provável que seja mais exato — apontou.
— Alicia contraiu matrimônio por conveniência, como não podia ser de outra maneira
tratando-se de uma jovem de vinte anos que não tinha saído debaixo das saias de sua
mãe e um homem de cinquenta anos bem acomodado e carente de imaginação.
— Assim, ela tem um amante.
— Um admirador — corrigiu ela. — Em primeiro lugar, não era mais que um
conhecido em sociedade. Pergunto-me se tem idéia de quão pequena é em realidade a
sociedade de Londres. Com o tempo uma pessoa acaba conhecendo virtualmente a todo
mundo, a menos que seja um ermitão.
— Mas agora será mais que um conhecido...
— É claro. Ela é jovem e se viu privada dos sonhos da juventude. Vê-os desfilar ante
seus olhos nos salões de Londres, assim não cabia esperar que fizesse outra coisa.
— Vai casar se com ele?
Ela arqueou suas prateadas sobrancelhas levemente e observou-o com olhos
brilhantes. Em seu olhar havia um seco reconhecimento da diferença social existente entre
ambos, embora Pitt não soubesse se lhe era divertida.
— Thomas, uma mulher não volta a contrair matrimônio e nem sequer considera a
possibilidade de fazê-lo até que passe um ano da morte de seu marido. Não importa o que
alguém sente ou inclusive faça na intimidade de seu dormitório. A condição, claro está, de
que o dormitório se encontre na casa de outra pessoa e se vá a ele durante os fins de
semana. Mas respondendo a sua pergunta, imagino que é bastante provável, uma vez
tenha passado o intervalo prescrito.
— Como é ele?
— Moreno e extremamente atraente. Não é um aristocrata, mas sua condição de
cavalheiro é suficiente. Não lhe faltam maneiras nem simpatia.
— Tem dinheiro?
— Que prático é... Não muito, acredito, embora não parece que esteja necessitado
dele, ao menos de maneira urgente.
— Lady Alicia vai herdar?
— Junto com sua filha Verity. A anciã tem seu próprio dinheiro.
— Sabe muito sobre seus assuntos. — Pitt tirou aspereza ao comentário com um
sorriso.
Tia Vespasia respondeu com outro sorriso.
— É claro. De que outra maneira se pode manter ocupada durante o inverno? Sou
muito velha para ter aventuras próprias que tenham algum interesse.
Pitt a olhou com um amplo sorriso, mas não fez nenhum comentário: a adulação era
muito clara.
— Como se chama e onde vive?
— Ignoro onde vive, mas tenho certeza de que poderá inteirar-se sem dificuldade.
Chama-se Dominic Corde.
Pitt ficou gelado. Não podia haver dois Dominic Corde que fossem de aparência
agradável, simpáticos, jovens e morenos. Recordava-lhe claramente: a naturalidade de seu
sorriso, sua elegância, sua indiferença por sua jovem cunhada Charlotte, que estivera
desesperadamente apaixonada por ele. Aquilo fazia quatro anos, antes que ela
conhecesse o Pitt, quando tinham começado os crimes do Cater Street... Mas morrem
alguma vez os ecos do primeiro amor? Acaso não perdura algo, mais próximo
possivelmente à imaginação que aos fatos, afim aos sonhos que nunca se fizeram
realidade? Algo que em qualquer caso resulta doloroso...?
— Thomas? — A voz de tia Vespasia lhe devolveu ao presente: Gadstone Park e a
profanação da tumba de lorde Augusto Fitzroy-Hammond. De modo que Dominic estava
apaixonado por lady Alicia ou ao menos a pretendia... Só a tinha visto em duas ocasiões,
apesar do que já formara a opinião de que era totalmente distinta de Charlotte; tratava-se
mais de uma lembrança da Sara, primeira esposa do Dominic e irmã de Charlotte,
assassinada durante o caso do Cater Street... Sara, bela e um tanto piedosa, com o
mesmo cabelo de Charlotte, a mesma tez suave... Pitt só podia pensar em Charlotte e
Dominic.
— Thomas! — Pitt levantou a cabeça e se achou com o rosto de tia Vespasia.
Inclinou-se para frente e o olhava com preocupação. — Encontra-se bem?
— Sim... — respondeu ele. — Disse você "Dominic Corde”?
— Conhece-o. — Era uma afirmação, não uma pergunta. Poucas coisas escapavam
à percepção da velha dama.
Pitt era consciente de que, se mentisse, ela saberia.
— Sim. Esteve casado com a irmã de Charlotte, antes que morresse.
— Deus santo... — Se suas palavras lhe tinham permitido chegar a alguma
conclusão, tia Vespasia tinha muito tato para comunicar-lhe.
Pitt, por sua parte, não queria falar do Dominic. Sabia que esse momento chegaria,
mas ainda não estava preparado para ele.
— Me fale de outros residentes do Gadstone Park — disse.
Ela ficou um pouco surpreendida. Pitt fez uma careta de ironia e acrescentou
olhando-a nos olhos:
— Não imagino a Alicia desenterrando-o, nem ao Dominic.
Tia Vespasia relaxou o corpo, alterando a curva de sua gola de renda.
— Não — disse suspirando com ar lento. — Claro que não. Seriam os últimos em
desejar que voltasse. De qualquer modo, a menos que este assunto seja algo
completamente fortuito, parece como se algum deles tivesse matado a Augusto ou como
se alguém acreditasse que foram eles.
— Me fale de outros residentes do Gadstone Park — repetiu.
— A anciã é uma criatura temível. — Tia Vespasia não tinha papas na língua. —
Permanece todo o dia sentada em seu dormitório relendo velhas cartas de amor e também
cartas cheias de vaidade militar manchadas de sangue do Waterloo e Criméia. Considerase a si mesma o último membro de uma grande geração. Saboreia uma e outra vez todas
as vitórias de seu passado, tanto as reais como as imaginárias, a fim de apurar a vida até
os sedimentos antes que a arrebatem. Não sente apreço por Alicia; acredita que não tem
valor nem estilo... — de repente lhe iluminou o rosto e acrescentou com secura: —
Embora, sinceramente, não sei se sentiria mais apreço por ela se a considerasse capaz de
ter assassinado a Augusto.
Pitt dissimulou um sorriso convertendo-a em uma careta.
— E o que me diz da filha, Verity?
— É uma moça agradável. Não sei de onde lhe vem; possivelmente o herdou de sua
mãe. Não é especialmente bela, mas tem uma grande vitalidade atrás dessas boas
maneiras que lhe ensinaram. Espero que não lhe encontrem marido antes que tenha tido
ocasião de divertir-se um pouco.
— Como se dá com a Alicia?
— Bastante bem, que eu saiba. Mas esqueça-se dela; não saberia onde achar um
ladrão de tumbas e ela seria incapaz de fazê-lo a sós.
— Mas poderia animar a outra pessoa a fazê-lo — indicou Pitt. — Alguém
apaixonado por ela... se pensasse que foi sua madrasta quem assassinou a seu pai.
Vespasia soltou um grunhido.
— Não acredito. Muito retorcido. É uma boa moça. Se acreditasse tal coisa teria
falado claramente e a teria acusado, não se teria dedicado a persuadir a alguém de
profanar a tumba de seu pai. Além disso se diria que tem verdadeiro carinho a Alicia, a
menos que seja melhor atriz do que me parece.
Pitt teve que lhe dar a razão. Aquilo era absolutamente desatinado. Depois de tudo,
possivelmente se tratasse da obra de um transtornado e o que tivesse sido o mesmo
cadáver em ambas as ocasiões fora só uma grotesca coincidência. Assim o disse a tia
Vespasia.
— Estou acostumado a desconfiar das coincidências — respondeu ela —, mas
suponho que acabam dando-se. O resto dos residentes do parque é muito normal, a seu
modo. Lorde St. Jermyn parece uma pessoa irrepreensível; embora tampouco eu goste
dele, apesar de que vai ser o defensor de nosso projeto de lei no Parlamento. Hester é
uma boa mulher que trata de tirar o maior partido de uma situação carente de interesse.
Têm quatro filhos, mas não recordo seus nomes.
"O comandante Rodney é viúvo. Não foi ao enterro, assim ainda não o conhece.
Lutou na Criméia, conforme soube. Ninguém se lembra de sua esposa; deve ter morrido há
trinta anos. Vive com suas irmãs solteiras, Priscilla e Mary Ann. Falam muito e passam o
dia fazendo geléia e almofadinhas de lavanda; além disto são mulheres agradáveis. Não
há nada que dizer sobre os Cantlay. Acredito que são precisamente o que aparentam:
corteses, generosos e um pouco aborrecidos.
"Carlisle é um diletante; toca o piano bastante bem. Tentou que o escolhessem como
membro do Parlamento, mas fracassou; suas posturas radicais são um tanto excessivas.
Deseja reformas. É de boa família e tem dinheiro de linhagem.
"A única pessoa com certo interesse é esse abominável americano que comprou o
número sete, Virgilio Smith. Diga-me — arqueou as sobrancelhas—, quem a não ser a um
americano ocorreria chamar o seu filho Virgilio? Apelidando-se Smith além disso! É mais
feio que fortuito e tem maus modos no jogo. Não sabe como tem que comportar-se, que
garfo tem que utilizar ou como dirigir-se a uma duquesa. Por cima fala com os cães e os
gatos que vê pela rua.
Pitt, que também falava com os cães, começou a ter simpatia por aquele homem.
— Conhecia lorde Augusto?
— Claro que não. Acha acaso que lorde Augusto tivesse mantido essa classe de
relações? Mas se carecia de imaginação! — Sua expressão se suavizou. — Por sorte
tenho idade suficiente para que já não importe que me veja com determinadas
companhias. Além disso, me é bastante simpático; pelo menos não é aborrecido. —
Lançou ao Pitt um olhar significativo, e este compreendeu que ele estava incluído no grupo
de pessoas cuja inaceitável condição social ficava compensada pelo fato de que não eram
aborrecidas.
Tia Vespasia não podia lhe dizer nada mais de momento, assim, depois de lhe
expressar seu agradecimento pela simplicidade com que lhe tinham falado, Pitt se
despediu. Aquela noite teria que dizer ao Charlotte que Dominic Corde estava relacionado
com aquele caso e queria estar preparado para o mau pedaço.
Charlotte não tinha mostrado um interesse especial no caso da exumação de lorde
Augusto Fitzroy-Hammond. A diferença dos assassinatos do Paragon Walk, cometidos no
ano anterior, não afetava a nenhuma pessoa que ela conhecesse. Tinha muito de que
ocupar-se em casa, e a Jemima consumia a curiosidade cada minuto que estava
acordada. Uma e outra vez conseguia, graças a brilhos de instinto, compreender o que sua
filha tratava de expressar e repetia as palavras claramente para que esta as imitasse com
solene diligencia.
As seis, quando Pitt chegou a casa molhado e com frio, já estava cansada e tão
ansiosa como ele de poder sentar-se. Foi no acolhedor silêncio que seguiu ao jantar
quando Pitt o disse. Tinha duvidado de como abordar o tema, se preparar antes o terreno
ou expô-lo diretamente. Ao final a sensação de obrigação que lhe embargava se impôs.
— Hoje fui ver tia Vespasia. — Posou o olhar em sua esposa e se voltou para fixá-lo
no fogo. — Queria falar com ela sobre o caso das profanações.
Charlotte esperou que continuasse.
Pitt costumava a expressar-se com evasivas, tratando as coisas a sua maneira;
entretanto aquele assunto era muito urgente e tinha que ser abordado abertamente.
— Dominic está relacionado.
— Dominic? — Olhou-lhe com incredulidade; aquilo era muito incrível e inesperado
para ter sentido. — O que quer dizer?
— Dominic Corde está relacionado com os Fitzroy-Hammond. Lorde Augusto morreu
faz umas semanas e seu cadáver foi exumado em duas ocasiões e abandonado com o
propósito de que alguém o encontrasse, a primeira vez na boléia de um cabriolé e a
segunda no banco da igreja onde se senta sua família. Alicia, sua viúva, tinha um
admirador... tem-no faz tempo em Dominic Corde.
Charlotte ficou imóvel, repetindo as palavras mentalmente, tratando de entender seu
significado. Fazia meses que não pensava no Dominic; agora em troca todos seus sonhos
de adolescente voltaram para ela transbordando-a, cheios de sua estupidez e ardor. Sentiu
que o rubor lhe subia ao rosto e desejou que Pitt nunca tivesse sabido nada a respeito, que
ela se mostrasse menos transparente em sua maluquice quando ele a tinha conhecido no
Cater Street.
Então começou a compreender a enormidade do assunto. Pitt lhe havia dito que
Dominic estava relacionado. Pensaria realmente que tinha algo que ver com a profanação
de uma tumba? Não conseguia imaginá-lo embora só fosse porque não considerava o
Dominic capaz de ter o arrojo ou a loucura necessária para cometer semelhante
atrocidade. — Relacionado até onde? — perguntou.
— Não sei. — Seu tom foi de uma brutalidade pouco habitual. — Suponho que terá
intenção de casar-se com ela.
Por uma vez Pitt não tinha compreendido a sua mulher.
— Refiro a se está relacionado com a profanação da tumba. Não pensará que foi ele,
não é? por que teria que fazê-lo?
Ele titubeou, escrutinando seus olhos, esforçando-se por adivinhar o que estava
pensando e quanto lhe importava aquele assunto. Tinha visto o rubor em suas faces
quando ele tinha pronunciado o nome do Dominic, rubor que lhe tinha provocado certa
inquietação e uma incerteza que não experimentava desde há anos, desde que seu pai
tinha perdido seu trabalho e a família tinha tido que abandonar a grande propriedade onde
ele tinha nascido e crescido.
— Não penso que tenha sido ele — respondeu. — Mas tenho que considerar a
possibilidade de que a causa da morte de lorde Augusto não fosse tão natural como se
supôs em seu dia.
Charlotte empalideceu.
— Está falando de um assassinato? Pensa que é possível que Dominic o
assassinasse? OH, não... não acredito. Conheço-o... Ele não é... — Não achava a maneira
de dizê-lo sem crueldade e sem faltar à justiça.
— Não é o que? — perguntou ele com certa dureza. — Não é capaz de cometer um
assassinato?
— Exato — respondeu ela. — Não o considero capaz de fazê-lo, a menos que
estivesse muito assustado ou sofresse um acesso de ira. Ou que fosse por acidente. De
todo modo, teria se entregue. Não seria capaz de suportar isso.
— Tão delicado é de consciência? — respondeu Pitt com sarcasmo.
Ela se sentiu doída. Não sabia o porquê semelhante reação. Teria recordado sua
necessidade juvenil e estaria zangado por isso? Estaria aborrecido por sua estupidez
inclusive depois de tanto tempo? Mas não podia ser tão implacável com algo que ao fim e
ao cabo só tinha sido produto do romantismo de uma moça; com isso não tinha feito mal a
ninguém mais que a si mesma. Recordava com clareza todo o acontecido no Cater Street.
Nem sequer Sara se percebera seus sentimentos; Dominic tampouco, naturalmente.
— Todos têm aspectos cuja existência preferimos não reconhecer — disse com voz
calma.— aspectos que justificamos com todo tipo de raciocínios para condená-los em
outros e compreendê-los em nosso caso. Dominic se dá tão bem como à maioria,
possivelmente em certos casos melhor. Entretanto, seus defeitos são só produto da
educação que recebeu. Aprendeu seus valores de outras pessoas, igual a todos. Poderia
desculpar-se a si mesmo com bastante facilidade por ter tido uma aventura com uma
criada, já que se trata de algo que a maioria dos cavalheiros aceita. Mas ninguém aceita
que alguém assassine a um homem com o propósito de casar-se com sua viúva. É
impossível que Dominic pudesse desculpar-se a si mesmo ou a qualquer outra pessoa
com esse motivo. Depois de fazê-lo — se sentiria aterrorizado. Isto é o que queria dizer.
Pitt ficou imóvel. Durante vários minutos não se ouviu nada exceto o crepitar do fogo.
— Como está tia Vespasia? — perguntou ela finalmente.
— Como sempre — respondeu ele. Queria dizer algo mais, restabelecer o contato
sem ter que pedir desculpas, já que isto suporia confessar os pensamentos que lhe tinham
passado pela cabeça. — pediu que fosse visitá-la alguma vez. Disse-me isso quando a vi
no enterro; tinha esquecido de comentar-lhe isso,
— Voltar-lhe-ão a enterrar? — Parece um tanto... ridículo.
— Suponho. De qualquer modo não vou permitir que o façam imediatamente. O
cadáver está agora em mãos da polícia. Mandarei que façam autópsia nele.
— A autópsia? Refere-se a despedaçá-lo?
— Se prefere dizê-lo assim. — Em seus lábios se desenhou lentamente um sorriso;
ela respondeu sorrindo por sua vez. De repente Pitt sentiu que o calor inundava de novo
seu corpo e ficou sorrindo bobamente, como um moço.
— À família não gostará — comentou ela.
— Ficarão como basilicos — disse ele. — Mas já o decidi.
Capítulo 3
No dia seguinte Pitt foi visitar a Alicia. Por muito desagradável que fosse, tinha que
interrogá-la, embora fosse de forma indireta, a respeito de lorde Augusto e de sua relação
com ele e com o Dominic Corde. Depois, naturalmente, teria que falar de novo com este.
Não se viam desde o dia de suas bodas com Charlotte, fazia já quase quatro anos.
Naquele tempo Dominic acabava de enviuvar e estava ainda aturdido, preso do medo que
lhe tinham infundido os crimes do Cater Street. Pitt, por sua parte, sentia-se tão
assombrado ante o êxito colhido ao conseguir Charlotte que mal tinha sido capaz de fixarse em alguém mais.
Agora seria diferente. Dominic teria superado a comoção e começado uma nova vida
longe dos Ellison e das lembranças da Sara. Com toda segurança voltaria a contrair
matrimônio; não teria mais de trinta e três anos e seria um viúvo extremamente desejável.
Inclusive embora não o pensasse, Pitt conhecia a sociedade o suficientemente bem para
saber que alguma mãe ambiciosa o apanharia para casá-lo com sua filha solteira. Seria
simplesmente uma competição para ver quem conseguiria fazer o que queria.
Ele pessoalmente não tinha aversão por Dominic; só se sentia perturbado pela
relação que tinha mantido com Charlotte e pelos sonhos que esta tinha tecido em torno
dele. Além disso se sentia culpado por ter que ser ele quem o arrastasse até a suspeita do
assassinato.
Isso se não conseguisse esclarecer o assunto antes que fosse necessário mencionar
a palavra assassinato.
Era uma manhã escura e cinza e ameaçava nevar quando Pitt tocou a campainha do
12 do Gadstone Park e o mordomo de aspecto fúnebre o fez passar não sem antes soltar
um suspiro de resignação.
— Lady Fitzroy-Hammond está tomando o café da manhã — disse. — Se não lhe
importa esperar na sala das manhãs, informá-la-ei de sua presença.
— Obrigado. — Pitt lhe seguiu obedientemente, passando perto de uma criada miúda
e entrada em anos vestida com um belo uniforme adornado com pontinhos brancos. As
características do seu rosto magro foram aguçadas quando o viu e seus olhos brilhavam.
Deu meia volta e voltou sobre seus passos escada acima, para a seguir cruzar o patamar e
desaparecer no momento em que ele entrava em uma silenciosa e fria sala das manhãs.
Alicia apareceu cinco minutos mais tarde, com semblante pálido e expressão um
tanto apressada, como se tivesse abandonado a mesa do café da manhã sem acabar de
comer.
— Bom dia, senhora.
Pitt permanecia de pé. Fazia muito frio na estadia para manter uma conversa, e mais
ainda para empreender a indagação, relaxada e algo errática, que lhe era necessário levar
a cabo agora.
Ela estremeceu.
— Acredito que já falamos de tudo sobre o que se podia falar. O vigário me
assegurou que vai se responsabilizar por... tomar todas as medidas pertinentes. —
Titubeou. — Não... não estou muito certa de se deveria fazer-se... Ao fim e ao cabo já... já
se celebrou um funeral e... — Franziu o sobrecenho e meneou a cabeça. — Não sei que
mais posso lhe dizer.
— Talvez pudéssemos falar em um lugar mais cômodo — sugeriu ele. Não desejava
dizer exatamente em um lugar onde fizesse mais calor.
Ela pareceu confusa.
— Falar do que? Não sei nada mais.
Respondeu com a maior delicadeza.
— A profanação de uma tumba é um delito muito grave, senhora. Não parece
provável que desenterrar o mesmo cadáver em duas ocasiões se deva simplesmente a
uma delirante coincidência.
Alicia empalideceu completamente e olhou ao Pitt de cima abaixo.
— Seria possível ir a uma sala onde pudéssemos falar comodamente? — Disse-o de
tal modo que parecesse um conselho, tal como alguém falaria com uma criança.
Sem responder, ela se voltou e conduziu a uma sala de estar menor e de ar feminino
situada em uma ala da casa. O fogo ardia na lareira e irradiava calor. Assim que entraram,
Alicia se voltou. Tinha recuperado a equanimidade.
— Que suspeita, inspetor? Algo mais que loucura? Algo intencional?
— Temo que sim — respondeu ele sobriamente. — A loucura não costuma estar...
dirigida.
— Dirigida a que? — Fechou a porta e foi até o sofá para sentar-se. Ele se sentou em
frente dela, sentindo como o calor relaxava seus músculos intumescidos.
— Isso é o que devo averiguar — respondeu —, se tiver que garantir que não volte a
ocorrer. Você me disse que não sabia de nenhum inimigo que pudesse desejar que seu
marido sofresse tal ofensa ou de quem coubesse esperar semelhante comportamento...
— É certo.
— Então só fica investigar o que outros motivos podem ter dado lugar a esta
situação. — Lady Fitzroy-Hammond era mais inteligente do que esperava, e mais
sossegada. Começava a compreender a razão pela qual Dominic podia sentir-se atraído
por ela; não tinha que tratar-se de uma questão de dinheiro ou posição. Recordou o que tia
Vespasia lhe havia dito a respeito da risada e os sonhos de juventude e sentiu irritação
ante as restrições e a falta de sensibilidade da rígida educação que tinha feito possível que
Alicia contraísse matrimônio com um homem como Augusto Fitzroy-Hammond. — Que
outra pessoa poderia ser considerada como vítima — concluiu.
— Vítima? — repetiu ela. — Sim, suponho que está certa. De certo modo todos
somos vítimas disto... Toda a família.
Como ainda não estava preparado para lhe perguntar a respeito do Dominic, disse:
— Me fale de sua sogra. Estava na igreja, não é? Vive aqui?
— Sim. Mas não sei o que posso lhe dizer sobre ela.
— Pensa que ela poderia ser a pessoa a quem quer se danificar?
Pitt acreditou ver em seu rosto uma pequena careta, uma expressão como de
reconhecimento, inclusive talvez um fugaz gesto de brincadeira dirigido a si mesma.
Possivelmente se tratava só de imaginações sua, um produto de seus próprios
sentimentos.
— Está-me perguntando se tem inimigos?
— Tem-nos?
Tinha deixado de ser um segredo entre eles; ele sabia e ela se percebeu isso.
— É claro. Ninguém pode chegar a sua idade sem fazer inimigos. Mas, pela mesma
razão, a maioria deles morreu. Todos seus rivais de juventude, dos tempos em que
ostentava poder na sociedade, desapareceram ou têm muita idade para lhe dedicar sua
atenção. Imagino que a maior parte das contas pendentes ficaram saldadas faz tempo.
Aquelas palavras eram muito sensatas para discuti-las.
— E sua filha, a senhorita Verity?
— OH, não. — Alicia meneou a cabeça. — Recentemente foi apresentada em
sociedade. Não sente despeito e não fez mal a ninguém, nem sequer por omissão.
Pitt não sabia como dizer o inevitável. Normalmente era difícil escolher as palavras
adequadas para expressar uma acusação, e mais ainda quando o interlocutor não a
esperava. Não obstante, com o passar dos anos ele tinha acabado acostumando-se, da
mesma maneira que alguém aprende a aguentar o reumatismo sabendo que a dor se
deixará sentir de vez em quando, movendo-se para suportá-lo melhor, antecipando-se ao
momento em que se produzirá a pontada, habituando-se a ela... Entretanto, nesta ocasião
lhe era mais difícil que de costume, e no último momento voltou a expressar-se de maneira
indireta.
— Não poderia haver inveja? — perguntou. — É uma jovem encantadora.
Alicia sorriu, e ao fazê-lo manifestou paciência ante a ignorância do inspetor.
— Se houver alguém que inveja às jovens damas da sociedade são as demais
damas da sociedade. Pensa realmente, inspetor, que uma delas poderia pagar alguém
para desenterrar a seu finado pai?
Pitt se sentiu estúpido.
— Não, é claro que não. — Desta vez teria que abandonar o tato; era mais torpe com
ele que sem ele. — Então se não se trata da viúva lady Fitzroy-Hammond e tampouco da
senhorita Verity, poderia tratar-se de você?
Alicia engoliu em seco e aguardou um segundo para responder. Seus dedos estavam
rígidos sobre a madeira esculpida do sofá, segurando a borda do braço.
— Não pensava que alguém pudesse me odiar tanto — murmurou.
Pitt deixou de disfarces. Não podia permitir que a piedade o obrigasse a morder a
língua. Não seria a primeira assassina que demonstrava ser a melhor das atrizes.
— Cometeu-se mais de um crime por ciúmes.
Ela congelou e Pitt pensou que não ia responder.
— Está falando de assassinato, inspetor Pitt? — disse por fim. — É algo horrível e
repugnante, uma espécie de pesadelo, mas não se trata de um assassinato. Augusto
morreu de um ataque cardíaco. Estava doente mais de uma semana. Pergunte ao doutor
McDuff.
— E se alguém queria nos fazer acreditar que foi assassinado? — Pitt mantinha um
tom cometido, quase impassível, como se estivesse estudando um problema acadêmico e
não falando de vidas humanas.
De repente ela percebeu do que estava pensando.
— Está sugerindo que... que alguém está desenterrando a Augusto para chamar a
atenção da polícia? Acredita que alguém poderia odiar tanto a alguma de nós?
— Não existe a possibilidade?
Ela se voltou para olhar ao fogo.
— Sim... suponho que sim. Seria uma idiotice afirmar o contrário. Não obstante se
trata de uma idéia espantosa. Não sei quem poderia fazê-lo... ou por que.
— Conforme soube, você conhece o senhor Dominic Corde.
Já estava dito. Observou como a cor subia às faces de lady Fitzroy-Hammond.
Achava que ele a desprezaria por isso, que a censuraria; ao fim e ao cabo acabava de
enviuvar. Entretanto não foi assim. Surpreendeu-se a si mesmo lamentando seu
sobressalto, lamentando inclusive o fato de que provavelmente se encontrasse nessa
incerta etapa do amor em que não se pode negar seus próprios sentimentos mas ainda
não está seguro dos da outra pessoa.
Ela continuou sem olhá-lo.
— Sim, conheço-o. — Estava arranhando a borda do sofá. Suas mãos eram muito
suaves, habituadas à renda e aos cuidados das flores. Sentia-se impelida a dizer algo
mais; não podia limitar-se a passar por cima o tema. — por que o pergunta?
Desta vez Pitt demonstrou mais tato.
— Acredita que pode haver uma pessoa que sinta ciúmes por sua amizade? Conheço
senhor Corde; é um homem realmente encantador e além disso com boas possibilidades
de matrimônio.
O rubor da Alicia se intensificou, e possivelmente a causa do sufoco seu sobressalto
se fez mais lastimosa.
— É possível, senhor Pitt — disse erguendo os olhos bruscamente. Ele não tinha
percebido até aquele momento, mas os tinha de um tom castanho dourado. Mas eu acabo
de enviuvar... — interrompeu-se. Possivelmente se tinha dado conta de quão presunçosas
eram suas palavras. Assim, começou de novo: — Não posso imaginar a ninguém tão
desequilibrado para fazer algo semelhante movido por uma inveja de tipo social, nem
sequer por causa do senhor Corde.
Pitt continuava sentado em frente dela, a pouco mais de um metro de distância.
— Ocorre-lhe alguma razão sensata para que uma pessoa possa fazer algo assim,
senhora?
Novamente se produziu um silêncio. O fogo crepitava e soltava faíscas. Ele pegou as
tenazes e jogou à lareira uma parte de carvão. Era um luxo queimar combustível sem ter
que pensar em seu preço. Jogou uma segunda parte e depois outra. O fogo se inflamou
irradiando calor.
— Não — respondeu ela quedamente. — Está certo.
Antes que ele pudesse dizer algo, a porta se abriu e uma corpulenta anciã vestida de
negro entrou na sala, anunciando sua chegada a golpe de bengala e observando com
desdém ao Pitt, que se tinha posto em pé com presteza.
Alicia também se levantou.
— Sogra, apresento-lhe ao inspetor Pitt, da polícia. — Voltando-se para este,
acrescentou: — Minha sogra, lady Fitzroy-Hammond.
A anciã não se moveu. Não ia permitir que apresentassem a um policial como se
fosse um igual, e ainda menos no que ela ainda considerava sua própria casa.
— Claro — disse agudamente. — Já imaginava. Suponho que terá deveres que
atender, não, Alicia? A marcha da casa não tem que deter-se porque alguém tenha
morrido. Não pode esperar que os criados se vigiem a si mesmos. Vá ver que menu há
para hoje e comprova se as criadas estão ocupadas como é devido. Ontem havia pó no
batente do patamar de cima. Manchei o punho com ele. — Aspirou fundo. — Bem, não
fique aí, moça. Se o policial quer vê-la outra vez, sempre pode voltar.
Alicia olhou ao Pitt, que meneou a cabeça de maneira imperceptível. Ela aceitou a
situação com a cortesia e o respeito pelos mais velhos que lhe tinham ensinado. Quando
se foi, a anciã se aproximou ondeando até o sofá e se sentou sem soltar a bengala.
— Por que veio aqui? — inquiriu com tom ameaçador. Tinha um gorro de renda,
apesar do que Pitt observou que levava o cabelo sem arrumar. Certamente tinha ouvido a
criada anunciar sua chegada e se levantou para poder vê-lo.
— Investigo quem desenterrou a seu filho — respondeu estoicamente.
— Mas pelo amor de...! Acaso acredita que foi uma de nós?
A anciã sentiu uma repentina irritação ante a estupidez do policial e tratou de que ele
se desse conta disso.
— Absolutamente, senhora — respondeu ele com serenidade. — foi obra de um
homem, mas considero muito provável que a causa tenha sido uma de vocês. Como
ocorreu em duas ocasiões, temos que descartar que se trate de uma coincidência.
Ela golpeou a bengala contra o chão.
— Pois deveria investigar! — disse com satisfação, esticando suas maçãs do rosto.
— Averigúe tudo o que possa. Muita gente aparenta ser o que não é. Se estivesse em seu
lugar, eu começaria pelo Dominic Corde. — Seus olhos não se afastavam dos do Pitt. — É
um homem excessivamente amável; não estranharia que pretendesse o dinheiro da Alicia.
Não lhe tire o olho de cima. Andava farejando por aqui antes que morresse Augusto, muito
antes... Que moça mais estúpida, notando-se em seu bonito rosto e suas boas maneiras...
Como se um rosto valesse algo. Vamos, vamos, mas se quando tinha sua idade, eu
conhecia vinte como ele... — Estalou os dedos bruscamente. — As cortes da Europa estão
cheias deles; há uma colheita cada temporada, como se fossem batatas. Só valem para
uma temporada, logo desaparecem, a menos que se casem com alguma mulher rica que
se deixe enganar. Tolos! Investigue de que recursos dispõe e que dívidas tem.
Pitt arqueou as sobrancelhas. Teria renunciado ao salário de uma semana por poder
lhe replicar como merecia. Por desgraça, teria tido que renunciar ao de toda uma vida.
— Acredita que poderia ter desenterrado lorde Augusto? — perguntou com fingida
inocência. — Não consigo ver por que teria que fazê-lo.
— Não seja idiota! — replicou-lhe ela. — Certamente o assassinou ou convenceu a
essa estúpida moça para que o fizesse. Atreveria-me a dizer que alguém sabe e que
desenterrou a Augusto para trazer o assunto à luz.
Pitt a olhou sem pestanejar.
— Sabia, senhora?
Presa de uma fúria incontida, a anciã lhe fulminou com o olhar sem saber como
reagir.
— Desenterrar a meu filho?! — exclamou finalmente. — Você é um bárbaro! Um
cretino!
— Não, senhora — respondeu Pitt sem morder o anzol. — Se equivoca. O que quis
dizer é se suspeitava que seu filho tinha sido assassinado.
De repente ela percebeu a armadilha e seu mau humor se desvaneceu. Olhou-o com
olhinhos cautelosos e disse:
— Não, não sabia. Embora agora comece a considerar a possibilidade de que assim
seja.
— Nós também, senhora. — Pitt se levantou. Precisava averiguar todo o possível,
mas a venenosa maledicência daquela anciã podia turvar o assunto antes do devido. O
assassinato não era ainda mais que uma possibilidade, e ainda ficavam outras por
investigar: o ódio ou o simples vandalismo...
Ela soltou um grunhido, ergueu a mão para que a ajudasse e então se lembrou de
que era um policial e a retirou para levantar-se por si só. A seguir golpeou a bengala contra
o chão e exclamou:
— Nisbett!
A onipresente criada apareceu como se todo o momento tivesse estado atrás da
porta.
— Acompanha a este homem até a porta — ordenou a anciã levantando a bengala
para indicar.— Depois me leve uma taça de chocolate a meu quarto. Não sei o que
acontece a este mundo. Cada inverno faz mais frio. Antes não era assim. Sabíamos
esquentar as casas como é devido. — Coxeando, saiu da estadia sem voltar a olhar ao
inspetor.
Pitt seguiu ao Nisbett até o vestíbulo, mas quando se dispunha a sair ouviu vozes na
sala de estar que havia a sua esquerda. Uma pertencia a um homem e, embora não fosse
alta, ouvia-se com nitidez e as palavras que dizia eram pronunciadas com correção. Ao Pitt
lhe amontoaram as lembranças na cabeça: só podia ser Dominic Corde.
Dirigiu ao Nisbett um sorriso de orelha a orelha, deixando-a estupefata e alarmada,
voltou-se de repente para a porta, bateu suavemente com os dedos e, sem pensar duas
vezes, entrou na sala.
Dominic estava com a Alicia de pé ao lado da lareira. Os dois se voltaram
surpreendidos e ela se ruborizou; Dominic fez gesto de pedir uma explicação, mas então
reconheceu ao Pitt.
— Thomas! — exclamou com assombro. — Thomas Pitt! — Recuperando a
serenidade, sorriu e lhe estendeu a mão; era um gesto sincero.
Pitt notou que o pesar e a aversão que sentia se dissipavam. Entretanto não podia
esquecer o motivo que o tinha levado ali. Estava investigando um possível caso de
assassinato e uma das pessoas que tinha diante, ou possivelmente as duas, podiam estar
implicada nele. Inclusive se se tratasse só da profanação de uma tumba, certamente
fossem elas as vítimas em quem se pensou ao cometer o delito.
Pitt estreitou a mão que lhe estendia Dominic e disse:
— Bom dia, senhor Corde.
Dominic continuava sendo tão inocente como sempre.
— Bom dia. Como está Charlotte?
Pitt experimentou uma estranha mescla de alegria — pelo fato de que Charlotte fosse
agora sua esposa — e rancor — pela naturalidade e simplicidade com que Dominic fazia a
pergunta. Entretanto, este tinha vivido com ela na mesma casa durante todos os anos de
seu matrimônio com a Sara e a tinha visto crescer e passar de adolescente a jovem
mulher, e em nenhum momento tinha suspeitado que Charlotte pudesse estar enamorada
por ele.
Mas isto era diferente. Agora tinha trinta anos e certamente seria mais amadurecido e
mais consciente dos efeitos que causava nas mulheres. Além disso, a mulher que tinha
diante era Alicia, não sua jovem cunhada.
— Tem uma saúde excelente, obrigado — lhe respondeu, e não resistiu a tentação
de acrescentar: — Jemima tem dois anos e fala sem cessar.
Dominic ficou um tanto assombrado. Possivelmente nunca lhe tinha passado pela
cabeça que Charlotte tivesse filhos; ele e Sara não tinham tido nenhum. Pitt se arrependeu
de sua jactância. Agora, uma vez ditas aquelas palavras saídas da paixão, tinha perdido
toda possibilidade de manter certa imparcialidade e destruído a conduta estritamente
profissional que pensava observar.
— Espero que se encontre bem — disse com certa vacilação. — O assunto de lorde
Fitzroy-Hammond é uma verdadeira desgraça.
Dominic se ruborizou e, em seguida, empalideceu.
— É algo horrível — comentou. — Espero que encontre ao homem que o tenha feito
e consiga que o encarcerem. Certamente se trata de um louco e será fácil de reconhecer.
— Por desgraça, a loucura não é como a varíola — respondeu Pitt. — Não produz
pústulas que se possa perceber a simples vista.
Alicia permanecia em silêncio, fazendo-se ainda à idéia de que, evidentemente, os
dois homens se conheciam e que sua relação não era nem casual nem meramente formal.
— Não à vista de alguém sem a preparação adequada — respondeu Dominic. — Mas
você sim o está. Além disso, não têm médicos ou algo assim na polícia?
— Antes de poder fazer algo com uma enfermidade, a gente tem que estar
familiarizado com ela — respondeu Pitt. — E a profanação de tumbas não é algo que um
policial se encontre com frequência ao longo de sua carreira profissional.
— E se venderem os cadáveres para a investigação médica? Não havia alguém que
se dedicava a isso? Sinto muito, Alicia... — desculpou-se.
— Os Ressurreicionistas? Isso faz muito tempo — respondeu Pitt. — Agora obtêm os
cadáveres legalmente.
— Então não pode tratar-se disso. — Dominic deixou cair os ombros. — É
horripilante. Você acha que...? Não, não pode ser isso. Não fez mal ao cadáver. Não
podem ser necromantes, satanistas ou algo semelhante...
Alicia se decidiu finalmente a falar.
— O senhor Pitt está obrigado a considerar a possibilidade de que não escolhessem
a Augusto por acaso, mas a propósito, por ódio por ele ou por algum de nós.
Dominic não se mostrou tão surpreso como Pitt teria esperado. Ocorreu-lhe que
talvez ela o houvesse dito antes que ele entrasse na sala. Possivelmente fora aquilo
precisamente o que estavam discutindo quando ele tinha-os interrompido.
— Não concebo que alguém possa odiar tanto a outra pessoa — disse Dominic
laconicamente.
Pitt tinha estado esperando aquela oportunidade, e a aproveitou.
— Pode haver muitos motivos para odiar — disse procurando que seu tom fosse mais
suave e ligeiro. — O medo é um dos mais antigos. Entretanto ainda não consegui
descobrir nenhuma razão pela qual uma pessoa pudesse temer lorde Augusto. É possível
que ostentasse um poder do qual eu não saiba nada, um poder econômico ou inclusive um
poder consistente em uma informação que outra pessoa preferisse manter em segredo.
Possivelmente se tinha informado de algo fortuitamente.
— Em tal caso ele também o teria mantido em segredo — disse Alicia com convicção.
— Augusto era um homem muito leal e jamais praticava a maledicência.
— Possivelmente considerasse um dever falar se o assunto fosse um delito —
indicou Pitt.
Nem Alicia nem Dominic responderam. Os dois continuavam de pé, e Dominic estava
tão perto da lareira que devia ter as pernas abrasadas.
— Ou vingança — prosseguiu Pitt. — Uma pessoa pode abrigar um anseio de
vingança mantendo-a latente durante anos até o ponto de convertê-la em algo monstruoso.
A ofensa original não tem por que ser grave, inclusive é possível que nem sequer se trate
de uma ofensa, mas sim de algo inocente, como o fato de que uma pessoa obtivesse êxito
quando a outra fracassava.
Respirou fundo e se aproximou um pouco mais ao que queria dizer em realidade.
— Depois há a avareza, um dos móveis mais comuns no mundo. Cabe a
possibilidade de que uma pessoa estivesse em posição de beneficiar-se de sua morte de
algum modo que não fosse claro a primeira vista.
Alicia empalideceu para a seguir experimentar uma onda escarlate em suas faces.
Embora não se referisse a algo tão simples como uma herança, Pitt era consciente de que
ela pensava que sim o tinha feito. Dominic também guardava silêncio, e se apoiava em um
pé e logo no outro; talvez se devesse ao desassossego ou simplesmente ao fato de que
estava muito perto do fogo e não se podia mover sem pedir antes a Pitt que também se
movesse.
— E também existe o ciúme — concluiu Pitt. — O desejo de liberdade. Possivelmente
se interpõe no caminho para chegar a algo que outra pessoa desejava fervorosamente.
Naquele momento era incapaz de olhar diretamente a nenhum deles, embora
soubesse que eles tampouco se estavam olhando o um ao outro.
— Há muitos móveis. — Retrocedeu um pouco para que Dominic se afastasse do
fogo. — Qualquer é possível enquanto não averiguemos do que se trata.
Alicia engoliu e seco.
— Vai... os vai investigar todos?
— Talvez não seja preciso — respondeu com a sensação de que estava sendo cruel
e detestando seu trabalho porque a suspeita já estava cobrando forma em sua cabeça,
configurando-se como uma imagem na névoa. — É possível que descubramos a verdade
antes do previsto.
Aquilo não supôs nenhum alívio a ela, tal como esperava Pitt. Alicia avançou e se
interpôs entre ele e Dominic. Tratava-se de um gesto que Pitt tinha visto centenas de
vezes em mulheres de toda condição: uma mãe defendendo a um menino travesso, uma
esposa mentindo a respeito de seu marido, uma filha desculpando a seu pai bêbado...
— Confio em sua discrição, inspetor — disse Alicia com voz calma. — Se não o faz,
poderia causar muita dor desnecessária e ofender a memória de meu pai, assim como a
daquelas pessoas que, conforme se deduz de suas palavras, poderiam ter tais motivos.
— É claro. É possível que tenha que investigar os fatos, mas disso não se derivarão
consequências.
Alicia não parecia muito disposta a acreditar nele, mas mesmo assim guardou
silêncio.
Pitt se despediu, e o lacaio se assegurou de que esta vez saía realmente da casa.
Na rua o frio tomou conta dele, transpassando seu casaco e sua jaqueta para lhe
intumescer a pele e enrijecer os músculos. A névoa se levantou, e agora o vento soprava
carregado de água, obscurecendo tudo de chuva. Não ficava outra alternativa que pedir a
autópsia do cadáver de lorde Augusto Fitzroy-Hammond. A possibilidade de um
assassinato não podia passar-se por alto em atenção à dor que poderia causar a muita
gente.
Tinha averiguado com antecedência onde podia achar ao doutor McDuff, e para ali se
encaminhou. Quanto menos tempo tivesse para pensar nisso, melhor. Ele contaria à
Charlotte quando tivesse que fazê-lo.
A casa do doutor McDuff era ampla, sólida e convencional, igual a ele; não havia
nada com que avivar a imaginação, nada que pudesse ofender aos satisfeitos de si
mesmos. Conduziram Pitt a outra fria sala e lhe disseram que esperasse. Ao cabo de uns
minutos levaram-no a um estúdio cheio de livros forrados de couro, um tanto desgastados,
onde se deteve diante de uma enorme escrivaninha, como se fosse um escolar que iria
responder ante seu professor. Ao menos havia uma lareira acesa.
— Bom dia — disse o doutor McDuff austeramente. Talvez tivesse sido um jovem de
aparência agradável, mas o tempo e a impaciência tinham estragado seu rosto, e a
suficiência tinha sulcado de rugas a pele em torno do nariz e boca. — O que posso fazer
por você?
Pitt pegou a única cadeira que havia ao seu dispor e se sentou. Negava-se que
aquele homem o tratasse como a um criado. Ao fim e ao cabo, não era mais que um
profissional como ele, educado e remunerado para fazer frente aos problemas menos
agradáveis que tinha à sociedade.
— Você é o médico que atendeu ao finado lorde Augusto Fitzroy-Hammond até o dia
de sua morte... — disse.
— Com efeito — respondeu o doutor McDuff. — Se trata de um assunto que não
corresponde à polícia. Morreu de um enfarte. Fui eu quem assinou o certificado de óbito.
Não sei nada das espantosas profanações que se cometeram depois. Isso sim é assunto
seu, e quando antes fizer algo a respeito, melhor.
Pitt notou o antagonismo no ambiente. Para o McDuff ele representava um mundo
sórdido alheio à elegância e as comodidades de seu próprio círculo, uma onda que sempre
devia frear com firmeza de discriminação e diferenças sociais. Se esperava tirar algo dele,
não o conseguiria mediante um ataque frontal, mas só mediante a astúcia e esporeando
sua vaidade.
— Sim, trata-se de um assunto espantoso — concordou. — É a primeira vez que
enfrento algo semelhante. Para mim teria um inestimável valor sua opinião profissional no
referente ao tipo de pessoa que poderia ter-se afetado por um afã tão desenquadrado.
McDuff se dispunha a dizer que ele não tinha nada que ver com isso, mas sua
reputação profissional tinha sido invocada. Aquilo não era o que esperava ouvir de Pitt, e
por um momento se sentiu desconcertado.
— Ah... — disse ao mesmo tempo em que tratava de reorganizar rapidamente seus
pensamentos. — vamos ver. Essa é uma questão muito complexa. — Tinha estado a
ponto de dizer que tampouco sabia algo a respeito, mas jamais reconhecia sua ignorância
abertamente. Além de tudo, seus anos de experiência lhe tinham proporcionado um
variado conhecimento do comportamento humano em todas suas comédias e tragédias. —
Tem você toda a razão; é uma loucura tirar o cadáver de um homem de sua tumba. Não
cabe a menor dúvida.
— Conhece algum estado patológico que pudesse levar a alguém a cometer
semelhante ato? — inquiriu Pitt com expressão perfeitamente sóbria. — Possivelmente
alguma classe de obsessão?
— Uma obsessão pelos mortos? — McDuff baralhou aquela ideia na cabeça, em
busca de alguma afirmação categórica. — Se chama necrofilia.
— Sim — assentiu Pitt. — Possivelmente uma obsessão causada por um sentimento
de ódio ou inveja por lorde Augusto. Ao fim e ao cabo, à desventurada criatura a
desenterraram em duas ocasiões. Não se pode dizer que se trate precisamente de uma
coincidência.
McDuff endureceu o gesto e em seu rosto se desenharam rugas ainda mais severas
de desagrado. Agora era seu próprio mundo, seu círculo social, que se via ameaçado.
Pitt percebeu isso.
— Naturalmente, sua ética profissional não lhe permite dar nomes, doutor McDuff —
se apressou a dizer. — Entretanto poderá me dizer, sendo como é um homem com uma
longa experiência na medicina, se existe tal estado patológico. Depois terei que investigar
por minha conta. É nosso dever, o seu e o meu, garantir que se dê a lorde Augusto
sepultura decentemente e lhe permite descansar... como também a sua desgraçada
família. A sua viúva e a sua mãe...
O doutor McDuff reparou no tema monetário.
— Por descontado — respondeu. — Farei tudo o que possa... dentro dos limites da
discrição ética — acrescentou. — De todo modo neste preciso momento não me vem à
cabeça nenhum mal que possa dar lugar a uma forma tão repulsiva de loucura. Darei ao
assunto minha maior consideração e, se não se importa voltar a me visitar, poderei lhe dar
uma opinião mais meditada.
— Muito obrigado. — Pitt se levantou e se aproximou da porta; antes de abri-la,
voltou-se e disse: — Por certo, sei que é extremamente desagradável, mas há indícios que
permitem supor que lorde Augusto talvez tenha sido assassinado. Alguém sabe e está
desenterrando o cadáver para chamar a atenção e nos obrigar a investigar. Suponho que
sua morte foi totalmente natural... e esperada.
O rosto do McDuff se tornou sombrio.
— Certamente que foi totalmente natural, meu senhor! Você acha que eu teria
assinado o certificado se não fosse assim?
— E esperada? — insistiu Pitt. — Levava tempo doente?
— Uma semana. Mas tratando-se de um homem de sessenta anos de idade... Sua
mãe tem o coração débil.
— Mas ela continua viva — observou Pitt. — E tem mais de oitenta anos, diria eu.
— Isso não tem nada que ver com o que estamos discutindo! — resmungou McDuff
fechando o punho sobre a mesa. — A morte de lorde Augusto foi totalmente natural e,
tratando-se de um homem de sua idade e estado de saúde, nada extraordinária.
— Fez-lhe a autópsia? — Pitt sabia que a resposta era negativa.
McDuff deu um pulo. A mera idéia sugerida pelo Pitt o escandalizava.
— Claro que não! — Seu rosto avermelhou. — trabalhou muito tempo no submundo,
inspetor. Desejaria lhe recordar que meus clientes não guardam nenhuma semelhança
com os seus. O que nos ocupa não é um assassinato nem um crime, a menos que a
profanação de tumbas se considere como tal; e não cabe dúvida de que é uma pessoa de
seu mundo, não do meu, a quem terá que culpar por isso! Bom dia, inspetor!
— Então terei que pedir que se faça uma autópsia agora — disse Pitt suavemente. —
vou solicitá-la ao juiz esta tarde.
— E eu me oporei com firmeza, inspetor! — McDuff descarregou o punho sobre a
mesa. — E pode ter certeza de que a família de lorde Fitzroy-Hammond me apoiará. Não
carecem de influências. Agora, por favor, saia de minha casa!
Pitt foi a seus superiores com o pedido de que se fizesse autópsia a lorde Augusto e
foi recebido com inquietação. Disseram-lhe que teriam que considerar o pedido e que não
podiam transladá-lo ao juiz enquanto não sopesassem devidamente todos os aspectos.
Não se podia levar a cabo uma autópsia à ligeira ou de forma irresponsável, por isso antes
de comprometer-se deviam estar certos de que tal medida estava justificada.
Pitt se sentiu zangado e decepcionado, mas sabia que a resposta era a que devia
esperar. Não se costumava estripar-se aos cadáveres da aristocracia e ficar em tecido de
julgamento suas mortes a menos que fosse por uma razão muito válida, e inclusive em tal
caso o normal era apresentar uma prova irrebatível antes de seguir adiante.
No dia seguinte McDuff tinha movido todos seus esforços. A resposta chegou ao Pitt
a seu escritório: não havia motivos fundados para a autópsia e portanto não se levaria a
efeito. Não soube se devia sentir-se zangado ou aliviado. Se não se praticava a autópsia,
era pouco provável que pudesse provar-se que se cometeu um assassinato. A assinatura
do certificado de óbito dava fé de uma morte natural por causa de insuficiência cardíaca.
Depois da entrevista mantida com o doutor McDuff sabia que necessitaria de muitos mais
argumentos que os que era capaz de esgrimir para fazê-lo mudar sua opinião de
profissional. E se não havia assassinato, Pitt estaria obrigado a prosseguir com regras as
investigações sobre quem tinha desenterrado o cadáver e o tinha deixado exposto de
forma tão estranha, mas sem abrigar esperança alguma de averiguá-lo. Com o transcurso
do tempo o caso seria relegado por crimes mais urgentes, e Dominic e os FitzroyHammond seguiriam vivendo sua vida em paz.
A menos, certamente, que a pessoa que tinha desenterrado a Augusto decidisse não
render-se com tanta facilidade. Se ele — ou ela— achava ou sabia que se cometeu um
assassinato, havia a possibilidade de que tivesse mais ideia para chamar a atenção. Só
Deus sabia quais poderiam ser!
De sua parte, Pitt detestava os casos abertos. Sentia simpatia por Alicia e inclusive,
na medida em que sua imaginação lhe permitia visualizar uma forma de vida totalmente
alheia à sua, compreendia-a. Desagradaria-lhe inteirar-se de que era a responsável ou
cúmplice do assassinato de seu marido. E pelo bem de Charlotte, tampouco queria que
fosse Dominic.
De momento não podia fazer nada, assim se concentrou em um caso de falsificação
no que tinha estado ocupado antes que lorde Augusto caísse da carruagem à rua.
Eram cinco e meia e fora, entre os faróis de gás que envolvia a névoa, estava tão
escuro como um porão sem iluminar. Um agente ajudante abriu a porta para lhe anunciar
que um tal senhor Corde vinha a visitá-lo.
Pitt se sentiu assombrado. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi que se
produziu uma nova atrocidade, que seu peculiar adversário acabava de lhe dar um novo
aviso. Sentiu repugnância e tristeza.
Dominic entrou com a gola do casaco levantada e o chapéu metido até as orelhas.
Tinha o nariz vermelho e os ombros encurvados.
