Sonho no armário Um breve olhar sobre a obra de Beatrix Potter um
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Sonho no armário Um breve olhar sobre a obra de Beatrix Potter um
Originalmente para: Das Artes, das Letras – Suplemento Cultural de O Primeiro de Janeiro, 18 de Fevereiro de 2008. Sonho no armário Um breve olhar sobre a obra de Beatrix Potter um século depois Ana Margarida Ramos* RESUMO Texto sobre a obra para a infância de Beatrix Potter, este breve ensaio identifica as principais características das publicações da autora inglesa, dando especial relevo à interacção entre texto e imagem. A reflexão abrange igualmente a questão da actualidade da obra e da adesão de diferentes gerações de leitores, sublinhando a dimensão lúdica dos livros, associada à recriação de situações do quotidiano promotoras de reconhecimento e de identificação. Com uma obra marcante do panorama literário para a infância, Beatrix Potter (1866-1943), continua, nos nossos dias, a ser alvo de múltiplas edições e adaptações. Em Portugal, assistiu-se mesmo, nos últimos tempos, a uma verdadeira redescoberta da autora e ilustradora inglesa mais divulgada internacionalmente. A este sucesso não serão estranhas, certamente, as comemorações do centenário de publicação de The Tale of Peter Rabbit (1902), assinaladas com exposições de originais da autora e com a reedição dos seus textos em diferentes línguas. Uma consulta à base de dados da Biblioteca Nacional portuguesa permite constatar, contudo, que as edições dos pequenos contos desta autora remontam ao início dos anos 90, por iniciativa da Verbo. Em 2007, é publicado, pela Livraria Civilização Editora, o romance “O Mundo Encantado de Beatrix Potter”, de Richard Maltby, Jr., uma adaptação do guião do filme com o mesmo título1, dirigido por Chris Noonen, de 2006, que integrou actores como Renée Zellweger, Ewan McGregor e Emily Watson, despertando, mais uma vez, a atenção do público português para esta autora e para a sua obra, que recria parte significativa da biografia da autora inglesa. * Universidade de Aveiro 1 Miss Potter, 2006. |1| "#;EB-FJUVSB]0SJFOUBÎÜFT5FØSJDBT Os livros de Beatrix Potter, publicados em Inglaterra entre 1902 e 1930, caracterizamse pela edição em pequeno formato, capaz de promover uma leitura individualizada por parte dos leitores infantis numa fase inicial da sua aprendizagem. A presença de ilustrações coloridas ao longo da publicação facilita igualmente a leitura ao tornarem a mancha gráfica muito leve. Destaque-se, ainda, do ponto de vista gráfico, a suavidade que ressuma da selecção cromática das ilustrações, onde abundam as cores claras, criando imagens harmoniosas, sublinhadas pela opção pela aguarela. A antropomorfização dos pequenos animais que protagonizam as narrativas está claramente patente nas ilustrações que os recriam em comportamentos, atitudes e vestuário humanos, promovendo a identificação com o universo social e familiar dos leitores. Em alguns casos, esses elementos adicionais, como o vestuário e os acessórios adicionam uma componente humorística às imagens que os textos também contemplam. O encantamento que as ilustrações promovem, na actualidade, resulta não só da recriação, com laivos de ingenuidade e de inocência, de um mundo rural, onde a Natureza e os seus habitantes têm um lugar privilegiado, mas também de uma certa sugestão de viagem ao passado, pela presença de uma cor local de ambiência vitoriana. De referir a presença de guardas decoradas, onde surgem ilustradas as personagens mais emblemáticas criadas pela autora, além de pequenos ornamentos ilustrativos que povoam muitas das páginas dos livros. O estilo de Potter torna-se de tal forma marcante que passa a funcionar, até aos nossos dias, como paradigma de uma certa forma de ilustrar livros para a infância, fazendo escola