nº 32 - Editorial Franciscana
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nº 32 - Editorial Franciscana
CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 32 Editorial Franciscana BRAGA - 2008 1 Ficha Técnica Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 32 - 2008 Cada número dos Cadernos é vendido avulso 2 Índice I — Estudos 1. Fr. Bernardo de Besse — Louvores de S. Francisco – Crónica Franciscana 2. Fr. Thaddée Matura — Reflexão sobre as referências da identidade franciscana ao longo de oito séculos 3. Fr. Gonçalo Figueiredo — Cristo e Francisco – Grande Rei e poeta cantador da natureza e da fraternidade 3 I — Estudos Crónica de Fr. Bernardo de Besse LOUVORES DE S. FRANCISCO 5 LOUVORES DE S. FRANCISCO Introdução Pouco se sabe sobre a vida de Fr. Bernardo Besse. As Crónicas da Província da Aquitânia apresentam-no como sendo membro daquela Província, companheiro de viagem e secretário de S. Boaventura1. Outra fonte de informações sobre Bernardo de Besse é a Crónica dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores também conhecida como Crónica dos XXIV Gerais da Ordem dos Menores2. Aí encontramos mais alguns dados sobre a sua vida e sobre os seus Escritos. É considerado o autor da obra Chronicon XIV vel XV Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum seu Catalogus ‘Gonsalvinus’ dictus Generalium Ministrorum Ordinis fratrum Minorum3. O estudo que Ehrl publicou sobre o Catalogus, em 1883, sustenta que, uma vez que fala da canonização de S. Luís, que foi em 1297, Bernardo Besse teria trabalhado nesta obra pelo menos até essa data, possivelmente até 13054. Embora isso não seja aceite por todos os comentadores, dá uma ideia ————— 1 Cf. Fontes Franciscani, Edizioni Porziuncola, 1995, p.1245. 2 A Imprensa da Universidade de Coimbra publicou, em 1918, o texto de um códice medieval, um manuscrito do século XV, até então desconhecido do público, guardado na altura na Biblioteca Pública de Lisboa sob o nº 94. José Joaquim Mendes, Sócio correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, interessou-se pelo texto, publicando-o então pela primeira vez. Deu-lhe o título de Crónica da Ordem dos Frades Menores, mas o título original é Crónicas dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores, e corresponde na sua totalidade com a Crónica dos XXIV Gerais ou Crónica dos Ministros Gerais da Ordem dos Frades Menores. O texto em português, uma tradução do século XV da respectiva obra, vai só até ao décimo Geral. Citamos este texto. 3 Cf. Analecta Franciscana, III, pp. 693-707; 4 F. EHRLE, Zur Quellenkunde der älteren Franziskanergeschichte. Der Catalogus Ministrorum generalium des Bernhard von Besse, em Zeitschrift für katholische Theologie, 7(1883), pp. 323-52:Cf. Fontes Franciscani, pp. 1245-46. 7 sobre a época em que viveu Bernardo de Besse. Outra obra que lhe é atribuída é o Espelho de Disciplina5. A obra mais conhecida é o Liber de Laudibus Beati Francisci6, publicado muitas vezes com o título Crónica de Bernardo de Besse. Na Crónica da Ordem dos Frades Menores, quando relata os factos e feitos do sexto Geral, Fr. Crescêncio, é dito que “… foi eleito no capítulo geral que foi celebrado no ano do Senhor de mil e duzentos e quarenta e cinco, no qual capítulo o dito Geral mandou a todos os frades que possuíssem em espírito qualquer coisa que se pudesse saber verdadeiramente da vida e milagres e sinais maravilhosos de S. Francisco… E depois frei Tomás de Celano… compilou… aquele tratado da Legenda Antiga (2C) … a qual Legenda depois frei Bernardo de Bessa da Província de Aquitânia reduziu a forma mais breve e que começa Plenam virtutibus”7. Na mesma Crónica se faz alusão a um livro que frei Bernardo de Besse escreveu “… das três religiões de São Francisco…” que na realidade corresponde ao sétimo capítulo do Liber de Laudibus beati Francisci8. Estanislau de Campagnola sustenta que Frei Bernardo de Besse terminou a sua obra depois de 1279. Segundo alguns comentadores, foi no Liber de Laudibus que Dante se inspirou para tratar da maior parte dos temas da vida de Francisco e seus frades na Divina Comédia9. No âmbito das comemorações dos 800 anos da fundação da Ordem dos Frades Menores, é intenção dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana dar a conhecer ao público português algumas das Crónicas Franciscanas mais representativas do século XIII e que até agora não estavam acessíveis aos interessados dos temas franciscanos. ————— 5 Cf. Fontes Franciscani, p. 2514. 6 A edição crítica foi publicada na Analecta Franciscana, III, pp. 666-92; É de considerar também a edição inglesa: D. AMICO, Bernard of Besse: Praises of Blessed Francis (Liber de laudibus Beati Francisci), em Franciscan Studies, 48, (1988), pp. 213-288. 7 Crónica da Ordem dos Frades Menores, op. cit. II. Vol. p. 73-74 8 Ut supra p. 45 9 Fontes Franciscani, op. cit. p. 1250-1251. 8 LIVRO DOS LOUVORES DE S. FRANCISCO Por ordem do senhor Papa Gregório IX, o irmão Fr. Tomás, dotado de notáveis qualidades literárias, escreveu em Itália uma biografia de S. Francisco recheada de virtudes; e consta que um respeitável notário da Sé Apostólica, D. João, 2redigiu também uma outra intitulada Quasi stella matutina (“Como estrela da manhã”)1. 3Em França, por sua vez, escreveu sobre ele o erudito e santo Fr. Julião, que compôs a letra e a música dum Ofício Nocturno em louvor de S. Francisco, além de vários hinos, antífonas e responsórios que o próprio sumo Pontífice e alguns Cardeais publicaram em louvor do Santo. 4E por fim surgiu o Ministro Geral Fr. Boaventura, autêntico depósito de ciência e de virtude, que depois de ter sido um excelente professor catedrático de teologia em Paris, foi nomeado Cardeal da Igreja Romana e bispo de Albânia. 5Sendo assim uma pessoa de tanto prestígio, e ao mesmo tempo de tal discrição e carácter, a ponto de toda a gente o considerar digno dos mais altos cargos, também ele, pelos méritos celestes do Santo, retratou providencialmente em terminologia simples e credível o digno arauto [do Grande Rei]. 6 Aqui, no entanto, poucas referências se farão a outros novos episódios – ou a episódios já mencionados nessas biografias, quando vier a propósito. Por motivo de brevidade, que todos agradecerão, omitem-se muitas peripécias da vida do Santo e dos seus seguidores, e sobretudo os milagres ocorridos depois da sua morte, já avalizados pela autoridade apostólica para seu louvor e prestígio. 7 O essencial é imitarmos o seu exemplo; e se não conseguirmos imitá-lo perfeitamente, devemos ao menos respeitá-lo. 8Quem é que seria capaz de seguir rigorosamente os passos de S. Francisco e dos companheiros que com ele conviveram? 9Por isso é que a ninguém pretendeu impor o rigor de pobreza e de perfeição que ele mesmo observava; mas guiado por inspiração divina, limitou-se a redigir uma perfeitíssima regra de vida, que por todos pode ser observada em qualquer tempo. 10Quem observar essa regra nunca trairá o espírito do santo Pai, por mais que nas diversas épocas variem os costumes. 11A perfeição que podemos ver nos santos é útil para nos incitar à virtude e serve como de lanterna para orientar o nosso modo de proceder. 1 ————— 1 Cfr. Sir 50,6 9 Capítulo I Teor de vida de S. Francisco e seus primeiros discípulos Tanto pela vida como pela doutrina e pelos milagres, Francisco resplandeceu no mundo como o sol nascente. 2Enquanto seu pai cuidava dos negócios terrenos, sua piedosa mãe, como outra Isabel, deu-lhe o nome na pia baptismal e prognosticou que pela graça divina seria um filho de Deus cheio de méritos. 3No período do crescimento, quase até aos vinte e cinco anos, levou uma vida exteriormente bastante mundana. 4Mas por fim desfez-se de tudo para seguir devotamente as pisadas de Cristo, restaurou na própria vida a antiga forma de viver dos Apóstolos, e edificou a casa da sua Ordem em alicerces sólidos de pobreza evangélica – não sobre a areia de bens temporais, mas sobre a pedra que é Cristo. 5 A seguir a ele, a primeira pedra do edifício da nova Ordem foi Fr. Bernardo de Quintavale2, um irmão inflamado de amor de Deus, que se desfez do seu valioso património não em favor dos parentes, mas dos pobres, e se distinguiu por uma vida santa, finalizada com uma morte cheia de milagres. 6A segunda pedra da nova casa foi Fr. Pedro3; também ele renunciou em absoluto ao mundo e da mesma forma distribuiu pelos pobres os seus bens. 7A terceira pedra foi Fr. Gil4, dotado de tão notável santidade, que, segundo consta, Deus lhe teria concedido a graça de socorrer a todos aqueles que o invocassem pedindo qualquer bem para a própria alma: 8isto nos conta o já referido piedoso Geral e Cardeal (Fr. Boaventura), cuidadoso pesquisador de tais revelações. 9 A três outros que se seguiram ajuntou-se Fr. Filipe, a quem o Senhor purificou os lábios com uma brasa viva (como ao profeta Isaías), de sorte que, sendo embora leigo, entendia e interpretava as Escrituras e dizia coisas maravilhosas acerca de Jesus5. 10Enfim, segundo nos contaram, os doze primeiros discípulos de Francisco, para os quais ele 1 ————— 2 Cf. 1C 24, 2-8; TC 27, 2-3. Fr. Bernardo inspirou um terceto de Dante: “… foi o venerável Bernardo o primeiro a descalçar-se, dirigindo paz tamanha, e, correndo, ainda se julgou mui tardo” (Par. XI, 5). Cf. FF 1, 3ª ed. P.250, nt. 50. As abreviaturas dos Escritos de S. Francisco usadas nas citações são tiradas de Fontes Franciscanas I – S. Francisco, Editorial Franciscana, 3ª edição, Braga, 2005. 3 Cf. 1C 25; TC 28, 6. Trata-se de Fr. Pedro Catânio. Acompanhou Francisco ao Oriente, foi Vigário Geral, ainda em vida de S. Francisco e morreu na Porciúncula em Março de 1221. 4 Cf. 1C 25; TC 32, 2-3. 5 Cf. 1C 25,4. 10 escreveu uma regra6 e a quem deu orientações como Cristo aos Apóstolos, todos foram santos, 11excepto um, que abandonou a Ordem e se enforcou como Judas – de modo que até a respeito dos discípulos Francisco foi parecido com Cristo. 12 Ainda ele não contava senão com seis irmãos, quando lhe foi concedida a graça extraordinária de ter tanta certeza de a Ordem se vir a estender por todo o mundo, a ponto de lhes poder desvendar o futuro como se fosse presente: 13«Já tive uma visão de caminhos cheios duma multidão de gente a vir ao nosso encontro; nessas multidões vinham Franceses, Espanhóis, Alemães e Ingleses – uma turba enorme das mais diversas línguas a correr a toda a pressa»7. 14Também costumava distinguir os irmãos da primeira e da última hora comparando-os com frutos mais ou menos saborosos. 15 Entre os primeiros, brilharam por suas virtudes alguns ilustres irmãos e padres, como Fr. Soldanério, Fr. Rogério, Fr. Rufino e Fr. João das Loas8, que teve o privilégio de tocar nas chagas dos estigmas de Francisco ainda em sua vida. 16Outro irmão também íntimo do Santo foi Fr. Ângelo, bem como Fr. Leão, seu confessor, e um outro Fr. Leão, que mais tarde governou a Igreja de Milão como arcebispo, 17e ainda Fr. Tiago, que teve a dita de ver subir ao Céu a alma do santo Pai em forma de estrela tão brilhante como o Sol9. 18Padres santos foram também Fr. António, Fr. Nicolau, Fr. Simão, Fr. Ambrósio, Fr. João, e muitos outros, dos quais seria longo falar individualmente, e que iluminaram esses tempos antigos com o esplendor das suas virtudes. 19Os seus corpos foram sepultados em paz e estão expostos à veneração em locais sagrados. 20Os restos mortais de Fr. Bernardo10, de Fr. Rufino, de Fr. Leão e de Fr. Ângelo11, encontram-se na igreja de S. Francisco em Assis; os de Fr. Egídio em Perúsia; os de Fr. Soldanério na igreja dos irmãos menores de ————— 6 Cf. 1C 32,1; EP 21, 2; TC 51, 7 7 Cf. 1C 27, 5-6. 8 Fr. João das Loas (ou dos Louvores, cf. EP 85, 10) é, segundo alguns comentadores, o mesmo que Fr. João de Florença, ou de Lodi. Segundo EP 85,10 que desenha o verdadeiro frade menor, este devia ter entre outras qualidades, “o vigor corporal e espiritual do irmão João de Loas, que, no seu tempo, ultrapassava todos os homens em força corporal”. Cf. 1C 110, 5. 9 Cf. 2C 110,5 confirma o facto, anotando que não menciona o nome porque o irmão ainda vive. Cf. 2C 217a, 1 TC 68,2. 10 Cf. 1C 24,2; 2C 48,1. 11 Cf. TC 1,1. 11 Viterbo; os de Fr. Junípero na igreja de santa Maria do Capitólio em Roma. 21 O irmão Soldanério, qual sol resplandecente, brilhou no mundo tanto pelo exemplo como pela doutrina; 22o irmão Junípero12 sobressaiu por uma tão inabalável paciência, que ninguém jamais o viu perturbado apesar dos apuros em que esteve envolvido; 23o irmão Rogério13 salientou-se por uma vida de indiscutível virtude, a ponto de o senhor Papa Gregório IX o ter declarado e confirmado como autêntico santo e ter autorizado que a sua memória se celebrasse em Tódi14, onde repousam as suas sagradas relíquias – se bem que não tenha permitido celebração de festa solene como era costume em tais circunstâncias, razão pela qual, segundo nos foi dito, foi posto de parte o processo da sua canonização. 24 Quanto ao irmão António de Pádua, continua a ser um sem-fim de novos prodígios. 25O santo irmão Nicolau, de quem se diz que entre outros prodígios ressuscitou um defunto que ia ser retirado do leito da morte e deu olhos novos a alguém a quem os naturais tinham sido vazados, jaz em Bolonha, na igreja franciscana. 26Ao irmão Ambrósio, com fama de numerosos milagres, venera-o a vetusta cidade de Roma, onde ele tem a eterna mansão. 27O irmão Simão, favorecido pela graça de realizar maravilhas, engrandece com a realização de numerosas curas a cidade de Espoleto onde descansa. Com efeito, eu mesmo tive a oportunidade de ver no vale de Espoleto um defunto ressuscitado por sua invocação. 28A veracidade desse milagre, bem como de muitos outros, foi reconhecida e solenemente aprovada pela autoridade apostólica do bispo de Espoleto, após cuidadosa e diligente investigação. 29Foram também de eminente santidade o irmão João e o irmão Nicolau; o primeiro dos dois, Fr. João, que foi ao encontro do Senhor enquanto desempenhava o múnus de Guardião, já tornara ilustres várias regiões da Alemanha por suas obras maravilhosas. 30 Também da mesma forma nos mostraram caminhos de perfeição, com exemplos duma vida santa que pudemos admirar, o irmão Agostinho15 e o irmão Guilherme: de ambos se recorda que ainda em vida a sua virtuosa santidade resplandeceu em sinais do céu. 31O venerável ————— 12 Cf. EP 85,9. 13 Cf. EP 85,11; 1C 216,12. 14 Cf. FF1, 3C1,16, nota 18 onde se diz que o Beato Rogério de Todi foi um dos primeiros frades a ser beatificado. 15 Cf. 2C 218. Trata-se de Fr. Agostinho, ministro na Terra de Labor, falecido no mesmo dia de S. Francisco. 12 irmão Hugo, que, cheio de espírito de sabedoria e de inteligência, foi admirável pela santidade de vida e pela eficácia da doutrina, repousando em Marselha, confirmou a sua santidade com prodígios miraculosos. 32Fr. Cristóvão, irmão duma simplicidade de pomba, condignamente sepultado na igreja dos irmãos de Catúrcio, é conhecido pelo esplendor de numerosos milagres. 33O irmão Estêvão, a quem o Senhor concedeu a graça de extraordinária virtude, que antes fora monge e Abade na Ordem Beneditina, quando por amor de Cristo se quis fazer frade menor, foi nomeado Inquisidor contra os hereges e teve o privilégio de ser honrado com a glória do martírio e de taumaturgo, e jaz na igreja dos irmãos de Tolosa. 34Também aí foi veneradamente sepultado o irmão Raimundo, glorificado com idêntico martírio. 35Brilham ainda com notáveis milagres o irmão Benvindo e o irmão Pedro, outrora Ministro da Calábria, como por graça divina se comprova. 36 Seria fastidioso continuar com a enumeração de cada um dos Confessores e dos gloriosos Mártires, que sofreram o martírio em defesa de Cristo e da Igreja tanto por parte de Sarracenos como de defensores de hereges, quando por mandato da Sé apostólica faziam investigações acerca de erros heréticos. 13 Capítulo II A formação dos primeiros discípulos Depois de regressar do encontro com o sumo Pontífice, de quem recebera autorização para pregar, o bem-aventurado Francisco recolhia-se com os irmãos nos subúrbios da cidade de Assis em qualquer casebre abandonado16, por vezes tão acanhado que nele mal podiam sentar-se ou deitar-se esses homens que decididamente tinham rejeitado habitar em casas espaçosas e aprazíveis. 2Além disso viviam em tal penúria, que com bastante frequência nem sequer podiam matar a fome com um pedaço de pão, tendo de se contentar com uns nabos mendigados pelas hortas ao redor de Assis17. 3Por parte de familiares eram perseguidos, e por outros eram escarnecidos, pois nessa época era inconcebível que pelo Senhor um jovem se desfizesse dos seus bens e fosse pedir esmola de porta em porta. 4 No entanto, da parte deles não se ouvia por causa disso nenhuma lamentação nem queixume, antes pelo contrário, cheios de alegria espiritual e serenidade de coração, tudo aguentavam com paciência. 5 Posteriormente, sob o impulso do santo Pai, os irmãos foram crescendo em número e em perfeição. 6Eram efectivamente irmãos menores, tanto de nome como pela humildade de espírito: considerando-se súbditos de quem quer que fosse, procuravam sempre habitar nos lugares mais pobres e exercer as ocupações mais humildes18. 7Mesmo no caso de surgir qualquer atitude aparentemente injuriosa, inflamados pelo espírito de caridade, era admirável como se amavam uns aos outros. E quando uma vez por outra surgia a oportunidade de se reunirem, então é que se fazia sentir o dardo do seu amor espiritual. 8Com que expressões? Com afectuosos abraços, com delicadas trocas de palavras, com ósculos santos, com amigáveis conversas, com sorridente e modesta fisionomia, com rostos irradiando alegria, com mãos incansáveis em prestar obséquios. 9 Como efectivamente desprezavam todas as coisas terrenas, nunca fomentavam amizades particulares, mas repartiam todo o afecto do seu amor pela comunidade dos irmãos, tratando de se dedicar aos demais no sentido de lhes remediarem as necessidades, procurando não o seu próprio proveito, mas o de Cristo e o do próximo. 10Chegou por exemplo a acontecer que quando um indivíduo tresloucado se pôs a arremessar 1 ————— 16 Talvez em Rivotorto como recorda 1C 42, 1-2; Cf. LM 4.3,1. 17 Cf. TC 55,3. 18 Cf. 1C 38,4; T19 14 pedras contra alguns irmãos, um outro irmão se meteu de permeio, preferindo ser ele atingido do que ser ferido o seu irmão19. 11 Alicerçados em tão sólidos fundamentos de caridade e humildade, cada um tratava o seu irmão com tal deferência como se ele fosse o seu senhor. 12Quem entre eles sobressaísse pelo cargo que desempenhava ou por qualidades com que a graça divina o enriquecera, apresentava-se como o mais humilde e o menos importante de todos20. 13Se algum inadvertidamente deixasse escapar qualquer expressão que desagradasse a outro, não descansava enquanto lhe não pedisse humildemente desculpa21. 