— Deus santo, faz uma noite espantosa — disse enquanto se sentava em uma
cadeira de espaldar duro e olhava ao Pitt com inquietação. — Compadeço-me dos pobres
diabos que não tenham cama e fogo.
Em lugar de lhe perguntar a que tinha vindo, Pitt lhe respondeu com o comentário
que lhe veio instintivamente aos lábios.
— Haverá milhares deles. — Olhou ao Dominic nos olhos. — Tampouco têm jantar e,
por certo, estão a um tiro de pedra daqui.
Dominic estremeceu. Não tinha muita imaginação quando Charlotte o tinha
conhecido, embora possivelmente os anos transcorridos tivessem operado uma mudança
em sua pessoa. Ou talvez se tratasse só de seu desagrado ante a resposta do Pitt ao que
só tinha sido um comentário de passagem.
— É certo que quer praticar uma autópsia em lorde Augusto? — perguntou, tirando
as luvas e tirando um lenço branco do bolso.
Pitt era incapaz de desperdiçar uma ocasião para dizer a verdade.
— Sim, é certo.
Dominic assoou o nariz; sua expressão era tensa.
— Por quê? Morreu de insuficiência cardíaca, uma doença familiar. McDuff lhe dirá
que sua morte foi absolutamente natural, inclusive esperada. Comia em excesso e rara vez
fazia exercício. Os homens dessas características morrem sempre quando chegam aos
sessenta. — Dominic enrugou o lenço e o meteu no bolso. — Não compreende você o que
significará para a família, sobre tudo para a Alicia? Viver com essa anciã agora é um
verdadeiro inferno; imagine como será se se pratica uma autópsia. Culpará de tudo a Alicia
e dirá que se Augusto não se casasse com ela jamais teria ocorrido coisa semelhante. Se
Alicia não tivesse trinta anos menos que ele, ninguém lhe daria a menor importância.
— Não tem nada que ver com a idade — respondeu Pitt pacientemente. Desejava
poder deixar o assunto, tirá-lo da cabeça assim como ao dever que supunha para ele. —
Quero fazer uma autópsia porque o cadáver foi desenterrado em duas ocasiões e
abandonado em lugares onde era inevitável encontrá-lo. Deixando à parte o fato de que se
trata de um delito, temos que impedir que volte a acontecer. Como é possível que não o
compreenda?
— Então o enterrem e ponham a um agente de guarda! — exclamou Dominic com
exasperação. — Ninguém vai desenterrar tendo a um policial ao lado. Não pode ser uma
tarefa fácil, ou rápida, remover toda essa terra e tirar o ataúde. Terá que fazê-lo de noite e
utilizar uma equipe considerável; pás, cordas e objetos desse tipo... E, logicamente, tem
que fazer-se entre vários.
Pitt evitou lhe olhar.
— Um homem forte poderia fazê-lo só com pouco que se esforçar — respondeu. — E
não lhe seriam preciso cordas. Só pegaram o cadáver; o ataúde permaneceu em seu
lugar. Poderíamos pôr a um agente de guarda durante uma ou duas noites, inclusive
durante uma semana, mas em algum momento teríamos que retirá-lo, e então o
profanador poderia voltar para os túmulos, se assim o desejasse.
— Por Deus!
Dominic fechou os olhos e os cobriu com as mãos.
— Ou se não fará algo diferente — acrescentou Pitt—, se está decidido a empurrar a
alguém a que atue.
Dominic ergueu a cabeça.
— Algo diferente? Como o que, por amor de Deus?
— Não sei. Se soubesse talvez pudesse impedi-lo.
Dominic se levantou, com o rosto ruborizado.
— Pois bem, eu vou impedir que se pratique uma autópsia! Há muitas pessoas no
Gadstone Park que se oporão a isso. Lorde St. Jermyn, sem ir mais longe. E se for
necessário podemos pagar a alguém para que monte guarda junto à tumba e se
encarregue de que o cadáver descanse em paz e decentemente. Só um louco pode
incomodar aos mortos!
— Só um louco pode fazer certas coisas... — comentou Pitt. — Lamento, mas não sei
como pôr fim a esta situação.
Dominic meneou a cabeça e se dispôs a partir.
— Não é culpa sua, nem sua responsabilidade. Teremos que fazer algo pelo
bem da Alicia. Dê lembranças ao Charlotte de minha parte, e ao Emily, se chegar a
vê-la. Boa noite.
Fechou a porta ao sair e Pitt ficou olhando— a, sentindo— se culpado. Não lhe havia
dito que não ia se praticar a autópsia porque queria saber o que lhe dizia a respeito; e
agora só sabia que se sentia pior que antes. A autópsia poderia ter dissipado
definitivamente qualquer suspeita de assassinato. Possivelmente devia dizer-lhe.
De qualquer modo, por que Dominic não era capaz de vê-lo por si mesmo? Acaso
temia que desse modo se demonstrasse o contrário? Que realmente tinha sido um
assassinato? Era Dominic culpado ou temia pela Alicia? Ou só temia o escândalo, todas as
perversas e corrosivas suspeitas, as velhas feridas que uma investigação faria que
voltassem a abrir-se? Dominic não podia ter esquecido Cater Street...
Entretanto, enquanto Dominic queria que se silenciasse o assunto, havia ao menos
uma pessoa que não compartilhava seu desejo. Na manhã seguinte Pitt recebeu uma carta
bastante formal de parte da velha sogra em que lhe recordava que seu dever era averiguar
quem tinha importunado o descanso de lorde Augusto em sua tumba e por que. Se se
tinha cometido um crime, a sociedade pagava ao Pitt para que o descobrisse e vindicasse
à vítima.
Pitt grunhiu e deixou a folha sobre a mesa. Era papel branco para cartas normal e
comum; talvez guardasse o elegante para a alta sociedade. Passou-lhe fugazmente pela
cabeça que talvez devesse mostrá-lo a seus superiores e lhes deixar que discutissem o
que era mais importante para suas carreiras e seus deveres: a proibição imposta pelo
sistema ou o peso social da velha dama.
Ainda estava considerando o assunto, com a carta na gaveta superior da
escrivaninha, quando apareceu Alicia, embrulhada em peles até o pescoço. Sua chegada
deu lugar a vários comentários de surpresa na delegacia de polícia e a que o agente que a
anunciou dissesse ao Pitt que tinha os olhos tão redondos e bulbosos como gudes.
— Bom dia, senhora. — Pitt lhe ofereceu uma cadeira e fez um sinal ao agente de
que se retirasse. — Receio que não tenho novidades; do contrário teria ido vê-la para
dizer-lhe.
— Entendo... — Olhava a todas partes exceto para Pitt.
O inspetor se perguntou se estava simplesmente esquivando-o ou se tinha algum
interesse nas descascadas paredes, as austeras gravuras que as decoravam e as caixas
lotadas de arquivos. Aguardou, permitindo que se enchesse de coragem.
Finalmente Alicia o olhou e disse:
— Senhor Pitt, vim lhe pedir que abandone o assunto da exumação de meu marido...
— Aquilo era um eufemismo ridículo; ela se deu conta e balbuciou com certa estupidez: —
Me refiro à profanação de sua tumba. Cheguei à conclusão de que foi obra de loucos, de
vândalos sem discernimento. Jamais os apanhará, e sua perseguição não pode
proporcionar nada de bom.
Ocorreu uma idéia a Pitt.
— Certo, é possível que não os apanhe — disse lentamente—, mas se não os
persigo pode dar uma situação muito dolorosa, sobre tudo para você.
Olhou-a nos olhos fixamente, de tal maneira que ela não pudesse apartá-los a menos
que evitasse seu olhar de forma manifesta.
— Não o compreendo — respondeu ela meneando um pouco a cabeça —. Vamos
enterrá-lo e, se for necessário, pagaremos a um criado para que monte guarda durante o
tempo que for preciso. Não vejo como isso pode dar lugar a uma situação dolorosa.
— Talvez seja certo que tenha sido simplesmente obra de um lunático — disse Pitt
inclinando— se levemente —, mas receio que nem todo mundo acha o mesmo.
As feições dela ficaram tensas. O inspetor não precisou utilizar a palavra
"assassinato".
— Que pensem o que quiserem. — Ergueu o queixo e fechou as peles com força.
— Farão-no. E alguns quererão pensar que você se negou a que se fizesse a
autópsia precisamente porque há algo que ocultar.
Lady Fitzroy-Hammond empalideceu e entrelaçou os dedos entre as peles.
— A crueldade se caracteriza por ser surpreendentemente perspicaz —
prosseguiu Pitt. — Haverá quem tenha percebido a admiração que sente o senhor Corde
para você e sem dúvida também quem tenha sentido inveja dela.
Aguardou um momento para que digerisse a idéia e todas suas consequências.
Estava disposto a acrescentar que haveria suspeitas, mas não foi necessário fazê-lo.
— Está-me dizendo que se perguntarão se foi assassinado? — perguntou ela com
um sussurro. — E que dirão que foi Dominic ou eu mesma?
— É possível.
Agora que tinha chegado o momento de dizê-lo, era difícil fazê-lo. Desejava poder
tirar crédito à idéia, mas, ali sentado, recordando ao Dominic e olhando a ela no rosto, com
os olhos empanados e expressão de desdita enquanto se retorcia as mãos à altura do
pescoço, sabia que Alicia tampouco estava completamente certa, nem sequer em seu foro
interno.
— Pois se equivocam! — exclamou com fúria. — Nunca fiz nada que machucasse a
Augusto, jamais, e tenho certeza de que Dominic... de que o senhor Corde tampouco!
Era um protesto surgido do medo, para convencer-se a si mesma. Pitt tinha ouvido
aquele tom de voz frequentemente; tratava-se de uma reação que se dava sempre que a
primeira dúvida assaltava a mente de uma pessoa.
— Então não seria melhor permitir que se fizesse a autópsia? — perguntou com voz
calma. — Desse modo se demonstraria que a causa da morte foi natural. E portanto
ninguém continuaria pensando no assunto, salvo como uma tragédia normal.
Pitt observou as diferentes expressões de temor que se passavam no rosto da Alicia:
depois de deixar entrever que se aferrava à esperança que lhe oferecia, surgia a dúvida e
logo a lacerante dor que lhe supunha pensar na possibilidade de que se demonstrasse
exatamente o contrário: que o assassinato era um fato incontestável.
— você acha que o senhor Corde poderia ter matado a seu marido? — perguntou Pitt
brutalmente.
Fulminou-o com o olhar, presa da ira.
— O que diz! É claro que não!
— Então demonstremos que foi uma morte natural; façamos uma autópsia que nos
tire de dúvidas.
Ela titubeou, sopesando ainda o escândalo público e seus temores pessoais. Fez
uma última tentativa.
— Sua mãe não o permitirá.
— Ao contrário. — Agora podia permitir— se certa amabilidade —. Escreveu-me para
me solicitar isso. Possivelmente deseja silenciar essas vozes tanto como você.
Alicia fez expressão de brincadeira. Sabia tão bem como Pitt o que queria em
realidade a anciã. E também sabia o que a anciã diria e continuaria dizendo até o dia de
sua morte se não se fizesse a autópsia. Era o fator decisivo, tal como o tinha planejado o
inspetor.
— Muito bem — cedeu. — Pode acrescentar meu nome à solicitude e levá-lo — à
pessoa que dita estes assuntos.
— Obrigado, senhora — disse ele sobriamente. A vitória não lhe proporcionava
nenhum prazer. Poucas vezes tinha lutado tanto por algo que lhe fosse tão amargo.
A autópsia foi uma operação horripilante. Nunca eram agradáveis, mas esta,
praticada em um cadáver de quase um mês, foi mais espantosa que a maioria.
Pitt assistiu a ela porque, dadas as circunstâncias, esperava-se que alguém da
polícia estivesse presente, e além disso queria inteirar-se pessoalmente de cada resposta
no próprio momento em que se obtivesse. Era um dia em que o frio parecia obscurecer
tudo e a sala de autópsias tinha um aspecto tão inóspito e impessoal como uma cova
comum.
O médico forense levava uma máscara; Pitt se alegrou de poder pôr uma também. O
mau cheiro revolvia o estômago. Trabalharam durante horas, com calma e em silêncio
salvo pelas breves instruções que devia dar cada vez que um órgão era extraído e trocava
de mãos e quando se tomavam amostras para procurar venenos. O coração foi examinado
com particular minuciosidade.
Ao final Pitt saiu da sala, transido e com o estômago encolhido pelas náuseas. Vestiu
a jaqueta e levantou o cachecol para proteger as orelhas.
— E então? — perguntou.
— Nada — respondeu o patologista sobriamente. — Morreu de insuficiência cardíaca.
Pitt guardou silêncio. Por uma parte desejava ouvir aquela resposta, mas por outra
não podia acreditar, não lhe via sentido.
— Não sei o que a pôde causar — prosseguiu o médico. — Não tem o coração em
mal estado para um homem de sua idade. Está um pouco gordo e tem as artérias um
pouco grossas, mas não é causa suficiente para matá-lo.
Pitt se viu forçado a perguntar:
— Poderia ter sido veneno?
— Poderia. Dispunha de uma boa quantidade de digital, pois a anciã o utiliza para o
coração. Poderia haver tomado ele mesmo. Não parece que seja bastante para lhe fazer
mal, mas não posso dizê-lo com certeza. As pessoas não reagem todas da mesma
maneira, e já está a tempo morto.
— Então poderia ter morrido de envenenamento com digital?
— É possível — respondeu o patologista —, mas não provável. Lamento não poder
lhe servir de mais ajuda, mas não encontrei nada definitivo.
Devia dar-se por satisfeito. Aquele homem era um profissional e tinha feito seu
trabalho. Com a autópsia não se demonstrou nada, além de confirmar a todo mundo que a
polícia era imbecil.
Ao Pitt aterrava ter que dar a notícia a seus superiores. Permitiu-se agarrar um
cabriolé para voltar do hospital à delegacia de polícia. Quando chegou estava chovendo.
Correu escada acima, subindo precipitadamente os degraus de dois em dois em busca do
refúgio do portal. Sacudiu-se as gotas da jaqueta, salpicando o chão, e entrou.
Antes de chegar ao extremo do vestíbulo e subir as escadas para dar a notícia,
achou-se com um jovem sargento de rosto ruborizado.
— Inspetor Pitt!
Este se deteve, irritado; queria resolver aquele assunto o antes possível.
O sargento respirou fundo.
— Há outra tumba... Quero dizer, outra tumba aberta... inspetor.
Pitt ficou imóvel.
— Outra tumba? — repetiu aniquilado.
— Sim, senhor. Roubada, como a anterior. Deixaram o ataúde, mas levaram o
cadáver.
— E de quem é?
— Do senhor W. W. Porteus, inspetor. William Wilberforce Porteous, para ser exato.
Capítulo 4
Pitt não disse nada ao Charlotte sobre a segunda profanação, nem sobre o resultado
da autópsia. Ela se inteirou deste último dois dias depois, a primeira hora da tarde.
Acabava de terminar suas tarefas domésticas e de deitar a Jemima para que dormisse a
sesta quando alguém bateu na porta. A mulher que vinha três dias à semana de manhã
para fazer as tarefas mais duras se fora antes do meio-dia, de modo que foi abrir a porta.
Levou uma surpresa maiúscula ao ver o Dominic no portal. Ao princípio não pôde
articular palavra, e ficou imóvel como uma estúpida, sem convidá-lo a entrar. Tinha
mudado tão pouco que era como se a lembrança que conservava dele se fizera realidade.
Seu rosto era exatamente tal como o recordava: tinha os mesmos olhos escuros, as aletas
do nariz um tanto abertas, a mesma boca... Seu porte era igualmente elegante. A única
diferença era que sua presença já não a fazia sentir um nó na garganta. Podia ver o resto
da rua, com seus portais de pedra branca e os vidros das janelas.
— Posso entrar? — perguntou ele sobressaltado. Desta vez era ele quem parecia ter
perdido a calma.
Ela voltou a si de repente, envergonhada por sua estupidez.
— É claro. Entre.
Fez-se a um lado. Devia parecer ridícula. Eram velhos amigos e tinham vivido na
mesma casa durante anos, quando ele era seu cunhado. De fato, como não se casou em
segundas núpcias, apesar de Sara ter morrido fazia quase cinco anos, Dominic continuava
sendo um membro da família.
— Como está?
Ele sorriu rapidamente, tratando de aparentar desenvoltura e de salvar o imenso
vazio que os afastava.
— Muito bem — respondeu. — Já sei que você também o está. Posso ver com meus
próprios olhos, e Thomas me disse quando o vi o outro dia. Também me disse que têm
uma filha — exclamou.
— Sim. Jemima. Está lá em cima, adormecida. — lembrou-se de que a única lareira
da casa estava na cozinha. Era muito caro esquentar também o salão e, de qualquer
modo, passava muito pouco tempo nele, de maneira que não importava. Conduziu-o pelo
corredor, consciente das diferenças que havia entre aquela casa, com seus móveis
desgastados e seus esfregados chãos de madeira, e a casa do Cater Street com seus
cinco criados. Ao menos a cozinha estava quente e limpa. Graças a Deus tinha enchido o
fogão no dia anterior e a mesa estava quase vazia. Não estava disposta a pedir desculpas,
embora nem tanto por si mesma como pelo Pitt.
Pegou seu casaco e, depois de pendurá-lo atrás da porta, ofereceu-lhe uma cadeira.
Ele se sentou. Sabia que estava ali por alguma razão concreta e que o diria assim que
encontrasse as palavras adequadas. Era cedo para o chá, mas provavelmente teria frio, e
não lhe ocorria que outra coisa lhe oferecer.
— Quer uma xícara de chá? — perguntou.
— Obrigado — disse ele aceitando rapidamente.
Charlotte não percebeu que esquadrinhava todo o aposento comprovando sua
austeridade, quão antigos eram todos os utensílios de cozinha e o carinho de que tinham
sido objeto ao ser polidos e reparados por seus sucessivos donos.
Conhecia-a muito bem para andar-se com rodeios. Ainda se lembrava das ocasiões
que levava dissimuladamente o jornal da despensa do mordomo, quando seu pai não lhe
permitia lê-lo. Sempre a tinha tratado como a uma amiga, uma boa amiga, mais que como
a uma mulher, e essa era uma das coisas que à Charlotte tinham causado dor.
— Falou-lhe Thomas das profanações de tumbas? — perguntou-lhe sem rodeios.
Charlotte estava enchendo o bule na pia.
— Sim — respondeu com tom sereno.
— E lhe deu muitos detalhes? Disse que profanaram a de um homem chamado lorde
Augusto Fitzroy-Hammond, que desenterraram seu cadáver em duas ocasiões e o
deixaram em lugares expostos ao público? A segunda vez em seu próprio banco da igreja,
para que o encontrasse sua família.
— Sim, disse-me isso.
Fechou a torneira e pôs o bule sobre o fogão de lenha. Não lhe ocorria o que podia
lhe oferecer para comer a àquela hora do dia. Certamente já teria almoçado, e era muito
cedo para o chá da tarde. Não tinha nada elegante em casa. Ao final se decidiu por umas
bolachas que tinha feito ela mesma, umas bolachas amargas com um pouco de gengibre.
Ele a olhava, seguindo-a pela cozinha com os olhos, inquieto.
— Fizeram uma autópsia. Thomas insistiu em que o fizessem, apesar de lhe rogar
que desistisse...
— Por quê? — Olhou nos olhos e tratou de evitar toda expressão em seu rosto. Era
consciente de que ele tinha ido em busca de ajuda, mas também de que não poderia dá-la
a menos que se inteirasse da verdade ou ao menos a parte da verdade que ele conhecia.
— Por quê? — Dominic repetiu a pergunta como se lhe fosse estranha.
— Sim. — sentou-se em frente dele, do outro lado da mesa. — por que se importa
que façam uma autópsia?
Dominic caiu na conta de que Thomas não lhe tinha falado de sua relação com a
família e supôs que essa era a razão pela que ela estava confusa. Charlotte pôde observar
como os pensamentos iam a sua mente e se surpreendeu de ver a facilidade com que os
adivinhava; no Cater Street Dominic lhe tinha parecido uma pessoa misteriosa, reservada e
distante. Assim, esclareceu-lhe o mal-entendido.
— OH — exclamou Dominic reconhecendo a omissão. — Perdoa que não lhe tenha
explicado isso. Conheço lady Alicia Fitzroy-Hammond, a viúva de lorde Augusto.
Apresentaram-me ela em um baile faz certo tempo; fizemo-nos...
Titubeou, e ela soube que vacilava em lhe dizer a verdade ou não; embora não por
consideração por seus sentimentos de antigamente, já que ele nunca tinha sabido deles,
mas devido à delicadeza com que se costumavam tratar tais assuntos. A pessoa não
falava abertamente da relação que mantinha com uma mulher que acabava de enviuvar, e
menos ainda se o interlocutor fosse à esposa de outro homem. Os sentimentos pessoais,
quaisquer que fossem, expressavam-se preferivelmente de forma indireta, não explícita.
Charlotte esboçou um sorriso, lhe permitindo que se debatesse.
Ele a olhou nos olhos e sentiu que a lembrança se impunha à dúvida.
—... amigos — concluiu. — De fato, espero me casar com ela quando tiver passado o
tempo necessário.
Ela se alegrou de estar preparada; por algum motivo, teria sido uma comoção receber
a notícia sem prévio aviso. A que se deveria? À dor que sentia pela memória da Sara ou
ao que sentia por suas lembranças, pela definitiva renúncia aos sonhos de adolescência?
Fazendo um esforço por concentrar-se no assunto da profanação, perguntou:
— Então por que se importa que se faça a autópsia? Teme que o se descubra algo
mau?
Ele se ruborizou, mas continuou olhando-a fixamente.
— Não! Claro que não! É pela suspeita. O fato de que a polícia exija uma autópsia
significa que têm o convencimento de que há algo que descobrir. Em qualquer caso,
enganaram-se.
Aquilo a surpreendeu. Pitt não lhe havia dito que já a tinham feito.
— Quer dizer que já têm os resultados? — perguntou.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Sim. Não sabia?
— Não. O que acharam?
Dominic fez cara de aborrecimento e decepção.
— Não fez mais que complicar as coisas. Conseguiram que as suspeitas sejam
gratuitas sem demonstrar nada. Alicia aceitou porque Thomas lhe disse que com isso
ficaria fim a todo tipo de especulações. Mas a resposta é equívoca. Pôde ser uma
insuficiência cardíaca natural ou uma overdose de digital. E a overdose pôde ser por
acidente, já que sua mãe toma para o coração, ou um assassinato.
Naturalmente, ela sabia que lhe ia dizer aquilo, mas agora que o tinha feito não sabia
o que responder. Assim, fez-lhe a pergunta que cabia esperar.
— Há algum motivo para supor que foi um assassinato?
— O maldito cadáver foi desenterrado em duas ocasiões! — exclamou Dominic com
fúria. A ira deixava entrever sua impotência. — O que não é um acontecimento muito
habitual que digamos! Sobre tudo neste tipo de sociedade. Por Deus, Charlotte, esqueceuse que como nos afetou no Cater Street o fato de ser suspeitos de assassinato?
— Acabou com todas as aparências, de modo que pudemos ver todas as debilidades
e defeitos que tínhamos aprendido a ocultar a nós mesmos e mutuamente — respondeu
ela com voz calma. — O que tem medo de descobrir agora?
Ele a olhou de cima abaixo, com uma expressão próxima ao desagrado. Charlotte
pensou que aquele olhar deveria lhe doer, mas não foi assim, nem por sombra, pois a
verdadeira dor se achava em seu foro interno. O que sentiu bem foi uma pontada distante,
a que se sente por alguém desconhecido, cuja desgraça se viu previamente e aprendeu-se
a esperar.
— Sinto muito — disse com sinceridade, não como desculpa mas sim como
expressão de arrependimento, inclusive de compreensão. — Sinto seriamente, mas não
sei o que posso dizer ou fazer para ajudar.
Dominic notou que seu aborrecimento desaparecia. Estava apanhado; sabia o que
era a desilusão, a má vontade e o medo que quase indevidamente se iriam dar a seguir, e
estava assustado.
— Não podem deixá-lo agora? — perguntou com voz baixa, procurando ainda uma
via de escape, tenso, com as mãos pálidas sobre a mesa de madeira. — Alicia não o
matou e eu tampouco; e não é possível que o fizesse sua sogra, a menos que lhe
administrasse uma dose excessiva por engano. — Elevou a vista e olhou ao Charlotte. —
Mas ninguém pode demonstrá-lo; tudo o que fazem é suscitar dúvidas e mais duvidas
fazer que todos se olhem suspicazmente. Não pode Thomas deixá-lo agora? Se o fizesse
haveria ao menos a esperança de que o culpado desista, convença-se de que isto não tem
sentido...
Charlotte não sabia o que dizer. Teria gostado de acreditar nele e aceitar que a morte
de lorde Augusto se deveu simplesmente a uma causa natural ou um acidente. Mas então
por que se desenterrou o cadáver em duas ocasiões? E por que Dominic tinha medo? Era
simplesmente a sombra do Cater Street, que permanecia indelével em sua memória? Ou
acaso começava a temer que Alicia se apaixonasse tanto por ele que, obnubilada, tinha
chegado ao extremo de subministrar a lorde Augusto uma dose mortal do medicamento de
sua sogra? Olhou as formosas feições do Dominic e, sentindo o que em ocasiões sentia
pela Jemima, disse:
— Talvez o deixe. — Queria consolá-lo; conhecia-o desde á muito tempo e fazia
parte de sua vida, parte dos sentimentos mais profundos que tinha nutrido durante os
imaturos e vulneráveis anos que tinha vivido antes de conhecer Pitt. Entretanto, mentir
seria tão inútil como estúpido. — Mas a profanação de tumbas é um delito — acrescentou
com clareza. — E se houver alguma possibilidade de averiguar quem o fez, Thomas terá
que seguir adiante.
— Não o averiguará!
Havia-o dito com uma convicção tal que ela soube que se insistisse era por si mesmo,
não por ela.
— É provável — disse assentindo —, a menos que o voltem a fazer. Ou farão algo
diferente?
Aquela era uma idéia que ele tinha tratado de manter afastada de sua mente. Agora
Charlotte a tinha mencionado em um momento em que era impossível rechaçá-la.
— É uma loucura — respondeu enfaticamente. Era a maneira mais fácil de explicá-lo,
a única maneira aceitável. A loucura não requeria razões; graças a sua própria natureza,
qualquer incongruência podia ser explicada e deixada de lado.
— Talvez.
Ele tinha terminado seu chá; Charlotte recolheu a taça.
— Pode pedir ao Thomas? — inclinou-se com obrigação, enrugando a fronte. — Não
pode lhe fazer ver a dor que este assunto causará a pessoas inocentes? Por favor,
Charlotte... Seria injusto. Que oportunidade teremos de negar ou refutar o que só se
murmurou, o que não se haja dito abertamente? Quando a gente murmura, as mentiras
crescem e crescem à medida que passam de boca em boca...
A injustiça daquela situação acabou por convencê-la. Por um momento ficou no lugar
da Alicia, que estava apaixonada pelo Dominic; ainda podia recordar quão intenso eram
aqueles sentimentos, cheio de emoção e dor, esperanças descabeladas e azedas
desilusões. E em troca estar atada a um marido que não tinha imaginação nem senso de
humor...! Mas e se morria e finalmente ficava livre? A suspeita estenderia seus
repugnantes tentáculos e sujaria tudo; ninguém lhe diria o que pensava; tudo seriam boas
caras e compreensão em sua presença, sorrisos afetados e corteses no salão... mas assim
que partisse, a mordacidade transbordaria, estendendo-se pouco a pouco, corroendo o
fundamento de todo o bom. Além disso, a maledicência a perseguiria e os velhos amigos
deixariam de chamá-la.
Já tinha visto bastante inveja e oportunismo no passado.
— Pedirei — prometeu. — Não posso lhe dizer o que fará, mas o pedirei.
O rosto do Dominic se iluminou, fazendo-a sentir-se culpada por ter feito uma
promessa quando sabia que a influência que podia exercer sobre o Pitt era escassa em
questões relativas a seu trabalho.
— Obrigado. — levantou-se, tão elegante como sempre agora que seu medo se
desvanecera. — Não sabe quanto lhe agradeço isso. — Sorriu, e os anos passados
desapareceram como se não tivessem transcorrido. Poderiam ter sido uma vez mais
conspiradores de algo corriqueiro, como o furto do jornal de papai.
Quando Pitt chegou a casa, não lhe comentou nada a princípio e deixou que se
esquentasse, que falasse com a Jemima e a deitasse e que logo tomasse o jantar e se
relaxasse ante o fogo. A cozinha era acolhedora graças ao calor acumulado no fogão com
o passar do dia. A madeira esfregada tinha um tom pálido, quase branco, e as panelas
brilhavam nas despensas. A porcelana de adornos florais que havia sobre o aparador
refletia a luz do gás.
— Dominic esteve hoje aqui — comentou por fim com naturalidade. Estava
costurando, remendando um vestido da Jemima, quem tinha tropeçado com a prega e
tinha caído ao chão, por isso não se deu conta de que Pitt ficava rígido.
— Aqui? — perguntou.
— Sim, esta tarde.
— Para que? — Seu tom era frio e cauteloso.
Charlotte ficou um tanto surpreendida. Deixou de costurar e, com a agulha no ar,
olhou-o.
— Disse-me que fez uma autópsia a lorde como se chama?, o cadáver que caiu da
carruagem a noite que fomos ao teatro?
— Assim é.
— E que não descobriu nada concludente. Morreu de insuficiência cardíaca.
— Com efeito. E veio aqui para te dizer isso? — respondeu com sarcasmo.
— É claro que não — respondeu ela bruscamente. — Não me importa do que morreu
esse desventurado. Dominic tem medo de que a suspeita de assassinato possa a dar lugar
a maledicências e rumores e cause dor a muita gente. É quase impossível negar algo que
ninguém disse abertamente.
— Algo como que Alicia Fitzroy-Hammond assassinou o seu marido? — perguntou
ele. — Ou que foi Dominic quem o fez?
Olhou-a com certa frieza.
— Não acredito que estivesse assustado por si mesmo, se for isso o que trata de
dizer.
Mal pronunciou aquelas palavras, arrependeu-se. Amava ao Pitt, e intuía nele certa
vulnerabilidade, embora não sabia o motivo. Mas seu sentido da justiça também era forte,
e sua antiga lealdade para o Dominic estava firmemente enraizada, possivelmente porque
conhecia seus defeitos. Pitt era o mais forte dos dois e não necessitava de sua defesa.
Podiam lhe feri-lo, mas ele não o faria a si mesmo, não se derrubaria por culpa da pressão.
— Não tem por que estar — disse Pitt com secura. — Se lorde Augusto foi
assassinado, ele é um claro suspeito. Alicia recebeu uma grande herança, além de uma
excelente posição social; além disso, está apaixonada pelo Dominic e é uma mulher
extraordinariamente bela.
— Não o agrada Dominic, não é? — Charlotte não prestava atenção a suas palavras,
mas ao significado que adivinhava nelas.
Pitt ficou em pé e se aproximou da janela.
— O fato de que me agrade ou não carece de relação com este assunto —
respondeu. — Estou falando de sua posição; se lorde Augusto foi assassinado, ele é
logicamente suspeito. Seria uma ingenuidade pensar o contrário. O mundo nem sempre é
como nós gostaríamos que fosse, e às vezes inclusive as pessoas mais encantadoras, as
pessoas que conhecemos e queremos há anos são capazes de ser violentas, mentirosas e
estúpidas.
Voltou para seu lado; tinha que saber quais eram seus sentimentos. Não ia perguntar
o que tinha querido lhe dizer Dominic realmente, como tinha falado, o que tinha calado...
O rosto do Charlotte evidenciava calma, mas nem por isso deixava de refletir certa
irritação, e ele não sabia exatamente a que atribuir. Teria que insistir até averiguar,
inclusive se lhe causava dor fazê-lo, já que ignorá-lo era pior.
— Não me fale como a uma menina, Thomas — murmurou. — Isso que disse sei
perfeitamente. Não penso que o matasse ele: Dominic não seria capaz de tal extremo.
Entretanto, acredito que tem medo que ela o tenha feito. Esse é o motivo pelo que veio.
Ele a olhou com os olhos ligeiramente semicerrados.
— E que espera que faça?
— Fazê-lo ver a injustiça em que se pode incorrer se continuar com a investigação,
sobre tudo se não tem a certeza de que se cometeu um crime.
— Acha que serei injusto? — Pitt agora procurava o enfrentamento. Era melhor ouvilo que deixá-lo pendente. Entretanto ela se negou a lhe seguir o jogo e mordeu a língua em
lugar de lhe dizer que não fosse idiota. Teria gostado de dizer-lhe, mas não se atrevia. —
Charlotte! — ameaçou-a. — Acha que serei injusto porque se trata do Dominic?
Estava comportando-se como um estúpido de propósito, pensou Charlotte. Levantou
o olhar do vestido da Jemima e, sem soltar a agulha, disse com certa acrimônia:
— Não é preciso que alguém seja injusto para que se cometa uma injustiça. Todos
sabemos o que podem conduzir as suspeitas; já falamos sobre isso. E no caso de lhe
ocorrer pensar outra coisa, me deixe dizer que respondi ao Dominic que vai fazer tudo o
que corresponda e que não tenho influência sobre você.
— OH...
— De qualquer modo Dominic segue sem gostar de você — acrescentou Charlotte.
Em lugar de responder, Pitt tirou a caixa onde guardavam as peças com que estava
construindo o trem da Jemima e ficou esculpindo-as destramente com uma faca. Já tinha
conseguido a resposta ao que queria saber e por aquela noite não queria insistir mais no
assunto. Charlotte continuava zangada, mas ele sabia que não era pelo Dominic, e isto era
a única coisa que realmente importava.
Trabalhou a madeira com satisfação, sorrindo à medida que ia tomando forma.
No dia seguinte Charlotte decidiu intervir por conta própria. Embora não possuísse
nenhum vestido de inverno bom, tinha um que, apesar de ser do estilo do ano anterior,
favorecia-a. O corte lhe sentava muito bem, sobre tudo agora que seu talhe tinha
recuperado as medidas que tinha antes da concepção da Jemima. Inclusive se podia dizer
que tinha melhorado um pouco. A peça era de um tom arroxeado quente, que ia bem com
a cor de seu cabelo e sua tez.
Lembrando-se da hora a que tia Vespasia havia dito que era apropriado visitá-la,
usou o dinheiro que tinha para os gastos domésticos do dia seguinte em ir a Gadstone
Park em uma carruagem de aluguel. Não podiam vê-la chegar em um ônibus, mesmo se
este a deixava longe do parque.
A criada se surpreendeu de vê-la, mas não lhe notou muito. Charlotte não tinha um
cartão como a que apresentavam os membros da sociedade quando iam visitar alguma
casa, face ao qual manteve a cabeça erguida e rogou à criada que tivesse a bondade de
informar a sua senhora que a senhora Pitt tinha aceito seu convite.
Sentiu-se mais aliviada do que esperava quando a moça aceitou sua peculiar
apresentação e a conduziu a um salão vazio para que esperasse enquanto ela avisava a
lady Cumming-Gould. Provavelmente tinha sido a palavra "convite" o que tinha inclinado à
balança; ao fim e ao cabo, dado o caráter um tanto excêntrico de sua senhora, era muito
possível que a houvesse convidado.
Charlotte estava tão tensa que não quis sentar-se. Permaneceu de pé sem tirar o
chapéu e as luvas e tratou de adotar um ar de indiferença, se por acaso a criada voltasse
antes que ela a ouvisse. Além disso, aquilo era um bom costume.
Quando se abriu a porta, quem apareceu não foi a criada, mas tia Vespasia, vestida
de cinza pomba e com um aspecto como de figura saída de um sonho de ourives. Em seus
setenta anos estava mais deslumbrante do que jamais chegam a estar muitas mulheres.
— Charlotte! Que alegria vê-la...! Pelo amor de Deus, moça, tire o chapéu e a capa.
Minha casa não pode estar tão fria para que tenha que deixar isso postos. Dêem-me isso.
Elisa! — Sua voz ressou com um imperioso eco de obrigação e a criada apareceu
imediatamente. — Pegue a capa da senhora Pitt e nos sirva algo quente para beber.
— Que deseja a senhora? — A moça pegou as coisas.
— Não sei — lhe replicou Vespasia. — Utiliza sua imaginação! — Assim que a criada
saiu e fechou a porta, sentou-se e submeteu ao Charlotte a uma meticulosa inspeção. Ao
final soltou um grunhido e se recostou. — Tem um aspecto realmente saudável. Já vai
sendo hora de que tenha outro filho. — Fazendo caso omisso do rubor do Charlotte,
acrescentou —: Suponho que terá vindo por causa desse repulsivo assunto do cadáver,
não? O velho Augusto Fitzroy-Hammond... Sempre foi um chato; nunca soube quando era
hora de ir-se, nem sequer quando estava vivo.
Charlotte sentiu vontade de rir, como se necessitasse um desafogo para os nervos,
sobre tudo depois da desventurada e tola conversa que tinha mantido com Pitt na noite
anterior.
— Sim; ontem Dominic foi ver-me. Está realmente assustado de que a continuação
das investigações possa dar lugar a especulações desagradáveis.
— Que dúvida cabe — comentou tia Vespasia com secura. — E a maioria delas
apontarão a que quem o matou foi ele ou Alicia, ou os dois juntos.
Disse-o tão rapidamente que Charlotte pensou imediatamente no mais claro.
— Significa isso que já começaram?
— É o mais provável — respondeu a anciã. — De pouco mais se pode falar nesta
época do ano. Ao menos a metade da sociedade se encontra no campo, e quem tenha
ficado está embrutecido pelo aborrecimento. O que pode ser mais emocionante que o
rumor de uma aventura amorosa ou um assassinato?
— Isso é uma crueldade!
Charlotte sentiu aborrecimento pela falta de sensibilidade que aquilo supunha, pela
fruição que demonstravam os aficionados aos falatórios ante as tragédias de outros.
Parecia quase como se desejassem que se confirmassem.
— É claro. — Tia Vespasia a observou com os olhos semicerrados e uma mescla de
regozijo e pesar. — As coisas não mudam muito; pão e circo, já sabe... por que acha que
se atormenta aos ursos e touros?
— Esperava que tivéssemos aprendido algo — replicou Charlotte. — Agora somos
civilizados. Já não jogamos cristãos aos leões.
A anciã arqueou as sobrancelhas e disse com toda franqueza:
— Em que mundo vive, querida? Não está em dia. Os cristãos passaram de moda;
são os judeus os que agora estão em voga. São isca de circo.
Charlotte recordou de repente a refinada crueldade que se praticava em sociedade.
— Sim, sei. E suponho que se não houver um judeu ou um arrivista social à mão,
Dominic valerá igualmente bem.
A criada entrou com uma bandeja de pasteizinhos e uma prateada jarra de chocolate
quente. Deixou-a diante de tia Vespasia e esperou sua aprovação.
— Obrigada. — A anciã olhou a bandeja com cenho. — Muito bem. Já a chamarei se
necessitar para algo mais. Não estou em casa para ninguém.
— Sim, senhora.
A moça partiu com expressão de assombro. Por que, em nome de todos os Santos,
tratava sua senhoria a essa senhora Pitt, de quem ninguém tinha ouvido falar, com uma
consideração tão extraordinária? Morria de vontade por compartilhar a notícia com outros
criados e averiguar se algum deles sabia algo a respeito.
Charlotte bebeu um gole de chocolate. Embora tivesse fraqueza por ele, tratava-se
de um artigo que não podia permitir-se frequentemente.
— Suponho que alguém tem que pensar que foi assassinado — comentou ao cabo
de um momento. — Do contrário não continuariam desenterrando-o.
— Essa parece a explicação mais verossímil — disse tia Vespasia franzindo o
sobrecenho. — Mas que me pendurem se souber quem poderia fazer algo semelhante. A
menos, claro está, que seja a anciã...
— A que anciã se refere? — Por um momento não ocorreu à Charlotte a quem podia
referir-se.
— Sua mãe, a velha viúva lady Fitzroy-Hammond. Uma enguia velha e temível, que
vive em seu dormitório a maior parte do tempo, exceto aos domingos, quando vai a missa
para observar a todo mundo. Tem um ouvido de furão, embora finja surdez para que a
pessoa se expresse em sua presença. Nunca se aproxima de mim; tanto é assim que
quando soube que tinha vindo viver em Gadstone Park, guardou cama durante uma
semana. Tenho quase a mesma idade que ela e lembro perfeitamente como era faz meio
século. Passa o dia evocando sua juventude e quão maravilhosos foram aqueles dias para
ela, com seus bailes e seus passeios em carruagem, seus homens bonitos e suas
aventuras amorosas... O problema é que sua memória é bastante mais fabuladora que a
minha, e também mais picante. Lembro-a como uma moça de tez de rato, com pernas
muito curtas para mover-se com elegância, que se casou acima de sua posição e bastante
mais tarde que a maioria. E no inverno fazia o mesmo frio e as orquestras desafinavam de
igual maneira e os homens arrumados eram tão vaidosos e tolos como agora...
Charlotte sorriu sem levantar o olhar da taça de chocolate.
— Estou segura de que a detesta profundamente, inclusive embora você nunca diga
nada a respeito. Certamente há uma parte dela que recorde a verdade. Pobre Alicia...
Suponho que estará sujeita a uma constante comparação desvantajosa, como uma traça
ante as lembranças de uma mariposa.
— Bem dito. — Os olhos de tia Vespasia refulgiram em sinal de elogio. — Se a
pessoa assassinada tivesse sido a anciã, Alicia teria toda minha compreensão.
— Queria Alicia lorde Augusto...? Refiro-me a princípio.
Vespasia a olhou fixamente durante um longo tempo.
— Não seja ingênua, Charlotte. Não está há tanto tempo fora da sociedade para não
sabê-lo. Eu diria que lhe tinha carinho; ele não tinha costumes insuportáveis, ao menos
que eu saiba. Era aborrecido, mas não mais que a maioria dos homens. Não era generoso,
embora tampouco miserável. Certamente a mantinha decentemente. Raramente bebia em
excesso, embora sua moderação com o álcool não se pode pontuar de extrema. — Bebeu
um gole de chocolate e cravou o olhar nos olhos de Charlotte. — Entretanto não estava à
altura do Dominic Corde, e me atreveria a dizer que você sabe por experiência própria.
Charlotte notou que as cores lhe subiam ao rosto. Não era possível que tia Vespasia
estivesse a par de sua teimosia pelo Dominic, a menos que Thomas o tivesse contado, ou
Emily. Mas eles não teriam sido capazes de tal coisa. Tia Vespasia devia saber que era
seu cunhado; aquilo sim podia haver-lhe dito Thomas. Ela sabia que gostava de tia
Vespasia e que podia lhe haver contado aquela parte da verdade.
Charlotte escolheu as palavras cuidadosamente. Mentir não tinha sentido e a faria
perder a consideração de tia Vespasia. Fez um esforço por erguer o olhar e sorriu.
— Não, suponho que não — respondeu com naturalidade. — Sobre tudo se se
tratava do homem que tinha escolhido seu pai e não ela. A melhor maneira de que perca
interesse em algo é que lhe impeçam de escolhê-lo, até existindo a possibilidade de que
tivesse gostado de tê-lo escolhido você.
Um sorriso iluminou o rosto da anciã e pôs brilho a seus olhos.
— Então você fez bem, querida. Tenho certeza de que Thomas Pitt não é o homem
que escolheu seu pai.
Charlotte se surpreendeu sorrindo: uma onda de lembranças tinham ido a sua
memória... Para falar a verdade seu pai não lhe havia oposto muita resistência que cabia
esperar; talvez inclusive se alegrara de que por fim tivesse feito uma escolha. Fosse como
fosse, não tinha ido visitar tia Vespasia só para conversar e divertir-se. Tinha que voltar ao
assunto principal.
— Você acha que a anciã poderia ter pago a alguém para que desenterrasse lorde
Augusto com intenção de ferir a Alicia? — perguntou com franqueza. — Os ciúmes podem
chegar a ser uma obsessão, sobre tudo em quem não tem outra coisa em que ocupar-se
senão o passado. É possível que inclusive se convenceu a si mesma de que é verdade.
— Pode ser que o seja. — Tia Vespasia considerou a idéia. — Embora o duvide. Não
parece que Alicia estivesse tão desesperada para assassinar a esse velho tolo, nem
sequer pelo Dominic Corde. Embora, claro, nunca se sabe que fogo pode arder atrás de
uma aparência indolente. Possivelmente Dominic seja mais ambicioso ou esteja recebendo
mais pressão de seus credores do que supomos. Viu extremamente bem. Eu diria que a
fatura de seu alfaiate não é nada desprezível.
A idéia era desagradável, e Charlotte se negou a lhe dar crédito. Sabia que no final
possivelmente teria que aceitá-la, mas não queria fazê-lo ainda, não até que se
contemplassem todas as demais respostas.
— Que possibilidades há além dessa? — perguntou.
— Nenhuma que eu saiba — reconheceu tia Vespasia. — Não me vem à cabeça
nenhuma pessoa que Augusto conhecesse e que pudesse odiá-lo até o extremo de matálo ou querê-lo tanto para desejar vingá-lo. Augusto não era um homem que inspirasse
paixões de nenhum tipo.
Charlotte não podia render-se.
— Me fale das outras pessoas que vivem no Gadstone Park.
— Há várias que não têm interesse para você, já que partiram para passar o inverno
fora. Pelo que respeita às que ficaram, não vejo nenhum motivo pelo qual alguma possa
estar implicada, embora mais vale que os tenha em conta. Ao senhor Desmond Cantlay e
a lady Cantlay já os conhece; são bastante simpáticos e totalmente inofensivos. Se algo se
pode dizer a favor do Desmond é que deveria dedicar-se ao teatro. É o melhor ator que
jamais vi. É possível que Gwendoline esteja um pouco aborrecida, como muitas mulheres
de sua posição, que têm tudo o que necessitam e nada do que queixar-se, mas ter tido
algum amante, é indubitável que não teria sido Augusto, inclusive em caso de que tivesse
melhorado de caráter até o ponto de desejá-lo. Era muito mais aborrecido que Desmond.
— É possível que o dinheiro tenha algo que ver? — Charlotte se estava apelando
para seus últimos recursos.
Tia Vespasia arqueou as sobrancelhas.
— É pouco provável, querida. Todas as pessoas que vivem no Gadstone Park
dispõem de recursos mais que suficientes, e não acredito que nenhuma viva além de suas
possibilidades. De todo modo, se alguém se viu em um apuro teria ido aos judeus, não a
Augusto Fitzroy-Hammond. E não há herança no meio, exceto a da viúva.
— Ah. — Era decepcionante. Como sempre, qualquer possibilidade acabava
apontando ao Dominic e Alicia.
— Os St. Jermyn se davam muito com ele — prosseguiu a velha dama —, mas não
me ocorre nenhum motivo pelo qual pudessem desejar lhe fazer mal. Além disso, Edward
St. Jermyn está muito ocupado com seus assuntos e não tem tempo nem vontade para
ocupar-se de outros.
— Assuntos pessoais? — apontou Charlotte recalcando as palavras. O comentário
lhe tinha feito conceber esperanças.
Tia Vespasia fez um gesto desdenhoso.
— Absolutamente. St. Jermyn é membro da Câmara dos Lordes e tem grandes
ambições políticas. Neste momento está redigindo um projeto de lei para reformar as
condições nos asilos, sobretudo as das crianças. Acredite-me, Charlotte, é realmente
necessário. Não pode imaginar como sofrem as crianças nesses lugares; é algo que pode
afetá-los para o resto de suas vidas... Obterá um grande êxito se o conseguir e ganhará o
respeito de boa parte do país.
— Então é um reformista? — perguntou Charlotte com ilusão.
Tia Vespasia a olhou com cenho e, suspirando com certa fadiga, respondeu:
— Não, querida, receio que não é mais que um político.
— Está mostrando crueldade — reprovou-a Charlotte. — O que disse tem muito de
cinismo.
— Tem muito de verdade. Conheço Edward St. Jermyn faz tempo que, e conheci seu
pai antes que a ele. Em qualquer caso, o projeto de lei é excelente, e vou lhe dar todo o
apoio que possa. De fato, estávamos discutindo-o quando veio Thomas a semana
passada. Pelo visto não lhe mencionou isso.
— Não.
— Ao que parece é um assunto que o afeta bastante, tanto é assim acredito que teve
que fazer um esforço por manter a compostura. Olhou minhas rendas e a seda de Hester
como se o mero fato de levá-lo fosse delito. Deve ver muito mais pobreza do que
imaginamos. De qualquer modo, se não comprássemos a roupa, como conseguiriam as
costureiras os poucos pennies que ganham? — Endureceu o gesto e pela primeira vez
desapareceu de sua voz todo rastro de acuidade. — Embora Somerset Carlisle diga que
nem sequer costurando dezoito horas ao dia, até que lhes sangram os dedos, conseguem
ganhar o suficiente para viver. Muitas delas se vêem obrigadas a prostituir-se na rua, onde
em uma noite reúnem tanto como o que ganham ao cabo de duas semanas nessas
fábricas onde as exploram.
— Sei — disse Charlotte com voz calma. — Thomas raramente fala disso, mas
quando o faz demoro várias noites em tirar da cabeça as imagens que me descreve: vinte
ou trinta homens e mulheres amontoados em um aposento, provavelmente em um porão,
sem ventilação nem saneamento, trabalhando, comendo e dormindo só para reunir o
suficiente para sobreviver. É uma indecência. Só Deus sabe como deve ser um asilo
quando continuam preferindo as fábricas. Sinto-me culpada por não fazer nada, e mesmo
assim continuo sem fazer nada.
O rosto de tia Vespasia mostrou calidez ante a honestidade de Charlotte.
— Sei, querida. Mas há pouco que possamos fazer. Não se trata de um caso isolado,
nem sequer de cem casos, mas sim de toda uma ordem de coisas. Mediante a caridade
não poderia melhorar a situação, nem sequer se dispusesse dos meios para isso. O que se
precisa são leis. E para propor leis terá que estar no Parlamento. Esta é a razão pela qual
nos fazem falta homens como Edward St. Jermyn.
Guardaram silêncio durante um momento; ao final Charlotte voltou para aquilo que
podia conseguir ou ao menos tentar conseguir.
— Isso não explica por que a tumba de lorde Augusto foi profanada, não?
Tia Vespasia pegou o último pastelzinho.
— Não, absolutamente. Embora tampouco acredite que outros residentes do
Gadstone Park nos esclareçam a situação. Somerset Carlisle nunca demonstrou nada a
Augusto salvo a cortesia que exigem as boas maneiras; igual a St. Jermyn, está muito
ocupado com o projeto de lei. O comandante Rodney e suas duas irmãs são muito
reservados. Elas estão solteiras e o mais certo é que continuem assim. Entretêm-se com
tarefas domésticas, em sua maior parte de natureza refinada, por exemplo a costura de
qualidade e a produção de infinitas quantidades de geléia. Também acredito que fazem
vinho caseiro com ingredientes tão horrorosos como o nabo branco e as urtigas. É algo
realmente espantoso... Só o provei em uma ocasião. O comandante Rodney já deixou o
exército, é claro; coleciona mariposas ou algo pequeno que se arrasta com dúzias de
patas. Está há vinte anos escrevendo suas memórias da Criméia. Não tinha idéia de que
tivessem ocorrido tantas coisas ali.
Charlotte dissimulou um sorriso.
— Depois há um retratista — prosseguiu tia Vespasia. — Godolphin Jones, mas está
há certo tempo fora, na França, se não me engano, assim é pouco provável que ele seja
quem desenterrou Augusto. E não me ocorre nenhuma razão pela qual quereria fazê-lo. A
única pessoa que fica — concluiu — é um americano chamado Virgilio Smith. É realmente
atroz, é claro. A sociedade acabará aborrecendo-o se tiver o descaramento de continuar
aqui na próxima temporada, embora, todos terão que dizê-lo, tem uma fortuna graças a
algo extremamente ordinário que possui no lugar de que procede: ganho ou algo assim...
assim, ninguém poderá evitar de tratá-lo com cortesia ao mesmo tempo. Será
extremamente divertido, embora espere que ao pobre homem não lhe façam muito dano. É
um homem afável e não parece dar-se ares, o que é uma mudança. Naturalmente, suas
maneiras e seu aspecto são desastrosos, mas o dinheiro redime muitos pecados.
— E a amabilidade ainda mais — indicou Charlotte.
— Não em sociedade. — Tia Vespasia a olhou com cenho. — Em sociedade tudo
tem que ver com as aparências e nada com o que é. Este é um dos motivos pelo qual lhe
será muito difícil averiguar se Augusto foi assassinado, quem o fez e por que... E ainda
mais se a alguém importa.
