4 BruXinha_ _necessita revisão + artwork

Transcrição

4 BruXinha_ _necessita revisão + artwork
* pequena história de uma B r u χ i n h a **
Por: Patrícia Norte (Desert Eagle),
co m m uit o carinho para a Telma ^.^
E pensa. Que talvez esta nem seja já parte da sua cidade emprestada, e começa a
indagar-se se, porventura (…) não tomara antes um atalho para longe do que a
entristecia…
_ Esta história é dedicada especialmente a Telma Nunes, a verdadeira “Bruxinha”.
A Inês Martins (A-Cor-Do-Ar, ou menina-fada), Isa Abreu e Martina Silvestre,
inspirações essenciais para algumas das personagens.
E à minha irmã, de quem tenho infinitas saudades.
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I
O dia não começara bem para uma bruxinha de “dezassete-quase-dezoito” anos, que
vivia num pedaço arrancado do Mundo chamado Portugal.
No cansaço da rebeldia, meteu os phones nos ouvidos e aumentou o volume da música
enquanto inspirava o ar fresco de mais uma manhã de escola. À medida que andava no passo
apressado de quem sente o tempo a voar, ia observando as ruas por onde passava com um ar
de desinteresse acostumado.
Prédios, casas, carros, cães, prédios, pessoa, pessoa, casas, caixotes do lixo, carros,
carros, pedras soltas de calçada, prédios, prédios, carros, cães, carros, postes, árvore despida,
mota, carros, um relance ao céu hoje azul-ciano, prédios, lixo em todos os passeios, carros,
estrada, passadeira para peões, carros, prédios, árvores, sombras, e a Bruxinha que, envolta
numa névoa de todas as cores e de cor nenhuma, não repara que estas já não são as “suas”
ruas, mas as de uma qualquer outra dimensão.
II
E pensa, como é estranho este caminho, pois que não se lembra deste carreiro, ladeado
de tantas árvores de folhas verdes e brilhantes, deste silêncio incomum e desta estátua, tão
graciosamente talhada, que a fita, com asas de anjo demoníaco, nos lábios um sorriso que
oculta segredos.
E pensa. Que talvez esta nem seja já parte da sua cidade emprestada, e começa a
indagar-se se, porventura, em vez de ir para a escola, não tomara antes um atalho para longe
do que a entristecia.
III
Curiosa e cuidadosamente, continuou, por jardins onde borboletas de asas negras e
púrpura faziam bailados sem igual.
E continuou, desviando-se de pequenas fontes donde a água brotara mas não corria e,
congelada, ficara suspensa em inúmeros reflexos.
E avançou, evitando pisar os círculos de cogumelos pequeninos onde as fadas
erradamente escorraçadas dos céus gostam de se sentar e brincar. Aqui e acolá, rochas, lá e
acolá flores de diversas formas, embora somente de uma cor negra como alcatrão.
Chegou a um portão tosco de madeira com um estranho símbolo nele gravado.
Empurrou-o ao de leve com a palma da mão e entrou.
Subitamente, ficou frio.
IV
Neste recanto do mundo nada crescia.
As árvores, quebradas, não tinham nem vestígio de folha; a água há muito secara nas
fontes agora estaladas; não havia flores, nem cogumelos, e as borboletas, mortas, repousavam
no chão e nas coisas, para sempre adormecidas num sonho suspenso e eterno. Tudo era gelo e
frio e desolação.
A Bruxinha sentiu a melancolia que por ali pairava e dos seus olhos caíram duas
lágrimas. Limpou-as e apercebeu-se de que não estava sozinha.
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V
Duas estátuas retribuíam-lhe o olhar, com as bocas de pedra talhadas em trejeitos de
desânimo.
Quando uma delas pestanejou lentamente, a menina de “dezassete-quase-dezoito” anos
fugiu numa quase corrida, aterrada. Nos seus pedestais as estátuas rodaram em rangidos de
desconsolo para acompanhar a sua fuga.
Ela não estava a ver muito bem por onde ia, apenas continuava, sempre em frente,
tropeçando em ramos caídos, pisando asas negras e arranhando-se nos troncos mais
retorcidos.
Finalmente perdendo os anjos demoníacos de vista, deparou-se-lhe então um novo e
inultrapassável obstáculo: um muro de pedra maciça gelada que não a permitia prosseguir
mais.
VI
Decidiu parar para recuperar fôlego e ideias.
Numa pedra a rapariga sentou-se, agarrou os joelhos e olhou em frente, para dentro de
uns olhos de um azul (ou seria verde?) glacial. Levantou-se num pulo. O desconhecido
levantou-se também e deu-lhe a entender por gestos de que não precisava de ter medo.
Tranquilizada, a rapariga sentiu então uma calma que lhe era estranha e o medo deu
lugar à curiosidade.
O desconhecido, depois de acender um cigarro, começou a falar. E eis o que disse:
- Sou... (aqui, neste ponto da história, só quem lá estava é que ouviu o nome do
desconhecido) Nada tens a recear. Fiquei preso deste lado do portão enquanto não resolver
um… digamos que uma espécie de problema…
Quando acabou, o desconhecido pegou delicadamente na mão da Bruxinha e levou-a
por um carreiro estreito em que ela não reparara.
Havia um túnel escavado numa grande rocha e uma câmara no fim.
VII
A câmara tinha um tecto muito alto e a luz fraca que passava para o seu interior vinha
de um vitral embutido, iluminando um estrado de pedra onde dois amantes se abraçavam num
último gesto de desespero. A sala não tinha mais nada.
O desconhecido ficou para trás e a rapariga aproximou-se do túmulo com o objectivo
de o ver melhor.
Feitos de pedra fria, os detalhes dos dois perdidos impressionavam pelos detalhes de
cada prega na roupa, de cada traço, de cada fio de cabelo perfeitamente definido, os olhos
pétreos de um, terrivelmente tristes e repletos de sublime amor, fixados comovedoramente
nos olhos da outra figura, como se num adeus derradeiro não tivessem sido capazes de dizer
as despedidas.
Agarrados, como se não mais se quisessem separar, ambos prostrados de joelhos no
chão, como no acto de uma peça de trágico fatalismo.
Absorvida pela contemplação, a Bruxinha sobressalta-se ao ouvir a voz do
desconhecido profanar o silêncio:
- Algo de muito terrível aconteceu aqui; estão amaldiçoados... E foram apanhados
desprevenidos. – disse.
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A rapariga fitou-o, com um ligeiro espanto nos seus olhos castanhos.
