nº 32 - Editorial Franciscana

Transcrição

nº 32 - Editorial Franciscana
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
32
Editorial Franciscana
BRAGA - 2008
1
Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: [email protected]
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 32 - 2008
Cada número dos Cadernos é vendido avulso
2
Índice
I — Estudos
1. Fr. Bernardo de Besse
—
Louvores de S. Francisco – Crónica Franciscana
2. Fr. Thaddée Matura
— Reflexão sobre as referências da identidade franciscana
ao longo de oito séculos
3. Fr. Gonçalo Figueiredo
— Cristo e Francisco – Grande Rei e poeta cantador
da natureza e da fraternidade
3
I — Estudos
Crónica de Fr. Bernardo de Besse
LOUVORES DE S. FRANCISCO
5
LOUVORES DE S. FRANCISCO
Introdução
Pouco se sabe sobre a vida de Fr. Bernardo Besse. As Crónicas da
Província da Aquitânia apresentam-no como sendo membro daquela
Província, companheiro de viagem e secretário de S. Boaventura1. Outra
fonte de informações sobre Bernardo de Besse é a Crónica dos Ministros
Gerais da Ordem dos Frades Menores também conhecida como Crónica
dos XXIV Gerais da Ordem dos Menores2. Aí encontramos mais alguns
dados sobre a sua vida e sobre os seus Escritos.
É considerado o autor da obra Chronicon XIV vel XV Generalium
Ministrorum Ordinis fratrum Minorum seu Catalogus ‘Gonsalvinus’
dictus Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum3. O estudo que
Ehrl publicou sobre o Catalogus, em 1883, sustenta que, uma vez que fala
da canonização de S. Luís, que foi em 1297, Bernardo Besse teria
trabalhado nesta obra pelo menos até essa data, possivelmente até 13054.
Embora isso não seja aceite por todos os comentadores, dá uma ideia
—————
1
Cf. Fontes Franciscani, Edizioni Porziuncola, 1995, p.1245.
2
A Imprensa da Universidade de Coimbra publicou, em 1918, o texto de um códice
medieval, um manuscrito do século XV, até então desconhecido do público, guardado na
altura na Biblioteca Pública de Lisboa sob o nº 94. José Joaquim Mendes, Sócio
correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, interessou-se pelo texto, publicando-o então pela primeira vez. Deu-lhe o título de Crónica da Ordem dos Frades Menores,
mas o título original é Crónicas dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores, e
corresponde na sua totalidade com a Crónica dos XXIV Gerais ou Crónica dos Ministros
Gerais da Ordem dos Frades Menores. O texto em português, uma tradução do século XV
da respectiva obra, vai só até ao décimo Geral. Citamos este texto.
3
Cf. Analecta Franciscana, III, pp. 693-707;
4
F. EHRLE, Zur Quellenkunde der älteren Franziskanergeschichte. Der Catalogus
Ministrorum generalium des Bernhard von Besse, em Zeitschrift für katholische Theologie,
7(1883), pp. 323-52:Cf. Fontes Franciscani, pp. 1245-46.
7
sobre a época em que viveu Bernardo de Besse. Outra obra que lhe é
atribuída é o Espelho de Disciplina5.
A obra mais conhecida é o Liber de Laudibus Beati Francisci6,
publicado muitas vezes com o título Crónica de Bernardo de Besse. Na
Crónica da Ordem dos Frades Menores, quando relata os factos e feitos
do sexto Geral, Fr. Crescêncio, é dito que “… foi eleito no capítulo geral
que foi celebrado no ano do Senhor de mil e duzentos e quarenta e cinco,
no qual capítulo o dito Geral mandou a todos os frades que possuíssem
em espírito qualquer coisa que se pudesse saber verdadeiramente da vida
e milagres e sinais maravilhosos de S. Francisco… E depois frei Tomás
de Celano… compilou… aquele tratado da Legenda Antiga (2C) … a
qual Legenda depois frei Bernardo de Bessa da Província de Aquitânia
reduziu a forma mais breve e que começa Plenam virtutibus”7. Na mesma
Crónica se faz alusão a um livro que frei Bernardo de Besse escreveu “…
das três religiões de São Francisco…” que na realidade corresponde ao
sétimo capítulo do Liber de Laudibus beati Francisci8. Estanislau de
Campagnola sustenta que Frei Bernardo de Besse terminou a sua obra
depois de 1279. Segundo alguns comentadores, foi no Liber de Laudibus
que Dante se inspirou para tratar da maior parte dos temas da vida de
Francisco e seus frades na Divina Comédia9.
No âmbito das comemorações dos 800 anos da fundação da Ordem
dos Frades Menores, é intenção dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana dar a conhecer ao público português algumas das Crónicas Franciscanas mais representativas do século XIII e que até agora não estavam
acessíveis aos interessados dos temas franciscanos.
—————
5
Cf. Fontes Franciscani, p. 2514.
6
A edição crítica foi publicada na Analecta Franciscana, III, pp. 666-92; É de considerar também a edição inglesa: D. AMICO, Bernard of Besse: Praises of Blessed Francis
(Liber de laudibus Beati Francisci), em Franciscan Studies, 48, (1988), pp. 213-288.
7
Crónica da Ordem dos Frades Menores, op. cit. II. Vol. p. 73-74
8
Ut supra p. 45
9
Fontes Franciscani, op. cit. p. 1250-1251.
8
LIVRO DOS LOUVORES DE S. FRANCISCO
Por ordem do senhor Papa Gregório IX, o irmão Fr. Tomás, dotado
de notáveis qualidades literárias, escreveu em Itália uma biografia de S.
Francisco recheada de virtudes; e consta que um respeitável notário da Sé
Apostólica, D. João, 2redigiu também uma outra intitulada Quasi stella
matutina (“Como estrela da manhã”)1. 3Em França, por sua vez, escreveu
sobre ele o erudito e santo Fr. Julião, que compôs a letra e a música dum
Ofício Nocturno em louvor de S. Francisco, além de vários hinos, antífonas e responsórios que o próprio sumo Pontífice e alguns Cardeais publicaram em louvor do Santo. 4E por fim surgiu o Ministro Geral Fr.
Boaventura, autêntico depósito de ciência e de virtude, que depois de ter
sido um excelente professor catedrático de teologia em Paris, foi nomeado
Cardeal da Igreja Romana e bispo de Albânia. 5Sendo assim uma pessoa
de tanto prestígio, e ao mesmo tempo de tal discrição e carácter, a ponto
de toda a gente o considerar digno dos mais altos cargos, também ele,
pelos méritos celestes do Santo, retratou providencialmente em
terminologia simples e credível o digno arauto [do Grande Rei].
6
Aqui, no entanto, poucas referências se farão a outros novos episódios – ou a episódios já mencionados nessas biografias, quando vier a
propósito. Por motivo de brevidade, que todos agradecerão, omitem-se
muitas peripécias da vida do Santo e dos seus seguidores, e sobretudo os
milagres ocorridos depois da sua morte, já avalizados pela autoridade
apostólica para seu louvor e prestígio.
7
O essencial é imitarmos o seu exemplo; e se não conseguirmos
imitá-lo perfeitamente, devemos ao menos respeitá-lo. 8Quem é que seria
capaz de seguir rigorosamente os passos de S. Francisco e dos
companheiros que com ele conviveram? 9Por isso é que a ninguém
pretendeu impor o rigor de pobreza e de perfeição que ele mesmo
observava; mas guiado por inspiração divina, limitou-se a redigir uma
perfeitíssima regra de vida, que por todos pode ser observada em qualquer
tempo. 10Quem observar essa regra nunca trairá o espírito do santo Pai,
por mais que nas diversas épocas variem os costumes. 11A perfeição que
podemos ver nos santos é útil para nos incitar à virtude e serve como de
lanterna para orientar o nosso modo de proceder.
1
—————
1
Cfr. Sir 50,6
9
Capítulo I
Teor de vida de S. Francisco e seus primeiros discípulos
Tanto pela vida como pela doutrina e pelos milagres, Francisco resplandeceu no mundo como o sol nascente. 2Enquanto seu pai cuidava dos
negócios terrenos, sua piedosa mãe, como outra Isabel, deu-lhe o nome na
pia baptismal e prognosticou que pela graça divina seria um filho de Deus
cheio de méritos. 3No período do crescimento, quase até aos vinte e cinco
anos, levou uma vida exteriormente bastante mundana. 4Mas por fim desfez-se de tudo para seguir devotamente as pisadas de Cristo, restaurou na
própria vida a antiga forma de viver dos Apóstolos, e edificou a casa da
sua Ordem em alicerces sólidos de pobreza evangélica – não sobre a areia
de bens temporais, mas sobre a pedra que é Cristo.
5
A seguir a ele, a primeira pedra do edifício da nova Ordem foi Fr.
Bernardo de Quintavale2, um irmão inflamado de amor de Deus, que se
desfez do seu valioso património não em favor dos parentes, mas dos
pobres, e se distinguiu por uma vida santa, finalizada com uma morte
cheia de milagres. 6A segunda pedra da nova casa foi Fr. Pedro3; também
ele renunciou em absoluto ao mundo e da mesma forma distribuiu pelos
pobres os seus bens. 7A terceira pedra foi Fr. Gil4, dotado de tão notável
santidade, que, segundo consta, Deus lhe teria concedido a graça de
socorrer a todos aqueles que o invocassem pedindo qualquer bem para a
própria alma: 8isto nos conta o já referido piedoso Geral e Cardeal (Fr.
Boaventura), cuidadoso pesquisador de tais revelações.
9
A três outros que se seguiram ajuntou-se Fr. Filipe, a quem o
Senhor purificou os lábios com uma brasa viva (como ao profeta Isaías),
de sorte que, sendo embora leigo, entendia e interpretava as Escrituras e
dizia coisas maravilhosas acerca de Jesus5. 10Enfim, segundo nos
contaram, os doze primeiros discípulos de Francisco, para os quais ele
1
—————
2
Cf. 1C 24, 2-8; TC 27, 2-3. Fr. Bernardo inspirou um terceto de Dante: “… foi o
venerável Bernardo o primeiro a descalçar-se, dirigindo paz tamanha, e, correndo, ainda
se julgou mui tardo” (Par. XI, 5). Cf. FF 1, 3ª ed. P.250, nt. 50. As abreviaturas dos
Escritos de S. Francisco usadas nas citações são tiradas de Fontes Franciscanas I – S.
Francisco, Editorial Franciscana, 3ª edição, Braga, 2005.
3
Cf. 1C 25; TC 28, 6. Trata-se de Fr. Pedro Catânio. Acompanhou Francisco ao Oriente,
foi Vigário Geral, ainda em vida de S. Francisco e morreu na Porciúncula em Março de
1221.
4
Cf. 1C 25; TC 32, 2-3.
5
Cf. 1C 25,4.
10
escreveu uma regra6 e a quem deu orientações como Cristo aos
Apóstolos, todos foram santos, 11excepto um, que abandonou a Ordem e
se enforcou como Judas – de modo que até a respeito dos discípulos
Francisco foi parecido com Cristo.
12
Ainda ele não contava senão com seis irmãos, quando lhe foi concedida a graça extraordinária de ter tanta certeza de a Ordem se vir a
estender por todo o mundo, a ponto de lhes poder desvendar o futuro
como se fosse presente: 13«Já tive uma visão de caminhos cheios duma
multidão de gente a vir ao nosso encontro; nessas multidões vinham Franceses, Espanhóis, Alemães e Ingleses – uma turba enorme das mais diversas línguas a correr a toda a pressa»7. 14Também costumava distinguir os
irmãos da primeira e da última hora comparando-os com frutos mais ou
menos saborosos.
15
Entre os primeiros, brilharam por suas virtudes alguns ilustres
irmãos e padres, como Fr. Soldanério, Fr. Rogério, Fr. Rufino e Fr. João
das Loas8, que teve o privilégio de tocar nas chagas dos estigmas de
Francisco ainda em sua vida. 16Outro irmão também íntimo do Santo foi
Fr. Ângelo, bem como Fr. Leão, seu confessor, e um outro Fr. Leão, que
mais tarde governou a Igreja de Milão como arcebispo, 17e ainda Fr.
Tiago, que teve a dita de ver subir ao Céu a alma do santo Pai em forma
de estrela tão brilhante como o Sol9. 18Padres santos foram também Fr.
António, Fr. Nicolau, Fr. Simão, Fr. Ambrósio, Fr. João, e muitos outros,
dos quais seria longo falar individualmente, e que iluminaram esses
tempos antigos com o esplendor das suas virtudes. 19Os seus corpos foram
sepultados em paz e estão expostos à veneração em locais sagrados. 20Os
restos mortais de Fr. Bernardo10, de Fr. Rufino, de Fr. Leão e de Fr.
Ângelo11, encontram-se na igreja de S. Francisco em Assis; os de Fr.
Egídio em Perúsia; os de Fr. Soldanério na igreja dos irmãos menores de
—————
6
Cf. 1C 32,1; EP 21, 2; TC 51, 7
7
Cf. 1C 27, 5-6.
8
Fr. João das Loas (ou dos Louvores, cf. EP 85, 10) é, segundo alguns comentadores, o
mesmo que Fr. João de Florença, ou de Lodi. Segundo EP 85,10 que desenha o
verdadeiro frade menor, este devia ter entre outras qualidades, “o vigor corporal e
espiritual do irmão João de Loas, que, no seu tempo, ultrapassava todos os homens em
força corporal”. Cf. 1C 110, 5.
9
Cf. 2C 110,5 confirma o facto, anotando que não menciona o nome porque o irmão
ainda vive. Cf. 2C 217a, 1 TC 68,2.
10
Cf. 1C 24,2; 2C 48,1.
11
Cf. TC 1,1.
11
Viterbo; os de Fr. Junípero na igreja de santa Maria do Capitólio em
Roma.
21
O irmão Soldanério, qual sol resplandecente, brilhou no mundo
tanto pelo exemplo como pela doutrina; 22o irmão Junípero12 sobressaiu
por uma tão inabalável paciência, que ninguém jamais o viu perturbado
apesar dos apuros em que esteve envolvido; 23o irmão Rogério13 salientou-se por uma vida de indiscutível virtude, a ponto de o senhor Papa
Gregório IX o ter declarado e confirmado como autêntico santo e ter
autorizado que a sua memória se celebrasse em Tódi14, onde repousam as
suas sagradas relíquias – se bem que não tenha permitido celebração de
festa solene como era costume em tais circunstâncias, razão pela qual,
segundo nos foi dito, foi posto de parte o processo da sua canonização.
24
Quanto ao irmão António de Pádua, continua a ser um sem-fim de
novos prodígios. 25O santo irmão Nicolau, de quem se diz que entre outros
prodígios ressuscitou um defunto que ia ser retirado do leito da morte e
deu olhos novos a alguém a quem os naturais tinham sido vazados, jaz em
Bolonha, na igreja franciscana. 26Ao irmão Ambrósio, com fama de numerosos milagres, venera-o a vetusta cidade de Roma, onde ele tem a eterna
mansão. 27O irmão Simão, favorecido pela graça de realizar maravilhas,
engrandece com a realização de numerosas curas a cidade de Espoleto
onde descansa. Com efeito, eu mesmo tive a oportunidade de ver no vale
de Espoleto um defunto ressuscitado por sua invocação. 28A veracidade
desse milagre, bem como de muitos outros, foi reconhecida e solenemente
aprovada pela autoridade apostólica do bispo de Espoleto, após cuidadosa
e diligente investigação. 29Foram também de eminente santidade o irmão
João e o irmão Nicolau; o primeiro dos dois, Fr. João, que foi ao encontro
do Senhor enquanto desempenhava o múnus de Guardião, já tornara ilustres várias regiões da Alemanha por suas obras maravilhosas.
30
Também da mesma forma nos mostraram caminhos de perfeição,
com exemplos duma vida santa que pudemos admirar, o irmão
Agostinho15 e o irmão Guilherme: de ambos se recorda que ainda em vida
a sua virtuosa santidade resplandeceu em sinais do céu. 31O venerável
—————
12
Cf. EP 85,9.
13
Cf. EP 85,11; 1C 216,12.
14
Cf. FF1, 3C1,16, nota 18 onde se diz que o Beato Rogério de Todi foi um dos
primeiros frades a ser beatificado.
15
Cf. 2C 218. Trata-se de Fr. Agostinho, ministro na Terra de Labor, falecido no mesmo
dia de S. Francisco.
12
irmão Hugo, que, cheio de espírito de sabedoria e de inteligência, foi
admirável pela santidade de vida e pela eficácia da doutrina, repousando
em Marselha, confirmou a sua santidade com prodígios miraculosos. 32Fr.
Cristóvão, irmão duma simplicidade de pomba, condignamente sepultado
na igreja dos irmãos de Catúrcio, é conhecido pelo esplendor de
numerosos milagres. 33O irmão Estêvão, a quem o Senhor concedeu a
graça de extraordinária virtude, que antes fora monge e Abade na Ordem
Beneditina, quando por amor de Cristo se quis fazer frade menor, foi
nomeado Inquisidor contra os hereges e teve o privilégio de ser honrado
com a glória do martírio e de taumaturgo, e jaz na igreja dos irmãos de
Tolosa. 34Também aí foi veneradamente sepultado o irmão Raimundo,
glorificado com idêntico martírio. 35Brilham ainda com notáveis milagres
o irmão Benvindo e o irmão Pedro, outrora Ministro da Calábria, como
por graça divina se comprova.
36
Seria fastidioso continuar com a enumeração de cada um dos
Confessores e dos gloriosos Mártires, que sofreram o martírio em defesa
de Cristo e da Igreja tanto por parte de Sarracenos como de defensores de
hereges, quando por mandato da Sé apostólica faziam investigações
acerca de erros heréticos.
13
Capítulo II
A formação dos primeiros discípulos
Depois de regressar do encontro com o sumo Pontífice, de quem
recebera autorização para pregar, o bem-aventurado Francisco recolhia-se
com os irmãos nos subúrbios da cidade de Assis em qualquer casebre
abandonado16, por vezes tão acanhado que nele mal podiam sentar-se ou
deitar-se esses homens que decididamente tinham rejeitado habitar em
casas espaçosas e aprazíveis. 2Além disso viviam em tal penúria, que com
bastante frequência nem sequer podiam matar a fome com um pedaço de
pão, tendo de se contentar com uns nabos mendigados pelas hortas ao
redor de Assis17. 3Por parte de familiares eram perseguidos, e por outros
eram escarnecidos, pois nessa época era inconcebível que pelo Senhor um
jovem se desfizesse dos seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta.
4
No entanto, da parte deles não se ouvia por causa disso nenhuma lamentação nem queixume, antes pelo contrário, cheios de alegria espiritual e
serenidade de coração, tudo aguentavam com paciência.
5
Posteriormente, sob o impulso do santo Pai, os irmãos foram crescendo em número e em perfeição. 6Eram efectivamente irmãos menores,
tanto de nome como pela humildade de espírito: considerando-se súbditos
de quem quer que fosse, procuravam sempre habitar nos lugares mais
pobres e exercer as ocupações mais humildes18. 7Mesmo no caso de surgir
qualquer atitude aparentemente injuriosa, inflamados pelo espírito de
caridade, era admirável como se amavam uns aos outros. E quando uma
vez por outra surgia a oportunidade de se reunirem, então é que se fazia
sentir o dardo do seu amor espiritual. 8Com que expressões? Com
afectuosos abraços, com delicadas trocas de palavras, com ósculos santos,
com amigáveis conversas, com sorridente e modesta fisionomia, com
rostos irradiando alegria, com mãos incansáveis em prestar obséquios.
9
Como efectivamente desprezavam todas as coisas terrenas, nunca
fomentavam amizades particulares, mas repartiam todo o afecto do seu
amor pela comunidade dos irmãos, tratando de se dedicar aos demais no
sentido de lhes remediarem as necessidades, procurando não o seu
próprio proveito, mas o de Cristo e o do próximo. 10Chegou por exemplo a
acontecer que quando um indivíduo tresloucado se pôs a arremessar
1
—————
16
Talvez em Rivotorto como recorda 1C 42, 1-2; Cf. LM 4.3,1.
17
Cf. TC 55,3.