14 Estavam sempre mortos por se reunirem, e sentiam-se radiantes quando se encontravam juntos; por isso se lhes tornava difícil e dolorosa a separação22. 15No entanto, jamais se atreviam a opor qualquer objecção à santa obediência, como soldados disciplinados que nada querem saber dos motivos das ordens recebidas, mas se apressam a executar sem contestação o que lhes é mandado. 16Fosse o que fosse o que lhes mandassem, consideravam-no como um mandato procedente da vontade do Senhor, e isso lhes tornava fácil e suave cumpri-lo. 17Um favor que solicitavam com empenho era que não os mandassem para as regiões donde eram oriundos, de modo a que neles se cumprisse a expressão profética: Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um desconhecido para os filhos de minha mãe23. 18 Viviam sempre em alegria espiritual, uma vez que não tinham qualquer motivo de perturbação. 19Em situações complicadas, regozijavam-se como se lhes tivesse saído a sorte grande, e encomendavam a Deus os seus perseguidores, e não eram poucos os que, vendo isso, se decidiam a imitá-los24. 20 Quando eram procurados pelos ricos do mundo, recebiam-nos com delicadeza e alegria, de modo a induzirem-nos a evitarem o mal e a modificarem o comportamento25. 21Às pessoas que encontrassem em qualquer sítio, pelos caminhos ou nas praças, dirigiam palavras de conforto e de estímulo a amarem e reverenciarem o Criador. 22Preferiam hospedar-se ————— 19 Cf. AP 26, 1-2. 20 Cf. AP 26, 4-5. 21 Cf. TC 43, 1; AP 27, 1. 22 F. 1C 29, 1-4. 23 Sl 69,9. 24 Cf. AP 23, 11; TC 40, 8. 25 Cf. TC 45, 1; AP 29, 1; 1R 2, 1-3; 2R 10, 6. 15 nas residências paroquiais de sacerdotes do que nem casas de seculares26. 23 Mas se isso não era possível, informavam-se sobre alguma família mais piedosa do lugar, a quem pudessem honestamente pedir hospedagem. 24E embora fossem pobres a mais não poder, estavam sempre dispostos a repartir com quem lhes pedisse as esmolas recebidas. 25 Desprezavam tão profundamente todos os bens materiais, que só com muita relutância aceitavam as coisas absolutamente necessárias à vida. Como indumentária contentavam-se com uma simples túnica, às vezes remendada por dentro e por fora, umas reles bragas e um cordão grosseiro como cinto27. 26Quanto à vestimenta, nada de cuidados, apenas se notava desprezo e indigência. 27Se não conseguiam outro lugar mais conveniente para descansarem de noite, acomodavam-se em grutas ou em fornos comunais. Durante o dia, ajudando em trabalhos manuais da sua especialidade, a todos aqueles com quem conviviam davam exemplo de humildade e paciência28. 28Tão imbuídos estavam da virtude da paciência, que sendo muitas vezes vítimas de vexames e injúrias, chegando mesmo a ser espancados e desnudados, e vendo-se desprovidos de qualquer auxílio, ainda assim aguentavam tudo isso com humildade, chegando ao ponto de na sua boca ressoar um cântico de louvor e de acção de graças29. 29 Nunca ou quase nunca interrompiam o louvor a Deus, mas recordando no exame de consciência a vida quotidiana davam graças a Deus pelo que de bom tinham feito, e deploravam e choravam negligências em que tivessem incorrido e faltas que por descuido tivessem cometido. 30Se notavam que lhes ia faltando o espírito de devoção lhes ou diminuía a habitual piedade, imaginavam que Deus os tinha abandonado. 31No intuito de se aplicarem à oração, usavam diversos estratagemas com o fim de a oração não ser perturbada por uma sonolência traiçoeira30. 32 Se alguém, como é costume, ou para as contingências duma viagem ou por outro qualquer motivo, os deixava desfalcados de provisões de alimento ou de bebida, mortificavam-se com muitos dias de abstinência. 33Com tais mortificações procuravam reprimir os incentivos carnais, a ponto de por vezes exporem ao gelo o corpo nu ou de o fazerem sangrar com afiados espinhos. 34Era tal a aspereza com que cada um se ————— 26 Cf. TC 59, 11. 27 Cf. 1C 39, 6. 28 Cf. 1C 9, 11. 29 Cf. 1C 40, 1-2 30 Cf. 1C 40, 3-5; 2R 5, 3 16 tratava, que dava a impressão de se odiar a si mesmo. 35Vivendo em paz e harmonia com todos, evitavam com extremo cuidado qualquer escândalo31. 36 Todos nutriam sentimentos de humildade acerca de si mesmos, e de respeito para com os outros, sobretudo para com os sacerdotes. 37Uma vez um sacerdote avisou certo irmão: «Vê lá, não sejas hipócrita!» Esse irmão tomou tanto a peito o aviso, que se considerou mesmo hipócrita, comentando: «Foi um sacerdote que o disse! Ora um sacerdote não pode mentir!» 38E daí em diante passou a andar triste e aflito, até que o Santo lhe explicou com perspicácia o verdadeiro sentido da recomendação do sacerdote32. 39 Refreavam a língua guardando silêncio com o máximo cuidado. Em conversas só gastavam o tempo necessário, sem nunca lhes sair da boca qualquer dito chocarreiro ou frívolo. 40Tinham todos os sentidos tão disciplinados, que não gostavam de ver nem de ouvir nada que não fosse condizente com a religião33. 41Era simples a maneira de se apresentarem e modesto o modo de andarem, com os olhos baixados para a terra e o espírito erguido para o céu. 42 O Santo, com efeito, ensinava-lhes que não se deviam limitar a dominar os vícios carnais, mas deviam também a mortificar os sentidos exteriores, pelos quais entra a morte para a alma. 43 Acontecendo que o imperador Otão passasse com grande pompa por aquelas bandas para receber a coroa imperial, o santo Pai, que estava com os irmãos no já referido casebre junto ao caminho de passagem da comitiva, nem se dignou sair fora para ver, nem permitiu que saísse ninguém a não ser um, para observar e recordar constantemente ao candidato à coroa que a sua glória pouco duraria34. 44Sentindo-se avalizado pela autoridade Apostólica, recusava-se a adular reis e príncipes35. 45 Também fazia diligências para investigar diariamente a vida dos irmãos, não deixando impune nenhum procedimento que lhe parecesse menos razoável, e chamava-lhes a atenção para a mais leve negligência. ————— 31 TC 58, 5; AP 38, 7. 32 Cf. 1C 46, 3-9; 1R 2, 15. 33 Cf. 1C 41, 3-4. 34 Cf. 1C 43, 2-3. O caso aqui referido deve ter ocorrido em 1210. Otão IV (1198-1218) foi coroado em Roma no dia 4 de Outubro de 1209. Em 18 de Novembro foi destituído por Inocêncio III. Cf. FF1 p. 267, notas 93 e 94. 35 Cf. 1C 43, 6. 17 E os irmãos correspondiam, não só procurando cumprir escrupulosamente os conselhos que ele lhes dava como irmão ou os preceitos que lhes impunha como Pai, mas iam ainda mais longe, procurando por vezes adivinhar o que ele quereria que se fizesse. 47De facto, para os estimular à perfeição, dizia-lhes ele que a verdadeira obediência não se devia limitar a cumprir a ordem verbal do superior, mas devia estender-se à vontade do mesmo, desde que fosse conhecida, e que o súbdito devia fazer aquilo que por qualquer indício lhe parecesse que o superior quereria36. 48A tal ponto uma santa simplicidade resplandecia nos irmãos e era tal a sua pureza de coração, que não havia entre eles sombra de fingimento: assim como entre eles havia uma só fé e um só espírito, também havia uma só vontade, conformidade de procedimentos, concórdia de critérios e delicadeza de atitudes. 49 São assim os testemunhos do venerável Pai, com que ele formava os seus novos filhos, não apenas por palavras, mas com verdadeiros exemplos, e pelos quais renovava o propósito e o empenho duma vida apostólica. 50Que o teor de vida aprovado [pelo Papa] era aprovado no céu, isso logo no começo dessa iniciativa foi revelado a um piedoso indivíduo por meio duma visão dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, a agradecerem ao Senhor pela renovação na terra da sua forma de vida e a intercederem pela conservação dessa Ordem religiosa. 51Quando o bem-aventurado Francisco teve conhecimento disso, comentou: «Se S. Pedro e S. Paulo intercedem por nós todos os dias, também é justo que nós os veneremos com uma oração quotidiana». 52Daí adveio o costume de se referirem nominalmente os dois Apóstolos em cada uma das horas do Ofício da Santíssima Virgem, quando anteriormente nessas orações apenas se fazia uma referência genérica aos Apóstolos, segundo a praxe da Igreja de Roma37. 53 A essas fórmulas de oração acrescentaram-se então expressões como estas: Protegei, Senhor, e Atendei-nos, ó Deus, e ainda dos vossos Apóstolos Pedro e Paulo – quando antes se dizia de todos os vossos Apóstolos, etc. 46 ————— 36 Cf. 1C 45, 5. 37 Sobre a fidelidade á Igreja romana, cf. Ex 26, 1; 2R 1, 3; 1C 62, 8; 2C 24, 7; TC 46, 2; AP 31, 2. 18 Capítulo III A tolerância de S. Francisco Muito se regozijava o Santo com o progresso dos irmãos, sem contudo deixar de cuidar dos mais fracos e dos atormentados por tentações. 2Quando certo irmão, assediado por uma tentação, lhe pediu que rezasse por ele, respondeu-lhe: «Meu filho, o facto de seres tentado mais me convence de seres um verdadeiro servo de Deus. Ninguém se deve considerar servo de Deus se não passar por tentações e tribulações. 3Uma tentação vencida é dalguma forma como a aliança com que o Senhor desposa a alma do seu servo. 4Não são raros os que se gabam dos méritos de muitos anos e se dão por felizes por nunca terem sucumbido a tentações; mas como era o simples medo que os vencia antes do combate, convençam-se de que Deus terá em conta essa sua debilidade espiritual. 5Lutas renhidas só ocorrem quando há grande valentia»38. 6 Outro irmão, continuamente angustiado por uma tentação de ordem espiritual, que é bem mais esquiva e mais grave do que o instinto carnal, veio ter com o bem-aventurado Francisco, prostrou-se a seus pés, 7sem no entanto nada conseguir dizer, com a voz embargada por lágrimas amargas e soluços. Percebendo o Santo que ele estava atormentado por espíritos malignos, exorcizou: «Ordeno-vos, demónios, que deixeis de atacar este meu irmão». 8E imediatamente o irmão se viu livre de toda a tentação. 9 Nisto se patenteou o poder do Santo sobre os demónios e a sua condescendência para com o filho39. 10 Por ele mesmo outrora ter sido vítima de tentações, aprendeu a ter compaixão dos que eram tentados. 11Com efeito, em tempos passados tinha experimentado a mais violenta tentação carnal, e depois de se flagelar com aspereza para a debelar, para não perder a coragem após essa lição, atirou-se nu para uma camada de neve, expulsando do coração pelo sofrimento corporal uma infecção espiritual40. 12 Noutra ocasião foi acometido por uma gravíssima tentação espiritual, que aliás redundou em seu maior benefício. 13Durante muitos dias andou aflito, orando e chorando copiosamente. 14Certo dia, no meio da oração imaginou ouvir uma voz: «Francisco, se tiveres fé, mesmo como um grão de mostarda, dirás a um monte que mude de sítio, e ele mudará». 1 ————— 38 Cf. 2C 118, 1-7. 39 Cf. 2C 110 40 Cf. 2C 117 19 Replicou o Santo: «Que monte, Senhor, teria eu a pretensão de deslocar?» 15 E pela segunda vez ouviu: «O monte é a tua tentação.» Então, banhado em lágrimas, suplicou: «Senhor, faça-se como dizeis.» 16E de imediato se acabou a tentação e se sentiu livre dela41. 17 O seu feitio levava-o a condescender com humildade, a encorajar toda a gente e abrir-se com todos. Prestava reverência aos sacerdotes da Igreja, respeito aos idosos, honra aos nobres e aos ricos, mas consagrava um amor ainda mais profundo aos pobres. Procurava viver em paz com todas as categorias de gente, e com insistência aconselhava os irmãos a procederem da mesma forma, dizendo-lhes: 18«Se dirigis às pessoas uma saudação de paz, deveis ter cheio de paz o vosso coração, de modo que jamais alguém fique zangado ou escandalizado por vossa causa, mas antes pelo contrário, se sinta mais inclinado a ser manso e benigno. 19A nossa vocação é tratar dos feridos, fortalecer os alquebrados e trazer ao bom caminho os extraviados. 20Muitos que porventura nos parecem membros do diabo ainda virão a ser discípulos de Cristo42.» 21 No trato com os irmãos falava bondosamente não como juiz, mas como o pai a um filho ou o médico a um doente, de sorte que nele se concretizava a expressão do Apóstolo: Quem é que se sente fraco sem que eu também me sinta fraco43? 22Para com os doentes corporais tinha também profunda compaixão, muita solicitude a respeito das suas necessidades; numa palavra, comportava-se com todos conforme convinha a cada um. 23 Não deixava de tratar com a devida honra pessoas importantes que vinham para a Ordem, e ponderando com piedade o que a cada um era devido, em todas as circunstâncias considerava prudentemente os diversos graus de dignidade44. 24Era efectivamente dotado de notável discrição e do dom da simplicidade, associando na perfeição a prudência da serpente com a simplicidade da pomba45. ————— 41 Cf. 2C 115; LP 99; 42 Cf. TC 58, 5-6; 43 2 Cor 11,29; Cf. TC 59, 6; AP 39, 8-9. 44 Cf. 2C 57, 1-3. 45 LM 11. 1, 6 20 Capítulo IV A pobreza Um empenho muito especial de Francisco foi o de observar a pobreza e a humildade e de estar sempre ocupado em actividades convenientes. 2 Sentia-se feliz em habitações pobrezinhas, em pequenas cabanas de madeira mais do que em construções de pedra. 3Com frequência passava temporadas com alguns irmãos em eremitérios, onde o espaço de clausura era delimitado por um simples amontoado de silvas e umas choupanas lhes serviam de casas46. 4Mas viver assim em cidades, não lho permitia nem a maldade humana nem o grande número dos irmãos. 5 Detestava que qualquer irmão tivesse várias peças de roupa, bem como tecidos elegantes e finos47. 6 Não se compreende num pobre uma nova peça de roupa, sendo muito menores as despesas de remendar a roupa velha. 7Um tecido grosseiro é de facto mais áspero e mais pesado e agasalha menos, mas é isso que exige o piedoso projecto da Ordem, e pela graça de Deus o desconforto facilmente é superado com o uso. 8 Se a necessidade obrigasse alguém a usar por dentro uma túnica menos austera, ele não se opunha; queria no entanto que o hábito exterior conservasse as características de ser pobre e grosseiro, pois Deus nos pôs como exemplo de pobreza e penitência perante o mundo. 9Mas observava ele que quando a necessidade resulta não dum motivo razoável mas da mera comodidade, isso é sinal de falta de espírito48. 10 Costumava ele dizer que «não suportar com paciência as adversidades, não era senão voltar para o Egipto»49. 11 Quanto a livros, queria que houvesse poucos, esses poucos não fossem luxuosos nem caros, mas apenas aptos para a necessária cultura de irmãos indigentes50. 12Acerca de dinheiro, também por fervor religioso não permitia aos irmãos possuí-lo nem sequer lidar com ele. Por isso é que uma vez castigou severamente certo irmão por ele ter tocado numas moe1 ————— 46 Cf. 2C 56, 1; EP 5, 3. 47 Cf. 2C 69, 2. 48 Cf. 2C69, 12. 49 Alusão ao episódio descrito no livro bíblico dos Números (Nm 14,1-4), em que se refere que o povo israelita, liberto dos trabalhos forçados a que estivera submetido no Egipto, mas em dificuldades no deserto por falta de alimento (cf. Nm 11,4-4), se amotinou contra Moisés e em comício propôs o regresso ao Egipto (Nota do tradutor). Cf. 2C 69, 9; EP 15, 4 50 Cf. 2C 62, 1-2; EP 5, 1-2 21 das que encontrou no caminho. 13Um outro irmão também recolheu uma moeda perdida no caminho, 14com a intenção de a dar a leprosos, apesar de o companheiro o desaconselhar de fazer isso e lhe recordar a recomendação do Santo, de não fazer caso de dinheiro achado na rua – o resultado foi começar logo a ranger os dentes e perder a fala. 15Perante isso, atirou fora a moeda, e logo se soltaram os lábios do irmão arrependido, e deu graças a Deus51. 16 A fim de se precaver contra coisas supérfluas, nem sequer um simples copo o Santo permitia que houvesse em casa, porque considerava possível mesmo sem copos remediar de qualquer outra forma os apuros duma necessidade extrema. 17Confiava absolutamente na providência divina, como bem mostra a resposta que deu ao senhor Papa, quando este lhe objectou ser difícil viver sem nada possuir: 18«Meu Senhor, eu tenho confiança que o Senhor Jesus Cristo, que prometeu dar-nos no Céu a vida gloriosa, não deixará de nos conceder na terra o necessário sustento do corpo no devido tempo»52. 19E ainda lhe propôs a seguinte parábola: «Certo rei, tendo casado com uma mulher, que era muito pobre, mas duma beleza extraordinária, teve dela filhos igualmente belos. 20Quando os filhos cresceram, a mãe mandou-os ir ter com o rei para tratar deles. Ao reconhecê-los como seus filhos, por se parecerem com ele, abraçou-os e disse: “Vós sois meus filhos e herdeiros; não vos preocupeis! Se até a estranhos eu dou sustento à minha mesa, é mais que justo que o dê aos que por direito são meus herdeiros”53. 21Os irmãos pobres são filhos de Cristo pobre e duma Ordem pobre». 22 Já tinha a experiência de que o Senhor trata das coisas mais insignificantes. 23Ao regressar da Espanha, debilitado por uma doença muito grave54, disse no caminho ao irmão Bernardo que até seria capaz de tentar ressarcir as forças com a carne duma avezinha se a tivesse à mão… 24E o curioso é que um desconhecido qualquer, atravessando um campo, lhe veio oferecer uma ave, tal como ele desejava, declarando: «Servo de Deus, aqui tens o que te oferece a clemência divina». 25S. Francisco aceitou a oferta e por tudo agradeceu a Cristo, que assim tratara dele. 26 O que não queria era ser conivente com o mundo por causa de bens materiais. Quando o bispo de Assis lhe disse que lhe parecia ————— 51 Cf. 2C 65- 66. 52 Cf. AP 34, 4 53 Cf. 2C 16, 4-8; AP 35, 3-4; TC 50, 1-5; LM 3. 10, 2. 54 Cf. 1C 56, 7. 22 rigorosa demais a vida que ele escolhera de não possuir nada neste mundo, respondeu-lhe: 27«Se tivéssemos propriedades, precisaríamos de armas para as proteger, pois dessa posse nascem muitas vezes desavenças e litígios, e com isso lá se ia o amor de Deus e do próximo»55. 28 Repetia com frequência: «À medida que os irmãos vão fazendo pouco caso da pobreza, vai o mundo fazendo pouco caso deles56. 29Eles devem dar ao mundo bom exemplo; e o mundo deve dar-lhes a eles o sustento necessário. 30Se deixarem de dar bom exemplo, também o mundo deixará de os ajudar: procurarão, mas nada encontrarão… 31 Como precaução para salvaguardar a pobreza, o Santo tinha receio de que aumentasse muito o número dos irmãos, e explicava-se: «Oxalá o mundo, vendo raramente irmãos Menores, se admire de serem poucos!57» 32 Em tudo ele queria que os irmãos se contentassem com poucas coisas, e mesmo essas, fossem bens móveis ou imóveis, que não as considerassem como propriedade sua. Não queria ter nada como seu, a fim de mais plenamente possuir tudo no Senhor58. Capítulo V A humildade Francisco também praticou com esmero a humildade, virtude associada à pobreza. 2Por isso queria que os irmãos usassem um hábito despretensioso, se cingissem com uma simples corda, se chamassem Menores, e nunca recebessem honrarias mundanas. 