Coibida mas com a sensação de estar sendo objeto de uma hospedagem excessiva,
Charlotte voltou para casa na carruagem de tia Vespasia. Ia lhe dando voltas ao que tinha
conseguido, ou melhor, ao que não tinha conseguido. Enquanto isso, na igreja do St.
Margaret dois coveiros tomavam sob a chuva uma pausa da longa e pesada tarefa que era
preparar a terra que ia receber pela terceira vez a Augusto Fitzroy-Hammond.
— Não sei, Harry — disse um deles, enxugando uma gota que tinha na ponta do
nariz. — Estou começando a pensar que poderia ganhar a vida fazendo só isto: enterrando
a sua senhoria. Assim que o enterramos vem um estúpido e volta a tirá-lo.
— Eu que o diga — disse Harry sorvendo sonoramente pelo nariz. — Eu comecei a
sonhar com isto, sério: passar a vida entrando e saindo desta maldita tumba. Deveria ouvir
o que opina minha Gertie deste assunto. Diz que eles o assassinaram para que não
descanse e, deixa que te diga uma coisa, Arthur: estou começando a pensar que tem
razão. Parece-me que esta não será a última vez que vamos entrar nesta tumba.
Arthur cuspiu e voltou a agarrar a pá. O golpe seguinte golpeou a tampa do ataúde.
— Pois bem, deixa que lhe diga outra coisa, Harry: esta é a última vez que o farei.
Não quero ter nada que ver com um assassinato ou com o cadáver de um homem
assassinado. Não me importa enterrar homens decentes que morreram por causas
naturais. Enterrarei todos os que forem precisos. Mas há duas coisas que não aguento.
Um são a crianças; não suporto enterrar recém-nascidos. A outra são as pessoas
assassinadas. E já enterrei a este homem em duas ocasiões. Se desta vez não ficar em
seu lugar, será melhor que não devam pedir-me o outra vez, porque não penso fazê-lo. Já
basta. Que os policiais averiguem quem acabou com ele e então possivelmente fique em
seu lugar. Isso é o que penso.
— Eu também — concordou Harry com veemência. — Sou um homem paciente,
Deus sabe. Neste trabalho acaba-se vendo muitos mortos e sabendo quem é importante e
quem não. Todos terminamos ao final da mesma maneira; mas há alguns que esquecem
quando lhes conviria ter isso presente. De qualquer modo me acabou a paciência e não
penso ficar a ver mais cadáveres de assassinados. Estou de acordo com você: que sejam
os policiais quem o enterre da próxima vez. Não lhes irá nada mal o exercício.
Tinham limpado a terra da tampa do ataúde e saído da tumba para agarrar as cordas.
— Suponho que quererão o ter bem limpo para que possam olhá-lo — disse Arthur
com asco. — Certamente celebram outro funeral por ele. Devem estar fartos de lhe fazer
as últimas honras.
— Mas não serão os últimos, não é? — disse Harry com secura. — Serão os
penúltimos ou os antepenúltimos... Quem sabe quando poderá descansar em paz! Olhe,
agarra a outra ponta da corda.
Deslizaram as cordas por debaixo do ataúde e começaram a puxá-las para tirá-lo.
Soltaram vários grunhidos e algum ou outro juramente, mas pelo resto trabalharam em
silêncio até que deixaram o féretro sobre a úmida terra ao lado da enorme cova.
— Deus, este maldito traste pesa uma tonelada — exclamou Harry. — Parece como
se estivesse cheio de tijolos. Não lhe terão metido algo, verdade?
— Como o que? — perguntou Arthur sorvendo pelo nariz.
— Não sei. Quer olhar?
Arthur vacilou um momento, mas a curiosidade o venceu e foi levantar um dos cantos
da tampa. Como não estava atarraxada, não ofereceu resistência.
— Deus todo-poderoso! Maldição!
O rosto do Arthur empalideceu completamente.
— O que ocorre? — Harry se aproximou dele, mas se deteve o golpear o pé contra o
canto do ataúde. — Maldito traste de merda! O que ocorre, Arthur?
— Está dentro — exclamou Arthur com voz rouca. Levando a mão ao nariz,
acrescentou —: Podre como um demônio, mas está dentro.
— Não é possível — disse Harry com incredulidade. Aproximou-se mais e olhou ao
interior do ataúde. — Merda! Tem razão. Está dentro. Que demônios significa isto?
Quando Pitt se inteirou se sentiu realmente abalado. Era absurdo, quase incrível.
Ajustou o cachecol, enterrou o chapéu até as orelhas e saiu às gélidas ruas. Queria ir
andando para ter tempo de fazer uma composição de lugar.
Havia dois cadáveres, já que a assombração no banco da igreja se achava no
necrotério. Por conseguinte, um deles não era lorde Augusto Fitzroy-Hammond. Tratou de
recordar a identificação. Só Alicia tinha identificado à assombração na carruagem de
aluguel à saída do teatro. Pensando bem, ela esperava que fosse seu marido. Ele mesmo
lhe tinha dado a entender que se tratava de seu marido. Só lhe tinha jogado uma olhada e
logo tinha afastado a cabeça. Era compreensível. Possivelmente seus olhos só tinham
visto o que esperavam ver e ela não tinha identificado realmente o cadáver.
Não obstante, o segundo cadáver, a assombração no banco da igreja, tinha-o visto
não só Alicia, mas também a anciã, o vigário e, em último lugar, o doutor McDuff, quem
cabia supor que estaria bastante habituado à imagem de um morto, embora ainda não
tivessem passado três semanas de seu falecimento.
Cruzou a rua, que estava coberta de excrementos e desperdícios procedentes de
uma carruagem de verduras. O menino que estava costumava limpar o cruzamento tinha
bronquite e certamente estaria oculto em algum dos inumeráveis tugúrios onde, atrás da
fachada de uma fábrica, amontoavam-se os indigentes.
Assim, a explicação mais sensata era que o segundo cadáver era lorde Augusto e o
primeiro outra pessoa. Como a tumba do William Wilberforce Porteous também tinha sido
profanada, cabia supor que seria seu cadáver o que tinham enterrado no cemitério do St.
Margaret.
Seria melhor que pedisse à viúva que o identificasse. Mas devidamente esta vez.
Às seis e meia o vento se acalmou, deixando que a névoa se apropriasse de tudo,
amortecendo os ruídos e atendendo o fôlego com seu penetrante frio. Pitt ia em um
cabriolé em companhia da corpulenta senhora Porteous, dolorosamente espartilhada e
vestida de negro, em direção ao necrotério onde aguardava-os o primeiro cadáver.
Estavam obrigados a viajar com grande lentidão, já que o cocheiro não via além de três ou
quatro metros. As luzes de gás apareciam à vista como olhos detestáveis, surgindo da
noite como voando, e desapareciam a suas costas como se os tragasse o vazio.
Avançavam de uma a outra, tão sós como se se encontrassem no meio do oceano.
Pitt se esforçava em achar algo que dizer à senhora que viajava a seu lado, mas por
muito que se espremesse os miolos não havia nada que não fosse corriqueiro ou ofensivo.
Ao final se rendeu com a esperança de que seu silêncio parecesse ao menos uma mostra
de condolência.
Quando finalmente a carruagem se deteve, Pitt desceu com pressa, mas sem
elegância e lhe ofereceu a mão. A senhora Porteous se apoiou pesadamente nela, por
uma questão de equilíbrio mais que de formalidade.
Uma vez no necrotério foram recebidos pelo mesmo alegre e asseado jovem cujos
óculos sempre estavam deslizando o pelo nariz. Em várias ocasiões se dispôs a comentar
o extraordinário do ocorrido, já que nunca tinha recebido o mesmo cadáver duas vezes
como naquela ocasião, mas em seguida decidia abster-se, consciente de que seu
entusiasmo profissional era de mau gosto e poderia ser interpretado mal pela viúva ou
inclusive pelo Pitt.
Afastou o lençol e pôs cara de circunstância.
A senhora Porteous olhou diretamente ao cadáver, arqueou as sobrancelhas e,
voltando-se para Pitt, disse com voz equânime:
— Este não é meu marido. Não se parece nada a ele. O senhor Porteous tinha barba
e o cabelo negro... Este homem está quase calvo. É a primeira vez em minha vida que o
vejo.
Capítulo 5
Como o cadáver desconhecido estava no necrotério, não havia motivo para demorar
o enterro de Augusto. Apesar de que, certamente, teria sido absurdo celebrar outra
cerimônia, considerou-se uma falta de respeito não honrar a ocasião de algum jeito. Seria
uma amostra de condolência para com a família, e possivelmente também de respeito nem
tanto para Augusto como para a própria morte.
Naturalmente, Alicia não teve outro remédio que assistir. Quanto à velha dama, em
princípio pensou que o assunto lhe tinha diminuído tanto as forças que não poderia estar
presente, mas logo decidiu que seu dever era despedir-se do finado pela última vez... E,
por favor, Deus santo, que fosse em efeito a última! Acompanhou-a, como sempre, Nisbett,
que foi vestida do negro mais austero.
Alicia se achava na sala da manhã esperando a carruagem quando Verity entrou
procedente do vestíbulo. Estava pálida e o negro a fazia parecer mais jovem do que era.
Tinha um ar de inocência que frequentemente tinha levado a Alicia a perguntar-se como
tinha sido sua mãe; possuía um caráter peculiar que não tinha nada que ver com o de
Augusto, e era tão diferente da velha dama como uma lebre de uma doninha. Era
estranho, mas na escuridão da noite Alicia tinha chegado a falar com a defunta mãe como
se tivesse sido amiga dela, alguém que podia compreender o que supunham a solidão e
aqueles sonhos que, embora frágeis, eram extremamente necessários. A seu entender, a
primeira esposa de Augusto, que havia falecido aos trinta e quatro anos de idade, era
muito parecida com ela.
Por ela e pelas ridículas conversas mantidas na escuridão, Alicia tinha a sensação de
que Verity era quase filha dela, apesar de que só se tivessem uns anos de diferença.
— Tem certeza de que deseja vir? — perguntou-lhe. — Ninguém pensaria mal se
preferisse não fazê-lo.
Verity fez um discreto gesto de negação.
— Não acha que eu não gostaria, mas não posso permitir que vá sozinha.
— Sua avó também vem — respondeu Alicia. — Não estarei sozinha.
Verity esboçou um sorriso circunspeto; era a primeira vez que Alicia a via fazê-lo.
Tinha amadurecido muito desde a morte de seu pai, ou possivelmente essa era a primeira
vez que se sentia bastante livre para expressar-se daquela maneira.
— Então não há mais que discutir — disse. — Isso é pior que ir sozinha.
Em outra ocasião talvez Alicia fizesse alguma objeção a aquela resposta por uma
questão de forma, mas aquele dia a hipocrisia parecia deslocada. O momento requeria
conter-se, e a forma era irrelevante.
— Obrigada — se limitou a dizer. — Me será menos desagradável se estiver ali.
De repente Verity lhe obsequiou com um amplo sorriso, em sinal quase de
conspiração; mas antes que Alicia pudesse lhe responder ambas ouviram a anciã dar
golpes de bengala no vestíbulo, aproximando-se delas. Nisbett abriu a porta de par em par,
fazendo-a virar completamente sobre as dobradiças, e a anciã surgiu com expressão
iracunda. Examinou as duas meticulosamente, notando-se em cada detalhe de seus trajes,
dos chapéus e os véus de luto até as brilhantes botas negras. Assentindo com a cabeça,
perguntou-lhes com tom ameaçador:
— Bom, virão ou pensam ficar aí toda a manhã como dois corvos sobre uma cerca?
— Estávamos esperando-a, avó — se apressou a responder Verity. — Não iríamos
sem você.
A anciã soltou um grunhido e a seguir, lançando a Alicia um olhar viperino, exclamou:
— Achava que possivelmente estivesse esperando a esse senhor Corde ao que tanto
estima. Mas vejo que desta vez não está aqui. Talvez tema por sua pele. Ao fim e ao cabo,
parece que enterra maridos com mais frequência que a maioria das mulheres.
Pegou o braço de Nisbett e saiu dando uma paulada no umbral da porta como se
este pudesse haver-se afastado de seu caminho sendo consciente de seu dever.
— Não seria apropriado que o senhor Corde viesse. — Alicia não pôde evitar sair em
sua defesa e dar uma explicação, apesar da anciã já não poder ouvi-la e Verity tinha
reagido unicamente baixando o olhar. — É um assunto íntimo. Não espero a ninguém mais
que à família, e possivelmente às poucas pessoas que conheciam bem a Augusto.
— É claro — murmurou Verity. — Seria uma insensatez esperar que viesse.
Entretanto, havia certo tom de decepção em sua voz, e quando Alicia a seguiu fora e
entrou atrás dela na negra carruagem, não pôde evitar perguntar-se por que Dominic não
tinha enviado ao menos uma nota. Que não assistisse era fácil de compreender: o bom
gosto lhe impedia de fazê-lo. Dado seu amor pela Alicia, teria sido um tanto insolente fazer
uma vez mais ato de presença em um novo enterro do marido desta; entretanto, não lhe
haveria custado nada enviar uma breve nota para expressar seus pêsames.
Alicia estava destemperada devido a um frio que não tinha nada que ver como vento
nem com as correntes de ar que sopravam dentro da carruagem. Acaso tinha dado muita
importância a suas adulações, a seus olhares de ternura, a sua maneira de requerer sua
companhia? Uns dias atrás teria jurado que a amava. Ela o amava com a maior ilusão;
estava disposta a rir das coisas mais tolas e de compartilhar os pensamentos mais íntimos
e os repentinos momentos de entendimento. Mas e se fosse só ela quem albergava tais
sentimentos? E se se tinha equivocado ao lhe entregar seu coração? Ao fim e ao cabo,
não lhe tinha expressado aqueles sentimentos em uma amostra, a seu entender, de
delicadeza por sua situação, em um primeiro momento como mulher casada e logo como
mulher que acabava de enviuvar. Mas possivelmente não os tinha expressado
simplesmente porque não existiam. Muitas pessoas adoravam flertar; era uma espécie de
jogo, um exercício de habilidades, uma vaidade...
Mas Dominic não podia ser assim. Seu rosto, evanescente, surgiu ante ela entre suas
lembranças, os olhos escuros, as finas sobrancelhas, a curva da boca, o sorriso sempre
disposto. As lágrimas foram a seus olhos e escorregaram por suas faces. Em qualquer
outra ocasião se haveria sentido envergonhada, mas agora ia sentada em uma carruagem
sombria, em um dia chuvoso e rude, a caminho do terceiro enterro de seu marido. A
ninguém chamaria a atenção seu pranto e, além disso, seria necessário olhar com atenção
para percebê-lo através de seu véu.
A carruagem se deteve de repente, e o lacaio abriu a porta, deixando entrar uma
gélida rajada de ar. A primeira em descer foi a anciã, que segurou a bengala cruzada para
que ninguém lhe adiantasse. A seguir o lacaio ajudou a Alicia. Chovia com maior força que
antes, de tal forma que a água correu pela aba de seu chapéu e caiu pela parte dianteira
lhe salpicando o rosto.
O vigário falou com a anciã e depois estendeu a mão a Alicia. Embora não fosse um
homem alegre, aquele dia seu rosto evidenciava uma profunda desdita. Alicia esboçou um
sorriso para si mesma que não chegou a refletir-se em seus lábios. Embora aquele homem
não fosse de seu agrado, podia compreendê-lo. Ao fim e ao cabo, aquela era uma ocasião
que provavelmente não teria precedentes para ele, daí que não encontrasse palavras com
que expressar-se. Tinha frases feitas para todos os acontecimentos previsíveis: batismos,
falecimentos, bodas e inclusive escândalos; mas quem podia esperar enterrar ao mesmo
homem em três ocasiões no curso de poucas semanas?
Poderia ter se posto a rir, bem que com certo histerismo, mas tinha visto ao longe a
magra e elegante figura de um homem. Por um momento o coração lhe deu um tombo.
Seria Dominic? Então comprovou que não o era: aquele homem tinha os ombros mais
fortes e magros, e em seu porte mostrava um ar diferente. Era Somerset Carlisle.
Assim que ela pôs-se a andar por entre os atoleiros do atalho, ele se aproximou e lhe
ofereceu seu braço.
— Bom dia, lady Fitzroy-Hammond — disse amavelmente. — Lamento que isto seja
necessário. Esperemos que terminem o antes possível. Possivelmente a chuva tire a
vontade ao vigário de dizer umas palavras. — Sorriu. — vai se molhar até o tutano se ficar
aqui fora muito tempo.
Era uma idéia agradável: ficar aí, ao lado da tumba, enquanto o vigário falava e falava
monotonamente; seria o cúmulo da desdita. A anciã parecia um pássaro negro empapado,
com as penas encrespadas e cara de estar cega de ira. Verity tinha abaixado a cabeça e
tinha os olhos semicerrados para que ninguém pudesse adivinhar seus sentimentos. Alicia
não conseguia ver se aquela postura se devia à dor que sentia por seu pai ou a que não
prestava a menor atenção ao serviço, embora imaginou que se tratava deste último.
Como se não houvesse outras pessoas que pudessem assistir à cerimônia, lady
Cumming-Gould tinha decidido fazer ato de presença. Sua dignidade era tão esplêndida
como sempre, até o ponto de que se não tivesse sido por seu vestido de luto cor lavanda
escuro, poderia haver-se pensado que se achava em uma festa ao ar livre em lugar de ao
lado de uma tumba aberta em um chuvoso dia de inverno.
O comandante Rodney também se achava ali, apoiando-se ora sobre um pé ora
sobre o outro, sacudindo a água do bigode e evidentemente incomodado ante as
circunstâncias. Só a consciência do dever podia lhe haver levado até o cemitério. Lançava
uma e outra vez olhadas coléricas a suas irmãs, quem cabia supor tinham insistido para ir.
Estavam aninhados os três juntos, com os olhos bem abertos, como animaizinhos que
acabassem de despertar da hibernação.
Só uma pessoa mais tinha feito ato de presença: Virgilio Smith, que parecia enorme
com a cabeça descoberta e o pesado casaco que levava. Alicia não pôde evitar reparar em
seu abundante cabelo e no fato de que o tinha talhado à altura dos lóbulos das orelhas.
Certamente, alguém deveria lhe recomendar um bom barbeiro.
O vigário começou a falar, mas em seguida se sentiu insatisfeito de suas palavras,
por isso se interrompeu e voltou a começar de forma totalmente diferente. Além disso, só
se ouvia a chuva, que caía a rajadas formando redemoinhos, e o longínquo rangido dos
ramos que estremeciam a mercê do vento. Os pressentes guardavam silêncio.
Finalmente o vigário perdeu os papéis e concluiu com uma exclamação categórica:
— Confia à terra o corpo de nosso irmão, Augusto Albert William Fitzroy-Hammond!
— Respirou fundo e ergueu sua voz até convertê-la em um grito. — Até que se levante no
dia da ressurreição dos justos, quando a terra entregue os seus mortos! Que o Senhor
tenha piedade de sua alma!
— Amém! — responderam todos com alívio.
Deram meia volta e se encaminharam com indecorosa pressa para a saída. Quando
todos se amontoaram debaixo desta, a velha dama anunciou de repente algo assombroso:
— Pelo motivo do funeral vai se servir em casa um café da manhã para todo aquele
que deseje vir.
Disse-o quase como um desafio: um desafio para quem tivesse a falta de vergonha
de não aceitar o convite.
Produziu-se um momentâneo silêncio, seguido por um murmúrio de agradecimento.
Apressadamente todos saíram à chuva, avançaram salpicando a água que corria pelo
atalho e subiram a suas respectivas carruagens, com as calças e as saias empapadas. Os
cavalos cruzaram o parque a passo lento. Em outras circunstâncias, teriam ido ao trote,
mas era inconcebível que alguém abandonasse um funeral a toda pressa.
Ao chegar a casa, Alicia encontrou os criados que estavam preparados para receber
aos convidados, apesar dela não o ter ordenado. No vestíbulo reparou no olhar de Nisbett
e viu nela um brilho de satisfação. Aquilo explicava muitas coisas. Algum dia daria seu
castigo a Nisbett; era uma promessa.
Enquanto isso devia fazer um esforço por comportar-se como se esperava dela.
Embora tinha sido sua sogra quem os havia convidado, a anfitriã era ela, já que aquela
tinha sido a casa de Augusto e, portanto, agora era dela. Deu a boas-vindas aos
convidados e lhes agradeceu sua presença, depois do que ordenou aos lacaios que
jogassem lenha ao fogo das lareiras para que ardesse lentamente e secassem os casacos
e capas. A seguir conduziu aos convidados ao salão, onde o cozinheiro tinha preparado
um sortido de canapés e pratos para a ocasião. Não era um dia apropriado para pratos
frios, embora fossem tão deliciosos como os bolos de carne ou o salmão; ao menos a
alguém tinha ocorrido preparar vinho quente com especiarias. Alicia duvidou que o tivesse
decidido a anciã; provavelmente teria sido Milne, o mordomo. Devia lembrar-se de lhe
agradecer.
A conversa era artificial; ninguém sabia o que dizer. Já se tinham expressado todas
as condolências; dizer uma vez mais que lamentavam o ocorrido seria inapropriado até o
ponto de ser ofensivo. O comandante Rodney balbuciou algum comentário sobre o tempo,
mas como estavam em pleno inverno o tema não interessou a ninguém. Começou então a
relatar umas lembranças a respeito dos muitos homens que tinham morrido de
congelamento no Sebastopol, mas ao ver que todos o olhavam ficou a pigarrear e acabou
calando-se.
A senhorita Priscilla Rodney fez alguma observação a propósito da qualidade do
molho picante que se serviu junto com um dos bolos, mas se ruborizou quando Verity lhe
agradeceu já que ambas sabiam que o que fazia Priscilla era imensamente melhor. Aquele
não era o forte da cozinheira; se dava melhor com as sopas e molhos. Além disso, sempre
jogava muita pimenta aos escabeches, e estes acabavam abrasando aos paladares.
Como lady Cumming-Gould parecia satisfeita com apenas observar, foi Virgilio Smith
quem os resgatou recorrendo à única conversa viável. Estava olhando fixamente um
retrato da Alicia que havia sobre a lareira, um estudo grande e bastante convencional
pintado sobre um fundo marrom que não a favorecia. Pertencia a uma longa série de
retratos familiares cujo começo se remontava a duzentos anos atrás. O da anciã pendia no
vestíbulo, e nele aparecia muito jovem, como se fosse uma lembrança tirada de um livro de
história, vestida com um traje imperial dos dias posteriores à queda do Napoleão.
— Eu adoro esse quadro, senhora — disse sem deixar de contemplá-lo. — É um bom
retrato, embora receio que a cor de fundo não a favorece muito. Eu imagino você com um
fundo verde, digamos.... rodeada de árvores e erva, e possivelmente também flores.
— Não esperará você que Alicia tenha que sair ao campo para posar para um retrato!
— saltou a anciã. — Talvez se passem o dia em meio da selva lá de onde você provém,
senhor Smith, mas aqui temos outros costumes.
— Não estava pensando precisamente em uma selva, senhora — disse este sorrindo
e fazendo caso omisso de seu tom exasperado —, mas em um jardim, em um jardim de
campo inglês cheio de salgueiros com suas folhas ondeando livremente.
— Não se pode pintar algo ondeando — respondeu ela com aspereza.
— Eu acredito que um bom artista poderia fazê-lo. — O senhor Smith não se
arredava. — Ou poderia pintar o de tal forma que o espectador tivesse a sensação de que
ondeassem.
— Experimentou você pintar alguma vez? — perguntou-lhe a anciã lhe fulminando
com um olhar que teria sido mais eficaz se não se visse obrigada a elevar a vista.
Entretanto, a mãe do finado lorde Fitzroy-Hammond era quase trinta centímetros mais
baixo que Virgilio Smith e nem sequer seu volumoso corpo podia compensar a diferença.
— Não, senhora — respondeu ele negando com a cabeça. — E a senhora pinta?
— É claro — exclamou a anciã arqueando bruscamente as sobrancelhas. — Todas
as damas bem educadas pintam.
A idéia que ocorreu ao senhor Smith como consequência desta resposta se refletiu
imediatamente em seu rosto:
— Foi quem pintou esse quadro, senhora?
Ela ficou gelada.
— Claro que não! Não pintamos com fins comerciais, senhor Smith — respondeu
considerando a sugestão com a mesma repugnância que se tivesse insinuado que recolhia
a roupa estendida.
— De qualquer modo não importa. — Somerset Carlisle observou o quadro com olho
crítico. — Acredito que Virgilio tem razão. Teria ficado melhor com um fundo verde. Esse
marrom é bastante sombrio e apaga a cor da tez. Danifica todos os tons.
O olhar da anciã passou dele a Alicia e desta ao quadro. Sua opinião da tez da Alicia
era terminante.
— O pintor o fez sem dúvida o melhor que soube! — exclamou.
A senhorita Mary Ann interveio erguendo a voz.
— Por que não pede que lhe façam outro, querida! Estou certa de que no verão seria
realmente delicioso sentar-se no jardim para que a retratem. Poderia encarregar ao senhor
Jones; conforme soube, é um pintor excelente.
— É muito caro — disse a anciã desdenhosamente, — que não é o mesmo. De
qualquer modo, se encarregássemos outro quadro teria que ser o retrato do Verity —
acrescentou voltando-se para ela. — É pouco provável que sua beleza aumente com os
anos. Algumas mulheres melhoram um pouco ao fazer-se mais velhas, mas esse não é o
caso da maioria. — Lançou um fugaz olhar a Alicia. —Encarregaremos a esse Jones.
Como se chama?
— Godolphin Jones — respondeu a senhorita Mary Ann.
— Que ridicularia! — disse a anciã entre dentes. — Godolphin! Mas no que estaria
pensando seu pai? Isso sim, não vou pagar um preço exorbitante, advirto-os.
— Não é preciso que pague nada — disse Alicia. — Pagarei eu se Verity desejar um
retrato. E se preferir que não o pinte Godolphin Jones, chamaremos a outro pintor.
Aquela resposta sossegou à anciã por um momento.
— De qualquer modo Godolphin Jones está fora neste momento — indicou Vespasia.
— Soube que se encontra na França. Pelo visto é algo obrigatório para os artistas.
Dificilmente pode considerar-se alguém artista em sociedade se não foi a França.
— Que se foi? — balbuciou o comandante Rodney no momento em que se dispunha
a beber. Depois de soltar um espirro, acrescentou —: Por quanto tempo? Para quando o
espera?
Vespasia o olhou um pouco surpreendida.
— Não sei. Se for importante para você, pode pedir informação em sua casa, embora
pelo que me disseram meus criados, ali tampouco sabem. A informalidade também parece
formar parte do caráter dos artistas.
— OH, não! — apressou-se a responder o comandante Rodney, agarrando um
pastelzinho de carne e deixando-o cair. — Não se trata disso. Só tentava ajudar.
O comandante pegou de novo o pastelzinho, mas o desfez sobre a toalha. Virgilio
Smith lhe entregou um guardanapo e um prato e a seguir lhe ajudou a recolhê-lo com uma
faca.
A anciã soltou um grunhido e voltou a cabeça para outra parte.
— Imagino que será um pintor competente...
— Pede preços exorbitantes — respondeu a senhorita Priscilla. — Vi o retrato que
pintou de Gwendoline Cantlay. Quando ela me disse quanto tinha pagado por ele, tenho
que dizer que me pareceu muito, apesar de ser um bom retrato.
— E isso é em contas resumidas tudo o que é — comentou Carlisle fazendo uma
careta de desdém com a boca. — Um bom retrato. Reflete algo de seu caráter, embora
seria estranho que não fosse assim tratando-se de um retrato. Mas não é arte. Não se
deseja o ter a menos que sinta apreço por Gwendoline.
— Não é esse o fim de um retrato? — inquiriu a senhorita Mary Ann inocentemente.
— O de um retrato possivelmente, — respondeu Carlisle — mas não o de uma
pintura. Uma boa pintura deveria causar prazer a qualquer pessoa, tanto se o tema lhe é
conhecido como se não o é.
— Valoriza isso em excesso — disse a anciã fazendo um gesto de assentimento — e
lhe paga em excesso. Eu não penso pagar tanto. Se Gwendoline Cantlay o tiver feito,
então é uma estúpida.
— Hester St. Jermyn pagou uma quantidade parecida — indicou a senhorita Priscilla
com a boca cheia. — E lhes posso assegurar que nosso querido Hubert pagou um bom
preço pelo quadro que o senhor Jones nos pintou, não é, querido?
O comandante Rodney avermelhou como tomate e obsequiou a sua irmã com um
olhar de aborrecimento.
— Vi o retrato de lady Cantlay — disse Virgilio Smith enrugando a frente. — Não o
compraria se estivesse à venda. Parece-me... sobrecarregado. Uma dama não deveria ter
esse aspecto.
— E você o que sabe dessas coisas? — replicou-lhe a anciã zombeteiramente. — Há
damas no lugar de onde vem?
— Não, senhora, parece-me que você não as chamaria damas — respondeu ele
lentamente. — Mas vi algumas por aqui. Acredito que a senhorita Verity é uma dama e
merece um retrato que lhe faça honra.
Verity se ruborizou de satisfação e lhe dirigiu um de seus escassos sorrisos. Alicia se
surpreendeu pensando de repente que aquele homem lhe era muito agradável, apesar de
suas maneiras e feições pouco agraciadas.
— Obrigada — disse Verity com voz calma.— Acho que eu gostaria que me fizessem
um retrato, no verão, se a Alicia não se importa.
— É claro que não me importa — lhe assegurou esta. — Pedirei informe para achar à
pessoa adequada. — Era consciente de que Virgilio Smith a estava observando. Era uma
mulher bela e estava acostumada a que a admirassem; entretanto, naquele olhar havia
algo mais pessoal e que a fazia sentir-se desconfortável. Queria romper aquele silêncio,
por isso, procurando algo que dizer, voltou-se para a Vespasia e perguntou —: Lady
Cumming-Gould, saberia me recomendar a alguém que pudesse pintar um bom retrato de
Verity? A você devem tê-la pintado em muitas ocasiões.
No rosto da Vespasia se refletiu certa satisfação.
— Ultimamente não, querida. Mas vou perguntar entre meus conhecidos. Tenho
certeza de que pode achar a alguém melhor que Godolphin Jones. Acredito que algumas
pessoas o têm em grande estima, ou ao menos isso é o que se deduz do preço que pede;
mas estou de acordo com o senhor Smith. Tem um estilo um tanto recarregado; falta-lhe
elegância.
A velha dama lhe lançou um olhar iracundo e abriu a boca, mas viu que Vespasia a
observava com gesto destemido e voltou a fechá-la. A seguir pôs os olhos em Virgilio
Smith como se fosse uma desagradável mancha no tapete.
— Precisamente — apontou Carlisle com satisfação. — Neste momento há muitos
pintores em ativo. O mero fato de que Godolphin viva no Gadstone Park não é razão para
contratá-lo obrigatoriamente.
— Gwendoline lhe encomendou dois quadros — comentou a senhorita Priscilla. —
Não consigo entender por que.
— Talvez porque gosta dele — sugeriu a senhorita Mary Ann. — Há pessoas que
devem gostar dele; do contrário não pagariam tanto dinheiro por eles.
— A arte é em grande medida uma questão de gosto, não é assim? — Alicia olhou a
uma e depois à outra.
A anciã soltou um grunhido.
— É claro. De bom gosto e... de mau gosto. Só a gente ordinária, que tem
conhecimentos limitados, julga tudo do ponto de vista econômico. — Uma vez mais a anciã
pousou os olhos fugazmente em Virgilio Smith e a seguir olhou para outra parte. — O
importante é o tempo: se algo perdurar, então tem algum valor. As pinturas antigas, as
casas antigas, o sangue antigo...
Alicia sentiu vergonha por ele, como se fosse ela a um mesmo tempo o objeto da
ofensa e a pessoa que o tinha motivado pelo fato de que a velha dama fosse membro de
sua família.
— A mera sobrevivência dificilmente pode ser uma amostra de virtude. —
Surpreendeu- lhe ouvi-lo falar com um tom no que se mesclavam a veemência e algo que
a velha dama só podia interpretar como insolência. Entretanto, desejava tanto lhe
contrariar que lhe foi impossível conter as palavras que lutavam por brotar de seus lábios
—: Ao fim e ao cabo a enfermidade também sobrevive.
Todos tinham os olhos postos nela, e a anciã a estava olhando com expressão de ter
sido golpeada com a banqueta.
Somerset Carlisle foi o primeiro em reagir.
— Bravo! — exclamou animadamente. — Um argumento excelente, embora algo
excêntrico. Não sei se ao Godolphin seria grato, mas o certo é que devem resumir a
relação entre a arte, a sobrevivência e o preço.
— Não o compreendo. — A senhorita Priscilla entortou os olhos penosamente. —
Não vejo a relação absolutamente.
— A isso precisamente me refiro — disse ele. — Não há nenhuma.
A anciã golpeou o chão com a bengala. Tinha apontado ao pé do Carlisle, mas
falhou.
— É claro que há — resmungou. — O dinheiro é a raiz de todos os males. Diz a
Bíblia. Ou acaso também questiona você isso?
— Equivocam-se com a entrevista — respondeu Carlisle, que não se arredava. Sem
mover os pés, acrescentou —: O que diz é: "O amor ao dinheiro é a raiz de todos os
males." As coisas não são más, a não ser as paixões que despertam na gente.
— Isso não é mais que um sofisma — respondeu ela com repugnância. — E este não
é momento para isso. Vá a seu clube se gostar deste tipo de conversas. Este café da
manhã é por um funeral. Agradecer-lhe-ia que o recordasse.
Ele fez uma discreta reverência.
— Certamente, senhora; acompanho-a no sentimento. — E voltando-se para a Alicia
e Verity acrescentou —: E a vocês também, é claro.
De repente todos recordaram que aquela era a terceira ocasião em que assistiam a
semelhante ato. O comandante Rodney se desculpou com certa estupidez rompendo o
grave silêncio que se deu a seguir; pegou a suas irmãs pelo braço e virtualmente as puxou
em empurrões ao vestíbulo, onde o lacaio tinha recebido ordem de lhes levar os casacos.
Vespasia e Carlisle foram os seguintes em ir-se.
Virgilio Smith ficou um momento ao lado da Alicia preso da indecisão.
— Há algo que eu possa fazer, senhora? — Parecia desconfortável, como se
quisesse dizer algo e não encontrasse as palavras adequadas.
Consciente de sua amabilidade, Alicia se sentiu igualmente torpe. Expressou-lhe seu
agradecimento mais apressadamente do que era sua intenção e ele se despediu não sem
certo rubor nas faces.
— Já vejo que seu amigo o senhor Corde não veio — disse a velha dama
malevolamente. — Teria coisas mais importantes que ocupar-se?
Alicia não fez conta. Não sabia por que Dominic não lhe tinha enviado uma nota,
umas flores ou uma carta de pêsames. Era algo no que preferia não pensar.
Na manhã do enterro Dominic tinha vacilado. Levantou-se e vestido com a intenção
de assistir à cerimônia para estar junto à Alicia em circunstâncias que certamente iriam ser
lhe extremamente difíceis. Verity era muito jovem e vulnerável para proporcionar muito
consolo, e ele sabia que a anciã podia chegar inclusive a lhe pôr as coisas mais difíceis. A
ninguém pareceria estranha sua presença, já que se interpretaria como uma amostra de
respeito. Ao fim e ao cabo, já o tinham convidado ao primeiro funeral.
Mas logo se olhou no espelho, para dar o último retoque a sua imagem, e tinha
recordado a visita que tinha feito ao Charlotte. Jamais tinha entrado na moradia de um
trabalhador nem na de um profissional como a do Pitt. Pensando bem, era estranho como
se havia sentido confortável e o pouco que Charlotte tinha mudado. Naturalmente, teria
sido diferente se se tivesse ficado muito tempo; entretanto, durante aquela hora o entorno
tinha carecido de importância.
De qualquer modo, o que Charlotte lhe havia dito era uma questão totalmente
distinta. Embora não tinha utilizado aquelas mesmas palavras, tinha-lhe perguntado se
Alicia teria sido capaz de assassinar a seu marido. Charlotte sempre se expressara com
uma franqueza vizinha à falta de tato.
Dominic sorriu recordando algum dos incidentes protagonizados por ela com
resultados socialmente desastrosos. A imagem do espelho lhe devolveu o sorriso.
Naturalmente, ele o tinha negado: a Alicia não lhe teria ocorrido fazer semelhante
coisa. O velho Augusto era um aborrecido, tagarelava sem cessar e se considerava um
perito na construção de ferrovias; talvez o fosse, já que sua família tinha ganho muito
dinheiro com aquela atividade. Entretanto, não era um tema sobre o que se pudesse
pontificar durante todo um jantar. Dominic ainda não tinha conhecido nenhuma mulher que
tivesse um mínimo interesse na construção de ferrovias. E os homens interessados se
podiam contar com os dedos das mãos.
Mas aquilo não era motivo para cometer um assassinato. Para chegar a matar a
alguém, a pessoa tinha que sentir-se realmente desesperado, fosse por ódio, medo ou
avareza ou porque a pessoa em questão era um obstáculo para alcançar aquilo que se
desejasse...
Dominic se deteve com a mão sobre a gola da camisa. Imaginou a si mesmo casado
com uma mulher de sessenta anos que lhe dobrasse a idade, aborrecida e ostentosa,
cujos sonhos pertencessem ao passado, que só tivesse por diante a decadência de uma
velhice caracterizada pela lentidão e palavrório... Uma relação sem amor. Possivelmente
um dia ou uma noite a necessidade de escapar se fizesse insuportável, e havendo um
frasco de remédio sobre a mesa, poderia conceber-se algo mais simples que administrar
uma dose excessiva? Que fácil seria aumentá-la um pouco toda vez, até que a quantidade
não fosse excessiva mas sim suficiente para ser mortal...
Mas Alicia jamais teria feito algo semelhante!
A imagem da jovem viúva surgiu em sua mente: a pele branca, a curva de seu peito,
o brilho que iluminava seus olhos quando ria... ou quando o olhava. Em uma ou duas
ocasiões a havia tocado de uma maneira mais íntima do que permitia a simples gentileza.
Ela tinha algo, uma espécie de peculiaridade, certa forma de mover a cabeça, que
recordava Charlotte. Não conseguia seja saber o que; era algo indefinível.
Mas Charlotte seria capaz de matar por algo que considerasse importante! Daquilo
estava tão certo como de que era sua própria imagem a que via no espelho. A moralidade
poderia detê-la, mas nunca a indiferença.
Era possível que Alicia tivesse matado realmente a Augusto e que sua sogra
soubesse? Se assim era, ele estava envolvido no assunto; ele tinha sido o motivo do
acontecido.
Lentamente se desenredou a gravata e tirou o capote negro. Se era certo o que
pensava (e cabia essa possibilidade), seria melhor para todos e mais ainda para a Alicia
que não assistisse ao enterro. A anciã estaria esperando a ocasião, aguardando para
lançar um comentário mordaz ou inclusive uma acusação aberta.
Enviar-lhe-ia flores... amanhã; umas flores brancas, apropriadas para a ocasião. E
possivelmente no dia seguinte a chamaria. A ninguém pareceria estranho.
Trocou a calça negra por uma mais informal: o cinza que levava pela manhã.
Na manhã seguinte foi encomendar as flores e se sentiu escandalizado ao inteirar-se
de seu preço. Mas, como o vento gélido que soprava na rua se encarregou de lhe recordar,
era 1 de fevereiro e mal tinha florescido um casulo. O sol brilhava a intervalos, e os
atoleiros das calçadas demoravam a secar. Um vendedor de rua assobiava atrás de uma
carruagem cheia de couves. Aquele dia os funerais e as idéias relacionadas com a morte
pareciam longínquos. A liberdade era um tesouro, mas também um dom de todas as
pessoas, não algo pelo que fosse necessário lutar.
Foi andando a bom passo até seu clube e, uma vez ali, sentou-se comodamente
atrás de um jornal. Então, quando os pensamentos começavam a confundir-se o com os
sonhos, uma voz o interrompeu.
— Bom dia. Você é Dominic Corde, se não me engano.
Dominic não tinha vontade de falar. Todo cavalheiro sabia que não devia tentar travar
conversa com ninguém pela manhã, sobre tudo se a outra pessoa segurava um jornal. Era
Somerset Carlisle. Embora o tivesse visto só em algumas ocasiões, era um homem que
não se esquecia com facilidade.
— Sim. Bom dia, senhor Carlisle — respondeu com frieza, e já estava levantando
novamente o jornal quando Carlisle se sentou e lhe ofereceu sua caixa de rapé.
Dominic recusou; o rapé o fazia tossir. Espirrar era aceitável; muita gente espirrava
ao tomar rapé. Entretanto, tossir e lacrimejar era simplesmente uma amostra de estupidez.
— Não, obrigado.
Carlisle guardou a caixa sem tomar nada e comentou:
— Hoje faz um dia mais agradável, não é?
— Sim, certo — disse Dominic sem soltar o jornal.
— Alguma notícia interessante? — inquiriu Carlisle. — O que aconteceu no
Parlamento?
— Não sei. — Dominic nunca lia as notícias sobre o Parlamento. O Governo era algo
necessário, mas qualquer homem em seu são julgamento sabia que também era
terrivelmente aborrecido. — Não tenho a menor ideia.
Carlisle o olhou com toda a perplexidade que a gentileza lhe permitia exibir.
— Soube que você era amigo de lorde Fleetwood.
Dominic se sentiu adulado. Embora a palavra amigo talvez fosse exagerada, o certo
era que ele e lorde Fleetwood se conheceram fazia pouco e tinham bom trato. Ambos
gostavam dos cavalos, tanto para montá-los como para tiro. Embora possivelmente
mostrasse menos arrojo que Fleetwood para isso, Dominic tinha uma maior habilidade
natural que ele.
— Sim — lhe assegurou cautelosamente. Não adivinhava o motivo da pergunta do
Carlisle.
Este sorriu, reclinando-se comodamente na cadeira e estirando as pernas.
— Pensava que falaria com você de política — acrescentou com naturalidade. —
Fleetwood poderia ter um grande peso na câmara se o desejasse. Tem muitos partidários
jovens.
Dominic se surpreendeu; o mais sério de que falavam era de bons cavalos e, de vez
em quando, de mulheres. Entretanto, pensando-o bem, era certo que em alguma ocasião
Fleetwood fazia alusão a certos amigos deles que possuíam títulos de nobreza, embora o
fato de que assistissem às sessões da câmara ou não era um assunto completamente
diferente. A metade dos pares da Inglaterra só se aproximavam da Câmara dos Lordes
para entrar no clube mais próximo. Entretanto Fleetwood tinha, com efeito, um círculo
numeroso, e não era um exagero dizer que Dominic se achava naquele momento em sua
periferia.
Carlisle aguardava.
— Pois não — respondeu Dominic. — Costumamos falar de cavalos. Não acredito
que a política lhe interesse muito.
A surpresa do Carlisle se refletiu em seu rosto de maneira quase imperceptível.
— Acredito que não percebe o potencial que tem. — Fez um sinal a um dos garçons
do clube, e, quando este se aproximou, voltou-se de novo para o Dominic. — Almoce
comigo. Têm um cozinheiro novo certamente excelente e ainda não provei sua
especialidade.
Dominic tinha pensado comer tranquilamente algo mais tarde, mas aquele homem lhe
era bastante simpático e, além disso, era amigo de Alicia. Por outra parte, não se podia
recusar um convite sem ter um bom motivo.
— Obrigado — respondeu.
— Bem. — Carlisle se voltou para o garçom com um sorriso. — nos atenda quando o
cozinheiro estiver preparado, Blunstone. E traga um pouco desse tinto, o mesmo da última
vez. O Bordéus era horroroso.
Blunstone fez uma leve inclinação e se afastou proferindo murmúrios de
assentimento.
Carlisle deixou que Dominic continuasse lendo o jornal até que o almoço estivesse
servido. Então se dirigiram ao restaurante; quando já tinham comido a metade de um
ganso assado com um generoso recheio e acompanhado com verduras, frutas e um fino
molho, Carlisle reatou a conversa.
— Que opinião lhe merece? — perguntou-lhe erguendo as sobrancelhas.
Dominic tinha perdido o fio.
— Fleetwood? — perguntou.
Carlisle sorriu.
— Não, o cozinheiro.
— OH, é excelente. — Dominic tinha a boca cheia e teve dificuldades para responder.
— Realmente excelente. Deveria comer aqui mais frequentemente.
— Sim, é um lugar muito confortável — disse Carlisle virando a cabeça para olhar o
amplo salão, com suas escuras cortinas de veludo, as lareiras que havia a cada lado, o
acolhedor fogo que ardia nelas, suas paredes azuis e os retratos do Gainsborough que as
adornavam.
O comentário era de certo modo insuficiente. A Dominic havia custado três anos
conseguir que o escolhessem como membro e lhe desgostava que a seu lucro lhe
concedesse tão pouca importância.
— É algo mais que cômodo, diria eu — respondeu com certa aspereza.
— Tudo é relativo. — Carlisle tomou outro pedaço de ganso. — É muito possível que
no Windsor comam melhor. — Engoliu o bocado e bebeu um gole de vinho. — Embora,
por outro lado, há milhares de casas e tugúrios em um quilômetro ao redor onde a gente se
amontoa e os ratos cozidos são considerados um luxo.
Dominic se engasgou com o ganso e começou a tossir. O salão começou a dar voltas
em torno dele, e por um momento pensou que ia cometer a imperdoável estupidez de
vomitar no restaurante. Demorou vários segundos em recuperar a compostura, limpar a
boca com um guardanapo e erguer a vista. Carlisle o estava olhando fixamente com
expressão de curiosidade. Não lhe ocorria o que lhe dizer. Aquele homem tinha um
comportamento ridículo.
— Lamento-o — disse Carlisle com escassa convicção. — Não se deve danificar uma
boa comida falando de política — acrescentou com um sorriso.
Pegou Dominic totalmente despreparado.
— De... de política? — balbuciou.
— É verdadeiramente desagradável — insistiu Carlisle. — É mais grato falar de
corridas de cavalos ou da moda. Já observei que seu amigo Fleetwood adotou um novo
corte de jaqueta. Favorece-lhe o bastante, não lhe parece? Tenho que falar com meu
alfaiate para ver se pode fazer algo parecido com os meus.
— De que demônios está falando? — exclamou Dominic. — Falou "ratos"! Ouvi-o!
— Possivelmente deveria ter dito asilos — respondeu Carlisle escolhendo as palavras
cuidadosamente. — Ou leis para crianças indigentes. É tão difícil saber o que se tem que
fazer quando há famílias inteiras nos asilos, crianças que convivem com malandros e
vagabundos, sem educação, trabalhando de sol a sol... Embora isto sempre é melhor que
morrer de fome ou de frio, que é a alternativa que têm... Viu o tipo de gente que vive nos
asilos? Imagine a influência que tem em uma criança de quatro ou cinco anos de idade.
Viu também as enfermidades, a ventilação, a comida...?
Dominic se lembrou de sua infância: de uma babá, a que recordava só vagamente e
confundia com sua mãe, e de uma preceptora; e logo depois da escola, e das longas férias
do verão; o arroz com leite, que ele detestava, e o chá da tarde, com sua geléia, sobre
tudo a geléia de framboesa... lembrou-se das canções que cantavam ao redor do piano,
das bolas de neve, das partidas de críquete ao sol, de quando roubava ameixas, quebrava
janelas e recebia palmadas por sua insolência...
— Isso é uma ridicularia! — exclamou bruscamente. — Os asilos são um alívio
temporário para quem não pode achar um trabalho legítimo. E um gasto que assumem os
distritos com fins beneficentes.
— OH, sim, muito beneficentes. — Carlisle observava o rosto do Dominic com olhos
brilhantes. — As crianças de três ou quatro anos vivem com os refugos da sociedade e
começam a conhecer o desespero no próprio berço; os que não morrem por consequência
de uma enfermidade causada por mantimentos podres, má ventilação ou infecções...
— Pois bem, terá que se pôr fim a essa situação — exclamou Dominic taxativamente.
— Terá que se limpar esses lugares.
— É claro — disse Carlisle com um gesto de assentimento. — Mas com o que? Se
não forem à escola nem sequer aprenderão a ler e escrever. Como vão sair do círculo que
supõe ir da vagabundagem ao asilo e do asilo à vagabundagem? O que podem fazer?
Limpar passos de pedestres um dia sim e outro também? Ganhar a vida nas ruas
enquanto tenham bom aspecto e depois procurar trabalho em uma fábrica? Sabe você o
que ganha uma costureira por costurar uma camisa, incluindo costuras, punhos, golas,
casas e quatro fileiras de pontos no peitilho?
Dominic pensou no que custavam suas camisas.
— Dois xelins? — aventurou ao acaso, inclinando-se para quantidades modestas,
que era o que Carlisle sugeria.
— Que esbanjador é você! — exclamou Carlisle com acrimônia. — Por esse dinheiro
teria que costurar dez camisas.
— Mas então do que vivem?
O ganso estava ficando frio em seu prato.
Carlisle ergueu as mãos.
— A maioria se dedica à prostituição de noite, para alimentar a seus filhos; estes,
quando são bastante maiores, também trabalham, porque do contrário têm que voltar para
os asilos e dá começo uma vez mais o ciclo do que lhe falei.
— E os maridos? Alguma delas tem que estar casada, não? — Dominic procurava
respostas lógicas e sensatas que explicassem aquele desastre.
— OH, sim, algumas estão casadas — respondeu Carlisle. — Mas é mais barato
empregar a uma mulher que a um homem. Não é necessário pagar muito a uma mulher,
assim os homens não trabalham.
— Isso... — Dominic procurou uma palavra, mas não a achou. Olhou ao Carlisle de
cima abaixo enquanto o ganso se esfriava irremediavelmente no prato.
— Política, — murmurou Carlisle voltando a agarrar o garfo — e educação.
— Como pode você continuar comendo? — inquiriu Dominic com brutalidade. Se o
que lhe havia dito era certo, comer agora era algo repugnante, uma indecência.
Carlisle levou uma parte de ganso à boca e falou antes de engoli-la
— Porque se não comesse cada vez que falo de fábricas, meninos ignorantes,
indigentes, doentes ou desamparados, não comeria nunca, e do que serviria isso? Em uma
ocasião apresentei minha candidatura ao Parlamento e não fui eleito. Minhas idéias eram
em extremo impopulares entre as pessoas que têm o voto. Os trabalhadores mau pagos
não votam, sabe você? São mulheres em sua maioria, muito jovens e muito pobres...
Agora tenho que tentar pela porta de trás, na Câmara dos Lordes, com gente como seu
amigo Fleetwood ou como St. Jermyn e seu projeto de lei. Os pobres lhes importam um
nada, provavelmente nunca viram um de verdade, mas têm bom olho para as causas...
Que coisas tão maravilhosas são as causas.
Dominic afastou seu prato. Se o que lhe tinham contado era certo e não um
melodramático bate-papo de almoço destinada a escandalizar, as pessoas como
Fleetwood deviam fazer algo. Carlisle tinha toda a razão.
Tomou seu copo de vinho e se alegrou de que tivesse uma embocadura limpa;
necessitava algo para tirar o gosto do paladar. Tomara nunca se encontrasse com
Somerset Carlisle; aquele homem tinha cometido uma grosseria ao convidá-lo para comer
e lhe falar de semelhantes coisas. Eram ideias das que resultava impossível livrar-se.
Pitt tinha recebido ordem de seus superiores de que prestasse atenção a um delito
de extravio que se cometera em uma firma local. Quando voltava para a delegacia de
polícia depois de um dia dedicado a interrogar empregados e ler intermináveis arquivos
que não compreendia, um agente lhe saiu ao encontro com olhos arregalados.
— Do que se trata desta vez? — perguntou Pitt cansativamente.
O agente retorcia as mãos devido à ansiedade e a angústia contidas.
— Tornou a acontecer! — grasnou.
Pitt sabia a que se referia, mas não se deu por informado.
— O dos cadáveres, senhor... acharam outro fora da tumba.
Pitt fechou os olhos.
— Onde?
— Em um parque, senhor. No St. Bartholomew"s Green, senhor. Em realidade não é
um parque, mas uma parte de grama de forma alongada com umas poucas árvores e um
par de bancos. Encontraram-no em um deles; estava erguido e tudo, à vista de quem
passasse, mas morto, senhor, morto e bem morto. Acredito que levava tempo ali.
— Que aspecto tem? — perguntou Pitt.
O agente fez uma careta.
— Horrível, senhor, realmente horrível.