18
Cf. 1C 38,4; T19
14
pedras contra alguns irmãos, um outro irmão se meteu de permeio,
preferindo ser ele atingido do que ser ferido o seu irmão19.
11
Alicerçados em tão sólidos fundamentos de caridade e humildade,
cada um tratava o seu irmão com tal deferência como se ele fosse o seu
senhor. 12Quem entre eles sobressaísse pelo cargo que desempenhava ou
por qualidades com que a graça divina o enriquecera, apresentava-se
como o mais humilde e o menos importante de todos20. 13Se algum
inadvertidamente deixasse escapar qualquer expressão que desagradasse a
outro, não descansava enquanto lhe não pedisse humildemente desculpa21.
14
Estavam sempre mortos por se reunirem, e sentiam-se radiantes quando
se encontravam juntos; por isso se lhes tornava difícil e dolorosa a
separação22. 15No entanto, jamais se atreviam a opor qualquer objecção à
santa obediência, como soldados disciplinados que nada querem saber dos
motivos das ordens recebidas, mas se apressam a executar sem
contestação o que lhes é mandado. 16Fosse o que fosse o que lhes
mandassem, consideravam-no como um mandato procedente da vontade
do Senhor, e isso lhes tornava fácil e suave cumpri-lo. 17Um favor que
solicitavam com empenho era que não os mandassem para as regiões
donde eram oriundos, de modo a que neles se cumprisse a expressão
profética: Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido
para os filhos de minha mãe23.
18
Viviam sempre em alegria espiritual, uma vez que não tinham
qualquer motivo de perturbação. 19Em situações complicadas,
regozijavam-se como se lhes tivesse saído a sorte grande, e
encomendavam a Deus os seus perseguidores, e não eram poucos os que,
vendo isso, se decidiam a imitá-los24.
20
Quando eram procurados pelos ricos do mundo, recebiam-nos com
delicadeza e alegria, de modo a induzirem-nos a evitarem o mal e a modificarem o comportamento25. 21Às pessoas que encontrassem em qualquer
sítio, pelos caminhos ou nas praças, dirigiam palavras de conforto e de
estímulo a amarem e reverenciarem o Criador. 22Preferiam hospedar-se
—————
19
Cf. AP 26, 1-2.
20
Cf. AP 26, 4-5.
21
Cf. TC 43, 1; AP 27, 1.
22
F. 1C 29, 1-4.
23
Sl 69,9.
24
Cf. AP 23, 11; TC 40, 8.
25
Cf. TC 45, 1; AP 29, 1; 1R 2, 1-3; 2R 10, 6.
15
nas residências paroquiais de sacerdotes do que nem casas de seculares26.
23
Mas se isso não era possível, informavam-se sobre alguma família mais
piedosa do lugar, a quem pudessem honestamente pedir hospedagem. 24E
embora fossem pobres a mais não poder, estavam sempre dispostos a
repartir com quem lhes pedisse as esmolas recebidas.
25
Desprezavam tão profundamente todos os bens materiais, que só
com muita relutância aceitavam as coisas absolutamente necessárias à
vida. Como indumentária contentavam-se com uma simples túnica, às
vezes remendada por dentro e por fora, umas reles bragas e um cordão
grosseiro como cinto27. 26Quanto à vestimenta, nada de cuidados, apenas
se notava desprezo e indigência. 27Se não conseguiam outro lugar mais
conveniente para descansarem de noite, acomodavam-se em grutas ou em
fornos comunais. Durante o dia, ajudando em trabalhos manuais da sua
especialidade, a todos aqueles com quem conviviam davam exemplo de
humildade e paciência28. 28Tão imbuídos estavam da virtude da paciência,
que sendo muitas vezes vítimas de vexames e injúrias, chegando mesmo a
ser espancados e desnudados, e vendo-se desprovidos de qualquer auxílio,
ainda assim aguentavam tudo isso com humildade, chegando ao ponto de
na sua boca ressoar um cântico de louvor e de acção de graças29.
29
Nunca ou quase nunca interrompiam o louvor a Deus, mas recordando no exame de consciência a vida quotidiana davam graças a Deus
pelo que de bom tinham feito, e deploravam e choravam negligências em
que tivessem incorrido e faltas que por descuido tivessem cometido. 30Se
notavam que lhes ia faltando o espírito de devoção lhes ou diminuía a
habitual piedade, imaginavam que Deus os tinha abandonado. 31No intuito
de se aplicarem à oração, usavam diversos estratagemas com o fim de a
oração não ser perturbada por uma sonolência traiçoeira30.
32
Se alguém, como é costume, ou para as contingências duma viagem ou por outro qualquer motivo, os deixava desfalcados de provisões
de alimento ou de bebida, mortificavam-se com muitos dias de
abstinência. 33Com tais mortificações procuravam reprimir os incentivos
carnais, a ponto de por vezes exporem ao gelo o corpo nu ou de o fazerem
sangrar com afiados espinhos. 34Era tal a aspereza com que cada um se
—————
26
Cf. TC 59, 11.
27
Cf. 1C 39, 6.
28
Cf. 1C 9, 11.
29
Cf. 1C 40, 1-2
30
Cf. 1C 40, 3-5; 2R 5, 3
16
tratava, que dava a impressão de se odiar a si mesmo. 35Vivendo em paz e
harmonia com todos, evitavam com extremo cuidado qualquer
escândalo31.
36
Todos nutriam sentimentos de humildade acerca de si mesmos, e
de respeito para com os outros, sobretudo para com os sacerdotes. 37Uma
vez um sacerdote avisou certo irmão: «Vê lá, não sejas hipócrita!» Esse
irmão tomou tanto a peito o aviso, que se considerou mesmo hipócrita,
comentando: «Foi um sacerdote que o disse! Ora um sacerdote não pode
mentir!» 38E daí em diante passou a andar triste e aflito, até que o Santo
lhe explicou com perspicácia o verdadeiro sentido da recomendação do
sacerdote32.
39
Refreavam a língua guardando silêncio com o máximo cuidado.
Em conversas só gastavam o tempo necessário, sem nunca lhes sair da
boca qualquer dito chocarreiro ou frívolo. 40Tinham todos os sentidos tão
disciplinados, que não gostavam de ver nem de ouvir nada que não fosse
condizente com a religião33. 41Era simples a maneira de se apresentarem e
modesto o modo de andarem, com os olhos baixados para a terra e o espírito erguido para o céu.
42
O Santo, com efeito, ensinava-lhes que não se deviam limitar a
dominar os vícios carnais, mas deviam também a mortificar os sentidos
exteriores, pelos quais entra a morte para a alma.
43
Acontecendo que o imperador Otão passasse com grande pompa
por aquelas bandas para receber a coroa imperial, o santo Pai, que estava
com os irmãos no já referido casebre junto ao caminho de passagem da
comitiva, nem se dignou sair fora para ver, nem permitiu que saísse ninguém a não ser um, para observar e recordar constantemente ao candidato
à coroa que a sua glória pouco duraria34. 44Sentindo-se avalizado pela
autoridade Apostólica, recusava-se a adular reis e príncipes35.
45
Também fazia diligências para investigar diariamente a vida dos
irmãos, não deixando impune nenhum procedimento que lhe parecesse
menos razoável, e chamava-lhes a atenção para a mais leve negligência.
—————
31
TC 58, 5; AP 38, 7.
32
Cf. 1C 46, 3-9; 1R 2, 15.
33
Cf. 1C 41, 3-4.
34
Cf. 1C 43, 2-3. O caso aqui referido deve ter ocorrido em 1210. Otão IV (1198-1218)
foi coroado em Roma no dia 4 de Outubro de 1209. Em 18 de Novembro foi destituído
por Inocêncio III. Cf. FF1 p. 267, notas 93 e 94.
35
Cf. 1C 43, 6.
17
E os irmãos correspondiam, não só procurando cumprir escrupulosamente os conselhos que ele lhes dava como irmão ou os preceitos que lhes
impunha como Pai, mas iam ainda mais longe, procurando por vezes
adivinhar o que ele quereria que se fizesse. 47De facto, para os estimular à
perfeição, dizia-lhes ele que a verdadeira obediência não se devia limitar
a cumprir a ordem verbal do superior, mas devia estender-se à vontade do
mesmo, desde que fosse conhecida, e que o súbdito devia fazer aquilo que
por qualquer indício lhe parecesse que o superior quereria36. 48A tal ponto
uma santa simplicidade resplandecia nos irmãos e era tal a sua pureza de
coração, que não havia entre eles sombra de fingimento: assim como
entre eles havia uma só fé e um só espírito, também havia uma só
vontade, conformidade de procedimentos, concórdia de critérios e
delicadeza de atitudes.
49
São assim os testemunhos do venerável Pai, com que ele formava
os seus novos filhos, não apenas por palavras, mas com verdadeiros
exemplos, e pelos quais renovava o propósito e o empenho duma vida
apostólica. 50Que o teor de vida aprovado [pelo Papa] era aprovado no
céu, isso logo no começo dessa iniciativa foi revelado a um piedoso
indivíduo por meio duma visão dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, a
agradecerem ao Senhor pela renovação na terra da sua forma de vida e a
intercederem pela conservação dessa Ordem religiosa. 51Quando o bem-aventurado Francisco teve conhecimento disso, comentou: «Se S. Pedro
e S. Paulo intercedem por nós todos os dias, também é justo que nós os
veneremos com uma oração quotidiana». 52Daí adveio o costume de se
referirem nominalmente os dois Apóstolos em cada uma das horas do
Ofício da Santíssima Virgem, quando anteriormente nessas orações
apenas se fazia uma referência genérica aos Apóstolos, segundo a praxe
da Igreja de Roma37.
53
A essas fórmulas de oração acrescentaram-se então expressões
como estas: Protegei, Senhor, e Atendei-nos, ó Deus, e ainda dos vossos
Apóstolos Pedro e Paulo – quando antes se dizia de todos os vossos
Apóstolos, etc.
46
—————
36
Cf. 1C 45, 5.
37
Sobre a fidelidade á Igreja romana, cf. Ex 26, 1; 2R 1, 3; 1C 62, 8; 2C 24, 7; TC 46, 2;
AP 31, 2.
18
Capítulo III
A tolerância de S. Francisco
Muito se regozijava o Santo com o progresso dos irmãos, sem
contudo deixar de cuidar dos mais fracos e dos atormentados por tentações. 2Quando certo irmão, assediado por uma tentação, lhe pediu que
rezasse por ele, respondeu-lhe: «Meu filho, o facto de seres tentado mais
me convence de seres um verdadeiro servo de Deus. Ninguém se deve
considerar servo de Deus se não passar por tentações e tribulações. 3Uma
tentação vencida é dalguma forma como a aliança com que o Senhor desposa a alma do seu servo. 4Não são raros os que se gabam dos méritos de
muitos anos e se dão por felizes por nunca terem sucumbido a tentações;
mas como era o simples medo que os vencia antes do combate, convençam-se de que Deus terá em conta essa sua debilidade espiritual. 5Lutas
renhidas só ocorrem quando há grande valentia»38.
6
Outro irmão, continuamente angustiado por uma tentação de ordem
espiritual, que é bem mais esquiva e mais grave do que o instinto carnal,
veio ter com o bem-aventurado Francisco, prostrou-se a seus pés, 7sem no
entanto nada conseguir dizer, com a voz embargada por lágrimas amargas
e soluços. Percebendo o Santo que ele estava atormentado por espíritos
malignos, exorcizou: «Ordeno-vos, demónios, que deixeis de atacar este
meu irmão». 8E imediatamente o irmão se viu livre de toda a tentação.
9
Nisto se patenteou o poder do Santo sobre os demónios e a sua condescendência para com o filho39.
10
Por ele mesmo outrora ter sido vítima de tentações, aprendeu a ter
compaixão dos que eram tentados. 11Com efeito, em tempos passados
tinha experimentado a mais violenta tentação carnal, e depois de se
flagelar com aspereza para a debelar, para não perder a coragem após essa
lição, atirou-se nu para uma camada de neve, expulsando do coração pelo
sofrimento corporal uma infecção espiritual40.
12
Noutra ocasião foi acometido por uma gravíssima tentação espiritual, que aliás redundou em seu maior benefício. 13Durante muitos dias
andou aflito, orando e chorando copiosamente. 14Certo dia, no meio da
oração imaginou ouvir uma voz: «Francisco, se tiveres fé, mesmo como
um grão de mostarda, dirás a um monte que mude de sítio, e ele mudará».
1
—————
38
Cf. 2C 118, 1-7.
39
Cf. 2C 110
40
Cf. 2C 117
19
Replicou o Santo: «Que monte, Senhor, teria eu a pretensão de deslocar?»
15
E pela segunda vez ouviu: «O monte é a tua tentação.» Então, banhado
em lágrimas, suplicou: «Senhor, faça-se como dizeis.» 16E de imediato se
acabou a tentação e se sentiu livre dela41.
17
O seu feitio levava-o a condescender com humildade, a encorajar
toda a gente e abrir-se com todos. Prestava reverência aos sacerdotes da
Igreja, respeito aos idosos, honra aos nobres e aos ricos, mas consagrava
um amor ainda mais profundo aos pobres. Procurava viver em paz com
todas as categorias de gente, e com insistência aconselhava os irmãos a
procederem da mesma forma, dizendo-lhes: 18«Se dirigis às pessoas uma
saudação de paz, deveis ter cheio de paz o vosso coração, de modo que
jamais alguém fique zangado ou escandalizado por vossa causa, mas antes
pelo contrário, se sinta mais inclinado a ser manso e benigno. 19A nossa
vocação é tratar dos feridos, fortalecer os alquebrados e trazer ao bom
caminho os extraviados. 20Muitos que porventura nos parecem membros
do diabo ainda virão a ser discípulos de Cristo42.»
21
No trato com os irmãos falava bondosamente não como juiz, mas
como o pai a um filho ou o médico a um doente, de sorte que nele se concretizava a expressão do Apóstolo: Quem é que se sente fraco sem que eu
também me sinta fraco43? 22Para com os doentes corporais tinha também
profunda compaixão, muita solicitude a respeito das suas necessidades;
numa palavra, comportava-se com todos conforme convinha a cada um.
23
Não deixava de tratar com a devida honra pessoas importantes que
vinham para a Ordem, e ponderando com piedade o que a cada um era
devido, em todas as circunstâncias considerava prudentemente os
diversos graus de dignidade44. 24Era efectivamente dotado de notável
discrição e do dom da simplicidade, associando na perfeição a prudência
da serpente com a simplicidade da pomba45.
—————
41
Cf. 2C 115; LP 99;
42
Cf. TC 58, 5-6;
43
2 Cor 11,29; Cf. TC 59, 6; AP 39, 8-9.
44
Cf. 2C 57, 1-3.
45
LM 11. 1, 6
20
Capítulo IV
A pobreza
Um empenho muito especial de Francisco foi o de observar a
pobreza e a humildade e de estar sempre ocupado em actividades convenientes. 2 Sentia-se feliz em habitações pobrezinhas, em pequenas cabanas
de madeira mais do que em construções de pedra. 3Com frequência
passava temporadas com alguns irmãos em eremitérios, onde o espaço de
clausura era delimitado por um simples amontoado de silvas e umas
choupanas lhes serviam de casas46. 4Mas viver assim em cidades, não lho
permitia nem a maldade humana nem o grande número dos irmãos.
5
Detestava que qualquer irmão tivesse várias peças de roupa, bem como
tecidos elegantes e finos47. 6 Não se compreende num pobre uma nova
peça de roupa, sendo muito menores as despesas de remendar a roupa
velha. 7Um tecido grosseiro é de facto mais áspero e mais pesado e
agasalha menos, mas é isso que exige o piedoso projecto da Ordem, e pela
graça de Deus o desconforto facilmente é superado com o uso.
8
Se a necessidade obrigasse alguém a usar por dentro uma túnica
menos austera, ele não se opunha; queria no entanto que o hábito exterior
conservasse as características de ser pobre e grosseiro, pois Deus nos pôs
como exemplo de pobreza e penitência perante o mundo. 9Mas observava
ele que quando a necessidade resulta não dum motivo razoável mas da
mera comodidade, isso é sinal de falta de espírito48.
10
Costumava ele dizer que «não suportar com paciência as adversidades, não era senão voltar para o Egipto»49.
11
Quanto a livros, queria que houvesse poucos, esses poucos não
fossem luxuosos nem caros, mas apenas aptos para a necessária cultura de
irmãos indigentes50. 12Acerca de dinheiro, também por fervor religioso não
permitia aos irmãos possuí-lo nem sequer lidar com ele. Por isso é que
uma vez castigou severamente certo irmão por ele ter tocado numas moe1
—————
46
Cf. 2C 56, 1; EP 5, 3.
47
Cf. 2C 69, 2.
48
Cf. 2C69, 12.
49
Alusão ao episódio descrito no livro bíblico dos Números (Nm 14,1-4), em que se refere
que o povo israelita, liberto dos trabalhos forçados a que estivera submetido no Egipto, mas
em dificuldades no deserto por falta de alimento (cf. Nm 11,4-4), se amotinou contra
Moisés e em comício propôs o regresso ao Egipto (Nota do tradutor). Cf. 2C 69, 9; EP 15,
4
50
Cf. 2C 62, 1-2; EP 5, 1-2
21
das que encontrou no caminho. 13Um outro irmão também recolheu uma
moeda perdida no caminho, 14com a intenção de a dar a leprosos, apesar
de o companheiro o desaconselhar de fazer isso e lhe recordar a recomendação do Santo, de não fazer caso de dinheiro achado na rua – o resultado
foi começar logo a ranger os dentes e perder a fala. 15Perante isso, atirou
fora a moeda, e logo se soltaram os lábios do irmão arrependido, e deu
graças a Deus51.
16
A fim de se precaver contra coisas supérfluas, nem sequer um simples copo o Santo permitia que houvesse em casa, porque considerava
possível mesmo sem copos remediar de qualquer outra forma os apuros
duma necessidade extrema. 17Confiava absolutamente na providência
divina, como bem mostra a resposta que deu ao senhor Papa, quando este
lhe objectou ser difícil viver sem nada possuir: 18«Meu Senhor, eu tenho
confiança que o Senhor Jesus Cristo, que prometeu dar-nos no Céu a vida
gloriosa, não deixará de nos conceder na terra o necessário sustento do
corpo no devido tempo»52. 19E ainda lhe propôs a seguinte parábola:
«Certo rei, tendo casado com uma mulher, que era muito pobre, mas
duma beleza extraordinária, teve dela filhos igualmente belos. 20Quando
os filhos cresceram, a mãe mandou-os ir ter com o rei para tratar deles.
Ao reconhecê-los como seus filhos, por se parecerem com ele, abraçou-os
e disse: “Vós sois meus filhos e herdeiros; não vos preocupeis! Se até a
estranhos eu dou sustento à minha mesa, é mais que justo que o dê aos
que por direito são meus herdeiros”53. 21Os irmãos pobres são filhos de
Cristo pobre e duma Ordem pobre».
22
Já tinha a experiência de que o Senhor trata das coisas mais insignificantes. 23Ao regressar da Espanha, debilitado por uma doença muito
grave54, disse no caminho ao irmão Bernardo que até seria capaz de tentar
ressarcir as forças com a carne duma avezinha se a tivesse à mão… 24E o
curioso é que um desconhecido qualquer, atravessando um campo, lhe
veio oferecer uma ave, tal como ele desejava, declarando: «Servo de
Deus, aqui tens o que te oferece a clemência divina». 25S. Francisco
aceitou a oferta e por tudo agradeceu a Cristo, que assim tratara dele.
26
O que não queria era ser conivente com o mundo por causa de
bens materiais. Quando o bispo de Assis lhe disse que lhe parecia
—————
51
Cf. 2C 65- 66.
52
Cf. AP 34, 4
53
Cf. 2C 16, 4-8; AP 35, 3-4; TC 50, 1-5; LM 3. 10, 2.
54
Cf. 1C 56, 7.
22
rigorosa demais a vida que ele escolhera de não possuir nada neste
mundo, respondeu-lhe: 27«Se tivéssemos propriedades, precisaríamos de
armas para as proteger, pois dessa posse nascem muitas vezes desavenças
e litígios, e com isso lá se ia o amor de Deus e do próximo»55.