3Quando o senhor bispo de Óstia lhe falou em conferir a irmãos cargos eclesiásticos honoríficos, recusou terminantemente a proposta, e respondeu que deviam continuar na mesma humilde situação. 4Estava presente na altura S. Domingos, opondo-se também ele a que os seus irmãos ascendessem a tais cargos59. 5E a concordância com S. Francisco chegou ao ponto de lhe pedir um cordão para com ele cingir devotamente a túnica interior e de lhe sugerir que as suas duas Ordens Religiosas formassem uma só, e de afirmar que era a Francisco que todos os Religiosos deviam seguir. 6Oh, como deveria ser imitada pelos respectivos filhos esta humildade e mútua caridade dos seus dois Pais 1 ————— 55 Cf. AP 17, 7-8; TC 35, 6. 56 Cf. 2C 70, 1. 57 Cf. 2C 70, 5-6. 58 Cf. 1C 44, 6. 59 Cf. 2C 148. 23 fundadores! 7Seria extremamente útil tanto para eles mesmos como para a Igreja. 8 Para com superiores e sacerdotes queria que os irmãos fossem tão respeitosos que os considerassem dignos de que lhes beijassem não apenas as mãos, mas até os próprios pés, pela reverência devida à sua dignidade e ao seu poder espiritual. 9Afirmava com efeito: «Fomos constituídos auxiliares dos clérigos em ordem à salvação das almas, competindo-nos a nós suprir aquilo que no seu ofício é de menos importância. 10Cada um receberá o estipêndio condizente não com a sua categoria, mas com o seu trabalho. 11 Capacitai-vos, irmãos, de que o bem das almas é o fruto que mais agrada a Deus, e que ele se alcança melhor pela paz que pelo desentendimento». 12E dizia também: «Submetei-vos aos superiores, a fim de que, quanto de nós dependa, não surja qualquer mal-entendido». 13E que é que tem de mais sujeitarmo-nos aos superiores, se por amor de Deus devemos submeter-nos a toda a instituição humana60? 14 O sentimento de humildade para consigo mesmo levava-o a ter-se na conta de grande pecador, apesar de na realidade ser um espelho da mais completa santidade e sem qualquer contaminação carnal, como foi revelado ao santo irmão Leão, seu confessor, e foi informado ao Ministro Geral61. 15 De facto, o confessor admirava-se de que S. Francisco, que em público se declarava como o maior dos pecadores – sendo que o justo é o primeiro a acusar-se a si mesmo – em privado nunca se acusava de nenhuma falta contra a castidade, e com muita discrição quis certificar-se se ele efectivamente nunca teria tido qualquer relacionamento sexual – declaração que nunca teria colhido do Santo, por mais que lhe perguntasse, precisamente por ele ser pessoa simples e duma pureza ilibada – foi-lhe isso mesmo revelado e demonstrado com um milagre todo especial. 16Enquanto orava, esse irmão viu S. Francisco colocado num lugar tão elevado que ninguém podia chegar junto dele nem tocar-lhe, e ficou convencido de que essa visão significava o eminente grau da pureza do Santo. 17Sem uma castidade imaculada não se explicava que o seu corpo fosse enriquecido com os sagrados estigmas. 18Se há pessoas vulgares que por acção da graça divina e do seu esforço natural chegam à velhice de corpo impoluto, ninguém se admiraria que o corpo de Francisco, 19a quem o Senhor dispensara tantas graças, se conservasse também imaculado. ————— 60 Cf. 1 Pe 2,13; 2C 146, 6; 1R 16, 6. 61 Cf. 2C 123, 8; LM 6. 6,7. 24 Capítulo VI A vida activa Não se cansava o Santo de progredir na perfeição, recordando aos irmãos que o Senhor não tardaria a vomitar os frouxos e aqueles que não se dedicassem com entusiasmo a qualquer actividade. 2Não aparecia diante dele qualquer irmão ocioso sem que ele o repreendesse com veemência. 3 Queria que os irmãos estivessem sempre ocupados ou na oração ou em qualquer actividade conveniente62. 4Muito se alegrou ao ouvir contar que em determinado eremitério da Espanha os irmãos tinham com esse intuito organizado o horário de modo a dedicarem parte da semana às ocupações domésticas, e outra parte à contemplação63. 5Foi aí que aconteceu este caso estranho. Certo dia, como um dos irmãos do grupo dos contemplativos não compareceu para a refeição, foi encontrado na cela estendido no chão com os braços abertos em forma de cruz, e embora não desse indícios de respiração nem de qualquer movimento, parecia estar vivo; além disso, acima da cabeça e abaixo dos pés ardiam candelabros irradiando um fulgor admirável. 6Deixaram-no em paz, e logo o resplendor desapareceu; o homem veio a si, e avançando para a mesa da refeição, confessou a sua culpa, como era costume. 7 Contra o defeito da tristeza recomendava: «Se um servo de Deus por qualquer motivo se sentir angustiado, deve quanto antes recorrer à oração, e não se arredar da presença do Pai supremo enquanto ele lhe não conceder a alegria da sua salvação64. 8 Consoante as oportunidades, as suas ocupações eram a pregação e a salvação do próximo. 9Quantos progressos ele fez na doutrinação e na conversão das almas, só o sabe Deus, que lhe abriu o entendimento para compreender as Escrituras65. 10Certo Cardeal fez-lhe umas perguntas acerca de alguns assuntos abstrusos, esclarecendo: «Interrogo-te não por te considerar um erudito, mas por acreditar que estás possuído do espírito de Deus, e não terei dificuldade em aceitar o teor da tua resposta, pois estou convencido que provém de Deus»66. 11Sobre aquela passagem do profeta Ezequiel “se não exortares o pecador para o afastar do mau caminho, ele 1 ————— 62 Cf. 2C 161; 1R 7, 2. 63 Cf. 2C 178, 2-4. 64 Sl 51,14. Cf. 2C 125, 9. 65 Lc 24,45. 66 Cf. 2C 104. 25 perecerá por causa do seu pecado, mas é a ti que eu pedirei contas do seu sangue”67, alguém o interrogou uma vez se somos obrigados a admoestar todos aqueles que sabemos que vivem em pecado mortal, respondeu: 12«Se a palavra do profeta se deve entender em sentido universal, como eu julgo, aceito perfeitamente que um servo de Deus deve ser tão brilhante pela santidade de vida, que com o esplendor do seu bom exemplo e com bons conselhos que dê, repreenda todos os ímpios. 13Assim, será o resplendor da sua vida e o perfume da sua aura a denunciar a cada um a própria iniquidade.» 14 Ele mesmo não se limitava a dar lições com o seu exemplo, mas também por palavras, confirmadas por vezes com sinais prodigiosos, como se narra em suas biografias. 15Vou referir um caso muito divulgado ocorrido na povoação lombarda de Alexandria. 16Foi o Santo convidado por certo indivíduo temente a Deus, o qual lhe pediu para cumprir a norma do santo Evangelho que diz: “Comei do que vos for servido”68. No momento em que acabavam de lhe servir à mesa uma boa peça de capão, alguém, fingidamente, apareceu à porta a pedir uma esmolinha por amor de Deus. Ao ouvir a súplica em nome de Deus, Francisco acondicionou a peça de carne num pedaço de pão e foi dar ao pedinte esse belo petisco, que ele não comeu, mas maliciosamente guardou. 17E quando no dia seguinte o Santo pregava ao povo, o falso mendigo ergueu a voz para dizer: «Quereis saber quem é esse Francisco a quem honrais como Santo? 18Vede esta carne que ele ontem me deu, quando estava a refastelar-se!». 19Toda a gente o descompôs, ao ver que o que ele mostrava não era uma peça de capão, mas um peixe! O desfecho do episódio foi até o próprio culpado se espantar com o milagre e se ver obrigado a reconhecer o que toda a gente via [que se tratava de peixe, e não de carne], e diante de todos pediu perdão ao Santo e contou a tramóia diabólica que inventara. 20Depois de o prevaricador ter reconhecido o seu erro, a prova material da falsa acusação voltou a ter o aspecto de carne… 21 Foi também notável o Santo no condão de expulsar demónios e na extraordinária graça de curas, que realizava sobretudo pelo poder da cruz69. 22 Pelo sinal da cruz deu vista a cegos, repelia demónios e curava as mais variadas doenças. 23Em Orte, um indivíduo afectado por uma úlcera enorme ————— 67 Ez 4,18; Cf. 2C 103. 68 Lc 10,8; 2C 78-79. 69 Cf. 1C 67. 26 entre os ombros, abençoado por ele com o sinal da cruz, ficou de repente e por completo liberto dessa chaga, sem dela restar o menor vestígio70. 24 Na fervorosa devoção para com ele, muita gente com frequência lhe levava pães e outros géneros alimentícios para ele abençoar, acontecendo que eles se conservavam em bom estado durante muito tempo, e serviam para curar mazelas a quem deles se alimentasse71. 25Também se provou que pelo efeito das mesmas vitualhas se dissiparam fortes tempestades de trovoadas e granizo. 26Da mesma forma, o simples facto de lhe tocar no hábito ou no cordão fazia com que desaparecessem doenças e febres e se recuperasse a desejada saúde. 27 Aconteceu-lhe uma ocasião ir ao tecto hospitaleiro dum militar cujo filho único se tinha afogado e desaparecera, e por mais buscas que se fizessem, o cadáver do jovem nunca mais foi encontrado. Levado pela sua própria compaixão e compadecido dos gemidos dos que choravam a morte do rapaz, parecendo-lhe ser ocasião propícia para Cristo confirmar as suas maravilhas em favor da firmeza da fé católica que o santo varão pregava, 28 suplicou a Cristo em orações como sempre devotas e piedosas, e conseguiu indicar o lugar exacto onde o afogado tinha ficado no rio, preso pela roupa, e ressuscitando-o milagrosamente, libertou a família da dupla angústia da perda do jovem e da sua morte. 29Eis o servo fiel e imitador do Senhor misericordioso, que, ao ver que levavam a sepultar o filho único duma mão viúva, se compadeceu dela72 e o ressuscitou. Eis um novo profeta como Elias e Eliseu, dos quais se refere que ressuscitaram os filhos dos seus hospedeiros! 30 Até seres irracionais lhe obedeciam. Entre outros episódios, uma ocasião em que o coaxar de rãs num lago próximo da igreja onde ele pregava dificultavam a pregação, mandou-as calar, a fim de também ele poder louvar a Deus. Elas não fizeram mais barulho, mesmo depois da pregação. 31 Até que mais tarde, voltando ele à mesma igreja e verificando que elas depois de ele falar continuavam sempre silenciosas, convidou-as a louvarem o seu Criador como habitualmente faziam, compungido por durante tanto tempo as ter inibido. 32Destes dois prodígios, o das rãs e o do jovem ressuscitado, anciãos dessa época passada convidados a depor, garantiram terem sido deles testemunhas – um deles chamava-se mesmo irmão Verdade, e diz-se que a sua sepultura se tornou notável em milagres. ————— 70 LM 12. 9; 3C 179. 71 Cf. 1C 63. 72 Lc 7,12-14. 27 Obedeciam-lhe ainda os próprios seres inanimados. Uma ocasião, depois de celebrado em Assis o capítulo geral, continuaram lá o irmão Monaldo e outros cerca de trinta irmãos, a fim de se esclarecerem com o irmão Francisco sobre assuntos espirituais73. 34Uma vez que precisavam de ficar para o dia seguinte, o Santo quis que lhes fosse servida uma refeição. 35 Mas o despenseiro não dispunha senão dum pequeno pão, e por isso o pobre Francisco mandou pedir a Clara que lhe enviasse alguns pães, se os tivesse, para a dita refeição. 36Nessa altura ela só dispunha de três pães, e enviou-lhe dois. Ele então recorreu ao seguinte expediente: cortou-os todos aos bocadinhos, e pôs esses pedaços na mesa, explicando: «É este o pão da caridade». 37Será preciso acrescentar alguma coisa? Com esses três pães ficaram plenamente satisfeitos os cerca de trinta irmãos, e dos restos ainda se recolheu um cesto cheio. 38 Nem a memória do povo nem os testemunhos escritos conservam os inúmeros prodígios com que Cristo quis distinguir o seu porta-bandeira e pregoeiro Francisco, e confirmou sem qualquer margem para dúvida a sua doutrina. 39Mas ponhamos de parte a ociosidade, autêntica morte da alma, e quando nos metermos ao trabalho, não passemos por cima das dificuldades a respeito da doutrina e doutras coisas; deixemo-nos instruir pelo exemplo do santo Pai, e sobretudo do próprio Jesus Cristo, que viveu pobre e em dificuldades desde a sua juventude. 40Li algures a respeito de certo irmão que num só dia rezou 50 Salmos, que o Senhor o livrou das penas do Purgatório. 41Passando ele noites inteiras em oração, certa noite apareceu-lhe o Salvador com a Virgem Santíssima, e à direita de Cristo uma cruz gigantesca que chegava até ao céu. 42Disse então o Senhor ao fiel tão persistente na oração: «Trabalha com confiança e faz penitência, porque também eu quando estive no mundo vivi sempre em trabalhos». 43Sigamos nós também o exemplo de Cristo e de S. Francisco no trabalho, para nos unirmos a eles no descanso. 44Um patrão trabalhador não aprecia um empregado calaceiro. 33 ————— 73 Cf. 1C 48, 7. 28 Capítulo VII As três Ordens O resultado da ideologia de Francisco está bem patente nas três Ordens por ele fundadas. 2 A primeira Ordem é a dos irmãos Menores, cuja finalidade é servir o Senhor em pobreza e humildade segundo o Evangelho e pregar a conversão. 3Nos que ingressam nessa Ordem Religiosa são inúmeros os sinais de ela ser abençoada por Deus. 4Seria quase impossível a quem quer que fosse descrever os prodígios com que Deus enriqueceu essa Ordem nos irmãos e pelos irmãos com que a dotou. 5Vou no entanto referir-me a visões e a vocações mais notáveis, a revelações, embora poucas, que já se vão fazendo por parte de pessoas de confiança, de acontecimentos que lhes foram contados, pelos quais o Senhor se dignou comprovar manifestamente e sem sombra de dúvida a perfeição deste instituto religioso. 6 Contava o outrora Ministro Geral de santa memória padre frei Haymon que havia na Inglaterra um certo Prelado que em espírito foi arrebatado ao céu, onde, entre muitos Religiosos de vários institutos, com grande estranheza sua não viu nenhum irmão menor. Aparecendo-lhe também a mais bela das mulheres, a santíssima Mãe de Deus, correu para ela e interrogou-a sobre o mistério que o intrigava. 7Disse-lhe o Bispo que estava surpreendido por não ver nem sequer um irmão menor a gozar daquela felicidade… Respondeu-lhe ela: «Anda comigo, que eu vou indicar-te onde é que eles estão». 8E mostrando-lhe os irmãos em convívio íntimo e familiar com Cristo Senhor, acrescentou: «Vê como eles estão seguros e felizes sob as asas protectoras do Juiz; como eles, salva a tua alma». 9O Bispo, considerando a graça da visão e o conselho salutar da Mãe de Deus, e obtido o consentimento do senhor Papa Gregório IX, ingressou na Ordem dos Frades Menores. 10 De alguns Religiosos também se conta que foram vistos abrigados sob o manto da santíssima Virgem; é assim que os irmãos são protegidos pela própria Mãe de Deus e pela sombra protectora das asas do Filho de Deus, ambos os dois desempenhando o papel de Querubins74 a protegerem os irmãos. 1 ————— 74 Querubins são figuras míticas representando touros e/ou leões com asas, bem conhecidas nas antigas culturas religiosas da Mesopotâmia e do Egipto, e importadas por alguns redactores bíblicos do Antigo Testamento, sobretudo pelo profeta Ezequiel, onde aparecem nada menos de 17 vezes. No Novo Testamento não se fala em Querubins senão 29 É de crer que o referido Prelado tenha sido D. Radulfo, Mestre de Teologia e Bispo de Erfurt, que de facto ingressou na Ordem Franciscana. 12 Mas além desse houve ainda dois outros Radulfos, ambos doutores em Teologia, um dos quais de Paris, que também entrou na Ordem em circunstâncias deveras curiosas. 13Enquanto certo dia se dedicava aos seus estudos, deu-lhe o sono e adormeceu com a cabeça sobre o livro. Sonhou então com o diabo a ameaçá-lo de o privar da visão, intimidando-o: «Ainda te hei-de cegar com esterco!» 14Entretanto, o mestre acordou, mas mais tarde tornou a dormitar e a sonhar de novo com o diabo a repetir-lhe a mesma ameaça. Desta vez, porém, reagiu contra ele, apontando-lhe os dedos contra os olhos e ameaçando-o: «Não serás tu a cegar-me a mim; eu é que ainda te hei-de cegar a ti!». 15Ora aconteceu que no dia seguinte, quando se assentava na sua cátedra doutoral, recebeu da Inglaterra uma carta de certo Bispo com a oferta de chorudo estipêndio [se para lá fosse leccionar]. 16Interpretando a riqueza proposta como o “esterco” com que o diabo o queria cegar, desfez-se de todos os seus bens e ingressou na Ordem dos Frades Menores. 17 Há já muito tempo, acompanhei o então célebre Ministro Geral por terras da Alemanha e da Flandres. Passados muitos anos, em diversos encontros com irmãos, soube que houve de facto um cónego muito venerável que se resolveu a entrar na Ordem por ter sido miraculosamente curado de cegueira. 18Devido ao muito tempo desde então decorrido, não posso garantir todas as circunstâncias, mas não duvido da cura dessa pessoa e da sua entrada na Ordem. Passo a descrever o facto provável como me foi contado. 19 Tratava-se de um cónego, de linhagem nobre, pessoa respeitável, muito piedoso e especialmente devoto da virgem Santa Eufémia. 20Embora já de avançada idade e habituado a uma vida desafogada, não descurava a salvação da alma – perigo que costuma acontecer aos ricos –, no ardente desejo de empreender algo mais valioso, não deixava de pedir ao Senhor 11 ————— numa única e breve referência ao A.T.: «Sobre a arca estavam os querubins da glória, a cobrirem o propiciatório com a sua sombra» (Heb 9,5). Na Bíblia representam e simbolizam a majestade, a presença e proximidade de Deus. Por serem alados, com muita frequência os textos sagrados, sobretudo os salmos, falam também em segurança e aconchego “à sombra ou debaixo das asas de Deus” (Cf. Sl 17,8; 36,8; 57,2; 61,5; 63,8). A teologia mística da Idade Média, criando a angelologia, elevou os querubins à classe angélica suprema. É nessa base que o Autor aqui apresenta ousadamente o Filho de Deus e sua Mãe como dois Querubins a abrigarem à sombra das suas asas os irmãos menores. (Nota do tradutor). 30 que lhe indicasse o caminho da salvação, 21repetindo as palavras do profeta: Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, e ensina-me as tuas veredas75. 22 Mostra-me o caminho a seguir, porque para ti elevo a minha alma76. 23 Também por intercessão da referida Virgem que tinha por advogada suplicava incessantemente que o Senhor lhe indicasse o estado mais conveniente para a sua salvação. 24E o Senhor inflamou-lhe o coração no sentido de renunciar resolutamente ao mundo na Ordem de S. Francisco. 25Mas havia o óbice de ser doente e de na garganta padecer de um tumor que o deformava. 26Por essa razão, o Ministro dos irmãos Menores ia adiando o seu ingresso, e com a devida prudência conforme podia o ia tentando dissuadir do propósito, asseverando-lhe que a sua vida espiritual nada tinha de reprovável nem impeditivo da salvação, e até seria frutuosa pelas muitas boas obras que poderia realizar. 27Percebendo ele que lhe escapava a oportunidade de realizar o seu sonho e muito entristecido por isso, sucedeu que uma ocasião em que estava a rezar o acometeu uma leve sonolência. 