— É claro que tem um aspecto horrível! — exclamou Pitt, perdendo a paciência. —
Refiro-me a se é jovem ou velho, alto ou baixo... Vamos! Você é um policial, não um
novelista de três quartos! Que tipo de descrição é "horrível"?
O agente se ruborizou.
— Era alto e corpulento, senhor, e tem o cabelo e as costeletas negras. Está vestido
com um capote que parece de segunda mão. Não fica muito bem, senhor; não tem aspecto
de cavalheiro.
— Bem — disse Pitt. — Onde está?
— No depósito de cadáveres, senhor.
O inspetor deu meia volta e tornou a sair. Percorreu as poucas quadras de distância
que havia entre a delegacia de polícia e o necrotério, avançando com a cabeça encurvada
para evitar a chuva e dando voltas a todas as respostas concebíveis que pudessem
explicar fatos tão repugnantes e aparentemente absurdos como os que estavam
acontecendo. Quem demônios podia estar desenterrando cadáveres que não guardavam
relação entre si? E ainda mais importante: por quê?
Quando chegou ao depósito o ajudante estava tão animado como sempre apesar de
ter contraído uma gripe. Conduziu Pitt até a mesa e afastou o lençol com o mesmo gesto
de um mago ao tirar um coelho da cartola.
Tal como lhe havia dito o agente, o corpo pertencia a um homem robusto de idade
madura, de cabelo e costeletas negras.
Pitt soltou um grunhido e disse com irritação: — O senhor William Wilberforce
Porteous, suponho.
Capítulo 6
Pitt não podia fazer nada exceto ir para casa, por isso depois de agradecer ao
ajudante, saiu à rua, onde continuava chovendo. Andou durante meia hora sem parar e
finalmente entrou em sua rua. Cinco minutos mais tarde se achava sentado em frente do
fogão da cozinha, cuja porta tinha aberto para que saísse o calor, com as barras da calça
levantadas e os pés metidos em uma bacia cheia de água quente. Charlotte estava de pé a
seu lado segurando uma toalha.
— Está empapado! — exclamou com irritação. — Tem que comprar um par de botas
novas. Onde demônios esteve?
— No necrotério. — Moveu lentamente os dedos do pé na água, deixando que a
prazenteira sensação invadisse pouco a pouco todo seu corpo. Estava quente e o
formigamento que lhe produzia aliviava o intumescimento dos pés com uma carícia quase
dolorosa. — apareceu outro cadáver.
Olhou-o fixamente com a toalha entre as mãos.
— Quer dizer que tornaram a desenterrar um? — perguntou com incredulidade.
— Sim. Deve estar morto há três ou quatro semanas.
— OH, Thomas. — Seus olhos se escureceram com expressão de horror. —Que tipo
de monstro pode ser capaz de desenterrar mortos e deixá-los em carruagens ou igrejas? É
uma loucura. — De repente, veio-lhe uma idéia e empalideceu. — OH! Não pensará que o
fez outra pessoa, não é? Quero dizer, acha possível que, em caso de que lorde Augusto
fosse assassinado ou de que alguém o acredita assim e tenha desenterrado seu cadáver
para chamar a atenção sobre isso, a pessoa que o matou ou alguém que tema ser
suspeito do crime tenha desenterrado o cadáver de um homem a quem nem sequer
conhece para obscurecer a hipótese do assassinato?
Pitt a olhou pensativamente, esquecendo da água quente.
— É consciente do que está dizendo? — perguntou-lhe olhando-a fixamente. — Isso
apontaria ao Dominic ou a Alicia, ou a ambos.
Charlotte guardou silêncio durante vários segundos. Entregou-lhe a toalha e, quando
ele se secou os pés, pegou a bacia e puxou a água pela pia.
— Não acredito que seja esse o caso — respondeu ainda de costas a ele.
Pitt não percebeu angústia em sua voz, só duvida e um pouco de surpresa.
— Quer dizer que Dominic não é capaz de cometer um assassinato? — perguntou
procurando adotar um tom impessoal. Entretanto não pôde evitar que em suas palavras
houvesse certa azedume, reflexo de seus antigos temores.
— Sim. — Secou a bacia e a guardou. — Mas inclusive no caso de que tivesse
assassinado a alguém, estou certa de que não lhe ocorreria desenterrar cadáveres e
deixá-los por aí para ocultar o assassinato. A menos que tenha mudado mais do que
considero possível que mude a pessoa.
— Possivelmente Alicia o tenha mudado — insinuou Pitt. Mas nem ele mesmo
acreditava naquela possibilidade. Esperava que sua esposa lhe dissesse que poderia ter
sido Alicia com ajuda de outra pessoa. Tinha dinheiro de sobra para pagar a alguém. Mas
Charlotte não disse nada. — Acharam-no no parque. — Estendeu a mão para alcançar as
meias três-quartos secas; ela desprendeu o varal do teto para que as pegasse e depois
voltou a pô-lo em seu lugar. — Sentado em um banco — acrescentou. — Pela descrição
que me deram, acredito que se trata do homem cuja tumba profanaram a semana
passada: o senhor W. W. Porteous.
— Tem alguma relação com o Dominic e Alicia ou com algum residente do Gadstone
Park? — perguntou Charlotte ao mesmo tempo em que se voltava para o fogão. — Quer
um pouco de sopa antes de jantar?
— Sim, por favor — respondeu ele imediatamente. — O que há para jantar?
— Bolo de rim e carne. — Agarrou uma tigela e uma colher e lhe serviu uma
generosa porção de sopa, cheia de alho-porro e cevada. — Tome cuidado, está muito
quente.
Ele ergueu o olhar e, sorrindo-lhe, pegou a tigela e a apoiou sobre os joelhos tratando
de colocá-la de maneira estável. Tinha razão; estava muito quente. Pôs-lhe debaixo um
pano de cozinha para proteger-se e por fim respondeu:
— Nenhuma absolutamente, que eu saiba.
— Onde vivia? — Charlotte se sentou diante dele e esperou que terminasse a sopa
antes de servir a carne e a verdura. Havia-lhe custado certo tempo aprender a cozinhar
bem e de maneira econômica, e gostava de observar o resultado de seus esforços.
— Perto do Resurrection Row — respondeu Pitt, segurando a colher.
Ela franziu o sobrecenho, perplexa.
— Tinha entendido que essa zona era bastante... bastante pobre.
— E o é. Essa rua está em más condições, e o lugar é um pouco sórdido. Que eu
saiba tem dois bordéis, ambos dissimulados com grande discrição. Também há uma casa
de penhor onde encontramos uma quantidade de objetos roubados maior que de costume.
— Bom, Dominic não pode ter relação alguma com esse lugar, e Alicia ainda menos
— disse Charlotte com convicção. — É possível que Dominic tenha estado em um lugar
como esse; inclusive os cavalheiros chegam a fazer esse tipo de raridades...
— Sobre tudo os cavalheiros — precisou Pitt.
Charlotte deixou passar a ironia e prosseguiu:
— Em troca a Alicia nem sequer soará o nome.
— Acha que não?— A pergunta era sincera; Pitt não sabia com certeza.
Ela o olhou com paciência, e por um momento ambos foram conscientes da distância
social que os afastava.
— Sem lugar a dúvida — disse meneando a cabeça levemente. — As mulheres cujos
pais têm pretensões sociais, verdadeiras ou imaginárias, estão mais protegidas, e inclusive
encerradas, pelo que acho. Papai não me permitia ler o jornal, embora eu, a diferença da
Sara e Emily, costumava ir às escondidas à despensa do mordomo para pegá-lo. Papai
pensava que não era apropriado que uma senhorita soubesse nada controvertido ou
minimamente escandaloso ou perturbador. Tais coisas não se podiam mencionar em uma
discussão...
— Já sei que... — disse Pitt, mas foi interrompido.
— Acha que o comportamento de meu pai não era comum? — Voltou a menear a
cabeça, desta vez com veemência. — Pois não, não o era absolutamente. Meu pai não era
nem mais estrito nem mais protetor que qualquer outro. As mulheres podem saber o que é
a enfermidade, um parto, a morte, o aborrecimento ou a solidão, mas nada sobre o que se
possa discutir: a verdadeira pobreza, as enfermidades endêmicas ou os crimes. Sobre tudo
não podem saber nada sobre o sexo. Não se deve ter em consideração nada que seja
inquietante, sobre tudo se alguém se sente empurrada a pô-lo em julgamento ou mudá-lo.
Pitt a olhou surpreso; estava ouvindo Charlotte falar de uma parte de suas ideias que
não conhecia.
— Não sabia que estivesse tão ressentida por isso — respondeu lentamente,
estendendo o braço para deixar a tigela sobre a mesa.
— Não sabia? — perguntou-lhe ela com tom desafiante. — Sabe quantas vezes
chega a casa e me fala das tragédias que viu e que nunca deveriam ter ocorrido? Graças a
você sei pelo menos que atrás das ruas elegantes se ocultam tugúrios onde as pessoas se
amontoam e morrem de fome e frio, onde há sujeira por toda parte e ratos e enfermidade,
onde as crianças aprendem a roubar para sobreviver, assim que podem dar dois passos.
Eu nunca estive em tais lugares, mas sei que existem e posso cheirá-los em sua roupa
quando chega a casa de noite. Não há outro aroma que lhe pareça.
Pitt pensou na Alicia, com suas sedas e sua inocência. Charlotte era igual a ela
quando a tinha conhecido.
— Sinto muito — murmurou.
Ela abriu a tampa do forno com um trapo e tirou o bolo.
— Não tem por que — disse ela bruscamente. — Sou uma mulher, não uma menina,
e posso suportar saber deste tipo de coisas assim como você. O que vai fazer com o
assunto desse Porteous? — Agarrou uma faca e cortou uma fatia de bolo; o molho saiu a
fervuras pela grossa crosta de soro de cor marrom. Por muitas casas lotadas de indigentes
que houvesse, para Pitt aquele cheiro sempre abria o apetite.
— Me certificar de que é realmente Porteous — respondeu. — Depois, suponho,
averiguar do que morreu e quem sabe algo a respeito dele.
Charlotte serviu as cenouras e a couve.
— Se o cadáver for do senhor Porteous, a quem pertencia então o primeiro cadáver,
o da carruagem?
— Não tenho a menor ideia. — Soltou um suspiro e pegou o prato de suas mãos. —
Poderia ser de qualquer um!
Na manhã seguinte Pitt concentrou sua atenção no cadáver sem identificar. A
solução de todo aquele assunto não podia excluí-lo, ou ao menos não podia excluir seu
nome e a causa de sua morte. Talvez fosse a vítima do assassinato, e lorde Augusto o
recurso utilizado para desviar a atenção, para despistar. Também podia ser que ambos os
homens tivessem estado envolvidos em algo juntos.
Mas que assunto podia ter vinculado a lorde Augusto Fitzroy-Hammond e ao senhor
William Wilberforce Porteous do Resurrection Row e ter dado como resultado um
assassinato? E o homem que tinha aparecido na carruagem? Quem era a outra parte
interessada, a pessoa que os tinha desenterrado a todos?
O primeiro passo era descobrir a causa exata pela qual tinha morrido o homem
aparecido na carruagem de aluguel. Se tinha sido um assassinato, ou havia a possibilidade
de que o fosse, a profanação da tumba de lorde Augusto tomava um significado totalmente
novo. Onde estava a tumba vazia e por que ninguém tinha denunciado a profanação?
Podia se supor que teriam a tornado a encher e deixado de tal maneira que não chamasse
a atenção.
Mas os falecimentos normais requeriam a certificação de um médico. Uma vez
conhecida a natureza do falecimento, podia-se começar a investigar todas as mortes
causadas por tal motivo. Pouco a pouco se iriam eliminando casos até achar finalmente ao
finado em questão. Assim teriam um nome, uma referência e uma história.
Assim que chegou à delegacia de polícia, ordenou a seu sargento que se ocupasse
do caso de desvio e subiu ao piso de cima a pedir permissão para praticar uma autópsia
ao cadáver sem identificar. Ninguém pôs nenhum reparo. Ao fim e ao cabo, como não se
tratava de lorde Augusto e ninguém se apresentou na delegacia de polícia para reclamá-lo,
dadas as circunstâncias devia considerar a possibilidade de que fosse um assassinato. A
permissão foi concedida imediatamente.
O seguinte passo consistia na desagradável tarefa de certificar-se de que o último
cadáver recebido no necrotério era o do W. W. Porteous, apesar de que Pitt tinha poucas
dúvidas a respeito. Voltou a pôr o chapéu e o capote, saiu à rua, onde garoava
intermitentemente, e pegou um ônibus que se dirigia ao Resurrection Row. Percorreu uns
cem metros, dobrou para a direita e procurou o número 10, onde vivia a senhora Porteous.
Era uma das casas maiores da rua; estava um pouco desgastada por fora, mas tinha
o degrau branqueado e as janelas adornadas recatadamente com caixilhos brancos. Fez
soar a campainha e deu um passo atrás.
— Sim? — Uma robusta moça com um vestido de tecido negro e um avental
engomado abriu a porta e lhe lançou um olhar de interrogação.
— Está a senhora Porteous em casa? Trago informação relacionada com seu finado
marido.
Pitt sabia que se lhe dizia que era da polícia, os criados levariam a notícia a toda a
rua em menos de um dia e o assunto se iria transformando em um escândalo à medida
que fosse difundindo-se.
A moça ficou boquiaberta.
— OH! Sim, é claro, senhor. Será melhor que entre. Se esperar no vestíbulo,
comunicarei à senhora Porteous que se encontra aqui, senhor. Que nome tenho que
mencionar?
— Senhor Pitt.
— Bem, senhor.
Dito aquilo, a criada partiu a informar a sua senhora.
Pitt se sentou. A sala estava lotada de móveis e objetos: fotografias, adornos, um
quadro de renda no qual se lia "Teme a Deus e cumpre seu dever", arranjos de flores
secas e duas plantas enormes, brilhantes e verdes em vasos. Pitt sentiu uma intensa
claustrofobia. Tinha a espantosa sensação de que aquele conjunto de coisas estava vivo e
de que, quando ele não olhava, aproximava-se sigilosamente a ele, faminto e adotando
uma atitude de defesa com respeito ao estranho que tinha invadido seu território. Ao final
preferiu esperar de pé.
A porta se abriu e apareceu a senhora Porteous, tão vigorosamente espartilhada
como sempre, penteada à perfeição e com as faces maquiadas de ruge. Seu peitilho
estava adornado com uma inumerável quantidade de colares de contas de azeviche.
— Bom dia, senhor Pitt — disse com inquietação. — Minha criada me informou que
me traz notícias sobre o senhor Porteous.
— Sim, senhora. Acredito que o encontramos. Está no necrotério; se tivesse a
bondade de identificá-lo, teríamos a certeza de que é ele e poderíamos voltar a enterrá-lo
quando for o caso...
— Não permitirei que se celebre um segundo funeral — disse ela, alarmada. — Não
seria correto.
— Entendo. Trataria-se só do enterro, mas antes temos que nos certificar de que
efetivamente é ele.
A senhora Porteous pediu à criada que lhe trouxesse o casaco e o chapéu e seguiu
ao Pitt à rua. Ainda chovia um pouco. Chamaram uma carruagem de aluguel e partiram em
direção ao necrotério.
Pitt começava a sentir uma espécie de familiaridade anti-séptica com aquele lugar. O
ajudante seguia gripe e tinha agora o nariz de um tom rosa brilhante, apesar do que os
recebeu com o melhor sorriso que permitia o decoro ao que obrigava a presença da viúva.
A senhora Porteous olhou o cadáver, mas não teve necessidade nem da cadeira nem
do copo de água.
— Sim — disse com calma. — É o senhor Porteous.
— Obrigado,
senhora.
Tenho
algumas perguntas que
lhe fazer, embora
possivelmente prefira respondê-las em um lugar mais cômodo. Preferiria ir a casa? A
carruagem está esperando.
— Se não lhe importa — disse em sinal de assentimento.
Sem olhar ao ajudante, deu meia volta e aguardou que Pitt lhe abrisse a porta.
Seguida deste, saiu à rua, avançou pelo caminho apesar da chuva e subiu de novo à
carruagem.
Sentada na sala de visitas de sua casa, pediu à criada que trouxesse chá quente e se
voltou para o Pitt com as mãos entrelaçadas sobre o regaço e as contas de azeviche
brilhantes à luz do abajur. Com o dia tão escuro que fazia, era impossível ver com clareza
dentro da casa se não se acendiam os lampiões.
— E então, senhor Pitt, o que deseja me perguntar? Trata-se com efeito do senhor
Porteous. Que mais quer saber?
— Como morreu, senhora Porteous?
— Em sua cama, naturalmente.
— Refiro-me à causa do falecimento, senhora — precisou Pitt procurando expressarse com clareza e evitar parecer ofensivo ou lhe causar mais dor do que o necessário. Atrás
de sua extraordinária compostura podia ocultar-se facilmente uma profunda emoção.
— Um distúrbio digestivo. Tem nome científico, claro está, mas o ignoro. Estava há
tempo doente.
— Compreendo. Lamento-o. Quem era seu médico?
A senhora Porteous arqueou as sobrancelhas.
— O doutor Hall, mas não entendo para que queira sabê-lo. Não irá dizer me que
suspeita que o doutor Hall profanou a tumba?
— Não, é claro que não. — Pitt não sabia como lhe explicar que o que questionava
era a causa da morte. Obviamente a senhora Porteous não tinha considerado aquela
possibilidade. — O que acontece é que para averiguar quem o fez é necessário solicitar
toda a informação possível.
— Espera consegui-lo? — perguntou ela mantendo uma equanimidade absoluta.
— Não — reconheceu ele com franqueza olhando-a nos olhos com expressão quase
risonha. Mas não achou resposta no rosto da senhora Porteous e afastou o olhar sentindose um pouco estúpido. — Entretanto, não é o único caso que se deu — prosseguiu com
tom mais profissional, — e algo que tenha em comum com os outros poderia nos servir de
ajuda.
— Não é o único caso? — perguntou perplexa. — Me está dizendo que a profanação
da tumba do senhor Porteous está relacionada com as profanações das que todo mundo
fala? Deveria lhes dar vergonha! Como podem permitir que ocorram semelhantes coisas
às pessoas respeitáveis de Londres? por que não fazem seu trabalho? Isso é o que eu
gostaria de saber.
— Não sei se existe relação, senhora — respondeu ele pacientemente. — Isso é
precisamente o que tento descobrir.
— É um lunático — disse ela com firmeza. — E se a polícia não pode capturar a um
lunático, não sei aonde iremos parar. Ele senhor Porteous era um homem muito
respeitável que nunca frequentava os ambientes dissolutos da sociedade; cada penny que
tinha o tinha ganho trabalhando e jamais fez uma aposta.
— Talvez não haja relação, salvo a do momento de sua morte — indicou Pitt
fatigadamente. — Lorde Augusto também era um homem respeitável.
— É possível — respondeu ela misteriosamente. — Ao senhor Porteous não o
acharam no Gadstone Park, certo?
— Não, senhora, acharam-no sentado em um banco do St. Bartholomew"s Green.
— Que disparate! — exclamou ela bruscamente. — O senhor Porteous jamais iria a
semelhante lugar. Não posso acreditar; já sabe você a classe de gente que frequenta esse
lugar. Deve tratar-se de um equívoco.
Pitt não teve o trabalho de discutir; se aquela mulher queria aferrar-se às diferenças
sociais inclusive depois da morte, ele não o ia impedir. Recordou a desgastada roupa que
levava o cadáver; dificilmente se podia dizer que lhe tivessem enterrado com suas
melhores roupas. Possivelmente no último momento ela tinha decidido que o traje negro
que os homens como seu marido levavam os domingos era muito bom para ficar sepultado
no esquecimento de uma tumba. Evidentemente não tinha previsto que tal esquecimento
só ia ser temporário.
Levantou-se.
— Obrigado, senhora. Se tiver que lhe perguntar algo mais, voltarei a visitá-la.
— Iniciarei as gestões para que voltem a enterrar ao senhor Porteous — disse ela
enquanto fazia soar a campainha para que a criada o acompanhasse à porta.
— Ainda não, senhora. — Desejava pedir desculpas, pois temia que fosse a
escandalizar. — Sinto muito, mas temos que levar a cabo algumas pesquisas antes de
permitir que o enterre.
A senhora Porteous lhe olhou com uma careta de horror e, fazendo gesto de levantarse, disse:
— Primeiro permitem que profanem sua tumba e que abandonem seu corpo em um
parque aonde vão as mulheres públicas oferecer-se, e agora quer fazer uma investigação.
É uma monstruosidade. As pessoas decentes já não estão seguras nesta cidade. É uma
vergonha para seu... — ia dizer "uniforme", mas, notando-se na mixórdia de cores que
adornava o traje do Pitt (ainda tinha o chapéu na mão, gotejando, e usava o cachecol de
tal maneira que um dos extremos lhe pendia desalinhadamente em frente), decidiu não
fazê-lo. — É você uma vergonha! — concluiu sem muita convicção.
— Sinto muito.
Não se tinha desculpado por si mesmo, mas sim por toda a cidade, pelo conjunto da
sociedade que a tinha deixado sem nada exceto escassez e os acessórios da
respeitabilidade.
O inspetor falou com o médico e averiguou que o senhor Porteous tinha morrido de
uma cirrose hepática e que certamente tinha visitado os bancos do St. Bartholomew"s
Green antes de que um grotesco golpe de azar tivesse permitido que seu cadáver ficasse
abandonado à sombra de uma de suas árvores para ser abordado por uma prostituta a que
nem sequer os mortos surpreendiam ou horrorizavam.
Partiu, perguntando-se como seriam as vistas das pessoas que chegavam a
semelhante fim; que fracassos teriam sofrido, que circunstâncias teriam animado sua
solidão, que pequenas mas constantes derrota lhes teriam infligido...
Com a ilusão de ver de novo a Alicia, Dominic se esqueceu do Somerset Carlisle e do
desventurado almoço. Já se tinha celebrado o segundo enterro, por isso a partir daquele
momento poderiam pensar no futuro com a condição de que, ao menos de portas fora,
observasse-se um decoroso luto. Não desejava ofender seus sentimentos mais delicados
ou lhe pôr em algum apuro abordando-a com muita rapidez, mas podia visitá-la para lhe
apresentar seus respeitos e passar um pouco de tempo em sua companhia. Dentro de
poucas semanas Alicia teria liberdade para sair, e embora não pudesse ir ao teatro ou a
festas, ao menos acompanharia a sua família à igreja e daria passeios em carruagem para
tomar o ar. Não se importava que Verity fora com eles para guardar as aparências, já que,
em realidade, a jovem gostava por si mesmo. Agora que tinha tomado confiança com ele,
era uma boa conversadora, e apesar de sua modéstia tinha opiniões próprias e um agudo
senso de humor com as quais se expressar.
Em resumidas contas, Dominic se sentia de bom humor quando chegou ao Gadstone
Park na quinta-feira pela manhã e apresentou seu cartão à criada.
Alicia o recebeu com jubiloso alívio e passaram uma hora de verdadeira felicidade
falando de trivialidades e dando a entender todo o resto. O mero fato de estar juntos era
suficiente; o que dissessem era irrelevante. Augusto tinha ficado no esquecimento, e em
seus pensamentos não havia lugar sequer para a lembrança das tumbas abertas e os
corpos errantes.
Dominic partiu antes da refeição e cruzou o parque apressadamente, com a gola do
capote levantado para proteger-se do vento do norte, que naquele momento lhe foi mais
vivo e excitante que frio. Então viu uma pessoa que vinha em sua direção. Em seu andar e
na relativa magreza de seus ombros notou algo familiar que o fez titubear e inclusive
considerar a possibilidade de cortar pela grama, apesar de estar molhada e em más
condições. Quem podia ser? Era muito bonito e elegante para ser Pitt, mas tinha sua
estatura. O inspetor levava um capote cujas abas nunca deixavam de ondear e usava o
chapéu em um ângulo diferente.
Dominic não reconheceu a Somerset Carlisle até que esteve bastante perto para
distinguir seu rosto, tão perto que teria sido uma descortesia mudar de direção.
— Bom dia — disse sem afrouxar o passo. Não tinha nenhuma vontade de falar com
aquele homem.
Carlisle se interpôs em seu caminho.
— Bom dia — lhe respondeu, depois do que se voltou e pôs-se a andar a seu lado.
Além de reagir com uma grosseria espantosa, não havia nada que Dominic pudesse
fazer exceto tratar de travar conversa.
— Faz um tempo agradável — comentou. — Ao menos este vento manterá afastada
a névoa.
— É um bom dia para passear — disse Carlisle. — Abre o apetite.
— Sem dúvida.
Certamente, aquele homem era um chato de mil demônios. Não parecia dar-se conta
de quando estava incomodando, e ele não tinha nenhum desejo de que lhe recordasse o
almoço ao qual o havia convidado.
— Uma comida agradável, com calma, ao calor de uma boa lareira — prosseguiu
Carlisle. — eu adoraria tomar uma sopa, uma sopa saborosa, deliciosa...
Não havia maneira de evitá-lo. Dominic lhe devia uma refeição, e as obrigações devia
se respeitar se não se desejava ser afastado da sociedade. Cometer um erro que suporia
não fazê-lo não demoraria em ser percebido, e a notícia se estenderia como o fogo.
— Uma idéia excelente — disse enchendo-se de coragem. — O que lhe pareceria um
quarto de cordeiro de segundo? Meu clube não está longe, e para mim seria uma
satisfação se aceitasse a comer comigo.
Carlisle lhe obsequiou com um sorriso de orelha a orelha, e Dominic teve a
desagradável impressão de que a situação lhe era em certo modo divertida.
— Obrigado — respondeu. — Será um prazer.
A comida não só não confirmou nenhum dos temores do Dominic, mas também foi
verdadeiramente grata. Carlisle não abordou em nenhum momento o tema da política e
demonstrou ser uma companhia agradável e saber falar na justa medida. Além disso,
quando tomava a palavra era animado e inclusive engenhoso.
Dominic desfrutou plenamente da comida e decidiu repeti-la assim que surgisse a
ocasião. Estava pensando precisamente nisto quando de repente se achou na rua, onde o
vento aumentava e começava a faiscar. Carlisle chamou uma carruagem de aluguel e,
para assombro do Dominic, ordenou que se detivesse um quarto de hora mais tarde em
uma sólida ruela cujas casas tinham um aspecto precário e se apinhavam como se fossem
um grupo de bêbados sustentando-se mutuamente para não derrubar-se.
— Em nome de Deus, onde estamos? — perguntou com uma mescla de alarme e
perplexidade.
A rua era um formigueiro de rapazes e crianças vestidos com roupa andrajosa e
mulheres sentadas nos pátios com as mãos arroxeadas de frio suspensas sobre fileiras de
sapatos desgastados. Dos porões das casas saíam trêmulos brilhos de luz. O ambiente
estava completamente saturado de um aroma viciado e acre que Dominic não pôde
identificar mas cuja presença notava claramente no mais fundo de seu nariz e em cada
baforada de ar que aspirava.
— Onde estamos? — repetiu com crescente fúria.
— No Seven Dials — respondeu Carlisle. — No Dudley Street para ser exato. Estas
mulheres são vendedoras de calçado de segunda mão. Ali abaixo — acrescentou
indicando os porões — pegam sapatos velhos ou roubados e fazem um concerto com as
partes aproveitáveis para logo vendê-los. Em outras partes fazem o mesmo com objetos
de vestir: desfazem-nas e utilizam o tecido que ainda possa aguentar durante certo tempo.
A lã usada e remendada é melhor que o algodão novo, que é tudo o que podem comprar.
O algodão não abriga.
Dominic estremeceu. Naquela pavorosa rua fazia um frio glacial, e ele estava furioso
com Carlisle por tê-lo levado ali.
Ou Carlisle não se dava conta disso ou simplesmente não lhe importava.
— Chame a carruagem! — resmungou. — Não tem direito de me trazer aqui. Este
lugar é... — Não achava palavras.
Espantado pelo que o rodeava, olhou de um lado a outro. A sórdida presença dos
edifícios parecia afligi-lo. Não havia lugar onde não se visse miséria, e o aroma da sujeira,
a roupa velha, a fuligem, a fumaça dos lampiões de azeite, os corpos sem lavar e a comida
rançosa impregnava tudo. Depois do assado que tinha comido, aquilo era muito para seu
estômago.
— Uma antecipação do inferno — comentou Carlisle com voz calma. — Não fale tão
alto; estas pessoas vivem aqui; este é seu lar. É muito possível que gostem tão pouco
como você, mas é a única coisa que têm. Mostre sua repugnância e talvez não consiga
sair daqui tão imaculadamente como chegou... em todos os sentidos. E isto não é mais
que uma amostra; deveria ver Bluegate Fields, ou Limehouse ou Whitechapel ou St.
Giles... Venha comigo. Ficam uns trezentos metros de caminho, por aqui — disse
indicando uma ruela. — Na praça, do outro lado, está o asilo do Seven Dials. Isso é o que
quero que veja; esta rua só tem uma importância secundária. Depois talvez possamos ir ao
Campo do Diabo, perto do Westminster.
Dominic abriu a boca para dizer que queria ir-se, mas então viu os rostos dos
meninos que o olhavam como embevecidos: tinham o corpo e a pele jovens, e a expressão
dos olhos tão desgastada como a dos libertinos que tinha visto em companhia de
prostitutas nos bordéis do Haymarket. O olhar de avareza e aborrecimento que viu neles o
assustava mais que nada; o olhar e a mau cheiro.
Então viu dois malandros que brincavam de perseguir-se. O primeiro se aproximou do
Carlisle e, com um movimento tão sutil como o de uma doninha, tirou-lhe o lenço de seda
do bolso e seguiu seu caminho.
— Carlisle!
— Sei — disse este respondeu pausadamente. — Não levante a voz e limite-se a me
seguir.
Quase com naturalidade, cruzou o meio-fio, chegou à calçada de frente e seguiu
avançando pela ruela. Quando alcançou o outro lado da praça, deteve-se ante uma
enorme porta de madeira com persiana e bateu. Abriu-lhe um homem corpulento que
usava uma jaqueta verde; a séria expressão de seu rosto mudou em um olhar de alarme,
mas antes que pudesse falar, Carlisle entrou na casa obrigando-o a retroceder.
— Bom dia, senhor Eades. Devo ver como está você hoje.
— Bem, obrigado... Sim, muito bem, obrigado — respondeu Eades na defensiva. — É
muito amável, senhor. Preocupa-se muito, senhor, e tenho certeza de que seu tempo é
muito valioso.
— Muito — lhe assegurou Carlisle, — assim não o esbanjemos. Foi algum de seus
meninos à escola desde a última vez que vim?
— OH, sim. Tantos como os que havia no dia da admissão, senhor; não tenha
dúvida.
— E quantos eram?
— Ah, vamos ver; não recordo o número exato. Não esqueça que a pessoa entra e
sai daqui segundo quão necessitada esteja. Se os meninos não estiverem aqui no dia da
admissão, o qual, me permita que lhe diga, é só uma vez cada duas semanas, não vão.
— Isso sei tão bem como você — replicou Carlisle com brutalidade. — Também sei
que saem daqui no dia anterior ao da admissão e que voltam a entrar no dia seguinte.
— Mas, senhor, isso não é minha culpa.
— Já sei que não o é! — exclamou Carlisle com a voz trêmula de fúria ante sua
própria impotência.
Passou resolutamente pelo lado do senhor Eades e avançou por um corredor mal
ventilado que cheirava a úmido e conduzia a um grande salão. Ante a alternativa de ficar
transido de frio no gélido corredor de pedra, Dominic se viu obrigado a segui-lo.
A residência era grande, tinha o teto baixo e estava iluminada com gás; em um canto
ardia uma estufa. Uns cinquenta ou sessenta homens, mulheres e crianças estavam
sentados descosturando roupa velha, selecionando farrapos, cortando-os e voltando-os a
costurar. O ar era tão fedido que Dominic começou a sentir náuseas e teve que esforçar-se
por não vomitar. Carlisle parecia acostumado a isso. Avançou por entre os farrapos e se
aproximou de uma mulher.
— Olá, Bessie — disse animadamente. — Como está hoje?
A mulher sorriu, mostrando uns dentes enegrecidos, e balbuciou algo a modo de
resposta. Tinha um físico volumoso e desleixado. Dominic, que não entendia uma palavra
do que dizia, estimou que tivesse uns cinquenta anos.
Carlisle o levou uns metros mais à frente, onde meia dúzia de crianças, algumas das
quais não teriam mais de três ou quatro anos de idade, estavam sentados descosturando
calças velhas.
— Três são de Bessie — disse olhando-os. — antes que derrubassem os subúrbios
para construir a ferrovia e demolissem o edifício onde tinham sua habitação, trabalhavam
em casa. O marido do Bessie e seus filhos maiores faziam caixas de fósforos; ganhavam
dois pennies e meio por cento quarenta e quatro, por isso acabaram deixando-o e
desapareceram. Bessie trabalhava na fábrica de fósforos do Bryant and Mays. Por isso fala
de uma maneira tão estranha: tem uma "mandíbula fosforada", quer dizer, uma necrose na
mandíbula causada pelo fósforo dos fósforos. Tem três anos mais que Alicia FitzroyHammond. Parece mentira, não lhe parece?
Aquilo já era muito. Dominic estava perplexo e horrorizado.
— Quero sair daqui — disse quedamente.
— Todos queremos sair daqui. — Carlisle abrangeu toda a estadia com um
movimento do braço. — Sabe você que um terço dos habitantes de Londres não vivem em
melhores condições que estas pessoas, tanto se tiverem sua moradia em um tugúrio como
se a têm em uma fábrica?
— E o que se pode fazer? — perguntou Dominic com impotência. — É tão...
entristecedor.
Depois de falar com algumas pessoas mais, Carlisle conduziu Dominic à praça,
despedindo-se bruscamente do senhor Eades ao sair. Depois de respirar o carregado ar
do asilo, inclusive a cinza garoa que caía parecia limpa.
— Trocar algumas leis — respondeu. — O contável mais humilde, sabendo escrever
e somar, é um príncipe em comparação com estas pessoas. Terá que conseguir educar e
preparar as crianças indigentes. Não se pode fazer grande coisa pelos pais, exceto lhes
dar esmolas. Mas se pode tentar fazer algo pelas crianças.
— É possível. — Dominic tinha que andar rapidamente para manter-se o seu passo.
— Mas que sentido me tem mostrar isso? Eu não posso mudar as leis.
Carlisle se deteve. Deu uns pennies a um menino que estava mendigando e
observou que os entregava imediatamente a um ancião.
— Parece mentira! Que um homem tenha que mandar a seu neto a mendigar por
ele... — murmurou Dominic.
— O mais provável é que não seja de sua família — Carlisle continuou andando —
mas sim o tenha comprado. Os meninos são os melhores mendigos, sobre tudo se forem
cegos ou têm alguma má formação. Algumas mulheres chegam a entrevá-los de propósito;
desse modo têm mais possibilidades de sobrevivência. Respondendo a sua pergunta, você
pode falar com pessoas como lorde Fleetwood ou seus amigos e persuadi-los de que vão
à câmara e votem.
Dominic estava apavorado.
— Não posso lhes dizer uma coisa assim. Sentiriam-se... — interrompeu-se ao dar-se
conta do que ia dizer.
— Sim — disse Carlisle, — sentiriam-se enojados e ofendidos. Que desagradável...
Um cavalheiro não põe em um apuro a outro lhe falando de semelhante tema. Acredito que
o outro dia danifiquei seu almoço. A gente não desfruta de um ganso assado se está
pensando em algo como isto, não é? Entretanto, quanta distância pensa você que tem os
bancos da igreja do Gadstone Park ao Seven Dials? — Dobraram a esquina e ao enfiar a
rua viram o fundo uma carruagem de aluguel. Carlisle apertou o passo e Dominic quase
teve que pôr-se a correr para não atrasar-se. — De qualquer modo, se eu posso me
granjear as simpatias de um patife desalmado como St. Jermyn — prosseguiu Carlisle—
para conseguir que apresente um projeto de lei, acredito que você poderá suportar passar
um mau pedaço com o Fleetwood, não lhe parece?
Dominic passou uma noite terrível e ao despertar de manhã não se sentia melhor.
Disse a seu valete que mandasse limpar toda sua roupa e que, se o aroma não se ia, a
desse de presente à primeira pessoa que a aceitasse. Mas as imagens que povoavam sua
mente não se apagariam de um modo tão simples. Por um lado odiava Carlisle por tê-lo
obrigado a ver coisas de cuja existência teria preferido não saber. Naturalmente, sempre
tinha tido noção de que havia pobreza, mas nunca a tinha visto realmente. Não chegava a
ver os rostos dos mendigos da rua; não eram mais que rostos, como os postes das luzes
ou os corrimões. A pessoa sempre tinha que atender a algum assunto próprio e estava
muito ocupado para pensar neles.
Mas pior que a imagem era o gosto que tinha na boca, o cheiro que lhe tinha grudado
no fundo da garganta e que poluía tudo o que comia. Seria acaso o sentimento de culpa?
Comprometeu-se com Alicia a acompanhá-la para fazer uma visita para a qual tinha
que percorrer certa distância e tinha pegado uma carruagem para a ocasião. Foi recolhê la às dez e quinze; ela já estava preparada, embora naturalmente com grande
dissimulação, até o ponto de evitar que ele se desse conta de que o estava esperando.
Talvez tivesse se esquecido de que ele tinha estado casado e conhecia alguns costumes
femininos.
Ia vestida de negro e tinha um aspecto especialmente elegante: o cabelo brilhante e a
pele impoluta, com a finura do alabastro. Toda ela estava impecavelmente limpa. Era
impossível equipará-la de modo algum com as mulheres que tinha visto no asilo para os
desamparados.
Estava lhe falando, mas ele tinha a mente em outra parte.
— Dominic? — repetiu. — Se sente mal?
Precisava compartilhar com alguém a confusão que reinava em seu interior; não
podia tirar aquilo da cabeça.
— Ontem estive com seu amigo Carlisle — disse com brusquidão.
— Com o Somerset? Que tal estava?
— Almoçamos juntos; depois fez uma artimanha para que o acompanhasse ao lugar
mais espantoso que vi em minha vida. Jamais teria imaginado que pudesse existir um
lugar tão terrível.
— Lamento-o. — Sua voz denotou inquietação. — Sofreu algum dano? Tem certeza
de que se encontra bem? Não me custa nada adiar esta visita; não é urgente.
— Não, não sofri nenhum dano. — Seu tom soou mais desagradável do que teria
desejado, mas não conseguia dominá-lo. A confusão e a ira ferviam em seu interior. Queria
que alguém lhe explicasse e lhe devolvesse a ignorância em que tão aprazivelmente tinha
vivido.
Evidentemente não o entendia. Nunca em sua vida tinha visto um asilo para
desamparados. Nunca lhe tinham permitido ler os jornais e não dirigia dinheiro. A
governanta era quem levava as contas e seu marido quem pagava as faturas. A vez que
mais perto tinha chegado a estar da pobreza tinha sido quando lhe tinham restringido a
atribuição para roupa como consequência de um reverso sofrido por seu pai em seus
investimentos.
Queria lhe explicar o que tinha visto e, sobretudo, seus sentimentos a respeito;
entretanto, as únicas palavras que lhe ocorriam lhe pareciam indecorosas e, de qualquer
modo, descreviam coisas totalmente alheias ao que ela podia conceber. Dando-se por
vencido, emergiu no silêncio.
Depois de fazer a visita, levou a Alicia a Gadstone Park, deixou-a em casa e,
continuando, sentindo-se triste e insatisfeito, ordenou ao cocheiro que lhe levasse a casa e
ficou sentado diante da lareira durante uma hora. Finalmente se levantou e chamou um
cabriolé.
Charlotte tinha decidido esquecer do tema dos cadáveres. Em realidade tinha muitas
coisas que fazer para interessar-se nos casos de Pitt, e a identidade de um homem que,
no dizer de todo o mundo, tinha morrido por causas naturais não era assunto de sua
incumbência. Jemima se tinha sentado em um atoleiro, por isso tinha tido que lhe trocar
toda a roupa. Agora estava ocupada com uma lavagem maior que de costume, e engomar
não era um de seus afazeres favoritos.
Quando ouviu soar a campainha se sobressaltou, já que não esperava ninguém.
Raramente ia alguém de visita a uma casa a meio-dia; toda a gente tinha suas tarefas e
comidas que preparar. Sua surpresa foi ainda maior quando viu Dominic no degrau da
porta.
— Posso entrar? — perguntou antes que ela pudesse falar.
Charlotte abriu a porta de tudo e disse:
— Sim, é claro. O que acontece? Tem aspecto de estar... — Queria dizer "abatido",
mas ao final decidiu que "indisposto" seria mais discreto.
Ele entrou no vestíbulo, e ela fechou a porta e o conduziu uma vez mais até a
cozinha. Em um canto estava Jemima, empilhando tijolos dentro de seu parque. Dominic
se sentou na cadeira de madeira que havia diante da mesa. Fazia uma boa temperatura na
habitação e a madeira lavada cheirava bem. No varal que pendia do teto havia vários
lençóis, e ele observou com curiosidade a corda e as polias que serviam para subi-lo e
baixá-lo. A prancha estava esquentando sobre o fogão.
— Interrompi-a — disse sem mover-se.
— Não, absolutamente. — Sorriu e pegou a prancha para continuar com seu
trabalho. — O que acontece?
Estava irritado consigo mesmo por ser tão transparente. Estava tratando como a um
menino, quando o que necessitava naquele momento era a segurança suficiente para
esquecer da irritação que sentia.
— Um homem chamado Carlisle me levou ontem a um asilo para desamparados
situado nos arredores do Seven Dials. Em uma das habitações havia cinquenta ou
sessenta pessoas, todas elas descosturando roupa para logo refazê-la. Também havia
crianças... É horrível!
Charlotte se lembrou da ira que havia sentido a primeira vez que Pitt lhe tinha falado
dos bairros pobres e das casas de cômodos quando vivia no Cater Street e se considerava
a si mesma uma pessoa informadíssima pelo fato de ler os jornais. Sentou-se chocada e
revoltada por não havê-lo sabido antes; mas sobre tudo se havia sentido zangada com o
Pitt porque ele o tinha sabido em todo tempo e tinha decidido transtornar seu mundo
introduzindo nele a desgraça e a dor de outras pessoas.
Não podia lhe dizer nada para consolá-lo. Continuou engomando a camisa e
respondeu:
— É sim. Por que o levou o... o senhor Carlisle? — O motivo era ao mesmo tempo a
melhor e a pior parte do assunto.
— Porque quer que tente convencer a um amigo meu membro da Câmara dos
Lordes de que vá à sessão em que St. Jermyn vai apresentar seu projeto de lei.
Charlotte se lembrou das palavras de tia Vespasia e compreendeu tudo
imediatamente.
— E vai fazê-lo?
— Pelo amor de Deus, Charlotte! — exclamou ele irritado. — Como demônios vou
abordar a um homem que só conheço pelas corridas de cavalos e lhe dizer: "A propósito,
eu gostaria que vote na câmara quando St. Jermyn apresente seu projeto de lei, porque os
asilos para desamparados são verdadeiramente espantosos e é necessário proporcionar
uma educação às crianças, sabe? Deveria haver uma lei para ajudar e educar às crianças
indigentes de Londres, assim comporte-se bem e convença a todos seus amigos de que
votem a favor..." É impossível! Não posso fazer isso!
— É uma lástima — disse ela sem levantar o olhar da prancha.
Sentia pena por ele; sabia o difícil que era conseguir que outras pessoas se
interessassem em idéias desagradáveis, sobre tudo aquelas que as faziam sentir-se
desconfortáveis e supunham uma ameaça para suas diversões ao pôr em julgamento a
ordem das coisas. Mas ela não ia dizer lhe que não tinha obrigação de fazê-lo ou que
aquele assunto estava em mãos de outra pessoa, embora se o dissesse ele tampouco o
aceitaria. Tinha visto e cheirado as ruas do Seven Dials, e não havia palavras que
apagassem tais imagens.
— Uma lástima! — exclamou ele com fúria. — Uma lástima! É isso tudo o que pode
dizer? Alguma vez lhe contou Thomas como são esses lugares? É algo indescritível. ..
Pode notar até o sabor da sujeira e o desespero.
— Sei — disse ela com calma. — E há lugares piores que os asilos para
desamparados, lugares ocultos dentro das casas que nem sequer Thomas se atreve a
descrever.
— Contou-lhe isso?
— Parte, não tudo.
Dominic fez uma careta e olhou fixamente a superfície branca da mesa.
— É horrível.
— Quer almoçar? — Dobrou a camisa e, depois de guardá-la, dobrou também a
tábua de engomar e acrescentou —: Eu vou comer um pouco. Não é mais que pão e sopa,
mas posso lhe servir uma porção se o desejar.
De repente um abismo se abriu entre eles, e ele caiu na conta de que tinha estado
lhe falando como se ainda estivessem no Cater Street e compartilhassem as mesmas
posses materiais. Tinha esquecido que seu mundo era agora tão diferente do mundo de
Charlotte como o desta o era de Seven Dials. Olhou-a enquanto ela pegava dois pratos
limpos de uma despensa e os punha sobre a mesa, e depois tirava o pão da caixa, uma
tábua e uma faca. Não havia manteiga.
— Sim, por favor — respondeu.
Ela levantou a tampa da panela que havia sobre o fogão e serviu sopa nos dois
pratos.
— E Jemima? — perguntou ele.
Charlotte se sentou.
— Já tomou sua porção. O que vai responder ao senhor Carlisle?
Ele passou por cima a pergunta. Sabia qual era a resposta, mas não queria
reconhecê-la ainda.
— Tentei contar a Alicia.
Provou a sopa; era surpreendentemente boa, e o pão estava fresco e estalava.
Ignorava que Charlotte sabia fazer pão; teria tido que aprender.
— Isso é injusto — disse ela olhando— o fixamente. — Não pode lhe explicar algo a
uma pessoa só com palavras e confiar em que te entenda ou em que experimente a
mesma sensação que você.
— É certo. Tirou importância como se só fosse uma parte mais da conversa. Parecia
uma estranha. E eu que pensava que a conhecia bem...
— Isso tampouco é justo — insistiu Carlisle. — É você quem mudou. O que acha que
pensaria o senhor Carlisle de você?
— O que?
— Causou-lhe uma grande impressão o que lhe disse? Acaso não teve que levá-lo ao
Seven Dials para que o visse com seus próprios olhos?
— Sim, mas isso... — interrompeu-se, lembrando-se de sua reticência e desinteresse.
Entretanto, ele não significava nada para o Carlisle, enquanto que ele e Alicia se queriam.
— Isso é...
— Diferente? — Charlotte arqueou as sobrancelhas. — Não o é. Os sentimentos por
outra pessoa não mudam a situação. O saber poderia... — arrependeu-se de havê-lo dito.
Uma teimosia era algo efêmero e a familiaridade tinha pouco que ver com isso. — Trata de
compreendê-la — acrescentou com voz calma.— Há algum motivo pelo qual deveria ter
conhecimento disso ou compreendê-lo?
— Nenhum — reconheceu Dominic. Não obstante tinha a sensação de que um vazio
o afastava da Alicia e se dava conta de que seus sentimentos por ela dependiam em
grande medida da cor de seu cabelo, a curva de seu queixo, os sorrisos que pudesse lhe
dirigir e o fato de que lhe correspondesse. De qualquer modo, o que havia em seu interior,
na parte a que ele não podia chegar?
Poderia ser a simples eliminação de um objeto que se interpunha entre ela e seus
desejos, um pequeno movimento da mão para agarrar um frasco de pastilhas e... cometer
um assassinato?
No final do Resurrection Row havia um cemitério. Daí o nome do lugar. No centro se
via uma capela diminuta cujo lugar teria sido ocupado por uma cripta ou um panteão
familiar em uma zona mais rica. Naquele cemitério, entretanto, não passava de ser um
arremedo destes. Entre as melhores tumbas havia alguma adornada com anjos de
mármore, e ao longe se viam várias cruzes, embora a maioria carecesse de ornamento e
tinha acabado um pouco torcidas com o passar dos anos. O afundamento da terra que
tinham conduzido os frequentes enterros lhes tinha feito perder a verticalidade. Entre elas
havia meia dúzia de árvores esqueléticas que ninguém se ocupara de tirar do meio. Era
um lugar desprovido de atrativo em qualquer época do ano, e naquela úmida noite de
fevereiro só adornava uma virtude: a intimidade. Para Dollie Jenkins, uma criada de
dezessete anos que servia para todo tipo de tarefas e que mantinha uma relação
promissora com um moço de açougue, aquele era o único lugar onde podia corresponder
ao jovem sem perder seu emprego.
Agarrados pelo braço, entraram pela grade, sussurrando, soltando risinhos entre
dentes; não era correto rir abertamente em presença dos mortos. Uns segundos mais tarde
se sentaram em uma tumba, muito perto um do outro. Ela deixou entrever que não levaria
a mal uma pequena amostra de carinho, e ele respondeu com entusiasmo.
Ao cabo de um quarto de hora, Dollie teve a impressão de que a situação estava indo
muito longe e que ele poderia tomar alguma liberdade e ter logo um mau conceito dela.
Afastou-o e com consternação observou que em uma lápide havia uma pessoa sentada,
com as pernas cruzadas e com uma cartola torcida.
— Olhe, Samuel! — murmurou. — Há um velho aí sentado que nos está espiando.
Samuel ficou em pé atropeladamente.
— Velho verde! — gritou. — Vamos! Saia daqui! Olheiro! Vá-se daqui antes que lhe
dê uma surra!
O homem não se moveu; de fato não fez o menor caso ao Samuel, e nem sequer
levantou a cabeça.
Samuel se aproximou dele dando grandes passadas.
— Vai saber! — gritou. — Vou lhe dar uma boa. Vamos, fora daqui, velho!
Agarrou ao homem pelo ombro e fez gesto de dar um murro.
Mas o homem perdeu o equilíbrio e se desabou para um lado enquanto sua cartola
caía ao chão e se afastava rodando. À luz da lua, o homem tinha o rosto azul e o peito
fundo de uma maneira muito estranha.
— Deus todo-poderoso!
Samuel o soltou e, ao dar um salto para afastar-se, tropeçou. Rapidamente se
endireitou e retrocedeu até onde estava Dollie para abraçá-la com força.
— O que acontece? — perguntou-lhe com tom premente. — O que fez?
— Não fiz nada! Está morto, Dollie. Está tão morto como todos os mortos que há
aqui. Tiraram-no da tumba!
Pitt recebeu a notícia na manhã seguinte.
— Não vai a acreditar! — disse o agente me voz alta.
— Diga-me de qualquer modo — respondeu Pitt com resignação.
— Apareceu outro. Encontrou-o ontem à noite um casal de apaixonados.
— Por que não teria que acreditar nisso perguntou Pitt cansativamente. —Já acredito
em algo.
— Porque se trata do Horacio Snipe — exclamou o agente. — Ali estava, tão certo
quanto estou falando com você, sentado em uma lápide no cemitério do Resurrection Row
com a cartola posta. Foi atropelado uma carruagem de esterco faz três semanas e foi
enterrado faz quinze dias. Ali estava, ele por si mesmo, sentado na lápide à luz da lua.
— Tem razão — disse Pitt. — Não acredito. Não quero acreditar nisso.
— É ele, senhor. Reconheceria ao Horacio Snipe em qualquer parte. Era o alcoviteiro
mais ocupado que jamais houve no Resurrection Row.
— Isso parece — comentou Pitt laconicamente. — De todo modo, por esta manhã me
nego a acreditar nisso.
Capítulo 7
Na segunda-feira Charlotte recebeu uma nota manuscrita da tia Vespasia em que a
convidava a ir a sua casa aquela manhã e lhe avisava que fosse preparada para uma visita
longa, já que desejava que ficasse para o almoço e parte da tarde. Embora não aduzia
nenhuma razão para isso, Charlotte a conhecia o suficientemente bem para saber que não
se tratava de uma trivialidade. Um pedido feito com tão pouca antecipação e em que se
indicava uma hora e uma duração tão concretas não podia ser fortuito. Charlotte não podia
desatendê-la de maneira nenhuma; deixando à parte as boas maneiras, a curiosidade
convertia a visita em algo de todo inelutável.
Assim, deixou Jemima com a senhora Smith, que vivia em frente e sempre estava
disposta a cuidar dela com carinho em troca de alguma fofoca relacionada com o modo de
vestir, as maneiras e, sobre tudo, as manias dos membros da sociedade com quem
Charlotte se acotovelava. Em consequência, a importância que tinha adquirido na rua
como confidente de Charlotte era incomensurável. De qualquer modo se tratava de uma
mulher bondosa que desfrutava prestando ajuda, e mais ainda quando a prestava a uma
moça como Charlotte, que evidentemente tinha escassa preparação para fazer frente à
realidade da vida tal como ela, a senhora Smith, conhecia-a.