28
Repetia com frequência: «À medida que os irmãos vão fazendo
pouco caso da pobreza, vai o mundo fazendo pouco caso deles56. 29Eles
devem dar ao mundo bom exemplo; e o mundo deve dar-lhes a eles o sustento necessário. 30Se deixarem de dar bom exemplo, também o mundo
deixará de os ajudar: procurarão, mas nada encontrarão…
31
Como precaução para salvaguardar a pobreza, o Santo tinha receio
de que aumentasse muito o número dos irmãos, e explicava-se: «Oxalá o
mundo, vendo raramente irmãos Menores, se admire de serem poucos!57»
32
Em tudo ele queria que os irmãos se contentassem com poucas
coisas, e mesmo essas, fossem bens móveis ou imóveis, que não as considerassem como propriedade sua. Não queria ter nada como seu, a fim de
mais plenamente possuir tudo no Senhor58.
Capítulo V
A humildade
Francisco também praticou com esmero a humildade, virtude associada à pobreza. 2Por isso queria que os irmãos usassem um hábito despretensioso, se cingissem com uma simples corda, se chamassem Menores,
e nunca recebessem honrarias mundanas. 3Quando o senhor bispo de Óstia
lhe falou em conferir a irmãos cargos eclesiásticos honoríficos, recusou
terminantemente a proposta, e respondeu que deviam continuar na mesma
humilde situação. 4Estava presente na altura S. Domingos, opondo-se
também ele a que os seus irmãos ascendessem a tais cargos59. 5E a concordância com S. Francisco chegou ao ponto de lhe pedir um cordão para com
ele cingir devotamente a túnica interior e de lhe sugerir que as suas duas
Ordens Religiosas formassem uma só, e de afirmar que era a Francisco que
todos os Religiosos deviam seguir. 6Oh, como deveria ser imitada pelos
respectivos filhos esta humildade e mútua caridade dos seus dois Pais
1
—————
55
Cf. AP 17, 7-8; TC 35, 6.
56
Cf. 2C 70, 1.
57
Cf. 2C 70, 5-6.
58
Cf. 1C 44, 6.
59
Cf. 2C 148.
23
fundadores! 7Seria extremamente útil tanto para eles mesmos como para a
Igreja.
8
Para com superiores e sacerdotes queria que os irmãos fossem tão
respeitosos que os considerassem dignos de que lhes beijassem não apenas
as mãos, mas até os próprios pés, pela reverência devida à sua dignidade e
ao seu poder espiritual. 9Afirmava com efeito: «Fomos constituídos auxiliares dos clérigos em ordem à salvação das almas, competindo-nos a nós
suprir aquilo que no seu ofício é de menos importância. 10Cada um receberá
o estipêndio condizente não com a sua categoria, mas com o seu trabalho.
11
Capacitai-vos, irmãos, de que o bem das almas é o fruto que mais agrada a
Deus, e que ele se alcança melhor pela paz que pelo desentendimento». 12E
dizia também: «Submetei-vos aos superiores, a fim de que, quanto de nós
dependa, não surja qualquer mal-entendido». 13E que é que tem de mais
sujeitarmo-nos aos superiores, se por amor de Deus devemos submeter-nos
a toda a instituição humana60?
14
O sentimento de humildade para consigo mesmo levava-o a ter-se
na conta de grande pecador, apesar de na realidade ser um espelho da mais
completa santidade e sem qualquer contaminação carnal, como foi revelado
ao santo irmão Leão, seu confessor, e foi informado ao Ministro Geral61.
15
De facto, o confessor admirava-se de que S. Francisco, que em público se
declarava como o maior dos pecadores – sendo que o justo é o primeiro a
acusar-se a si mesmo – em privado nunca se acusava de nenhuma falta
contra a castidade, e com muita discrição quis certificar-se se ele
efectivamente nunca teria tido qualquer relacionamento sexual – declaração
que nunca teria colhido do Santo, por mais que lhe perguntasse,
precisamente por ele ser pessoa simples e duma pureza ilibada – foi-lhe isso
mesmo revelado e demonstrado com um milagre todo especial. 16Enquanto
orava, esse irmão viu S. Francisco colocado num lugar tão elevado que
ninguém podia chegar junto dele nem tocar-lhe, e ficou convencido de que
essa visão significava o eminente grau da pureza do Santo. 17Sem uma
castidade imaculada não se explicava que o seu corpo fosse enriquecido
com os sagrados estigmas. 18Se há pessoas vulgares que por acção da graça
divina e do seu esforço natural chegam à velhice de corpo impoluto,
ninguém se admiraria que o corpo de Francisco, 19a quem o Senhor
dispensara tantas graças, se conservasse também imaculado.
—————
60
Cf. 1 Pe 2,13; 2C 146, 6; 1R 16, 6.
61
Cf. 2C 123, 8; LM 6. 6,7.
24
Capítulo VI
A vida activa
Não se cansava o Santo de progredir na perfeição, recordando aos
irmãos que o Senhor não tardaria a vomitar os frouxos e aqueles que não se
dedicassem com entusiasmo a qualquer actividade. 2Não aparecia diante
dele qualquer irmão ocioso sem que ele o repreendesse com veemência.
3
Queria que os irmãos estivessem sempre ocupados ou na oração ou em
qualquer actividade conveniente62. 4Muito se alegrou ao ouvir contar que
em determinado eremitério da Espanha os irmãos tinham com esse intuito
organizado o horário de modo a dedicarem parte da semana às ocupações
domésticas, e outra parte à contemplação63. 5Foi aí que aconteceu este caso
estranho. Certo dia, como um dos irmãos do grupo dos contemplativos não
compareceu para a refeição, foi encontrado na cela estendido no chão com
os braços abertos em forma de cruz, e embora não desse indícios de
respiração nem de qualquer movimento, parecia estar vivo; além disso,
acima da cabeça e abaixo dos pés ardiam candelabros irradiando um fulgor
admirável. 6Deixaram-no em paz, e logo o resplendor desapareceu; o
homem veio a si, e avançando para a mesa da refeição, confessou a sua
culpa, como era costume.
7
Contra o defeito da tristeza recomendava: «Se um servo de Deus por
qualquer motivo se sentir angustiado, deve quanto antes recorrer à oração, e
não se arredar da presença do Pai supremo enquanto ele lhe não conceder a
alegria da sua salvação64.
8
Consoante as oportunidades, as suas ocupações eram a pregação e a
salvação do próximo. 9Quantos progressos ele fez na doutrinação e na
conversão das almas, só o sabe Deus, que lhe abriu o entendimento para
compreender as Escrituras65. 10Certo Cardeal fez-lhe umas perguntas acerca
de alguns assuntos abstrusos, esclarecendo: «Interrogo-te não por te
considerar um erudito, mas por acreditar que estás possuído do espírito de
Deus, e não terei dificuldade em aceitar o teor da tua resposta, pois estou
convencido que provém de Deus»66. 11Sobre aquela passagem do profeta
Ezequiel “se não exortares o pecador para o afastar do mau caminho, ele
1
—————
62
Cf. 2C 161; 1R 7, 2.
63
Cf. 2C 178, 2-4.
64
Sl 51,14. Cf. 2C 125, 9.
65
Lc 24,45.
66
Cf. 2C 104.
25
perecerá por causa do seu pecado, mas é a ti que eu pedirei contas do seu
sangue”67, alguém o interrogou uma vez se somos obrigados a admoestar
todos aqueles que sabemos que vivem em pecado mortal, respondeu: 12«Se
a palavra do profeta se deve entender em sentido universal, como eu julgo,
aceito perfeitamente que um servo de Deus deve ser tão brilhante pela
santidade de vida, que com o esplendor do seu bom exemplo e com bons
conselhos que dê, repreenda todos os ímpios. 13Assim, será o resplendor da
sua vida e o perfume da sua aura a denunciar a cada um a própria
iniquidade.»
14
Ele mesmo não se limitava a dar lições com o seu exemplo, mas
também por palavras, confirmadas por vezes com sinais prodigiosos, como
se narra em suas biografias. 15Vou referir um caso muito divulgado ocorrido
na povoação lombarda de Alexandria. 16Foi o Santo convidado por certo
indivíduo temente a Deus, o qual lhe pediu para cumprir a norma do santo
Evangelho que diz: “Comei do que vos for servido”68. No momento em que
acabavam de lhe servir à mesa uma boa peça de capão, alguém,
fingidamente, apareceu à porta a pedir uma esmolinha por amor de Deus.
Ao ouvir a súplica em nome de Deus, Francisco acondicionou a peça de
carne num pedaço de pão e foi dar ao pedinte esse belo petisco, que ele não
comeu, mas maliciosamente guardou. 17E quando no dia seguinte o Santo
pregava ao povo, o falso mendigo ergueu a voz para dizer: «Quereis saber
quem é esse Francisco a quem honrais como Santo? 18Vede esta carne que
ele ontem me deu, quando estava a refastelar-se!». 19Toda a gente o
descompôs, ao ver que o que ele mostrava não era uma peça de capão, mas
um peixe! O desfecho do episódio foi até o próprio culpado se espantar com
o milagre e se ver obrigado a reconhecer o que toda a gente via [que se
tratava de peixe, e não de carne], e diante de todos pediu perdão ao Santo e
contou a tramóia diabólica que inventara. 20Depois de o prevaricador ter
reconhecido o seu erro, a prova material da falsa acusação voltou a ter o
aspecto de carne…
21
Foi também notável o Santo no condão de expulsar demónios e na
extraordinária graça de curas, que realizava sobretudo pelo poder da cruz69.
22
Pelo sinal da cruz deu vista a cegos, repelia demónios e curava as mais
variadas doenças. 23Em Orte, um indivíduo afectado por uma úlcera enorme
—————
67
Ez 4,18; Cf. 2C 103.
68
Lc 10,8; 2C 78-79.
69
Cf. 1C 67.
26
entre os ombros, abençoado por ele com o sinal da cruz, ficou de repente e
por completo liberto dessa chaga, sem dela restar o menor vestígio70.
24
Na fervorosa devoção para com ele, muita gente com frequência lhe
levava pães e outros géneros alimentícios para ele abençoar, acontecendo
que eles se conservavam em bom estado durante muito tempo, e serviam
para curar mazelas a quem deles se alimentasse71. 25Também se provou que
pelo efeito das mesmas vitualhas se dissiparam fortes tempestades de
trovoadas e granizo. 26Da mesma forma, o simples facto de lhe tocar no
hábito ou no cordão fazia com que desaparecessem doenças e febres e se
recuperasse a desejada saúde.
27
Aconteceu-lhe uma ocasião ir ao tecto hospitaleiro dum militar cujo
filho único se tinha afogado e desaparecera, e por mais buscas que se
fizessem, o cadáver do jovem nunca mais foi encontrado. Levado pela sua
própria compaixão e compadecido dos gemidos dos que choravam a morte
do rapaz, parecendo-lhe ser ocasião propícia para Cristo confirmar as suas
maravilhas em favor da firmeza da fé católica que o santo varão pregava,
28
suplicou a Cristo em orações como sempre devotas e piedosas, e conseguiu indicar o lugar exacto onde o afogado tinha ficado no rio, preso pela
roupa, e ressuscitando-o milagrosamente, libertou a família da dupla
angústia da perda do jovem e da sua morte. 29Eis o servo fiel e imitador do
Senhor misericordioso, que, ao ver que levavam a sepultar o filho único
duma mão viúva, se compadeceu dela72 e o ressuscitou. Eis um novo profeta como Elias e Eliseu, dos quais se refere que ressuscitaram os filhos dos
seus hospedeiros!
30
Até seres irracionais lhe obedeciam. Entre outros episódios, uma
ocasião em que o coaxar de rãs num lago próximo da igreja onde ele pregava dificultavam a pregação, mandou-as calar, a fim de também ele poder
louvar a Deus. Elas não fizeram mais barulho, mesmo depois da pregação.
31
Até que mais tarde, voltando ele à mesma igreja e verificando que elas
depois de ele falar continuavam sempre silenciosas, convidou-as a louvarem o seu Criador como habitualmente faziam, compungido por durante
tanto tempo as ter inibido. 32Destes dois prodígios, o das rãs e o do jovem
ressuscitado, anciãos dessa época passada convidados a depor, garantiram
terem sido deles testemunhas – um deles chamava-se mesmo irmão Verdade, e diz-se que a sua sepultura se tornou notável em milagres.
—————
70
LM 12. 9; 3C 179.
71
Cf. 1C 63.
72
Lc 7,12-14.
27
Obedeciam-lhe ainda os próprios seres inanimados. Uma ocasião,
depois de celebrado em Assis o capítulo geral, continuaram lá o irmão
Monaldo e outros cerca de trinta irmãos, a fim de se esclarecerem com o
irmão Francisco sobre assuntos espirituais73. 34Uma vez que precisavam de
ficar para o dia seguinte, o Santo quis que lhes fosse servida uma refeição.
35
Mas o despenseiro não dispunha senão dum pequeno pão, e por isso o
pobre Francisco mandou pedir a Clara que lhe enviasse alguns pães, se os
tivesse, para a dita refeição. 36Nessa altura ela só dispunha de três pães, e
enviou-lhe dois. Ele então recorreu ao seguinte expediente: cortou-os todos
aos bocadinhos, e pôs esses pedaços na mesa, explicando: «É este o pão da
caridade». 37Será preciso acrescentar alguma coisa? Com esses três pães
ficaram plenamente satisfeitos os cerca de trinta irmãos, e dos restos ainda
se recolheu um cesto cheio.
38
Nem a memória do povo nem os testemunhos escritos conservam os
inúmeros prodígios com que Cristo quis distinguir o seu porta-bandeira e
pregoeiro Francisco, e confirmou sem qualquer margem para dúvida a sua
doutrina. 39Mas ponhamos de parte a ociosidade, autêntica morte da alma, e
quando nos metermos ao trabalho, não passemos por cima das dificuldades
a respeito da doutrina e doutras coisas; deixemo-nos instruir pelo exemplo
do santo Pai, e sobretudo do próprio Jesus Cristo, que viveu pobre e em
dificuldades desde a sua juventude. 40Li algures a respeito de certo irmão
que num só dia rezou 50 Salmos, que o Senhor o livrou das penas do
Purgatório. 41Passando ele noites inteiras em oração, certa noite apareceu-lhe o Salvador com a Virgem Santíssima, e à direita de Cristo uma cruz
gigantesca que chegava até ao céu. 42Disse então o Senhor ao fiel tão
persistente na oração: «Trabalha com confiança e faz penitência, porque
também eu quando estive no mundo vivi sempre em trabalhos». 43Sigamos
nós também o exemplo de Cristo e de S. Francisco no trabalho, para nos
unirmos a eles no descanso. 44Um patrão trabalhador não aprecia um
empregado calaceiro.
33
—————
73
Cf. 1C 48, 7.
28
Capítulo VII
As três Ordens
O resultado da ideologia de Francisco está bem patente nas três
Ordens por ele fundadas.
2
A primeira Ordem é a dos irmãos Menores, cuja finalidade é servir o
Senhor em pobreza e humildade segundo o Evangelho e pregar a conversão. 3Nos que ingressam nessa Ordem Religiosa são inúmeros os sinais
de ela ser abençoada por Deus. 4Seria quase impossível a quem quer que
fosse descrever os prodígios com que Deus enriqueceu essa Ordem nos
irmãos e pelos irmãos com que a dotou. 5Vou no entanto referir-me a visões
e a vocações mais notáveis, a revelações, embora poucas, que já se vão
fazendo por parte de pessoas de confiança, de acontecimentos que lhes
foram contados, pelos quais o Senhor se dignou comprovar manifestamente
e sem sombra de dúvida a perfeição deste instituto religioso.
6
Contava o outrora Ministro Geral de santa memória padre frei
Haymon que havia na Inglaterra um certo Prelado que em espírito foi arrebatado ao céu, onde, entre muitos Religiosos de vários institutos, com
grande estranheza sua não viu nenhum irmão menor. Aparecendo-lhe também a mais bela das mulheres, a santíssima Mãe de Deus, correu para ela e
interrogou-a sobre o mistério que o intrigava. 7Disse-lhe o Bispo que estava
surpreendido por não ver nem sequer um irmão menor a gozar daquela
felicidade… Respondeu-lhe ela: «Anda comigo, que eu vou indicar-te onde
é que eles estão». 8E mostrando-lhe os irmãos em convívio íntimo e familiar
com Cristo Senhor, acrescentou: «Vê como eles estão seguros e felizes sob
as asas protectoras do Juiz; como eles, salva a tua alma». 9O Bispo,
considerando a graça da visão e o conselho salutar da Mãe de Deus, e
obtido o consentimento do senhor Papa Gregório IX, ingressou na Ordem
dos Frades Menores.
10
De alguns Religiosos também se conta que foram vistos abrigados
sob o manto da santíssima Virgem; é assim que os irmãos são protegidos
pela própria Mãe de Deus e pela sombra protectora das asas do Filho de
Deus, ambos os dois desempenhando o papel de Querubins74 a protegerem
os irmãos.
1
—————
74
Querubins são figuras míticas representando touros e/ou leões com asas, bem
conhecidas nas antigas culturas religiosas da Mesopotâmia e do Egipto, e importadas por
alguns redactores bíblicos do Antigo Testamento, sobretudo pelo profeta Ezequiel, onde
aparecem nada menos de 17 vezes. No Novo Testamento não se fala em Querubins senão
29
É de crer que o referido Prelado tenha sido D. Radulfo, Mestre de
Teologia e Bispo de Erfurt, que de facto ingressou na Ordem Franciscana.
12
Mas além desse houve ainda dois outros Radulfos, ambos doutores em
Teologia, um dos quais de Paris, que também entrou na Ordem em
circunstâncias deveras curiosas. 13Enquanto certo dia se dedicava aos seus
estudos, deu-lhe o sono e adormeceu com a cabeça sobre o livro. Sonhou
então com o diabo a ameaçá-lo de o privar da visão, intimidando-o: «Ainda
te hei-de cegar com esterco!» 14Entretanto, o mestre acordou, mas mais
tarde tornou a dormitar e a sonhar de novo com o diabo a repetir-lhe a
mesma ameaça. Desta vez, porém, reagiu contra ele, apontando-lhe os
dedos contra os olhos e ameaçando-o: «Não serás tu a cegar-me a mim; eu
é que ainda te hei-de cegar a ti!». 15Ora aconteceu que no dia seguinte,
quando se assentava na sua cátedra doutoral, recebeu da Inglaterra uma
carta de certo Bispo com a oferta de chorudo estipêndio [se para lá fosse
leccionar]. 16Interpretando a riqueza proposta como o “esterco” com que o
diabo o queria cegar, desfez-se de todos os seus bens e ingressou na Ordem
dos Frades Menores.
17
Há já muito tempo, acompanhei o então célebre Ministro Geral por
terras da Alemanha e da Flandres. Passados muitos anos, em diversos
encontros com irmãos, soube que houve de facto um cónego muito venerável que se resolveu a entrar na Ordem por ter sido miraculosamente
curado de cegueira. 18Devido ao muito tempo desde então decorrido, não
posso garantir todas as circunstâncias, mas não duvido da cura dessa pessoa
e da sua entrada na Ordem. Passo a descrever o facto provável como me foi
contado.
19
Tratava-se de um cónego, de linhagem nobre, pessoa respeitável,
muito piedoso e especialmente devoto da virgem Santa Eufémia. 20Embora
já de avançada idade e habituado a uma vida desafogada, não descurava a
salvação da alma – perigo que costuma acontecer aos ricos –, no ardente
desejo de empreender algo mais valioso, não deixava de pedir ao Senhor
11
—————
numa única e breve referência ao A.T.: «Sobre a arca estavam os querubins da glória, a
cobrirem o propiciatório com a sua sombra» (Heb 9,5). Na Bíblia representam e
simbolizam a majestade, a presença e proximidade de Deus. Por serem alados, com muita
frequência os textos sagrados, sobretudo os salmos, falam também em segurança e
aconchego “à sombra ou debaixo das asas de Deus” (Cf. Sl 17,8; 36,8; 57,2; 61,5; 63,8).