- E como é que tu sabes?!...
VIII
Doze badaladas abafadas soaram, vindas de algures.
Enigmático, o desconhecido sorriu.
- Digamos que… descobri por acaso. Se quiseres, mostro-te.
Só então a Bruxinha se apercebeu de que retera a respiração. Expirando lentamente,
assentiu.
O desconhecido de olhos verdes (ou seriam azuis?) voltou então a pegá-la pela mão e
conduziu-a até ao fundo da câmara. Uma porta estreita bastante discreta e invisível a quem a
olhasse de frente encontrava-se encostada. Deixava um fio de ar fresco passar.
A Bruxinha, agora de dezoito anos, foi a primeira a atravessar o umbral.
IX
Estavam no exterior outra vez, numa espécie de campo, e a noite caíra.
Aqui, o ar era ainda mais gelado e a rapariga tremia de frio. O desconhecido despiu o
seu casaco e colocou-o à volta dos ombros dela. Agradecida, a Bruxinha sorriu-lhe e
aconchegou-se mais ao casaco preto, reparando pela primeira vez nas duas argolas de prata
que o desconhecido usava, uma em cada orelha.
Avançaram lentamente.
Ao longe, na névoa, viram o contorno de uma pequena casa.
Com os pulmões a doer e cheia de fome, a rapariga puxou pela manga da blusa do
desconhecido mas nada disse.
- Vamos parar aqui por instantes para recuperar. – disse o desconhecido, ao chegarem
à porta da pequena casa.
Entraram.
X
A casa tinha duas divisões e aparentava estar desabitada. Não tinha muita mobília:
apenas dois armários de madeira tosca, uma prateleira com três livros, uma mesa onde as
velas de um castiçal ardiam e duas cadeiras. Na segunda divisão ficava a casa-de-banho, com
uma banheira redonda e espaçosa, um balde tapado e uma bacia com água fresca.
O desconhecido abriu um dos armários da primeira divisão e retirou um saco de lona,
uma faca de serrilha e um pacote.
- E… onde dormiremos? – perguntou a Bruxinha, pois não vira nenhuma cama.
Com a faca, o desconhecido apontou-lhe um canto mais escuro, onde um colchão a
substituíra.
A rapariga de dezoito anos perscrutou as duas divisões várias vezes, à procura de um
qualquer indício dos moradores.
- Pareces bastante à-vontade com tudo isto, mas eu não. Quem mora aqui? Quem és
tu?
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O desconhecido estendeu-lhe uma fatia de pão com manteiga. Do segundo armário
retirou uma garrafa e colocou-a em cima da mesa. Sentou-se numa das cadeiras e disse,
estendendo-lhe a garrafa:
- Bebe, não te fará mal.
Deu uma pequena dentada na sua fatia de pão e prosseguiu, mastigando:
- Encontrei isto há poucos dias e, desde então, tenho vivido aqui. Nunca encontrei
ninguém. E já te disse o meu nome, creio.
Desconcertada, a Bruxinha sentou-se, pegou na garrafa, destapou-a e cheirou. Era um
aroma doce, de frutas. Desconfiada, limpou o gargalo e levou-a aos lábios. Porém, deteve-se e
olhou para o desconhecido, o espírito subitamente alerta.
XI
O desconhecido fitou-a, confuso.
- E esta comida? O pão, o sumo, a manteiga…? – perguntou a rapariga, ainda num
meio gesto.
Suspirando, o desconhecido disse:
- O pão e a manteiga já cá estavam e não estão envenenados, se é isso que temes…
senão, já eu cá não estaria para contar história. O sumo, sou eu que o faço, a partir de umas
bagas e frutas que por aí andam.
Levantando-se, dirigiu-se ao primeiro armário, abriu-o e mostrou-lhe o seu interior.
Diversos sacos de lona amontoavam-se ao lado de pacotes.
- O estranho é que o pão está sempre fresco. É disto e deste sumo que me tenho
alimentado.
E
de
cigarros,
pensou
a
Bruxinha,
ao
vê-lo
acender
um.
Já mais calma, acabou por beber e comer, vencida pela fome.
O desconhecido indicou-lhe o colchão.
- Precisas de descansar.
Ao longe, começara a soar uma música quase inaudível.
XII
Acordou com a sensação de ter dormido não mais do que meia hora.
Ensonada, levantou-se do colchão, esfregando os olhos. E, maquinalmente, dirigiu-se
à cozinha. Só depois é que estranhou. Aquela não era a sua casa.
Depressa despertou ao recordar o dia anterior. E constatou mais um facto.
Estava sozinha.
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XIII
Saiu da pequena casa, mas não sem antes comer e guardar algum pão para levar.
Também “arquivou” um dos três livros, após ter-lhes dado uma olhadela, dentro do bolso do
casaco preto emprestado.
O título encontrava-se muito apagado. Resolvera levá-lo porque uma das histórias
mencionava dois amantes colhidos por uma maldição. Lamentavelmente, as últimas páginas
haviam sido arrancadas e nada restava do final da história.
Com o dia, a névoa era menos espessa mas existente. Avançou com cuidado, para não
escorregar no musgo de algumas pedras. Decidira voltar à câmara na tentativa de encontrar o
estranho pelo caminho por onde viera mas não encontrou a entrada. Nem qualquer sinal da
sua existência.
Apenas… túmulos e cruzes.
XIV
Exausta, apercebeu-se de um zumbido insistente nos ouvidos. De início muito ténue,
agora mais do que um sussurro.
Á medida que avançava por entre aquelas terras desoladas, o som aumentava de
intensidade, e a Bruxinha, apesar de estar sozinha numa espécie de cemitério muito estranho e
com ar de ser imensamente antigo, sentia a curiosidade pulsar-lhe em cada fibra sua.
Subitamente, uma coisa verde e de tons repugnantemente rosados saltou perto de si, ao
mesmo tempo que guinchava horrivelmente.
Após um leve sobressalto e um pestanejar nada impressionado, a Bruxinha ergueu o pé
e uma bota negra acabou com a insignificante participação desse bicho peçonhento nesta
história.
Deixando a massa informe completamente fora do seu pensamento, concentrou-se
mais no que ouvia.
O som tornara-se mais nítido.
Era música.
Música estava a ser tocada naquele sítio improvável.
XV
A Bruxinha escutou, tentando decifrar a letra.
Era uma canção que falava sobre um amante perdido sem o abraço da pessoa amada e
que, determinado, procurava encontrar o caminho de volta.