28E eis que lhe apareceu Santa Eufémia, de quem era devoto, acompanhada de grande séquito de outras Virgens, e o encorajou a ingressar na Ordem dos Frades Menores, curando-o do obstáculo que disso o impedia, e como prova irrefutável de que poderia aguentar os rigores da Ordem, curou-o do tumor, dizendo-lhe: 29«Sirva-te isto de sinal de que ficas curado de todos os teus achaques». 30Imediatamente lhe abriu e espremeu o inchaço do tumor da garganta para extrair todo o pus, e passando-lhe depois a mão pelo orifício aberto, completou a operação e restituiu ao homem a saúde perfeita. 31Ao despertar, o piedoso senhor viu que estava de facto completamente curado. 32 Recebido na Ordem conforme desejava, nela passou a viver como um santo. 33Consta que atingiu tal grau de virtude diante do Senhor, que nunca mais se sentindo embaraçado pela idade nem pelas delícias da vida a que estava acostumado, aguentou sem dificuldade os trabalhos da Ordem, e conseguia percorrer a pé distâncias maiores do que antes fazia a cavalo. 34 Também o célebre João, imperador de Constantinopla, avisado por divina revelação, envergou o hábito de S. Francisco. 35Conta-se a respeito dele que enquanto os seus irmãos eram acompanhados cada um por sua comitiva, só ele foi privado de herança, sendo-lhe atribuída apenas a filiação na Ordem militar dos Templários ou dos Hospitalários. 36Mas como era ainda jovem, de nobre linhagem e de notável valentia, quis a Providência ————— 75 Sl 25,4. 76 Sl 143,8. 31 divina que ele viesse a ser primeiramente o soberano do reino de Jerusalém, e depois, guindado à dignidade imperial, foi enaltecido a ponto de vir a ter por genro o próprio imperador Romano. 37Foi além disso um acérrimo defensor da ortodoxia e lutador contra os infiéis. 38Quando ele, ao pensar a sério sobre o termo da sua vida, ponderou quantos bens Deus lhe concedera, sentiu um desejo enorme, e acredita-se que divinamente inspirado, de saber como seria o fim da sua vida terrena. 39Durante algum tempo alimentou esse desejo e insistiu em suplicar a Deus essa graça, até que uma noite, enquanto dormia, lhe apareceu um indivíduo vestido de branco e trazendo nas mãos um hábito, um cordão e umas sandálias como os que usavam os irmãos Menores. Chamando o imperador pelo nome, disse-lhe: 40«João, uma vez que estás tão interessado em saber como será o teu fim, fica sabendo que morrerás amortalhado neste hábito; é essa a vontade divina». 41Ao acordar, o imperador, horrorizado, segundo o seu instinto humano, com tal humilhação a que se imaginava sujeito, soltando clamorosos gemidos, acordou os que perto dele descansavam, segundo os costumes do reino. Porém, quando eles acorreram para saber o que se passava, não lhes quis indicar a causa dos seus gritos. 42 Na noite seguinte apareceram-lhe em sonho dois cavalheiros igualmente vestidos de branco, trazendo cada um o equipamento fradesco, hábito, cordão e sandálias, e repetindo que ele morreria com aquela indumentária. 43Ficou horrorizado como da primeira vez, e ao acordar repetiu a cena dos gemidos, mas recusou-se a revelar aos criados de quarto a causa da gritaria. 44 Numa terceira noite apareceram-lhe três personagens, vestidos de branco como os anteriores, com a indumentária a ele destinada – o hábito, o cordão e as sandálias – e, tal como nas aparições anteriores, afirmando uma vez mais que na morte iria vestido com aquelas roupas, acrescentando: 45 «Não penses que se trata duma ilusão ou dum sonho falacioso: tudo acontecerá conforme te dizemos». 46 Sobressaltado, o imperador mandou chamar imediatamente o irmão Ângelo, seu confessor. Ele veio logo, e deparando com o imperador a chorar na cama, disse-lhe: «Já sei o motivo porque me chamastes; também eu tive a vosso respeito uma revelação semelhante à vossa». 47Poucos dias depois, o imperador foi acometido por uma febre terçã, e decidindo resolutamente entrar na Ordem, em conformidade com as visões havidas, nela terminou feliz os seus dias. 48Mas como em vida, por causa da gravidade da doença e da debilidade de forças, não pôde desempenhar na Ordem 32 ofícios humildes, consta que exprimiu o seu santo desejo nestes termos: 49 «Ó dulcíssimo Senhor Jesus Cristo! Eu passei neste mundo uma vida regalada e pomposa, envergando vestes luxuosas. Oxalá que agora, pobre e humilde, a pedir esmola com um saco aos ombros, eu possa segui-te a ti, que foste verdadeiramente pobre e humilde!». 50Neste gesto, uma personalidade tão importante deixou-nos um extraordinário exemplo, de sorte que não se envergonhem da pobreza e da humildade nem os grandes, nem os medianos, e menos ainda os menores. 51Com esse seu voto cumpriu o desejo que os nobres costumam exprimir ao abraçarem esta Ordem, de serem os mais humildes, os mais mansos e os mais simples. 52A característica mais notável dos fidalgos é precisamente a sobriedade na mansidão e na humildade. 53Mas não é raro a graça de Deus tornar nobre a quem o não era, e o pecado da soberba e da preguiça fazer perder a nobreza a quem a tinha. E que mudança mais vergonhosa do que a de um nobre se tornar grosseiro? 54Tão-pouco são de desprezar os mais pequeninos, a quem foi concedido combater contra o mal pelo Senhor; não há maior glória que a de ser soldado de Cristo. 55 Mas vou continuar com o assunto que abordei. O irmão Guilherme de feliz memória, outrora Ministro da Aquitânia, região a SW da França, contava que vivera na cidade de Carnot um doutor que por votos emitidos estava adstrito à Ordem dos Frades Menores. 56No entanto, tendo terminado o prazo previsto para os irmãos entrarem na Ordem, estava uma ocasião a jogar xadrez junto à porta da igreja da Santíssima Virgem Maria, quando instantaneamente ficou cego. 57Ao sentir-se privado de visão, sem que os circunstantes disso se apercebessem, derrubou com a mão as peças do jogo, chamou um rapaz que estava ali perto, pousou-lhe a mão sobre o ombro e cochichou-lhe que o guiasse para dentro da igreja. 58Aí, prostrado com devoção e de lágrimas nos olhos diante do altar da Virgem, fez a promessa de não retardar mais a entrada na Ordem. 59Sendo-lhe logo restituída a capacidade de ver, foi ter com os irmãos a combinar o dia em que faria a sua entrada efectiva. 60Novamente, porém, faltou à palavra, e em vez de se dirigir para o convento voltou para o local do seu jogo favorito, e repetiu-se a cena da primeira vez: ficou invisual, entrou na igreja, e depois de muito choramingar, renovou a promessa de não diferir por mais tempo o ingresso na Ordem, se lhe fosse concedida a graça de recuperar o sentido da vista. Veio, de facto a recuperá-la, mas só bastante mais tarde do que da primeira vez. 61Apesar destes avisos sobrenaturais, ainda por uma terceira vez a sua cobardia o impediu de cumprir a promessa de se encerrar no convento, e 33 tornou a adiar o ingresso definitivo. 62Tal como nas conjunturas anteriores, deixou de ver, entrou na igreja, prostrou-se diante do altar da Mãe de Deus, chorou amargamente, reiterou a costumada promessa do efectivo ingresso na Ordem – e voltou a poder ver, se bem que só muito mais tarde que das outras vezes. 63Mas às três foi de vez: convencido de que tinha de se mostrar agradecido a Deus e à Santíssima Virgem pelas três advertências prévias, que tão dolorosas experiências lhe mostravam, cumprindo o prometido, contou aos irmãos todas as peripécias ocorridas com ele, e cumpriu a promessa de entrar definitivamente na Ordem. 64 Mesmo assim, após o ingresso não depôs por completo o homem velho nem se adaptou à vida comunitária da Ordem. 65A pretexto de necessidade, andava sempre calçado, comia com os doentes na enfermaria, queria dormir sempre em colchões, e no Inverno depois da Missa corria logo para a cozinha a aquecer-se. 66Durante cerca de dois anos os irmãos toleraram, não sem grande desagrado, este seu procedimento tão pouco exemplar, sobretudo pelo facto de ele no mundo ter sido um cavalheiro muito honrado. Eis senão quando, uma bela noite sonhou que S. Francisco lhe apareceu e lhe fez um estranho pedido: 67«Rogo-te, meu filho, que me transportes um bocadinho para outro sítio». Ele recusou-se, alegando como desculpa: «Não eu não tenho forças para pegar em ti, por ser fraco e doente, e tu seres grande e pesado». Contudo, perante a insistência do Santo em que o levasse, o nosso protagonista recorreu ao expediente de o fazer deitar, e puxando-lhe pelas pernas, assim o levar de rastos com a cabeça a roçar pelo chão. 68S. Francisco bem gritava: «Assim não! Estás-me a magoar! Isso não é maneira de me transportares!» Mas enquanto o Santo assim arrastado não deixava de se queixar, o outro replicava: «Doutra forma não consigo deslocar-te». 69Na manhã seguinte, depois da missa entrou na cozinha como de costume, e começou a contar o sonho que tivera. 70Depois de o ouvir, um discreto irmão comentou em resposta: «É tal qual como sonhaste. Estás a fazer sofrer e a levar mal S. Francisco, ou seja a sua Ordem, pondo-a de rastos com a tua vida terrena e mesquinha, essa tua vida carnal e desordenada. 71Ao ouvir a interpretação que o irmão dera do seu sonho, reconheceu que ele tinha razão, meteu a mão na consciência, pôs de parte agasalhos de peliça e calçado, deixou de frequentar a enfermaria e de usar almofadas de penas, assumiu a vida comunitária da Ordem, de que até ali não fizera caso, converteu-se, enfim, noutra pessoa, num religioso exemplar e num óptimo pregador. 72Muito embora por negligência tivesse 34 adiado a conversão, não pôs de parte em absoluto o seu propósito de se fazer frade. 73 Mas a narrativa dum terrível exemplo para os recalcitrantes contra a vocação à Ordem que se obstinam e olham para trás, deve-se, ao que consta, ao irmão padre João de Inglaterra, que depois de ter leccionado teologia em Paris foi nomeado arcebispo de Cantuária. 74A pessoa a quem ele se referia era um clérigo de Paris que prometera ingressar na Ordem dos Frades Menores, mas pouco antes da tomada de hábito recebeu da sua terra uma carta, com a notícia de ter sido nomeado cónego de certa igreja catedral. 75Desistiu imediatamente de entrar na Ordem, e depois de ter exercido o canonicato durante pouco mais de meio ano na sua igreja, foi acometido de grave enfermidade. 76Aconselhado pelos cónegos seus colegas a confessar-se, sempre se recusava a fazê-lo, como um desesperado. 77 Resolveram então os cónegos pedir aos irmãos Menores para irem visitar o doente, a ver se o convenciam a confessar-se. Quando eles chegaram, como já o encontraram muito debilitado, recomendaram-lhe com todo o empenho que fizesse uma confissão geral dos seus pecados, segundo o costume de qualquer bom cristão e verdadeiro católico. 78Mas ele ripostou-lhes: «Não percais tempo, irmãos, a tentar convencer-me disso. Eu já estou condenado. 79Antes de vós virdes ter comigo, fui levado à presença de Deus, que me mostrou um rosto terrivelmente ameaçador e me disse: Chamei por ti, e não me respondeste77, por isso vai para as penas eternas». 80 Ao pronunciar estas palavras, diante de todos exalou o último suspiro. 81 Na verdade, os juízos de Deus são como o abismo profundo78e ninguém consegue saber porque é que Deus a uns salva com misericórdia e a outros condena com justiça. 82Mas como é o Senhor quem pesa os corações79, as suas sentenças não se baseiam em coisas exteriores, como as dos juízes humanos: ele vê, sem se enganar, o mais recôndito dos corações. 83 Tanto para enaltecer o estado religioso como para incitar à perseverança, não quero deixar de referir um episódio de que tive conhecimento em Paris. 84Abraçou aí a Ordem dos Frades Menores um doutor, cuja mãe o tinha criado à custa de esmolas e sustentado com muita solicitude apesar da sua pobreza. 85Muito penalizada com a separação do filho, que considerava perdido para sua desafogada subsistência material, a mãe foi ter com ele, a ver se o convencia a desistir e voltar à situação anterior. 86Mostrou-lhe o ————— 77 Cfr. Pr 1,24. 78 Cfr. Sl 36,7. 79 Cfr. Pr 16,2. 35 peito e os seios com que o amamentara, lembrando-lhe os enormes sacrifícios feitos e privações sofridas para o criar, e apresentando-lhe ainda outros argumentos no sentido de ele deixar a Ordem. 87O filho teve pena da mãe, ficou abalado e resolvido a abandonar a Ordem no dia seguinte. 88O plano de tal procedimento não provinha de malícia da sua parte: era uma cilada traiçoeiramente urdida pelo demónio sob a aparência de piedade. 89E assim, como era seu costume, foi rezar diante da imagem dum crucifixo, dizendo a Deus: «Não quero deixar-vos, Senhor, só pretendo prestar ajuda à minha mãe, que cuidou de mim no meio de tanta penúria». Enquanto assim orava, olhou para a imagem do crucifixo e viu sangue a escorrer da chaga do peito de Cristo, e ouviu a voz do Senhor a dizer: «Eu tratei de ti com mais carinho do que a tua mãe e com o meu sangue te redimi; não deverias deixar-me por amor da tua mãe». 89Abalado e estupefacto com o sangue que vira a escorrer e com a voz que ouvira, venceu a tentação e permaneceu na Ordem, pois não é sem razão que Cristo diz no Evangelho a respeito da mãe: Quem ama o pai ou a mãe mais que a mim, não é digno de mim80. 91 Giratero de Barama, monge da Ordem beneditina, não podendo viver no seu mosteiro, como desejava, foi por isso transferido para outro mosteiro, onde no entanto também não conseguiu a tranquilidade espiritual por que suspirava. Dedicou-se então totalmente à oração, recitando todos os dias o saltério completo, associando à oração o jejum, para que o Senhor se dignasse mostrar-lhe o caminho da salvação, pelo qual melhor o pudesse servir. 92Depois de muitos dias passados nesse regime de oração e jejum, viu em sonhos S. Francisco, e diante dele o texto do Evangelho, e ao pé do Evangelho a Regra. Admirado o monge de a Regra estar tão colada ao Evangelho, 93perguntou o que significava aquilo, e o Santo explicou-lhe: «A Regra está tão perto do Evangelho, por ser fundada sobre o Evangelho». 94 Continuando o monge durante muitos dias a orar e a jejuar, ansioso por saber, se fosse da vontade de Deus, a que estado religioso é que a visão se referia, suplicava ao Senhor que se fosse como ele julgava, a visão se repetisse. 95E enquanto assim orava, apareceu-lhe de novo S. Francisco com o Evangelho e a Regra, como da primeira vez. 96Não obstante estes esclarecimentos, o piedoso monge reiterando a prática costumada de orar e jejuar, cada vez se sentia mais ansioso por ter a certeza de que o estado religioso apresentado nessas visões seria o mais agradável a Deus. 97E tornou-lhe a aparecer mais uma vez S. Francisco, tal qual como nas ————— 80 Mt 10,37. 36 aparições anteriores, como que a dar-lhe a entender que queria recebê-lo na Ordem. 98Mas o monge padecia duma grave doença na tíbia, e por isso disse a S. Francisco: «Os irmãos não iriam acreditar em mim nem me receberiam». Replicou o Santo: «Da tíbia estás desde agora curado, e isso te servirá de testemunho». 99Tal como sonhara, ao acordar verificou que estava curado. 100Procurou então entrar na Ordem, mas como o Ministro, pouco impressionável, adiasse a recepção, contou-lhe as visões que tivera e mostrou-lhe o resultado da cura obtida. 101Recebido desta forma na Ordem, foi um irmão duma vida religiosa exemplar, morando santamente na Província de Colónia. 102Foram irmãos dessas terras que deram estas informações. 103 Soube também dum caso contado por certo irmão, que se sabe ter sido muito considerado na Ordem, e me foi transmitido por outros irmãos. Um religioso da Ordem de Cister, dum mosteiro da diocese de Tolosa, veio ter com o irmão acima referido, a pedir-lhe para ser aceite na Ordem de S. Francisco. 104Disse-lhe ele que um irmão falecido do seu mosteiro, que em vida fora seu companheiro predilecto, tal como na última doença antes da morte lhe tinha prometido invocando a Deus como testemunha, veio uma ocasião de noite chamá-lo para o capítulo dos irmãos leigos. 105Pela afeição que lhe tinha, quis abraçá-lo, mas o defunto objectou: «Não me podes tocar nem sequer ver». 106Perguntando-lhe o irmão se tinha algo a contar e como passava, respondeu: «É perigoso viver; quanto a mim, serei feliz». 107«Então ainda não és feliz?» – perguntou o outro. «Ainda não!» – foi a resposta, dando-lhe assim a entender que ainda precisava de sufrágios para se purificar. 108Insistiu o irmão em interrogá-lo sobre o estado tanto da sua Ordem Religiosa como de outras Ordens, e mais em concreto sobre algumas pessoas suas conhecidas, tanto consagradas como seculares. A resposta foi que de algumas Ordens Regulares eram muitos os condenados, e das pessoas referidas em particular, todas, com raras excepções, eram também condenadas. 109E acerca de alguns disse muitas coisas íntimas a explicar a causa das respectivas condenações. 110Mas eu é que não vou propalar as circunstâncias que ele referiu como causa da condenação de muitos, porque tudo aquilo que desacredita os outros é melhor silenciá-lo, a não ser que haja necessidade de o dizer. Todas as Ordens Religiosas são boas, desde que se cumpram as respectivas Regras. 111Interrogado o defunto acerca dos irmãos Menores, declarou que ainda não tinha visto nenhum condenado, e os que tinham descido ao purgatório não tardariam a voar 37 para o céu, purificados. 112Por fim, exortou o companheiro à perseverança e aconselhou-o a precaver-se de certos defeitos que ele tivera. 113 Assim, com respeito ao nosso assunto, em poucas palavras enalteceu consideravelmente a Ordem Franciscana. 114Se é legítimo avaliar a sinceridade duma vida consagrada pela excelência do fim atingido, esse fim é prova evidente do mérito prévio. 115E não é de admirar que seja fácil e rápida a passagem pelo purgatório para aqueles que neste mundo levaram uma vida de pureza, e suportando pelo Senhor frio e desnudez e sofrimentos sem conta, fazem na terra o seu purgatório. 116 Aqui fica também um testemunho insuspeito de ódio ou fingida simpatia para com a Ordem, testemunho aliás vindo do inferno, mas condizente com visões vindas do céu. 117Conta-se que na região dos Bascos havia um irmão muito virtuoso, espanhol de origem, que fora baptizado com o nome de Gonsalvo e professara na Ordem de Cister com o nome de António. Estava ele em devota oração quando lhe apareceu uma rapariga, dotada de feições encantadoras e embelezada com maravilhosos adornos, que o convidou a casar com ela. 118Ele ripostou com aspereza: era um monge que fizera voto de castidade, por isso não podia contrair matrimónio. 119 «Por isso mesmo – replicou ela – deves tomar-me por esposa. Tenho contigo esta conversa em representação da Ordem Religiosa dos irmãos Menores, e a beleza e os adereços que vês em mim exprimem os dessa Ordem. Quanto a votos, entrando nela, com ela te desposarás e nela te salvarás». 120Dito isto, desapareceu. 121 Noutra ocasião esse mesmo religioso viu S. Francisco e com ele outro santo irmão de nome Guilherme, cujos restos mortais, viveiro de milagres, jazem na igreja de S. Francisco. 