A teologia mística da Idade Média, criando a angelologia, elevou os querubins à classe
angélica suprema. É nessa base que o Autor aqui apresenta ousadamente o Filho de Deus e
sua Mãe como dois Querubins a abrigarem à sombra das suas asas os irmãos menores.
(Nota do tradutor).
30
que lhe indicasse o caminho da salvação, 21repetindo as palavras do profeta:
Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, e ensina-me as tuas veredas75.
22
Mostra-me o caminho a seguir, porque para ti elevo a minha alma76.
23
Também por intercessão da referida Virgem que tinha por advogada
suplicava incessantemente que o Senhor lhe indicasse o estado mais conveniente para a sua salvação. 24E o Senhor inflamou-lhe o coração no sentido de renunciar resolutamente ao mundo na Ordem de S. Francisco. 25Mas
havia o óbice de ser doente e de na garganta padecer de um tumor que o
deformava. 26Por essa razão, o Ministro dos irmãos Menores ia adiando o
seu ingresso, e com a devida prudência conforme podia o ia tentando
dissuadir do propósito, asseverando-lhe que a sua vida espiritual nada tinha
de reprovável nem impeditivo da salvação, e até seria frutuosa pelas muitas
boas obras que poderia realizar. 27Percebendo ele que lhe escapava a
oportunidade de realizar o seu sonho e muito entristecido por isso, sucedeu
que uma ocasião em que estava a rezar o acometeu uma leve sonolência. 28E
eis que lhe apareceu Santa Eufémia, de quem era devoto, acompanhada de
grande séquito de outras Virgens, e o encorajou a ingressar na Ordem dos
Frades Menores, curando-o do obstáculo que disso o impedia, e como prova
irrefutável de que poderia aguentar os rigores da Ordem, curou-o do tumor,
dizendo-lhe: 29«Sirva-te isto de sinal de que ficas curado de todos os teus
achaques». 30Imediatamente lhe abriu e espremeu o inchaço do tumor da
garganta para extrair todo o pus, e passando-lhe depois a mão pelo orifício
aberto, completou a operação e restituiu ao homem a saúde perfeita. 31Ao
despertar, o piedoso senhor viu que estava de facto completamente curado.
32
Recebido na Ordem conforme desejava, nela passou a viver como um
santo. 33Consta que atingiu tal grau de virtude diante do Senhor, que nunca
mais se sentindo embaraçado pela idade nem pelas delícias da vida a que
estava acostumado, aguentou sem dificuldade os trabalhos da Ordem, e
conseguia percorrer a pé distâncias maiores do que antes fazia a cavalo.
34
Também o célebre João, imperador de Constantinopla, avisado por
divina revelação, envergou o hábito de S. Francisco. 35Conta-se a respeito
dele que enquanto os seus irmãos eram acompanhados cada um por sua
comitiva, só ele foi privado de herança, sendo-lhe atribuída apenas a filiação na Ordem militar dos Templários ou dos Hospitalários. 36Mas como era
ainda jovem, de nobre linhagem e de notável valentia, quis a Providência
—————
75
Sl 25,4.
76
Sl 143,8.
31
divina que ele viesse a ser primeiramente o soberano do reino de Jerusalém,
e depois, guindado à dignidade imperial, foi enaltecido a ponto de vir a ter
por genro o próprio imperador Romano. 37Foi além disso um acérrimo
defensor da ortodoxia e lutador contra os infiéis. 38Quando ele, ao pensar a
sério sobre o termo da sua vida, ponderou quantos bens Deus lhe
concedera, sentiu um desejo enorme, e acredita-se que divinamente
inspirado, de saber como seria o fim da sua vida terrena. 39Durante algum
tempo alimentou esse desejo e insistiu em suplicar a Deus essa graça, até
que uma noite, enquanto dormia, lhe apareceu um indivíduo vestido de
branco e trazendo nas mãos um hábito, um cordão e umas sandálias como
os que usavam os irmãos Menores. Chamando o imperador pelo nome,
disse-lhe: 40«João, uma vez que estás tão interessado em saber como será o
teu fim, fica sabendo que morrerás amortalhado neste hábito; é essa a
vontade divina». 41Ao acordar, o imperador, horrorizado, segundo o seu
instinto humano, com tal humilhação a que se imaginava sujeito, soltando
clamorosos gemidos, acordou os que perto dele descansavam, segundo os
costumes do reino. Porém, quando eles acorreram para saber o que se passava, não lhes quis indicar a causa dos seus gritos.
42
Na noite seguinte apareceram-lhe em sonho dois cavalheiros
igualmente vestidos de branco, trazendo cada um o equipamento fradesco,
hábito, cordão e sandálias, e repetindo que ele morreria com aquela indumentária. 43Ficou horrorizado como da primeira vez, e ao acordar repetiu a
cena dos gemidos, mas recusou-se a revelar aos criados de quarto a causa
da gritaria.
44
Numa terceira noite apareceram-lhe três personagens, vestidos de
branco como os anteriores, com a indumentária a ele destinada – o hábito, o
cordão e as sandálias – e, tal como nas aparições anteriores, afirmando uma
vez mais que na morte iria vestido com aquelas roupas, acrescentando:
45
«Não penses que se trata duma ilusão ou dum sonho falacioso: tudo
acontecerá conforme te dizemos».
46
Sobressaltado, o imperador mandou chamar imediatamente o irmão
Ângelo, seu confessor. Ele veio logo, e deparando com o imperador a
chorar na cama, disse-lhe: «Já sei o motivo porque me chamastes; também
eu tive a vosso respeito uma revelação semelhante à vossa». 47Poucos dias
depois, o imperador foi acometido por uma febre terçã, e decidindo
resolutamente entrar na Ordem, em conformidade com as visões havidas,
nela terminou feliz os seus dias. 48Mas como em vida, por causa da gravidade da doença e da debilidade de forças, não pôde desempenhar na Ordem
32
ofícios humildes, consta que exprimiu o seu santo desejo nestes termos:
49
«Ó dulcíssimo Senhor Jesus Cristo! Eu passei neste mundo uma vida
regalada e pomposa, envergando vestes luxuosas. Oxalá que agora, pobre e
humilde, a pedir esmola com um saco aos ombros, eu possa segui-te a ti,
que foste verdadeiramente pobre e humilde!». 50Neste gesto, uma
personalidade tão importante deixou-nos um extraordinário exemplo, de
sorte que não se envergonhem da pobreza e da humildade nem os grandes,
nem os medianos, e menos ainda os menores. 51Com esse seu voto cumpriu
o desejo que os nobres costumam exprimir ao abraçarem esta Ordem, de
serem os mais humildes, os mais mansos e os mais simples. 52A característica mais notável dos fidalgos é precisamente a sobriedade na mansidão e
na humildade. 53Mas não é raro a graça de Deus tornar nobre a quem o não
era, e o pecado da soberba e da preguiça fazer perder a nobreza a quem a
tinha. E que mudança mais vergonhosa do que a de um nobre se tornar
grosseiro? 54Tão-pouco são de desprezar os mais pequeninos, a quem foi
concedido combater contra o mal pelo Senhor; não há maior glória que a de
ser soldado de Cristo.
55
Mas vou continuar com o assunto que abordei. O irmão Guilherme
de feliz memória, outrora Ministro da Aquitânia, região a SW da França,
contava que vivera na cidade de Carnot um doutor que por votos emitidos
estava adstrito à Ordem dos Frades Menores. 56No entanto, tendo terminado
o prazo previsto para os irmãos entrarem na Ordem, estava uma ocasião a
jogar xadrez junto à porta da igreja da Santíssima Virgem Maria, quando
instantaneamente ficou cego. 57Ao sentir-se privado de visão, sem que os
circunstantes disso se apercebessem, derrubou com a mão as peças do jogo,
chamou um rapaz que estava ali perto, pousou-lhe a mão sobre o ombro e
cochichou-lhe que o guiasse para dentro da igreja. 58Aí, prostrado com
devoção e de lágrimas nos olhos diante do altar da Virgem, fez a promessa
de não retardar mais a entrada na Ordem. 59Sendo-lhe logo restituída a
capacidade de ver, foi ter com os irmãos a combinar o dia em que faria a
sua entrada efectiva. 60Novamente, porém, faltou à palavra, e em vez de se
dirigir para o convento voltou para o local do seu jogo favorito, e repetiu-se
a cena da primeira vez: ficou invisual, entrou na igreja, e depois de muito
choramingar, renovou a promessa de não diferir por mais tempo o ingresso
na Ordem, se lhe fosse concedida a graça de recuperar o sentido da vista.
Veio, de facto a recuperá-la, mas só bastante mais tarde do que da primeira
vez. 61Apesar destes avisos sobrenaturais, ainda por uma terceira vez a sua
cobardia o impediu de cumprir a promessa de se encerrar no convento, e
33
tornou a adiar o ingresso definitivo. 62Tal como nas conjunturas anteriores,
deixou de ver, entrou na igreja, prostrou-se diante do altar da Mãe de Deus,
chorou amargamente, reiterou a costumada promessa do efectivo ingresso
na Ordem – e voltou a poder ver, se bem que só muito mais tarde que das
outras vezes. 63Mas às três foi de vez: convencido de que tinha de se
mostrar agradecido a Deus e à Santíssima Virgem pelas três advertências
prévias, que tão dolorosas experiências lhe mostravam, cumprindo o
prometido, contou aos irmãos todas as peripécias ocorridas com ele, e
cumpriu a promessa de entrar definitivamente na Ordem.
64
Mesmo assim, após o ingresso não depôs por completo o homem
velho nem se adaptou à vida comunitária da Ordem. 65A pretexto de
necessidade, andava sempre calçado, comia com os doentes na enfermaria,
queria dormir sempre em colchões, e no Inverno depois da Missa corria
logo para a cozinha a aquecer-se. 66Durante cerca de dois anos os irmãos
toleraram, não sem grande desagrado, este seu procedimento tão pouco
exemplar, sobretudo pelo facto de ele no mundo ter sido um cavalheiro
muito honrado. Eis senão quando, uma bela noite sonhou que S. Francisco
lhe apareceu e lhe fez um estranho pedido: 67«Rogo-te, meu filho, que me
transportes um bocadinho para outro sítio». Ele recusou-se, alegando como
desculpa: «Não eu não tenho forças para pegar em ti, por ser fraco e doente,
e tu seres grande e pesado». Contudo, perante a insistência do Santo em que
o levasse, o nosso protagonista recorreu ao expediente de o fazer deitar, e
puxando-lhe pelas pernas, assim o levar de rastos com a cabeça a roçar
pelo chão. 68S. Francisco bem gritava: «Assim não! Estás-me a magoar!
Isso não é maneira de me transportares!» Mas enquanto o Santo assim
arrastado não deixava de se queixar, o outro replicava: «Doutra forma não
consigo deslocar-te». 69Na manhã seguinte, depois da missa entrou na
cozinha como de costume, e começou a contar o sonho que tivera. 70Depois
de o ouvir, um discreto irmão comentou em resposta: «É tal qual como
sonhaste. Estás a fazer sofrer e a levar mal S. Francisco, ou seja a sua
Ordem, pondo-a de rastos com a tua vida terrena e mesquinha, essa tua vida
carnal e desordenada. 71Ao ouvir a interpretação que o irmão dera do seu
sonho, reconheceu que ele tinha razão, meteu a mão na consciência, pôs de
parte agasalhos de peliça e calçado, deixou de frequentar a enfermaria e de
usar almofadas de penas, assumiu a vida comunitária da Ordem, de que até
ali não fizera caso, converteu-se, enfim, noutra pessoa, num religioso
exemplar e num óptimo pregador. 72Muito embora por negligência tivesse
34
adiado a conversão, não pôs de parte em absoluto o seu propósito de se
fazer frade.
73
Mas a narrativa dum terrível exemplo para os recalcitrantes contra a
vocação à Ordem que se obstinam e olham para trás, deve-se, ao que
consta, ao irmão padre João de Inglaterra, que depois de ter leccionado
teologia em Paris foi nomeado arcebispo de Cantuária. 74A pessoa a quem
ele se referia era um clérigo de Paris que prometera ingressar na Ordem dos
Frades Menores, mas pouco antes da tomada de hábito recebeu da sua terra
uma carta, com a notícia de ter sido nomeado cónego de certa igreja
catedral. 75Desistiu imediatamente de entrar na Ordem, e depois de ter
exercido o canonicato durante pouco mais de meio ano na sua igreja, foi
acometido de grave enfermidade. 76Aconselhado pelos cónegos seus colegas
a confessar-se, sempre se recusava a fazê-lo, como um desesperado.
77
Resolveram então os cónegos pedir aos irmãos Menores para irem visitar
o doente, a ver se o convenciam a confessar-se. Quando eles chegaram,
como já o encontraram muito debilitado, recomendaram-lhe com todo o
empenho que fizesse uma confissão geral dos seus pecados, segundo o
costume de qualquer bom cristão e verdadeiro católico. 78Mas ele ripostou-lhes: «Não percais tempo, irmãos, a tentar convencer-me disso. Eu já estou
condenado. 79Antes de vós virdes ter comigo, fui levado à presença de
Deus, que me mostrou um rosto terrivelmente ameaçador e me disse:
Chamei por ti, e não me respondeste77, por isso vai para as penas eternas».
80
Ao pronunciar estas palavras, diante de todos exalou o último suspiro.
81
Na verdade, os juízos de Deus são como o abismo profundo78e ninguém
consegue saber porque é que Deus a uns salva com misericórdia e a outros
condena com justiça. 82Mas como é o Senhor quem pesa os corações79, as
suas sentenças não se baseiam em coisas exteriores, como as dos juízes
humanos: ele vê, sem se enganar, o mais recôndito dos corações.
83
Tanto para enaltecer o estado religioso como para incitar à perseverança, não quero deixar de referir um episódio de que tive conhecimento
em Paris. 84Abraçou aí a Ordem dos Frades Menores um doutor, cuja mãe o
tinha criado à custa de esmolas e sustentado com muita solicitude apesar da
sua pobreza. 85Muito penalizada com a separação do filho, que considerava
perdido para sua desafogada subsistência material, a mãe foi ter com ele, a
ver se o convencia a desistir e voltar à situação anterior. 86Mostrou-lhe o
—————
77
Cfr. Pr 1,24.
78
Cfr. Sl 36,7.
79
Cfr. Pr 16,2.
35
peito e os seios com que o amamentara, lembrando-lhe os enormes
sacrifícios feitos e privações sofridas para o criar, e apresentando-lhe ainda
outros argumentos no sentido de ele deixar a Ordem. 87O filho teve pena da
mãe, ficou abalado e resolvido a abandonar a Ordem no dia seguinte. 88O
plano de tal procedimento não provinha de malícia da sua parte: era uma
cilada traiçoeiramente urdida pelo demónio sob a aparência de piedade. 89E
assim, como era seu costume, foi rezar diante da imagem dum crucifixo,
dizendo a Deus: «Não quero deixar-vos, Senhor, só pretendo prestar ajuda à
minha mãe, que cuidou de mim no meio de tanta penúria». Enquanto assim
orava, olhou para a imagem do crucifixo e viu sangue a escorrer da chaga
do peito de Cristo, e ouviu a voz do Senhor a dizer: «Eu tratei de ti com
mais carinho do que a tua mãe e com o meu sangue te redimi; não deverias
deixar-me por amor da tua mãe». 89Abalado e estupefacto com o sangue que
vira a escorrer e com a voz que ouvira, venceu a tentação e permaneceu na
Ordem, pois não é sem razão que Cristo diz no Evangelho a respeito da
mãe: Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim80.
91
Giratero de Barama, monge da Ordem beneditina, não podendo
viver no seu mosteiro, como desejava, foi por isso transferido para outro
mosteiro, onde no entanto também não conseguiu a tranquilidade espiritual
por que suspirava. Dedicou-se então totalmente à oração, recitando todos os
dias o saltério completo, associando à oração o jejum, para que o Senhor se
dignasse mostrar-lhe o caminho da salvação, pelo qual melhor o pudesse
servir. 92Depois de muitos dias passados nesse regime de oração e jejum,
viu em sonhos S. Francisco, e diante dele o texto do Evangelho, e ao pé do
Evangelho a Regra. Admirado o monge de a Regra estar tão colada ao
Evangelho, 93perguntou o que significava aquilo, e o Santo explicou-lhe: «A
Regra está tão perto do Evangelho, por ser fundada sobre o Evangelho».
94
Continuando o monge durante muitos dias a orar e a jejuar, ansioso por
saber, se fosse da vontade de Deus, a que estado religioso é que a visão se
referia, suplicava ao Senhor que se fosse como ele julgava, a visão se
repetisse. 95E enquanto assim orava, apareceu-lhe de novo S. Francisco com
o Evangelho e a Regra, como da primeira vez. 96Não obstante estes
esclarecimentos, o piedoso monge reiterando a prática costumada de orar e
jejuar, cada vez se sentia mais ansioso por ter a certeza de que o estado
religioso apresentado nessas visões seria o mais agradável a Deus. 97E
tornou-lhe a aparecer mais uma vez S. Francisco, tal qual como nas
—————
80
Mt 10,37.
36
aparições anteriores, como que a dar-lhe a entender que queria recebê-lo na
Ordem. 98Mas o monge padecia duma grave doença na tíbia, e por isso disse
a S. Francisco: «Os irmãos não iriam acreditar em mim nem me
receberiam». Replicou o Santo: «Da tíbia estás desde agora curado, e isso te
servirá de testemunho». 99Tal como sonhara, ao acordar verificou que estava
curado. 100Procurou então entrar na Ordem, mas como o Ministro, pouco
impressionável, adiasse a recepção, contou-lhe as visões que tivera e
mostrou-lhe o resultado da cura obtida. 101Recebido desta forma na Ordem,
foi um irmão duma vida religiosa exemplar, morando santamente na
Província de Colónia. 102Foram irmãos dessas terras que deram estas
informações.
103
Soube também dum caso contado por certo irmão, que se sabe ter
sido muito considerado na Ordem, e me foi transmitido por outros irmãos.
Um religioso da Ordem de Cister, dum mosteiro da diocese de Tolosa, veio
ter com o irmão acima referido, a pedir-lhe para ser aceite na Ordem de S.
Francisco. 104Disse-lhe ele que um irmão falecido do seu mosteiro, que em
vida fora seu companheiro predilecto, tal como na última doença antes da
morte lhe tinha prometido invocando a Deus como testemunha, veio uma
ocasião de noite chamá-lo para o capítulo dos irmãos leigos. 105Pela afeição
que lhe tinha, quis abraçá-lo, mas o defunto objectou: «Não me podes tocar
nem sequer ver». 106Perguntando-lhe o irmão se tinha algo a contar e como
passava, respondeu: «É perigoso viver; quanto a mim, serei feliz». 107«Então
ainda não és feliz?» – perguntou o outro. «Ainda não!» – foi a resposta,
dando-lhe assim a entender que ainda precisava de sufrágios para se
purificar. 108Insistiu o irmão em interrogá-lo sobre o estado tanto da sua
Ordem Religiosa como de outras Ordens, e mais em concreto sobre
algumas pessoas suas conhecidas, tanto consagradas como seculares. A
resposta foi que de algumas Ordens Regulares eram muitos os condenados,
e das pessoas referidas em particular, todas, com raras excepções, eram
também condenadas. 109E acerca de alguns disse muitas coisas íntimas a
explicar a causa das respectivas condenações. 110Mas eu é que não vou
propalar as circunstâncias que ele referiu como causa da condenação de
muitos, porque tudo aquilo que desacredita os outros é melhor silenciá-lo, a
não ser que haja necessidade de o dizer. Todas as Ordens Religiosas são
boas, desde que se cumpram as respectivas Regras. 111Interrogado o defunto
acerca dos irmãos Menores, declarou que ainda não tinha visto nenhum
condenado, e os que tinham descido ao purgatório não tardariam a voar
37
para o céu, purificados. 112Por fim, exortou o companheiro à perseverança e
aconselhou-o a precaver-se de certos defeitos que ele tivera.
113
Assim, com respeito ao nosso assunto, em poucas palavras enalteceu consideravelmente a Ordem Franciscana. 114Se é legítimo avaliar a sinceridade duma vida consagrada pela excelência do fim atingido, esse fim é
prova evidente do mérito prévio. 115E não é de admirar que seja fácil e
rápida a passagem pelo purgatório para aqueles que neste mundo levaram
uma vida de pureza, e suportando pelo Senhor frio e desnudez e sofrimentos sem conta, fazem na terra o seu purgatório.