Deu por si a pensar no estranho de olhos azul esverdeados e a suspirar de mansinho.
Entretanto, a canção chegou ao fim e começou outra.
Num lamento profundo, agressivo e apaixonado, contava uma história de tragédia e
sangue. Fazia menção a dois amantes e a um artefacto que, quando embebido em sangue,
revelaria um segredo obscuro há muito perdido no tempo.
Música. Música estava a ser tocada naquele sítio improvável, pensou a rapariga.
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XVI
… E daí a ser um sítio “improvável”, talvez não. Estava a ser tocada num improvisado
mas, ainda assim, palco, constatou a rapariga de “agora-dezoito-anos”, ao espreitar por entre
as largas folhas azuis de uma… planta desconhecida.
A banda tinha um baixista, um baterista, dois guitarristas e um vocalista, este último
aos saltos e a fazer caretas.
A banda tinha também esqueletos dançarinos.
Todos vestiam roupas pretas (excepto os esqueletos), usavam gravatas vermelhoescuras (excepto os esqueletos) e tinham um ar um pouco sinistro (incluindo os esqueletos),
embora o vocalista os ultrapassasse nesse ponto a milhas (até mesmo aos esqueletos), por ter
um ar de lunático cruzado com o olhar de um cientista louco, se bem que bastante mais
atraente...
Por todo o lado, como uma banda que se preze deve ter, estavam espalhados os fios
que iam ligar-se sabe-se lá onde.
A Bruxinha fixou o olhar num dos guitarristas.
O guitarrista em questão fixou o seu olhar no dela, ao sentir-se observado. Ouviu-se
um grande som desafinado.
O fulano esquecera qual a música que estava a tocar.
XVII
Fez-se silêncio. Mesmo muito depressa.
Os outros membros da banda olhavam, consternados, para ele.
O guitarrista fez um ar de garoto apanhado com a mão numa lata de bolachas alheia,
coçou a nuca e apontou para a causa da sua amnésia.
Voltando-se lentamente, os outros seguiram os dedos (tatuados) em direcção às folhas
azuis, por onde dois olhos brilhantes castanhos e bastante perturbadores, presos a uma cara, os
espiavam.
A Bruxinha saiu então detrás daquela planta misteriosa e avançou, tímida.
Até tropeçar num monte de ossos – os esqueletos haviam caído no chão assim que a
música cessara, e ser amparada pelo guitarrista.
XVIII
A vergonha abraçava a Bruxinha como um sudário e dava-lhe o ar vermelho
embaraçado de quem lhe apetece ver-se engolido por um qualquer pedaço de terra em menos
de um fósforo.
Sim, a vergonha, definitivamente, estava a braços com um dilema, e um desses
dilemas de olhos verdes, cor de azeitona, que, simplesmente, não são nada fáceis (nem
apetecíveis) de deixar.
E sim, a vergonha não conhece a já referida expressão “em menos de um fósforo”,
visto estar já há cerca de oito linhas nos braços do prestável guitarrista que, tal como a
protagonista deste conto, parece estar com extremas dificuldades em se soltar…
E teríamos uma cena romântica e excelente, embora nada (está bem, não muito)
lamechas, se o vocalista do ar psicopata (mas atraente) a não tivesse interrompido.
Com um monumental berro.
Que não constava em nenhuma das suas músicas.
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XIX
Relutantemente, o amplexo afrouxou até terminar.
Todos os presentes (caveiras inclusive) fixaram o olhar no histérico vocalista que,
agarrado ao dedo indicador, ia lançando berros incoerentes repletos de impropérios, ao
mesmo tempo que os seus olhos escuros brilhavam (ainda mais) febrilmente, cheios de medo.
Picara-se num fuso, daqueles existentes nas rocas de fiar pertencentes aos macabros
contos clássicos infantis.
- Ele tem fobia a agulhas e coisas desse género – explicou o baixista da banda,
tentando ignorar o praguejar entremeado de Quem foi o sádico de… que colocou esta …
aqui?, as exclamações de dor e os uivos carregados de pavor irracional do desgraçado e
infeliz colega.
Um ar de compreensão caminhou por todos os rostos (excepto pelo das caveiras que,
coitadas, não são capazes de fazer mais do que uma expressão(1)) e estatelou-se no próprio
fuso, que corou imenso de vergonha utilizando o bocadinho de sangue roubado.
XX
Um pedaço da canção fez eco na mente da Bruxinha.
Quase inconscientemente, os seus dedos procuraram a capa gasta do livro, que
continuava guardado no bolso direito do casaco.
Alguém a tocou no ombro, retirando-a do seu torpor.
- Está tudo bem? – perguntou docemente o guitarrista.
A rapariga não respondeu. Hesitante, aproximou-se do fuso ainda gotejante e retirou o
livro do bolso. Abrindo-o, percorreu as folhas até encontrar a última página legível. Colocoua debaixo do fuso e esperou.
Uma gota de sangue caiu, salpicando a folha amarelecida e danificada.
Nada aconteceu.
XXI
E o nada continuou a acontecer. Porque faltavam as últimas folhas.
- Então? – perguntou um membro da banda, .
Interiormente, a rapariga questionou o mesmo por breves instantes.
- Parece que não funciona sem que o livro esteja completo.
- Mas do que é que estamos exactamente à espera? – voltou a inquirir o mesmo
membro da banda, após uma curta pausa.
O baixista interveio.
- Nós encontrámos umas folhas rasgadas com o que parecia ser uma letra de música…
Parecia incompleta mas tentámos tocá-la na mesma. É impossível porque no fim há um
grande pedaço em falta e a letra deixa de fazer qualquer sentido.
Levou a mão ao bolso das calças e retirou as folhas. Mostrou-lhas. Estavam bastante
amarfanhadas mas era evidente que pertenciam ao livro.
- Porquê? – quis saber a curiosidade.
(1)
… elas são muito sensíveis quanto a isso e o melhor é nunca o mencionar em conversa… <_<
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- Já as encontrámos assim, não sabemos – o baixista encolheu os ombros e passou-lhe as
folhas.
- Há quanto tempo aqui estão?
O vocalista, muito mais calmo depois de ter andado a treinar vozes de death metal,
replicou:
- Não fazemos a mínima ideia. Somos apenas parte do enigma.
- Até os relógios deixaram de trabalhar. – complementou o guitarrista.
A Bruxinha tocou com o dedo ao de leve nos sulcos de uma das folhas e encaminhou a
sua atenção novamente para o fuso que, impaciente, começara a limar as unhas, deixando
imediatamente de o fazer ao sentir estar prestes a ser descoberto para, solícito, continuar então
a sua tarefa vampírica.