Como tinha cometido a imprudência doméstica de comprar toucinho três dias
seguidos em lugar de arrumar-se com farinha de aveia ou pescado como de costume,
Charlotte se viu obrigada a esquecer-se dos cabriolés, pegar o ônibus que lhe deixasse
mais perto do Gadstone Park e percorrer a seguir o resto do caminho andando apesar de
que a neve aumentava.
Chegou ao portal com os pés molhados e temendo ter o nariz vermelho como um
tomate. Seu aspecto distava muito da imagem elegante que teria gostado de oferecer. Era
a última vez que comprava toucinho para tomar o café da manhã.
A criada que lhe abriu a porta estava habituada às excentricidades de sua senhora e
não permitia que os pensamentos se refletissem no rosto. Já não havia virtualmente nada
que a surpreendesse. Charlotte a seguiu até a sala matinal e, assim que ficou sozinha,
aproximou-se da lareira tudo o que pôde, mas sem arriscar-se a queimar-se. O calor lhe
assentou maravilhosamente, reanimou-lhe os intumescidos calcanhares e fez que de suas
botas começasse a sair vapor.
Tia Vespasia apareceu ao cabo de uns segundos. Deu uma olhada à Charlotte e,
tirando-os óculos, exclamou:
— Pelo amor de Deus, minha filha! Parece que veio nadando. Mas o que fez?
— Fora faz um frio de morte — respondeu Charlotte tentando justificar-se e
afastando-se um pouco do fogo, que já começava a queimá-la. — E a rua está cheia de
atoleiros.
— Pois ao que parece mergulhou em todos — respondeu tia Vespasia fixando-se em
suas fumegantes botas.
Entretanto, teve o tato de não lhe perguntar por que tinha vindo andando. —Será
melhor que procure algo seco que possa pôr; do contrário vai estar realmente
desconfortável.
Pegou a campainha e a fez soar com força.
Charlotte esteve a ponto de pôr reparos, mas estava transida, e se ia ficar ali durante
certo tempo, seria melhor que lhe emprestassem algo seco com que abrigar-se. Assim,
decidiu aceitar e disse:
— Obrigada.
Tia Vespasia lhe lançou um olhar de perspicácia; tinha percebido que tinha faltado
pouco para Charlotte protestar e certamente compreendia por que. Quando voltou a criada,
referiu-se o assunto como se não tivesse a menor importância.
— A senhora Pitt teve a má sorte de que a salpicassem no trajeto e acabou
empapada — explicou sem ter o trabalho de olhar à moça. — Diga à Rose que traga umas
botas e uns calções secos, e também o vestido de tarde verde azulado com a renda nas
mangas. Rose saberá a qual me refiro assim que o descreva.
— OH...! — A criada olhou ao Charlotte com gesto de compreensão. — Alguns
cocheiros não se preocupam de olhar por aonde vão, senhora. Não sabe como o lamento.
O outro dia a cozinheira não fez mais que pôr o pé na rua e acabou coberta de barro: dois
desses lunáticos passaram diante dela como se estivessem participando de uma corrida.
Quando voltou para casa soltou uma série de impropérios. Vou trazer lhe algo seco agora
mesmo.
Saiu pressurosa, com o dever de cumprir uma missão de caridade e a esperança de
que o castigo eterno recaísse sobre os cocheiros em geral e os descuidados em particular.
No rosto do Charlotte se desenhou um amplo sorriso.
— Obrigada, teve um tato extraordinário.
— Absolutamente — respondeu tia Vespasia dando o assunto por resolvido. —
organizei uma pequena recepção esta tarde, uma recepção muito pequena, para falar a
verdade — acrescentou meneando a mão para indicar quão insignificante era. — E eu
gostaria que estivesse presente. Temo-me que o desventurado assunto de Augusto não
vai nada bem.
Charlotte não entendeu a que se referia, mas a imagem do Dominic acudiu
imediatamente a sua cabeça. Não era possível que alguém suspeitasse realmente dele...
Tia Vespasia percebeu a expressão de seu rosto e captou seu significado com uma
facilidade que fez Charlotte ruborizar-se. Se agora era tão transparente, no passado devia
tê-lo sido até extremos lamentáveis.
— OH, sinto-o — se apressou a dizer. — Tinha a esperança de que as pessoas se
esqueceram do assunto depois do enterro. Certamente parece que lorde Augusto foi a
desventurada vítima de um desequilibrado que se dedica a profanar tumbas por toda parte.
Acharam dois mais, sabia? Dois além de lorde Augusto e o homem da carruagem.
Charlotte teve a satisfação de ver como tia Vespasia a olhava com olhos muito
abertos em sinal de surpresa. Acabava-lhe de dizer algo que não só ignorava, mas
também não tinha previsto.
— Dois mais? Não tinha a menor ideia. Quando ocorreu? De quem se trata?
— De ninguém que você conheça — respondeu Charlotte. — Um deles era um
homem normal e comum que vivia perto do Resurrection Row.
— É a primeira vez que ouço falar dessa rua. Pelo nome parece um lugar pouco
saudável. Onde se encontra?
— A uns três quilômetros daqui. Sim, é muito desagradável, embora não seja um
subúrbio mais uma ruela, e, evidentemente, tem um cemitério. Algo lógico, com esse
nome... É aí onde acharam o outro cadáver, no cemitério.
— Muito apropriado — comentou a anciã secamente.
— Com efeito, embora nem tanto se o cadáver aparece sentado em uma lápide e
com o chapéu posto.
— Ah — disse a anciã com uma careta de mal-estar. — De quem se trata?
— De um homem chamado Horacio Snipe. Thomas não quis me dizer a que se
dedicava, mas suponho que se tratava de algo escandaloso... Refiro a algo pior que o
roubo ou a falsificação. Eu diria que tinha uma casa de encontros ou algo semelhante.
Tia Vespasia fez um gesto de desdém e, soltando um grunhido, disse:
— Seriamente, Charlotte...? Bom, suponho que estará certa, embora não acredito
que sirva de nada. As suspeitas são algo muito estranho; inclusive quando se demonstra
que são totalmente infundadas, seu aroma perdura, como se fora algo desagradável do
que nos desfazemos mas cujo fedor permanece. A gente acabará esquecendo do motivo
pelo que se suspeitava da Alicia e Dominic, mas se lembrará do fato de que suspeitasse
deles.
— Mas isso é injusto — exclamou Charlotte raivosamente. — E ilógico.
— É claro — assentiu tia Vespasia. — Mas as pessoas são injustas e ilógicas sem ter
a menor consciência ou intenção de sê-lo. Espero que fique para a recepção; é a razão
principal pela qual a convidei. Tem certa perspicácia com as pessoas. Não esqueci o fato
de que compreendesse antes que qualquer de nós o que realmente estava acontecendo
no Paragon Walk. Possivelmente possa ver algum aspecto deste assunto que nos oculta...
— Mas no Paragon Walk houve um assassinato — replicou Charlotte. — Neste caso
não se cometeu nenhum crime, a menos que pense que lorde Augusto foi assassinado...
Aquela idéia era terrível; ela não a tinha aceitado e tampouco a aceitava agora. Fazia
o comentário como uma crítica, como uma amostra de sua comoção mais que como uma
pergunta.
Tia Vespasia não se alterou.
— O mais provável é que tenha morrido por causas naturais — respondeu como se
estivesse falando de algo cotidiano. — Mas terá que contemplar a pior possibilidade.
Sabemos muito menos sobre as pessoas do que imaginamos. É possível que Alicia seja
tão simples como parece, uma jovem agradável de boa família e uma beleza extraordinária
que contraiu um matrimônio de proveito a instâncias de seu pai. Se o enlace não a
satisfez, não mostrou nem a imaginação nem a rebeldia suficientes para pôr reparos, nem
sequer em seu foro interno. Entretanto, querida, também é possível que, à medida que seu
matrimônio foi caindo no aborrecimento, lhe fizesse insuportável a idéia de que pudesse
durar outros vinte anos sem que se produzisse nele alguma mudança. Então se
apresentou uma boa oportunidade de livrar-se de seu marido, justamente no momento em
que apareceu Dominic Corde, e se apressou a aproveitá-la. Não seria complicado fazê-lo,
sabe? Bastaria mover a mão e agarrar uma ou duas pastilhas, não mais. Não haveria
provas nem teria que mentir quando lhe perguntassem onde tinha estado e quem a tinha
acompanhado no momento da morte de seu marido. Poderia inclusive esquecê-lo, apagar
o da memória, convencer-se a si mesma de que não tinha acontecido.
— Você acredita em tudo isto?
Charlotte tinha medo. Inclusive apesar da proximidade do fogo, sentiu novamente frio
e teve a sensação de que seus pés continuavam úmidos. Fora, a neve golpeava
ruidosamente o cristal das janelas.
— Não — lhe respondeu a anciã com voz calma. — Mas não descarto a
possibilidade.
Charlotte guardou silêncio.
— Vá trocar essas botas molhadas — lhe ordenou tia Vespasia. — vamos almoçar
aqui; quero que me fale de sua filha. Que nome dizia que lhe tinha posto?
— Jemima — respondeu Charlotte ao mesmo tempo em que se levantava.
— Tinha entendido que sua mãe se chamava Caroline — disse tia Vespasia
arqueando as sobrancelhas em sinal de surpresa.
— Assim é — confirmou Charlotte. Ao chegar à porta se voltou e, lhe dirigindo um
radiante sorriso, acrescentou —: E minha avó se chamava Amélia. Mas também não gosto.
A recepção foi informal. Os convidados se dedicaram a conversar mais que a escutar
música, algo que Charlotte lamentou, já que esta era boa e ela tinha afeição ao piano
apesar de que, a diferença da Sara e Emily, nunca havia tocado bem. O suave toque
daquele jovem lhe trouxe lembranças da infância e de sua mãe cantando.
Dominic se surpreendeu ao vê-la, mas ou não se fixou no bem que ficava o vestido
que lhe tinha emprestado tia Vespasia ou teve a delicadeza de não fazer nenhum
comentário a respeito, consciente de que em suas circunstâncias só podia tratar-se de um
empréstimo.
Charlotte ainda não tinha visto a Alicia, e sua curiosidade não tinha feito senão
aumentar desde a chegada do Virgilio Smith, que tinha sido o primeiro convidado em fazer
ato de presença. Tal como havia dito tia Vespasia, era um homem realmente pouco bonito.
Seu nariz era algo menos elegante e tinha menos similitude com o mármore que com a
cera quente. Entretanto, embora coubesse a possibilidade de que seu cabeleireiro se
valera de uma tesoura e uma tigela para lhe cortar o cabelo, seu alfaiate era exemplar.
Sorriu ao Charlotte com uma calidez que lhe iluminou os olhos e lhe falou com um sotaque
que teria encantado arremedar tal como o teria feito Emily para logo imitá-lo ante o Pitt.
Mas ela não tinha destreza nessa arte.
O senhor Desmond Cantlay e sua esposa não se lembravam dela ou, se se
lembravam, decidiram dissimulá-lo. Charlotte podia compreendê-lo; quando alguém se
encontra com um cadáver nas mãos em meio da rua, não se lembra dos rostos dos
transeuntes, inclusive se estes lhe oferecem ajuda. Saudaram-na com o educado e
aprazível interesse dos conhecidos que não têm outra coisa em comum que o lugar no que
se conheceram. Charlotte os viu afastar-se se perguntando se acreditariam que Alicia e
Dominic podiam ter contemplado a possibilidade de cometer um assassinato.
O comandante Rodney e suas irmãs tampouco lhe prestaram grande atenção; ela
murmurou cortesmente um par de tolices que recordaram às intermináveis festas em que,
sendo ainda solteira e acompanhada por sua mãe e Emily, tinha tratado de aparentar
verdadeiro interesse na recente enfermidade da senhora de fulano ou nas probabilidades
de compromisso da senhorita beltrano.
Já se tinha formado uma imagem mental bastante clara do aspecto que teria Alicia:
pele branca e cabelo com cachos de aspecto natural (não como o seu); estatura média,
ombros suaves e certa tendência a engordar. Logo compreenderia que a imagem que
criara correspondia vagamente a Sara.
Quando por fim chegou, comprovou que era totalmente diferente, embora, ao menos
em certos aspectos, não por uma questão de físico. Tinha a pele branca, com efeito, e
seus cabelos se ondulavam com uma suavidade e assimetria tais que sem dúvida tinham
que ser naturais. Entretanto era tão alta como Charlotte, e tinha uma figura estilizada e os
ombros quase delicados. Mais ainda, a expressão de seus olhos era totalmente diferente.
Não se parecia nada a Sara.
— É um prazer conhecê-la — disse Charlotte ao cabo de um segundo de vacilação.
Embora não sabia se esperava que gostasse ou não, o que viu a deixou assombrada.
Como Dominic estava apaixonado por ela, tinha criado em sua mente uma espécie de
sombra da Sara, por isso não estava preparada para ver uma pessoa diferente e
independente. Além disso, se tinha esquecido de que para a Alicia ela também seria uma
estranha e, a menos que Dominic lhe tivesse falado da Sara e de sua relação com ela,
uma estranha sem importância.
— O prazer é meu, senhora Pitt — respondeu Alicia.
Charlotte observou que seu rosto não refletia curiosidade e compreendeu em seguida
que Dominic não lhe havia dito nada. Alicia retrocedeu um passo, viu Dominic e ficou
totalmente imóvel por um momento. Então se voltou para Gwendoline Cantlay e lhe dirigiu
um elogio a propósito do vestido que levava.
Charlotte estava ainda pensando na instintiva interpretação que tinha feito do ocorrido
quando percebeu que lhe estavam falando.
— Soube que você é uma aliada de lady Cumming-Gould.
Voltou-se para ver a pessoa que lhe havia dito aquilo. Era um homem magro, com as
sobrancelhas em forma de asa e que ao sorrir mostrava uns dentes um tanto torcidos.
Charlotte se esforçou por adivinhar o que tinha querido dizer.
— Uma aliada? — Certamente se referiria ao projeto de lei em que se interessava tia
Vespasia, o projeto com o que se buscava tirar as crianças dos asilos para desamparados
e colocá-los em escolas. Aquele homem devia ser o que tinha levado ao Dominic à rua do
Seven Dials para lhe mostrar o asilo que tanto o tinha afetado. Olhou-o com maior
interesse. Podia entender a preocupação que mostrava Thomas por tais assuntos; sua
vida diária obrigava-o a ser testemunha dos resultados de tais tragédias e conhecer suas
vítimas. Entretanto, que motivos tinha aquele homem para preocupar-se. — Só em espírito
— disse com um sorriso. Agora estava segura de saber quem era; de todas as pessoas
que havia na sala, ele era possivelmente a que menos lhe desagradava. — Digamos que
sou uma partidária; não sou absolutamente tão útil para me considerar uma aliada.
— Acredito que se subestima, senhora Pitt — respondeu ele.
Charlotte se incomodou que a tratasse com condescendência. A causa era muito
importante para dizer trivialidades e adulações gratuitas. De repente se sentiu ofendida,
como se ele não a considerasse digna da verdade.
— Não me faz nenhum favor dissimulando — disse com certa brusquidão. — Não sou
uma aliada. Não tenho os meios.
O sorriso do Carlisle se alargou.
— Mereço sua admoestação, senhora Pitt. Rogo-lhe me desculpe. Talvez me tenha
precipitado, convertendo um desejo em um fato.
Teria sido uma grosseria de sua parte não aceitar a desculpa.
— Seria para mim uma satisfação se você pudesse convertê-lo em um fato —
respondeu ela com suavidade. — É uma causa digna do esforço de qualquer um.
Antes que ele pudesse responder, apresentaram a outras pessoas. Lorde St. Jermyn
e sua esposa acabavam de chegar, e Charlotte teve ocasião de conhecê-los. A primeira
impressão que recebia da pessoa era com frequência equivocada: a maioria das vezes, as
pessoas que acabava gostando eram as que em princípio a tinham deixado indiferente.
Assim e tudo, não concebia que chegasse alguma vez a sentir-se confortável em
companhia de lorde St. Jermyn. Tinha algo na boca que lhe repugnava. Não era feio
absolutamente, mas justamente o contrário; entretanto havia algo na maneira em que unia
os lábios que lhe trazia uma vaga lembrança, uma imagem imprecisa que lhe era
desagradável. Ouviu-se a si mesma responder uma idiotice e notou que os olhos de
Carlisle a olhavam; tinha todo o direito do mundo a lhe reprovar precisamente a falsidade
pela qual ela acabava de criticá-lo.
Pouco depois Alicia se uniu a seu grupo, seguida de perto pelo Dominic. Charlotte os
observou e pensou que formavam um bom casal; complementavam-se perfeitamente. Que
estranho era que aquela idéia lhe tivesse doído e desconcertado uns anos atrás e que
agora, em troca, causasse-lhe unicamente uma sensação de inquietação devida à
possibilidade de que a imagem se rompesse e atrás de sua perfeição não houvesse nada
sólido.
A conversa derivou novamente para o projeto de lei. St. Jermyn estava falando com o
Dominic.
— Disse-me Somerset que você é amigo do jovem Fleetwood. Se o tivéssemos de
nosso lado, nossas possibilidades aumentariam enormemente. Fleetwood tem uma
influência considerável, sabe você?
— Não o conheço muito bem.
Dominic tinha começado a evitar responsabilidades. Estava nervoso. Embora já o
tivesse visto virar o pé de um copo daquele modo no Cater Street, Charlotte se deu conta
nesse momento do grande número de vezes que o tinha visto fazer. Nunca tinha sido
consciente disso.
— Conhece-o o suficiente — respondeu St. Jermyn com um sorriso. — Você é um
bom cavaleiro e um conhecedor de animais ainda melhor. Não se necessita mais.
— Soube que você também tem um bom estábulo.
Dominic continuava tratando de evitar que o pressionassem.
— Para corridas... — St. Jermyn meneou uma mão. — Fleetwood prefere os cavalos
de tiro; gosta de conduzi-los ele mesmo, que é o que a você lhe dá melhor. Ouvi que em
uma ocasião inclusive venceu-o. — Sorriu. — Não se acostume a isso. Não acredito que
goste de perder muito frequentemente.
— Conduzi para ganhar, não para contentar lorde Fleetwood — disse Dominic com
certa brusquidão, lançando um olhar fugaz a Charlotte, quase como se fosse consciente de
seus pensamentos e do que ela houvesse dito em tal situação.
— Esse é um luxo que não podemos nos permitir. — St. Jermyn não estava contente.
Entretanto a insatisfação desapareceu de seu rosto apenas Charlotte a percebeu; um
segundo mais tarde já não ficava nem rastro dela em sua expressão. Charlotte teve a
impressão de que Dominic não tinha reparado nisso. — Se desejarmos que Fleetwood nos
dê seu apoio, não seria inteligente vencê-lo com muita frequência — concluiu St. Jermyn.
Dominic respirou fundo para responder, mas Charlotte se adiantou. Dominic não se
zangava com facilidade; de fato era uma pessoa extremamente afável. Raramente adotava
uma posição firme com respeito a qualquer tema, mas, pelo que ela recordava, nas poucas
ocasiões em que o fazia jamais mudava de opinião. Havia a possibilidade de que se
comprometesse agora e depois, ao arrepender-se do dito, visse-se incapaz de voltar atrás.
— Não acredito que o senhor Corde faça isso — disse fazendo um esforço por dirigir
um sorriso ao St. Jermyn. — Além disso, certamente lorde Fleetwood preste mais atenção
a um homem que o tenha vencido ao menos em uma ocasião. Dificilmente pode dizer-se
que uma segunda posição sirva para distinguir a uma pessoa da multidão ou para fazê-la
merecedora do interesse de lorde Fleetwood.
Nos lábios do Dominic se desenhou um de seus formosos sorrisos, e por um
momento ela evocou o que tinha sentido por ele tempos atrás. Então voltou para o
presente e se viu que estava olhando ao St. Jermyn.
— Com efeito — disse Dominic. — Eu gostaria que visse o asilo do Seven Dials tal
como eu o fiz. Causaria-lhe uma impressão que não esqueceria facilmente.
Alicia tinha rosto de perplexidade e tinha franzido o sobrecenho ligeiramente.
— O que tem de espantoso o asilo? — perguntou. — Me disse que há pobreza, mas
nenhuma lei conseguirá que desapareça. Ao menos os asilos proporcionam às pessoas
comida e proteção. Sempre houve ricos e pobres, e inclusive se pudesse fazer um milagre
e trocar a situação, ao cabo de poucos anos ou inclusive menos, tudo voltaria a ser igual,
não? Um homem pobre, pelo mero fato de receber dinheiro, não é rico por muito tempo...
— É mais perspicaz do que talvez se proponha — disse Carlisle arqueando as
sobrancelhas. — De qualquer modo, se alimentar-se as crianças, mantém elas longe da
enfermidade e do desespero de tal modo que cheguem a adultos sem necessidade de
roubar para viver, e além disso lhes proporciona algum tipo de educação, a seguinte
geração não será tão pobre.
Alicia ficou olhando-o, assimilando a idéia e dando-se conta de que tinha falado muito
a sério.
— Por Deus! — exclamou Dominic. — Se o tivesse visto não estaria aqui discutindo
detalhes corriqueiros! Estaria desejando fazer algo! — Voltando-se para Charlotte,
acrescentou —: Não é assim?
Alicia o olhou com uma fugaz expressão de dor e se afastou dele de maneira quase
imperceptível. Charlotte o observou e soube exatamente como se sentia; conhecia a
repentina sensação de afastamento, a que se tinha quando uma pessoa se via excluída de
algo que para a outra pessoa era importante.
Olhou-o com severidade e falou com voz suave e nítida:
— Suponho que sim. Certamente, se lhe afeta este assunto é porque foi a esse lugar.
Mudou por completo. Entretanto, pelo que que me disseram sobre ele, duvido que seja o
lugar mais apropriado para levar a senhora Fitzroy-Hammond. Meu marido não me
permitiria ir ali.
Mas Dominic, que não gostava que o contrariassem, não adivinhou o significado
profundo de suas palavras.
— Não tem por que levá-la — disse acaloradamente. — Você já sabe como são
esses lugares e as condições em que vive a gente que trabalha neles. Além disso, se
preocupa com este tipo de coisas. Lembro que me falou disso faz anos, mas então não
consegui compreender o que me dizia.
— Não acredito que me escutasse — respondeu ela com sinceridade. — Custou
muito tempo para acreditar, assim deveria dar também um pouco de tempo a outros.
— Mas não há tempo!
— Com efeito, não o há, senhora Pitt — disse St. Jermyn levantando seu copo. —
Meu projeto de lei será apresentado dentro de poucos dias. Se desejarmos que se passe,
é necessário que reunamos todo o apoio possível para essa data. Não há tempo que
perder. Senhor Corde, estaria-lhe extremamente agradecido se pudesse abordar ao
Fleetwood amanhã ou depois de amanhã quando muito tarde.
— É claro — disse Dominic. — O farei amanhã mesmo.
— Bem. — St. Jermyn lhe deu uma palmada no ombro e bebeu seu copo. — Vamos,
Carlisle. Será melhor que vamos falar com nossa anfitriã. Conhece todo mundo e isso é o
que necessitamos.
Uma careta de desgosto cruzou fugazmente o rosto do Carlisle, mas desapareceu
antes que Charlotte conseguisse captar seu significado. Carlisle se reuniu com o St.
Jermyn e juntos passaram ao lado do comandante Rodney e suas irmãs. O comandante
tinha um copo na mão e estava olhando sobre suas cabeças com cara de estar procurando
a alguém ou, possivelmente, de temer a alguém.
Produziu-se um incômodo silêncio, mas então apareceu Virgilio Smith, que olhou a
Charlotte com vacilação. Entretanto em seguida suavizou o gesto e fez um comentário a
Alicia. Não era mais que uma observação sem importância, corriqueira, mas expressa com
uma doçura que fez que Charlotte se esquecesse bruscamente da pobreza, dos projetos
de lei parlamentares e inclusive das suspeitas de assassinato. Era algo triste, algo no que
talvez ninguém tivesse reparado, mas ela não tinha demorado em percebê-lo: Virgilio
Smith estava apaixonado pela Alicia. Provavelmente ela não tinha olhos mais que para o
Dominic e nem sequer fora consciente disso; possivelmente ele soubesse quão inútil era
seu amor e nunca lhe falasse dele. Por aqueles escassos segundos Charlotte ficou em
lugar da Alicia e reviveu a teimosia que tinha sentido pelo Dominic, a dor, as absurdas
esperanças, as falsas e tolas ilusões que tinha concebido, todas as virtudes que tinha visto
nele e o pouco que tinha chegado a conhecê-lo. Com aqueles sonhos tinha prejudicado a
ele e a si mesma, lhe atribuindo virtudes que ele nunca tinha afirmado possuir.
Ela tampouco se teria fixado no Virgilio Smith, com suas desagradáveis feições e
suas insuportáveis maneiras, e certamente não se teria informado nem teria querido
inteirar-se de que a amava. Seria violento para ela, embora talvez tivesse saído perdendo
por isso.
Pediu desculpas e foi falar com tia Vespasia e Gwendoline Cantlay. Nos olhos desta
viu em várias ocasiões um olhar de perplexidade que atribuiu ao fato de que, apesar de
seus esforços, não conseguia identificá-la e só a recordava vagamente. Não tinha certeza
de se a conhecia de alguma reunião social. Com certa malevolência, Charlotte deixou que
continuasse esforçando-se; a satisfação que lhe produziria dizer-lhe não seria tão grande e
possivelmente poria em um apuro a tia Vespasia. Possivelmente esta não se importava
absolutamente que todos soubessem que se tratava com a esposa de um policial, embora
certamente preferiria escolher às pessoas a quem fosse dizer assim como a maneira de
fazê-lo.
Era tarde e já se foram alguns convidados. Tinha começado a escurecer quando
Charlotte se achou sozinha, perto da porta da estufa, e viu aproximar-se Alicia. Tinha
estado esperando aquele momento; de fato, se Alicia não tivesse dado a ocasião, ela
mesma teria engenhado para que se proporcionasse.
Era evidente que Alicia tinha estado preparando mentalmente o começo da conversa;
Charlotte se deu conta disso porque ela teria feito o mesmo.
— Foi uma tarde extremamente agradável, não é? — comentou Alicia com
naturalidade quando chegou a seu lado. — Lady Cumming-Gould mostrou uma grande
delicadeza ao organizar tudo de tal maneira que minha presença não parecesse
inapropriada. O luto acaba parecendo eterno e só serve para que a perda resulte mais
difícil de aguentar. Não permite a diversão necessária para afastar a idéia da morte e da
solidão.
— Tem razão — disse Charlotte. — Acredito que as pessoas não se dão conta da
carga acrescentada que supõe o luto para uma pessoa que já teve que sofrer uma perda.
— Não soube até hoje que lady Cumming-Gould era sua tia — prosseguiu Alicia.
— Eu diria que é algo mais que isso — respondeu Charlotte com um sorriso. — É a
tia avó de meu cunhado, lorde Ashworth. — A seguir lhe contou o que queria lhe dizer da
conversa com lorde St. Jermyn. — Minha irmã Emily se casou com lorde Ashworth
recentemente. Minha irmã mais velha, Sara, esteve casada com o Dominic antes de
morrer; embora tenha certeza de que você já sabe... — Em realidade estava certa do
contrário, mas queria dar a Alicia a ocasião de fingir que sabia.
Alicia dissimulou sua confusão com um esforço supremo. Charlotte simulou não
percebê-lo.
— Sim, claro — afirmou Alicia. — Embora Dominic tivesse ultimamente a mente tão
ocupada no assunto do senhor Carlisle que não tive a oportunidade de falar muito com ele.
Estaria-lhe agradecida se pudesse me dizer algo mais a respeito. Parece que você conta
com sua confiança e confesso que sou uma pessoa terrivelmente ignorante.
Charlotte se surpreendeu a si mesma mentindo.
— Para falar a verdade, parece-me que a confiança com que conto é mais a de tia
Vespasia — disse com tom afável. — Está muito preocupada com este assunto, sabe? O
senhor Carlisle costuma tratar o tema com ela, possivelmente para conseguir sua ajuda
para convencer a outros membros da câmara que os apóiem. — Lançou um olhar a Alicia
e observou que a lembrança do comentário que tinha feito St. Jermyn se refletia
fugazmente em seu rosto. — Conhece muita gente. Eu nunca vi um desses asilos,
certamente, mas conforme soube a situação de miséria em que se encontram é realmente
espantosa e deve-se remediá-la. Se mediante este projeto de lei se proporcionar sustento
e educação às crianças indigentes das metrópoles e se evitam os prejudiciais efeitos da
convivência com vagabundos, pelo que a mim respeita, espero e rogo que seja aprovada.
As feições da Alicia se suavizaram com alívio.
— OH, eu também — afirmou com veemência. — Me pergunto quem poderia nos
ajudar; deve haver alguém entre os amigos e familiares de Augusto.
— Seria isso possível?
Charlotte não estava fingindo desta vez; Dominic e Alicia a preocupavam porque
eram pessoas concretas que compreendia. De todo modo, se fosse honesta consigo
mesma, tinha que reconhecer que o projeto de lei era mais importante que um simples
assassinato, fosse qual fosse a tragédia que o tivesse causado ou pudesse provocar.
Alicia sorriu.
— É claro. Porei-me à tarefa assim que chegue a casa. — Impulsivamente, estendeulhe a mão. — Obrigada, senhora Pitt. Foi tão amável que me sinto como se a conhecesse
de anos. Confio em que não considere isto uma rabugice.
— Considero-o um cumprimento — respondeu Charlotte com sinceridade. — Espero
que tenha a mesma sensação no futuro.
Alicia manteve sua palavra. O primeiro que fez ao chegar a casa, depois de dar a
capa à criada e calçar umas botas secas, foi ir ao estúdio e tirar seu livro de endereços.
Antes de subir a seus aposentos e trocar-se para o jantar, tinha redigido cuidadosamente
quatro cartas e as tinha passado a limpo.
Como Verity tinha ido a casa de uma prima para passar uns dias, durante o jantar
Alicia só teve a companhia de sua velha sogra. Sentiu falta da jovem, já que desfrutava de
sua companhia e desejava lhe fazer partícipe de seu novo projeto e de seu sentir a
respeito da senhora Pitt, que tinha passado da intensa antipatia que lhe suscitava o
evidente respeito e apreço que Dominic mostrava por ela a enorme simpatia que sentia
agora. Aquela mulher era muito diferente de como a tinha imaginado.
— Passou bem no chá? — perguntou a velha dama trespassando uma parte de
pescado com o garfo e levando-o à boca. — Ninguém considerou estranho que saia sendo
tão recente o enterro de seu marido? Suponho que os convidados terão expressado sua
cortesia.
— Faz mais de cinco semanas que morreu, sogra — replicou Alicia tirando
delicadamente um espinho do peixe.— E não foi um chá, mas sim uma recepção.
— De maneira que música, por cima! Muito inapropriado. Suponho que haverão
tocado só canções de amor e que você fará o ridículo olhando embevecida ao Dominic
Corde. Pois não acredite que vai casar se com você. Não tem coragem. Acredita que
envenenou a Augusto.
Alicia demorou em compreender o significado daquelas palavras. Em um primeiro
momento sentiu irritação ante a insinuação de que sua presença na recepção tinha sido
motivo de falatórios, mas quando se dispunha a desmenti-la caiu na conta do que a anciã
havia dito a respeito do Dominic. Era repugnante e absolutamente falso! Mas em que
cabeça cabia que Dominic a considerasse capaz de tanta maldade!
— Não poderá prová-lo, é claro — prosseguiu a anciã com olhos brilhantes. — E
tampouco dirá algo sobre isso; unicamente se comportará com um pouco mais de frieza
cada vez que o veja. Recorda que ultimamente não veio a visitá-la. Acabaram-se os
passeios em carruagem...
— Não veio pelo tempo — respondeu Alicia acaloradamente.
— Isso não o deteve antes! — A anciã tomou outro pedaço de peixe e continuou
falando com a boca cheia. — Vi-o vir pelo Natal quando as ruas estavam cobertas de neve.
Não seja tola, moça!
Alicia estava muito zangada para continuar mantendo as maneiras.
— A semana passada você disse que o assassino de Augusto era ele! — exclamou
— assim, como é possível que pense que fui eu quem o matou? Ou acaso você acredita
que o assassinamos cada um por nossa conta? Se esse for o caso, deveria lhe alegrar a
idéia de que nos casemos. Somos iguais.
A anciã a fulminou com o olhar, fingindo que não podia falar porque tinha a boca
cheia enquanto procurava uma resposta adequada.
— Talvez pense que o fez você! — prosseguiu Alicia, animada pela idéia. —Ao fim e
ao cabo o digital é seu, não meu! Possivelmente tenha medo de instalar-se nesta casa e
viver com você!
— Me diga, rogo-lhe isso, por que haveria eu de matar a meu próprio filho? — A
anciã engoliu o pedaço e imediatamente se meteu outra parte. — Eu não tenho intenção
de me casar com um Don Juan jovem e bonito!
— Tanto faz — respondeu Alicia com brutalidade, — pois não tem nenhuma
possibilidade de fazê-lo.
Estava horrorizada consigo mesma, mas os anos de bom comportamento haviam
chegado a seu fim e a sensação era maravilhosa, estimulante, como se estivesse
cavalgando rapidamente montada em um corcel.
— Você tampouco, moça! — A anciã avermelhou. — E é uma idiota se pensar que
tem alguma. Envenenou a seu marido sem motivo!
— Se pensa isso — respondeu Alicia lhe cravando o olhar em seus velhos olhos, —
surpreende-me que jante com tal voracidade sentada à mesma mesa que eu enquanto
procura minha inimizade com tanto afinco. Acaso não tem medo também?
A anciã se engasgou e levou uma mão à garganta ao mesmo tempo em que seu
semblante empalidecia.
Alicia se pôs-se a rir com amarga alegria.
— Se tivesse envenenado a alguém, esse alguém seria você, não Augusto. Mas,
como bem sabe, esse não é o caso; do contrário você teria reparado nisso tempo atrás e
teria encarregado a Nisbett que provasse tudo antes de que você o levasse a boca. De
qualquer modo tampouco me teria importado envenenar a Nisbett...
A anciã tossiu e sofreu um espasmo. Alicia não se deu por inteirada.
— Se já comeu suficiente pescado — disse friamente, — direi ao Byrne que sirva a
carne.
Pitt não sabia nada da recepção. Estava decidido a averiguar a identidade do cadáver
aparecido na carruagem, por isso assim que chegou a delegacia de polícia o resultado da
autópsia, arrebatou-a das mãos do menino de recados e abriu o envelope bruscamente.
Tinha acabado esgotado fazendo conjeturas sobre a causa da morte; possivelmente fosse
algo exótico, excepcional, que condenasse a alguém e desse o motivo das peculiares
circunstâncias que se deram. Se não guardava relação com nenhum crime ou escândalo,
que motivo teria qualquer um para levar a cabo a horrenda e perigosa tarefa de
desenterrar o cadáver e abandoná-lo na boléia de uma carruagem de aluguel?
Naturalmente, tinham obtido a identificação da carruagem, mas esta só lhes tinha levado a
averiguar que o veículo tinha sido roubado enquanto seu dono se reconfortava com
liberalidade um tanto excessiva em uma taverna do lugar. Uma situação que acontecia
com bastante frequência, mais ainda em uma noite de janeiro. Só os policiais, os cocheiros
e os lunáticos frequentavam as ruas durante a noite com semelhante tempo.
Leu a folha que continha o envelope. A causa da morte tinha sido algo extremamente
comum: apoplexia. Uma maneira normal e totalmente natural de morrer. No cadáver não
havia sinais de violência; de fato não se achou nada que merecesse comentário algum. O
falecido era um homem de idade avançada, boa saúde em termos gerais, bem alimentado,
bem cuidado, limpo e com tendência a engordar. Em realidade, tal como tinha comentado
o ajudante do necrotério, a descrição que se devia esperar tratando-se de um lorde.
Pitt agradeceu ao menino dos recados e lhe disse que podia ir-se; a seguir colocou a
folha na gaveta de sua escrivaninha, encasquetou o chapéu, protegeu as orelhas com o
cachecol e, pegando o casaco do cabide, saiu à rua.
Faltava uma tumba. Aquilo era possivelmente o aspecto mais estranho do assunto;
tinha três tumbas e quatro cadáveres: lorde Augusto, William Wilberforce Porteous,
Horacio Snipe e o homem desconhecido da carruagem de aluguel. Onde estava sua
tumba? Por que tinha decidido o profanador enchê-la cuidadosamente de modo que não
se notasse que a tinha aberto?
As outras tumbas se achavam todas dentro de uma área relativamente pequena.
Começaria a procurar na mesma zona. Evidentemente não podia revistar todas as tumbas
em que se enterrou a alguém recentemente. Ia ter que interrogar a todos os médicos que
tivessem certificado uma morte por apoplexia durante as quatro ou cinco últimas semanas.
Possivelmente conseguiria reduzir o número de possibilidades até ficar com apenas um ou
dois médicos aos quais levaria a ver os desagradáveis restos que ainda repousavam no
necrotério.
Até a tarde do dia seguinte não pôde subir, cansado, com frio e de mau humor, os
degraus de pedra da consulta de tal doutor Childs.
— Não recebe pacientes a esta hora — disse sua governanta com aspereza. — Terá
que esperar. Neste preciso momento está tomando o chá.
— Não sou um paciente — respondeu ele tratando de dominar o tom de voz. — Sou
da polícia e não vou esperar.
Cravou o olhar na mulher até que esta se viu obrigada a afastar a vista.
— Embora não sei a que veio — disse ela encolhendo os ombros, — suponho que
será melhor que o deixe entrar. Não esqueça de limpar a sola dos sapatos.
Pitt a seguiu, entrou no consultório e se achou com o médico descalço e diante do
fogo, olhando-o sobressaltado com um pão-doce na mão e o queixo manchado de
manteiga.
Quando lhe explicou o objeto de sua visita, o doutor disse:
— OH... Traga outra taça, senhora Lundy. Pegue um pão-doce, inspetor... Sim,
suponho que se trata do Albert Wilson. Aproxime-se do fogo, homem, tem cara de estar
congelado. Era o mordomo do senhor Dunn, pobre homem... Embora não sei por que digo
isto, já que morreu instantaneamente. É muito possível que nem sequer se inteirasse. Tem
as botas molhadas; tire-as e seque as meias três-quartos. Este tempo é insuportável. .. por
que tem interesse no Wilson? Sua morte se deveu a causas naturais. Não tinha parentes
nem nada que deixar em herança. Só era um mordomo, dos bons, conforme soube, mas
pelo resto um tipo comum. Assim, fique a vontade. Pegue outro pão-doce; cuide da
manteiga, escorre por toda parte... ocorreu algo em relação com o Wilson?
Arqueou as sobrancelhas e olhou ao inspetor.
Pitt foi esquentando junto ao fogo à medida que ia tomando simpatia por aquele
médico.
— Há três semanas um cadáver desenterrado foi encontrado na boléia de uma
carruagem de aluguel na saída de um teatro...
— Deus Santo! Está-me dizendo que era o pobre Wilson? — Suas sobrancelhas se
arquearam agudamente até alcançar quase o nascimento do cabelo. — Mas bom, por que
demônios alguém teria que fazer algo semelhante? É isto o que está investigando, não é?
Obrigado, senhora Lundy; sirva ao inspetor uma xícara de chá.
Pitt pegou a xícara garbosamente e aguardou que a governanta abandonasse a sala.
— É uma mulher terrivelmente curiosa — comentou o médico meneando a cabeça. —
O que não deixa de ter suas vantagens, já que sabe mais de meus pacientes que o que
eles me dizem. Não se pode curar a um homem se só se souber a metade das coisas que
o afligem. — Observou o vapor que se erguia das botas do Pitt e acrescentou —: Não
deveria andar por aí com os pés molhados. Não é bom.
— Sim, isso é o que estou investigando — disse Pitt sem poder evitar um sorriso. —
O estranho é que não deixaram a tumba aberta. Suponho que Albert Wilson foi enterrado.
— OH, claro que foi enterrado. Não sei onde, mas tenho certeza de que o senhor
Dunn poderá dizer-lhe.
— Então irei perguntar lhe — disse Pitt sem mover-se de seu lugar. Deu uma dentada
a outro pão-doce e acrescentou —: Estou muito agradecido.
O doutor pegou o bule.
— Não tem importância, amigo. Só cumpri com meu dever profissional. Quer um
pouco mais de chá?
Pitt foi à casa dos Dunn e averiguou o nome da igreja; entretanto não tinha nenhum
sentido ir procurar tumbas na escuridão, por isso foi na manhã seguinte quando achou a
do Albert Wilson, o finado mordomo, e obteve permissão para abri-la. Às onze da manhã
se achava junto aos coveiros, olhando como afastavam a última pá de terra negra da
tampa do ataúde. Passou-lhes as cordas e esperou a que as deslizassem por debaixo da
caixa e as atassem; a seguir retrocedeu para que subissem e começassem a puxar os
cabos. Era um trabalho de peritos, uma questão de equilíbrios e forças de apoio. Quando
no final o deixaram sobre a úmida terra ao lado da cova, soltaram um suspiro de alívio: ao
que parece lhes tinha sido pesado.
— Não faz você ideia de como pesa isto, chefe — comentou um deles com
seriedade. — Não me parece que esteja vazio.
— A mim tampouco — disse o outro coveiro negando com a cabeça e olhando ao Pitt
com expectativa.
Em lugar de responder, Pitt se inclinou e olhou os fechos da tampa. Ao cabo de um
momento rebuscou em seu bolso e tirou uma chave de fenda. Silenciosamente, se pôs à
tarefa, rodeando o ataúde até que teve todos os parafusos na mão. Meteu-os em outro
bolso, encaixou a folha da ferramenta entre a tampa e a caixa e a levantou.
Os coveiros estavam certo. O ataúde não estava vazio. O cadáver que havia em seu
interior era magro e tinha abundante cabelo vermelho. Usava uma camisa branca folgada e
tinha pintura nos dedos, uma pintura pouco espessa, tipo aquarela, como a que utilizavam
os artistas.
Mas foi o rosto o que chamou a atenção do Pitt. Embora os olhos estivessem
fechados, tinha a pele torcida e inchada, e os lábios azuis. Sob a superfície da pele, ali
onde os capilares tinham arrebentado, havia dúzias de marcas vermelhas do tamanho de
um alfinete. Entretanto, o que mais saltava à vista eram os escuros hematomas da
garganta.
Por fim aparecia o cadáver do assassinado.
Capítulo 8
Gadstone Park tinha sido o centro de tantos acontecimentos que a Pitt não custaria
muito averiguar a identidade do homem parecido na tumba do Albert Wilson. Naquele caso
só se fizera menção a um pintor, Godolphin Jones; inteirar-se de se aquele era seu
cadáver era, portanto costurar e cantar.
Pitt voltou a pôr a tampa e se levantou. Chamou o agente que aguardava no final do
atalho e lhe disse que se encarregasse de que levassem imediatamente o cadáver ao
depósito. Ele mesmo iria ao Gadstone Park para pedir a um mordomo ou um lacaio que
fosse identificá-lo. Depois de agradecer aos
coveiros, que ficaram zangados e confusos olhando o ataúde manchado de terra,
ajustou o cachecol, enfiou o chapéu para evitar que a garoa lhe molhasse o rosto e partiu.
A identificação foi um trâmite rápido e desagradável. O rosto, apesar do inchaço e
marcas, tinha traços característicos, e ao mordomo lhe bastou uma olhada para
reconhecê-lo.
— Sim, senhor — disse com voz calma. — É o senhor Jones. — Então titubeou. —
Senhor, não... — engoliu em seco. — Não parece que haja falecido de morte natural.
— Não — respondeu Pitt. — Estrangularam-no.
O mordomo estava pálido. O ajudante do necrotério foi buscar um copo de água.
— Significa que o assassinaram e que vai haver uma investigação, senhor?
— Sim — respondeu Pitt. — receio que assim é.
— Deus santo. — O homem se sentou na cadeira que havia para tal fim. — Que
horror.
Pitt aguardou uns minutos que o mordomo recuperasse a serenidade, depois do que
voltaram para carruagem que os esperava e retornaram ao Gadstone Park. Havia muito
que fazer. Até aquele momento nada do ocorrido tinha afetado Godolphin Jones de modo
algum. O pintor não tinha aparentemente nenhuma relação com Augusto FitzroyHammond, nem com a Alicia, nem com o Dominic, nem tinha sido mencionado em
referência a nada, nem sequer ao projeto de lei que tanto interessava a tia Vespasia.
Ninguém tinha afirmado ter tido contato com ele fora do âmbito profissional ou do contato
mínimo que estabelece uma pessoa com os vizinhos mais próximos.
Charlotte lhe havia dito que tia Vespasia considerava que seus quadros eram muito
escuros e muito caros, mas isto não constituía motivo para sentir antipatia por alguém, e
menos ainda para matá-lo. Se uma pessoa não gostava dos quadros de um pintor,
simplesmente não os comprava. Contudo, Jones tinha sido uma pessoa popular e bastante
rica, a julgar por sua casa.
A casa era, precisamente, o lugar por onde tinha que começar a investigação. Havia
a possibilidade de que o pintor tivesse sido assassinado ali, o que, se se chegasse a
demonstrar, serviria para determinar horas e procurar testemunhas. Em qualquer caso,
poderia averiguar quando tinha estado Godolphin Jones nela pela última vez, se o tinham
visto ir-se, quem o tinha visitado e quando. Os criados costumavam saber muito mais a
respeito de seus senhores do que estes imaginavam. Uns interrogatórios discretos e bem
preparados poderiam dar informação de todo tipo.
Naturalmente, também deveria levar a cabo uma meticulosa batida da propriedade.
Pitt, acompanhado por um agente, começou a longa tarefa.
No dormitório não acharam nada. Estava em ordem e cenário de uma maneira um
tanto desmesurada para o gosto do Pitt, mas oferecia um aspecto limpo e pelo resto não
chamava a atenção. Tinha todo o equipamento de rigor: um lavatório, um espelho e uma
cômoda para roupa interior e meias três-quartos. Os trajes e as camisas estavam
guardados em um quarto de vestir. Havia vários quartos de hóspedes, desocupados e fora
de uso.
Nos cômodos do andar térreo não acharam nada relevante até que chegaram ao
estúdio. Pitt abriu a porta e olhou com atenção. Não havia nada ostentoso e não
moderado: o chão a carecia de tapetes e duas paredes estavam ocupadas em sua maior
parte por enormes janelas. Em um canto havia um montão de partes de estátua e algo que
parecia uma cadeira branca de jardim. Mais à frente se via uma cadeira estilo Luís XV
meio tampada com um recorte de veludo rosa e, no chão, uma urna tombada de lado.
Junto à porta, na parede, havia prateleiras cheias de pincéis, pigmentos, produtos
químicos, azeite de linhaça, licores e vários montões de trapos. Debaixo, no chão, viam-se
várias telas, e no centro da sala um suporte de livro com duas paletas a seu lado e uma
tela meio pintada. A primeira vista não se via nada mais, exceto uma desconjuntada
escrivaninha de persiana e, junto a ela, uma cadeira de cozinha com espaldar.
— Vá-se com o artista... — disse o agente, como era de esperar. — Pensa que
podemos achar algo aqui, inspetor?
— Isso espero. — Pitt entrou. — Do contrário só ficará interrogar aos criados.
Comece por aqui. — Apontou o lugar das telas.
— Sim, senhor — respondeu o agente, passando por cima da urna e se chocando
contra a cadeira, que caiu ao chão ruidosamente derrubando um vaso de flores.
Pitt se absteve de fazer qualquer comentário. Já conhecia a opinião que tinha o
agente sobre a arte e os artistas.
A maioria das telas estava preparada, mas ainda não tinham sido utilizadas. Só duas
tinham pintura; em uma se via o fundo e o esboço de uma cabeça de mulher; a outra
estava quase terminada. Pitt as pôs direitas e retrocedeu uns passos para examiná-las.
Tinham, tal como havia dito tia Vespasia, tons bastante escuros, como se se tivessem
utilizado muitos pigmentos na mescla, mas resultavam equilibrados e sua composição era
satisfatória. Não reconheceu à mulher retratada no quadro que estava meio acabado, nem
tampouco a que aparecia no do suporte de livro, mas provavelmente o mordomo poderia
lhe dizer quem eram. Além disso, Jones guardaria com toda segurança algum registro,
embora só fosse para registrar as contas.
O agente derrubou uma parte de coluna e murmurou um impropério. Pitt fingiu não ter
ouvido nada e se concentrou na escrivaninha. Estava fechada com chave, por isso se viu
obrigado a mexer na fechadura com um arame para abri-la. Em seu interior havia poucos
papéis, em sua maioria faturas de materiais de pintor. As contas da casa deviam estar
guardadas em outra parte. Provavelmente as teria o cozinheiro ou o mordomo.
— Aqui não há nada, senhor — disse o agente com tom de desespero. — Com esta
desordem é impossível saber se alguém brigou em meio destes trastes ou não. Suponho
que estará assim porque é o estúdio de um artista, não é verdade? — Não tinha um bom
conceito da arte, a qual considerava uma ocupação indigna de um homem. Os homens
deviam trabalhar em um ofício e as mulheres deviam encarregar-se de cuidar da casa, de
mantê-la limpa e ordenada se é que valiam para isso. — E vivem todos desta maneira? —
perguntou olhando o estúdio com desdém.
— Não sei — respondeu Pitt. — Veja se pode achar restos de sangue. Tinha na
cabeça uma ferida de mil demônios. O mais provável é que haja algum rastro no objeto
com que a fez.
Pitt continuou a revista da escrivaninha. Tirou um maço de cartas e lhes deu uma
olhada. A primeira vista não tinham nenhum interesse; todas faziam referência a
encomendas de retratos, indicações sobre as posturas desejadas, as cores dos vestidos e
as datas mais convenientes para as sessões.
A seguir se achou com uma caderneta de notas onde tinha apontadas várias cifras
que poderiam ter qualquer significado e, a seu lado, uns desenhos que representavam
insetos e pequenos répteis. Havia um lagarto, uma mosca, dois tipos de escaravelho, um
sapo, uma larva e vários bichinhos com patas e pelos. Todos se repetiam ao menos meia
dúzia de vezes, exceto o sapo, que aparecia só em duas ocasiões e para o final.
Possivelmente se Jones tivesse vivido, o sapo teria continuado aparecendo.
— Achou algo? — O agente passou de novo por cima da urna e da cadeira e se
aproximou do Pitt.
— Não sei — respondeu este. — Não parece grande coisa, embora talvez se
entendesse seu significado...
O agente tratou de ver por cima do ombro do inspetor, percebeu que era muito alto e
decidiu pôr a cabeça por detrás do cotovelo.
— Bom, não sei... — disse ao cabo de um minuto. — Tinha interesse neste tipo de
coisas? Alguns cavalheiros são... não têm outra coisa melhor que fazer com seu tempo. De
qualquer modo, para mim é um mistério por que uma pessoa pode interessar-se pelas
aranhas e moscas.
— Não se trata disso. — Pitt fez um gesto de negação com a cabeça e franziu o
sobrecenho. — Não são desenhos naturalistas; são todos iguais e estão repetidos a
intervalos bastante regulares. São como um hieróglifo, uma espécie de código.
— Para que? — perguntou o agente fazendo uma careta. — Não é uma carta nem
nada parecido...
— Se soubesse para que é, saberia que passo tenho que dar a seguir — respondeu
Pitt com aspereza. — Estes números estão ordenados para indicar somas de dinheiro,
datas ou ambas as coisas.
O agente perdeu interesse.
— Possivelmente esta fosse sua maneira de levar as contas e de manter afastadas
às governantas intrometidas ou algo assim — sugeriu. — Ali não há grande coisa, só
partes de estuque unidos para que pareçam uma rocha, partes de tela pintadas, coisas
desse tipo... Não há sangue. E está tudo tão desordenado que não se sabe se alguém o
puxou ou se simplesmente ele o deixou assim. Diria-se que os artistas são desordenados
por natureza. Ao que parece também tirava fotografias; vi uma dessas câmaras ali.
— Uma câmara? — Pitt se ergueu. — Eu não vi nenhuma fotografia. Você viu
alguma?
— Não, senhor; agora que o diz, não vi nenhuma. Você acha que as venderia?
— É improvável que as vendesse todas — respondeu Pitt, perplexo. — Tampouco
havia alguma nos outros aposentos da casa. Pergunto-me onde estarão.