116
Aqui fica também um testemunho insuspeito de ódio ou fingida
simpatia para com a Ordem, testemunho aliás vindo do inferno, mas condizente com visões vindas do céu. 117Conta-se que na região dos Bascos
havia um irmão muito virtuoso, espanhol de origem, que fora baptizado
com o nome de Gonsalvo e professara na Ordem de Cister com o nome de
António. Estava ele em devota oração quando lhe apareceu uma rapariga,
dotada de feições encantadoras e embelezada com maravilhosos adornos,
que o convidou a casar com ela. 118Ele ripostou com aspereza: era um
monge que fizera voto de castidade, por isso não podia contrair matrimónio.
119
«Por isso mesmo – replicou ela – deves tomar-me por esposa. Tenho
contigo esta conversa em representação da Ordem Religiosa dos irmãos
Menores, e a beleza e os adereços que vês em mim exprimem os dessa
Ordem. Quanto a votos, entrando nela, com ela te desposarás e nela te
salvarás». 120Dito isto, desapareceu.
121
Noutra ocasião esse mesmo religioso viu S. Francisco e com ele
outro santo irmão de nome Guilherme, cujos restos mortais, viveiro de
milagres, jazem na igreja de S. Francisco. 122Despertou-lhe também a
curiosidade um leito maravilhoso, que o santo irmão Guilherme, por ele
interrogado, disse que era exactamente o leito de S. Francisco. 123«Então –
disse o António – também eu quero deitar-me nele, para poder dizer que
estive deitado numa cama tão encantadora». 124Depois desta visão pretendiam os monges elegê-lo para Abade, mas a sua decisão foi entrar na
Ordem dos Frades Menores, que ele interpretou como sendo o tal leito de S.
Francisco. 125Continuando os monges a reclamá-lo por meio da Cúria
Romana, alegando entre outras razões que na Ordem de Cister ainda havia
mais austeridade que na de S. Francisco, consta que este terá dito: «Mas
eles não foram suplicantes e a pé à Cúria romana como eu fui». 126Os
monges foram despachados pelo Sumo Pontífice de mãos a abanar, e o
irmão continuou na Ordem que escolhera. E foi um irmão de tão intensa
38
piedade, que, segundo se diz – o que é deveras admirável! – Tinha o condão
de derramar lágrimas a seu bel-prazer, mesmo entre a barafunda de pessoas
que estivessem ao pé dele. 127Nunca lhe saía da boca nenhuma palavra
inútil; mas de Deus falava tão amiúde e com tal entusiasmo que por vezes
parecia estar ébrio, apesar de nunca beber nada que pudesse embebedar, e
vinho só bebia o do sacrifício do Senhor. 128Era zeloso em extremo pelo
bem das almas, e por isso não se dedicava incansavelmente à pregação e a
ouvir confissões. 129Ensinava os irmãos a confessarem-se bem, a rezarem
com fervor, a evitarem palavras ociosas, porque se assim procedessem,
progrediriam na virtude mais do que seria de esperar. 130Os seus feitos e as
graças miraculosas por ele obtidas exigiriam muito tempo para se
descreverem.
131
Agora vamos tratar da vocação [à Ordem]. Com certeza que é
benquista de Deus uma Ordem Religiosa à qual ele mesmo chama com
algum atractivo especial, Ordem que ele começou por fundar em personalidades perfeitas como Sião sobre o monte santo81 e depois ornamentou com
pessoas ilustres como pedras polidas. 132Entraram nela bispos, abades,
arquidiáconos e famosos mestres de teologia; bem como príncipes, nobres e
um sem-número de personagens notáveis pela fidalguia ou pela ciência –
dir-se-ia mesmo a flor da fidalguia e da ciência. 133Só para dar um ou outro
exemplo, pondo de parte muitos mais, menciona-se o irmão Alexandre,
clérigo e teólogo, que passa por ser o mais famoso mestre do seu tempo; e o
já mencionado rei e imperador D. João, guerreiro valoroso, que de imperador passou a ser irmão Menor. Foi assim que o Senhor concretizou em
Francisco aquele dito profético: Eu irei diante de ti para te aplanar os
caminhos82.
134
Seria quase impossível contar o sem-número de célebres e eminentes doutores de teologia da Ordem. 135Mas por outro lado não se pode
deixar de louvar a Cristo, que exalta os humildes, pelo facto de pertencer à
Ordem dos Menores o lidador mais brioso e leal, bem como o mais famoso
mestre de teologia e filosofia, 136e ainda o mais conceituado pregador que é
o irmão chamado João de Rupela, notável pela religiosidade, pela discrição
e pela ciência, um homem de tão extraordinárias qualidades que ultrapassou
a sagacidade dos seus próprios mestres criando na Faculdade de teologia as
cadeiras de eloquência e de declamação, e ensaiou requintados ritmos de
—————
81
Cfr. Sl 87,1.
82
Cfr. Is 45,2.
39
elocução. 137Tanto ele como o referido Alexandre deixaram escritos
magistrais e muito úteis.
138
Depois dele veio o irmão Odo Rigaldo, um padre respeitável,
ilustre por nascimento e mais ilustre ainda pela conduta, que foi pregador
famoso, mestre de teologia, e depois arcebispo da diocese de Ratisbona.
139
Contrariado e quase constrangido a aceitar o bispado, brilhou no governo
da diocese com o mesmo resplendor com que anteriormente brilhara na
Ordem, a ponto de ser apresentado como um modelo de Prelados.
A segunda Ordem fundada por S. Francisco é a das virgens e
senhoras com voto de castidade, e a sua característica fundamental é a de
em clausura servirem a Deus em perpétuo silêncio e mortificação da carne.
141
A primeira flor desse jardim foi Santa Clara, devota discípula de S.
Francisco. 142Desde que o Santo viu que elas seguiam fielmente as suas
orientações vivendo em extrema pobreza, prometeu-lhes o seu auxílio e o
dos irmãos, enquanto no seu regime continuassem a professar a pobreza.
143
E sempre, até ao dia de hoje, Santa Clara e o seu mosteiro perseveraram
no seu projecto de pobreza.
140
A terceira Ordem é a dos irmãos e irmãs de penitência, aberta tanto
a clérigos como a leigos, tanto a virgens como a pessoas viúvas ou casadas,
sendo o seu objectivo viverem honestamente em suas casas, dedicarem-se a
obras de beneficência e evitarem a vaidade do mundo. 145Por isso entre eles
aparecem por vezes nobres militares e outros personagens que antes eram
ilustres aos olhos do mundo, onde usavam preciosas roupas de pele, mas
trocaram essas vestes e cavalgaduras luxuosas por outras mais humildes, a
conviverem modestamente com indigentes, de sorte que não se pode pôr em
dúvida de que são verdadeiros Religiosos. 146A princípio era-lhes atribuído
como Ministro um irmão [Menor], mas agora são governados por Ministros
próprios, mas de modo a estarem sempre sob os cuidados, os conselhos e os
auxílios dos irmãos Menores, pois são seus coirmãos, filhos do mesmo Pai
espiritual.
147
Na redacção da regra e forma de vida desses irmãos da Ordem
Terceira interveio o senhor papa Gregório de santa memória – que na altura
ainda desempenhava um ofício de menor categoria – o qual, afeiçoado a S.
Francisco e em íntima familiaridade com ele, supria com seus
conhecimentos jurídicos aquilo que faltava ao Santo. 148No entanto, São
Francisco não se dava por satisfeito com as suas três Ordens, e procurava
indicar um caminho de salvação e de penitência a todo o género humano.
144
40
Por isso, quando um determinado pároco lhe disse que gostaria de ser seu
irmão, mas continuando na sua actividade paroquial e no mesmo modo de
viver e de vestir, consta que o Santo lhe impôs a obrigação de dar
anualmente por amor de Deus o que dos rendimentos da igreja tinha
amealhado em anos anteriores. 150Foi assim que o Senhor fez dele um
grande povo83e fez repousar sobre a sua cabeça a bênção de todos os
homens84.
149
Capítulo VIII
A morte e a trasladação de S. Francisco
Chegado ao termo da sua vida terrena, o santo Pai foi em paz ao
encontro de Cristo, no ano 1226 da Encarnação do Senhor, com a idade de
45 anos85. Contava quase 25 anos quando se deu a sua conversão da vida
mundana, 2e durante dois anos passou a viver uma vida eremítica86. 3Só no
terceiro ano após a conversão fundou a Ordem dos Frades Menores e vestiu
o hábito que por inspiração celeste escolhera. Ocorreu isso na basílica da
Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, igreja desde há muito conhecida por
Santa Maria dos Anjos, que ele acarinhava com singular predilecção.
Transcorridos entretanto 20 anos após a sua conversão, no mesmo local
onde tivera um início auspicioso a sua vida religiosa, teve também o seu
fim glorioso87. 4E não só ele previu mais ou menos o tempo do seu desenlace, como até predisse o dia exacto em que deixaria este mundo.
5
Entre outros que no momento exacto da sua morte o viram a subir ao
céu, apareceu a um santo irmão anónimo que se encontrava em êxtase; ia
revestido de dalmática88 vermelha, incorporado como figura eminente num
imenso e belo cortejo de glória indescritível89. 6Ao chegar ao seu aprazível
1
—————
83
Cf. Gn 12, 2.
84
Sir 44, 23.
85
Cf. TC 68, 1; 1C 88, 4.
86
Cf. 1C 21, 5; TC 21, 2; 25, 1.
87
Cf. 1C 21, 1-4; 88, 1; LM 3. 8, 9.
88
Paramento próprio da ordem do diaconado, usado até meados do século XX. Como S.
Francisco era diácono – pois por humildade nunca quis ascender à ordem de presbítero –
esta visão mostra-o a encaminhar-se para a liturgia celeste devidamente paramentado.
(Nota do tradutor).
89
Cf. 2C 219,1.
41
destino, entrou no grandioso e delicioso palácio celestial, onde se viu
cercado da gloriosa comitiva de muitos irmãos.
7
Aquando do seu passamento esteve também presente uma ilustre
dama de Roma, Jacoba de Settesoli, uma senhora extremamente dedicada
ao Santo, que viera acompanhada de considerável comitiva, condizente com
a sua categoria social, e tratou do aparato conveniente para um funeral tão
importante90. 8Aliás, o próprio Santo, que tinha sido seu director espiritual e
que pela virilidade das suas virtudes lhe chamava “irmão Jacoba”, já tinha
pedido para a chamarem, com desejo de a ver antes de morrer. 9Mas quando
o mensageiro estava mesmo pronto para sair, inopinadamente se ouviu à
porta dos irmãos o grande estrépito dos criados e dos cavalos da sua devota
discípula, que vinha visitar o seu ilustre mestre e pai espiritual. 10É claro que
o Santo concluiu que fora o Senhor quem lha tinha enviado, e ficou muito
contente de a ver, e pela alegria que a visita lhe proporcionou, passou a
respirar melhor, e deu a impressão de que ainda viveria um pouco mais.
11
Por isso, ela resolveu mandar embora parte da comitiva, e ficar apenas
com poucas pessoas, na expectativa do desenlace do Santo. 12Foi então que
ele lhe prognosticou: «Eu vou partir no sábado ao fim da tarde; tu podes
regressar a Roma no dia seguinte com a tua comitiva».
13
Exactamente no dia e na hora que predissera, foi o Santo recebido
pelo Senhor para morar com ele na mansão eterna. 14Choraram por ele os
irmãos, sentindo-se desamparados do seu piedoso Pai, e choraram também
por ele as virgens consagradas a Cristo, que lhe tinham seguido os passos,
lamentando-se lacrimosamente: «Porque é que nos deixas inconsoláveis, ó
Pai, e a quem vais entregar as tuas desoladas filhas?»
15
O seu santo corpo foi sepultado em Assis na igreja de S. Jorge, onde
agora fica o mosteiro de Santa Clara91. 16Porém, passados poucos anos, foi
trasladado com grande pompa e veneração para a igreja que em sua honra
foi construída junto às muralhas da cidade num local chamado “a colina do
paraíso”, por determinação do senhor Papa Gregório IX, que para a sua
construção tinha assentado a primeira pedra. Para essa cerimónia foi tão
numerosa a multidão de gente vinda das povoações vizinhas, que não
couberam na cidade e tiveram de se acomodar como rebanhos em bandos
espalhados pelos campos92. 17Para essa solene trasladação esperava-se e
tinha-se como certa a presença do senhor Papa Gregório; mas tornando-se
—————
90
Cf. 3C 37; LP 101.
91
Cf. LM 15. 5,4.
92
Cf. 2C 220a, 1-3;
42
isso impossível por causa de assuntos urgentes da Igreja, mandou delegados
para o representarem, 18com cartas credenciais em que explicava a causa da
sua inesperada ausência e consolando com afecto paternal os filhos do
Santo, deu-lhes a conhecer o milagre de um morto ressuscitado por
intercessão de S. Francisco. 19Por meio dos mesmos delegados pontifícios
enviou para a cerimónia uma preciosa cruz de ouro, requintada obra de
joalharia, mas mais valiosa ainda do que por ser de ouro e ornada de pedras
preciosas, por conter uma relíquia da cruz do Senhor93. 20Além disso enviou
também por eles ornamentos e vasos sagrados destinados ao serviço
religioso, bem como ricos paramentos para circunstâncias mais solenes.
21
Além disso atribuiu outros valiosos donativos para a construção da
basílica e para as despesas da solenidade. A trasladação teve lugar no dia 25
de Maio do ano da graça 123094.
Capítulo IX
Recensão de alguns milagres
I – Inválidos reabilitados
1
Nunca o Senhor deixou de exaltar o seu Santo com maravilhosos e
prodigiosos milagres, nem em vida nem depois da morte. Ficam aqui apenas alguns exemplos.
Certa menina andou durante um ano com o pescoço torcido duma
forma tão monstruosa que a cabeça lhe ficava quase colada a um ombro, e
devido a essa posição defeituosa mal podia respirar de lado. Trazida ao
sepulcro do Santo e colocada a cabeça deformada da criança por debaixo da
urna, instantaneamente o pescoço e a cabeça tomaram a posição correcta.
Espantada com mudança repentina, a criança começou a fugir e a chorar.
No sítio do ombro onde a cabeça andara encostada ficou no entanto uma
concavidade, porque a deformidade fora bastante prolongada95.
2
Nicolau de Folinho, devido a ter a perna esquerda tolhida, sentia
dores tão agudas que com os gritos que dava mal podia deixar dormir a
vizinhança. Como não havia medicamentos que o curassem, confiou-se a S.
Francisco e fez-se transportar ao seu túmulo. Passando aí uma noite em
—————
93
Cf. TC 72, 3.
94
Cf. LM 15.8,1.
95
Cf. 1C 127
43
oração, descontraiu-se-lhe a perna e já pôde regressar a casa sem muletas e
louco de alegria96.
3
Um menino tinha uma perna tão deformada que o joelho estava
colado ao peito e o calcanhar à coxa. Trazido ao mausoléu de S. Francisco,
ficou subitamente curado e de perfeita saúde97.
4
Uma menina de Gúbio, depois de ter durante um ano as mãos paralíticas, perdeu também o exercício de todos os outros membros. Foi com
uma imagem de cera levada ao túmulo de S. Francisco, onde perseverou
durante oito dias, até que por fim todos os membros ficaram aptos a serem
devidamente utilizados98.
5
Outro rapazinho de Montenegro, com paralisia da cintura para baixo,
e por isso impossibilitado de se sentar e de andar, passou vários dias deitado
diante da porta da igreja onde repousa o corpo do Santo, até que um belo
dia o levaram para dentro da igreja, e bastou-lhe tocar no túmulo do Santo
para ficar são e salvo. Contava ele que no momento em que estendia a mão
para receber umas peras que tinha a impressão de lhe estarem a ser
oferecidas, um rapaz vestido com o hábito franciscano, que se encontrava
em cima do sepulcro, lhe pegou na mão levantada e o ergueu, e depois de o
ter curado e trazido para fora, desapareceu99.
6
Um outro natural de Gúbio, cujo filho era tão estropiado que tinha as
pernas completamente aderentes às nádegas, tendo-o trazido ao sarcófago
do santo Pai, pôde reavê-lo são e salvo100.
7
Certa menina da região de Nórcia, vítima de infindáveis sofrimentos,
chegou a ser considerada como dominada pelo demónio, pois com
frequência se punha a ranger os dentes, feria-se a si própria, não evitava
obstáculos onde poderia cair nem tinha medo de graves situações de perigo.
Em tão lamentável estado, além de ter perdido a fala e ter ficado paralítica,
os pais transportaram-na a Assis montada num jumento, presa a um catre. E
aconteceu que no dia da Circuncisão101 do Senhor estava ela prostrada
diante do altar do Santo, quando sem mais nem menos vomitou qualquer
—————
96
CF. 1C 129
97
Cf. 1C 130.
98
Cf. 1C 134.
99
Cf. 1C 133.
100
Cf. 1C 134.
101
A festa da Circuncisão de Jesus, suprimida aquando da última grande reforma litúrgica,
celebrava-se dantes no dia 1 de Janeiro – oito dias depois do Natal – em conformidade com
o relato do evangelho de S. Lucas: «Quando se completaram os oito dias para a
circuncisão do Menino…» (Lc 2,21). (Nota do tradutor).
44
coisa esquisita… Levantou-se prontamente, beijou o altar, e sentindo-se
curada de todos os padecimentos, prorrompeu em louvores a Deus e ao
Santo.
8
Rigomagno, da diocese de Volterra, mal podendo sequer rastejar
devido a uma medonha elefantíase, e abandonado por isso pela própria mãe,
encomendou-se a S. Francisco e de imediato foi salvo do seu mal102.
9
Na mesma diocese, duas mulheres consanguíneas eram tão entrevadas que mal se podiam mexer sem serem amparadas por outras pessoas, e já
tinham as mãos esfoladas por tão esforçadamente se servirem delas para se
movimentarem. Pois com uma simples promessa recobraram a saúde103.
10
Tiago de Poggibonsi padecia duma cifose tão acentuada e disforme
que andava com a cabeça quase colada aos joelhos. Depois de a mãe o ter
levado a uma capela de S. Francisco e rezado ao Senhor suplicando a cura
do filho, teve a felicidade de o trazer para casa são e salvo104.
11
Na povoação de Vicalvi, pelos méritos do santo Pai a mão mirrada
duma mulher ficou tão normal como a outra105.
12
Na cidade de Cápua uma mulherzinha que prometera ir pessoalmente visitar o sepulcro de S. Francisco, mas esquecida da promessa devido
a qualquer ocorrência da vida de família, ficou repentinamente hemiplégica,
completamente paralisada do lado direito. Não conseguindo virar a cabeça
nem mexer o braço para lado nenhum, com seus brados constantes devidos
às dores aflitivas, não deixava sossegar os vizinhos. Adregando de
passarem perto da porta da doente dois irmãos, a pedido dum sacerdote
entraram em casa dela. Confessando-se da promessa por cumprir e
recebendo deles a absolvição, no mesmo instante ficou sã; e escarmentada
com o castigo sofrido, deu-se pressa em cumprir o que prometera106.
13
Enquanto dormia à sombra duma árvore, Bartolomeu de Nárni
perdeu por completo a capacidade de usar um dos membros inferiores. Mas
por ser extremamente pobre, compadeceu-se dele Francisco, que tanto tinha
amado os pobres, e aparecendo-lhe em sonhos, mandou-o ir a determinado
sítio. O desgraçado tentou arrastar-se para lá, mas ao desviar-se do caminho
correcto, ouviu uma voz a dizer-lhe: «A paz esteja contigo! Eu sou aquele a
quem te confiaste». E guiou-o para o local indicado. Aí o pobre estropiado
—————
102
Cf. 3C 168.
103
Cf. 3C 169.
104
Cf. 3C 170.
105
Cf. 3C 171.
106
Cf. 3C 172.
45
teve a impressão de que alguém lhe poisou uma mão no pé e outra na perna,
e lhe restaurou esses membros inválidos. Tratava-se dum indivíduo de
idade avançada, deficiente havia seis anos107.