Voltando a folhear o livro, a rapariga abriu-o nas últimas páginas e recolocou
cuidadosamente as restantes folhas nos seus sítios o melhor que pôde, após o que deixou as
pequenas gotas saracotearem-se em direcção ao papel.
XXII
O sangue continuava a cair e a ensopar as últimas folhas colocadas. Alastrava mais e
mais. Perpassou até todo o livro ficar banhado e só então parou.
O próprio silêncio sustera a respiração, suspenso.
E então…
Eis que houve como que um sussurrar nas folhas rubras e letras negras surgiram sobre o
fundo carmesim, revelando a continuação da história.
Neste exacto momento, todos os olhos estavam cravados nas mãos da Bruxinha. Com a
súbita consciência do facto, esta corou e resolveu quebrar o silêncio.
-É um poema – declarou, numa voz sumida.
Preparava-se para o ler quando uma das coisas mais inesperadas aconteceu.
XXIII
… Mais inesperado ainda do que se um pesadíssimo piano caísse, subitamente, de uma
nuvem verde-limão e estivesse a ser tocado por uma lata de sumo maléfica cujo plano fosse,
através da melodia (tocada com palitos de um extravagante padrão às riscas verdes e roxas),
subjugar todas as raças existentes à face da Terra e condená-las, assim, a uma morte muito
lenta e muito, muito dolorosa… (2)
O guitarrista roubou-lhe um beijo. (3)
No preciso instante em que os lábios do estranho de olhos verdes cor de azeitona
tocaram nos seus, os olhos arregalados de espanto da rapariga encontraram um olhar azul (ou
seria verde?) bastante incrédulo de surpresa e… desilusão.
O ar ficou cortante, como se o frio emanasse do recém-chegado e a Bruxinha afastouse do guitarrista. Notava-se uma injustificável expressão de culpa no semblante da rapariga.
Aproximou-se do dono do blusão, em passos incertos.
(2)
É um facto que as latas de sumo maléficas sabem tocar… horrivelmente mal =_=
(3)
… E a lata de sumo maléfica parou de tocar, de queixo caído o.O
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XXIV
- Por onde é que andaste? – perguntou, as palavras trémulas.
Houve uma breve e desconfortável pausa.
- Já lá não estavas, quando acordei e… Vim à tua procura... – a frase acabou num
murmúrio e por lá ficou a andar de skate.
O olhar dele, frio, trespassou-a. Virando-lhe as costas, o desconhecido respondeu-lhe
por cima do ombro:
- Fizeste bem.
E afastou-se, acendendo um cigarro. Mal dera meia dúzia de passos quando deu pela
banda.
Todos o observavam, caveiras incluídas.
Perplexo, parou. Depois, com um gesto de indiferença, levou o cigarro à boca e
desapareceu por entre as folhas da planta desconhecida.
A Bruxinha ainda fez menção de o seguir mas o guitarrista fez-lhe um gesto para que se
deixasse ficar mais um pouco.
A bateria e as guitarras começaram a tocar numa introdução a que se seguiu um
momento de pausa e um grito do vocalista. A bateria atacou então, ao mesmo tempo que os
sons das guitarras a que a voz se juntou, numa letra que incluía noites escuras e uma certa
tristeza e solidão. O apelo tocou e fez arrepiar a rapariga. A certa altura, no refrão, o
guitarrista olhou directamente para ela e mexeu os lábios numa determinada parte da música.
“ Sem ti, eu desapareço”, pareceu-lhe escutar. Quando outra música começou,
novamente leu uma mensagem nos olhos do guitarrista.
“Mais um beijo… e eu render-me-ei”.
XXV
Enquanto este concerto privado decorria, o primeiro desconhecido fumava cigarro
atrás de cigarro, apesar dos avisos gritantes na caixa cujas frases incluíam “morrer”, “cancro”
e “esta porcaria de nada te adianta”.
Vagamente irritado, fitou uma aranha como se esta o tivesse ofendido pessoalmente. E
então viu.
XXVI
Estava precisamente diante de uma grande e frondosa árvore e nela via-se uma abertura,
grande o suficiente para ser uma porta.
Espreitou mas o seu fim não vislumbrou. Estava muito escuro e o ar que saía da árvore
era estranhamente gelado.
Decidiu voltar e ir ter com a rapariga. Quando chegou, a banda estava a acabar o
concerto com uma música bastante mexida e os esqueletos estavam todos animados a dançar,
numa espécie de coreografia macabra e impensável para quem quer que ali não estivesse(4).
Fez um esforço para ignorar os dançarinos e aproximou-se, relutante. Não estava mais
calmo mas esforçava-se por se conter.
Firme mas delicadamente, puxou-a para si e contou-lhe ao ouvido a pequena
descoberta que fizera.
(4)
… porque, afinal, os cadáveres não dão uns pezinhos de dança… Ou pelo menos, ainda não se viu nenhum,
não é? #_#
_ 12 _
XXVII
A rapariga de dezoito anos decidiu contar aos membros da banda (o desconhecido
preferia ir sem tal comitiva mas a Bruxinha nem considerou essa hipótese). Após deliberação,
decidiram arriscar uma visita.
No caminho para a árvore houve várias rasteiras, palmadinhas nas costas com força a
mais para serem apelidadas de amigáveis e, inclusive, tentativas de morte quase certa salvas
apenas nos últimos segundos.
Os dois rapazes, o desconhecido de olhos verdes (ou azuis…?) e o guitarrista, lutavam
ambos pela atenção da rapariga que, apesar de notar uns certos sons estranhos (das lutas e das
tentativas homicidas…), desconhecia tais desígnios. Julgava estarem os dois na brincadeira, a
inocente menina…
Chegaram à árvore.
Toda a banda olhou, céptica, para dentro daquele tronco enorme e gasto, talvez mais
antigo do que a própria raça humana.
O primeiro estranho passou o olhar por todas as caras e disse:
- Vamos?
XXVIII
Estava mesmo muito escuro e a abertura mal dava para uma pessoa passar. De início,
tiveram que seguir em fila.
Afinal, a árvore era uma espécie de pórtico para um corredor entalhado na rocha.
Apoiando as mãos nas paredes rugosas, foram abrindo caminho, meio cegos, tropeçando
ocasionalmente. O ar foi-se tornando cada vez mais fresco, até a dor roçar ao de leve nos
pulmões.