122Despertou-lhe também a curiosidade um leito maravilhoso, que o santo irmão Guilherme, por ele interrogado, disse que era exactamente o leito de S. Francisco. 123«Então – disse o António – também eu quero deitar-me nele, para poder dizer que estive deitado numa cama tão encantadora». 124Depois desta visão pretendiam os monges elegê-lo para Abade, mas a sua decisão foi entrar na Ordem dos Frades Menores, que ele interpretou como sendo o tal leito de S. Francisco. 125Continuando os monges a reclamá-lo por meio da Cúria Romana, alegando entre outras razões que na Ordem de Cister ainda havia mais austeridade que na de S. Francisco, consta que este terá dito: «Mas eles não foram suplicantes e a pé à Cúria romana como eu fui». 126Os monges foram despachados pelo Sumo Pontífice de mãos a abanar, e o irmão continuou na Ordem que escolhera. E foi um irmão de tão intensa 38 piedade, que, segundo se diz – o que é deveras admirável! – Tinha o condão de derramar lágrimas a seu bel-prazer, mesmo entre a barafunda de pessoas que estivessem ao pé dele. 127Nunca lhe saía da boca nenhuma palavra inútil; mas de Deus falava tão amiúde e com tal entusiasmo que por vezes parecia estar ébrio, apesar de nunca beber nada que pudesse embebedar, e vinho só bebia o do sacrifício do Senhor. 128Era zeloso em extremo pelo bem das almas, e por isso não se dedicava incansavelmente à pregação e a ouvir confissões. 129Ensinava os irmãos a confessarem-se bem, a rezarem com fervor, a evitarem palavras ociosas, porque se assim procedessem, progrediriam na virtude mais do que seria de esperar. 130Os seus feitos e as graças miraculosas por ele obtidas exigiriam muito tempo para se descreverem. 131 Agora vamos tratar da vocação [à Ordem]. Com certeza que é benquista de Deus uma Ordem Religiosa à qual ele mesmo chama com algum atractivo especial, Ordem que ele começou por fundar em personalidades perfeitas como Sião sobre o monte santo81 e depois ornamentou com pessoas ilustres como pedras polidas. 132Entraram nela bispos, abades, arquidiáconos e famosos mestres de teologia; bem como príncipes, nobres e um sem-número de personagens notáveis pela fidalguia ou pela ciência – dir-se-ia mesmo a flor da fidalguia e da ciência. 133Só para dar um ou outro exemplo, pondo de parte muitos mais, menciona-se o irmão Alexandre, clérigo e teólogo, que passa por ser o mais famoso mestre do seu tempo; e o já mencionado rei e imperador D. João, guerreiro valoroso, que de imperador passou a ser irmão Menor. Foi assim que o Senhor concretizou em Francisco aquele dito profético: Eu irei diante de ti para te aplanar os caminhos82. 134 Seria quase impossível contar o sem-número de célebres e eminentes doutores de teologia da Ordem. 135Mas por outro lado não se pode deixar de louvar a Cristo, que exalta os humildes, pelo facto de pertencer à Ordem dos Menores o lidador mais brioso e leal, bem como o mais famoso mestre de teologia e filosofia, 136e ainda o mais conceituado pregador que é o irmão chamado João de Rupela, notável pela religiosidade, pela discrição e pela ciência, um homem de tão extraordinárias qualidades que ultrapassou a sagacidade dos seus próprios mestres criando na Faculdade de teologia as cadeiras de eloquência e de declamação, e ensaiou requintados ritmos de ————— 81 Cfr. Sl 87,1. 82 Cfr. Is 45,2. 39 elocução. 137Tanto ele como o referido Alexandre deixaram escritos magistrais e muito úteis. 138 Depois dele veio o irmão Odo Rigaldo, um padre respeitável, ilustre por nascimento e mais ilustre ainda pela conduta, que foi pregador famoso, mestre de teologia, e depois arcebispo da diocese de Ratisbona. 139 Contrariado e quase constrangido a aceitar o bispado, brilhou no governo da diocese com o mesmo resplendor com que anteriormente brilhara na Ordem, a ponto de ser apresentado como um modelo de Prelados. A segunda Ordem fundada por S. Francisco é a das virgens e senhoras com voto de castidade, e a sua característica fundamental é a de em clausura servirem a Deus em perpétuo silêncio e mortificação da carne. 141 A primeira flor desse jardim foi Santa Clara, devota discípula de S. Francisco. 142Desde que o Santo viu que elas seguiam fielmente as suas orientações vivendo em extrema pobreza, prometeu-lhes o seu auxílio e o dos irmãos, enquanto no seu regime continuassem a professar a pobreza. 143 E sempre, até ao dia de hoje, Santa Clara e o seu mosteiro perseveraram no seu projecto de pobreza. 140 A terceira Ordem é a dos irmãos e irmãs de penitência, aberta tanto a clérigos como a leigos, tanto a virgens como a pessoas viúvas ou casadas, sendo o seu objectivo viverem honestamente em suas casas, dedicarem-se a obras de beneficência e evitarem a vaidade do mundo. 145Por isso entre eles aparecem por vezes nobres militares e outros personagens que antes eram ilustres aos olhos do mundo, onde usavam preciosas roupas de pele, mas trocaram essas vestes e cavalgaduras luxuosas por outras mais humildes, a conviverem modestamente com indigentes, de sorte que não se pode pôr em dúvida de que são verdadeiros Religiosos. 146A princípio era-lhes atribuído como Ministro um irmão [Menor], mas agora são governados por Ministros próprios, mas de modo a estarem sempre sob os cuidados, os conselhos e os auxílios dos irmãos Menores, pois são seus coirmãos, filhos do mesmo Pai espiritual. 147 Na redacção da regra e forma de vida desses irmãos da Ordem Terceira interveio o senhor papa Gregório de santa memória – que na altura ainda desempenhava um ofício de menor categoria – o qual, afeiçoado a S. Francisco e em íntima familiaridade com ele, supria com seus conhecimentos jurídicos aquilo que faltava ao Santo. 148No entanto, São Francisco não se dava por satisfeito com as suas três Ordens, e procurava indicar um caminho de salvação e de penitência a todo o género humano. 144 40 Por isso, quando um determinado pároco lhe disse que gostaria de ser seu irmão, mas continuando na sua actividade paroquial e no mesmo modo de viver e de vestir, consta que o Santo lhe impôs a obrigação de dar anualmente por amor de Deus o que dos rendimentos da igreja tinha amealhado em anos anteriores. 150Foi assim que o Senhor fez dele um grande povo83e fez repousar sobre a sua cabeça a bênção de todos os homens84. 149 Capítulo VIII A morte e a trasladação de S. Francisco Chegado ao termo da sua vida terrena, o santo Pai foi em paz ao encontro de Cristo, no ano 1226 da Encarnação do Senhor, com a idade de 45 anos85. Contava quase 25 anos quando se deu a sua conversão da vida mundana, 2e durante dois anos passou a viver uma vida eremítica86. 3Só no terceiro ano após a conversão fundou a Ordem dos Frades Menores e vestiu o hábito que por inspiração celeste escolhera. Ocorreu isso na basílica da Mãe de Deus e sempre Virgem Maria, igreja desde há muito conhecida por Santa Maria dos Anjos, que ele acarinhava com singular predilecção. Transcorridos entretanto 20 anos após a sua conversão, no mesmo local onde tivera um início auspicioso a sua vida religiosa, teve também o seu fim glorioso87. 4E não só ele previu mais ou menos o tempo do seu desenlace, como até predisse o dia exacto em que deixaria este mundo. 5 Entre outros que no momento exacto da sua morte o viram a subir ao céu, apareceu a um santo irmão anónimo que se encontrava em êxtase; ia revestido de dalmática88 vermelha, incorporado como figura eminente num imenso e belo cortejo de glória indescritível89. 6Ao chegar ao seu aprazível 1 ————— 83 Cf. Gn 12, 2. 84 Sir 44, 23. 85 Cf. TC 68, 1; 1C 88, 4. 86 Cf. 1C 21, 5; TC 21, 2; 25, 1. 87 Cf. 1C 21, 1-4; 88, 1; LM 3. 8, 9. 88 Paramento próprio da ordem do diaconado, usado até meados do século XX. Como S. Francisco era diácono – pois por humildade nunca quis ascender à ordem de presbítero – esta visão mostra-o a encaminhar-se para a liturgia celeste devidamente paramentado. (Nota do tradutor). 89 Cf. 2C 219,1. 41 destino, entrou no grandioso e delicioso palácio celestial, onde se viu cercado da gloriosa comitiva de muitos irmãos. 7 Aquando do seu passamento esteve também presente uma ilustre dama de Roma, Jacoba de Settesoli, uma senhora extremamente dedicada ao Santo, que viera acompanhada de considerável comitiva, condizente com a sua categoria social, e tratou do aparato conveniente para um funeral tão importante90. 8Aliás, o próprio Santo, que tinha sido seu director espiritual e que pela virilidade das suas virtudes lhe chamava “irmão Jacoba”, já tinha pedido para a chamarem, com desejo de a ver antes de morrer. 9Mas quando o mensageiro estava mesmo pronto para sair, inopinadamente se ouviu à porta dos irmãos o grande estrépito dos criados e dos cavalos da sua devota discípula, que vinha visitar o seu ilustre mestre e pai espiritual. 10É claro que o Santo concluiu que fora o Senhor quem lha tinha enviado, e ficou muito contente de a ver, e pela alegria que a visita lhe proporcionou, passou a respirar melhor, e deu a impressão de que ainda viveria um pouco mais. 11 Por isso, ela resolveu mandar embora parte da comitiva, e ficar apenas com poucas pessoas, na expectativa do desenlace do Santo. 12Foi então que ele lhe prognosticou: «Eu vou partir no sábado ao fim da tarde; tu podes regressar a Roma no dia seguinte com a tua comitiva». 13 Exactamente no dia e na hora que predissera, foi o Santo recebido pelo Senhor para morar com ele na mansão eterna. 14Choraram por ele os irmãos, sentindo-se desamparados do seu piedoso Pai, e choraram também por ele as virgens consagradas a Cristo, que lhe tinham seguido os passos, lamentando-se lacrimosamente: «Porque é que nos deixas inconsoláveis, ó Pai, e a quem vais entregar as tuas desoladas filhas?» 15 O seu santo corpo foi sepultado em Assis na igreja de S. Jorge, onde agora fica o mosteiro de Santa Clara91. 16Porém, passados poucos anos, foi trasladado com grande pompa e veneração para a igreja que em sua honra foi construída junto às muralhas da cidade num local chamado “a colina do paraíso”, por determinação do senhor Papa Gregório IX, que para a sua construção tinha assentado a primeira pedra. Para essa cerimónia foi tão numerosa a multidão de gente vinda das povoações vizinhas, que não couberam na cidade e tiveram de se acomodar como rebanhos em bandos espalhados pelos campos92. 17Para essa solene trasladação esperava-se e tinha-se como certa a presença do senhor Papa Gregório; mas tornando-se ————— 90 Cf. 3C 37; LP 101. 91 Cf. LM 15. 5,4. 92 Cf. 2C 220a, 1-3; 42 isso impossível por causa de assuntos urgentes da Igreja, mandou delegados para o representarem, 18com cartas credenciais em que explicava a causa da sua inesperada ausência e consolando com afecto paternal os filhos do Santo, deu-lhes a conhecer o milagre de um morto ressuscitado por intercessão de S. Francisco. 19Por meio dos mesmos delegados pontifícios enviou para a cerimónia uma preciosa cruz de ouro, requintada obra de joalharia, mas mais valiosa ainda do que por ser de ouro e ornada de pedras preciosas, por conter uma relíquia da cruz do Senhor93. 20Além disso enviou também por eles ornamentos e vasos sagrados destinados ao serviço religioso, bem como ricos paramentos para circunstâncias mais solenes. 21 Além disso atribuiu outros valiosos donativos para a construção da basílica e para as despesas da solenidade. A trasladação teve lugar no dia 25 de Maio do ano da graça 123094. Capítulo IX Recensão de alguns milagres I – Inválidos reabilitados 1 Nunca o Senhor deixou de exaltar o seu Santo com maravilhosos e prodigiosos milagres, nem em vida nem depois da morte. Ficam aqui apenas alguns exemplos. Certa menina andou durante um ano com o pescoço torcido duma forma tão monstruosa que a cabeça lhe ficava quase colada a um ombro, e devido a essa posição defeituosa mal podia respirar de lado. Trazida ao sepulcro do Santo e colocada a cabeça deformada da criança por debaixo da urna, instantaneamente o pescoço e a cabeça tomaram a posição correcta. Espantada com mudança repentina, a criança começou a fugir e a chorar. No sítio do ombro onde a cabeça andara encostada ficou no entanto uma concavidade, porque a deformidade fora bastante prolongada95. 2 Nicolau de Folinho, devido a ter a perna esquerda tolhida, sentia dores tão agudas que com os gritos que dava mal podia deixar dormir a vizinhança. Como não havia medicamentos que o curassem, confiou-se a S. Francisco e fez-se transportar ao seu túmulo. Passando aí uma noite em ————— 93 Cf. TC 72, 3. 94 Cf. LM 15.8,1. 95 Cf. 1C 127 43 oração, descontraiu-se-lhe a perna e já pôde regressar a casa sem muletas e louco de alegria96. 3 Um menino tinha uma perna tão deformada que o joelho estava colado ao peito e o calcanhar à coxa. Trazido ao mausoléu de S. Francisco, ficou subitamente curado e de perfeita saúde97. 4 Uma menina de Gúbio, depois de ter durante um ano as mãos paralíticas, perdeu também o exercício de todos os outros membros. Foi com uma imagem de cera levada ao túmulo de S. Francisco, onde perseverou durante oito dias, até que por fim todos os membros ficaram aptos a serem devidamente utilizados98. 5 Outro rapazinho de Montenegro, com paralisia da cintura para baixo, e por isso impossibilitado de se sentar e de andar, passou vários dias deitado diante da porta da igreja onde repousa o corpo do Santo, até que um belo dia o levaram para dentro da igreja, e bastou-lhe tocar no túmulo do Santo para ficar são e salvo. Contava ele que no momento em que estendia a mão para receber umas peras que tinha a impressão de lhe estarem a ser oferecidas, um rapaz vestido com o hábito franciscano, que se encontrava em cima do sepulcro, lhe pegou na mão levantada e o ergueu, e depois de o ter curado e trazido para fora, desapareceu99. 6 Um outro natural de Gúbio, cujo filho era tão estropiado que tinha as pernas completamente aderentes às nádegas, tendo-o trazido ao sarcófago do santo Pai, pôde reavê-lo são e salvo100. 7 Certa menina da região de Nórcia, vítima de infindáveis sofrimentos, chegou a ser considerada como dominada pelo demónio, pois com frequência se punha a ranger os dentes, feria-se a si própria, não evitava obstáculos onde poderia cair nem tinha medo de graves situações de perigo. Em tão lamentável estado, além de ter perdido a fala e ter ficado paralítica, os pais transportaram-na a Assis montada num jumento, presa a um catre. E aconteceu que no dia da Circuncisão101 do Senhor estava ela prostrada diante do altar do Santo, quando sem mais nem menos vomitou qualquer ————— 96 CF. 1C 129 97 Cf. 1C 130. 98 Cf. 1C 134. 99 Cf. 1C 133. 100 Cf. 1C 134. 101 A festa da Circuncisão de Jesus, suprimida aquando da última grande reforma litúrgica, celebrava-se dantes no dia 1 de Janeiro – oito dias depois do Natal – em conformidade com o relato do evangelho de S. Lucas: «Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do Menino…» (Lc 2,21). (Nota do tradutor). 44 coisa esquisita… Levantou-se prontamente, beijou o altar, e sentindo-se curada de todos os padecimentos, prorrompeu em louvores a Deus e ao Santo. 8 Rigomagno, da diocese de Volterra, mal podendo sequer rastejar devido a uma medonha elefantíase, e abandonado por isso pela própria mãe, encomendou-se a S. Francisco e de imediato foi salvo do seu mal102. 9 Na mesma diocese, duas mulheres consanguíneas eram tão entrevadas que mal se podiam mexer sem serem amparadas por outras pessoas, e já tinham as mãos esfoladas por tão esforçadamente se servirem delas para se movimentarem. Pois com uma simples promessa recobraram a saúde103. 10 Tiago de Poggibonsi padecia duma cifose tão acentuada e disforme que andava com a cabeça quase colada aos joelhos. Depois de a mãe o ter levado a uma capela de S. Francisco e rezado ao Senhor suplicando a cura do filho, teve a felicidade de o trazer para casa são e salvo104. 11 Na povoação de Vicalvi, pelos méritos do santo Pai a mão mirrada duma mulher ficou tão normal como a outra105. 12 Na cidade de Cápua uma mulherzinha que prometera ir pessoalmente visitar o sepulcro de S. Francisco, mas esquecida da promessa devido a qualquer ocorrência da vida de família, ficou repentinamente hemiplégica, completamente paralisada do lado direito. Não conseguindo virar a cabeça nem mexer o braço para lado nenhum, com seus brados constantes devidos às dores aflitivas, não deixava sossegar os vizinhos. Adregando de passarem perto da porta da doente dois irmãos, a pedido dum sacerdote entraram em casa dela. Confessando-se da promessa por cumprir e recebendo deles a absolvição, no mesmo instante ficou sã; e escarmentada com o castigo sofrido, deu-se pressa em cumprir o que prometera106. 13 Enquanto dormia à sombra duma árvore, Bartolomeu de Nárni perdeu por completo a capacidade de usar um dos membros inferiores. Mas por ser extremamente pobre, compadeceu-se dele Francisco, que tanto tinha amado os pobres, e aparecendo-lhe em sonhos, mandou-o ir a determinado sítio. O desgraçado tentou arrastar-se para lá, mas ao desviar-se do caminho correcto, ouviu uma voz a dizer-lhe: «A paz esteja contigo! Eu sou aquele a quem te confiaste». E guiou-o para o local indicado. Aí o pobre estropiado ————— 102 Cf. 3C 168. 103 Cf. 3C 169. 104 Cf. 3C 170. 105 Cf. 3C 171. 106 Cf. 3C 172. 45 teve a impressão de que alguém lhe poisou uma mão no pé e outra na perna, e lhe restaurou esses membros inválidos. Tratava-se dum indivíduo de idade avançada, deficiente havia seis anos107. 14 Havia no condado de Nárni certo rapazinho com uma perna de tal maneira deformada, que não conseguia andar senão apoiado em duas muletas. Atingido por essa invalidez desde a infância, e sem sequer conhecer o pai nem a mãe, vivia de esmolas mendigadas. Também ele foi curado da sua invalidez pelos méritos de S. Francisco, de modo a poder aonde lhe apetecesse sem mais precisar de arrimo108. 15 Na povoação de Fano havia um estropiado que não conseguia separar das nádegas as pernas cheias de úlceras, exalando um cheiro tão pestilencial que nem os enfermeiros o queriam receber no hospital. Quem lhe valeu foi S. Francisco, cuja misericórdia ele invocou, e por cuja intercessão teve a felicidade e a alegria de se ver liberto do seu infortúnio109. 16 Na cidade de Nárni vivia uma mulher com uma das mãos mirradas havia oito anos, sem poder fazer com ela absolutamente nada. Até que numa visão lhe apareceu S. Francisco e a curou, esticando-lhe a mão e tornando-a igual à que estava sã110. II – Invisuais que recuperaram a vista Chamava-se Sibíla uma mulher que durante muitos anos vivera sem ver nada, quando, triste com a sua cegueira, foi conduzida ao sepulcro do homem de Deus, onde recuperou a visão perdida e donde pôde regressar a casa esfuziante de alegria e júbilo111. 18 Em Vicalvo, povoação da diocese de Sora, [cidade do Lácio], uma menina, cega de nascença, foi levada pela mãe a um santuário de S. Francisco, e aí, por invocação do nome de Cristo e pelos méritos de S. Francisco, adquiriu a faculdade de ver, que nunca antes experimentara112. 