14
Havia no condado de Nárni certo rapazinho com uma perna de tal
maneira deformada, que não conseguia andar senão apoiado em duas
muletas. Atingido por essa invalidez desde a infância, e sem sequer conhecer o pai nem a mãe, vivia de esmolas mendigadas. Também ele foi curado
da sua invalidez pelos méritos de S. Francisco, de modo a poder aonde lhe
apetecesse sem mais precisar de arrimo108.
15
Na povoação de Fano havia um estropiado que não conseguia
separar das nádegas as pernas cheias de úlceras, exalando um cheiro tão
pestilencial que nem os enfermeiros o queriam receber no hospital. Quem
lhe valeu foi S. Francisco, cuja misericórdia ele invocou, e por cuja intercessão teve a felicidade e a alegria de se ver liberto do seu infortúnio109.
16
Na cidade de Nárni vivia uma mulher com uma das mãos mirradas
havia oito anos, sem poder fazer com ela absolutamente nada. Até que
numa visão lhe apareceu S. Francisco e a curou, esticando-lhe a mão e
tornando-a igual à que estava sã110.
II – Invisuais que recuperaram a vista
Chamava-se Sibíla uma mulher que durante muitos anos vivera sem
ver nada, quando, triste com a sua cegueira, foi conduzida ao sepulcro do
homem de Deus, onde recuperou a visão perdida e donde pôde regressar a
casa esfuziante de alegria e júbilo111.
18
Em Vicalvo, povoação da diocese de Sora, [cidade do Lácio], uma
menina, cega de nascença, foi levada pela mãe a um santuário de S. Francisco, e aí, por invocação do nome de Cristo e pelos méritos de S. Francisco, adquiriu a faculdade de ver, que nunca antes experimentara112.
19
Um cego de Spelo, trazido para diante do túmulo do Santo, recuperou o sentido da vista que perdera havia muito tempo113.
17
—————
107
Cf 1C 135.
108
Cf. 1C 128; 3C 161.
109
Cf. 1C 141; 3C 70.
110
Cf. 1C 141.
111
Cf. 1C 136.
112
Cf. 3C 171.
113
Cf. 1C 136.
46
Na cidade de Arezo, uma mulher que havia oito anos deixara de ver,
readquiriu a visão na igreja de S. Francisco, construída perto da cidade114.
21
Ainda na mesma cidade S. Francisco curou da cegueira o filho duma
mulher pobrezinha que a mãe tinha encomendado ao Santo115.
22
Em Poggibonsi, na diocese de Florença, uma mulher invisual, por
revelação tida numa visão, começou a frequentar um santuário de S. Francisco. E uma ocasião em que para lá foi conduzida e se prostrou diante do
altar a implorar misericórdia, de imediato recobrou a vista, e regressou a
casa sem precisar de ninguém a guiá-la116.
23
Havia em Camerino uma mulher completamente cega do olho
direito. Os seus pais, fazendo uma promessa, puseram-lhe por cima da vista
afectada de cegueira um pano que tinha estado em contacto com S.
Francisco, e assim ela recuperou a visão que tinha perdido.
24
Uma outra mulher de Gúbio, fazendo uma promessa semelhante,
pôde tornar a ver a luz.
25
Também um invisual de Assis, cinco anos depois de ter perdido o
sentido da vista, voltou a ver, ao tocar no túmulo de S. Francisco.
26
A Albertino de Nárni, que perdera o sentido da vista e ficara com as
pálpebras pendentes até às maçãs do rosto, bastou-lhe encomendar-se a S.
Francisco para tornar a ver a luz e ficar curado117.
20
III – Curas de surdos e mudos
Certa mulher da região da Apúlia há muito perdera a fala e sentia
mesmo dificuldade em respirar. Uma noite, enquanto dormia, sonhou que a
Santíssima Virgem Maria lhe apareceu e a aconselhou: «Se queres ficar sã,
vai à igreja de S. Francisco de Venúsia, e aí obterás a tão almejada cura. Lá
foi a mulher à referida igreja do Santo, e implorando do fundo do coração o
seu valimento, imediatamente vomitou, diante de todos os que a viam,
pedaços de carne, e ficou maravilhosamente curada118.
27
—————
114
Cf. 3C 132.
115
Cf. 3C 133.
116
Cf. 3C 170.
117
Cf. 1C 136.
118
Cf. 3C 126.
47
28
Na pequena cidade siciliana de Nicosia, certo sacerdote que ficara
afónico e demente, após fervorosa invocação de S. Francisco, readquiriu a
capacidade de falar e ficou livre da psicopatia119.
29
Na diocese de Arezzo, uma mulher, durante sete anos incapacitada
de falar, não cessava de mentalmente implorar a Deus com grande fervor a
graça de se lhe soltar a prisão da língua. E sucedeu que enquanto dormia se
aproximaram dela, em sonho, dois irmãos, aconselhando-a a encomendar-se
o São Francisco. Seguindo com todo o gosto e diligência o conselho dos
irmãos, ainda a sonhar fez ao Santo uma promessa, simplesmente de
coração, dada a sua incapacidade de falar, e no mesmo instante despertou,
recuperando o estado de vigília e capacidade de locução120.
30
Um jovem chamado Vila ficara impossibilitado de andar e de falar.
Perante essa desgraça, a mãe fez uma promessa e levou ao túmulo do Santo
com muita devoção uma imagem de cera em representação do jovem, e ao
chegar a casa encontrou o filho a andar e a falar.
31
Vivia na diocese de Perúsia um homem que andava sempre com a
boca horrivelmente escancarada, como que a bocejar, sem capacidade de
falar, e com a garganta muito inflamada. Veio uma ocasião ao sepulcro de
S. Francisco, e ao tentar tocar no sarcófago, expeliu uma golfada de sangue,
e no mesmo instante, maravilhosamente recuperado, readquiriu a possibilidade de falar e de abrir e fechar a boca consoante a necessidade121.
32
Uma mulher andava com uma pedra entalada na garganta, daí
resultando sentir uma dor pungente e secar-lhe a língua. Sem poder falar, e
sem obter qualquer resultado satisfatório de muitas mezinhas tomadas,
recorreu a S. Francisco com todo o fervor do coração, e subitamente por
uma fissura da carne lhe saiu a pedra da garganta122.
33
Bartolomeu da localidade de Ceperano, afectado de surdez havia
sete anos, recuperou o sentido da audição com uma simples invocação de S.
Francisco123.
34
Noutra obra conta-se o caso dum surdo-mudo de nascença que em
Città della Pieve pediu acolhimento em casa dum conhecido, e por promessa feita pelo hospedeiro, se viu instantaneamente curado. Erguendo
então os olhos ao céu, disse entre outras coisas: «Estou a ver lá no alto S.
—————
119
Cf. 3C 145.
120
Cf. 3C 127.
121
Cf. 1C 149.
122
Cf. 1C 150.
123
Cf. 3C 143.
48
Francisco, que veio para me restituir a fala». Proferiu assim palavras correctas, como se sempre tivesse ouvido e falado. Divulgado o prodígio,
acorreu muita gente, que o conhecia como surdo-mudo, a render louvores a
Deus e ao Santo124.
IV – Hidrópicos e paralíticos
Na cidade de Fano foi um hidrópico que teve a sorte de ser completamente curado da sua doença por intercessão de S. Francisco125.
36
A uma mulher de Gúbio, paralítica no seu leito, que depois de ter
invocado por três vezes o nome de S. Francisco suplicando a cura, o Santo
restituiu-lhe a saúde126.
37
Uma jovem paralítica de Arpino, na diocese de Sora, acometida de
paralisia, com os membros completamente inertes, foi transportada para
uma igreja de S. Francisco perto de Vicalvi. Aí, à custa de preces fervorosas
e abundantes lágrimas, obteve a cura completa da sua enfermidade127.
38
Na mesma povoação também um jovem, vítima da mesma doença,
mas agravada a tal ponto que nem conseguia abrir a boca nem mexer os
olhos, foi levado à referida igreja, uma vez que lhe era impossível mover-se. Foi a mãe quem por ele suplicou a intervenção do Santo, de sorte que o
rapaz, antes de regressar a casa, regressou ao estado de saúde de que gozara
noutros tempos128.
39
Pedro de Gaeta, além de ter paralítica uma das mãos, tinha também
a boca torta, a chegar-lhe, dum lado, quase à orelha. O resultado de ter
pedido e seguido conselhos de vários médicos, foi o de perder a faculdade
de ver e de ouvir. Até que por fim se entregou aos cuidados de S. Francisco,
e ficou curado de todos os seus achaques129.
35
V – Vítimas de golpes e rupturas
Um morador de Cisterna di Roma foi vítima dum lanho enorme na
zona púbica, de tal sorte que não havia meio de impedir a extravasão do
40
—————
124
Cf. 1C 147.
125
Cf. 1C 131.
126
Cf.1C 142.
127
Cf.3C 131.
128
Cf. 1C 73.
129
Cf. 1C 66.
49
intestino. As cintas, que em tais casos costumam remediar, provocavam
ainda novas e múltiplas fissuras. O pai e a mãe do ferido andavam aflitos,
pois os médicos, por mais tentativas que fizessem para o curarem, nada
conseguiam. Resolveram então encomendá-lo a S. Francisco, levando-o a
uma igreja construída em sua honra na região de Véneto. 41Expuseram o
enfermo diante da imagem do Santo, por ele fizeram promessas, em conjunto com muita gente que se lhes juntou, e por ele se debulharam em
lágrimas. No momento em que na proclamação do Evangelho se lia que
mistérios ocultos aos sábios se revelam aos pequeninos, rompeu-se a cinta
que o doente trazia, desapareceram as mezinhas ineficazes, apareceu no
lugar da ferida uma cicatriz: foi uma total recuperação da saúde. E logo aí
se ergueu ao céu o clamor daquela gente, em louvor a Deus e em veneração
do Santo130.
42
João, da diocese de Sora, teve uma tão grave lesão de ruptura
abdominal que de nada lhe valeram as intervenções médicas. Aconselhado
pela esposa e por alvitre dum irmão a encomendar-se a S. Francisco e fazer
um sinal da cruz sobre o sítio lesionado, ao executar piedosamente esses
dois conselhos logo os intestinos voltaram ao seu lugar, com grande
espanto do próprio pela tão súbita como inesperada recuperação131.
—————
130
Cf. 3C 111.
131
Cf. 3C 114.
50
REFLEXÃO SOBRE AS REFERÊNCIAS
DA IDENTIDADE FRANCISCANA
AO LONGO DE OITO SÉCULOS
por Fr. Thaddée Matura1
—————
1
Artigo publicado em Frate Francesco 72 (2006) 465-474.
51
REFLEXÃO SOBRE AS REFERÊNCIAS DA IDENTIDADE
FRANCISCANA AO LONGO DE OITO SÉCULOS
Há oitocentos anos que existe um grupo de homens e mulheres
conhecidos como “franciscanos”2. São reconhecidos por determinados
rasgos comuns, por certas formas de ver e de actuar, algo que constitui
um espécie de identidade colectiva. O adjectivo “franciscano” que
identifica este grupo, remete-nos para a figura histórica de Francisco, para
—————
2
As reflexões que apresentamos pretendem ser um convite a pensar e a actuar, por
isso, evitamos todo o aparato científico como citações e notas. As propostas de leitura e de
interpretação são pessoais e discutíveis. No entanto, fundamentam-se num rico material
histórico, do qual assinalamos alguns títulos: Sobre a observância da Regra até ao Concílio
Vaticano II, existem alguns apontamentos em: L. HARDICK, La Regla franciscana y su primitiva observancia, em Verdad y Vida 20 (1962) 397-431: J. THERSCHLÜSSEN, La Regla
franciscana y las declaraciones pontificias vigentes, em Verdad y Vida 20 (1962 447-463;
K. ESSER, La Regla definitiva de los Hermanos Menores a la luz de las recientes investigaciones, em Cuadernos franciscanos de renovación n. 6 (1969) 69-116. Sobre interpretação
canónica tradicional: K. KATZEMBERG, Liber Vitae seu Regulae S. Francisci1 Expositio, Ad
Claras Aquas 1926, 10-16; T. A. VILLENEUVE, Explication de la Règle du premier Ordre de
Saint François, Paris 1933, 27-31
Sobre a imagem de Francisco em geral: R. DE BEER, François que disait-on de toi?
Paris 1977; Francesco nella storia, II, Roma 1983; imagem medieval: G. MERLO, En el
nombre de Francisco de Asís. Historia de los Hermanos Menores y del franciscanismo
hasta los comienzos del siglo XVI (Hermano Francisco, 50), Aranzazu 2005, 182-189; F.
ACCROCCA, L’escatologia del francescanesimo del duecento, em Attese escatologische dei
secoli XII-XIV, Aquila 2004, 63-92. A imagem de Francisco como ermita e asceta aparece
com força já na reforma de Pedro Villacreces no século XV, consulte-se: D. B. NIMMO,
Saint Francis within the observance, em Francesco nella storia, I, Roma 1983, 167-171;
esta imagem continuará a marcar a tradição franciscana ibérica, sobretudo a alcantarina,
assim como as reformas do século XVI e XVII.. Sobre a imagem romântica: S. DA
CAMPAGNOLA, Le origini francescane come problema storiografico, Perugia 1979, 133-361; La “Questione francescane” del Sabatier ad oggi. Atti del I Convegno
Internazionale, Assisi 1974; Paul Sabatier e gli Studi Francescani. Atti del XXX
Convegno, Spoleto 2003.
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o seu tempo e sua mensagem. Pretender ser e denominar-se franciscano,
remete-nos necessariamente para este ponto original, tal como no plano
completamente único, o ser cristão remete para Cristo. Para além disso,
não estamos certos que Francisco apreciasse muito o termo “franciscano”,
demasiado vinculado à sua pessoa. O movimento de fidelidade ao Evangelho, suscitado por Francisco, foi por ele resumido num vocábulo
profundamente evangélico: irmãs menores (pequenos), ou “irmãs pobres”
na versão feminina do seu projecto. Mas a identidade franciscana
constrói-se pela referência ao homem chamado Francisco e à – forma
sancti evangelii – vida segundo o Evangelho, que ele propõe. Este
projecto que desejou viver com seus irmãos e irmãs foi reconhecido pela
Igreja, e é, ainda hoje, um interpelação para todos os cristãos.
Efectivamente, ao longo de uma história de oito séculos, com altos
e baixos, os “herdeiros” e continuadores da aventura franciscana nunca
deixaram de se inspirar e renovar, para “refundar”. Para o conseguir é
necessário voltar ao passado, ao qual unicamente se pode aceder por meio
de relatos e de documentos escritos. Na realidade, no que se refere ao
acontecimento franciscano, os herdeiros dispunham de dois tipos de
testemunhos. De um lado, uma colecção bastante escassa mas
reconhecida como autêntica de escritos pessoais de Francisco que traçam,
essencialmente, um programa de vida evangélica. De outro lado, uma
quantidade importante de relatos hagiográficos, centrados, embora sob
pontos de vista diferentes, sobre a vida, as virtudes e os milagres de
Francisco, o seu herói.
Este recurso ao passado teve lugar não uma ou duas vezes, mas foi
constante ao longo dos séculos, sempre a partir de situações e contextos
históricos diferentes e, sempre em mutação. Neste artigo proponho-me
examinar esta permanente referência à inspiração original, que, ao mesmo
tempo, é busca e confirmação da identidade franciscana. É uma empresa
difícil, sobretudo se a queremos tratar com rigor científico. Se me aventuro nela, não é por pretensão ou provocação, mas para “fazer pensar”,
para ajudar a descobrir esta busca sempre idêntica de referências que fundamentam opções e uma prática de vida, e também para mostrar a grande
variedade de enfoques. Sem ser historiador de profissão, fundamento-me
na literatura importante consagrada à história e à espiritualidade franciscana, interpretando-a com a ajuda de algumas intuições – que haveria que
verificar e criticar – que me pareceram interessantes e fecundas para compreender melhor a nossa história e o nosso presente.
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A minha tese – se assim me posso exprimir – é a seguinte: ao longo
da história, o movimento franciscano, na sua principal expressão – a
Ordem dos Frades Menores –, na hora de fundamentar e afirmar a sua
identidade, teve dois pólos principais de referência: um escrito, a Regra (e
em determinados casos o Testamento) como base legal, canónica; a imagem de Francisco transmitida pelos biógrafos, compreendida e interpretada segundo o espírito da época, como inspiração e modelo espiritual –
base ideológica.
A REGRA: BASE CANÓNICA OFICIAL
Efectivamente, para ser reconhecido como movimento da Igreja,
fazia falta a aprovação de – propositum – projecto de vida. Para Francisco
e seus companheiros, este projecto foi a eleição de uma vida segundo o
Evangelho, esboçada num breve escrito – protoregula –, aprovada oralmente por Inocêncio III, em 1209. Este escrito embrionário tomaria ao
longo de mais ou menos quinze anos a forma de Regra definitiva que será
confirmada por uma bula de Honório III, em 1223. Esta Regra constitui a
base canónica legal da existência da Ordem dos Frades Menores e reconhecia-lhe um lugar na Igreja. Chegava-se a ser irmão menor – franciscano – comprometendo-se, mediante a profissão, “a observar durante toda
a vida esta Regra e esta vida”. Primeiro de forma amplificada – Primeira
Regra ou Regra não bulada –, depois condensada – Segunda Regra ou
Regra bulada – transmitia, sobretudo quando se relacionava com as
perspectivas expressas nos outros escritos de Francisco, o essencial da sua
mensagem espiritual e do seu radicalismo evangélico concreto. Com o
fim de assegurar a sua aceitação e a sua prática, Francisco redactou um
“Testamento”, pouco tempo antes de morrer, no qual, com insistência,
convidava os irmãos a observar “pura e simples e católicamente” esta
Regra.
Desta forma, a Regra é um escrito que se converteu na primeira e,
praticamente, a única referência da identidade franciscana, até à época
moderna. Como a sua aplicação, – sobretudo no campo da pobreza –
colocava problemas práticos, foi necessário comentá-la e interpretá-la.
Por isso os Irmãos Menores recorreram, em primeiro lugar, à autoridade
da Igreja. O primeiro comentário – declaração – procede de Gregório IX –
cardeal Hugolino – que conheceu e era conselheiro de Francisco. A sua
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declaração – Quo elongati (1230) – será seguida por outros Papas: Exiit
qui seminat de Nicolau III (1279) e Exivi de Paradiso de Clemente V, no
Concílio de Viena (1312). Os próprios irmãos também elaboraram as suas
declarações, como Hugo de Digne e os “Quatro Mestres” de Paris.
Quando se estudam estes comentários, ficamos impressionados pelo seu
carácter jurídico e casuístico; tratava-se de precisar detalhadamente o que
se devia fazer e evitar e qual era o grau de obrigação moral; encontraram-se na Regra vinte e quatro pontos que obrigam sub gravi! A dimensão
evangélica, quando não é suprimida, não é posta em evidência.
Na realidade, desde a morte de Francisco, até praticamente ao
Concílio Vaticano II, todos os grandes debates assim como todos os
movimentos de retorno – reformas – giraram à volta da observância da
Regra, lida e comentada desde óptica jurídico-casuística. O ponto
principal afectava principalmente a questão da pobreza comunitária –
renúncia a toda a propriedade colectiva e proibição de usar dinheiro, etc –
cuja prática radical constituía a originalidade do grupo. O Testamento,
cuja autoridade canónica não era reconhecida, associado na maioria das
reformas à Regra e lido ao mesmo tempo que esta, não era, contudo,
respeitado no que concernia à proibição de pedir privilégios à Cúria de
Roma.