Subitamente, a primeira pessoa a entrar estacou e quem seguia atrás deu um encontrão
em quem estava à sua frente.
- Então?! – reclamaram algumas vozes.
Irritado, o vocalista, louco o suficiente para ter querido entrar em primeiro lugar, disse:
- O caminho acaba aqui, não se mexam muito!
Como assim, o caminho acabava ali?, retorquiram-lhe algumas vozes.
- Se não acreditam, venham ver. Há aqui espaço suficiente mas tenham cuidado.
Lentamente, passaram para o lado do vocalista e espalharam-se dessa maneira, uns ao
lado dos outros.
Um fio de luz entrava por uma fissura na rocha.
Aos seus pés abria-se uma imensidão de trevas. Uma larga abertura escancarava a
boca, mostrando uma queda que não parecia ter fim.
XXIX
- Olha que trabalhos! - a exclamação proveio do baterista. – E agora?
À rapariga apeteceu-lhe responder-lhe à letra, com uma daquelas frases populares e
irritantes, mas conseguiu conter-se.
- Voltamos para trás. – respondeu, prático, o baixista. O guitarrista, que estivera a
observar com muita atenção as paredes e rebordos das rochas, porém era de outra opinião:
- Esta parede tem buracos. Talvez sejam degraus?...
A rapariga, que tinha ficado entre ele e o primeiro desconhecido, ponderou:
_ 13 _
- Não são bem degraus… Estes buracos estão cavados na parede mas não seguem nem
para cima nem para baixo. Seguem para o outro lado deste… poço. Portanto, devem ser para
agarrar e ir andando pela parede até ao outro lado.
Alguns dos presentes, ao ouvirem isto, lembraram-se de um jogo bastante famoso
protagonizado por uma curvilínea personagem.
E desistiram de descobrir o que estaria depois do poço. Alegaram uma terrível e súbita
dor de cabeça e voltaram para trás.
- Bem, só restamos nós… – suspirou a Bruxinha, olhando alternadamente para o
guitarrista de olhos verdes, cor de azeitona, e o proprietário do blusão. – Vamos?...
.
Aquela travessia seria deveras penosa para quem tivesse medo de alturas. Felizmente,
os três possuíam esse medo.
Pareceu uma eternidade mas chegaram, finalmente, ao outro lado. Cansados,
sentaram-se durante alguns instantes, de costas apoiadas na parede, o olhar fixo no obstáculo
acabado de transpor, sempre desconfiados que das trevas viesse uma qualquer mão obscura
que os puxasse e arrastasse fatalmente para uma morte 100% inevitável.
Podiam ouvir água a gotejar algures. Quando ficaram restabelecidos (e quatro cigarros
depois), levantaram-se cautelosamente e seguiram caminho.
Após a abertura no chão, o corredor alargava-se bastante e a cabeça já não rasava em
certas partes da rocha. A fraca iluminação provinha de minúsculas fendas espalhadas pelo
tecto que permitiram ver o véu de água que cobria o que quer que estivesse na curva do
caminho a que chegaram.
Arriscaram.
Não aconteceu mais nada a não ser ficarem com as roupas molhadas e ar de pintainhos
desconsolados.
O corredor continuava. Porém, desta vez, as suas paredes estavam congeladas e
brilhavam em pequenos reflexos de múltiplas cores quando captavam bocadinhos de luz.
A protagonista espirrou.
- Desculpem. – e assoou-se discretamente (muitas vezes o faria, enquanto estivessem
neste ambiente gelado).
XXX
No final do corredor tiveram de subir uns degraus inclinados, feitos de pedra, cobertos
de limos e de aspecto muito antigo, estranhamente incrustados entre rocha e plantas
verdejantes.
Os seus pés rangiam na camada de gelo de uma plataforma quando a viram. Estava em
cima de um cogumelo, também ele de gelo, e parecia dormir.
Tinha um cabelo longo, castanho-escuro com laivos de cor mais clara. A pele era
branca mas não fantasmagórica e a estrutura do corpo era delicada. As longas pestanas
bateram suavemente quando despertou e revelaram uns olhos castanhos muito escuros e
brilhantes.
Brilhavam com meiguice, pelo que o trio decidiu aproximar-se dela. Só repararam nas
asas quando ela se sentou.
Estavam quebradas.
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XXXI
Ninguém disse nada, pelo que esta curtíssima espera pareceu uma eternidade. Por fim,
foi a criaturinha quem falou:
- Olá… Não tenham medo, aproximem-se mais…
Num gesto suave e gracioso, o seu braço apontou três bancos de pedra dispostos em
redor do seu leito.
Tiveram tempo de observar a gruta na qual se encontravam. Era iluminada através de
uma fresta no tecto, maior do que todas as que já tinham visto, e a luz incidia precisamente na
rapariga de asas partidas.
O mistério gotejante estava também solucionado: nas sombras, dezenas de estalactites
e estalagmites eram formadas pelos eternos dedos do tempo, observadas por três estátuas de
gelo, guardiães atentos desta espécie de templo natural.
Mais uma vez, a voz da rapariga de asas quebradas fez-se ouvir, macia:
- Vieram por causa do enigma, não foi?
XXXII
E recitou:
“Aqui, a Natureza respira, guardada por pacientes e vigilantes olhares.
E são três os guardiães e três os caminhos a escolher.
Somente um trágico enigma por resolver.
Se foi usado sangue, a noite lamentará esse dia.
Se foi escutada música, as respostas jamais daqui sairão.
Porém, se a Desgraça, nas suas asas de corvo ainda pelas vossas faces não tiver passado,
então esperança ainda há
e salvo poderá ser o vosso coração.”
- Desculpa mas não percebi nada. – declarou solenemente o guitarrista, após escutar
três vezes estes versos.
A rapariga de ar de fada riu baixinho, num riso fresco e musical. Fitou-o com o seu
olhar doce e respondeu:
- Mas é claro! É para isso que os enigmas servem: para confundir e dar que fazer. As
respostas só farão sentido após tudo descoberto.
Enquanto isso, a Bruxinha esforçava-se por fazer ligar as várias informações com os
acontecimentos ocorridos recentemente. E voltou a recordar-se do livro que tão facilmente
esquecera devido ao beijo do guitarrista e ao inesperado regresso do desconhecido de olhos
glaciais.
XXXIII
Com alívio, constatou que o livro ensanguentado continuava no seu bolso. Tirou-o e
dirigiu-se à rapariga das asas profanadas. Quando esta o viu, soltou uma exclamação de
espanto e disse:
- Oh, estou a ver que já têm o livro! E está completo?