— Possivelmente não a usasse — sugeriu o agente. — Está entre todas as coisas
que punha em seus quadros. Possivelmente seja isso, parte de um quadro.
— Não me parece que seja o tipo de coisa que ponha um pintor em seus quadros. —
Pitt passou cuidadosamente por cima da cadeira, da urna e das colunas e chegou junto à
câmara, que era negra e estava apoiada sobre um tripé. — Não parece muito nova —
comentou, — assim, a menos que fosse de segunda mão, fazia tempo que a tinha
comprado. De qualquer modo podemos perguntar a seus antigos clientes se tem um
retrato do Jones no que apareça uma câmara ou se encarregaram uma com essas
características.
— É um objeto bastante feio. — O agente tropeçou com um pedaço de veludo e
soltou um impropério. Então viu o rosto do Pitt. — Sinto muito, senhor. — Tossiu entre
sobressaltado e enfurecido e acrescentou —: Possivelmente tomasse fotografias das
pessoas que ia retratar para lembrar-se de seu aspecto quando não estivessem aqui ou
algo assim.
— E depois as destruía ou as dava de presente...? — Pitt ficou pensativo. — É
possível, embora o normal fosse que queria ver seus clientes em cor. Ao fim e ao cabo, um
pintor trabalha com cores. De todo modo, é possível.
Pitt começou a examinar a câmara, tocando suas diversas partes. Nunca tinha
utilizado uma, apesar de tê-las visto utilizar algumas vezes os fotógrafos da polícia e tinha
começado a valorizar suas possibilidades. Sabia que a impressão da imagem se realizava
sobre uma placa que depois tinha que ser revelada. Depois de mexer durante uns
segundos, tirou a placa da câmara com cuidado, mantendo-a tampada com tecido negro
para evitar que lhe desse a luz, já que não tinha costume de fazê-lo e não sabia quão frágil
podia ser.
— O que é isso? — perguntou o agente com suspeita.
— A placa — respondeu Pitt.
— E se vê algo nela?
— Não sei. Terá que mandar que a revelem. Provavelmente não se veja nada,
porque do contrário não a teria deixado aqui. De qualquer modo talvez tenhamos sorte.
— Certamente não seja mais que alguma mulher que estava pintando — concluiu o
agente lhe tirando importância.
— É possível que o tenham assassinado por culpa de alguma mulher que estava
pintando — comentou Pitt.
O agente o olhou com súbito interesse.
— Assim tinha uma aventura, né? Vá, vá, não é má idéia. Você acha que tomaria
alguma liberdade com as modelos?
Pitt lhe lançou um olhar divertido, mas sem perder a seriedade.
— Chame os criados e lhes diga que passem um por um — ordenou. — Que venha o
mordomo em primeiro lugar.
— Sim, senhor.
O agente obedeceu, apesar de, evidentemente, estar lhe dando voltas às ilimitadas
possibilidades que aquela ideia acabava de lhe sugerir. Não gostava dos homens
efeminados que ganhavam fortunas borrando quadros por aí vestidos com uma blusa e
retratando pessoas que deveriam empregar seu tempo de forma mais sensata; entretanto
aquele caso era mais interessante que as tragédias comuns e normais que estava
acostumado a ver. Incomodava-lhe ter que falar com os criados, por isso cumpriu a ordem
a contra gosto.
Ao cabo de uns segundos apareceu o mordomo. Pitt lhe sugeriu que se sentasse na
cadeira de jardim enquanto ele fazia o mesmo na cadeira que havia junto à escrivaninha.
— A quem estava pintando seu senhor antes de ir-se? — perguntou.
— A ninguém, senhor. Acabava de terminar um retrato do senhor Albert Galsworth.
Aquilo o decepcionou; não só se tratava de alguém de quem nunca tinha ouvido falar,
mas além disso era homem.
— E o que me diz desse quadro que há no chão? — perguntou. — É o retrato de uma
mulher.
O mordomo se aproximou e o olhou.
— Não sei, senhor... A julgar pela roupa que leva, parece uma dama da aristocracia.
Mas, como pode ver, o rosto está sem desenhar; não sei quem pode ser.
— Não veio ninguém por aqui ultimamente para posar?
— Não, senhor, que eu saiba. Talvez a dama tenha atrasado a data da encomenda
por causa de um compromisso mais urgente.
— E este?
Pitt lhe mostrou a outra tela, que estava virtualmente acabada.
— OH, sim, senhor. Essa é a senhora Woodford. Não gostou do retrato, disse que a
fazia parecer gordinha. O senhor Jones o deixou sem acabar.
— Houve ressentimento entre eles?
— Por parte do senhor Jones não, senhor. Estava acostumado A... à vaidade de... de
certas pessoas. Um artista tem que estar.
— Não se ofereceu para trocá-la para dar satisfação à senhora?
— Pelo visto não, senhor. Acredito que já tinha realizado modificações consideráveis
para ajustar-se à imagem que a senhora tinha de si mesma. Se tivesse ido muito longe
teria posto em perigo sua reputação.
Pitt não insistiu; a questão não tinha relevância.
— Viu isto alguma vez?
Tirou o caderno e o abriu.
O mordomo lhe deu uma olhada e fez expressão de não compreender.
— Não, senhor. Tem alguma importância?
— Não sei. Era o senhor Jones fotógrafo?
O mordomo arqueou as sobrancelhas bruscamente.
— Fotógrafo? OH, não, senhor; era um artista. Às vezes pintava aquarelas e às
vezes óleos, mas nunca fotografava.
— Então de quem é esta câmara?
O mordomo fez cara de surpresa; não tinha observado o artefato.
— Não tenho a menor ideia, senhor. É a primeira vez que a vejo.
— É possível que alguém pedisse emprestado o estúdio ao senhor Jones?
— OH, não, senhor. O senhor Jones era muito suscetível. Além disso, se o tivesse
emprestado eu me teria informado. Mas por aqui não passou nenhum estranho; de fato
nesta casa não houve nenhuma visita desde que o senhor Jones se... foi.
— Compreendo. — Pitt estava perplexo. Aquele assunto começava a ser absurdo.
Ele queria um mistério, algo que investigar; mas aquilo era um disparate. A câmara tinha
que proceder de alguma parte; tinha que pertencer a alguém. — Obrigado — disse ao
mesmo tempo que se levantava. — Importaria-se confeccionar uma lista de todas as
pessoas que recorde ter visto vir aqui para encomendar um retrato, começando pelo
primeiro e incluindo até o último de que tenha lembrança e as datas mais aproximadas que
recorde?
— Sim, senhor. Não levava o senhor Jones alguma relação de contas que você
possa consultar?
— Se tiver alguma, aqui não está.
O mordomo se absteve de fazer comentários e foi chamar ao próximo criado. Pitt
falou com todos, de um em um, mas não averiguou nada importante. A primeira hora da
tarde já tinha terminado, por isso ainda tinha tempo para visitar ao menos um dos
residentes do parque. Escolheu a última pessoa que o mordomo tinha incluído na lista de
retratos: lady Gwendoline Cantlay.
Evidentemente esta não se inteirou da notícia, já que o recebeu com mostra de
surpresa e certa irritação.
— Francamente, inspetor, não vejo que utilidade pode ter insistir neste desventurado
assunto. Augusto foi enterrado e não se cometeu nenhuma atrocidade mais. Sugiro-lhe
que deixe a sua família repor-se como facilmente possa e que não volte a mencionar o
tema. Não sofreu já bastante?
— Não tenho intenção de voltar a mencionar o tema, senhora — disse ele com
paciência. — A menos que seja necessário. Receio que vim vê-la por algo muito diferente.
Se não me engano, conhece o senhor Godolphin Jones, pintor...
Imaginou ou os dedos da dama se crisparam sobre seu regaço e um leve rubor
atravessou suas faces?
— Pintou meu retrato — respondeu ela olhando-o fixamente. — pintou muitos e tem
muito boas referências. É um artista conhecido, sabe você? E com uma sólida reputação.
— Considera-o um bom pintor, senhora?
— Eu... — Respirou fundo. — Eu não tenho conhecimentos suficientes para opinar a
respeito. Estou obrigada a confiar nas opiniões de outros. — Olhou-lhe com certo ar
desafiante. Havia tornado a crispar os dedos sobre o regaço, enrugando o tecido do
vestido. — Por que o pergunta?
Por fim tinha chegado ao ponto crucial. Pitt sentiu uma repentina inquietação, como
se a notícia pudesse afetar à dama mais do que ele esperava.
— Lamento ter que lhe dizer isto, senhora — disse com uma estupidez insólita nele.
Fazia aquilo em muitas ocasiões e tinha as palavras preparadas que devia dizer, mas o
senhor Godolphin Jones morreu. Assassinado.
Ela ficou paralisada, como se não o tivesse compreendido.
— Mas se está na França...
— Não, senhora, lamento-o, mas está aqui, em Londres. Seu cadáver foi identificado
por seu mordomo. Não há lugar a dúvidas.
Olhou-a, e depois deu uma olhada em busca da campainha para chamar os criados
em caso de que fosse necessário pedir ajuda.
— Disse assassinado? — perguntou ela lentamente.
— Sim, senhora. Sinto muito.
— Por quê? Quem pôde assassiná-lo? Sabe você? Há alguma pista?
Estava alterada. Pitt teria jurado que a notícia tinha significado uma verdadeira
comoção para ela, mas tinha mudado. Agora estava assustada, e não por histerismo ou
sem razão: sabia por que estava assustada. Pitt teria pagado por averiguar o motivo.
— Sim, há várias pistas — disse, notando-se em seu rosto, seu pescoço e suas
mãos, que tinha agarradas aos braços da cadeira.
Olhou-o com olhos muito abertos.
— Posso saber que pistas são essas? Desse modo possivelmente possa ajudá-lo.
Como é natural, cheguei a conhecer um pouco ao senhor Jones posando para ele.
— É claro — assentiu Pitt. — Em seu estúdio há umas telas sem acabar; o mordomo
não sabe se as damas que aparecem retratadas neles foram a casa do senhor Jones para
posar ou por algum outro motivo. Também há uma câmara...
Pitt não teve dúvida de que a surpresa de lady Gwendoline Cantlay era sincera.
— Uma câmara! Mas se era um artista, não um fotógrafo.
— Com efeito. Entretanto cabe supor que era sua. É muito pouco provável que
tivesse em seu estúdio a câmara de outra pessoa. O mordomo tem certeza de que o
senhor Jones não permitia a ninguém utilizá-la.
— Não o entendo.
— Nós tampouco, senhora, ainda... Imagino que o senhor Jones nunca lhe faria
fotografias suas, por exemplo, para trabalhar quando não pudesse ir posar...
— Não, nunca.
— Talvez possa ver seu retrato, se ainda o conserva.
— É claro, se assim o desejar.
Lady Cantlay se levantou e conduziu ao Pitt à sala de estar, onde havia um grande
retrato seu pendurado sobre a lareira.
— Perdoe.
Pitt avançou e começou a examiná-lo meticulosamente. Não gostava muito. A pose
era muito boa, embora um pouco estilizada. Reconheceu vários acessórios do estúdio, em
concreto uma parte de coluna e uma mesa pequena. As proporções eram corretas, mas às
cores faltava algo, clareza talvez. Parecia como se Jones os tivesse misturado com uma
base permanente de ocre ou sépia, a qual conferia um aspecto sombrio inclusive ao céu. O
rosto era, sem dúvida, o de lady Cantlay; não obstante, e apesar de que a expressão de
suas feições fosse bastante agradável, carecia de atrativo.
Passou a examinar o fundo e, quando se dispunha a deixá-lo, percebeu no canto
inferior esquerdo, desenhado com suma clareza, um pequeno arbusto de folhas; sobre
uma destas havia um escaravelho de aspecto inconfundível, estilizado e exatamente igual
a um dos que aparecia no caderno ao menos em quatro ou cinco ocasiões.
— Poderia me dizer quanto lhe custou, senhora? — perguntou.
— Não vejo que relação tem isso com o assassinato do senhor Jones — respondeu
ela com súbita frieza. — Além disso, já lhe disse que era um artista de excelente
reputação.
Pitt percebeu de que tinha perguntado uma rabugice que jamais se mencionava em
sociedade.
— Sim, senhora — reconheceu. — Isso é o que disse e também o que pude saber
graças a outras pessoas. Entretanto, tenho boas razões para perguntar-lhe embora só seja
pela comparação.
— Não desejo que meia Londres esteja à corrente de meus acordos financeiros.
— Não vou falar disso, senhora Cantlay; é unicamente para uso da polícia, e só em
caso de que seja relevante. Preferiria averiguá-lo com sua ajuda a ter que interrogar a seu
marido...
Lady Cantlay endureceu o gesto.
— Está se excedendo em seu dever, inspetor. Entretanto, não desejo incomodar a
meu marido com este assunto. Paguei trezentas e cinquenta libras pelo retrato, embora
não vejo do que pode servir sabê-lo. É um preço bastante normal tratando-se de um pintor
de seu renome. Soube que o comandante Rodney pagou uma soma parecida por seu
retrato e pelo de suas irmãs.
— O comandante Rodney tem dois retratos? — Pitt estava surpreso. Não teria
imaginado que o comandante fosse um homem interessado na arte ou que pudesse
permitir-se tal esbanjamento nele.
— Por que não? — respondeu ela arqueando as sobrancelhas. — Um de si mesmo e
outro da senhorita Priscilla e a senhorita Mary Ann juntas.
— Compreendo. Obrigado, senhora. Agradeço sua ajuda.
— Não sei como...
Ele tampouco sabia com segurança, mas ao menos tinha outros lugares onde ir
investigar. Pela manhã visitaria o comandante Rodney e suas irmãs. Despediu-se e pôs-se
a andar em meio da névoa para ir a delegacia de polícia e retornar a seguir a casa.
Se lady Cantlay se tinha sobressaltado ao inteirar do assassinato do Godolphin
Jones, o comandante Rodney ficou destroçado. Sentou-se em uma cadeira como um
homem que esteve a ponto de afogar-se e, esforçando-se por recuperar o fôlego e com o
rosto avermelhado, disse:
— OH, Meu deus! Que espanto! Que tragédia! E o estrangularam, diz você? Onde o
acharam?
— Na tumba de outra pessoa — respondeu Pitt, sem saber uma vez mais se devia
fazer soar a campainha para chamar um criado.
Era uma reação para a que não estava preparado. Aquele homem era um militar;
deviam ter estado milhares de vezes em presença da morte, de uma morte cruel e
sangrenta. Tinha lutado na Criméia e, pelo que Pitt tinha ouvido dizer sobre aquela trágica
e violenta guerra, um homem que tivesse sobrevivido a ela deveria ser capaz de aparecer
no próprio inferno sem que lhe revolvesse o estômago.
Rodney tinha começado a acalmar-se.
— Que horror. Como demônios souberam que estaria na tumba?
— Não sabíamos — disse Pitt. — O encontramos por acaso.
— Isso é absurdo. Não podem vocês dedicar-se a abrir tumbas para ver o que
encontram nelas... por acaso.
— É claro que não, senhor. — Pitt se sentia torpe uma vez mais. Jamais se tinha
comportado com tão pouca soltura. — Pensávamos que a tumba tinha sido profanada, que
estaria vazia.
O comandante Rodney o olhou de cima abaixo.
— Já tínhamos o cadáver que devia estar nela — acrescentou Pitt fazendo um
esforço para que lhe compreendesse —: O cadáver que em um primeiro momento
identificamos como lorde Augusto, o cadáver que apareceu na carruagem à saída do
teatro...
— OH. — O comandante Rodney se ergueu como se fosse montado a cavalo em um
desfile. — Compreendo. Por que não o disse antes? Bom, temo que não haja nada que
possa lhe dizer. Agradeço-lhe que tenha vindo a me dar a notícia.
Pitt permaneceu sentado.
— Você conhecia o senhor Jones.
— Não em sociedade; não era uma pessoa de nossa classe. Era um artista, se
entende a que me refiro...
— Pintou seu retrato, não é assim?
— OH, sim. Conhecia-o por motivos profissionais. Mas isto é tudo o que posso lhe
dizer sobre ele; não há nada mais que contar. E não vou permitir que importune a minhas
irmãs lhes falando de assassinatos e mortes. Contarei eu mesmo como acho conveniente.
— Encomendou-lhe que pintasse também um retrato delas?
— Assim é. Ocorre algo? É uma coisa muito comum. Há muitíssima gente que tem
retratos.
— Poderia vê-los, por favor?
— Para que? São bastante normais. Embora suponha que será o melhor, se desse
modo consigo que se vá e nos deixe em paz. Pobre homem. — O comandante meneou a
cabeça. — Que desgraça. É uma forma horrível de morrer. Levantou-se, pequeno, frágil e
rígido como uma vara, e conduziu ao inspetor ao salão.
Pitt observou o severo retrato que estava pendurado na parede do fundo sobre um
aparador e decidiu que não gostava. Era grandiloquente e estava cheio de escarlates e
metais brilhantes. Representava a um menino com corpo de ancião brincando de ser
soldado. Se seu propósito tivesse sido irônico, o quadro teria sido acertado, embora uma
vez mais as cores careciam de delicadeza e pareciam um tanto turvas.
Aproximou-se dele e sem dar-se conta posou o olhar no canto esquerdo. Ali havia
uma pequena larva que, apesar de não ter nada que ver com a composição, aparecia
inteligentemente dissimulada no fundo: uma criatura de corpo marrom sob uma matizada
sombra da mesma cor.
— E suponho que também terá o de suas irmãs — disse retrocedendo e voltando-se
para o comandante.
— Não sei que motivo pode ter para querer vê-lo — respondeu o comandante,
surpreso. — É um quadro bastante comum. Mas se deseja...
— Sim, por favor.
Pitt lhe seguiu à sala do lado. O retrato pendia da parede do fundo, entre duas
jardineiras, e era de maior tamanho que o outro. A pose era rebuscada, o fundo continha
muitos acessórios e as cores, até sendo melhores, tinham um excesso de rosa. Olhou no
canto esquerdo e viu a mesma larva; as patas e os pelos eram exatamente iguais, e
tinham sido pintados com idêntica estilização; o corpo, entretanto, era verde, de forma que
ficava dissimulado pela erva.
— Quanto pagou por ele, senhor? — perguntou.
— O suficiente — grunhiu o comandante. — Não vejo que importância pode ter o
preço para sua investigação.
Pitt tentou recordar as cifras que acompanhavam às larvas no caderno, mas estas
eram tantas, e as larvas apareciam repetidas tantas vezes, que não conseguiu lembrar-se
de todas.
— Tenho que sabê-lo, comandante. Prefiro perguntar-lhe pessoalmente a ter que me
inteirar por outros meios.
— Maldito seja, inspetor! Isso não é de sua incumbência! Faça todas as pesquisas
que queira!
Pitt sabia que insistindo não chegaria a nenhuma parte. O melhor seria procurar no
caderno as cifras das larvas, na coluna que havia debaixo de "350 libras", junto à do
escaravelho, e as somar todas; logo poria a prova o comandante Rodney lhe dizendo a
soma e observando sua reação.
O comandante soltou um grunhido, satisfeito de sua vitória.
— Bem, isso é tudo, inspetor?
Pitt se perguntou se devia insistir em ver as irmãs Rodney e decidiu que havia pouco
que elas pudessem lhe dizer. Seria-lhe de maior proveito interrogar à outra pessoa que
tinha comprado um retrato do Godolphin Jones: lady St. Jermyn. Aceitou a despedida do
comandante e um quarto de hora mais tarde se achava diante de lorde St. Jermyn
sentindo-se bastante desconfortável.
— Lady St. Jermyn não está em casa — disse este friamente. — Nem ela nem eu
podemos lhe servir de mais ajuda neste assunto. O melhor será esquecer-se disso, e lhe
recomendo que você faça o mesmo a partir deste momento.
— A gente não pode esquecer-se de um assassinato, senhor — respondeu Pitt com
aspereza. — Inclusive se o deseja.
St. Jermyn arqueou as sobrancelhas em sinal nem tanto de surpresa como de
desprezo.
— O que lhe faz pensar de repente que Augusto foi assassinado? Suspeito que um
incontido afã por indagar na vida das pessoas superiores a você.
Pitt teria dado algo por mostrar a mesma grosseria, mas se conteve.
— Asseguro-lhe, senhor, que meu interesse na vida privada de outros é unicamente
profissional — sibilou friamente, com uma modulação de voz tão precioso como a do St.
Jermyn. — Nem a tragédia nem a miséria me produzem satisfação. Prefiro que a dor
privada continue sendo privada sempre que as obrigações públicas o permitam. Conforme
soube, lorde Augusto morreu por causas naturais; entretanto não há dúvida de que
Godolphin Jones foi estrangulado.
St. Jermyn ficou de pedra, empalideceu e aguçou a vista de maneira quase
imperceptível. Pitt observou que entrelaçava as mãos. Ao cabo de uns segundos de
silêncio, perguntou lentamente:
— Assassinado?
— Sim, senhor.
St. Jermyn manteve os olhos cravados em seu rosto, observando-o em atitude quase
de expectativa.
— Quando descobriu o cadáver? — perguntou.
— Ontem à tarde — respondeu Pitt.
St. Jermyn aguardou uma vez mais; Pitt, entretanto, não lhe prestou sua colaboração.
— Onde? — perguntou aquele finalmente.
— Enterrado, senhor.
— Enterrado? — exclamou St. Isso Jermyn é absurdo! O que quer dizer "enterrado"?
Enterrado no jardim de alguém?
— Não, senhor, enterrado como é devido: em um ataúde, em uma tumba e em um
cemitério.
— Não sei do que está falando você. — St. Jermyn estava zangando-se. — Quem
enterraria a um homem que foi estrangulado? Nenhum médico assinaria o certificado de
falecimento de um homem estrangulado e, sem ele, nenhum sacerdote aceitaria um
enterro. Está dizendo uma tolice.
St. Jermyn estava a ponto de dar o assunto por concluído.
— Estou falando de fatos, senhor — respondeu Pitt com equanimidade. — Não sei
que explicação lhes dar; a única coisa que posso dizer é que não estava enterrado em sua
tumba, mas na de um tal Albert Wilson, que faleceu de uma apoplexia e foi enterrado como
corresponde.
— E então? O que lhe aconteceu A... a esse Wilson? — perguntou St. Jermyn com
tom premente.
— Seu cadáver foi o que escorregou de uma carruagem de aluguel à saída do teatro
— respondeu Pitt sem afastar o olhar do St. Jermyn. Em seu rosto não podia ver mais que
uma confusão absoluta e rodeada de mistério. Uma vez mais permaneceu vários segundos
sem dizer nada. Pitt aguardou.
St. Jermyn olhou-o de cima abaixo, com os olhos sombrios e inescrutáveis. Pitt tentou
lhe arrancar aquela máscara de autoridade e aprumo e acessar o homem que se ocultava
detrás dela. Seu fracasso foi completo.
— Suponho que não terá idéia de quem o matou — disse finalmente St. Jermyn.
— Ao Godolphin Jones? Não, senhor, nem idéia.
— E o motivo?
Pela primeira vez Pitt não se ateve exatamente à verdade.
— Isso é diferente. Temos uma ligeira idéia sobre o motivo.
O rosto do St. Jermyn continuava pálido, e as aletas de seu nariz se dilatavam
suavemente cada vez que respirava.
— Seriamente? E do que se trata?
— Cometeria uma leviandade se falasse antes de dispor de provas. — Pitt evitou a
pergunta esboçando um sorriso. — Poderia supor uma ofensa para alguma pessoa;
quando se difunde uma suspeita raramente se esquece, por muito falsa que logo se
demonstre.
St. Jermyn duvidou se lhe perguntava algo mais, mas depois pensou melhor e,
fazendo um gesto de assentimento, disse:
— Sim, claro. O que pensa fazer agora?
— Interrogar às pessoas que melhor o conheciam tanto por motivos sociais como
profissionais — respondeu Pitt aproveitando a oportunidade. — Soube que você foi um de
seus clientes.
St. Jermyn lhe respondeu com um sorriso que mal foi um relaxamento de suas
feições.
— Essa é uma palavra curiosa, inspetor... Eu não fui cliente seu absolutamente; só o
encarreguei que pintasse um retrato de minha mulher.
— E se sentiu satisfeito com o trabalho?
— É aceitável. A minha esposa gostou o bastante, que era o que mais importava. Por
que o pergunta?
— Por nenhum motivo em concreto. Poderia vê-lo?
— Se o desejar; de qualquer modo duvido que saque nada disso. É muito comum.
St. Jermyn se voltou e saiu pela porta que dava ao vestíbulo, deixando que Pitt o
seguisse. O quadro se achava em um lugar discreto da parede da escada, algo que ao Pitt
não surpreendeu à vista da qualidade de outros retratos de família. Seus olhos
examinaram o rosto da retratada por um momento e a seguir posaram no canto esquerdo
do quadro. Ali estava o inseto: neste caso se tratava de uma aranha.
— E então? — perguntou St. Jermyn com certa ironia na voz.
— Obrigado. — Pitt desceu as escadas para ficar à mesma altura que St. Jermyn. —
Lhe importaria me dizer quanto pagou por ele?
— Provavelmente mais do que vale — respondeu St. Jermyn com naturalidade. —
Pessoalmente, acredito que não lhe faz justiça, não lhe parece? Mas, claro, você não pode
sabê-lo. Não conhece minha esposa.
— Quanto, lorde St. Jermyn?
— Umas quatrocentas e cinquenta libras, se mal não recordar. Deseja saber a
quantidade exata? Levará-me certo tempo averiguá-lo; ao fim e ao cabo, não acredito que
possa considerar uma transação importante.
Ao Pitt não passou inadvertida a referência às abismais diferenças econômicas que
havia entre ambos.
— Obrigado por tudo — disse resolvendo o assunto sem acrescentar nenhum
comentário.
St. Jermyn sorriu abertamente pela primeira vez.
— Serve-lhe para avançar em suas investigações, inspetor?
— Talvez. Saberei quando a comparar com outros dados. — Pitt se encaminhou para
a porta da casa. — Lhe agradeço o tempo que me dedicou, lorde St. Jermyn.
Ao chegar a casa, cansado e com frio, Pitt foi recebido pelo agradável aroma que
despedia uma fumegante sopa e da roupa seca que pendia do teto da cozinha. Jemima já
estava adormecida e reinava o silêncio. Tirou as úmidas botas e se sentou, deixando que a
calma, cuja presença se fazia notar de uma forma quase tão física como a do calor,
envolvesse-o. A princípio Charlotte só lhe dirigiu uma breve saudação, quando por fim se
sentiu disposto a falar, Pitt deixou a tigela que lhe tinha dado e a olhou.
— Estou-me comportando como se soubesse o que faço, mas sinceramente não vejo
o menor sentido a este assunto — disse com gesto de impotência.
— A quem interrogou? — perguntou ela, secando-as mãos e pegando um trapo para
abrir a porta do forno e tirar o bolo.
Pô-lo rapidamente sobre a mesa. A crosta estava estalante e tinha uma cor dourada
exceto em uma das pontas, onde tinha estado a ponto de queimar-se e o tom era mais
escuro.
Ele o olhou e esboçou um sorriso.
Ao vê-lo, Charlotte se apressou a dizer:
— Eu comerei essa esquina...
Ele riu.
— Por que o forno queima as pontas?
Fulminou-o com o olhar.
— Se soubesse o evitaria.
Serviu a verdura com rapidez e ele observou com gesto de aprovação como se
erguia a fumaça.
— Com quem falou sobre o pintor?
— Com todos os residentes do Gadstone Park que têm retratos feitos por ele. Por
quê?
— Por curiosidade. — Elevou a faca de trinchar e o manteve no ar sobre o bolo
enquanto pensava. — Uma vez encomendamos um retrato de mamãe e outro da Sara; o
pintor não fez outra coisa que as adular, disse a Sara que era uma beleza e lhe dedicou
uma série de adulações desatinadas. Inclusive chegou a lhe dizer que era tão delicada
como uma rosa de Damasco. Sara passou várias semanas imersa em devaneio, dando
voltas pela casa de uma maneira insuportável, com a cabeça erguida e olhando-se de
esguelha em todos os espelhos.
— Sara era muito bela — comentou Pitt. — Embora o da rosa do Pitiminí me pareça
um tanto excessivo. O que quer me dizer?
— Bom, Godolphin Jones ganhava a vida pintando retratos, o que, de certo modo, é o
cúmulo da vaidade. Ou acaso não o é que imortalizem seu rosto? É possível que adulasse
a todos os retratados de igual maneira. E se o fazia, não seria desatinado pensar que um
bom número das mulheres que pintou respondesse a essas adulações.
De repente Pitt se deu conta do que Charlotte queria dizer.
— Refere-se a que teve uma ou várias aventuras? Que uma mulher ciumenta chegou
a acreditar — se que o era tudo para o Jones e então descobriu que só era uma de tantas
e que os bonitos galanteios que lhe dirigia eram unicamente parte de suas ferramentas de
trabalho? Ou que algum marido ficou ciumento?
— É possível.
Charlotte baixou por fim a faca e cortou o bolo. Um espesso molho gotejou dele e Pitt
se esqueceu por completo da parte queimada.
— Tenho fome — disse.
Charlotte lhe dirigiu um sorriso.
— Bem... Pergunte a tia Vespasia. Se se tratar de um residente de Gadstone Park,
com certeza ela sabe, e se não o averiguará.
— Sim, o perguntarei — prometeu Pitt. — Mas, por favor, agora se concentre no
jantar e esqueça do Godolphin Jones.
Entretanto, a primeira pessoa que visitou na manhã seguinte foi Somerset Carlisle.
Naturalmente, todos os residentes do Gadstone Park estavam já a par do descobrimento
do cadáver, de modo que Pitt já não contava com o fator surpresa.
— Não o conhecia muito bem — disse Carlisle. — Não tínhamos muito em comum,
diria eu. E certamente não tinha o menor desejo de que me pintassem um retrato.
— Se não tivesse sido assim — disse Pitt lentamente, escrutinando seu rosto, — o
teria encomendado ao Godolphin Jones?
Carlisle o olhou com certa surpresa.
— Que demônios importa isso?
— Teria encomendado a ele?
Carlisle titubeou.
— Não — disse finalmente. — Não o teria encomendado.
Pitt esperava aquela resposta. Charlotte lhe havia dito que Carlisle tinha falado em
termos desdenhosos a respeito das habilidades do Jones como artista. Se o tivesse
elogiado, haveria-se contradito a si mesmo.
Pitt insistiu naquele ponto.
— Diria que era supervalorizado?
Carlisle o olhou com gesto impassível; seus olhos eram de cor cinza clara e
expressavam tranquilidade.
— Como pintor diria que sim, inspetor. Como pretendente e acompanhante,
possivelmente não. Era um homem muito engenhoso, de uma grande equanimidade, e
conhecia a nada desprezível arte de suportar aos estúpidos com afabilidade. Se alguém
não valer para isso, é difícil fingir afabilidade durante muito tempo.
— Não é a arte de certo modo uma moda? — perguntou Pitt.
Carlisle sorriu, lhe olhando ainda nos olhos sem a menor hesitação.
— É claro. Mas com frequência as modas são fabricadas. O preço se alimenta a si
mesmo, sabe? Atadura uma coisa a um preço elevado e a próxima vez poderá pedir ainda
mais dinheiro.
Pitt o compreendia, mas com isso não respondia à questão de por que Godolphin
Jones tinha sido estrangulado.
— Mencionou outras classes de valia — disse. — Se referia exclusivamente a sua
como acompanhante ou possivelmente também a outras, como a de amante?
Carlisle continuou olhando-o com expressão impassível, embora divertida.
— Talvez lhe seja proveitoso investigar essa possibilidade. Discretamente, é claro; do
contrário daria lugar a sentimentos de hostilidade que acabariam repercutindo sobre você.
— Certamente — assentiu. — Obrigado, senhor Carlisle.
As primeiras mostras de discrição as deu com tia Vespasia.
— Esperava ontem sua visita — disse ela com surpresa. — Por onde vai começar?
Sabe algo sobre esse desventurado? Não tinha nenhuma relação com Augusto, que eu
saiba, e Alicia é uma das poucas belezas, ou belezas imaginárias, do Gadstone Park que
não retratou. Pelo amor de Deus, sente-se. Fico com torcicolo olhando-o deste modo.
Pitt obedeceu. Não estava acostumado a tomar liberdades antes que o convidassem
a isso.
— Era um bom pintor? — perguntou. Pitt dava importância à opinião de tia Vespasia.
— Não. Por quê?
— Charlotte me disse o mesmo.
Olhou de soslaio, entreabrindo os olhos.
— Não estranho. E que conclusão tira disso? Está tentando me dizer algo. Vamos,
desembucha.
— Por que acha que podia pedir um preço tão elevado por seus quadros e conseguir
que o pagassem? — perguntou.
— Ah... — Tia Vespasia se recostou ligeiramente, e esboçou um sorrisinho. — Os
retratistas que pintam às mulheres da sociedade também têm que ser cortesãos. De fato, é
possível que isto seja o primeiro que têm que ser. Os melhores podem permitir o luxo de
pintar o que desejam, mas outros devem pintar a gosto da pessoa que tem o dinheiro. Se
possuírem habilidade, adulam com o pincel; se não a tiverem, têm que adular com a
língua. Alguns o fazem inclusive com ambos.
— E Godolphin Jones?
Os olhos de tia Vespasia brilharam divertidos.
— Já viu sua obra, por isso deveria saber que fazia isso com a língua.
— Você acredita que foi além das adulações?
Pitt não estava seguro de se a anciã se sentiria incômoda pelo fato de que ele
contemplasse semelhante possibilidade e lhe perguntasse por isso de maneira tão direta.
Não obstante, não tinha sentido ser evasivo com ela, e já estava muito confuso e cansado
daquele caso para expressar-se com sutileza.
Tia Vespasia guardou silêncio e ele começou a temer havê-la incomodado.
Finalmente falou, medindo as palavras.
— Está-me perguntando se sei de alguém que tenha tido uma aventura com o
Godolphin Jones? Suponho que se não lhe disser isso o investigará por sua conta, assim
será melhor que fale. Imagino que será a solução menos grave. Com efeito, Gwendoline
Cantlay teve uma aventura com ele. Não foi nada sério; só um desafogo do aborrecimento
que sentia com um marido agradável, mas que cada vez mostrava menos interesse por
ela. Certamente não foi uma grande paixão, e ela se comportou com suprema discrição.
— Sabe se o senhor Desmond Cantlay se inteirou disso?
Tia Vespasia pensou durante uns segundos antes de responder.
— Eu diria que o adivinhou, mas teve suficiente tato para olhar para outro lado —
disse finalmente. — É difícil para eu admitir que matasse a esse desventurado homenzinho
por esse motivo. A pessoa não reage de tal maneira, a menos que tenha perdido o
julgamento por completo.
Pitt não dispunha de informação suficiente para formar uma opinião, por isso não teve
outro remédio que aceitar que tia Vespasia sabia do que estava falando. Não podia
imaginar-se qual seria seu comportamento se descobrisse que Charlotte se rebaixou a
algo tão repugnante. Acabaria com tudo o que ele queria, suporia a profanação, o
desmoronamento de tudo o que considerava valioso e o deixaria indefeso ante as
tragédias que via todos os dias. Não lhe parecia inconcebível a possibilidade de
estrangular ao homem, e menos ainda se a relação com ele só fosse uma de tantas.
Tia Vespasia estava olhando-o, talvez adivinhando seus pensamentos.
— Não deve julgar ao Desmond Cantlay de seu ponto de vista — disse com voz
calma, — a não ser investigar a possibilidade; essa é sua obrigação. Suponho que a estas
alturas não se pode precisar quando foi assassinado.
— Não. Deve ter sido há três ou quatro semanas, mas isto não serve para determinar
onde se achava uma pessoa qualquer e demonstrar se é culpado ou inocente. Suponho
que o assassinaram pouco depois da última vez que o viram seus criados, quer dizer, faz
três semanas contando desde quinta-feira passada. Mas nem sequer isso está
demonstrado. Nem sequer sabemos onde o assassinaram.
— É surpreendente o pouco que sabe — comentou ela com severidade. — Não
procure informação difundindo suspeitas. É possível que Desmond não soubesse. Além
disso o mais seguro é que, tratando-se de uma ferramenta de trabalho, Jones a usasse
com bastante frequência.
Pitt franziu o sobrecenho.
— É provável, mas se atreveria com lady St. Jermyn?
Ao Pitt veio a imagem de sua cabeleira negra com a mecha prateada. Aquela mulher
transmitia uma extraordinária sensação de dignidade. Só um pintor muito ousado se
atreveria a exceder-se em adulações para tentar abrandá-la.
Tia Vespasia o observou abrindo os olhos levemente, mas Pitt se sentiu incapaz de
adivinhar o que expressava seu olhar.
— Não— limitou— se a dizer. — E tampouco com as irmãs Rodney, diria eu.
A idéia de uma aventura com as irmãs Rodney era ridícula, mas poucas pessoas são
insensíveis às adulações, e possivelmente Jones se mostrou especialmente hábil em
certas circunstâncias.
— Terei que procurar as demais mulheres que retratou — disse Pitt. — O mordomo
me proporcionou uma lista.
Queria seguir perguntando, pois tinha a impressão de que Vespasia lhe ocultava
algo. Estaria protegendo ao Gwendoline Cantlay ou a outra pessoa? Acaso Alicia? Ou,
ainda pior, Verity? Mas não podia perguntar-lhe com isso só conseguiria ofendê-la.
Levantou-se.
— Obrigado, lady Cumming-Gould. Agradeço-lhe sua ajuda.
Olhou-o com gesto suspicaz.
— Não seja sarcástico comigo, Thomas. Apenas servi de ajuda, sabe muito bem. Não
tenho idéia de quem matou ao Godolphin Jones, mas seja quem for posso compreendê-lo.
De qualquer modo, meu interesse neste assunto é meramente marginal. É uma lástima
que não tenha permanecido decentemente enterrado na tumba do mordomo. O projeto de
lei para o Parlamento é muito mais importante que a morte de um obstinado artista de
médio valor. Tem idéia do que a aprovação do projeto poderia supor para a vida de
milhares de crianças que vivem mal nesta lamentável cidade?
— Sim, senhora, tenho-a — respondeu Pitt mostrando a mesma seriedade que ela.
— estive nos asilos e nas fábricas e prendi crianças famintas de cinco anos que a única
coisa que sabiam fazer era roubar.
— Lamento-o, Thomas.
Embora tia Vespasia não estivesse acostumada bater-se em retirada, naquela
ocasião o fez sinceramente.
Pitt sabia. Sorriu, luminosa e francamente, e por um instante foram iguais. Mas não
durou muito. Tia Vespasia fez soar a campainha e o mordomo acompanhou ao Pitt à porta.
Entretanto havia algo que não deixava de lhe dar voltas na cabeça, de modo que, em
lugar de tirar a lista do mordomo, chamou uma carruagem, percorreu mais de três
quilômetros e, depois de pagar ao cocheiro, subiu por uma sombria escada que conduzia a
uma pequena habitação provida de uma grande janela orientada ao sul e uma clarabóia
ainda maior.
Um homenzinho de olhos enormes e aspecto desalinhado ergueu a vista e o olhou
surpreso.
— Olá, Froggy — disse Pitt animadamente. — Tem um minuto?
O homenzinho franziu o sobrecenho.
— Não tenho nada que não deva ter. Não tem direito a me revistar!
— Não vou revistá-lo, Froggy. Quero que me dê conselho.
— Não vou dedurar ninguém!
— Quero seu conselho artístico sobre a valia de um quadro perfeitamente legítimo —
concretizou Pitt. — Ou, para ser mais exatos, de um pintor.
— Quem?
— Godolphin Jones.
— Não vale uma merda, mas o grande malandro é muito caro. Sabe a quanto vende
os quadros? A quatrocentas ou quinhentas libras cada um.
— Sim, sei, e não vou perguntar-te por que sabe. Por que vende a uns preços tão
altos se não valia nada?
— Ah, esse é um dos mistérios da vida. Não sei.
— Existe a possibilidade de que esteja equivocado e que seja bom pintor?
— Ouça, inspetor, não tem por que me faltar ao respeito. Conheço meu ofício. Não
poderia vender um Jones nem que desse de presente um frango com ele. A gente a quem
vendo quer coisas que possa guardar durante certo tempo para depois, quando os policiais
tenham deixado de procurá-las, poder mandar a algum colecionador não muito
escrupuloso a respeito de sua procedência. Não há nenhum colecionador que queira um
Jones. Que por que vende tão caro? Possivelmente por vaidade. Eu não entendo à maldita
aristocracia; nunca a entendi, e você perde o tempo se acreditar que pode fazê-lo.
Pertencem a uma classe animal diferente da nossa. Não há forma de saber que
complicações vão fazer ou por que. A única coisa que posso lhe dizer é isto: os Jones
nunca trocam de mãos; ninguém os vende porque ninguém os compra. Há uma regra que
diz que se algo merece ser comprado, alguém, em alguma parte e em algum momento,
acabará vendendo— o.
— Obrigado, Froggy.
— Isso é tudo?
— Sim, obrigado, isso é tudo.
— Servi-lhe que algo?
— Não sei, mas espero que sim.
Ao retornar à delegacia de polícia para acabar a jornada, Pitt foi recebido pelo
sargento que lhe tinha informado da aparição dos cadáveres. Assim que viu que o agente
tinha o rosto aceso pelos nervos, o coração lhe encolheu.
— O que acontece? — perguntou.
— A placa, senhor, a placa fotográfica que você achou na casa do morto.
— Sim?
— Você mandou que a revelassem, senhor. — Virtualmente tremia dos nervos.
— Naturalmente... — Pitt começou a conceber esperanças. — O que se vê nela?
Venha, diga-me isso não fique aí como um idiota.
— Senhor, é uma fotografia de uma mulher nua, nua como a trouxeram para o
mundo, embora não se parece nada a um recém-nascido, se sabe ao que me refiro...
— Onde está? O que fez com ela?
— Está em sua escrivaninha, senhor, em um envelope marrom lacrado.
Pitt passou por seu lado a grandes passadas e fechou a porta de repente. Com
dedos trêmulos, pegou o envelope e o rasgou. Na fotografia se via o que o agente lhe
havia descrito: uma mulher nua em uma pose elegante, mas extremamente erótica. O
rosto se distinguia perfeitamente. Não a tinha visto nunca, nem em vida nem em pintura.
Era uma perfeita desconhecida.
— Maldição! — exclamou com fúria. — Maldição!
Pitt passou o dia seguinte tratando de descobrir a identidade da mulher da fotografia.
Tinha-se alguma categoria social, aquela fotografia constituía por si só um motivo para
cometer um assassinato. Entregou ao sargento uma cópia e o encarregou que
perguntasse em todas as delegacias de polícia dos bairros centrais se alguém a conhecia;
ele conservou uma cópia com o corpo cuidadosamente tampado para ver se algum
membro da alta sociedade a conhecia. Não tinha por que ser uma aristocrata; inclusive
uma criada que tivesse tentado ganhar algo mais de dinheiro perderia não só seu
emprego, mas também qualquer esperança de conseguir um no futuro, com tudo o que isto
supunha no referente a segurança, roupa, comidas, companhia e, em certa medida,
integração social. Isto também podia ser motivo de assassinato.
Como era lógico, voltou a recorrer a tia Vespasia.
Esta vacilou durante um momento antes de responder, sopesando a resposta com
tanto cuidado que Pitt chegou a pensar que ia contar lhe uma mentira.
— Recorda a alguém — disse finalmente com lentidão, inclinando um pouco a
cabeça e pensando ainda nisso. — O cabelo me é estranho; eu diria que o levava
penteado de outra maneira, se é que realmente a conheço. Possivelmente o tinha algo
mais escuro.
— Quem é? — perguntou Pitt com obrigação.
Consumia-o a impaciência. Podendo ter na ponta da língua a pista definitiva para
resolver o assassinato, tia Vespasia estava gastando saliva como uma noiva nervosa.
Fez um gesto de negação com a cabeça.
— Não sei. É familiar para mim, mas...
Pitt soltou um suspiro de exasperação.
— Não conseguirá nada me pressionando, Thomas — disse ela. — Sou uma anciã...
— Tolices! Se for alegar debilidade mental, acusarei-a de perjúrio!
Ela o olhou com um triste sorriso nos lábios.
— Não sei quem é, Thomas. Possivelmente a filha de alguém ou inclusive uma
criada. Talvez se trate de um rosto que vejo habitualmente vestida com uma touca; o
cabelo muda muito às pessoas, sabe? Se voltar a vê-la comunicarei imediatamente. E diz
que a encontrou em casa do Godolphin Jones, em sua câmara? Por que é tão importante?
— perguntou dando uma olhada à fotografia. — É o resto indecente? Aparece outra
pessoa nela? Ou se trata de ambas as coisas?
— É indecente — respondeu Pitt.
— Claro. — Arqueou as sobrancelhas e a devolveu. — É um motivo de assassinato.
Supunha isso. Pobre criatura.
— Preciso saber quem é!
— Compreendo — disse ela com calma. — Não tem por que insistir nisso.
— Se todo mundo se dedicasse a assassinar testemunhas de indiscrições... sentia-se
frustrado e a ponto de perder a paciência. Agora estava virtualmente certo de que a anciã
lhe ocultava algo, se não uma certeza ao menos uma fundada suspeita.
Interrompeu— o.
— Não aprovo o assassinato, Thomas — disse lhe olhando fixamente. — Se consigo
recordar quem seja lhe direi isso.
Pitt teria que contentar-se com aquilo. Sabia perfeitamente que tia Vespasia não lhe
ia dizer nada mais. Despediu-se com toda a cortesia que conseguiu demonstrar e saiu à
rua, onde a névoa era cada vez mais espessa.
Passou o resto da jornada fazendo pesquisas com ajuda da fotografia, mas ninguém
se mostrou disposto a admitir que conhecesse a mulher, e antes que caísse a tarde não só
tinha frio, uma bolha em um calcanhar e dores nas pernas e os pés, mas também fome e
uma profunda sensação de abatimento.
Então, vendo que um quarto cabriolé passava diante dele sem deter-se e o deixava
em meio de um gélido mar de névoa à luz de um lampião de gás, teve repentinamente
uma idéia. Esqueceu-se de outros cadáveres de forma provisória, dando por assentado
que teriam uma importância secundária. Todos tinham morrido por causas naturais; só
Godolphin Jones tinha sido assassinado. Mas e se existisse entre eles alguma estranha
relação? Horacio Snipe se dedicou ao proxenetismo. E se Godolphin Jones tivesse sido
um de seus clientes, para satisfazer seus próprios desejos ou para achar modelos para
suas fotografias? Possivelmente essa fosse sua afeição particular: a fotografia
pornográfica.
Saiu correndo à rua e, vendo que se aproximava uma carruagem, deu um grito. O
veículo se deteve chiando.
— Ao Resurrection Row! — bradou.
Face à expressão de medo que se desenhou em seu rosto, o cocheiro fez dar meia
volta ao cavalo e ficou em caminho murmurando irados comentários a respeito da
escuridão e dos cemitérios e do que aconteceria aos residentes dessa zona se subissem a
uma carruagem de aluguel e não podiam pagar a viagem.
Pitt saiu pelo outro lado a risco de cair e, depois de lhe arrojar umas moedas ao
alarmado cocheiro, pôs-se a andar a grandes passadas pela calçada em busca, apesar da
escassa iluminação, do número 14, onde vivia a viúva do Horacio Snipe. Quando o achou,
teve que esmurrar a porta, dar vozes e armar o alvoroço suficiente para que se abrissem
várias janelas ao longo da rua e se ouvissem vários impropérios, até que a viúva
respondeu a sua chamada.
— Um momento! — gritou esta com fúria. Abriu a porta e lhe olhou com
aborrecimento; então, reconheceu-o e mudou de expressão. — O que quer? — perguntou.
— Horacio está morto e já o enterraram duas vezes. Deveria sabê-lo. Foi você quem o
trouxe a segunda vez. Não virá a me dizer que o tornaram a desenterrar, verdade?
— Não, Maizie, não ocorreu nada. Posso entrar?
— Se for necessário. O que quer?
A sala era pequena, mas estava mais limpa do que Pitt esperava e o fogo ardia com
força na lareira. Havia inclusive um par de bons castiçais sobre o suporte da lareira, e
também objetos de estanho polidos e toalhas de renda sobre as cadeiras.
— E então? — perguntou ela com impaciência. — Não tenho nada aqui que não seja
meu, se isso for o que está pensando.
— Não estou pensando isso. — Tirou a fotografia e lhe perguntou —: Conhece esta
mulher?
Ela pegou a cópia com o indicador e o polegar e disse:
— O que acontece se a conheço?
— Que tenho dez xelins para você — respondeu Pitt temerariamente, — se me disser
seu nome e onde encontrá-la.
— Bertha Mulligan — respondeu ela sem titubear. — Se aloja em casa da senhora
Cuff, no número trinta e sete, baixando a mão esquerda. Mas estranharia que a
encontrasse neste momento. Começa a trabalhar a esta hora da noite.
— Do que?
Maizie soltou um grunhido ante a estupidez da pergunta.
— Pois fazendo a rua. Do que vai ser? Certamente a achará em um desses cafés
que há perto do Haymarket. É uma garota muito bêbada.
— Já. E tem a senhora Cuff mais hóspedes?
— Se o que está perguntando é se tem uma casa de encontros, direi-lhe que
comprove você mesmo. Eu gosto de falar de meus vizinhos tão pouco quanto contem
intrigas sobre mim ou sobre o pobre Horacio quando estava vivo.
— Compreendo. Obrigado, Maizie.
— Onde estão minhas dez moedas?
Pitt rebuscou no bolso e tirou uma corda, uma faca, lacre, três partes de papel, um
pacote de caramelos, duas chaves e uma libra em caldeirinha. A contra gosto, contou os
dez pennies; fizera a promessa empurrado pela emoção do descobrimento. Mas Maizie já
tinha estendido a mão e agora não havia maneira de voltar atrás. Os arrebatou e os contou
cuidadosamente.
— Obrigado — disse apertando— os com a mesma força que um moribundo
aferrando-se à vida e os guardou entre as anáguas. — É Bertha, o asseguro. Por que quer
sabê-lo?
— Sua fotografia apareceu na casa de um morto — respondeu Pitt.
— Assassinado?
— Sim.
— Quem era?
— Godolphin Jones, o pintor.
Talvez não tivesse ouvido falar dele, e era provável que não soubesse ler e que o
assassinato não despertasse interesse no bairro. Em todo caso, não parecia surpreendida.
— Prostituta estúpida — comentou sem se alterar. — Disse-lhe que não fosse posar
para ele, que se conformasse fazendo o que sabe. Mas isso não é bastante para ela; quer
prosperar. É uma avara. Eu não gosto das coisas que ficam refletidas em papel; só trazem
desgostos.
Pitt a pegou pelo braço impulsivamente, mas ela se largou com brusquidão.
— Sabia que posava para o Godolphin Jones? — perguntou-lhe com obrigação.
— Pois claro que sabia! Toma por tola? Sei perfeitamente o que fazem nessa loja que
tem.
— Uma loja? Que loja?
— A loja do número quarenta e sete, qual vai ser? Onde tira essas fotografias que
logo vende. Parece-me uma obscenidade. Posso entender que um homem deseje a uma
mulher e não possa consegui-la; disso era do que se ocupava Horacio, de consegui-las.
Mas que um homem se divirta olhando fotografias... isso me parece doentio.
De repente Pitt teve a sensação de que tudo encaixava e um mundo de
possibilidades se abria ante ele.
— Obrigado, Maizie — disse lhe agarrando a mão com uma calidez que a alarmou.
Então acrescentou com incomum confiança — É uma jóia de mulher, um lírio que cresce
em um esgoto de lixos. Que o céu lhe pague isso!
Deu meia volta, saiu pela porta e, gritando de alegria, inundou-se na escuridão que
invadia Resurrection Row.
Capítulo 9
A primeira notícia que Alicia teve da morte do Godolphin Jones lhe chegou pelo
Dominic, que tinha passado a manhã com o Somerset Carlisle repassando os nomes
daquelas pessoas com cujo apoio poderiam contar uns dias mais tarde, quando se
apresentasse o projeto de lei no Parlamento. A notícia se difundiu pelo Gadstone Park
graças aos criados, que se tinham ocupado de correr a voz, e tinha chegado aos ouvidos
da ajudante de cozinha do Carlisle, a qual mantinha relações com o lacaio do Jones e tinha
sido uma das primeiras pessoas a inteirar-se.
Dominic chegou a casa dos Fitzroy-Hammond antes do almoço, falto de fôlego e um
pouco pálido, e imediatamente foi conduzido à sala em que Alicia estava escrevendo
cartas.