Teremos que esperar o tempo do Concílio, para que a Ordem renuncie, com o acordo da Igreja (Paulo VI em 1970), a esta concepção legalista que, apesar de estar afirmada, não era praticada – e não podia sê-lo –
há já mais de um século. Desde as reforma das Constituições Gerais
(1967-1987), a Regra, vista de uma forma isolada e estreita, deixa de
constituir a primeira referência. Se, como afirma o artigo 2,1, a Regra
continua a ser “o fundamento da vida e da legislação da Ordem, tudo
quanto nela se contém é para ser entendido e observado no seu contexto
vital, segundo a mente de Francisco, expressa principalmente nos seus
escritos…”
Partindo deste recorrido histórico podemos concluir que a Regra
continua a ser um ponto de referência central e teremos motivo para celebrar como uma graça e um dom a sua aprovação há oito séculos. Como no
passado, os irmãos de hoje comprometendo-se com a Ordem, pronunciam
esta fórmula: “professo a vida e a regra dos irmãos menores… prometendo observá-la fielmente”. O que mudou é que não se trata de um
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texto fechado em si mesmo, lido de maneira fundamentalista. A Regra
deve ser entendida, agora, como o resultado e o resumo de toda a riqueza
teológica e espiritual, revelada a um dos “pequenos” segundo o
Evangelho (Mt 11, 25), e consignada nos seus humildes escritos. A
fidelidade à Regra que marcou toda a história da Ordem, continua a ser
uma tarefa permanente. Retendo as lições do passado, é necessário
encher-se do seu dinamismo evangélico para a expressar com mais força e
de outra forma no início do terceiro milénio.
Imagem de Francisco como inspiração e modelo; Base
“ideológica”
A Regra, mesmo que esteja marcada pela personalidade de
Francisco – dirige-se aos irmãos oito vezes em primeira pessoa – não diz
nada sobre a sua vida nem o propõe como exemplo. O que a regra propõe
é “observar a pobreza, a humildade e o santo Evangelho de Jesus Cristo”.
É verdade que o conteúdo evangélico muito depressa foi dirigido – e
reduzido – praticamente à pobreza material, ponto fulcral dos debates e
reformas da Ordem. Não obstante, era necessário para a vida dos irmãos
um estímulo, uma inspiração, uma determinada visão teológica e
espiritual mais completa, mais vasta, mais “cristã”. Os escritos de
Francisco respondiam, sem dúvida alguma, e esta exigência, mas
procediam de um homem de cultura simple e idiota. Apesar de serem
piedosamente copiados e conservados, não eram conhecidos nem
utilizados como base espiritual. Ao contrário, abundam as Legendas –
escritos biográficos que relatam a vida de Francisco –; num século
apareceram à volta de uma dezena, o que é muito para a época. Estavam,
como é normal, centradas na figura do herói. Cada uma, segundo o seu
ponto de vista, segundo os interesses e as necessidades dos colaboradores
e dos leitores, relatava o desenvolvimento da sua vida, as suas virtudes,
seus ensinamentos, seus milagres. A colecção destes “documentos” perfaz
mais de um milhar de páginas (1300 na edição portuguesa), enquanto os
escritos de Francisco pouco vão além das cem páginas. Entre estas Vidas
do século XIII, a mais difundida é a de Boaventura; foi esta Legenda que
transmitiu através dos tempos a imagem clássica de Francisco.
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1. A imagem medieval do século XIII ao século XV:
“Alter Christus” estigmatizado – anjo do sexto selo
Na vida de Francisco não se fala muito dele; o que desencadeou a
sua fama póstuma deveu-se principalmente aos estigmas verificados no
seu corpo depois da morte. Efectivamente, um fenómeno destes acontecia
pela primeira vez na Igreja. Marcas da paixão de Cristo, os estigmas fizeram de Francisco um alter Christus, uma espécie de réplica do
Crucificado e influíram profundamente, num sentido cristológico, na
apresentação da sua visão teológica. Por outro lado, a chave de leitura na
qual o papa Gregório IX situa Francisco na sua bula da canonização Mira
circa nos, apresenta-o como um apóstolo enviado por Deus à Igreja dos
últimos tempos. Imagem crítica, inserida no plano de salvação. Francisco
indica assim qual é a missão confiada à Ordem da qual é fundador. A sua
vocação pessoal, a aura que o envolve, a glória que irradia, repercutem
assim sobre a sua posteridade. Esta visão grandiosa insere-se facilmente
nas perspectivas desenvolvidas por Joaquim de Fiore e seus
comentaristas. Uma nova idade, a do Espírito Santo, está prestes a
irromper; tudo será liberdade, ordem, beleza; uma figura e um grupo de
frades contemplativos serão anunciadores e percursores desta nova época.
Muitos irmãos, e não só os anónimos – Hugo de Digne, João de Parma –
verão em Francisco o “Anjo do sexto selo” (Apc 7, 2) e aquele que
anuncia e traz o “Evangelho eterno” (Apc 14, 6), missão da qual a Ordem
– novus ordo – é chamada a tomar parte. Inclusivamente Boaventura, com
matizes para se manter nos limites da ortodoxia, conserva alguns destes
enfoques.
Estes, atribuindo a Francisco um lugar à parte na história da salvação, fizeram dele uma figura única, quase sobre-humana. Conferiram por
isso à sua Ordem uma missão e uma função privilegiadas, longe da
“pobreza, da humildade e da submissão a todas as criaturas”, valores fundamentais do seu carisma.
Esta imagem que sublinhará até ao exagero, – “O livro das
conformidades” de Bartolomeu de Pisa, que um franciscano especialista
na questão (P. Zahner) chamará esotérico, misterioso, escondido,
reservado aos iniciados– terá a sua expressão ao nível da arte através das
inúmeras representações da estigmatização e através do ícone hierático do
estigmatizado. Assim, de forma exagerada pelo facto dos estigmas e pela
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sua inserção privilegiada na história da salvação interpretada pelo
joaquinismo, Francisco se converte em emblema, objecto de um culto de
personalidade, contra a qual reagiu a reforma luterana, nem sempre com
razão. Não é necessário rejeitar todos os valores que oferece uma visão
deste calibre – Francisco continua como uma das maiores figuras do
cristianismo – mas não podemos esquecer que a concentração sobre a
figura do fundador e sua glorificação, fizeram esquecer frequentemente a
mensagem de que foi portador e que é maior e mais importante do que
ele.
2. Do século XVI ao século XVIII:
Francisco ermitão contemplativo e asceta
Depois da Devotio moderna, novas correntes espirituais percorrem
o século XVI: renascimento místico, movimento inaciano e carmelita.
Privilegia-se o recolhimento, a interioridade, a meditação silenciosa,
exame e conhecimento de si mesmo. As ordens antigas reformam-se,
insistindo na contemplaçã, e preconizam uma ascese rigorosa. Os
franciscanos, separados em 1517 em dois ramos, conventuais e
observantes, acabam numa espécie de cisão, em quatro reformas
suplementares: capuchinhos, reformados italianos, descalços espanhóis e
recoletos franco-belgas.
A referência principal, comum a estas “refundações”, continua a ser
sempre a observância “pura e simples” da regra, segundo as Declarações
Pontifícias e o testamento. A sua imagem de Francisco adoptará muitos
dos rasgos da espiritualidade do tempo. Sem dúvida alguma que se baseia
sempre sobre a figura clássica apresentada por Boaventura. Ainda que as
interpretações evocadas mais acima não tenham desaparecido completamente, já não se trata tanto de Francisco “o novo evangelista”, iniciador
da idade do Espírito que se apresenta ao culto e à imitação dos irmãos, É
o Francisco ermitão contemplativo, presente não só no Alverne mas no
fundo de uma cova, com um crânio a seu lado, o rosto em êxtase e o olhar
fixo no crucifixo. Desta forma aparece frequentemente na pintura clássica
e barroca, sobretudo em Espanha: El Greco, Zurburán, Cano. Veremos
incluso em uma igreja franciscana da Transilvânia, um Francisco “ Das
Luzes”, representado sem estigmas e sem auréola. As influências exteriores, procedentes das correntes centradas na interioridade e na contempla58
ção, contribuíram indiscutivelmente para formação desta imagem.
Entretanto, não fizeram outra coisa que recordar aos irmãos aquilo que a
figura de Francisco e sobretudo a sua mensagem implicavam: o lugar central da vida evangélica, da vida espiritual com suas exigências e
condições.
Devido à enorme difusão da Ordem – cerca de cento e trinta mil
irmãos no século XVIII – este período é o de mais difícil acesso e o
menos conhecido. Valeria a pena verificar, por meio de estudos de
numerosos textos espirituais produzidos na época pelos irmãos, qual era a
imagem de Francisco que inspirava os movimentos da reforma e até que
ponto diferia da imagem medieval. Em todo o caso, é necessário reter a
importância das influências que exercem as correntes culturais e
espirituais do tempo, de modo a perceber e interpretar uma figura do
passado. Isto é válido tanto para o passado sobre o qual estamos a reflectir
como sobre o presente. Na época em questão, Francisco já não é visto
como um irmão do século XIII, espiritual ou joaquinista, mas como um
homem do renascimento ou da Contra-reforma católica. É o mesmo, mas
também outro Francisco.
3. Do século XIX ao século XX: Francisco dos “românticos”
A época clássica, sobretudo no período “Das Luzes” (século
XVIII), amava a claridade e a racionalidade; para ela a Idade Média era
um tempo das trevas. Inicia-se uma reacção, em princípios do século
XIX, na busca de qualquer coisa sensível, menos inexpressiva, mais
poética; é o nascimento do romantismo. A arte romântica e gótica é
reabilitada e descobre-se “o génio do cristianismo”. Em 1826 o escritor
alemão J. Görres publica um livro com o título “Francisco, um trovador”,
que apresenta Francisco como um jogral, um orfeu da Idade Média.
Pouco tempo depois (1852), Frederico Ozanam faz o mesmo com “Os
poetas italianos do século XIII” ao eleger as Florinhas de S. Francisco,
publicando a primeira tradução em francês. Outras personalidades da
época interessam-se por ele: em França, o historiador Jules Michelin,
Renan e sobretudo o seu discípulo Sabatier; o mesmo aconteceu na
Alemanha: von Hase, Thode, Gebhart. Consideram Francisco como um
homem a caminho da liberdade, do individualismo, da autonomia, um
poeta na origem de uma arte nova (Giotto, Dante).
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Sabatier foi quem, na sua obra magistral “Vida de São Francisco de
Assis” (1893), de êxito fulminante, desenhou uma imagem “romântica” e
duradoira do santo. É um Francisco profundamente humano, que vive
uma experiência espiritual sem igual, mas fora dos cânones teológicos,
um profeta, um homem livre, amigo da natureza, poeta entusiasta,
precursor, pela sua pobreza radical, das revoluções sociais. Sem romper
com a Igreja, prefigura já a Reforma. Sabatier não deixa de lado a
dimensão religiosa de Francisco e afirma a importância capital dos seus
escritos para o conhecer. Historiador insigne, respeita os factos, mas a sua
interpretação global da figura de Francisco apoia-se na teologia liberal de
tendência modernista.
Sabatier marcou os estudos de Francisco de forma duradoira; apesar
de superada em muitos pontos, a imagem que ele traçou continua a impor-se – para o bem e para o mal –. Francisco homem novo e inclassificável,
Francisco revolucionário radical, Francisco poeta e jogral, Francisco que
ora pela paz, Francisco amigo dos animais e padroeiro dos ecologistas,
assim é conhecido hoje no grande público e assim o popularizaram as
múltiplas Vidas publicadas todos os anos, assim como as imagens que o
representam com os pássaros e o lobo. Percebemos a distância que há
entre esta imagem e as imagens das épocas anteriores. Se esta deu valor,
com acentos demasiado “românticos”, aos aspectos humanos da figura de
Francisco, deixou de lado a sua experiência cristã profunda de Deus e do
homem. Mesmo que a Família Franciscana nunca tenha aderido plenamente a esta perspectiva superficial, ela permanece subjacente a toda a
imagem de Francisco.
4. Francisco “futuro”: volta a ser actual
A investigação franciscana moderna, que se iniciou com Sabatier, e
da qual permanece como emblema, foi seguida ao longo do século XX
por um número importante de investigadores no interior da família
franciscana e cada vez mais fora dela. O resultado a que chegou, refere-se
a dois pontos importantes: a solução da “questão franciscana” e a
importância dada aos escritos de Francisco. A questão franciscana, isto
é, a de saber qual das numerosas, variadas, e às vezes opostas biografias
do século XIII, representa o “verdadeiro Francisco”, pode considerar-se
definitivamente ultrapassada. Em relação aos factos, todos estão de
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acordo de que cada autor propõe uma imagem de Francisco de acordo
com uma opção e uma interpretação, em função dos seus interesses e dos
interesses dos seus leitores. Cada obra possui uma verdade, e nenhuma
pode pretender apresentar um Francisco “real” e objectivo. O “Francisco
da história” com uma personalidade rica e contrastada, presta-se assim a
uma aproximação tal que explica a multiplicidade de imagens que se criaram dele e as que se farão no futuro.
E quanto à importância dos escritos de Francisco, podemos falar
com toda a razão duma viragem histórica. Para além da realidade da sua
conservação e da sua cuidadosa e fiel transmissão, um certo mistério
envolve o facto de não serem utilizados e a ignorância do seu valor teológico e espiritual durante séculos – com a excepção da Segunda Regra e do
Testamento –. Naturalmente que se levantaram vozes, entre elas a de
Sabatier, que se referem a eles como a principal fonte para o
conhecimento do pensamento e das intenções de Francisco e o critério
para julgar o valor dos relatos hagiográficos. Não obstante, foi preciso
esperar pelos anos 50 do último século para começar a descobrir, apesar
da escassez das colecções e o carácter fragmentário dos textos, a sua
surpreendente densidade humana e teológica.
Esta dupla descoberta, que se encontra na origem das transformações do franciscanismo nos finais do século XX, exige uma nova abordagem sobre a figura de Francisco e sobre a mensagem dos seus escritos, as
duas referências fundamentais da identidade franciscana. É necessário
render-se à evidência: as numerosas facetas humanas e espirituais de
Francisco não podem ser reduzidas de novo a um modelo monolítico. A
sua figura grandiosa, resplandecente com uma aura mística e poética,
entreaberta sobre as profundidades do mistério trinitário, continuará a
fascinar e a inspirar os homens. Efectivamente, não deveríamos cair no
culto da personalidade, em “fazê-lo o maior dos santos” – sobretudo para
nossa glória (cf. Ex 6) – em atribuir-lhe um papel único na vida da Igreja.
Não poderia ser o ponto fulcral de nenhuma espiritualidade, nem sequer
da franciscana, uma vez que o único Santo e o único mediador é aquele
que Francisco nos mostra e para o qual nos conduz, o Senhor Jesus
Cristo. Os escritos de Francisco muito contribuirão para esta relativização
e redimensionamento. Estes, mesmo quando trazem alguns escassos
elementos do conhecimento da sua figura, não têm por objecto o mesmo
Francisco, mas a vida evangélica que ele viveu com seus companheiros e
61
que propõe hoje a todos nós. O coração deste projecto é o mistério de
Deus na sua comunhão trinitária, ligado ao mistério do homem, grande e
miserável ao mesmo tempo, a quem esta comunhão é oferecida. É à volta
deste pólo que gravitam os trinta breves textos dos seus escritos. Temos
numerosos textos recentemente publicados: teses universitárias, livros,
artigos, fruto de análises e da interpretação desses textos, que trouxeram à
luz do dia uma visão global da vida cristã segundo o Evangelho,
fundamentada sobre uma profunda teologia e com ricas perspectivas
antropológicas.
Os investigadores e especialistas dos escritos estão de acordo com a
afirmação do historiador G. Miccoli: Os escritos de Francisco constituem
“os critérios e os parâmetros para aferir, avaliar e apreciar tudo o que se
publicou sobre Francisco, a sua experiência e o seu projecto de vida”. A
mensagem – “palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo do
Pai, e as palavras do Espírito Santo, que são escrito de vida” (2CF 3) – é
mais importante que o mensageiro, mesmo que seja Francisco de Assis.
Estes dois pontos de referência da identidade franciscana, a Regra e
a figura de Francisco continuam a ter actualidade. Mas temos de passar de
um texto legislativo reduzido e lido de uma forma casuística, para um
projecto evangélico que a colecção dos escritos propõe e desenvolve. E
do lugar central outorgado à figura de Francisco, passar à centralidade do
projecto, cujo coração é o Evangelho de Cristo, nunca totalmente acolhido, nem totalmente expresso na vida.
Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana
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CRISTO E S. FRANCISCO
Grande Rei e o poeta cantador da natureza
e da fraternidade
Fr. Gonçalo Figueiredo
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CRISTO E S. FRANCISCO
Grande Rei e o poeta cantador da natureza e da fraternidade
A figura de “Nosso Senhor Jesus Cristo” é a chave para compreender todo o percurso de S. Francisco, bem como de todos os santos. O
santo de Assis não teria sido o que foi, não teria feito o que fez, se Cristo
não estivesse presente, operante, como amigo e companheiro.
O agir de Francisco não é filantropia, cálculo, programa; o agir do
santo é Fé, adesão de todo o coração à Pessoa de “O Senhor”. Sendo certo
que o seu amor a todos os homens e a todas as criaturas, o ponderar do
seu actuar e do todo da sua vida, o plano muito concreto e evangélico de
vida, o seu ser e o seu trabalho são fé, expressão de fé, um abandono e
confiança total n’Aquele que por nós morreu e ressuscitou. A primeira
preocupação de Francisco não é o homem, a natureza, a Igreja ou ele
mesmo; a primeira preocupação de Francisco é Cristo. Ele é o centro e
por Ele chega a tudo o mais, aos homens seus irmãos, à obra da criação, à
Igreja, e a ele mesmo. A razão do agir de Francisco é Cristo que o leva ao
Pai, que lhe alarga os horizontes, rompe o tempo e o lugar, faz brotar
desejos de eternidade e de a todo o lugar chegar para levar a boa nova,
inclusive o desejo de se encontrar com o Sultão. É o Senhor o eixo à volta
do qual tudo em Francisco gira, é a referência constante para agir, pensar,
viver. É Ele o modelo supremo a imitar. Tanto assim que foi chamado
“alter Christus”, outro Cristo, tanto mais ele mesmo quanto mais próximo
de Cristo.
O único mestre que orienta Francisco é Cristo: (cf. LM II, 1) “ninguém me dizia o que devia fazer, mas o mesmo Altíssimo me revelou que
devia viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test.14). As palavras,
os gestos, o número de companheiros, o estilo de vida, bastam para perceber esta centralidade de Cristo na vida de S. Francisco; e se mais fosse
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necessário para provar este estilo de vida que quis para si e para os seus
companheiros, lá estavam as chagas impressas no Monte Alverne a provar
isso mesmo: identificação com Cristo pobre e crucificado.
Importa então saber que Cristo é este que move e polariza toda a
vida e pessoa de Francisco. Quem é Este que enamorou Francisco e por
quem Francisco se enamorou? Que imagem de Jesus se gravou fundo na
mente e no coração do pobrezinho de Assis? Foi o Cristo do Evangelho
que ele escutava religiosamente no Ofício Divino e na celebração da
Eucaristia, o mesmo Evangelho que ele proclamava como diácono,
crendo o que lê, ensinando o que crê e vivendo o que ensina. São os
Santos Evangelhos a fonte do conhecimento de Cristo. Outra fonte é a
Igreja na sua própria liturgia, os Santos Mistérios celebrados na catedral
de Assis ou nas pequenas igrejinhas por onde passa e pernoita, e o grande
Cristo em S. Damião. Um Cristo vivo de olhos grandes e abertos, centro
de um mundo ordenado para a Paz, o Cristo da misericórdia, o Cristo da
cruz e do deserto em fortes Quaresmas de intimidade com o Pai, um
Cristo presente nos sacerdotes “que vivem segundo a norma da santa
Igreja Romana, pelas ordens que têm” a quem Francisco quer temer, amar
e honrar como a seus senhores, pois eles aos demais administram o
santíssimo Corpo e Sangue, as santíssimas palavras divinas, os
santíssimos mistérios que devem ser honrados e colocados em lugares
preciosos. Um Cristo simples e trabalhador com as suas próprias mãos,
que quer que todos os homens trabalhem, não pela cobiça de receber o
preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e para repelir a ociosidade,
inimiga da alma. O Cristo humanado no seio da Virgem Maria, Senhora
pobrezinha, nascido na doçura do presépio de Belém, um Deus próximo
ao mesmo tempo que distante, o irmão e o Altíssimo, o pobre e o Rei do
Reis. Nada disto é teórico, especulativo, puro fruto do pensamento
desencarnado da realidade. É muito concreto, vivido, sentido na
fragilidade da própria carne pecadora de Francisco.