A Bruxinha abriu-o.
_ 16 _
- Tenho quase a certeza de que sim, mas não cheguei a confirmar se… Não, falta
texto! – incrédula, mostrou-o à rapariga, que se debruçou do cogumelo para ler as últimas
linhas.
- Hmm… sim, não está completo. E sabes porquê? – endireitou-se e começou a abanar
as pernas, como as meninas pequenas.
Só aí é que a Bruxinha reparou bem no que ela vestia (5): as botas, pretas, quase até ao
joelho, eram em parte escondidas por uma longa saia preta, de material delicado e quase
diáfano. Uma camisa de um cor-de-rosa muito suave, de mangas curtas e levemente tufadas,
nada perverso deixava antever. Ao pescoço, usava um fio com uma medalha de belos e
intricados motivos, feita de prata, e os braços estavam despidos de qualquer adorno. Somente
no dedo médio da mão esquerda assentava um anel.
- … Porque a história vai sendo escrita à medida que acontece. – a sua voz era agora
um sussurro. – Mas vejam, após as últimas palavras, surgem pistas do que é necessário
encontrar a seguir. Se vocês tivessem lido as últimas três frases da penúltima página, não
andariam tanto à deriva.
E pôs-se a ler e dizia assim:
“Quando outra música começou, novamente leu uma mensagem nos olhos do
guitarrista:
‘Mais um beijo… e eu render-me-ei’.”
O seu dedo indicador percorreu a folha até ao fundo.
- Em baixo, nesta mesma página, está uma nota ao estilo de rodapé, oiçam:
“… Mas as respostas não estão agora em músicas que falam de tragédia e amor,
histórias de infortúnio e macabras danças, longe disso: enlaçam-se numa Grande Árvore e
acariciam suavemente as páginas de livros inacabados. Basta seguirem o caminho por entre
Passos de Gelo e, se de tal recompensa forem merecedores, encontrarão toda a ajuda de que
necessitam vinda de um ser cujas asas, arrancadas pela crueldade dos homens, voltarão a
nascer.”
Fechou o livro com um estalido abafado e aguardou as questões.
XXXIV
Estupefactos, inquiriam-na com o olhar. A última frase lida pela rapariga ficara
gravada no ar gélido.
“Um ser cujas asas, arrancadas pela crueldade dos homens, voltarão a nascer”.
- És tu…? - balbuciou um dos três, apesar da resposta ser óbvia. Mesmo assim, a doce
menina assentiu com a cabeça.
Os raciocínios atropelavam-se, numa tentativa de encontrar respostas plausíveis. Nas
três mentes, a dúvida era a mesma: se haviam sido homens a arrancar-lhe a liberdade, então
porque é que esta criatura os estava a ajudar?
A não ser… que fosse uma armadilha.
(5)
Costuma ser em momentos como este que certo tipo de pormenores, muitas vezes descritivos, mais se salienta.
_ 17 _
XXXV
Adivinhando o que lhes percorria a mente, a rapariga apressou-se a desfazer o
equívoco:
- Ajudo-vos porque, se vencerem este enigma, ganharei as minhas asas de novo.
Assim o livro o diz, assim acontecerá.
O guitarrista quis então saber:
- Mas porque é que as perdeste?
A rapariga lançou o seu olhar doce, agora carregado de uma infinita tristeza, na sua
direcção, e disse:
- As pessoas têm medo do que não compreendem… e inveja do que nunca poderão ter.
Ambos estes elementos, quando combinados com egoísmo (pois já que não podem ter, mais
ninguém terá), tornam-se um veneno fatal.
- E ao estares neste momento a ajudar-nos… Devemos ser como sal nas tuas feridas...
A rapariga olhou-o ternamente.
- Sim.
Pareceu ficar suspensa durante um breve instante.
O primeiro desconhecido prosseguiu:
- Podes arrancar as asas a uma borboleta mas ela nunca deixará de ser o que é.
A voz da menina de asas cortadas soou melancólica e repleta de dor contida quando
disse:
- Chega, já perdemos muito tempo. Quanto ao enigma… Os versos falam de três
guardiães. Estas três estátuas.
Apontou para as sentinelas.
- Sangue… - uma das estátuas segurava uma faca. – Música…- a segunda estátua
pegava delicadamente num violino. - … E o Terceiro Elemento. – a última, estranhamente,
nada segurava.
A Bruxinha, o guitarrista e o dono do blusão entreolharam-se, continuando sem
perceber.
- Vocês têm três opções, e cada acção, cada escolha que têm vindo a fazer determinará
o resultado final. Não vos posso contar tudo mas... – nisto, a rapariga interrompeu-se e ficou
alerta.
Os três protagonistas também ouviram. Primeiro, um ruído cavo, como se de um
suspiro da própria terra se tratasse. Depois… Sentiram.
As paredes e o chão da gruta começaram a tremer violentamente.
_ 18 _
XXXVI
- Fujam! – gritou a menina de ar de fada. A Bruxinha e o estranho de olhos glaciais
trocaram um olhar assustado, confusos. O guitarrista puxou pela mão da Bruxinha, também
ele sem compreender o que se estava a passar, mas decidido a colocar a rapariga em
segurança.
O ruído era cada vez mais forte. Toda a gruta continuava a tremer e algumas
estalactites estilhaçaram-se no chão.
- Não! Então e tu? – perguntou a Bruxinha, enquanto se tentava soltar, dirigindo-se à
menina de asas quebradas.
- Não te preocupes, salvem-se! Eu fico bem!
Caíram mais estalactites. Estalagmites partiam-se a toda a volta. Uma fenda alastrou
pela superfície de um dos guardiães. Rochas resvalavam das paredes da caverna. O estranho
de olhos glaciais empurrou a Bruxinha até aos degraus de pedra mas já uma rocha bloqueava
a saída.
- Há uma outra saída, ali, do outro lado! – disse a “menina-fada”, com desespero na
voz, apontando para um canto afastado da gruta. O guitarrista puxou então a Bruxinha nessa
direcção e, no limiar da passagem, ambos olharam para trás, para a gruta que se desintegrava
e para a menina do cogumelo de gelo.
Pela última vez.
XXXVII
Este corredor era um pouco mais estreito, com um tecto alto e… repleto de
estalactites. Atravessaram-no a correr, de mão dada. A certa altura, o guitarrista quase parou,
para logo continuar.
A passagem parecia interminável.
- Luz! – o alívio soou na exclamação da Bruxinha.