Assim que esta o viu, soube que tinha acontecido algo mau e, presa da inquietação,
notou que se desvanecia a alegria que esperava sentir.
— O que acontece?
Dominic não lhe pegou as mãos como de costume.
— Esta manhã acharam o cadáver do Godolphin Jones. Assassinaram-no — disse
sem evitar a crueldade da notícia ou comunicar-lhe delicadamente. Possivelmente sua
relação com o Somerset Carlisle e a visita ao asilo para desamparados do Seven Dials
tivessem transformado tais qualidades em uma ridicularia ou inclusive em uma ofensa
contra a realidade. — Estrangularam-no faz três ou quatro semanas — precisou — e o
enterraram na tumba de outro homem, a do que caiu da carruagem de aluguel e que você
tomou em princípio como Augusto. Afinal era um mordomo.
Alicia ficou aturdida, confundida pela rápida sucessão de fatos, todos novos e
espantosamente repulsivos. Nem sequer lhe tinha ocorrido que Godolphin Jones pudesse
ter relação com os cadáveres. Em realidade, desde que haviam tornado a enterrar a
Augusto, tinha tratado de afastar aquele assunto de seus pensamentos. Dominic era mais
importante, sobre tudo à vista de que no transcurso da última semana seus sentimentos
por ele tinham diminuído paulatinamente, tingindo-se de uma infelicidade ou possivelmente
uma inquietação que em algumas vezes tinha tentado atalhar e em outras apagar de sua
mente. Agora, entretanto, só podia olhá-lo com fixidez.
— Como é natural, vão investigar em Gadstone Park — acrescentou.
Ela continuava confusa, sem compreendê-lo.
— Por quê? Por que deveria alguém daqui querer matá-lo?
— Não sei — respondeu ele com laconismo. — Mas como uma pessoa não se pode
estrangular sozinha, nem sequer por acidente, é evidente que teve que fazê-lo alguém.
— Mas por que alguém daqui? — insistiu ela.
— Porque ele vivia aqui, e Augusto vivia aqui, e o cadáver de Augusto apareceu aqui.
— sentou-se. — Sinto muito. É terrível, mas tinha que avisá-la porque é muito provável que
Pitt venha. Conhecia... conhecia Godolphin Jones? — disse erguendo a vista e olhando-a.
— Não, em realidade não... Falei com ele algumas vezes; era uma pessoa conhecida
em sociedade. Parecia bastante afável. Foi ele quem pintou os retratos de Gwendoline e
Hester, e acredito que também os dos Rodney.
— E não a pintou? — perguntou Dominic franzindo o sobrecenho.
— Não, eu não gostava de seu estilo. E Augusto nunca expressou desejos de ter um
retrato.
Voltou o rosto levemente e se aproximou do fogo. Estava pensando no assassinato.
Tinha a impressão de que era algo completamente alheio a ela; ninguém que ela
conhecesse parecia estar envolvido nele, ninguém estava ameaçado por uma
investigação. Lembrava-se de como aterrada se havia sentido quando se baralhou a
possibilidade de que Augusto tivesse sido vítima de um assassinato;
tinha temido que as pessoas suspeitassem dela, ou ainda pior, que suspeitasse do
Dominic. Para começar, a idéia tinha estado fora de seu controle, tanto do dele como de
Dominic, e ela tinha tido a sensação de que ambos tinham que fazer frente à imerecida
suspeita concebida por pessoas cuja ignorância ou má vontade acabaria sendo posta a
descoberto.
Depois sua velha sogra lhe tinha feito conceber dúvidas a respeito da simplicidade do
círculo em que se achava. Evidentemente, existia um círculo que, devido a uma causa
comum, rodeava-os só a eles dois e os afastava de outros; entretanto também havia outro
círculo que a rodeava a ela sozinha e que constituía um obstáculo duplo. Sua existência
lhe causava vergonha e medo, mas o certo era que a idéia de que Dominic tivesse podido
assassinar a Augusto tinha acabado metendo-se o na cabeça. A anciã lhe havia dito que
assim era, e ela não havia sentido a suficiente confiança e certeza para negá-lo. Dominic
possuía um afã infantil por satisfazer seus desejos que tinha levado a ela a considerar
brevemente tal idéia como possível.
Em que medida o conhecia? Deu as costas à lareira e olhou-o. Ainda era bonito, com
aquela elegante cabeça, e aqueles ombros, e o modo em que o cabelo do pescoço se
curvava para o ombro. Seu rosto era o mesmo, e as rugas de seu sorriso. Mas havia algo
mais. O que pensava, o que havia atrás daquele rosto? Conhecia ela aqueles
pensamentos, amava-os também?
Olhou-se no espelho e viu umas feições equilibradas e um bonito cabelo. Aproximouse ainda mais, deixando que a iluminasse a luz da manhã, e viu todos os pequenos
defeitos. Mas ela sabia como ocultá-los, e o conjunto era agradável, inclusive formoso. Via
Dominic algo mais que isso? Via os defeitos e continuava querendo-a? Incomodariam-lhe
ou inclusive repugnariam porque não eram o que procurava ou aquilo no que ele
acreditava?
Tudo o que Dominic conhecia era o formoso rosto que lhe oferecia; o melhor de si
mesmo. Possivelmente se equivocasse ao fazê-lo; ela se tinha esforçado por ocultar todas
as demais facetas, as debilidades e as faltas, porque queria que a amasse.
Teria se perguntado se ela tinha matado a Augusto? Era esse o motivo pelo qual se
comportara ultimamente com maior frieza e tinha estado tão absorto no tema do projeto de
lei do Carlisle que nem sequer tinha falado com ela sobre ele? Mas se ela teria podido
ajudá-lo...! Tinha tantos contatos como ele, mais inclusive. Se tivesse confiança nela, se
houvesse sentido a harmonia em que, segundo seu modo de acreditar, consistia o amor,
lhe teria feito partícipe de seus sentimentos, do temor e da pena que Seven Dials lhe tinha
suscitado. Teria procurado lhe explicar sua confusão, e não do ponto de vista da injustiça
social, mas de suas emoções.
Agora a estava olhando, à espera.
— Não acredito que este assunto tenha nada que ver conosco — disse Alicia
finalmente. — Se vier o senhor Pitt o receberei, é claro, mas não poderei lhe dizer nada
importante. — Sorriu; o nervosismo tinha desaparecido e se acalmou totalmente. Ambos
sabiam o que tinha acontecido e o sentiam como uma espécie de liberação, como um
silêncio depois de um crescendo musical que se prolongara muito a um volume
excessivamente alto. Tinha voltado para a realidade. — Obrigado por vir. Foi muito amável
ao me dizer isso. Sempre é mais fácil inteirar-se de uma má notícia por um amigo que por
um desconhecido.
Dominic se levantou lentamente. Por um momento Alicia pensou que ia discutir, fugir
da aproximação; entretanto sorriu, e pela primeira vez se olharam o um ao outro sem fingir,
sem o enganoso palpitar do coração, da agitação, da respiração premente...
— Claro — disse ele com voz calma. — Possivelmente resolva antes que precisem
nos incomodar. Tenho que ir ver o Fleetwood. A apresentação do projeto de lei está para
sair.
— Conheço várias pessoas com as que poderia falar — se apressou a dizer ela.
— Seriamente? — Dominic a olhou com interesse; Jones tinha passado ao
esquecimento. — Poderia fazê-lo? Se houver alguma coisa que lhe seja preciso saber, vá
ver o Carlisle; estará profundamente agradecido a você.
— Já escrevi algumas cartas...
— Isso é maravilhoso. Sabe? Acredito que temos muitas possibilidades.
Quando se foi, Alicia sentiu certa solidão interior. Mas não se tratava da dolorosa e
inquietante sensação que lhe tinha embargado em outras ocasiões, aquela ansiedade por
saber quando retornaria, se se tinha comportado como uma estúpida ou com excessiva
frieza ou muita franqueza; aquelas dúvidas a respeito do que ele sentiria ou pensaria dela.
Esta sensação era mais como o vazio de uma manhã do verão, quando todo o céu está
limpo e o dia está começando, e não se tem obrigação alguma, nem idéia do que quer
fazer.
Na manhã seguinte de falar com o Maizie Snipe, Pitt voltou para o Resurrection Row
com um agente e uma ordem para revistar a casa número 47.
Encontrou o que esperava: um estúdio fotográfico provido de todos os acessórios
necessários para fazer chamativas fotografias pornográficas. Luzes de cores, peles de
animais, vários tecidos tintos de vivos, tinturas, perucas de pena, colares e uma cama
enorme. As paredes estavam cobertas por um variadíssimo conjunto de fotografias de
grande qualidade e conteúdo marcadamente erótico.
— Deus santo! — O agente, trêmulo, respirou fundo, sem saber que emoção devia
expressar. Tinha os olhos esbugalhados.
— Certamente — disse Pitt. — Um negócio florescente, não lhe parece? Antes de
tocar algo, examine tudo minuciosamente e veja se pode achar algum resto de sangue ou
amostras de violência. É muito possível que o assassinassem aqui; parece-me que há
centenas de motivos para isso pendurados nestas paredes ou guardados nas gavetas.
— OH! — O agente ficou imóvel, apavorado pela idéia.
— Mova-se, comece já — lhe urgiu Pitt. — Temos muito que fazer. Quando tiver
revistado tudo, ordene essas fotografias e veja quantos rostos diferentes temos.
— Mas inspetor, é impossível identificá-las todas. Levaria-nos anos. Além disso,
quem vai confessar ter posado? Acredita que alguma jovem vai dizer: "Sim, essa sou eu"?
— Se for seu rosto que aparece na fotografia, não terá ocasião de discutir, não lhe
parece? — Pitt indicou o canto e fez um expressivo gesto com a cabeça. — Adiante!
— A minha esposa teria um ataque se se inteirasse de que estou fazendo isto.
— Então não o diga — respondeu Pitt com brusquidão. — Eu sim teria um se não o
fizer, e sou um elemento a ter muito mais em conta que sua esposa.
O agente fez uma careta, olhou de soslaio as fotografias e respondeu:
— Não esteja tão certo, senhor.
Entretanto obedeceu, e ao cabo de uns minutos já tinha descoberto restos de sangue
no chão e um tamborete derrubado.
— Acredito que foi aqui onde o assassinaram — disse, ufano de si mesmo. —Se vê
claramente se se souber onde olhar. Certamente lhe bateram com isto — Tocou o
tamborete.
Depois de fazer o reconhecimento de rigor, Pitt deixou que o agente começasse a
enorme tarefa de classificar as fotografias para identificar às jovens. Correspondia-lhe a
outra metade do negócio: os clientes. Naturalmente, Jones tinha tido a discrição de não
escrever os nomes de quem poderia mostrar-se suscetíveis ou inclusive violentos se
descobrissem sua vinculação com aquele turvo assunto. Não obstante, Pitt acreditava
saber ao menos por onde começar: o caderno de números e insetos que tinha encontrado
na escrivaninha do Jones. Tinha visto quatro daqueles pequenos e elegantes hieróglifos
nos retratos do Gadstone Park. Agora tinha que interrogar a seus proprietários;
possivelmente poderiam lhe dar uma resposta que explicasse ao menos um mistério: por
que teria que pagar alguém um preço tão elevado pela obra de um artista medíocre?
Pitt falou em primeiro lugar com o Gwendoline Cantlay, e nesta ocasião só se
entreteve em uns breves preliminares, depois do que foi direto ao ponto.
— Lady Cantlay, você pagou muito dinheiro pelo retrato que o senhor Jones lhe
pintou.
Ela reagiu com cautela, intuindo que aquela conversa era algo mais que uma
pesquisa rotineira.
— Paguei o preço normal, senhor Pitt, como acredito que comprovará se continuar
investigando.
— O preço normal para o senhor Jones, senhora — disse Pitt assentindo, — mas não
para um artista cuja qualidade deixa que desejar.
Ela arqueou as sobrancelhas com incredulidade.
— É perito em arte, inspetor? — perguntou.
— Não; mas tive ocasião de pedir conselho a pessoas que o são, senhora, e ao que
parece estão de acordo em que Godolphin Jones não reunia os méritos suficientes para
pedir os preços que lhe pagavam no Gadstone Park.
Lady Cantlay se dispôs a fazer uma pergunta, mas se arrependeu e disse:
— Talvez a arte só seja ao fim e ao cabo uma questão de gostos.
Aquela era uma situação em que Pitt se viu em numerosas ocasiões e que sempre
lhe tinha aborrecido. Os segredos eram quase sempre uma questão de vulnerabilidade, um
esforço de evitar ou fugir a alguma classe de dano.
Mas não ficava alternativa. Seu trabalho não consistia em dissimular a verdade,
embora gostasse que assim fosse.
— Está segura, lady Cantlay, de que não vendia algo junto com suas pinturas?
Discrição talvez?
— Não sei a que se refere. — Era a resposta de costume; quase podia havê-la dado
ele mesmo. Lady Cantlay ia oferecer resistência todo o tempo que pudesse e obrigá-la a
que lhe explicassem o que soubesse ponto por ponto.
— Lady Cantlay, não manteve você em certo momento uma relação com o senhor
Jones mais estreita do que desejaria que se soubesse e, em concreto, seu marido?
Ruborizando-se, demorou vários graves segundos em decidir o que respondia, se
continuava negando-o ou se o aborrecimento lhe serviria de algo. Afinal reconheceu a
certeza que denotava o rosto do inspetor e se rendeu.
— Fui realmente uma estúpida; deixei-me levar pelo encanto de um artista, suponho,
e me senti adulada... Mas isso pertence ao passado, inspetor. Ocorreu faz muito tempo.
Sim, tem razão, encomendei-lhe o retrato antes de mi... de minha relação, e depois,
quando terminou, paguei-lhe algo mais para me assegurar de que guardaria silêncio. Do
contrário não teria aceitado pagar tal soma. — Vacilou; ele esperou que continuasse. —
Estaria... — lhe muito agradecida se não o comentasse com meu marido. Não está
informado de nada.
— Está completamente segura?
— OH, sim, claro que o estou. Se não... — de repente a cor abandonou seu rosto. —
OH! Godolphin foi assassinado! Não pensará você que Desmond... Asseguro-lhe. .. doulhe minha palavra de honra de... de que não se inteirou. Não pôde inteirar-se. Mantivemos
a maior discrição... Só quando fui posar para o retrato... — Não sabia que mais dizer para
convencê-lo; necessitava alguma prova e não conseguia encontrá-la.
Ia contra todas as convicções do Pitt sentir compaixão por aquela mulher e mesmo
assim o fez. Embora não tinham nada em comum e o comportamento dela tinha sido
egoísta e irrefletido, acreditou em suas palavras e não desejou prolongar seu medo.
— Obrigado, lady Cantlay. Se não estava à corrente da questão, seu marido não
tinha nenhum motivo para fazer mal ao senhor Jones. Agradeço-lhe sua franqueza. Não
será necessário voltar a falar do tema. — levantou-se. — Bom dia.
Lady Cantlay sentiu tal alívio que só foi capaz de pronunciar um débil "Bom dia".
A seguir Pitt foi à casa do comandante Rodney, onde o recebimento que lhe
dispensaram foi totalmente diferente e pôs fim ao entusiasmo com que tinha saído da
residência dos Cantlay. A ufania que sentia desapareceu como a água por uma pia.
— É um verdadeiro insolente, senhor! — exclamou o comandante com fúria. — E não
tenho a menor ideia do que está falando! Isto é Gadstone Park, não uma dessas ruelas
que você frequenta. Não sei a que classe de condutas estará acostumado, mas aqui
sabemos como nos comportar. E se insistir em sugerir que minhas irmãs mantiveram
algum tipo de relação com esse desventurado artista, demandar-lhe-ei por calúnias.
Compreende-me, inspetor?
Pitt conseguiu com muita dificuldade não perder a paciência. A idéia de que
Godolphin Jones tivesse uma aventura sentimental com qualquer daquelas duas velhas
damas aficionadas a preparar geléia caseira era ridícula e, ao procurar refúgio atrás dela, o
comandante Rodney estava evitando o tema de maneira muito eficaz, tanto se o fizesse de
propósito como se não. Pitt duvidava que fosse capaz de empregar tal estratégia, mas o
resultado era o mesmo.
— Não sugeri nada semelhante, comandante — disse com toda a calma que foi
possível mostrar, mas sem poder evitar que seu tom denotasse certa crispação. — De fato
não me tinha ocorrido tal possibilidade, já que, por um lado, não considero que suas irmãs
sejam damas com o temperamento ou a idade para entregar-se a algo assim e, por outro,
não sabia que tivessem comprado elas os quadros. Tinha entendido que tinha sido você
quem os tinha encomendado ao senhor Jones.
O comandante ficou perplexo por um momento. A causa de sua indignação tinha
desaparecido justo no momento em que estava começando a crescer e se dispunha a
ordenar ao inspetor que saísse de sua casa.
Pitt aproveitou a vantagem obtida.
— Têm as damas recursos próprios? — perguntou.
As duas eram solteiras e, ao ter um irmão, não podiam ter herdado nada, de modo
que era quase impossível que os tivessem, e ele sabia.
O comandante estava avermelhando.
— Nossos assuntos financeiros não são de sua incumbência, inspetor! — replicoulhe. — Embora seja possível que lhe pareça sinônimo de riqueza, nos dá só para as
necessidades básicas. Nós não gostamos das ostentações, mas temos meios econômicos,
é claro. Isto é tudo o que estou disposto a lhe dizer.
— Mas vocês encomendaram ao senhor Jones dois quadros pelos quais pagaram um
alto preço, não é assim? Novecentas e setenta e cinco libras em total.
Pitt, que tinha somado as colunas situadas ao lado das larvas, teve a satisfação de
ver como o comandante empalidecia e estirava o pescoço em sinal de consternação.
— Exijo saber onde obteve essa informação. Quem a proporcionou?
Pitt olhou-o com olhos muito abertos, como se a pergunta fosse uma estupidez.
— O senhor Jones levava suas contas, comandante, e com uma grande precisão:
apontava datas e a importância dos pagamentos. Só tive que fazer uma soma para
averiguar o total. Não foi necessário incomodar a ninguém mais.
O comandante se relaxou e adotou uma postura parecida com a de um menino
disciplinado sentado à mesa, com o olhar fixo e as mãos imóveis, mas sem convicção.
Guardou silêncio um momento, e Pitt se viu no desagradável dever de lhe surrupiar o
lamentável segredo com o qual Jones o tinha chantageado. Não tinha outra alternativa.
Não sabia a hora em que se cometeu o crime, por isso não podia servir-se dela para
descartar suspeitos, e a única arma que se utilizou eram as mãos, cuja força lhe permitia
descartar a uma mulher, sobre tudo a uma mulher da alta sociedade. Possivelmente uma
criada habituada a realizar tarefas manuais, por exemplo, a de escorrer a pesada roupa
molhada depois de lavá-la, teria a força suficiente. Naquele momento a Pitt não lhe ocorria
outra coisa que averiguar a maior verdade que fosse possível.
O comandante, embora miúdo, torpe e enrijecido tanto física como emocionalmente,
tinha sido soldado. Tinha estado em presença da morte com antecedência e tinha
aprendido a matar, a familiarizar-se com a idéia, a aceitá-la como uma parte de si mesmo,
ou seja, que às vezes seria para ele uma obrigação. Era seu segredo bastante importante
para assassinar Godolphin Jones e enterrá-lo na tumba do Albert Wilson?
— Por que pagou tanto por esses dois retratos, comandante Rodney? — insistiu Pitt.
O comandante lhe lançou um olhar de aversão.
— Porque esse era o preço que pedia — disse friamente. — Não sou perito em arte.
Isso era o que todo mundo lhe pagava; se era excessivo, enganou-me. Como a todos! Se
o que você diz é certo, esse homem era um enganador; mas compreenderá que não aceite
suas palavras como opinião definitiva.
Sua voz estava carregada de sarcasmo e, pelo afetado do tom, Pitt adivinhou que se
tratava de um sentimento pouco familiar para ele.
O comandante ficou em pé.
— Bem, senhor, já lhe disse tudo o que tinha que lhe dizer. Desejo-lhe um bom dia.
Obstinar-se não tinha sentido e Pitt sabia. Teria que averiguar o segredo por outra via
e retornar quando dispusesse de mais munição. Possivelmente era só uma estupidez, algo
que Jones tinha descoberto por meio de outro cliente, possivelmente uma indiscrição
cometida com alguma mulher. O sentido da honra proibia ao Rodney reconhecer algo
semelhante. Ou talvez fosse realmente uma questão desonrosa para ele, um ato de
covardia cometido na Criméia ou alguma debilidade a que tivesse cedido no dormitório do
quartel, uma dívida de jogo sem pagar ou uma travessura de bebedeira.
De momento teria que deixá-lo.
Na primeira hora da tarde foi ver o St. Jermyn, mas lhe disseram que estava na
Câmara dos Lordes, por isso teve que voltar ao entardecer, cansado, com frio e de mau
humor.
Sua senhoria também se sentiu irritado ao não poder relaxar-se e esquecer as
vicissitudes do dia bebendo um copo de seleto licor antes de jantar, por isso teve que fazer
certo esforço para mostrar-se cortês com o Pitt.
— Já lhe contei tudo o que sei sobre esse homem — disse aproximando-se à lareira.
— Era um artista de moda. Encomendei-lhe um quadro para agradar a minha esposa.
Suponho que falaria com ele em algumas reuniões sociais; ao fim e ao cabo, vivia no
parque. Mas apresentam a centenas de pessoas, e não sei com exatidão. Lembro que
tinha um aspecto um tanto extravagante; trazia o cabelo muito longo. — Lançou ao Pitt um
olhar desanimado e se fixou em seus emaranhados cabelos. — Embora, claro, se espera
que os artistas sejam um tanto amaneirados — prosseguiu. — E seu aspecto não era tão
chamativo para ser perturbador, embora sim um tanto ostentoso. Lamento que tenha
morrido, mas não seria de estranhar que frequentasse companhias pouco recomendáveis.
É possível que se tomasse algumas liberdades com seus modelos. Além de retratar
damas, os artistas pintam frequentemente a mulheres de classes muito inferiores que
casualmente têm a tez ou as feições que eles procuram. Suponho que isto saberá você tão
bem como eu. Em seu lugar, eu procuraria um amante ou um marido ciumento.
— Não conseguimos achar outros quadros que não sejam retratos de sociedade —
disse Pitt. — Não parece que fosse um pintor prolífico; de fato era bastante discreto. Isso
sim, fizesse o que fizesse, vendia suas telas a preços exorbitantes.
— Isso é o que você me deu a entender a última vez que falamos — observou St.
Jermyn com secura. — Não posso lhe dizer nada a respeito. Considero que os retratos têm
que prazer unicamente aos retratados. Seria estranho querer revendê-los. Normalmente
são relegados aos corredores interiores ou às escadas se deixarem de agradar; em caso
contrário permanecem no lugar em que foram pendurados originalmente.
— Você pagou uma soma considerável pelo retrato de lady St. Jermyn — insistiu Pitt.
St. Jermyn arqueou as sobrancelhas.
— Também fez você alusão a isso a última vez que esteve aqui. A minha esposa
gostou do retrato, que era tudo o que me interessava. Se paguei muito por ele, fraudaramme. Não me importa muito, e não vejo por que teria que importar a você.
Pitt já havia espremido os miolos tentando achar a razão que lhe tinha permitido ao
Jones pressionar ao St. Jermyn para que lhe comprasse um quadro que não gostasse ou a
um preço que considerasse excessivo. Ao Jones teria sido fácil exercer pressão sobre lady
Cantlay; e o que também a tivesse exercido sobre o comandante era, a julgar por seu
nervosismo e enrijecimento, perfeitamente acreditável apesar de que ainda ignorava o
motivo. Tratando-se de um homem de meia idade, torpe socialmente e que vivia com suas
duas irmãs, as probabilidades de que tivesse cometido uma indiscrição eram muito
elevadas. O orgulho o teria obrigado a pagar pelo silêncio.
Mas St. Jermyn era um homem completamente diferente. Ocultaria suas indiscrições,
se tivesse cometido alguma e fosse motivo de preocupação, o que era, novamente,
duvidoso. Além disso, não se tinha cometido nenhum outro crime do qual Pitt tivesse
notícia. A morte de lorde Augusto, tanto se obedecia a causas naturais como se não (algo,
este último, que era impossível de demonstrar), não tinha para o St. Jermyn nenhuma
importância. Todos outros (Arthur Wilson, Porteous e Horacio Snipe) haviam falecido
também por causas naturais e, uma vez mais, Pitt não tinha conhecimento de que
tivessem nenhum vínculo com o político.
— Se foi um amante ou um marido ciumento quem o assassinou — disse
lentamente— por que apareceu na tumba de outro homem?
— Para ocultá-lo, suponho — respondeu St. Jermyn com impaciência. — achei que
isto era evidente. Uma tumba cavada recentemente em qualquer parte de Londres que não
seja um cemitério chamaria a atenção. A pessoa não pode cavar uma tumba em um
parque, e se o faz no jardim de sua casa, a prova, em caso de ser descoberto, seria
irrefutável. Em troca, esconder um cadáver na tumba de um homem enterrado
recentemente não supõe risco algum.
— Então por que apareceu o corpo do Arthur Wilson na boléia de uma carruagem de
aluguel?
— Não sei, inspetor! Corresponde a você averiguá-lo, não a mim. Cabe a
possibilidade de que não haja razão alguma. Parece uma extravagância própria de um
artista. É provável que a tumba já tivesse sido profanada e ele simplesmente aproveitasse
a excelente oportunidade que isto supunha para ele.
Pitt já tinha pensado naquela possibilidade, mas ainda esperava achar uma pista
nova, algum engano, um deslize que lhe permitisse seguir outra linha de investigação.
— Conhecia lorde Augusto Fitzroy-Hammond ao senhor Jones? — perguntou com
fingida inocência.
St. Jermyn o olhou friamente.
— Não que eu saiba. E se estiver sugerindo que mantivesse algum tipo de aventura
com uma das modelos do Jones, dir-lhe-ei que me parece muito pouco provável.
Pitt teve que reconhecer que teria sido uma coincidência excessiva que lorde Augusto
tivesse assassinado ao Jones e escondido seu cadáver aproveitando-se das atividades do
profanador de tumbas e imediatamente depois houvesse falecido para converter-se na
vítima do mesmo profanador. Observou ao St. Jermyn e acreditou adivinhar em seu rosto a
perseverança daquela mesma improbabilidade, assim como uma impaciência mal
dissimulada que crescia.
Pitt tratou de achar alguma pergunta mais que lhe fazer, algo para obter mais
informação. Entretanto, St. Jermyn não era um homem ao que se pudesse manipular, de
modo que se deu por vencido, ao menos de momento.
— Obrigado, lorde St. Jermyn — disse. — Lhe agradeço o tempo que me dedicou.
— Era minha obrigação — reconheceu o político com secura. — O lacaio o
acompanhará à porta.
Não havia outro remédio que aceitá-lo com toda a elegância possível. Pitt abandonou
a luminosa habitação, seguiu a um criado vestido com libré até a saída e foi engolido pela
espessa névoa da rua.
Raramente se sentiu Dominic tão atraído e emocionado por algo como pelo projeto
de lei do St. Jermyn. Agora que tinha deixado de opor-se a ele mentalmente e se entregara
a sua defesa, a companhia do Carlisle lhe era cada vez mais estimulante. Este era um
homem culto, inteligente e, sobre tudo, um entusiasta. Possuía a extraordinária faculdade
de estudar os aspectos mais espantosos das condições em que se achavam os asilos para
desamparados sem perder sua fé em que pudesse fazer-se algo por melhorá-los ou sua
habilidade para achar um pouco de humor, por amargo e irônico que fosse, meio do que
em caso contrário só tivesse sido desespero.
Ao Dominic era difícil emulá-lo. Tinha abordado lorde Fleetwood com confusão e um
pouco de acanhamento, mas a amizade entre eles se consolidou com maior facilidade do
que esperava. Apesar disso, não tinha conseguido represar a conversa para a trágica
realidade dos asilos para desamparados. Sempre que se fazia algum comentário a
respeito, este soava oco, como se o houvesse dito alguém que falasse um idioma com
uma pronúncia perfeita, mas sem entendê-lo.
Depois de tentá-lo em duas ocasiões, Dominic se percebeu a urgência do assunto e
confessou ao Carlisle com toda franqueza que necessitava sua ajuda.
Em consequência, no dia seguinte Carlisle, animado pela influência que Fleetwood
pudesse ter, reuniu-se com este e com o Dominic para dar um passeio pelo parque a uma
velocidade tão vertiginosa que pôs em fuga aos poucos pedestres que se acharam no
caminho e levou os cocheiros e cavaleiros presentes a lançar exclamações de fúria ou
inveja dependendo da força e o fim de suas próprias ambições.
Dominic se tinha encarregado de conduzir a carruagem, e embora o fizesse com uma
temeridade que normalmente não se atrevia a mostrar, aquele dia lhe trazia sem cuidado
algo tão corriqueiro como a indignação social ou que uns quantos caminhantes dessem
com sua dignidade na úmida terra por culpa de um empurrão dele.
— Maravilhoso! — exclamou Fleetwood com satisfação enquanto recuperava o
fôlego. — meu Deus, Dominic, conduz você como um demônio. Juro-lhe que não achei
que fosse capaz de fazê-lo assim. Se aceitasse conduzir meus cavalos esta primavera,
consideraria-o um favor de sua parte.
Dominic, que tinha na cabeça os asilos e a possibilidade de que Fleetwood
correspondesse a seu favor com outro, não podia parar para pensar em como ia reunir a
coragem necessária para conduzir uma carruagem daquele modo em frio, quando se
tivesse várias semanas por diante para meditar sobre todos os desastres que poderia
comportar. Abandonando a possibilidade a um futuro improvável, tirou as dúvidas da
cabeça e exclamou:
— É claro. Será um prazer.
— Estupendo — disse Carlisle com um gesto de ironia que Fleetwood não percebeu.
— Possui você uma habilidade inata, Dominic. — voltou-se para Fleetwood, que igual a ele
tinha o rosto corado por causa do frio e do cortante vento que os tinha açoitado durante a
corrida, e acrescentou —: De todo modo, lorde Fleetwood, seus cavalos são de magnífica
qualidade. Poucos animais vi como estes. Agora bem, em minha opinião possivelmente
caiba melhorar o amortecimento da carruagem.
Fleetwood sorriu. Era um jovem afável cujas feições, apesar de não ser agraciadas,
denotavam um temperamento nobre.
— Dá muitos botes, não é? Bom, não importa, isso é bom para a digestão.
— Não estava pensando na digestão — respondeu Carlisle com um sorriso, — nem
nos machucados, mas no equilíbrio do veículo. Uma carruagem equilibrada facilita o
trabalho dos cavalos, toma melhor as curvas e tem menos possibilidades de derrubar-se
se algum idiota se choca contra ela. Além disso, se tiver um animal nervoso, naturalmente
é mais difícil que se descontrole.
— Maldição, tem razão! — exclamou Fleetwood animadamente. — Não o tinha
entendido corretamente. Mandarei que o revisem. Terá que pô-lo em boas condições.
— Conheço um homem no Campo do Diabo que pode ajustar uma carruagem para
que tenha o mesmo equilíbrio que um pássaro ao voar — sugeriu Carlisle com
naturalidade, como se aquilo não tivesse interesse para ele e só fosse um gesto cortês
surgido do ambiente de companheirismo em que se desenvolviam aquelas primeiras horas
da manhã.
— O Campo do Diabo? — repetiu Fleetwood com incredulidade. — Onde demônios
fica isso?
— Perto do Westminster — disse Carlisle com indiferença.
Dominic o observava com admiração. Se tivesse abordado ao Fleetwood com
semelhante despreocupação, possivelmente teria conseguido convencê-lo. Mostrou-se
muito sério e preocupado pela urgência e o horror do tema. Ninguém mais que um monstro
desejava ouvir horrores, sobre tudo à hora do café da manhã.
— Perto do Westminster? — repetiu Fleetwood. — Se refere a esse terrível subúrbio?
Assim é como a chamam?
— Um nome apropriado, Parece-me. — Carlisle arqueou suas bicudas sobrancelhas.
— É um lugar imundo.
— Com que motivo foi você por ali?
Fleetwood entregou o cavalo ao cavalariço e os três se dirigiram a uma taverna, onde
os aguardavam o café da manhã e uma bebida quente.
— OH, não é nada.
Carlisle fez um gesto com o braço para lhe tirar importância, como se fosse um
assunto de cavalheiros do que qualquer outro cavalheiro deveria ter conhecimento e evitar
falar em uma amostra de discrição.
— Mas se é um subúrbio — repetiu Fleetwood quando entraram no estabelecimento
e começaram a abundante e excelente comida. — Como é possível que alguém dali saiba
ajustar e equilibrar uma carruagem? Não há espaço para conduzir uma, e menos ainda
para correr.
Carlisle mastigou o que tinha na boca e o engoliu.
— Antes era cavalariço — disse com desenvoltura. — Mas roubou a seu senhor, ou
ao menos foi acusado disso, e ficou sem trabalho. Assim simples.
Fleetwood, que tinha fraqueza pelos cavalos e sabia muito deles, sentia
camaradagem pelas pessoas que os cuidavam, mas se viam obrigadas a ganhar a vida.
Tinha passado muito boas horas trocando impressões e contando histórias com seus
cavalariços.
— Pobre desventurado — comentou com pesar. — Talvez ganhasse uns xelins
vendo o que se pode fazer para melhorar minha carruagem.
— Sem dúvida — assentiu Carlisle. — Sempre se pode provar, se você o desejar. De
qualquer modo não para sempre no mesmo lugar, assim terá que ir vê-lo logo.
— Boa idéia. Se me fizesse o favor, o agradeceria. Onde posso achá-lo?
Carlisle lhe dedicou um amplo sorriso.
— No Campo do Diabo? Por muito que o tentasse, não poderia encontrá-lo sozinho.
Estaria procurando-o até o dia do julgamento final. Permita-me que o acompanhe.
— Agradeceria. Parece um lugar pouco recomendável.
— Com efeito — respondeu Carlisle, — é-o. Mas às vezes a habilidade se encontra
mais facilmente ali onde é mais difícil que se dê. Ao senhor Darwin não lhe falta razão no
que diz a respeito da sobrevivência do melhor dotado. Isso sim, sempre que se tenha por
melhor dotadas às pessoas mais inteligentes, fortes e engenhosas e não se complique o
assunto com idéias morais. O melhor dotado significa o melhor dotado para sobreviver,
não o mais virtuoso, paciente, caridoso ou útil para o resto da humanidade.
Dominic lhe deu um pontapé por debaixo da mesa e observou que em seu rosto se
desenhava uma careta de dor. Aterrava-lhe a possibilidade de que Carlisle pusesse tudo a
perder moralizando e desperdiçasse a vaza do Fleetwood tão cedo.
— Está dizendo que ao fim e ao cabo a corrida a vontade o mais veloz e a batalha o
mais forte?
Fleetwood se serviu de outra porção de peixe, ovos e arroz.
— Não. Só estou dizendo que nos lugares como o Campo do Diabo os pobres
desenvolvem habilidades peculiares, porque sem elas não poderiam sobreviver. Os
afortunados podem ser estúpidos e sair adiante; os desafortunados têm que ter uma
utilidade para alguém, porque do contrário o mais certo é que morram.
Fleetwood fez uma careta.
— Isso me parece um tanto cínico, se me permite dizê-lo. De todo modo, continuo
querendo ver esse homem que você diz conhecer. Convenceu-me que sabe o que faz.
Carlisle sorriu e seu rosto se iluminou com uma expressão de calidez. Fleetwood
reagiu como uma flor que se abre ao sol e lhe respondeu com outro sorriso. Dominic se viu
si mesmo em meio de um alegre ambiente de companheirismo. Sentia-se um pouco
culpado porque sabia o que se avizinhava ao Fleetwood, mas não queria pensar nisso
agora. Era por uma causa boa e necessária. Assim, sorriu com idêntica cordialidade e
expressão quase de franqueza.
O Campo do Diabo era horripilante. Envoltas por um manto de fumaça e névoa, as
imponentes torres da catedral se erguiam sobre eles desprovidas de sua magnificência
gótica por causa das volutas de vapor. Todo o revigorante ar do parque se aquietava e
umedecia até sumir-se qual remanso de água em uma fria detenção ante a sombra das
torres; a seguir passava pelas colunas e suporte das residências dos ricos e os edifícios
das empresas e chegava às modestas moradias dos comerciantes e dependentes.
Debaixo destas havia um mundo à parte, um mundo de edifícios que rangiam, infestados
de ratos e rodeados de ruelas lotadas de gente, muros eternamente úmidos e gretados e
ar viciado pelo mofo. Vagabundos, mendigos e bêbados pululavam por ali sujando tudo.
Carlisle avançava como se não houvesse nada que comentar.
— Por Deus!
Fleetwood se tampou o nariz e lançou um olhar de desespero ao Dominic. Mas
Carlisle não esperava. Se não queriam perdê-lo, tinham que segui-lo de perto, e o pior que
podia lhes ocorrer era extraviar-se em um inferno como aquele.
Carlisle parecia seguro do caminho. Abriu-se passo entre uns bêbados que dormiam
sob uma pilha de jornais, afastou de seu caminho uma garrafa vazia com um pontapé e
subiu por uma desconjuntada escada. Esta bamboleou sob seu peso; Dominic se apressou
a subir atrás dele, ante o que Fleetwood fez expressão de alarme.
— Acreditam que aguentará? — perguntou no momento que se torcia o chapéu ao se
chocar com uma travessa.
— Quem sabe — respondeu Dominic ao passar a seu lado e começar a ascensão.
Compartilhava em boa medida os sentimentos do Fleetwood, já que recordava a
sensação que lhe tinha causado Seven Dials, apesar de que este era um lugar menos
espantoso que o que visitavam agora. Mas ao mesmo tempo não podia evitar regozijar-se,
saborear o que Carlisle sabia, a paixão por mudar o mundo, por obrigar aos inocentes e os
ignorantes a olhá-lo, a ver e sentir tudo, a preocupar-se. A emoção que lhe embargava era
violenta, quase espasmódica. Subiu os degraus de dois em dois e se introduziu atrás do
Carlisle em um fétido conjunto de habitações nas que havia famílias de dez e doze
membros cortando, limpando, costurando, tecendo ou pegando peças para fazer todo tipo
de objetos que logo venderiam em troca de uns pennies. As crianças de três ou quatro
anos estavam atadas a suas mães com uma corda para que não deixassem de trabalhar;
cada vez que um deles abandonava sua atividade ou ficava adormecido, a mãe lhe dava
um soco na cabeça para que despertasse e lhe recordava que com umas mãos ociosas só
se conseguia ter fome.
O cheiro era espantoso, uma mescla de umidade, mofo, fumaça, vapores de carvão,
águas residuais e corpos suarentos.
Ao chegar ao fundo da casa viram um pátio de ambiente insalubre que antigamente
teria sido uma cavalariça; Carlisle se aproximou de uma porta dupla e bateu.
Dominic olhou ao Fleetwood. Tinha o semblante pálido e em seus olhos havia uma
marcada expressão de medo. Certamente teria fugido há tempo se tivesse sabido por onde
sair daquele labirinto e retornar a seu confortável mundo. Nem sequer em seus pesadelos
teria visto o que naquele momento passava diante de seus olhos. A porta se abriu, e um
homenzinho fraco e curvado apareceu ao exterior. Parecia ter os ombros torcidos, como se
um fosse mais longo que o outro. Quando ao cabo de uns segundos reconheceu ao
Carlisle, disse:
— OH, é você, senhor, não é? O que quer agora?
— Me servir um pouco de sua habilidade, Timothy — respondeu Carlisle com um
sorriso. — Pagamento prévio, claro está.
— Que habilidade? — perguntou o homenzinho com brusquidão ao mesmo tempo
em que olhava suspicazmente ao Dominic e Fleetwood por cima do ombro do Carlisle. —
Não serão policiais, não é?
— Vergonha deveria lhe dar dizer isso, Timothy — exclamou Carlisle com mal-estar.
— Quando me viu em companhia de policiais?
— Que habilidade? — repetiu Timothy.
— Qual vai ser? A que tem para equilibrar boas carruagens, naturalmente —
respondeu Carlisle com uma careta. — Sua senhoria — acrescentou apontando ao
Fleetwood — tem um par de cavalos excelente e muitas possibilidades de ganhar algumas
corridas de cavalheiros, com apostas privadas e demais, se conseguir equilibrar sua
carruagem como é devido.
Ao Timothy se iluminou o rosto.
— Ah! Claro que posso fazer algo assim. O equilíbrio é fundamental. Onde está essa
carruagem? Diga-me e a ajustarei para que corra ligeiro como uma doninha. Pagamento
prévio, né?
— É claro — se apressou a responder Fleetwood. — Holcombe Park House.
Escrever-lhe-ei o endereço...
— Não serviria de nada, chefe. Não sei ler. Basta que me diga; lembro-me de tudo.
Eu acredito que escrever faz perder a memória; as pessoas que o escrevem tudo acabam
esquecendo-se até de seu próprio nome ao cabo do tempo.
Carlisle, que não desperdiçava nenhuma oportunidade, lançou-se sobre esta como
um pássaro veloz apanha um inseto ao vôo.
— Mas há trabalho para os homens que sabem ler e escrever, Timothy — disse
apoiando-se contra a porta. — Um trabalho fixo, em escritórios que fecham ao entardecer
para que possa ir para casa. Um trabalho com o qual ganha dinheiro suficiente para viver.
Timothy cuspiu.
— Preferiria morrer de fome a aprender a ler e escrever — disse com asco. — Não
sei como lhe ocorre dizer coisas semelhantes.
Carlisle lhe deu uma palmada no ombro e respondeu com voz calma:
— Pelo futuro, Timothy. E pelas pessoas que não sabem equilibrar carruagens.
— Há centenas de milhares de pessoas que não sabem ler nem escrever! —
exclamou o homenzinho olhando-o com azedume.
— Sei — disse Carlisle. — E centenas de milhares que têm fome. De fato, acredito
que são aproximadamente uma quarta parte dos habitantes de Londres. De qualquer
modo, é motivo para que não possa dar conta de uma boa comida se lhe apresenta a
ocasião?
Timothy enrugou o rosto e olhou ao Fleetwood, quem, ficando à altura das
circunstâncias, disse:
— Uma boa comida: toda a que possa comer antes de fazer o trabalho — prometeu.
— E logo lhe darei um guineu. Vou fazer uma aposta: cinco libras se ganhar a primeira
corrida que participe com a carruagem...
— De acordo! — exclamou Timothy imediatamente. — Estarei em sua casa na hora
do jantar e me porei a trabalhar pela manhã.
— Bem. Dormirá nos estábulos.
Timothy levantou seu esfarrapado chapéu em sinal de saudação ou possivelmente
para indicar que o trato ficava fechado, depois do que Carlisle deu meia volta para ir-se.
Depois de repetir o endereço de sua casa e indicar ao Timothy como chegar a ela,
Fleetwood pôs-se a correr para alcançar Carlisle, temendo perdê-lo de vista e ver-se
abandonado naquele lugar de pesadelo.
Passaram pela parte mais suja daquele tugúrio e saíram do edifício para ir dar a uma
ruela situada quase à sombra da igreja. Tinha começado a cair uma fina chuva.
— Por todos os Santos! — exclamou Fleetwood enquanto limpava o rosto — Me
recorda as portas do inferno. Que lenda havia sobre a porta?
— "Que abandone a esperança todo aquele que entre aqui" — entoou Carlisle com
voz calma.
— Em nome de todo o humano, como o podem suportar?
Fleetwood levantou a gola do capote e colocou as mãos nos bolsos.
— É melhor que um asilo — respondeu Carlisle. — Ao menos isso acreditam. Eu
acredito que é virtualmente o mesmo.
Fleetwood se deteve.
— O que é melhor? — exclamou com incredulidade. — Mas do que está falando? Os
asilos lhes proporcionam manutenção e alojamento! Dão-lhes segurança! São centros de
beneficência.
No rosto de Carlisle não havia vislumbre de ira.
— Esteve alguma vez em um? — disse com uma voz suave como o veludo.
Fleetwood se surpreendeu.
— Não — disse. — E você?
— OH, sim. — Carlisle reatou a marcha. — Estou dedicando um grande esforço ao
projeto de lei de lorde St. Jermyn. Certamente terá ouvido falar dele.
— Sim — respondeu Fleetwood lentamente. — ouvi falar dele. — Não olhou ao
Dominic, e este não se atreveu a olhar a ele. — Suponho que desejará que o apóie quando
o apresentar na câmara — acrescentou com naturalidade.
Carlisle lhe dedicou um sorriso de orelha a orelha.
— Sim... Sim, por favor.
Alicia tinha escrito a todas as pessoas das que tinha conseguido lembrar-se, entre as
quais havia um bom número de parentes de Augusto que tinham contraído matrimônio com
membros da aristocracia e com quem não tinha tido contato por outros motivos. A maioria
lhe pareceu insuportavelmente aborrecida, mas pela causa pôde com todas as inibições
que tinha sentido até então.
Quando compreendeu que não ia lembrar se de mais e selado as cartas e mandado
que as levassem ao correio, decidiu dar um passeio pelo parque apesar do tempo chuvoso
que fazia. A alegria que lhe embargava era tal que tinha vontade de fazer exercício, estirar
o corpo e abrir os pulmões. Se não fosse algo absolutamente ridículo, teria gostado de
correr e saltar como uma menina.
Ia dando passadas de uma maneira imprópria de uma dama, com a cabeça erguida,
desfrutando da sóbria beleza das árvores que destacavam sobre as nuvens que cobriam o
céu. Não se ouvia ruído no parque; dos ramos caíam grosas e brilhantes gotas de chuva.
Embora nunca lhe tivesse ocorrido que fevereiro pudesse ter alguma beleza, agora gozava
de sua severa simplicidade e de suas suaves e apagadas cores.
Em um momento dado se deteve para observar um pássaro encarrapitado a uns
ramos, quando de repente lhe chegou ao ouvido uma conversa que se estava
desenvolvendo do outro lado da árvore.
— Seriamente fez isso? — disse uma voz.
Era tão baixa que num primeiro momento Alicia não a reconheceu. A pergunta não
obteve resposta, aparentemente.
— Vêem e conta-me o tudo então — prosseguiu a voz.
De novo se produziu um silêncio, interrompido só por um débil uivo.
— Mas olhe por onde... Que garota mais inteligente.
Então soube de quem se tratava, ou ao menos estava quase segura se soubesse:
aquele acento era muito suave, muito americano para ser de ninguém exceto do Virgilio
Smith.
Mas com quem demônios estava falando?
Então lhe ocorreu uma idéia espantosa: devia estar fazendo recriminações a uma
criada ou uma transeunte. Que horror! E ela topou com ele. Como ia agora sem pôr aos
dois em um apuro que não esqueceriam jamais?
Ficou completamente quieta. A pessoa com a que Virgilio Smith estava falando
continuava sem responder.
— É uma preciosidade. — Sua voz continuava doce e suave. — Um verdadeiro
encanto.
Já não pôde suportar mais continuar ouvindo às escondidas uma conversa que era
de uma intimidade mais que evidente. Deu um passo para afastar-se sigilosamente,
amparando-se atrás do tronco da árvore, a fim de chegar ao atalho. Entretanto seu pé foi
cair sobre um ramo, o qual se rompeu ruidosamente.
Virgilio Smith se levantou e rodeou a árvore; parecia enorme com seu capote, e tão
robusto como a própria árvore.
Alicia fechou os olhos com o rosto aceso de vergonha alheia. Teria dado algo por não
ter sido testemunha de sua desonrosa conduta.
— Bom dia, lady Alicia — disse ele com a mesma suavidade de voz que ela tinha
ouvido antes.
— Bom dia, senhor Smith — respondeu ela, engolindo em seco. Ia ter que esforçarse para sair daquele aperto com certo aprumo. Embora aquele homem fosse americano e
tinha um comportamento social desastroso, ela manteria as aparências a qualquer preço.
Abriu os olhos.
Virgilio Smith estava diante dela, sustentando um pequeno gato manchado que não
deixava de esticar-se e aninhar-se entre seus braços. Ao ver sua expressão de surpresa,
ele baixou a vista e olhou ao gato sem deixar de lhe acariciar suavemente o pelo com os
dedos. Alicia ouvia o animalzinho ronronar.
Virgilio compreendeu que tinha estado ouvindo-o falar com ele e também se
ruborizou.
— OH — disse com certa estupidez. — Não lhe dê importância, senhora. Tenho o
costume de falar com os animais, sobretudo com os gatos. A este em concreto tenho
carinho.
Alicia deixou escapar um profundo suspiro de alívio e se deu conta de que estava
sorrindo como uma idiota. Sentia uma alegria repentina e faiscante. Aproximou-se e tocou
ao gato.
Virgilio Smith também sorria e tinha o rosto iluminado de ternura.
Aquela era a primeira vez que Alicia o compreendia, e sabia do que se tratava. O
sentimento só a surpreendeu por um momento; logo lhe pareceu algo familiar e formoso,
como as folhas ao abrir-se sob os leitosos raios de sol da primavera.
Capítulo 10
Depois de considerar o que era mais razoável e o que podia esperar receber, Pitt
pediu três agentes mais para que o ajudassem na ingrata tarefa de ordenar e identificar as
fotografias achadas na loja do Godolphin Jones.
Concederam-lhe um além do que já tinha.
Enviou-os a ambos ao Resurrection Row com a ordem de averiguar o nome de cada
mulher, assim como sua ocupação e estrato social, mostrando nas fotografias só a cabeça
e sem fazer perguntas ou dar informação sobre o lugar e as circunstâncias em que se
acharam. Seus superiores tinham feito insistência nesta última ordem dando amostras de
uma grande inquietação e sem acabar de decidir-se sobre se não haveria outra maneira de
expor aquele espinhoso assunto. Um delegado tinha chegado a sugerir que possivelmente
seria aconselhável dar a tragédia por sem resolução, desentender-se dela e dirigir a
atenção a outro tema. Havia pendente um desagradável caso de roubo, e seria muito
proveitoso recuperar os bens tirados.
Pitt indicou que Godolphin Jones tinha sido um pintor da alta sociedade e que não se
podia jogar ao esquecimento uma pessoa do Gadstone Park que tivesse sido assassinada;
do contrário os residentes de outras zonas sentiriam naufraga com respeito a sua
segurança no futuro.
A contra gosto, seu argumento foi aceito.
Pitt retornou ao Gadstone Park e foi ver o comandante Rodney. Desta vez não lhe
dissuadiriam nem suas mostras de ira nem seus protestos; já não podia permitir-lhe Se tal
como St. Jermyn tinha sugerido o assassino do Godolphin Jones tinha aproveitado a
profanação de tumbas para ocultar seu crime, então a morte de lorde Augusto carecia de
importância. Não tinha sentido continuar investigando com ideia de achar um vínculo entre
o Albert Wilson, Horacio Snipe, W. W. Porteous e lorde Augusto, porque não o havia. No
referente à causa ou o meio, o assassinato do Godolphin Jones era um caso à parte. A
chave certamente se acharia na loja de pornografia do Resurrection Row, no caderno dos
hieróglifos com forma de inseto ou em ambos.
Havia a possibilidade de que o assassino fosse qualquer das mulheres que
apareciam nas fotografias, ou possivelmente alguém a quem o pintor tivesse chantageado
tal como tinha feito com o Gwendoline Cantlay. De qualquer modo, não havia dúvida de
que o número de aventuras que tivesse tido teria estado fortemente limitado tanto pelo
tempo como pelas oportunidades. No dizer de todos, os encantos do Godolphin Jones não
eram nada espetaculares. Era possível que se prodigalizara em suas adulações, mas as
belezas da alta sociedade estavam acostumadas a isso. Em resumidas contas, Pitt se
inclinava a pensar que suas oportunidades no terreno romântico teriam sido de pouco
alcance; para fazer chantagem devia haver-se valido de outros assuntos, o que o levava
novamente a dirigir sua atenção ao Resurrection Row e as fotografias.
Achava-se ante a porta do comandante Rodney. O mordomo permitiu entrar fazendo
uma expressão de resignação e aceitação própria de alguém habituado a algo
desagradável, mas inevitável. Pitt tinha tido aquela mesma sensação quando uma dor de
dente o tinha obrigado finalmente a ir ao dentista.
O comandante o recebeu com impaciência não dissimulada.
— Não tenho nada mais que acrescentar, inspetor — lhe replicou. — Se não tem
nada melhor que fazer que debulhar o terreno conhecido e incomodar às pessoas, seria
aconselhável que cedesse o caso a um policial mais competente. Está convertendo-se em
um aborrecimento!