O Cristo que se dá a conhecer a Francisco na Sagrada Escritura, na
liturgia, nas igrejas, no crucifixo de S. Damião, nos pobres e nos irmãos,
comporta em si a altura da sua Majestade Divina, “Altíssimo e Glorioso”,
e a sua humanidade crucificada, o Senhor Altíssimo (LD, 2): é o Cristo
servo que se humilha, “cada dia vem até nós, pelas mãos dos sacerdotes,
como quando baixou do seu trono real a tomar carne no seio da Virgem;
cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar. O Senhor “rei omnipotente” é
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o servo sofredor cantado no Oficio da Paixão e visto claramente no
leproso; o Senhor da Glória é o Cristo da cruz, o “Soberano Deus” é o
Cristo mendigo e peregrino que vive de esmolas com a Sua Mãe e os seus
discípulos (1R9, 5.6). Estas duas realidades de Cristo, Francisco captou-as muitíssimo bem ao ver n’Ele o Altíssimo e o Baixíssimo.
O próprio modo como S. Francisco se refere a Jesus é, já por si
mesmo, muito revelador da imagem que ficou gravada no seu espírito.
Quase sempre lhe chama “Nosso Senhor Jesus Cristo”. É nosso, porque
Francisco sabe que não possui nada, muito menos Aquele que tudo possui
e que o possui a ele. É nosso porque é de todos e para todos os homens;
foi dado não ao anónimo da multidão mas a cada um em particular e a
todos totalmente como filhos de um Pai comum no Filho. É Senhor, muito
possivelmente à imagem dos senhores feudais da época, mas com um
senhorio que vai para além desses senhores que são servos; é o Senhor
dos senhores, a quem a reverência não anula a proximidade e quanto
maior a reverência maior essa mesma proximidade. Não é um Senhor
tirano e déspota que deseja a guerra, mas um Senhor revestido de
mansidão e misericórdia, que é a justiça para lá de toda a justiça. O ideal
do trovador cavaleiresco não se despegou da maneira de ser de Francisco,
ele continua a ser o servo do Grande Rei, escudeiro do Senhor Altíssimo,
e esta referência de poder dá-lhe profunda liberdade, ao mesmo tempo
que grande confiança na protecção daquele que vela pelos seus amigos.
Outro tipo de obediência é devida a este Rei, outro tipo de rei. Onde a
batalha não deixa de ser sumamente exigente, mas outro tipo de batalha,
com outro tipo de armas, a mesma preocupação pela libertação de cada
homem numa vida de santidade agradável a Deus. Outras armas, que não
as da guerra, entre senhores temporais: as armas da mansidão e do
Evangelho, da reconciliação e do anúncio de uma fraternidade de iguais,
todos necessitados desta força salvífica que reconstrói o homem. O termo
“Jesus” nunca aparece nos escritos de Francisco isolado; ou está
acompanhado do adjectivo “Senhor” ou na longa enunciação de “Nosso
Senhor Jesus Cristo”, a universalidade do senhorio de Cristo, verdadeiro
homem e verdadeiro Deus. Não há cedências nem à humanidade que
Cristo encarnou, nem à divindade que Jesus é. Não há uma espiritualidade
fácil e simplista de divisão e de fuga, refugiada numa divindade distante e
espiritualizada, alheia ou mesmo adversa à obra da criação, como não há
um materialismo fechado no mundo infra-celeste sem o horizonte da
eternidade. Há uma continuação clara, uma ligação evidente, entre o
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Jesus, na sua mais doce humanidade, e o Cristo na sua mais luminosa
divindade.
Em tudo a proximidade do olhar de fé e do toque das mãos que
cuidam.
Quanto mais Francisco se aproxima de Cristo, mais tem a percepção
clara da sua distância e da altura d’Aquele que por nós, pobres pecadores,
sofreu a paixão de cruz. Desta distância não brota a desconfiança, desapego, alheamento ou a rejeição de algo que nunca se pode alcançar, mas a
reverência, o reverente temor de obediência filial. Quanto mais percebe a
majestade de Cristo, mais se dá conta da sua pequenez, quanto mais
medita no abaixamento do próprio Senhor, mais se dá conta da Sua altura.
Esta aparente contradição: quanto mais próximo mais distante, quanto
mais baixo mais alto.
Também sabe Francisco que quanto mais ele mesmo se humilha
mais se levanta, quanto mais se abaixa mais é levantado, quanto mais
reconhece a sua fragilidade mais é atraído pelo forte, “o mais forte” que é
Cristo. É o mistério do abaixamento e exaltação que S. Paulo descreve no
seu hino.
Em tudo a disponibilidade do encontro, o deixar-se guiar pelo Espírito que nele habita pelo «espírito de santa oração e devoção, ao qual
todas as demais coisas devem servir». É conduzido pelo Espírito que
Francisco entra e permanece dentro da Igreja, na comunhão como o
“Senhor Papa” a quem promete obediência e reverência em fé verdadeira
que é a fé da Igreja. Ele já tinha entrado, mas agora permanece, e quer
que todos os seus irmãos permaneçam; ele permanece porque lhe foi dado
um lugar, foi-lhe atribuída uma missão. A experiência de Cristo é também
a experiência de Igreja que Francisco faz, do mais sublime e santo, do
mais fraco e desprezível, a graça e o pecado, a graciosidade de Cristo
contrastante com a fragilidade da carne sujeita ao pecado da
desobediência, o afastamento do redil. Mas apesar do que parecia aos
olhos da carne desprezível e vil, Francisco não abandona a Igreja, pois
sabe que é nela que Cristo mora, ainda que essa igreja esteja tão em
ruínas e abandonada como a velha e solitária igrejinha de S. Damião. É
guiado pelo Espírito que Francisco entra um dia para orar em S. Damião.
Todo ele reza, reza com o coração, com a mente e com o corpo, ora com o
coração de forma devota, com a mente em fortes suplicas e com o corpo
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pela maneira como se prostra aos pés do Crucifixo. Esse grande crucifixo
do grande Cristo rodeado dos santos abrangendo todo o mundo, vivo e
com as marcas da paixão, que o invade “tomado de um modo
extraordinário pela graça divina que o torna completamente diferente do
que era momentos antes” (2C 10). Quando entra Francisco na Igreja para
não mais sair? É demorado o seu processo de conversão, leva o tempo da
purificação, o purificar a vontade e a inteligência, o sujeitar o corpo à
disciplina do jejum, o limpar os sentidos para ver bem o que só bem se vê
com a pureza de coração. É a própria imagem de Cristo que leva tempo a
purificar pelo despojar dos fantasmas, das mundanas imagens de glória e
vã glória. Quando entra Francisco na Igreja para não mais sair? Quando
descobre que tem muito para descobrir na verdade do Senhor que o atrai a
Si.
É o olhar olhos nos olhos, o face a face, de quem se deixa olhar e
convocar pela voz de uns lábios despregados que falam, chamam,
dirigem-se não a uma multidão anónima mas ao concreto de uma pessoa,
“chamando-o pelo próprio nome: «Francisco»”. Porquê “Francisco” se o
seu nome de Baptismo era João? Que lhe reconhece Jesus para o tratar
assim, “pequeno francês”? Como que o “crisma” de quem confirma a sua
sensibilidade apurada e provençal herdada de sua mãe, o reconhecimento
de uma radical transformação que comporta em si mesma a mudança de
nome, já antes operado pelo desejo opulento de seu pai. Seria porque
Francisco já não se identificava com o nome do Apóstolo ou do Baptista,
uma remota lembrança de um sacramento administrado na ausência
paterna, de tão habituado que estava a ser tratado, chamado, pelo doce
nome de sabor a terras distantes, conhecidas pelos seus comércios de
finos panos e mornas melodias de amor cortês. Designado por um nome
novo, confirmado na sua personalidade sensível, é uma nova criatura que
nasce sob o olhar e a voz do Senhor.
Este ser objecto de uma voz, alvo de uma atenção, incidência de um
olhar cheio de misericórdia, desmonta Francisco, deixa-o ele mesmo em
ruínas, “pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina resposta”. As
suas antigas seguranças desaparecem, deixa de se fiar de si para se voltar
para Aquele que já não é somente uma imagem pintada num belo
retábulo, ou uma ideia bonita numa letra impressa, mas Um que se
desprende e se mexe, fala-lhe, sai uma Voz. Tem diante de si uma
representação de Cristo, vê milagrosamente uma Pessoa. A iniciativa não
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é de Francisco, inaudito milagre. A novidade da acção do Alto, da pintura
sai a Pessoa, da letra sai o Espírito, tem diante de si Cristo que se dirige a
Ele. Num repente, um instante único, um momento de graça que deixa na
sua alma a perfeita consciência de ser amado por Deus, olhado por Cristo,
habitado pelo Espírito. Tudo o mais é busca e aprendizagem, isto é
certeza de fé. Francisco passará toda a sua vida a reconstruir. Primeiro a
reconstruir-se a si mesmo, ele que tinha ficado em pedaços com aquele
encontro, passa a sua vida a recolher pedras para a igreja, ocupa-se em
identificar-se cada vez mais com o Senhor. Quer ser como Cristo e por
isso o imita na sua forma de vida simples, pobre, casta e obediente, toma
Maria, “Senhora dos Anjos”, por mãe do seu grupo também ele de doze,
como os Apóstolos.
Francisco sabe agora que recebeu um encargo: ser colaborador de
Cristo na obra da regeneração e restauração da Igreja, sabe também que a
casa é d’Ele, do Senhor que nela mora. Francisco não é o dono da casa
mas o servo do Grande Rei. Um encargo lhe foi dado, um sagrado e verdadeiro encargo, uma missão.
Do encontro uma coisa fica fortalecida em Francisco: a sua vontade.
A vontade firme e tenaz de obedecer imediatamente à ordem recebida:
“nada mais queiramos, nada mais desejemos, do que fazer a sua santa
vontade”. Não sabe bem por onde passa essa obediência, vai descobrindo
com o tempo, falhando umas vezes, afinando outras, buscando sempre.
Está interiormente fortalecido, e concentra todas as forças para executar
essa vontade que não muda, mas que cada dia se vai descobrindo mais
profundamente. É a espontaneidade de Francisco, a inspiração do
momento, é a descoberta de cada vez dos contornos dessa vontade que
não se coaduna com o já estabelecido, mas reveste-se de coisas sempre
novas: “Eis que vou renovar todas as coisas”. Francisco não se refugia na
inteligência para perceber o que aconteceu e o que deve fazer. Não tematiza para se desculpar, não se senta à secretária para programar, reza e faz.
“Nem ele mesmo conseguiu alguma vez exprimir a inefável
transformação sofrida nesse instante”. Há neste olhar um “segredo”,
qualquer coisa de indizível, secreto, íntimo sem ser intimista, guardado no
coração do coração de Francisco que foi tocado, fortalecido, olhado,
chamado e enviado. Uma intimidade de tal ordem que nem as palavras
perturbam ou podem perturbar. A linguagem é agora acção obediente. É o
diálogo sem mais palavras do que as que saem de Cristo. O Senhor fala e
o servo que ouve responde não com frases, perguntas, objecções, questões
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ou outras teorias. A resposta de Francisco é feita de obra e louvor. Pedra
sobre pedra, das pedras recolhidas do mendigar pelas portas, frases da
Sagrada escritura recolhidas pela meditação e memorizadas, tudo posto e
sobreposto, erguido até ao céu, para o alto, sem o cálculo de um
engenheiro mas com a beleza de um poeta. A resposta de Francisco é a
sua vida, o seu trabalho, o seu cantar melodioso de apaixonado, como
aquele que sente em si a paixão.
Inaudito milagre. Nunca ouvido nem relatado acontecimento.
Nunca se tinha ouvido tal coisa. Não se contou que alguma vez tal coisa
tenha acontecido. Um milagre, a dúvida das explicações, a incerteza do
acontecimento que escapa radicalmente à lógica natural das coisas. Não
teria sido aquela voz, aquele mover de lábios, fruto da imaginação do
penitente e macerado Francisco? Estava sozinho. Só. Não foi outro nem
para outro. Não havia testemunhas, cronistas ou biógrafos que relatassem
e testemunhassem a verdade do acontecimento. Ninguém para fazer
suspeitar que tenha sido outro que não Cristo a falar, ninguém para lhe
deixar a dúvida se seria mesmo para ele ou para outro que ali estivesse. E
não havia testemunhas que o confirmassem no que acabava de ouvir. Não
havia mais ninguém para o chamar ao mundo dos acordados, dos
supostamente lúcidos e despertos. Uma solidão que não deixa marcas para
a dúvida: “Francisco” é ele, não outro, não o seu vizinho, há mais
Franciscos, mas não estão ali. É para ele, com certeza, a certeza da fé, que
Alguém fala, é a ele que Alguém se dirige. Mas como, se não há mais
ninguém por perto? Só Francisco e um vetusto crucifixo numa igreja
abandonada e de todos esquecida, ameaçando ruínas. “Onde houver
dúvida que eu leve a fé”; perante tantas e tão grandes dúvidas, duvidando
do seu próprio juízo, Francisco convoca a fé e acredita que Alguém lhe
fala, a ele, só a ele, para ele. Acredita n’Aquele que o crucifixo pintado
evoca e que tantas vezes lhe falou nas letras dos Evangelhos. Talvez estas
dúvidas o voltem a assaltar e Francisco se pergunte da razão de ser que
move a sua vida. Tentado nos momentos de desânimo e desapontamento,
talvez dê ouvido a estas dúvidas, e baixando os braços deseje uma outra
coisa mais lógica, mais realista ou convencional. É nestes momentos de
densas trevas que brilha a ténue luz da fé, uma certeza de confiança
n’Aquele que tem nas suas mãos o governo deste mundo, o sustento de
todo o ser vivo.
Algo se enraíza tão entranhadamente em sua santa alma, Alguém
tomou conta de Francisco e se entranhou nele, Cristo. Ficou tomado, a
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partir de dentro, pela paixão do Crucificado, uma paixão pela Paixão, uma
entrega ao Entregue, no segredo daquele que todo inteiro se entregou nas
mãos do Pai.
Fortalecido na vontade de seguir o Senhor para onde quer que Ele
vá, não se sente dispensado de usar todas as potências da alma. A vontade
fortalecida pelo olhar do Cristo que o olha impele-o a também ele abrir
bem os olhos: “vai e repara a minha casa que, como vês…”. Olhar e ver, a
atenção ao Cristo que passa, e ao que se passa à sua volta para tudo ver
com os olhos interiormente renovados, os olhos do Crucificado, um olhar
de paixão sobre tudo e todos. Francisco, mais do que um contemplativo, é
um atento “olhador” das realidades que o circundam e que o remetem
para o próprio Cristo. Por isso tudo lhe falava de Cristo e ele a todos
falava do “amor que não é amado”. A pedra, a fonte, a ovelha, o pastor, o
burro e a vaquinha, tudo, naquele olhar interiormente purificado, o remete
para o Senhor. É um altíssimo contemplador das coisas criadas, porque
para tudo e todos olha com o olhar com que foi olhado, o da misericórdia.
Aquele “segredo” que o envolve num instante sublime, “inaudito
milagre”, trespassa-o e entranha-se para não mais o largar. É a
experiência da misericórdia que está para lá de todas as formalidades,
juízos humanos e aparências. Um encontro que lhe fica gravado a fogo no
coração para não mais se apagar, a que Francisco recorre constantemente
no fortalecimento da sua vocação e missão.
Francisco não tem do mundo uma imagem exagerada. Não é ingénuo pensando que tudo é bom e inofensivo. Ele sabe que há lobos que
necessitam de reconciliação. Não é um optimista desencarnado, nem tãopouco um pessimista desesperado, incapaz de reconhecer os sinais da
bondade divina que tudo preparou para os seus filhos. Há o perigo de
pintar o mundo a preto e branco, os bons e os maus, os que são a favor e
os que são contra, os amigos e os inimigos, os cristãos e os muçulmanos.
Há também a tentação de pintar o mundo com as cinzentas cores da
indiferença, um crepúsculo sem cor, uma uniformidade no grisalho
medíocre, pesado e triste. O mundo de Francisco é colorido, como são
fortes e luminosas as cores do Cristo que o olha no crucifixo de S.
Damião. Está longe de Francisco a nossa visão da Idade Média como um
tempo de trevas e escuridão obscurantista, uma quase civilização
mergulhada no nevoeiro da sujidade, doença e ignorância. Ali há cor,
alegria, vida, cântico e louvor. Francisco é realista, esperançadamente
realista. Com a sabedoria do Pai das luzes ele sabe ver o negro do pecado,
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o vermelho da paixão de Cristo, e todas as cores que o rosto radiante do
Senhor põe a descoberto. Percebe claramente que a situação do homem
está longe da perfeição, que o homem ameaça ruínas: “está quase em
ruínas” ouviu ele da boca de Cristo. E por isto, todos sem excepção, e ele
mais do que todos, precisam de conversão, do remédio da penitência que
opera a transformação, abre os olhos e dá sabor à vida: “Deus, nosso
Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que
começasse a fazer penitência (…) e o que antes me parecera amargo
converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo” (T 1, 3).
É a “casa” que está em ruínas. O lugar do encontro e do
acolhimento dos que chegam como hóspedes, mas a quem importa dar um
lugar à mesa. A casa da humanidade que é o mundo, a ecologia, a casa
dos cristãos que é a Igreja, a casa do Espírito que é o próprio homem. É a
casa que está em ruínas. São as relações do homem com o outro homem,
do homem com Deus, que ameaçam fendas, desmoronar, cair, o caos da
desordem, a confusão da loucura, o emaranhado de interesses. Repara,
como quem pára para rever, olha e vê, vê para reparar e refazer o que o
abandono desfez. Restitui ao uso para o qual foi feito o que estava em
desuso, devolve à memória o que tinha caído em esquecimento, volta a
colocar no roteiro dos povos um lugar de encontro que tinha estado abandonado. São as divisões dentro da Igreja e do próprio homem, é a consequência do pecado, é a guerra que o homem trava dentro de si mesmo.
“Iluminai as trevas do meu coração”. Francisco pede um olhar limpo e
límpido que lhe permita reconhecer as belezas de que está envolvido,
pede a clarividência, o discernimento e a ciência, a sabedoria do coração
para ver bem, ver claramente à plena luz do dia, a sua própria realidade,
sem defeito de visão, sem aumento de exagero, sem defeito de olho míope
e curto. Ver bem com o coração para saber onde está a ruína, onde é
preciso actuar. Ele sabe que o homem está doente, sabe qual é a sua
doença, e, sabedoria dos santos, sabe qual é o seu remédio: o amor de
Deus.
À perfeita saúde do corpo e da alma dá Francisco um nome, Paz.
Paz e Bem, a reconciliação dos homens irmãos juntos ao mesmo Senhor
que a todos atrai. Faz disto também a sua bandeira: “esta saudação me
revelou o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz” (Test. 23). O
reconhecimento das diversidades cromáticas de cada um como uma
riqueza para o mundo. A diversidade de sentires, o complemento de todos
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que fazem o frade perfeito, a humanidade capaz de avançar num
progresso humano, verdadeiramente humano porque divino.
Mas o trabalho de Francisco é animado pela certeza da fé de ver um
dia a pobre e abandonada igrejinha de S. Damião, a Igreja e o Homem,
perfeitamente reconstruída, limpa e habitada, cumprindo a missão para a
qual foi construída e sonhada. Francisco, mais do que optimista, é homem
de esperança, quer levar a bom termo o sagrado encargo que recebeu.
Sabe e sente que isso é possível e por isso deita mãos à obra. Não há nada
que o homem não possa fazer com as suas mãos se tiver a força do Alto e
a graça de Deus. O trabalho que lhe é pedido é possível de acabar, talvez
seja demasiadamente pesado para um só homem, mas ele tem tempo e o
Senhor dá-lhe companheiros. Homens de todo o tempo e lugar, povos,
línguas e nações se juntam a Cristo, por Francisco, na construção de uma
nova fraternidade.
Tudo partiu e parte de um olhar que a cada momento nos chama
pelo nome e nos envia: “Vai e repara a minha casa.”
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