19 Um cego de Spelo, trazido para diante do túmulo do Santo, recuperou o sentido da vista que perdera havia muito tempo113. 17 ————— 107 Cf 1C 135. 108 Cf. 1C 128; 3C 161. 109 Cf. 1C 141; 3C 70. 110 Cf. 1C 141. 111 Cf. 1C 136. 112 Cf. 3C 171. 113 Cf. 1C 136. 46 Na cidade de Arezo, uma mulher que havia oito anos deixara de ver, readquiriu a visão na igreja de S. Francisco, construída perto da cidade114. 21 Ainda na mesma cidade S. Francisco curou da cegueira o filho duma mulher pobrezinha que a mãe tinha encomendado ao Santo115. 22 Em Poggibonsi, na diocese de Florença, uma mulher invisual, por revelação tida numa visão, começou a frequentar um santuário de S. Francisco. E uma ocasião em que para lá foi conduzida e se prostrou diante do altar a implorar misericórdia, de imediato recobrou a vista, e regressou a casa sem precisar de ninguém a guiá-la116. 23 Havia em Camerino uma mulher completamente cega do olho direito. Os seus pais, fazendo uma promessa, puseram-lhe por cima da vista afectada de cegueira um pano que tinha estado em contacto com S. Francisco, e assim ela recuperou a visão que tinha perdido. 24 Uma outra mulher de Gúbio, fazendo uma promessa semelhante, pôde tornar a ver a luz. 25 Também um invisual de Assis, cinco anos depois de ter perdido o sentido da vista, voltou a ver, ao tocar no túmulo de S. Francisco. 26 A Albertino de Nárni, que perdera o sentido da vista e ficara com as pálpebras pendentes até às maçãs do rosto, bastou-lhe encomendar-se a S. Francisco para tornar a ver a luz e ficar curado117. 20 III – Curas de surdos e mudos Certa mulher da região da Apúlia há muito perdera a fala e sentia mesmo dificuldade em respirar. Uma noite, enquanto dormia, sonhou que a Santíssima Virgem Maria lhe apareceu e a aconselhou: «Se queres ficar sã, vai à igreja de S. Francisco de Venúsia, e aí obterás a tão almejada cura. Lá foi a mulher à referida igreja do Santo, e implorando do fundo do coração o seu valimento, imediatamente vomitou, diante de todos os que a viam, pedaços de carne, e ficou maravilhosamente curada118. 27 ————— 114 Cf. 3C 132. 115 Cf. 3C 133. 116 Cf. 3C 170. 117 Cf. 1C 136. 118 Cf. 3C 126. 47 28 Na pequena cidade siciliana de Nicosia, certo sacerdote que ficara afónico e demente, após fervorosa invocação de S. Francisco, readquiriu a capacidade de falar e ficou livre da psicopatia119. 29 Na diocese de Arezzo, uma mulher, durante sete anos incapacitada de falar, não cessava de mentalmente implorar a Deus com grande fervor a graça de se lhe soltar a prisão da língua. E sucedeu que enquanto dormia se aproximaram dela, em sonho, dois irmãos, aconselhando-a a encomendar-se o São Francisco. Seguindo com todo o gosto e diligência o conselho dos irmãos, ainda a sonhar fez ao Santo uma promessa, simplesmente de coração, dada a sua incapacidade de falar, e no mesmo instante despertou, recuperando o estado de vigília e capacidade de locução120. 30 Um jovem chamado Vila ficara impossibilitado de andar e de falar. Perante essa desgraça, a mãe fez uma promessa e levou ao túmulo do Santo com muita devoção uma imagem de cera em representação do jovem, e ao chegar a casa encontrou o filho a andar e a falar. 31 Vivia na diocese de Perúsia um homem que andava sempre com a boca horrivelmente escancarada, como que a bocejar, sem capacidade de falar, e com a garganta muito inflamada. Veio uma ocasião ao sepulcro de S. Francisco, e ao tentar tocar no sarcófago, expeliu uma golfada de sangue, e no mesmo instante, maravilhosamente recuperado, readquiriu a possibilidade de falar e de abrir e fechar a boca consoante a necessidade121. 32 Uma mulher andava com uma pedra entalada na garganta, daí resultando sentir uma dor pungente e secar-lhe a língua. Sem poder falar, e sem obter qualquer resultado satisfatório de muitas mezinhas tomadas, recorreu a S. Francisco com todo o fervor do coração, e subitamente por uma fissura da carne lhe saiu a pedra da garganta122. 33 Bartolomeu da localidade de Ceperano, afectado de surdez havia sete anos, recuperou o sentido da audição com uma simples invocação de S. Francisco123. 34 Noutra obra conta-se o caso dum surdo-mudo de nascença que em Città della Pieve pediu acolhimento em casa dum conhecido, e por promessa feita pelo hospedeiro, se viu instantaneamente curado. Erguendo então os olhos ao céu, disse entre outras coisas: «Estou a ver lá no alto S. ————— 119 Cf. 3C 145. 120 Cf. 3C 127. 121 Cf. 1C 149. 122 Cf. 1C 150. 123 Cf. 3C 143. 48 Francisco, que veio para me restituir a fala». Proferiu assim palavras correctas, como se sempre tivesse ouvido e falado. Divulgado o prodígio, acorreu muita gente, que o conhecia como surdo-mudo, a render louvores a Deus e ao Santo124. IV – Hidrópicos e paralíticos Na cidade de Fano foi um hidrópico que teve a sorte de ser completamente curado da sua doença por intercessão de S. Francisco125. 36 A uma mulher de Gúbio, paralítica no seu leito, que depois de ter invocado por três vezes o nome de S. Francisco suplicando a cura, o Santo restituiu-lhe a saúde126. 37 Uma jovem paralítica de Arpino, na diocese de Sora, acometida de paralisia, com os membros completamente inertes, foi transportada para uma igreja de S. Francisco perto de Vicalvi. Aí, à custa de preces fervorosas e abundantes lágrimas, obteve a cura completa da sua enfermidade127. 38 Na mesma povoação também um jovem, vítima da mesma doença, mas agravada a tal ponto que nem conseguia abrir a boca nem mexer os olhos, foi levado à referida igreja, uma vez que lhe era impossível mover-se. Foi a mãe quem por ele suplicou a intervenção do Santo, de sorte que o rapaz, antes de regressar a casa, regressou ao estado de saúde de que gozara noutros tempos128. 39 Pedro de Gaeta, além de ter paralítica uma das mãos, tinha também a boca torta, a chegar-lhe, dum lado, quase à orelha. O resultado de ter pedido e seguido conselhos de vários médicos, foi o de perder a faculdade de ver e de ouvir. Até que por fim se entregou aos cuidados de S. Francisco, e ficou curado de todos os seus achaques129. 35 V – Vítimas de golpes e rupturas Um morador de Cisterna di Roma foi vítima dum lanho enorme na zona púbica, de tal sorte que não havia meio de impedir a extravasão do 40 ————— 124 Cf. 1C 147. 125 Cf. 1C 131. 126 Cf.1C 142. 127 Cf.3C 131. 128 Cf. 1C 73. 129 Cf. 1C 66. 49 intestino. As cintas, que em tais casos costumam remediar, provocavam ainda novas e múltiplas fissuras. O pai e a mãe do ferido andavam aflitos, pois os médicos, por mais tentativas que fizessem para o curarem, nada conseguiam. Resolveram então encomendá-lo a S. Francisco, levando-o a uma igreja construída em sua honra na região de Véneto. 41Expuseram o enfermo diante da imagem do Santo, por ele fizeram promessas, em conjunto com muita gente que se lhes juntou, e por ele se debulharam em lágrimas. No momento em que na proclamação do Evangelho se lia que mistérios ocultos aos sábios se revelam aos pequeninos, rompeu-se a cinta que o doente trazia, desapareceram as mezinhas ineficazes, apareceu no lugar da ferida uma cicatriz: foi uma total recuperação da saúde. E logo aí se ergueu ao céu o clamor daquela gente, em louvor a Deus e em veneração do Santo130. 42 João, da diocese de Sora, teve uma tão grave lesão de ruptura abdominal que de nada lhe valeram as intervenções médicas. Aconselhado pela esposa e por alvitre dum irmão a encomendar-se a S. Francisco e fazer um sinal da cruz sobre o sítio lesionado, ao executar piedosamente esses dois conselhos logo os intestinos voltaram ao seu lugar, com grande espanto do próprio pela tão súbita como inesperada recuperação131. ————— 130 Cf. 3C 111. 131 Cf. 3C 114. 50 REFLEXÃO SOBRE AS REFERÊNCIAS DA IDENTIDADE FRANCISCANA AO LONGO DE OITO SÉCULOS por Fr. Thaddée Matura1 ————— 1 Artigo publicado em Frate Francesco 72 (2006) 465-474. 51 REFLEXÃO SOBRE AS REFERÊNCIAS DA IDENTIDADE FRANCISCANA AO LONGO DE OITO SÉCULOS Há oitocentos anos que existe um grupo de homens e mulheres conhecidos como “franciscanos”2. São reconhecidos por determinados rasgos comuns, por certas formas de ver e de actuar, algo que constitui um espécie de identidade colectiva. O adjectivo “franciscano” que identifica este grupo, remete-nos para a figura histórica de Francisco, para ————— 2 As reflexões que apresentamos pretendem ser um convite a pensar e a actuar, por isso, evitamos todo o aparato científico como citações e notas. As propostas de leitura e de interpretação são pessoais e discutíveis. No entanto, fundamentam-se num rico material histórico, do qual assinalamos alguns títulos: Sobre a observância da Regra até ao Concílio Vaticano II, existem alguns apontamentos em: L. HARDICK, La Regla franciscana y su primitiva observancia, em Verdad y Vida 20 (1962) 397-431: J. THERSCHLÜSSEN, La Regla franciscana y las declaraciones pontificias vigentes, em Verdad y Vida 20 (1962 447-463; K. ESSER, La Regla definitiva de los Hermanos Menores a la luz de las recientes investigaciones, em Cuadernos franciscanos de renovación n. 6 (1969) 69-116. Sobre interpretação canónica tradicional: K. KATZEMBERG, Liber Vitae seu Regulae S. Francisci1 Expositio, Ad Claras Aquas 1926, 10-16; T. A. VILLENEUVE, Explication de la Règle du premier Ordre de Saint François, Paris 1933, 27-31 Sobre a imagem de Francisco em geral: R. DE BEER, François que disait-on de toi? Paris 1977; Francesco nella storia, II, Roma 1983; imagem medieval: G. MERLO, En el nombre de Francisco de Asís. Historia de los Hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI (Hermano Francisco, 50), Aranzazu 2005, 182-189; F. ACCROCCA, L’escatologia del francescanesimo del duecento, em Attese escatologische dei secoli XII-XIV, Aquila 2004, 63-92. A imagem de Francisco como ermita e asceta aparece com força já na reforma de Pedro Villacreces no século XV, consulte-se: D. B. NIMMO, Saint Francis within the observance, em Francesco nella storia, I, Roma 1983, 167-171; esta imagem continuará a marcar a tradição franciscana ibérica, sobretudo a alcantarina, assim como as reformas do século XVI e XVII.. Sobre a imagem romântica: S. DA CAMPAGNOLA, Le origini francescane come problema storiografico, Perugia 1979, 133-361; La “Questione francescane” del Sabatier ad oggi. Atti del I Convegno Internazionale, Assisi 1974; Paul Sabatier e gli Studi Francescani. Atti del XXX Convegno, Spoleto 2003. 52 o seu tempo e sua mensagem. Pretender ser e denominar-se franciscano, remete-nos necessariamente para este ponto original, tal como no plano completamente único, o ser cristão remete para Cristo. Para além disso, não estamos certos que Francisco apreciasse muito o termo “franciscano”, demasiado vinculado à sua pessoa. O movimento de fidelidade ao Evangelho, suscitado por Francisco, foi por ele resumido num vocábulo profundamente evangélico: irmãs menores (pequenos), ou “irmãs pobres” na versão feminina do seu projecto. Mas a identidade franciscana constrói-se pela referência ao homem chamado Francisco e à – forma sancti evangelii – vida segundo o Evangelho, que ele propõe. Este projecto que desejou viver com seus irmãos e irmãs foi reconhecido pela Igreja, e é, ainda hoje, um interpelação para todos os cristãos. Efectivamente, ao longo de uma história de oito séculos, com altos e baixos, os “herdeiros” e continuadores da aventura franciscana nunca deixaram de se inspirar e renovar, para “refundar”. Para o conseguir é necessário voltar ao passado, ao qual unicamente se pode aceder por meio de relatos e de documentos escritos. Na realidade, no que se refere ao acontecimento franciscano, os herdeiros dispunham de dois tipos de testemunhos. De um lado, uma colecção bastante escassa mas reconhecida como autêntica de escritos pessoais de Francisco que traçam, essencialmente, um programa de vida evangélica. De outro lado, uma quantidade importante de relatos hagiográficos, centrados, embora sob pontos de vista diferentes, sobre a vida, as virtudes e os milagres de Francisco, o seu herói. Este recurso ao passado teve lugar não uma ou duas vezes, mas foi constante ao longo dos séculos, sempre a partir de situações e contextos históricos diferentes e, sempre em mutação. Neste artigo proponho-me examinar esta permanente referência à inspiração original, que, ao mesmo tempo, é busca e confirmação da identidade franciscana. É uma empresa difícil, sobretudo se a queremos tratar com rigor científico. Se me aventuro nela, não é por pretensão ou provocação, mas para “fazer pensar”, para ajudar a descobrir esta busca sempre idêntica de referências que fundamentam opções e uma prática de vida, e também para mostrar a grande variedade de enfoques. Sem ser historiador de profissão, fundamento-me na literatura importante consagrada à história e à espiritualidade franciscana, interpretando-a com a ajuda de algumas intuições – que haveria que verificar e criticar – que me pareceram interessantes e fecundas para compreender melhor a nossa história e o nosso presente. 53 A minha tese – se assim me posso exprimir – é a seguinte: ao longo da história, o movimento franciscano, na sua principal expressão – a Ordem dos Frades Menores –, na hora de fundamentar e afirmar a sua identidade, teve dois pólos principais de referência: um escrito, a Regra (e em determinados casos o Testamento) como base legal, canónica; a imagem de Francisco transmitida pelos biógrafos, compreendida e interpretada segundo o espírito da época, como inspiração e modelo espiritual – base ideológica. A REGRA: BASE CANÓNICA OFICIAL Efectivamente, para ser reconhecido como movimento da Igreja, fazia falta a aprovação de – propositum – projecto de vida. Para Francisco e seus companheiros, este projecto foi a eleição de uma vida segundo o Evangelho, esboçada num breve escrito – protoregula –, aprovada oralmente por Inocêncio III, em 1209. Este escrito embrionário tomaria ao longo de mais ou menos quinze anos a forma de Regra definitiva que será confirmada por uma bula de Honório III, em 1223. Esta Regra constitui a base canónica legal da existência da Ordem dos Frades Menores e reconhecia-lhe um lugar na Igreja. Chegava-se a ser irmão menor – franciscano – comprometendo-se, mediante a profissão, “a observar durante toda a vida esta Regra e esta vida”. Primeiro de forma amplificada – Primeira Regra ou Regra não bulada –, depois condensada – Segunda Regra ou Regra bulada – transmitia, sobretudo quando se relacionava com as perspectivas expressas nos outros escritos de Francisco, o essencial da sua mensagem espiritual e do seu radicalismo evangélico concreto. Com o fim de assegurar a sua aceitação e a sua prática, Francisco redactou um “Testamento”, pouco tempo antes de morrer, no qual, com insistência, convidava os irmãos a observar “pura e simples e católicamente” esta Regra. Desta forma, a Regra é um escrito que se converteu na primeira e, praticamente, a única referência da identidade franciscana, até à época moderna. Como a sua aplicação, – sobretudo no campo da pobreza – colocava problemas práticos, foi necessário comentá-la e interpretá-la. Por isso os Irmãos Menores recorreram, em primeiro lugar, à autoridade da Igreja. O primeiro comentário – declaração – procede de Gregório IX – cardeal Hugolino – que conheceu e era conselheiro de Francisco. A sua 54 declaração – Quo elongati (1230) – será seguida por outros Papas: Exiit qui seminat de Nicolau III (1279) e Exivi de Paradiso de Clemente V, no Concílio de Viena (1312). Os próprios irmãos também elaboraram as suas declarações, como Hugo de Digne e os “Quatro Mestres” de Paris. Quando se estudam estes comentários, ficamos impressionados pelo seu carácter jurídico e casuístico; tratava-se de precisar detalhadamente o que se devia fazer e evitar e qual era o grau de obrigação moral; encontraram-se na Regra vinte e quatro pontos que obrigam sub gravi! A dimensão evangélica, quando não é suprimida, não é posta em evidência. Na realidade, desde a morte de Francisco, até praticamente ao Concílio Vaticano II, todos os grandes debates assim como todos os movimentos de retorno – reformas – giraram à volta da observância da Regra, lida e comentada desde óptica jurídico-casuística. O ponto principal afectava principalmente a questão da pobreza comunitária – renúncia a toda a propriedade colectiva e proibição de usar dinheiro, etc – cuja prática radical constituía a originalidade do grupo. O Testamento, cuja autoridade canónica não era reconhecida, associado na maioria das reformas à Regra e lido ao mesmo tempo que esta, não era, contudo, respeitado no que concernia à proibição de pedir privilégios à Cúria de Roma. Teremos que esperar o tempo do Concílio, para que a Ordem renuncie, com o acordo da Igreja (Paulo VI em 1970), a esta concepção legalista que, apesar de estar afirmada, não era praticada – e não podia sê-lo – há já mais de um século. Desde as reforma das Constituições Gerais (1967-1987), a Regra, vista de uma forma isolada e estreita, deixa de constituir a primeira referência. Se, como afirma o artigo 2,1, a Regra continua a ser “o fundamento da vida e da legislação da Ordem, tudo quanto nela se contém é para ser entendido e observado no seu contexto vital, segundo a mente de Francisco, expressa principalmente nos seus escritos…” Partindo deste recorrido histórico podemos concluir que a Regra continua a ser um ponto de referência central e teremos motivo para celebrar como uma graça e um dom a sua aprovação há oito séculos. Como no passado, os irmãos de hoje comprometendo-se com a Ordem, pronunciam esta fórmula: “professo a vida e a regra dos irmãos menores… prometendo observá-la fielmente”. O que mudou é que não se trata de um 55 texto fechado em si mesmo, lido de maneira fundamentalista. A Regra deve ser entendida, agora, como o resultado e o resumo de toda a riqueza teológica e espiritual, revelada a um dos “pequenos” segundo o Evangelho (Mt 11, 25), e consignada nos seus humildes escritos. A fidelidade à Regra que marcou toda a história da Ordem, continua a ser uma tarefa permanente. Retendo as lições do passado, é necessário encher-se do seu dinamismo evangélico para a expressar com mais força e de outra forma no início do terceiro milénio. Imagem de Francisco como inspiração e modelo; Base “ideológica” A Regra, mesmo que esteja marcada pela personalidade de Francisco – dirige-se aos irmãos oito vezes em primeira pessoa – não diz nada sobre a sua vida nem o propõe como exemplo. O que a regra propõe é “observar a pobreza, a humildade e o santo Evangelho de Jesus Cristo”. É verdade que o conteúdo evangélico muito depressa foi dirigido – e reduzido – praticamente à pobreza material, ponto fulcral dos debates e reformas da Ordem. Não obstante, era necessário para a vida dos irmãos um estímulo, uma inspiração, uma determinada visão teológica e espiritual mais completa, mais vasta, mais “cristã”. Os escritos de Francisco respondiam, sem dúvida alguma, e esta exigência, mas procediam de um homem de cultura simple e idiota. Apesar de serem piedosamente copiados e conservados, não eram conhecidos nem utilizados como base espiritual. Ao contrário, abundam as Legendas – escritos biográficos que relatam a vida de Francisco –; num século apareceram à volta de uma dezena, o que é muito para a época. Estavam, como é normal, centradas na figura do herói. Cada uma, segundo o seu ponto de vista, segundo os interesses e as necessidades dos colaboradores e dos leitores, relatava o desenvolvimento da sua vida, as suas virtudes, seus ensinamentos, seus milagres. A colecção destes “documentos” perfaz mais de um milhar de páginas (1300 na edição portuguesa), enquanto os escritos de Francisco pouco vão além das cem páginas. Entre estas Vidas do século XIII, a mais difundida é a de Boaventura; foi esta Legenda que transmitiu através dos tempos a imagem clássica de Francisco. 