e encontrando numerosos seguidores do seu traço fiel e rigoroso, com claras intenções realistas e figurativas. A preocupação com o pormenor resulta na obtenção de uma expressividade que não passa despercebida ao leitor infantil, capaz de reconhecer os cenários naturalistas e os heróis que neles se movimentam. Do ponto de vista textual, destaquem-se as óbvias influências do texto fabulístico, pela forte presença da componente animal, mas sem o moralismo explícito daquele género. Os textos de Potter valorizam uma componente humorística e lúdica que diverte o leitor, prendendo a sua atenção à narração de aventuras muito simples, quase ingénuas, protagonizadas por pequenos animais como coelhos, ratos, rãs, patos, gatos, esquilos, ouriços e outros e onde se estabelecem diferentes tipos de relações e de interacções. O imaginário da autora, povoado de personagens2 como o Coelho Pedrito, o Esquilo Trinca-Trinca, o Coelho Benjamim, os Ratos Traquinas, a Senhora Ouriço Tira-Nódoas, o sapo Jeremias, o gato Bernardo Bichano, a pata Patrícia, os coelhinhos Flopsi, Mopsi e Rabinho-de-Algodão, o gato Ruivo e o cão Pickles, a ratinha Janota e o esquilo Timóteo, é dominado por influências de uma Inglaterra rural, onde as quintas são pequenos cosmos cheios vida para quem, como Beatrix Potter, revela um olhar atento e afectuoso perante o mundo que a rodeia. O recurso à personificação permite reproduzir, para o universo animal, diferentes jogos de poder que caracterizam a sociedade, recriando alguns tipos sociais. Elegendo um conjunto alargado de personagens animais para protagonizar Convém notar que as designações das personagens, assim como de alguns textos, têm sofrido alterações significativas de acordo com a tradução e/ou edição em português. 2 |2| "#;EB-FJUVSB]0SJFOUBÎÜFT5FØSJDBT aventuras pontuadas pelo humor, resultante de pequenos conflitos ou problemas, combinando temas muito caros ao público infantil, o narrador aposta numa narração encadeada sequencialmente que termina com um final feliz. Veja-se, por exemplo, a edição recente, pela Livraria Civilização Editora de A História do Pedrito Coelho (2007) e A História da Pata Patrícia Patanisca (2007). O primeiro dá conta das complicadas aventuras nas quais Pedrito se envolve, depois de desobedecer à mãe e, contra as recomendações desta, invadir o quintal do Senhor Gregório, sendo perseguido e expondo-se a muitos perigos. O regresso à segurança da casa só é conseguido com grande esforço e depois de alguns sustos. O segundo relata as dificuldades da Pata Patrícia para conseguir chocar os seus ovos. Roubada pelos caseiros e enganada pela raposa, que se aproveita da sua ingenuidade, será ajudada e protegida pelo cão da quinta, realizando, depois de algumas peripécias, o sonho de ser mãe. De uma forma acessível, com recurso ao diálogo a intercalar uma narração muito simples, a autora capta a atenção dos leitores e mantêm-nos presos ao desenrolar da intriga. Com uma linguagem herdeira da tradição oral e uma apetência por situações risíveis, Beatrix Potter inaugura um género novo, capaz de combinar as potencialidades do texto narrativo e das ilustrações que o recriam e complementam, exprimindo, visualmente, o universo literário que o texto constrói. Mestre na arte de contar histórias, tanto do ponto de vista verbal como visual, a autora inglesa mantém-se actual, despertando nas crianças leitoras uma atracção irresistível pela magia dos seus universos ficcionais. O sucesso que as suas obras conhecem há mais de um século, seduzindo diferentes gerações, assim como os estudos de que tem sido alvo são a prova do seu lugar inquestionável no universo da literatura para infância. Ver também: POTTER, Beatrix (2007). Coelho Pedro e Outras Histórias. Mem Martins: EuropaAmérica, tradução de Maria Mello |3| "#;EB-FJUVSB]0SJFOUBÎÜFT5FØSJDBT