Desembocaram numa espécie de pequeno vale. O sol sorria-lhes timidamente de detrás
de uma nuvem e tudo parecia fresco, novo e puro. Tudo indicava que chovera mas nada
estava molhado. Encheram bem os pulmões com este ar renovado e procuraram um local para
descansar. Um riacho atravessava todo aquele vale, vindo de uma nascente próxima da
passagem por onde vieram, e perdia-se por entre diversas espécies de árvores e plantas. Flores
em tons de rosa e violeta coexistiam com negras pétalas de uma outra flor desconhecida e
abundavam as borboletas de asas púrpura e ainda outras, muitas, em azuis e amarelos de tons
dourados, escarlates e brancos, laranjas e verdes, preto e vermelho cor de sangue, imensas, as
diferentes combinações de cores num bailado de leves estremecimentos.
A Bruxinha, encantada, estendeu o braço e uma borboleta muito pequenina, vermelha
e roxa, veio, curiosa, pousar-lhe na ponta dos dedos. O guitarrista sentara-se debaixo de um
pinheiro, observando-a de longe.
A rapariga chamou-o:
- Anda! Isto é mesmo fixe, são raras as que fogem!
E olhou realmente para ele pela primeira vez, desde que tinham fugido da gruta. E viu
o esgar de dor no seu rosto e a ferida aberta no sítio das costelas do seu lado esquerdo.
_ 19 _
XXXVIII
… E pensa, que interessante e misteriosa é esta rapariga. Pois que nada sabe dela mas
que já o seu coração por ela enfeitiçado se quedara.
A dor devolve-o à situação.
Após lavar a ferida com água pura do riacho, a Bruxinha pegara num pedaço de pano
arrancado à camisa do guitarrista e pressionara-lha contra o golpe, que ainda sangrava. Era
necessário improvisar uma ligadura. Despindo-lhe a camisa com cuidado, passou-a à volta do
corpo atando as mangas uma à outra no lado direito, ficando a parte das costas a cobrir o sítio
do ferimento. Não era o melhor curativo mas, por ora, teria de servir.
A rapariga ficou um momento parada, a rever o tanto que, em tão pouco tempo, lhe
acontecera. E perguntou-se a si própria se voltaria a casa, caso não resolvesse o enigma.
Nunca antes ponderara essa hipótese. A de não voltar. Não houvera tempo.
De repente, dá-se conta de que ficara a fixar o peito descoberto do guitarrista.
Embaraçada, lança-lhe um fugaz olhar e vê-o a olhar também para ela. Prepara-se para se
afastar quando ele, puxando-a até si, a faz ficar com o rosto perto do seu.
Ele sussurra-lhe:
- Gostas de mim?
E dá-lhe um beijo terno na bochecha.
- É que parece que eu gosto de ti. – volta a sussurrar. E faz uma expressão
envergonhada.
Bruxinha pensa no desconhecido de olhos frios. Ele não saíra da gruta por ali mas tem
a certeza de que está a salvo. Não sabe o que ele sente por ela. Mas pressente que,
provavelmente, a resposta seja “nada”. E decide arriscar.
Puxando-o pelo queixo deposita-lhe um beijo nos lábios, em silêncio. O beijo é
correspondido e agora entraria uma descrição cujo conteúdo seria língua, saliva e intensidade,
mas há a possibilidade de esta história cair nas mãos de inocentes crianças pequenas e essa
parte foi toda censurada…
Portanto, a cena dos beijos acabou e vemos agora a rapariga recuar, chocada e
atrapalhada com a sua própria ousadia. E ele deixa-a ir, porque não sabe como lidar com esta
miúda.
- É melhor procurarmos um caminho de volta... – a sugestão parte dela, depois de
cerca de um minuto de silêncio estranho.
Ela dera-se conta de uma coisa.
O seu coração correspondera ao beijo.
XXXIX
Caminharam sem trocar qualquer palavra, cada um entregue aos seus pensamentos.
Ele não compreendia mas desconfiava. E ela apenas tentava não pensar, sentindo-se estranha.
Seguiam o curso do riacho, por entre densas folhagens, altivas árvores e vegetações,
esperando encontrar nem sabiam bem o quê.
- Uma qualquer indicação, talvez…? – sugeriu o guitarrista, atrevendo-se a quebrar o
silêncio.
Uma momentânea reflexão depois obteve a aquiescência da rapariga.
- Sim, é algo desse género de que andamos à procura.
Lá no alto o Sol prosseguia a sua rotina diária. Embrenhado nos seus afazeres, foi
mudando de posição até serem horas de desaparecer no horizonte e dar lugar a uma lua quase
cheia e quase sobrenatural.
_ 20 _
Ruídos de animais nocturnos enchiam o ar, sombras agitavam-se; havia uma
inquietude tal neste local desconhecido que quase poderíamos incluir vampiros a esvoaçar por
ali, ou escondendo-se nas sombras à espera de duas vítimas deliciosamente incautas. Aptos a
enterrarem os seus dentes afiados e sôfregos em sangue fresco, doce e jovem…
(… Oh, mas esta não é uma dessas histórias e as criaturas apreciadoras de tal bebida
são afastadas pelo autor com determinação. Vá, fora daqui…)
- Não gostaste do beijo… – a voz dele soou calma e um pouco triste. Ela não
respondeu.
Chegaram a uma colina e ficaram suspensos no ar.
Literalmente, pois o caminho plano acabava ali e ambos foram a rebolar por uma
encosta até sabe-se lá onde.
XL
Muitas nódoas negras e alguns cortes depois(6), foi a vez de ambos ficarem suspensos
sim, mas sem palavras. Porque, diante deles, à luz daquela lua etérea, erguia-se, majestosa,
uma pequena catedral contornada por um segundo jardim de estátuas de pedra.
Luzes de velas bruxuleavam no seu interior, criando sombras fantásticas que
convidavam a não entrar.
Bruxinha pegou na mão do guitarrista e puxou-o em direcção à porta quando ouviu os
primeiros sons de pedra a raspar. Entraram no exacto momento em que as faces dos anjos
fixaram os seus olhos sem cor na entrada.
Lá dentro, cada um atirou-se para um canto. À luz fraca das velas, a rapariga viu que o
corte abrira. A mancha de sangue na ligadura improvisada do rapaz era agora maior e estava
espessa e custava-lhe respirar. O esforço fora demasiado.