56 1. A imagem medieval do século XIII ao século XV: “Alter Christus” estigmatizado – anjo do sexto selo Na vida de Francisco não se fala muito dele; o que desencadeou a sua fama póstuma deveu-se principalmente aos estigmas verificados no seu corpo depois da morte. Efectivamente, um fenómeno destes acontecia pela primeira vez na Igreja. Marcas da paixão de Cristo, os estigmas fizeram de Francisco um alter Christus, uma espécie de réplica do Crucificado e influíram profundamente, num sentido cristológico, na apresentação da sua visão teológica. Por outro lado, a chave de leitura na qual o papa Gregório IX situa Francisco na sua bula da canonização Mira circa nos, apresenta-o como um apóstolo enviado por Deus à Igreja dos últimos tempos. Imagem crítica, inserida no plano de salvação. Francisco indica assim qual é a missão confiada à Ordem da qual é fundador. A sua vocação pessoal, a aura que o envolve, a glória que irradia, repercutem assim sobre a sua posteridade. Esta visão grandiosa insere-se facilmente nas perspectivas desenvolvidas por Joaquim de Fiore e seus comentaristas. Uma nova idade, a do Espírito Santo, está prestes a irromper; tudo será liberdade, ordem, beleza; uma figura e um grupo de frades contemplativos serão anunciadores e percursores desta nova época. Muitos irmãos, e não só os anónimos – Hugo de Digne, João de Parma – verão em Francisco o “Anjo do sexto selo” (Apc 7, 2) e aquele que anuncia e traz o “Evangelho eterno” (Apc 14, 6), missão da qual a Ordem – novus ordo – é chamada a tomar parte. Inclusivamente Boaventura, com matizes para se manter nos limites da ortodoxia, conserva alguns destes enfoques. Estes, atribuindo a Francisco um lugar à parte na história da salvação, fizeram dele uma figura única, quase sobre-humana. Conferiram por isso à sua Ordem uma missão e uma função privilegiadas, longe da “pobreza, da humildade e da submissão a todas as criaturas”, valores fundamentais do seu carisma. Esta imagem que sublinhará até ao exagero, – “O livro das conformidades” de Bartolomeu de Pisa, que um franciscano especialista na questão (P. Zahner) chamará esotérico, misterioso, escondido, reservado aos iniciados– terá a sua expressão ao nível da arte através das inúmeras representações da estigmatização e através do ícone hierático do estigmatizado. Assim, de forma exagerada pelo facto dos estigmas e pela 57 sua inserção privilegiada na história da salvação interpretada pelo joaquinismo, Francisco se converte em emblema, objecto de um culto de personalidade, contra a qual reagiu a reforma luterana, nem sempre com razão. Não é necessário rejeitar todos os valores que oferece uma visão deste calibre – Francisco continua como uma das maiores figuras do cristianismo – mas não podemos esquecer que a concentração sobre a figura do fundador e sua glorificação, fizeram esquecer frequentemente a mensagem de que foi portador e que é maior e mais importante do que ele. 2. Do século XVI ao século XVIII: Francisco ermitão contemplativo e asceta Depois da Devotio moderna, novas correntes espirituais percorrem o século XVI: renascimento místico, movimento inaciano e carmelita. Privilegia-se o recolhimento, a interioridade, a meditação silenciosa, exame e conhecimento de si mesmo. As ordens antigas reformam-se, insistindo na contemplaçã, e preconizam uma ascese rigorosa. Os franciscanos, separados em 1517 em dois ramos, conventuais e observantes, acabam numa espécie de cisão, em quatro reformas suplementares: capuchinhos, reformados italianos, descalços espanhóis e recoletos franco-belgas. A referência principal, comum a estas “refundações”, continua a ser sempre a observância “pura e simples” da regra, segundo as Declarações Pontifícias e o testamento. A sua imagem de Francisco adoptará muitos dos rasgos da espiritualidade do tempo. Sem dúvida alguma que se baseia sempre sobre a figura clássica apresentada por Boaventura. Ainda que as interpretações evocadas mais acima não tenham desaparecido completamente, já não se trata tanto de Francisco “o novo evangelista”, iniciador da idade do Espírito que se apresenta ao culto e à imitação dos irmãos, É o Francisco ermitão contemplativo, presente não só no Alverne mas no fundo de uma cova, com um crânio a seu lado, o rosto em êxtase e o olhar fixo no crucifixo. Desta forma aparece frequentemente na pintura clássica e barroca, sobretudo em Espanha: El Greco, Zurburán, Cano. Veremos incluso em uma igreja franciscana da Transilvânia, um Francisco “ Das Luzes”, representado sem estigmas e sem auréola. As influências exteriores, procedentes das correntes centradas na interioridade e na contempla58 ção, contribuíram indiscutivelmente para formação desta imagem. Entretanto, não fizeram outra coisa que recordar aos irmãos aquilo que a figura de Francisco e sobretudo a sua mensagem implicavam: o lugar central da vida evangélica, da vida espiritual com suas exigências e condições. Devido à enorme difusão da Ordem – cerca de cento e trinta mil irmãos no século XVIII – este período é o de mais difícil acesso e o menos conhecido. Valeria a pena verificar, por meio de estudos de numerosos textos espirituais produzidos na época pelos irmãos, qual era a imagem de Francisco que inspirava os movimentos da reforma e até que ponto diferia da imagem medieval. Em todo o caso, é necessário reter a importância das influências que exercem as correntes culturais e espirituais do tempo, de modo a perceber e interpretar uma figura do passado. Isto é válido tanto para o passado sobre o qual estamos a reflectir como sobre o presente. Na época em questão, Francisco já não é visto como um irmão do século XIII, espiritual ou joaquinista, mas como um homem do renascimento ou da Contra-reforma católica. É o mesmo, mas também outro Francisco. 3. Do século XIX ao século XX: Francisco dos “românticos” A época clássica, sobretudo no período “Das Luzes” (século XVIII), amava a claridade e a racionalidade; para ela a Idade Média era um tempo das trevas. Inicia-se uma reacção, em princípios do século XIX, na busca de qualquer coisa sensível, menos inexpressiva, mais poética; é o nascimento do romantismo. A arte romântica e gótica é reabilitada e descobre-se “o génio do cristianismo”. Em 1826 o escritor alemão J. Görres publica um livro com o título “Francisco, um trovador”, que apresenta Francisco como um jogral, um orfeu da Idade Média. Pouco tempo depois (1852), Frederico Ozanam faz o mesmo com “Os poetas italianos do século XIII” ao eleger as Florinhas de S. Francisco, publicando a primeira tradução em francês. Outras personalidades da época interessam-se por ele: em França, o historiador Jules Michelin, Renan e sobretudo o seu discípulo Sabatier; o mesmo aconteceu na Alemanha: von Hase, Thode, Gebhart. Consideram Francisco como um homem a caminho da liberdade, do individualismo, da autonomia, um poeta na origem de uma arte nova (Giotto, Dante). 59 Sabatier foi quem, na sua obra magistral “Vida de São Francisco de Assis” (1893), de êxito fulminante, desenhou uma imagem “romântica” e duradoira do santo. É um Francisco profundamente humano, que vive uma experiência espiritual sem igual, mas fora dos cânones teológicos, um profeta, um homem livre, amigo da natureza, poeta entusiasta, precursor, pela sua pobreza radical, das revoluções sociais. Sem romper com a Igreja, prefigura já a Reforma. Sabatier não deixa de lado a dimensão religiosa de Francisco e afirma a importância capital dos seus escritos para o conhecer. Historiador insigne, respeita os factos, mas a sua interpretação global da figura de Francisco apoia-se na teologia liberal de tendência modernista. Sabatier marcou os estudos de Francisco de forma duradoira; apesar de superada em muitos pontos, a imagem que ele traçou continua a impor-se – para o bem e para o mal –. Francisco homem novo e inclassificável, Francisco revolucionário radical, Francisco poeta e jogral, Francisco que ora pela paz, Francisco amigo dos animais e padroeiro dos ecologistas, assim é conhecido hoje no grande público e assim o popularizaram as múltiplas Vidas publicadas todos os anos, assim como as imagens que o representam com os pássaros e o lobo. Percebemos a distância que há entre esta imagem e as imagens das épocas anteriores. Se esta deu valor, com acentos demasiado “românticos”, aos aspectos humanos da figura de Francisco, deixou de lado a sua experiência cristã profunda de Deus e do homem. Mesmo que a Família Franciscana nunca tenha aderido plenamente a esta perspectiva superficial, ela permanece subjacente a toda a imagem de Francisco. 4. Francisco “futuro”: volta a ser actual A investigação franciscana moderna, que se iniciou com Sabatier, e da qual permanece como emblema, foi seguida ao longo do século XX por um número importante de investigadores no interior da família franciscana e cada vez mais fora dela. O resultado a que chegou, refere-se a dois pontos importantes: a solução da “questão franciscana” e a importância dada aos escritos de Francisco. A questão franciscana, isto é, a de saber qual das numerosas, variadas, e às vezes opostas biografias do século XIII, representa o “verdadeiro Francisco”, pode considerar-se definitivamente ultrapassada. Em relação aos factos, todos estão de 60 acordo de que cada autor propõe uma imagem de Francisco de acordo com uma opção e uma interpretação, em função dos seus interesses e dos interesses dos seus leitores. Cada obra possui uma verdade, e nenhuma pode pretender apresentar um Francisco “real” e objectivo. O “Francisco da história” com uma personalidade rica e contrastada, presta-se assim a uma aproximação tal que explica a multiplicidade de imagens que se criaram dele e as que se farão no futuro. E quanto à importância dos escritos de Francisco, podemos falar com toda a razão duma viragem histórica. Para além da realidade da sua conservação e da sua cuidadosa e fiel transmissão, um certo mistério envolve o facto de não serem utilizados e a ignorância do seu valor teológico e espiritual durante séculos – com a excepção da Segunda Regra e do Testamento –. Naturalmente que se levantaram vozes, entre elas a de Sabatier, que se referem a eles como a principal fonte para o conhecimento do pensamento e das intenções de Francisco e o critério para julgar o valor dos relatos hagiográficos. Não obstante, foi preciso esperar pelos anos 50 do último século para começar a descobrir, apesar da escassez das colecções e o carácter fragmentário dos textos, a sua surpreendente densidade humana e teológica. Esta dupla descoberta, que se encontra na origem das transformações do franciscanismo nos finais do século XX, exige uma nova abordagem sobre a figura de Francisco e sobre a mensagem dos seus escritos, as duas referências fundamentais da identidade franciscana. É necessário render-se à evidência: as numerosas facetas humanas e espirituais de Francisco não podem ser reduzidas de novo a um modelo monolítico. A sua figura grandiosa, resplandecente com uma aura mística e poética, entreaberta sobre as profundidades do mistério trinitário, continuará a fascinar e a inspirar os homens. Efectivamente, não deveríamos cair no culto da personalidade, em “fazê-lo o maior dos santos” – sobretudo para nossa glória (cf. Ex 6) – em atribuir-lhe um papel único na vida da Igreja. Não poderia ser o ponto fulcral de nenhuma espiritualidade, nem sequer da franciscana, uma vez que o único Santo e o único mediador é aquele que Francisco nos mostra e para o qual nos conduz, o Senhor Jesus Cristo. Os escritos de Francisco muito contribuirão para esta relativização e redimensionamento. Estes, mesmo quando trazem alguns escassos elementos do conhecimento da sua figura, não têm por objecto o mesmo Francisco, mas a vida evangélica que ele viveu com seus companheiros e 61 que propõe hoje a todos nós. O coração deste projecto é o mistério de Deus na sua comunhão trinitária, ligado ao mistério do homem, grande e miserável ao mesmo tempo, a quem esta comunhão é oferecida. É à volta deste pólo que gravitam os trinta breves textos dos seus escritos. Temos numerosos textos recentemente publicados: teses universitárias, livros, artigos, fruto de análises e da interpretação desses textos, que trouxeram à luz do dia uma visão global da vida cristã segundo o Evangelho, fundamentada sobre uma profunda teologia e com ricas perspectivas antropológicas. Os investigadores e especialistas dos escritos estão de acordo com a afirmação do historiador G. Miccoli: Os escritos de Francisco constituem “os critérios e os parâmetros para aferir, avaliar e apreciar tudo o que se publicou sobre Francisco, a sua experiência e o seu projecto de vida”. A mensagem – “palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, que é o Verbo do Pai, e as palavras do Espírito Santo, que são escrito de vida” (2CF 3) – é mais importante que o mensageiro, mesmo que seja Francisco de Assis. Estes dois pontos de referência da identidade franciscana, a Regra e a figura de Francisco continuam a ter actualidade. Mas temos de passar de um texto legislativo reduzido e lido de uma forma casuística, para um projecto evangélico que a colecção dos escritos propõe e desenvolve. E do lugar central outorgado à figura de Francisco, passar à centralidade do projecto, cujo coração é o Evangelho de Cristo, nunca totalmente acolhido, nem totalmente expresso na vida. Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana 62 CRISTO E S. FRANCISCO Grande Rei e o poeta cantador da natureza e da fraternidade Fr. Gonçalo Figueiredo 63 CRISTO E S. FRANCISCO Grande Rei e o poeta cantador da natureza e da fraternidade A figura de “Nosso Senhor Jesus Cristo” é a chave para compreender todo o percurso de S. Francisco, bem como de todos os santos. O santo de Assis não teria sido o que foi, não teria feito o que fez, se Cristo não estivesse presente, operante, como amigo e companheiro. O agir de Francisco não é filantropia, cálculo, programa; o agir do santo é Fé, adesão de todo o coração à Pessoa de “O Senhor”. Sendo certo que o seu amor a todos os homens e a todas as criaturas, o ponderar do seu actuar e do todo da sua vida, o plano muito concreto e evangélico de vida, o seu ser e o seu trabalho são fé, expressão de fé, um abandono e confiança total n’Aquele que por nós morreu e ressuscitou. A primeira preocupação de Francisco não é o homem, a natureza, a Igreja ou ele mesmo; a primeira preocupação de Francisco é Cristo. Ele é o centro e por Ele chega a tudo o mais, aos homens seus irmãos, à obra da criação, à Igreja, e a ele mesmo. A razão do agir de Francisco é Cristo que o leva ao Pai, que lhe alarga os horizontes, rompe o tempo e o lugar, faz brotar desejos de eternidade e de a todo o lugar chegar para levar a boa nova, inclusive o desejo de se encontrar com o Sultão. É o Senhor o eixo à volta do qual tudo em Francisco gira, é a referência constante para agir, pensar, viver. É Ele o modelo supremo a imitar. Tanto assim que foi chamado “alter Christus”, outro Cristo, tanto mais ele mesmo quanto mais próximo de Cristo. O único mestre que orienta Francisco é Cristo: (cf. LM II, 1) “ninguém me dizia o que devia fazer, mas o mesmo Altíssimo me revelou que devia viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test.14). As palavras, os gestos, o número de companheiros, o estilo de vida, bastam para perceber esta centralidade de Cristo na vida de S. Francisco; e se mais fosse 64 necessário para provar este estilo de vida que quis para si e para os seus companheiros, lá estavam as chagas impressas no Monte Alverne a provar isso mesmo: identificação com Cristo pobre e crucificado. Importa então saber que Cristo é este que move e polariza toda a vida e pessoa de Francisco. Quem é Este que enamorou Francisco e por quem Francisco se enamorou? Que imagem de Jesus se gravou fundo na mente e no coração do pobrezinho de Assis? Foi o Cristo do Evangelho que ele escutava religiosamente no Ofício Divino e na celebração da Eucaristia, o mesmo Evangelho que ele proclamava como diácono, crendo o que lê, ensinando o que crê e vivendo o que ensina. São os Santos Evangelhos a fonte do conhecimento de Cristo. Outra fonte é a Igreja na sua própria liturgia, os Santos Mistérios celebrados na catedral de Assis ou nas pequenas igrejinhas por onde passa e pernoita, e o grande Cristo em S. Damião. Um Cristo vivo de olhos grandes e abertos, centro de um mundo ordenado para a Paz, o Cristo da misericórdia, o Cristo da cruz e do deserto em fortes Quaresmas de intimidade com o Pai, um Cristo presente nos sacerdotes “que vivem segundo a norma da santa Igreja Romana, pelas ordens que têm” a quem Francisco quer temer, amar e honrar como a seus senhores, pois eles aos demais administram o santíssimo Corpo e Sangue, as santíssimas palavras divinas, os santíssimos mistérios que devem ser honrados e colocados em lugares preciosos. Um Cristo simples e trabalhador com as suas próprias mãos, que quer que todos os homens trabalhem, não pela cobiça de receber o preço do trabalho, mas para dar bom exemplo e para repelir a ociosidade, inimiga da alma. O Cristo humanado no seio da Virgem Maria, Senhora pobrezinha, nascido na doçura do presépio de Belém, um Deus próximo ao mesmo tempo que distante, o irmão e o Altíssimo, o pobre e o Rei do Reis. Nada disto é teórico, especulativo, puro fruto do pensamento desencarnado da realidade. É muito concreto, vivido, sentido na fragilidade da própria carne pecadora de Francisco. O Cristo que se dá a conhecer a Francisco na Sagrada Escritura, na liturgia, nas igrejas, no crucifixo de S. Damião, nos pobres e nos irmãos, comporta em si a altura da sua Majestade Divina, “Altíssimo e Glorioso”, e a sua humanidade crucificada, o Senhor Altíssimo (LD, 2): é o Cristo servo que se humilha, “cada dia vem até nós, pelas mãos dos sacerdotes, como