Pitt não estava disposto a que o incitassem a pedir desculpas.
— O assassinato é um assunto desagradável e perturbador, comandante —
respondeu com um nó na garganta.
Ao ver que o inspetor crescia, pondo-o em uma situação desvantajosa, o comandante
lhe indicou uma cadeira para que tomasse assento e se sentou em uma poltrona, rígido
como um poste. Daquele modo recuperava a vantagem, pois se achava em uma posição
mais elevada que a do Pitt, quem agora estava fundo em um sofá macio com o capote
desabotoado e o cachecol desenredado devido ao calor da habitação.
Recuperando a confiança, o comandante perguntou com tom autoritário:
— E então? Do que se trata agora? Já lhe disse que mal conhecia o senhor Jones;
minha relação com ele não ia além do que exigem as boas maneiras.
Além disso já lhe mostrei os retratos. Não sei que mais posso lhe dizer. Não sou
homem que se misture nos assuntos alheios e não ponho atenção às maledicências. E não
vou permitir que minhas irmãs repitam aquilo que não puderam evitar que chegue a seus
ouvidos, já que falar é próprio de mulheres, sobre tudo quando se trata de questões
corriqueiras.
Pitt gostaria de discutir isso, podia imaginar o que Charlotte diria ante semelhante
condenação das mulheres), mas o comandante não o teria compreendido e, além disso,
não tinha muito tempo. O comandante não era nem amigo dele nem pertencia a seu
mundo, de modo que não lhe correspondia questionar suas convicções.
— É claro — respondeu. — As maledicências podem fazer muito dano, e costumam
ser falsas. Não obstante, com frequência observei aspectos muito interessantes da
natureza ou da personalidade das pessoas escutando maledicências. O que uma pessoa
diz de outra pode ser falso, mas o fato de que o diga me permite saber...
— Que essa pessoa é um fofoqueiro e um mentiroso! — exclamou o comandante. —
Não sinto mais que desprezo por você ou pela ocupação que lhe obriga a rebaixar-se a
tais vícios — acrescentou olhando ao Pitt com fúria, como querendo fulminá-lo de
indignação.
— Precisamente — disse Pitt assentindo. — O que alguém diga talvez não nos
permita saber nada sobre o objeto de suas palavras, mas sim a respeito de sua pessoa.
— Como?
O comandante estava perplexo e demorou vários segundos em compreender o que
Pitt queria dizer.
— Quando a pessoa abre a boca, existe a possibilidade de que delate ou não a outra
pessoa, mas não há dúvida de que se delata a si mesma — repetiu Pitt. — Acabava de lhe
ocorrer uma idéia relacionada com o comandante Rodney e seus sentimentos pelas as
mulheres.
— Ah! — exclamou este com tom desdenhoso. — Nunca me dediquei a sofismar. Fui
soldado toda minha vida; um homem de ação, não como esses que estão sempre
sentados e falando. Seria bom meter-se no exército; teria se convertido em um homem —
disse fixando— se em sua roupa e em sua postura.
Pitt quase podia ver em seu rosto a imagem do sargento de instrução, o cabeleireiro,
a praça de armas e a milagrosa mudança que todo aquilo podia fazer em um homem.
Sorriu, contente de que o desejo do comandante não se cumpriria jamais.
— É claro, há muitas mulheres com língua viperina — comentou, proporcionando à
comandante as idéias que queria. — E do ócio só se pode aprender a fazer o mal.
O comandante voltou a reagir com surpresa. Não esperava que um policial tivesse
semelhante percepção, e menos ainda o que tinha diante de si.
— Com efeito — disse com um gesto de assentimento. — Por isso faço todo o
possível por manter a minhas irmãs ocupadas em tarefas decentes, domésticas, e é claro
no tipo de estudo para o qual estão capacitadas: o cuidado da casa, a jardinagem, et
cetera.
— E o que me diz de assuntos de atualidade ou um pouco de história? — perguntou
Pitt, lhe levando sutilmente por onde ele queria.
— Assuntos de atualidade? Não diga idiotices, por favor. As mulheres não têm
interesse nem capacidade para tais coisas. Além disso, não é conveniente para elas. Já
vejo que você não conhece muito bem às mulheres.
— Não muito — mentiu Pitt. — Conforme soube, você esteve casado, não é assim?
O comandante piscou. Não esperava aquela pergunta.
— Com efeito. Faz já tempo que minha esposa morreu.
— Sinto— o — disse Pitt com pesar. — Estiveram muito tempo casados?
— Um ano.
— É terrível.
— Isso pertence ao passado. Superei-o faz anos. De todo modo não tive ocasião de
me fazer a isso; de fato mal cheguei a conhecê-la. Era soldado... e estava no estrangeiro,
lutando pela rainha e o país. O preço do dever.
— É claro. — Pitt não tinha que fingir compaixão; à medida que a idéia cobrava forma
em sua mente, ia sentindo em seu interior uma fonte transbordante de amargura. — E as
mulheres nem sempre são as companheiras que se espera — acrescentou.
O rosto do comandante se cobriu de rugas de profunda reflexão, sinal de que estava
recordando antigos desenganos. A realidade era desagradável, mas o fato de aceitá-la
permitia, em certa medida, ter a satisfação de havê-la superado e inclusive uma sensação
de superioridade com respeito a quem ainda tinha que confrontá-la.
— São diferentes dos homens — comentou. — E criaturas superficiais em sua
maioria. Não têm nada do que falar além da moda, seu aspecto e outra estupidez
semelhantes. Sempre estão rindo-se de algo, e um homem não pode suportar isso durante
muito tempo, a menos que seja tão estúpido como elas.
A idéia cristalizou na cabeça do Pitt. Tinha chegado o momento de pô-la a prova.
— Este assunto dos cadáveres é algo extraordinário... — comentou com
naturalidade.
O comandante fez um brusco movimento com a cabeça.
— Os cadáveres? Que cadáveres?
— Não deixam de aparecer. — Pitt lhe escrutinou. — Primeiro o homem da
carruagem de aluguel; depois lorde Augusto; a seguir Porteous; depois Horacio Snipe —
acrescentou percebendo o brilho fugaz que acabava de iluminar os olhos do comandante e
o movimento de seu pomo de Adão. — Conhecia ao Horacio Snipe?
— Nunca ouvi falar dele. — Engoliu em seco.
— Tem certeza, comandante?
— Dúvida de minha palavra?
— Digamos que duvido de sua memória, comandante. — Pitt detestava o que estava
fazendo, mas tinha que continuar, e quanto antes acabasse mais leve seria a dor. — Era
um alcoviteiro e trabalhava na zona do Resurrection Row. O mesmo lugar onde Godolphin
Jones tinha sua loja de pornografia. Possivelmente isto avive sua memória um pouco.
Cravou o olhar nos olhos do comandante e o manteve com uma expressão severa e
franca que fazia impossível qualquer retirada e negava a clemência de uma afetada
ignorância.
As cores se fizeram esperar, mas ao final ruborizaram por completo a manchada pele
do comandante. Tinha um aspecto desagradável, patético, e estava fazendo Pitt sofrer de
uma maneira que não desejava a ninguém. O velho militar não podia ver quão frágil era, a
imagem de pessoa inexperiente que estava oferecendo, os muitos aspectos de sua
personalidade que nunca tinham amadurecido...
Não achava palavras. Não podia reconhecê-lo, mas tampouco se atrevia a continuar
negando-o.
— Era isso com o que Godolphin Jones o estava chantageando? — perguntou Pitt
quedamente. — Sabia sobre a mulher do Horacio Snipe e lhe vendia fotografias?
O comandante aspirou pelo nariz. As lágrimas começaram a cair por suas faces,
apesar de estar furioso consigo mesmo por mostrar-se débil e não suportava que Pitt fora
testemunha disso.
— Eu... eu não o matei! — disse entre soluços enquanto tentava dominar-se. — Por
Deus o digo, eu não o matei!
Pitt não o tinha duvidado nem por um momento. O comandante teria sido incapaz de
matá-lo: necessitava de Godolphin Jones para seus sonhos íntimos, para dispor daquelas
imagens e fantasias com as que podia fazer realidade a autoridade que nunca tinha podido
exercer na vida. O pintor tinha um duplo valor para ele, já que a morte do Horacio Snipe
tinha ocorrido justo antes que o assassinassem, e com ela tinham chegado a seu fim suas
breves e desatinadas aventuras no âmbito das mulheres vivas.
— Não — disse Pitt com calma, — não acredito que o matasse. — levantou-se e
olhou a aquele homenzinho enrijecido, desejando sair à névoa e a garoa e escapar do
desespero que reinava ali dentro. — Sinto que tenha sido necessário abordar este tema.
Não será preciso voltar a falar disso.
O comandante ergueu a vista; tinha os olhos úmidos.
— e... e seu informe?
— Você não é suspeito, comandante. Isso é tudo o que vou dizer.
O comandante fungou. Não tinha forças suficientes para lhe agradecer.
Pitt saiu da casa e respirou a gélida névoa com um sentimento de desafogo, quase
de calidez.
Mas aquilo não era uma solução. De repente o caderno parecia uma pista mais fraca.
A menos que visitasse todos os salões de Londres, não sabia como poderia achar outros
quadros em que apareciam os hieróglifos com forma de inseto. Além disso, não tinha
nenhuma prova de que os proprietários fossem todos vítimas de uma chantagem ou de
qualquer outro tipo de coação. Havia a possibilidade de que também tivessem comprado
fotografias, e de que Godolphin Jones tivesse escolhido aquela discreta e vantajosa
maneira para cobrar seus honorários. Que lhe pagassem suas obras a um preço tão
inflado era uma gratificação dupla, já que aumentava sua reputação como pintor de uma
maneira que nunca teria conseguido mediante sua habilidade profissional. Pitt se sentia
obrigado a admirar seu engenho, embora fosse a única coisa que admirasse nele.
Mas então, se os proprietários dos retratos tinham sido clientes de sua loja de
pornografia, eles seriam os últimos em desejar sua morte. A gente não cortava sua fonte
de fornecimentos, sobre tudo se tratando de algo que desejava vivamente manter em
segredo e ao qual, cabia supor, era de certo modo viciado.
É claro, havia outra possibilidade: que tivesse um rival no mercado. Tratava-se de
uma idéia que não lhe tinha ocorrido antes. O trabalho do Jones era bom; ao menos ele
tinha mais gosto e habilidade que a maioria de quem se dedicava a aquela especialidade.
Todas as fotografias pornográficas que Pitt tinha visto com antecedência lhe tinham
parecido patéticas e de uma banalidade evidente. Eram retratos da nudez e pouco mais.
As do Jones, em troca, tinham certa vontade artística, ainda que fosse decadente. Nelas
se via um pouco de sutileza, um emprego das luzes e das sombras, inclusive certo
engenho.
Sim, era muito possível que alguém dedicado ao ofício se houvesse sentido afastado
do mercado e se rebelara da única maneira que conhecia, uma maneira eficaz e definitiva.
Pitt passou o resto do dia e a totalidade do seguinte falando com seus colegas de
todas as delegacias de polícia em cinco ou seis quilômetros ao redor a partir do Gadstone
Park e Resurrection Row com o propósito de reunir a maior informação a respeito dos
vendedores de fotografias pornográficas.
Quando passadas as sete chegou finalmente a casa e viu que Charlotte estava o
esperando com certa inquietação, sentiu-se incapaz de lhe dar uma explicação e em seu
foro interno lhe agradeceu que não a pedisse. Seu silêncio era a melhor companhia que
podia lhe oferecer. Pitt ficou sentado diante do fogo sem dizer uma palavra até a hora de
deitar-se. Charlotte teve o bom senso de manter-se ocupada fazendo tricô, sem fazer mais
ruído que o entrechocar das agulhas. Ele não queria reviver a dor e a miséria que tinha
visto, a deformação de mentes e emoções que tinha convertido os sentimentos de afeto
em meros apetites, a utilização de tais sentimentos com ânimo de lucro. Quantas pessoas
lastimosas tinha visto aferrando-se a mulheres de papel para fornicar, dominadas pela
fantasia, todo carne e vontade luxuriosa e atemorizada, carentes de coração. E não tinha
averiguado nada útil, exceto que ninguém conhecia nenhum rival do Godolphin Jones que
tivesse tanta necessidade e imaginação para havê-lo matado e enterrado na tumba do
Albert Wilson.
Na manhã seguinte saiu uma vez mais de casa com nada em seu haver exceto a loja
do Resurrection Row e as fotografias. Os dois agentes já se achavam ali quando chegou.
Os dois deram um pulo ao ouvir a porta.
— OH, é você, inspetor Pitt — se apressou a dizer um deles. — Não sabíamos quem
podia ser.
— Tem alguém mais a chave? — perguntou Pitt com um sorriso de ironia e
sustentando a cópia que tinha solicitado.
— Não, senhor, ninguém exceto nós. Mas quem sabe; possivelmente tivesse... —
Não acabou a frase; a idéia de um cúmplice não era muito verossímil e a expressão do Pitt
dava a entender que não havia argumento possível. — Sim, senhor — disse voltando a
sentar-se.
— Virtualmente já as temos todas ordenadas — disse seu companheiro com orgulho.
— Acredito que há umas cinquenta e três garotas diferentes. Muitas aparecem em um bom
número de fotografias. Imagino que não haverá muitas mulheres que possam dedicar-se a
isto.
— Nem que o possam fazer durante muito tempo — acrescentou Pitt abandonando o
tom humorístico. — Depois de passar uns anos na rua e ter vários filhos, é pouco provável
que possam despir-se diante de uma câmara. A câmara de fotos não é um objeto muito
amável; não conta mentiras piedosas. Conhece você a alguma das garotas?
O agente ficou rígido como uma vara; tinha as orelhas totalmente vermelhas.
— Quem? Eu, senhor?
— Profissionalmente — acrescentou Pitt pigarreando. — Refiro a sua profissão, não a
delas!
— OH. — O outro agente passou os dedos pela gola do uniforme. — Sim, senhor, vi
uma ou duas. Dei-lhes alguma vez um aviso para que abandonassem o lugar em que
estavam, retornassem a casa e se comportassem bem.
— Bem. — Pitt sorriu discretamente. — Ponha-as à parte e anote os nomes se se
lembrar deles. Logo me dê a melhor fotografia de todas; quero começar a fazer
indagações.
— A melhor, inspetor?
O agente o olhou com olhos muito abertos e arqueou as sobrancelhas.
— Refiro-me à fotografia em que o rosto se veja com maior clareza! — exclamou Pitt.
— OH... Sim, inspetor. — Os dois agentes rapidamente se voltaram para buscá-las e
ao cabo de uns segundos entregaram ao Pitt umas trinta. — Estas fotografias são as que
temos de momento, senhor. As demais estarão antes da hora de comer.
— Bem. Quando acabarem vão aos bordéis e também às casas de hóspedes. Eu vou
começar Resurrection Row, em direção norte. Vocês podem ir em direção sul. Reuniremos
as seis para ver o que conseguimos.
— Sim, senhor. O que estamos procurando exatamente, inspetor?
— Um amante ou um marido ciumento, ou com maior probabilidade uma mulher que
tenha muito que perder se as pessoas souberem que posou para este tipo de fotografias.
— Uma mulher da sociedade?
O agente pegou uma fotografia e a olhou de soslaio com expressão dúbia.
— Estranharia — disse Pitt. — Cabe a possibilidade de que seja de classe média e
tenha vontade de fazer algo um tanto ousado; embora o mais provável é que se trate de
uma mulher de classe trabalhadora com dificuldades econômicas, ou uma criada com
aspirações.
— De acordo, senhor. Poremo-nos em marcha assim que ordenemos o que fica.
Pitt lhes deixou trabalhando e saiu ao Resurrection Row para começar as pesquisas.
Na primeira casa de hóspedes apagou três nomes da lista. Eram três prostitutas
profissionais e de boa aparência que não tinham tido reparo em ganhar algum dinheiro
extra e divertir-se ao mesmo tempo. Então, quando se dispunha a sair, decidiu
experimentar a sorte lhes mostrando o resto de fotografias.
— Vamos, encanto — lhe disse uma volumosa loira meneando a cabeça. — Não
esperará que lhe dê nomes, não é? O que eu faço é uma coisa, mas falar de outras
garotas é outra muito diferente.
— Encontrarei-as de qualquer modo — indicou ele.
Ela sorriu.
— Que tenha sorte, encanto. E que se divirta procurando.
Não queria dizer nada sobre o assassinato. Tampouco o tinha comentado à
proprietária. Todo mundo sabia que era um crime presidiário com a forca. A sombra do
patíbulo sossegava inclusive às bocas mais loquazes. Se não sabiam, melhor que melhor.
— Só estou procurando uma mulher — acrescentou— para poder eliminar da lista a
todas as demais.
A prostituta entreabriu os olhos, que tinha maquiados de uma cor azul viva, e o olhou
fixamente.
— Por quê? O que fez? Alguém se queixou?
— Não é isso. — Estava sendo totalmente sincero e esperava que se notasse. —
Absolutamente. Que eu saiba, todos seus clientes estão completamente satisfeitos.
Obsequiou-lhe com um sorriso de orelha a orelha.
— Não lhe sobrará alguma libra, encanto?
— Não. — Pitt sorriu de bom humor. — Quero saber quantas destas garotas
trabalham regularmente e não põem reparo a que se saiba que o fazem.
Ela o compreendeu imediatamente.
— Há chantagem no meio, não é verdade?
— Com efeito — respondeu, assombrado por sua percepção; não devia voltar a
menosprezá-la. — Chantagem. Eu não gosto dos chantagistas.
Ela enrugou o rosto.
— Deixa-nos ver de novo então.
Esperançado, Pitt lhe passou uma e a seguir outra.
Depois de olhar a primeira, a prostituta pegou a segunda e, deixando escapar um
assobio, exclamou:
— Por Deus. Que enormidade; certamente não lhe faz falta anquinhas, não é
verdade? Tem um traseiro descomunal.
— Quem é? — perguntou Pitt procurando manter a seriedade.
— Não sei. Me dê outra. Ah, esta é Gertie Tiller. Fez isso para divertir-se. Ninguém
vai chantageá-la por isso. Se alguém o fizesse, mandaria-lhe aonde ela sabe. — Devolveua e Pitt a guardou no bolso esquerdo junto com as outras que já tinha descartado. — E
esta é Elsie Biddock. Está melhor nua que com roupa... Esta é N Jessel, mas esse não é
seu cabelo; deve ser uma peruca. Tem um aspecto realmente estúpido com todas essas
penas.
— Poderia ser chantageada? — perguntou Pitt.
— Impossível. Certamente está orgulhosa de havê-lo feito... A esta não a vi nunca;
suponho que será uma aficionada. Fala com ela, para ver o que lhe diz. Algumas
aficionadas estão mortas de medo; as pobres tratam de conseguir dinheiro por outros
meios porque com o que ganham não lhes chega para comer e pagar o aluguel.
Pitt a guardou no bolso direito.
— A esta tampouco a conheço.
A fotografia foi também ao bolso direito.
— Esta é uma lunática; está como um guizo. Seria impossível chantageá-la; não tem
juízo para assustar-se de nada. Vai com todo tipo de sujeitos. E essa não é muito
diferente.
— Obrigado.
Duas mais descartadas.
A prostituta pegou o resto e as olhou uma por uma.
— Pois sim que tem trabalho, né, encanto? Conheço algumas caras, mas não sei do
que. Tampouco conheço seus nomes. Isto é tudo?
— Foi-me que grande ajuda. Muito obrigado.
— De nada. Poderia falar bem de mim aos policiais da zona?
Pitt sorriu.
— Quanto menos diga, melhor — respondeu. — O mais provável é que se não os
molesta, eles finjam não vê-la e fiquem contentes.
— Vive e deixa viver — disse ela fazendo um gesto de assentimento. — Muito bem,
encanto. Sabe achar a saída?
— Já me arrumarei
Pitt moveu a mão em sinal de despedida e saiu à rua.
Os três lugares aos que foi a seguir lhe permitiram descartar uma dúzia mais de
nomes. A lista se estava cortando rapidamente. De momento não tinha aparecido
nenhuma mulher que pudesse estar relacionada de algum jeito com o caso e menos ainda
envolvida.
Ao entardecer, os três policiais tinham identificado e descartado todos os rostos
exceto meia dúzia.
O dia seguinte foi mais duro, tal como Pitt tinha previsto. Já tinham identificado às
profissionais, por isso agora tinham que procurar as mulheres que se viram obrigadas a
recorrer à rua por causa da pobreza e do medo, as mulheres que se sentiriam humilhadas.
Pitt esperava que fosse uma destas a vítima de uma tragédia que tinha crescido até
converter-se em uma carga insuportável e dar lugar a um assassinato.
Tinha falado com os agentes, provavelmente durante muito tempo e tingindo suas
palavras com os sentimentos de ira e compaixão que o embargavam. Se eles não tinham a
mesma sensação que ele, então seriam incapazes de compreender o que suas palavras
só podiam sugerir. Tinha cobrado consciência disso enquanto falava e apesar disso tinha
contínuo.
Para as dez e meia Pitt já tinha encontrado a duas mulheres que, depois de passar
todo o dia trabalhando em uma fábrica costurando camisas e mantendo as crianças atadas
a uma cadeira, percorriam as ruas de noite para pagar o aluguel. O encarregado da fábrica
lhe olhou de soslaio, mas ele reagiu sem olhar dizendo que só queria achar à testemunha
de um acidente e que, se não estava disposto a prestar à polícia toda sua colaboração, ele
se ocuparia pessoalmente de revistar a fábrica ao menos duas vezes por semana em
busca de objetos roubados.
O homem lhe perguntou bruscamente como tinha em seu poder a fotografia da
mulher se esta era só a testemunha de um acidente.
Pitt não soube o que responder, assim olhou ao encarregado com gesto irado e lhe
disse que se tratava de um segredo policial e que, a menos que desejasse ter com a
polícia uma relação mais estreita da que já tinha, mais lhe valeria não meter-se onde não o
chamavam.
Com aquela resposta Pitt conseguiu que o encarregado mantivesse o silêncio
desejado em torno do tema, admitisse a contra gosto que ao menos duas daquelas
mulheres trabalhavam para ele e lhe dissesse que podia falar com elas se fosse
necessário, mas que se apressasse, pois o tempo daquelas mulheres era ouro. Talvez aos
policiais lhes pagasse para andar por aí de bate-papo, mas elas não tinham a mesma
sorte.
A tarde consistiu virtualmente no mesmo. Pitt foi encontrando mulheres assustadas,
arrependidas do que faziam e temerosas de que saísse à luz, mas incapazes de arrumarse com o dinheiro que lhes pagavam os encarregados das fábricas, e espantadas dos
asilos para desamparados. Queriam a toda custa manter a seus filhos longe do desespero
institucionalizado e regulamentado dos asilos. Temiam perdê-los por adoção, pois daquele
modo talvez nunca voltariam a vê-los nem saberiam sequer se tinham sobrevivido e
chegado à maturidade. O que significava tirar a roupa por uma hora ou duas para
deslumbrar a um homem anônimo a quem nunca voltariam a ver em troca do dinheiro
suficiente para
viver durante um mês?
Às nove, quando retornou à delegacia de polícia com a calça e as botas empapadas
de água e uma destilação de chuva pelo cangote, já tinha encontrado duas exceções.
Alguém era uma ambiciosa e rebelde criada que sonhava fazendo-se rica e abrir sua
própria chapelaria. A outra era totalmente diferente: uma mulher muito experimentada de
quase trinta anos, bela, cínica e, evidentemente, de grande êxito nos melhores escalões do
mercado profissional. Depois de admitir sem nenhum reparo que tinha posado para as
fotografias, tinha desafiado ao Pitt a provar que aquilo constituía delito. Se certos
cavalheiros gostavam das fotografias, era assunto seu. Podiam permitir-lhe e se Pitt era
bastante estúpido para insistir no assunto e ficar pesado, era muito possível que tivesse
que enfrentar com algum cavalheiro de recursos consideráveis e alta posição social e que
acabasse pilhando os dedos.
Tinha aposentos em um lugar cômodo, não causava problemas e pagava o aluguel.
Se a visitavam cavalheiros, que importância tinha? Tinha-lhe assegurado que não tinha
marido, amante ou protetor, e ainda menos fanfarrão, alcoviteiro ou nada que se
parecesse, e pela confiança com que o havia dito, ao Pitt tinha sido impossível duvidar
dela.
Entrou em seu escritório cansado e decepcionado. Suas esperanças se cifravam na
criada ambiciosa, quem lhe tinha assegurado que não havia nenhum homem para quem as
fotografias
pudessem
ser
motivo
de
preocupação,
exceto
talvez
seu
senhor.
Evidentemente, ela tinha que estar nervosa e inclusive angustiada ante a possibilidade de
perder o trabalho e o teto que a cobria.
Os agentes estavam esperando-a.
— E então? — perguntou Pitt, e a seguir se deixou cair na cadeira e tirou as botas.
Tinha as meias três-quartos tão molhadas que quando as escorreu jorraram água.
Certamente tinha pisado em algum atoleiro. Ou vários.
— Não averiguei grande coisa — respondeu um deles sombriamente. — Só encontrei
o que cabia esperar. Pobres desventuradas... Não imagino a nenhuma delas assassinando
a ninguém, e menos ainda ao único sujeito que lhes pagava uma soma decente de
dinheiro. Suponho que para elas seria uma espécie de Aguinaldo.
O outro agente se ergueu na cadeira para falar.
— A maioria das que vi se acha na mesma situação. Isso sim, topei-me com algumas
verdadeiras peritas que vivem em umas casas que não me importaria ir de visita e não
digamos já de viver. Qualquer sujeito que as visite para divertir-se tem que dispor de
dinheiro a torrentes.
Pitt o olhou fixamente sustentando uma meia três-quartos molhada com uma mão e
esquecendo-se de tirar as secas da gaveta.
— Que casas? — perguntou.
O agente leu os endereços. Alguma coincidia com a das mulheres que Pitt tinha
encontrado; a outra era distinta, mas se achava na mesma zona. Três prostitutas que
trabalhavam por conta própria? Ah coincidência. Ou seria um bordel muito discreto?
Pitt não desejava outra coisa que ir para casa; de fato já estava mentalmente nela,
com os pés secos, uma tigela de sopa quente em frente e o sorriso de Charlotte ante seus
olhos.
Os agentes perceberam a mudança de expressão de seu rosto e se resignaram. Eles
eram agentes e Pitt era o inspetor; não havia nada que fazer. Nos bordéis se trabalhava
fundamentalmente de noite.
Fazia tempo que Charlotte se acostumara a que Pitt retornasse a casa de forma
imprevista e a altas horas da noite. Não obstante, quando não voltava antes das onze, não
podia continuar fingindo despreocupação. A pessoa, fosse do tipo que fosse, sofria
acidentes e assaltos pela rua; os policiais em concreto corriam o risco de ser atacados por
misturar-se nos assuntos das pessoas que ganhavam a vida mediante o delito. O cadáver
de um homem assassinado podia ser arrojado ao rio, a um esgoto ou simplesmente
abandonado em uma fábrica, onde jamais o identificariam. Quem distinguiria o cadáver de
um indigente do de outra pessoa?
A meia-noite, quando quase se convenceu de que algo espantoso tinha acontecido,
ouviu a porta. Correu pelo corredor e se jogou sobre ele. Estava empapado até os ossos.
— Onde esteve? — perguntou-lhe. — É meia-noite. Está ferido? O que lhe
aconteceu?
Pitt notou o crescente medo na voz de Charlotte e guardou a resposta que se
dispunha a lhe dar. Rodeou-a com os braços e a abraçou com força, sem preocupar-se de
lhe molhar o vestido com a água que ainda lhe jorrava do capote.
— Vigiando um bordel de alta categoria — respondeu sorrindo e com o rosto apoiado
sobre sua cabeça. — Se surpreenderia saber a quem vi entrar nele.
Charlotte o afastou sem deixar de lhe agarrar pelos ombros.
— E que me importa? — exclamou. — Em que caso trabalha agora?
— Ainda no do Godolphin Jones. Podemos ir à cozinha? Estou gelado.
— OH! — olhou-se a si mesmo com gesto de contrariedade e acrescentou —: Mas se
está empapado!
Deu meia volta e, seguida pelo Pitt, voltou rapidamente para a cozinha. Depois de
jogar mais carvão ao fogo, tirou-lhe todas as roupas de casaco que levava e a seguir as
botas e as meias três-quartos novas. Depois preparou chá no bule que tinha estado
esquentando toda a noite; enquanto esperava a volta do Pitt, levantou-se em cinco
ocasiões para lhe acrescentar água.
— O que tem que ver Godolphin Jones com os bordéis? — perguntou quando
finalmente se sentou frente a ele.
— A única coisa que sei é que as mulheres que fotografava trabalhavam em bordéis.
— Pensa que uma delas o assassinou? — Seu rosto só refletia dúvidas. — A uma
mulher deve ser extremamente difícil estrangular um homem. Para fazê-lo primeiro teria
que narcotizá-lo ou golpeá-lo... De qualquer modo, por que teria uma dessas mulheres que
assassinar ao Godolphin Jones? Acaso não lhes pagava?
— Era um chantagista. — Pitt não lhe tinha contado o do Gwendoline Cantlay e o
comandante Rodney. — Os chantagistas são assassinados com frequência.
— Não estranho. Acha que uma delas poderia ter recebido uma oferta de matrimônio
ou algo semelhante e queria destruir as fotografias?
Aquele era um motivo no que Pitt já tinha pensado. As prostitutas se casavam
frequentemente, em seu melhor momento, antes que lhes danificasse o físico e
empreendessem o lento processo que as levaria a bordéis de pior categoria, ganhar cada
vez menos e serem vítima de diversas enfermidades. Sem dúvida era uma possibilidade.
— por que foi vigiar o bordel? O que tirou indo ali?
— Em primeiro lugar, não tinha certeza de que fosse um bordel...
— Mas o era.
— Sim, ou, para ser mais exato, um grupo de apartamentos empregados com esse
propósito. É um lugar um pouco mais luxuoso que um bordel, menos comunal...
Charlotte enrugou o rosto, mas não disse nada.
— Pensei que poderia achar um alcoviteiro ou um fanfarrão. Alguém assim teria tido
um excelente motivo para desfazer-se do Godolphin Jones. É possível que Jones
estivesse aproveitando-se de suas mulheres e lhes pagando uma quantidade superior, e
que ele não recebesse sua parte correspondente.
Olhou— a. — As frigideiras areadas brilhavam sobre o aparador que havia a suas
costas; uma delas estava um pouco torcida e tinha perdido o cabo.
— Acho que é ali onde vamos achar ao assassino. — Pitt se estirou e ficou em pé.
Agora que já não calçava as botas, os pés tinham deixado de lhe doer. — O mais certo é
que se trate de alguém que não tem relação nem com o Gadstone Park nem com as
profanações de tumbas. Ao fim e ao cabo só se aproveitou destas. Vamos para cama. Fezse muito tarde.
Pela manhã Charlotte serviu a papa de aveia com gesto grave e a seguir se sentou
em frente do Pitt sem servir uma porção para si nem preocupar-se por Jemima.
— Thomas?
Este acrescentou o leite à papa e começou a comer; não havia tempo que perder.
Levantaram-se um pouco tarde.
— O que?
— Dizia que Godolphin Jones era um chantagista, não é assim?
— Sim.
— A quem chantageava e por quê?
— Não foram suas vítimas que o assassinou.
— Quem foram suas vítimas?
Como a papa estava muito quente, viu-se obrigado a esperar e, enquanto o fazia,
perguntou-se se Charlotte o teria feito de propósito.
— Gwendoline Cantlay, por uma aventura sentimental, e o comandante Rodney,
porque era um de seus clientes. Por quê?
— Não existe a possibilidade de que chantageasse a um fanfarrão ou a um
alcoviteiro? Do que poderiam estar assustados?
— Não sei. É mais provável que fosse por cobiça, por rivalidade profissional.
Voltou a provar a papa, embora desta vez com precaução.
— Ontem à noite disse que as casas em que trabalham essas mulheres são melhores
que os bordéis normais.
— Assim é. São lugares de qualidade. No que está pensando, Charlotte?
Olhou-o com olhos muito abertos e expressão de franqueza.
— A quem pertencem essas casas?
Ele ficou com a colher a meio caminho da boca.
— A quem pertencem? — disse lentamente olhando-a com fixidez ao mesmo tempo
em que a idéia tomava forma em sua cabeça.
— Às vezes os donos dessa classe de propriedades são pessoas muito estranhas —
respondeu ela. — Me lembro que papai conheceu alguém que ganhava dinheiro
arrendando um imóvel que utilizavam como fábrica. Quando nos inteiramos deixamos de
nos relacionar com ele.
Pitt jogou leite sobre o resto da papa e a comeu em cinco colheradas; calçou as
botas, que ainda estavam úmidas; pegou o casaco, o chapéu e o cachecol e saiu da casa
como se esta fosse um navio que estivesse indo-se a pique. Ao Charlotte não era preciso
que lhe explicasse nada. As idéias do Pitt foram na mesma direção que as suas, e
compreendia a situação.
Custou-lhe três horas averiguar quem era o dono daquelas propriedades e de seis
mais do mesmo tipo.
Edward St. Jermyn.
Lorde St. Jermyn ganhava dinheiro graças ao aluguel dos bordéis e à percentagem
que lhe pagava cada prostituta, e Godolphin Jones se inteirou disso. Era esta a razão pela
qual lhe tinha comprado o retrato? Negou-se logo a continuar lhe pagando? Aquilo era um
bom motivo para cometer um assassinato.
Poderia Pitt demonstrá-lo?
Nem sequer sabiam em que dia se cometeu o assassinato. Demonstrar que St.
Jermyn tinha ido ao Resurrection Row logo que significava nada. Ao Jones tinham
estrangulado: qualquer homem forte (e algumas mulheres) poderiam tê-lo feito. Não
precisava seguir a pista de nenhuma arma.
Jones se tinha dedicado à pornografia e a chantagem; as pessoas com motivos para
matá-lo podiam contar-se por dúzias. St. Jermyn teria conhecimento de tudo isto, e
entretanto Pitt nem sequer poderia obter uma ordem judicial.
O que precisava era um vínculo mais estreito, algo que chegasse aos dois homens
de uma maneira mais irremediável que como tinham estado ligados o comandante
Rodney, lady Cantlay ou as mulheres que apareciam nas fotografias.
A casa maior tinha uma encarregada que sem dúvida seria a madama que guardava
o dinheiro, cobrava o aluguel e as percentagens e os entregava ao St. Jermyn ou à pessoa
que este designasse.
Pitt saiu à rua e pôs-se a andar com rapidez. Sabia aonde ia e o que se propunha.
Chamou uma carruagem, subiu, deu a direção ao cocheiro e fechou a porta de repente.
A seguir se reclinou no assento e planejou sua ofensiva.
A rua estava vazia e a casa em silêncio. O vento soprava com força e espalhava a
água que caía do céu cinza. Uma criada saiu aos degraus do pátio e desapareceu. Poderia
ser uma de tantas residências acomodadas durante a hora prévia ao almoço.
Pitt despediu o cabriolé e se dirigiu à porta principal. Não tinha ordem judicial e não
achava que pudesse consegui-la alegando só suas conjeturas. Entretanto, tinha quase o
convencimento de que St. Jermyn tinha matado ao Godolphin Jones e de que o motivo
tinha sido o fato de estar informado da fonte de seus ganhos. Certamente era motivo
suficiente, sobre tudo se St. Jermyn aspirava a ocupar um posto de importância no
Governo graças à imagem de grande reformador que lhe conferiria o projeto de lei sobre
os asilos para desamparados.
Pitt levantou a mão e bateu com firmeza à porta. Não lhe agradava o que ia fazer;
não era seu modo de trabalhar. Entretanto, se não o fizesse ficaria sem prova, e não podia
deixar escapar ao St. Jermyn, apesar do projeto de lei. Além disso, tinha pensado deixar a
confirmação da prova definitiva, em caso de que conseguisse dar com ela, para quando o
projeto de lei tivesse sido aprovado pela câmara. Um assassino, nem sequer da categoria
do St. Jermyn, não podia ficar impune.
Abriu a porta uma jovem de aspecto belo vestida de negro e com uma touca de renda
e um avental.
— Bom dia, senhor — disse com serenidade. Ao Pitt lhe ocorreu que possivelmente
naquele lugar se trabalhava inclusive ao meio dia.
— Bom dia — respondeu ele com um amargo sorriso. — Poderia falar com sua
senhora, encarregada-a dos apartamentos?
— Não há nenhum em aluguel, senhor — lhe advertiu a jovem sem afastar-se da
soleira da porta.
— Já supunha — respondeu ele com um gesto de assentimento. — De qualquer
modo, desejaria falar com ela, por favor. É uma questão de negócios relacionada com o
proprietário do imóvel... Acredito que o melhor será que me permita entrar; não é um
assunto que deva tratar-se no portal de uma casa.
A jovem tinha certa experiência. Sabia para que se utilizava a casa, e adivinhava o
alcance do que Pitt acabava de dizer. Assim, deixou-o entrar.
— Bem, senhor. Se me acompanhar, irei ver se a senhora Philp está em casa.
— Obrigado.
Pitt a seguiu até uma sala extremamente acolhedora e mobiliada com discrição, em
cuja lareira ardia o fogo vivamente. Só teve que esperar uns minutos para ver aparecer à
senhora Philp. Tratava-se de uma mulher roliça, levemente gordinha, que, entretanto se
vestia com elegância e trazia o rosto, apesar da hora que era, maquiada para ir a um baile.
Não era preciso que dissessem a Pitt que se tratava de uma prostituta de êxito que tinha
passado seu melhor momento e tinha sido promovida de trabalhadora a gerente. Sua
roupa era de qualidade e suas jóias de clarão, embora para Pitt parecessem autênticas.
Quando entrou na sala e fechou suavemente a porta, olhou-o com olhos severos e
ardilosos e disse:
— Não o conheço.
— É afortunada. — Pitt seguia de pé, perto do fogo. — Não estou acostumado a me
ocupar do vício, e menos ainda do desta classe.
— Um policial... — disse ela imediatamente. — Não poderá provar nada, e seria um
estúpido se o tentasse.
Os cavalheiros que vêm aqui não agradeceriam.
— Não me cabe dúvida — comentou Pitt assentindo. — De todo modo, não penso
em lhe fechar o negócio.
— Não vou pagar lhe nada — lhe assegurou ela lhe lançando um olhar de desdém.
— vá dizer a quem quiser. Já verá o que consegue desse modo.
— Tampouco tenho interesse encontrar a alguém.
— Então o que quer? Algo quererá! Algum serviço a baixo preço?
— Não, obrigado. Só quero um pouco de informação.
— Se pensar que vou dizer lhe quem vem por aqui, é você mais estúpido do que
pensava. Suborno, né? Mandarei que o expulsem e lhe dêem tal surra que nem sua mãe
poderá reconhecê-lo.
— É possível, mas me importa um nada quem vem por aqui.
— Então o que quer? Não terá vindo aqui por curiosidade.
— Vim por Godolphin Jones.
— Quem?
Mas tinha titubeado por uma fração de segundo, o tempo que dura uma piscada.
— Ouviu-me perfeitamente. Godolphin Jones. Tenho certeza de que você é uma
pessoa muito competente dirigindo qualquer assunto relacionado com a prostituição. Tem
a suficiente prática para burlar à maioria. Mas o que me diz do assassinato? Este é meu
trabalho, demonstrar que se cometeu um assassinato.
O ruge se acentuou nas faces da mulher. Sem ele teria continuado tendo um formoso
rosto.
— Não sei nada sobre nenhum assassinato!
— Godolphin Jones conhecia esta casa e o negócio que se leva a cabo nela porque
fotografava a várias garotas dela.
— E o que tem se o fazia?
— Chantagem, senhora Philp.
— A mim não me podia chantagear. Para que? A quem ia dizer se o E o que pode
fazer você a respeito? Não vai prender-me. Aqui vem muita gente rica e poderosa; você
sabe.
— Não chantageava a você, senhora. Você é o que é; não finge ser outra pessoa.
Mas me diga, quem é o proprietário deste edifício? — Ela empalideceu, mas não
respondeu. — A quem paga o arrendamento, senhora Philp? — prosseguiu Pitt. — Quanto
cobra das garotas? Cinquenta por cento? Mais? Quanto lhe dá cada fim de semana? Ou o
entrega no fim do mês?
Ela engoliu em seco.
— Não sei! Não sei como se chama!
— Mente! É o senhor St. Jermyn, sabe tão bem como eu. Não pagaria a um
proprietário que não conhecesse. Você é muito viva para fazer algo assim. Certamente
terá um contrato perfeitamente detalhado, embora não seja por escrito.
A senhora Philp voltou a engolir em seco.
— E o que? O que acontece se assim for? Né? Você não pode fazer nada!
— Chantagem, senhora Philp.
— Vai chantageá-lo? Ao St. Jermyn? Você é um estúpido! Um louco!
— Por quê? Porque acabaria morto? Como Godolphin Jones?
Ela o olhou com os olhos esbugalhados; por um momento Pitt pensou que ia
desmaiar. De sua garganta saía um som peculiar, rouco e seco, uma espécie de ofego
abafado.
— Matou você Jones, senhora Philp? Parece bastante forte para isso. Foi
estrangulado, sabia?
— Por amor de Deus... Não fui eu!
— Talvez.
— Juro! Nem sequer me aproximei desse pobre desgraçado, exceto para lhe dar o
dinheiro. por que teria que matá-lo? Levo uma casa; é meu negócio, mas juro Por Deus
que jamais matei a ninguém.
— Que dinheiro, senhora Philp? O dinheiro que lhe dava St. Jermyn para mantê-lo
calado?
No rosto da mulher se desenhou uma expressão de astúcia, mas em seguida
desapareceu para dar lugar a uma careta de incerteza.
— Não, não disse isso. Que eu saiba, o dinheiro era para pagar uma série de
quadros que Jones ia pintar: os retratos do St. Jermyn e todos seus filhos. Eram meia
dúzia ou mais. Jones queria o dinheiro adiantado, e este era o melhor lugar para conseguir
dinheiro em efetivo. Tínhamos os lucros de várias semanas. St. Jermyn não podia tirar
tudo de seu banco.
— Não — disse Pitt assentindo. — Certamente não podia nem queria fazê-lo. O
problema é que o dinheiro não apareceu nem no cadáver do Jones nem na loja que tinha
no Resurrection Row, nem em sua casa, e tampouco foi posto em seu banco.
— O que diz? Que o gastou?
— Estranharia. Quanto era...? Mais vale que não se equivoque. Uma mentira e a
prenderei por cúmplice de assassinato. E já sabe o que isto significa: a corda.
— Cinco mil libras! — exclamou ela imediatamente. — Cinco mil, juro Por Deus!
— Quando exatamente?
— Em doze de janeiro ao meio-dia. Esteve aqui, e depois foi diretamente ao
Resurrection Row.
— E foi assassinado pelo St. Jermyn, que recuperou assim as cinco mil libras.
Acredito que se consultar ao banco, algo que não será difícil com a informação que você
acaba de me dar, averiguarei que essas cinco mil libras, ou uma quantia aproximada,
foram reembolsados, o que demonstrará que sua senhoria assassinou ao Godolphin Jones
e por que. Obrigado, senhora Philp. A menos que deseje dançar na corda junto a ele,
prepare-se para ir ao julgamento e contar sob juramento a mesma história que me referiu.
— Se o fizer, do que me acusará?
— De assassinato não, senhora Philp; e se tiver sorte, nem sequer de dirigir um
prostíbulo. Se contribuir com provas condenatórias, existe a possibilidade de que façamos
vista grossa.
— Promete-o?
— Não, não o prometo. Não posso fazê-lo. O que sim posso prometer é que não a
acusarão de assassinato. Que eu saiba, não há nenhuma prova de que você soubesse
algo sobre isso. E, por agora, eu não tenho intenção de investigar.
— Eu não o fiz! Ponho a Deus por testemunha.
— Isso o deixo em mãos de Deus, como você sugere. Bom dia, senhora Philp.
Pitt deu meia volta e saiu, deixando que a criada lhe abrisse a porta da rua. A
nevasca tinha cessado e o sol brilhava com uns úmidos raios branco azulados.
O que fez a seguir foi retornar ao Gadstone Park, mas não a casa do St. Jermyn, mas
a de tia Vespasia. Só necessitava uma última prova, uma declaração do banco do St.
Jermyn, se o dinheiro se achava nele, ou, em seu erro, uma ordem judicial para revistar
sua casa, apesar de ser muito pouco provável que guardasse tal quantidade de dinheiro
em efetivo em uma cofre da casa. Era mais dinheiro do que a maioria de homens
ganhavam em uma década e mais do que um bom criado podia ganhar em toda uma vida.
Além disso, antes do pagamento se teria realizado uma retirada de capital do banco,
ou a venda de alguma propriedade; em todo caso, não seria difícil averiguá-lo. Tal como
havia dito a senhora Philp, St. Jermyn não teria podido reunir tal soma em efetivo;
certamente teria tido que pedir um empréstimo.
Não obstante, antes de levar a cabo uma ação tão decisiva, Pitt queria que tia
Vespasia lhe dissesse o dia exato em que o projeto de lei ia ser apresentado ante o
Parlamento. Se existisse alguma maneira de adiar sua última e inevitável tarefa, faria-o, ao
menos durante esse tempo.
Tia Vespasia o recebeu sem dar amostras do humor ácido que a caracterizava.
— Boa tarde, Thomas — disse com uma nota de cansaço. — Suponho que se trata
de uma visita de trabalho, porque não acredito que tenha vindo a almoçar, não é verdade?
— Não, tia Vespasia. Peço-lhe desculpas por vir à uma hora tão inoportuna.
Ela tirou importância a suas palavras fazendo um leve gesto.
— Bem, que deseja me perguntar desta vez?
— Quando se apresenta o projeto de lei ante o Parlamento?
Tinha o olhar cravado no fogo; voltou-se lentamente para ele e o olhou com olhos
brilhantes e fatigados.
— Por que quer saber?
— Acredito que já conhece a resposta a essa pergunta — respondeu Pitt com voz
calma. — Não posso permitir que o que fez fique sem castigo.
Tia Vespasia deu levemente de ombros.
— Suponho que não, mas não poderia deixá-lo até que se apresentasse o projeto de
lei? Amanhã pela tarde já teria acabado tudo.
— Por isso vim perguntar-lhe.
— Pode fazê-lo?
— Sim, posso postergá-lo até então.
— Obrigada.
Pitt não se deu ao trabalho de lhe explicar que o fazia porque acreditava nisso e tinha
tanto interesse como ela ou Carlisle em que saísse adiante, e provavelmente mais que St.
Jermyn. Certamente ela já sabia.
Não ficou. Tia Vespasia não ia se pôr em contato com o St. Jermyn. Em realidade
não faria nada, exceto esperar.
Pitt retornou à delegacia de polícia, obteve as ordens para a casa e o banco e
arranjou para consegui-las muito tarde para executá-las nesse mesmo dia. Ás cinco já
estava em casa, sentado ao lado do fogo, comendo pão-doces e brincando com a Jemima.
Na manhã seguinte começou a trabalhar tarde e com lentidão, e até última hora da
tarde não conseguiu reunir todas as provas a sua inteira satisfação e tramitar a ordem
correspondente para prender o St. Jermyn.
Acompanhado por um só agente, dirigiu-se ao Westminster, à Câmara dos Lordes, e
aguardou em uma das salas que a votação terminasse e suas senhorias acabassem a
jornada.
A quem viu em primeiro lugar foi a tia Vespasia, que ia muito elegante com a cabeça
erguida. Pelo enrijecimento de seu porte, a rigidez de seu andar e a fixidez de seu olhar
Pitt adivinhou que tinham fracassado. Como tinha podido ele conceber esperanças?
Deveria ter tido mais perspicácia e um conhecimento mais profundo da realidade. Tinha
sido algo prematuro, feito muito cedo... A decepção cresceu em seu interior como uma
náusea, como uma dor tangível.
Continuariam lutando, é claro, e no devido momento, ao cabo de cinco ou dez anos,
ganhariam. Mas ele o queria agora, porque dentro de dez anos seria muito tarde para
salvar aquelas crianças.
Atrás de tia Vespasia saiu Somerset Carlisle. Como atraído pelo pesar que
embargava ao Pitt, voltou-se e olhou nos olhos. Inclusive naquele momento de derrota
havia em seu olhar uma expressão de amarga ironia, algo semelhante a um sorriso.
Saberia ele, assim como tia Vespasia, qual era o motivo de sua presença ali?
Pitt avançou entre a multidão em direção a eles; só era vagamente consciente de que
o agente se aproximava pelo outro lado. St. Jermyn se achava atrás do Carlisle e tia
Vespasia. Mal parecia afetado. Tinha oferecido uma boa batalha, uma batalha para a
memória. Possivelmente isso fosse o único que lhe importava realmente.
Tia Vespasia estava falando com alguém com as costas um pouco encurvadas. A Pitt
nunca tinha parecido tão anciã. Talvez soubesse que não ia viver para ver a aprovação do
projeto de lei. Dez anos era muito tempo para ela.
Pitt se fez a um lado para ver com quem estava falando, que, além disso, a pegava
pelo braço lhe servindo de apoio. Esperava que não fora lady St. Jermyn.
Agora estavam a uns metros de distância. Pitt viu que o agente estava tomando
posição para impedir qualquer escapada.
Estava virtualmente em frente deles.
Tia Vespasia se voltou e o olhou. Era Charlotte quem estava a seu lado.
Pitt se deteve. Estavam cara a cara, o agente e Pitt por um lado e St. Jermyn, Carlisle
e as duas mulheres pelo outro.
Como se por um momento tivesse perdido o juízo, Pitt se perguntou se Charlotte teria
sabido desde o primeiro momento quem tinha matado ao Godolphin Jones, mas em
seguida desprezou a idéia. Não tinha podido adivinhá-lo de maneira nenhuma, e se o tinha
averiguado recentemente ele nunca saberia.
— Senhor — disse com voz calma olhando ao St. Jermyn nos olhos.
Este o observou com expressão de surpresa; então, adivinhando o que significava o
olhar do inspetor, a certeza que havia nele, o implacável e irrevogável conhecimento dos
fatos, mostrou finalmente um vislumbre de temor.
Ao Pitt só ficava uma peça por encaixar. Olhando ao St. Jermyn, observando como
em seu olhar se refletia a aceitação da derrota, enquanto que a arrogância permanecia,
junto com o ódio e inclusive, agora, o desprezo por sua pessoa, como se tivesse sido o
azar ou má sorte o que o tinha vencido e não a habilidade de outra pessoa, não conseguia
ver nele a estranha imaginação, o escuro engenho que o tinha levado a deixar ao ancião
lorde Augusto no banco de sua família na igreja, ao Horacio Snipe sobre sua própria
tumba, ao Porteous no parque e ao desventurado Albert Wilson na boléia de uma
carruagem de aluguel. St. Jermyn devia ter sabido que a tumba do Wilson acabaria sendo
descoberta com o Godolphin Jones em seu interior. Não podia ter tido a esperança de
permanecer impune. Como era possível que tivesse depositado suas ambições no futuro?
O projeto de lei era só um passo no caminho para um ministério e tudo o que este
supunha.
Para profanar aquelas tumbas era preciso ser um homem apaixonado, um homem a
quem importasse o projeto de lei o suficiente para servir-se de todo seu humor negro com
o propósito de evitar a detenção do St. Jermyn durante o tempo necessário...
Seu olhar se desviou para o Carlisle.
É claro.
St. Jermyn tinha matado ao Godolphin Jones, certo, mas Carlisle se inteirou disso,
possivelmente tinha sentido medo, tinha-o seguido e tinha encontrado o cadáver. Era ele
quem, uma vez St. Jermyn se fora, tinha-o enterrado na tumba do Albert Wilson e tinha
movido os cadáveres um a um para manter ao Pitt confundido durante o tempo necessário.
Assim se explicava que St. Jermyn tivesse reagido com tanta perplexidade quando Jones
tinha aparecido na tumba do Wilson e não no Resurrection Row.
Carlisle o estava olhando fixamente, com o vislumbre de um sorriso de amargura nos
olhos.
Pitt respondeu lhe dirigindo a sua vez um leve sorriso. Então se voltou para o St.
Jermyn e pigarreou. Jamais poderia provar o que tinha feito Carlisle, nem desejava fazê-lo.
— Edward St. Jermyn — disse cerimoniosamente. — Em nome da rainha, prendo-o
pelo assassinato premeditado do Godolphin Jones, pintor, no Resurrection Row.
***

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