quando baixou do seu trono real a tomar carne no seio da Virgem; cada dia desce do seio do Pai, sobre o altar. O Senhor “rei omnipotente” é 65 o servo sofredor cantado no Oficio da Paixão e visto claramente no leproso; o Senhor da Glória é o Cristo da cruz, o “Soberano Deus” é o Cristo mendigo e peregrino que vive de esmolas com a Sua Mãe e os seus discípulos (1R9, 5.6). Estas duas realidades de Cristo, Francisco captou-as muitíssimo bem ao ver n’Ele o Altíssimo e o Baixíssimo. O próprio modo como S. Francisco se refere a Jesus é, já por si mesmo, muito revelador da imagem que ficou gravada no seu espírito. Quase sempre lhe chama “Nosso Senhor Jesus Cristo”. É nosso, porque Francisco sabe que não possui nada, muito menos Aquele que tudo possui e que o possui a ele. É nosso porque é de todos e para todos os homens; foi dado não ao anónimo da multidão mas a cada um em particular e a todos totalmente como filhos de um Pai comum no Filho. É Senhor, muito possivelmente à imagem dos senhores feudais da época, mas com um senhorio que vai para além desses senhores que são servos; é o Senhor dos senhores, a quem a reverência não anula a proximidade e quanto maior a reverência maior essa mesma proximidade. Não é um Senhor tirano e déspota que deseja a guerra, mas um Senhor revestido de mansidão e misericórdia, que é a justiça para lá de toda a justiça. O ideal do trovador cavaleiresco não se despegou da maneira de ser de Francisco, ele continua a ser o servo do Grande Rei, escudeiro do Senhor Altíssimo, e esta referência de poder dá-lhe profunda liberdade, ao mesmo tempo que grande confiança na protecção daquele que vela pelos seus amigos. Outro tipo de obediência é devida a este Rei, outro tipo de rei. Onde a batalha não deixa de ser sumamente exigente, mas outro tipo de batalha, com outro tipo de armas, a mesma preocupação pela libertação de cada homem numa vida de santidade agradável a Deus. Outras armas, que não as da guerra, entre senhores temporais: as armas da mansidão e do Evangelho, da reconciliação e do anúncio de uma fraternidade de iguais, todos necessitados desta força salvífica que reconstrói o homem. O termo “Jesus” nunca aparece nos escritos de Francisco isolado; ou está acompanhado do adjectivo “Senhor” ou na longa enunciação de “Nosso Senhor Jesus Cristo”, a universalidade do senhorio de Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Não há cedências nem à humanidade que Cristo encarnou, nem à divindade que Jesus é. Não há uma espiritualidade fácil e simplista de divisão e de fuga, refugiada numa divindade distante e espiritualizada, alheia ou mesmo adversa à obra da criação, como não há um materialismo fechado no mundo infra-celeste sem o horizonte da eternidade. Há uma continuação clara, uma ligação evidente, entre o 66 Jesus, na sua mais doce humanidade, e o Cristo na sua mais luminosa divindade. Em tudo a proximidade do olhar de fé e do toque das mãos que cuidam. Quanto mais Francisco se aproxima de Cristo, mais tem a percepção clara da sua distância e da altura d’Aquele que por nós, pobres pecadores, sofreu a paixão de cruz. Desta distância não brota a desconfiança, desapego, alheamento ou a rejeição de algo que nunca se pode alcançar, mas a reverência, o reverente temor de obediência filial. Quanto mais percebe a majestade de Cristo, mais se dá conta da sua pequenez, quanto mais medita no abaixamento do próprio Senhor, mais se dá conta da Sua altura. Esta aparente contradição: quanto mais próximo mais distante, quanto mais baixo mais alto. Também sabe Francisco que quanto mais ele mesmo se humilha mais se levanta, quanto mais se abaixa mais é levantado, quanto mais reconhece a sua fragilidade mais é atraído pelo forte, “o mais forte” que é Cristo. É o mistério do abaixamento e exaltação que S. Paulo descreve no seu hino. Em tudo a disponibilidade do encontro, o deixar-se guiar pelo Espírito que nele habita pelo «espírito de santa oração e devoção, ao qual todas as demais coisas devem servir». É conduzido pelo Espírito que Francisco entra e permanece dentro da Igreja, na comunhão como o “Senhor Papa” a quem promete obediência e reverência em fé verdadeira que é a fé da Igreja. Ele já tinha entrado, mas agora permanece, e quer que todos os seus irmãos permaneçam; ele permanece porque lhe foi dado um lugar, foi-lhe atribuída uma missão. A experiência de Cristo é também a experiência de Igreja que Francisco faz, do mais sublime e santo, do mais fraco e desprezível, a graça e o pecado, a graciosidade de Cristo contrastante com a fragilidade da carne sujeita ao pecado da desobediência, o afastamento do redil. Mas apesar do que parecia aos olhos da carne desprezível e vil, Francisco não abandona a Igreja, pois sabe que é nela que Cristo mora, ainda que essa igreja esteja tão em ruínas e abandonada como a velha e solitária igrejinha de S. Damião. É guiado pelo Espírito que Francisco entra um dia para orar em S. Damião. Todo ele reza, reza com o coração, com a mente e com o corpo, ora com o coração de forma devota, com a mente em fortes suplicas e com o corpo 67 pela maneira como se prostra aos pés do Crucifixo. Esse grande crucifixo do grande Cristo rodeado dos santos abrangendo todo o mundo, vivo e com as marcas da paixão, que o invade “tomado de um modo extraordinário pela graça divina que o torna completamente diferente do que era momentos antes” (2C 10). Quando entra Francisco na Igreja para não mais sair? É demorado o seu processo de conversão, leva o tempo da purificação, o purificar a vontade e a inteligência, o sujeitar o corpo à disciplina do jejum, o limpar os sentidos para ver bem o que só bem se vê com a pureza de coração. É a própria imagem de Cristo que leva tempo a purificar pelo despojar dos fantasmas, das mundanas imagens de glória e vã glória. Quando entra Francisco na Igreja para não mais sair? Quando descobre que tem muito para descobrir na verdade do Senhor que o atrai a Si. É o olhar olhos nos olhos, o face a face, de quem se deixa olhar e convocar pela voz de uns lábios despregados que falam, chamam, dirigem-se não a uma multidão anónima mas ao concreto de uma pessoa, “chamando-o pelo próprio nome: «Francisco»”. Porquê “Francisco” se o seu nome de Baptismo era João? Que lhe reconhece Jesus para o tratar assim, “pequeno francês”? Como que o “crisma” de quem confirma a sua sensibilidade apurada e provençal herdada de sua mãe, o reconhecimento de uma radical transformação que comporta em si mesma a mudança de nome, já antes operado pelo desejo opulento de seu pai. Seria porque Francisco já não se identificava com o nome do Apóstolo ou do Baptista, uma remota lembrança de um sacramento administrado na ausência paterna, de tão habituado que estava a ser tratado, chamado, pelo doce nome de sabor a terras distantes, conhecidas pelos seus comércios de finos panos e mornas melodias de amor cortês. Designado por um nome novo, confirmado na sua personalidade sensível, é uma nova criatura que nasce sob o olhar e a voz do Senhor. Este ser objecto de uma voz, alvo de uma atenção, incidência de um olhar cheio de misericórdia, desmonta Francisco, deixa-o ele mesmo em ruínas, “pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina resposta”. As suas antigas seguranças desaparecem, deixa de se fiar de si para se voltar para Aquele que já não é somente uma imagem pintada num belo retábulo, ou uma ideia bonita numa letra impressa, mas Um que se desprende e se mexe, fala-lhe, sai uma Voz. Tem diante de si uma representação de Cristo, vê milagrosamente uma Pessoa. A iniciativa não 68 é de Francisco, inaudito milagre. A novidade da acção do Alto, da pintura sai a Pessoa, da letra sai o Espírito, tem diante de si Cristo que se dirige a Ele. Num repente, um instante único, um momento de graça que deixa na sua alma a perfeita consciência de ser amado por Deus, olhado por Cristo, habitado pelo Espírito. Tudo o mais é busca e aprendizagem, isto é certeza de fé. Francisco passará toda a sua vida a reconstruir. Primeiro a reconstruir-se a si mesmo, ele que tinha ficado em pedaços com aquele encontro, passa a sua vida a recolher pedras para a igreja, ocupa-se em identificar-se cada vez mais com o Senhor. Quer ser como Cristo e por isso o imita na sua forma de vida simples, pobre, casta e obediente, toma Maria, “Senhora dos Anjos”, por mãe do seu grupo também ele de doze, como os Apóstolos. Francisco sabe agora que recebeu um encargo: ser colaborador de Cristo na obra da regeneração e restauração da Igreja, sabe também que a casa é d’Ele, do Senhor que nela mora. Francisco não é o dono da casa mas o servo do Grande Rei. Um encargo lhe foi dado, um sagrado e verdadeiro encargo, uma missão. Do encontro uma coisa fica fortalecida em Francisco: a sua vontade. A vontade firme e tenaz de obedecer imediatamente à ordem recebida: “nada mais queiramos, nada mais desejemos, do que fazer a sua santa vontade”. Não sabe bem por onde passa essa obediência, vai descobrindo com o tempo, falhando umas vezes, afinando outras, buscando sempre. Está interiormente fortalecido, e concentra todas as forças para executar essa vontade que não muda, mas que cada dia se vai descobrindo mais profundamente. É a espontaneidade de Francisco, a inspiração do momento, é a descoberta de cada vez dos contornos dessa vontade que não se coaduna com o já estabelecido, mas reveste-se de coisas sempre novas: “Eis que vou renovar todas as coisas”. Francisco não se refugia na inteligência para perceber o que aconteceu e o que deve fazer. Não tematiza para se desculpar, não se senta à secretária para programar, reza e faz. “Nem ele mesmo conseguiu alguma vez exprimir a inefável transformação sofrida nesse instante”. Há neste olhar um “segredo”, qualquer coisa de indizível, secreto, íntimo sem ser intimista, guardado no coração do coração de Francisco que foi tocado, fortalecido, olhado, chamado e enviado. Uma intimidade de tal ordem que nem as palavras perturbam ou podem perturbar. A linguagem é agora acção obediente. É o diálogo sem mais palavras do que as que saem de Cristo. O Senhor fala e o servo que ouve responde não com frases, perguntas, objecções, questões 69 ou outras teorias. A resposta de Francisco é feita de obra e louvor. Pedra sobre pedra, das pedras recolhidas do mendigar pelas portas, frases da Sagrada escritura recolhidas pela meditação e memorizadas, tudo posto e sobreposto, erguido até ao céu, para o alto, sem o cálculo de um engenheiro mas com a beleza de um poeta. A resposta de Francisco é a sua vida, o seu trabalho, o seu cantar melodioso de apaixonado, como aquele que sente em si a paixão. Inaudito milagre. Nunca ouvido nem relatado acontecimento. Nunca se tinha ouvido tal coisa. Não se contou que alguma vez tal coisa tenha acontecido. Um milagre, a dúvida das explicações, a incerteza do acontecimento que escapa radicalmente à lógica natural das coisas. Não teria sido aquela voz, aquele mover de lábios, fruto da imaginação do penitente e macerado Francisco? Estava sozinho. Só. Não foi outro nem para outro. Não havia testemunhas, cronistas ou biógrafos que relatassem e testemunhassem a verdade do acontecimento. Ninguém para fazer suspeitar que tenha sido outro que não Cristo a falar, ninguém para lhe deixar a dúvida se seria mesmo para ele ou para outro que ali estivesse. E não havia testemunhas que o confirmassem no que acabava de ouvir. Não havia mais ninguém para o chamar ao mundo dos acordados, dos supostamente lúcidos e despertos. Uma solidão que não deixa marcas para a dúvida: “Francisco” é ele, não outro, não o seu vizinho, há mais Franciscos, mas não estão ali. É para ele, com certeza, a certeza da fé, que Alguém fala, é a ele que Alguém se dirige. Mas como, se não há mais ninguém por perto? Só Francisco e um vetusto crucifixo numa igreja abandonada e de todos esquecida, ameaçando ruínas. “Onde houver dúvida que eu leve a fé”; perante tantas e tão grandes dúvidas, duvidando do seu próprio juízo, Francisco convoca a fé e acredita que Alguém lhe fala, a ele, só a ele, para ele. Acredita n’Aquele que o crucifixo pintado evoca e que tantas vezes lhe falou nas letras dos Evangelhos. Talvez estas dúvidas o voltem a assaltar e Francisco se pergunte da razão de ser que move a sua vida. Tentado nos momentos de desânimo e desapontamento, talvez dê ouvido a estas dúvidas, e baixando os braços deseje uma outra coisa mais lógica, mais realista ou convencional. É nestes momentos de densas trevas que brilha a ténue luz da fé, uma certeza de confiança n’Aquele que tem nas suas mãos o governo deste mundo, o sustento de todo o ser vivo. Algo se enraíza tão entranhadamente em sua santa alma, Alguém tomou conta de Francisco e se entranhou nele, Cristo. Ficou tomado, a 70 partir de dentro, pela paixão do Crucificado, uma paixão pela Paixão, uma entrega ao Entregue, no segredo daquele que todo inteiro se entregou nas mãos do Pai. Fortalecido na vontade de seguir o Senhor para onde quer que Ele vá, não se sente dispensado de usar todas as potências da alma. A vontade fortalecida pelo olhar do Cristo que o olha impele-o a também ele abrir bem os olhos: “vai e repara a minha casa que, como vês…”. Olhar e ver, a atenção ao Cristo que passa, e ao que se passa à sua volta para tudo ver com os olhos interiormente renovados, os olhos do Crucificado, um olhar de paixão sobre tudo e todos. Francisco, mais do que um contemplativo, é um atento “olhador” das realidades que o circundam e que o remetem para o próprio Cristo. Por isso tudo lhe falava de Cristo e ele a todos falava do “amor que não é amado”. A pedra, a fonte, a ovelha, o pastor, o burro e a vaquinha, tudo, naquele olhar interiormente purificado, o remete para o Senhor. É um altíssimo contemplador das coisas criadas, porque para tudo e todos olha com o olhar com que foi olhado, o da misericórdia. Aquele “segredo” que o envolve num instante sublime, “inaudito milagre”, trespassa-o e entranha-se para não mais o largar. É a experiência da misericórdia que está para lá de todas as formalidades, juízos humanos e aparências. Um encontro que lhe fica gravado a fogo no coração para não mais se apagar, a que Francisco recorre constantemente no fortalecimento da sua vocação e missão. Francisco não tem do mundo uma imagem exagerada. Não é ingénuo pensando que tudo é bom e inofensivo. Ele sabe que há lobos que necessitam de reconciliação. Não é um optimista desencarnado, nem tãopouco um pessimista desesperado, incapaz de reconhecer os sinais da bondade divina que tudo preparou para os seus filhos. Há o perigo de pintar o mundo a preto e branco, os bons e os maus, os que são a favor e os que são contra, os amigos e os inimigos, os cristãos e os muçulmanos. Há também a tentação de pintar o mundo com as cinzentas cores da indiferença, um crepúsculo sem cor, uma uniformidade no grisalho medíocre, pesado e triste. O mundo de Francisco é colorido, como são fortes e luminosas as cores do Cristo que o olha no crucifixo de S. Damião. Está longe de Francisco a nossa visão da Idade Média como um tempo de trevas e escuridão obscurantista, uma quase civilização mergulhada no nevoeiro da sujidade, doença e ignorância. Ali há cor, alegria, vida, cântico e louvor. Francisco é realista, esperançadamente realista. Com a sabedoria do Pai das luzes ele sabe ver o negro do pecado, 71 o vermelho da paixão de Cristo, e todas as cores que o rosto radiante do Senhor põe a descoberto. Percebe claramente que a situação do homem está longe da perfeição, que o homem ameaça ruínas: “está quase em ruínas” ouviu ele da boca de Cristo. E por isto, todos sem excepção, e ele mais do que todos, precisam de conversão, do remédio da penitência que opera a transformação, abre os olhos e dá sabor à vida: “Deus, nosso Senhor, quis dar a sua graça a mim, o irmão Francisco, para que começasse a fazer penitência (…) e o que antes me parecera amargo converteu-se para mim em doçura de alma e de corpo” (T 1, 3). É a “casa” que está em ruínas. O lugar do encontro e do acolhimento dos que chegam como hóspedes, mas a quem importa dar um lugar à mesa. A casa da humanidade que é o mundo, a ecologia, a casa dos cristãos que é a Igreja, a casa do Espírito que é o próprio homem. É a casa que está em ruínas. São as relações do homem com o outro homem, do homem com Deus, que ameaçam fendas, desmoronar, cair, o caos da desordem, a confusão da loucura, o emaranhado de interesses. Repara, como quem pára para rever, olha e vê, vê para reparar e refazer o que o abandono desfez. Restitui ao uso para o qual foi feito o que estava em desuso, devolve à memória o que tinha caído em esquecimento, volta a colocar no roteiro dos povos um lugar de encontro que tinha estado abandonado. São as divisões dentro da Igreja e do próprio homem, é a consequência do pecado, é a guerra que o homem trava dentro de si mesmo. “Iluminai as trevas do meu coração”. Francisco pede um olhar limpo e límpido que lhe permita reconhecer as belezas de que está envolvido, pede a clarividência, o discernimento e a ciência, a sabedoria do coração para ver bem, ver claramente à plena luz do dia, a sua própria realidade, sem defeito de visão, sem aumento de exagero, sem defeito de olho míope e curto. Ver bem com o coração para saber onde está a ruína, onde é preciso actuar. Ele sabe que o homem está doente, sabe qual é a sua doença, e, sabedoria dos santos, sabe qual é o seu remédio: o amor de Deus. À perfeita saúde do corpo e da alma dá Francisco um nome, Paz. Paz e Bem, a reconciliação dos homens irmãos juntos ao mesmo Senhor que a todos atrai. Faz disto também a sua bandeira: “esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz” (Test. 23). O reconhecimento das diversidades cromáticas de cada um como uma riqueza para o mundo. A diversidade de sentires, o complemento de todos 72 que fazem o frade perfeito, a humanidade capaz de avançar num progresso humano, verdadeiramente humano porque divino. Mas o trabalho de Francisco é animado pela certeza da fé de ver um dia a pobre e abandonada igrejinha de S. Damião, a Igreja e o Homem, perfeitamente reconstruída, limpa e habitada, cumprindo a missão para a qual foi construída e sonhada. Francisco, mais do que optimista, é homem de esperança, quer levar a bom termo o sagrado encargo que recebeu. Sabe e sente que isso é possível e por isso deita mãos à obra. Não há nada que o homem não possa fazer com as suas mãos se tiver a força do Alto e a graça de Deus. O trabalho que lhe é pedido é possível de acabar, talvez seja demasiadamente pesado para um só homem, mas ele tem tempo e o Senhor dá-lhe companheiros. Homens de todo o tempo e lugar, povos, línguas e nações se juntam a Cristo, por Francisco, na construção de uma nova fraternidade. Tudo partiu e parte de um olhar que a cada momento nos chama pelo nome e nos envia: “Vai e repara a minha casa.” 73