Levantou-se e foi inspeccionar a pequena catedral. Um altar, velas espalhadas por
nichos trabalhados, relevos de seres e deuses desconhecidos, fósforos, umas quantas teias de
aranha, um armário de madeira escura fechado à chave e uma porta, perto do altar. Deixou
esta para depois e, forçando a fechadura do armário, aproximou uma vela do seu conteúdo.
E encontrou…
(6)
… quando a encosta acabou e tanto o infeliz guitarrista como a nossa Bruxinha protagonista pararam de andar
aos trambolhões, enrolados um no outro como dois crepes…
_ 21 _
XLI(!)
... Uma borboleta a, ao que parecia, tossir, após o que bateu as negras asas febrilmente
e deu de fuga dali o mais depressa que conseguiu. Bruxinha encontrou também outros
elementos de extrema utilidade como dois círios enormes, uma espécie de toalha branca ou
napperon com bonequinhos rendados nas pontas e o Livro dos Encantamentos Mais
Estranhos Deste Mundo (e do Outro Também), de Lenore Ma-Gadark.
Obviamente que a sua atenção concentrou-se completa e exclusivamente na tal toalha
ou napperon com bonequinhos rendados nas pontas.
Já junto do guitarrista(7), desenrolou a Toalha Ou Napperon Com Bonequinhos
Rendados Nas Pontas e verificou, para seu espanto, que a Toa... que a dita era mais extensa do
que supunha.
Deu mesmo à conta para ligar sete vezes e meia o guitarrista desta história e dava
perfeitamente para fazer duas estranhas mas respeitáveis e largas toalhas de mesa.
Quando terminou de mumificar parte do rapaz, este já estava mais calmo e ela notou,
com certo agrado, que o olhar dele, que nunca deixara de acompanhar cada movimento seu
enquanto a mencionada tarefa fora realizada, estava infinitamente mais doce.
Deixou-se, pois, ficar perto dele, os olhos castanhos mergulhados nos olhos verdes cor
de azeitona.
Subitamente, ele puxou-a para si(8) ...
XLII
... Afastou-lhe delicadamente uma madeixa de cabelo e deixou-lhe uma carícia doce
no rosto, um leve contacto ainda sentido mesmo após já não o haver. Fixou os olhos verdes
nos lábios romanticamente roídos e, gradualmente, aproximou os seus.
Lá fora, o vento corria desvairado pelo luar incrustado nas figuras de pedra que
choravam. Ao longe, uma ténue música incompleta...
No calor daqueles lábios, ela soube. No calor daqueles lábios já não desconhecidos,
nunca desconhecidos realmente, reanimados, recuperados neste preciso instante dos abismos
de tempos, de vidas, anteriores, ela soube. E acreditou. E consentiu deixar-se levar por aquele
beijo e por aqueles beijos seguintes, tão sinceros, tão impuros devido ao local onde se
encontravam. E as suas mãos procuraram as dele, passearam pelo seu pescoço, pela sua face,
escorregaram pelos braços, pousaram no seu peito, numa procura pela certeza de que aquilo
estava a acontecer, não era mero sonho, de que ele estava ali, mesmo ali, e não era mais a sua
mente entristecida e cansada a pregar-lhe partidas.
E parecia real, tanto ou até ainda mais real do que tudo o resto.
E somente isso importava.
(!)
(Título alternativo deste capítulo: “oh damn, outra cena romântica, Jesus Christ, nooo!”)
... Vá, que isto tem de começar a andar mais depressa, se esta história quer ser acabada ainda antes do Ano
Novo... *resmungo*
(8)
... e soltou um ai de dor...
(7)
_ 22 _
XLIII
A manhã chegou e com ela veio também a fome no sentido literal da palavra,
constatada pelos ruídos estranhos provenientes de dois esfomeados.
A rapariga de dezoito anos foi a primeira a acordar, primeiro sem saber aonde estava e
porquê, depois compreendendo, à medida que a sua mente entorpecida e o seu corpo, dorido
por ter dormido no chão de pedra, despertavam. Com a luz do dia que entrava pelos vitrais
anteriormente coloridos, porém agora de tons esmaecidos, pôde observar melhor não só o
interior da catedral (que ficara um pouco menos aterrador) como a sua situação.
E, pensando nisto, o seu rosto ruborizou-se.
Deitou um olhar ao jovem adormecido e, algo indecisa, optou por arrancá-lo do seu
sono.
- Hrrrmm... – resmungou ele.
- *slap!* - fez a sua mão quando bateu na bochecha dele.
O guitarrista acordou assim um pouco em sobressalto e com a face dorida, mas nada
de muito grave. Olhou indignado para a criatura de intenções malévolas que o acordara a tão
abomináveis horas e de um sonho deveras agradável e, continuando a resmungar como um
velhote à procura dos chinelos, levantou-se.
Sem qualquer tipo de comida, decidiram explorar o resto da catedral numa tentativa de
encontrar outra saída alternativa, que não a das estátuas.
Uma porta de madeira muito escura ligava a entrada onde haviam passado a noite ao
corpo do edifício principal. O caminho estava obstruído em diversas partes devido à
decomposição implacável do tempo e de imensa negligência mas era possível ainda sentir
uma certa magnificência e solenidade etéreas.
Uma enorme nave era iluminada naturalmente através de uma belíssima rosácea na
outra ponta da catedral e diversos vitrais coloridos rasgavam as altas e finas paredes de
tempos a tempos. Bancos de madeira esguios encontravam-se, na sua maioria, tombados, mas
não eram estes que tornavam difícil a passagem; algumas colunas e arcadas, demasiado
pressionadas pela pesada abóbada cujos contrafortes, no seu exterior, mal aguentavam o seu
peso, corroídas por décadas de chuvas e agressões da Natureza, haviam começado a
deteriorar-se, criando uma perigosa instabilidade. Uma das naves colaterais havia já ruído. As
poucas estátuas encastoadas nas paredes, elas próprias servindo o propósito de colunas,
estavam quase irreconhecíveis. Miraculosamente, um enorme, antiquíssimo e intensamente
trabalhado candelabro baloiçava suavemente tocado por uma qualquer brisa invisível,
suspenso do tecto por gigantescas e delicadas teias de aranha... Ou assim parecia, pois que o
resistente e discretíssimo fio que o suportava não lhes era visível.
O guitarrista não prestava muita atenção a este novo espaço mas a Bruxinha, pelo
contrário, encantada e arrepiada por ali estar, soltou-lhe um grito indignado ao ouvido quando
as suas botas, descuidadamente, quase pisavam a graciosa mão de uma das pequenas estátuas.
Quase no fim da grande nave, Bruxinha tirou o livro de dentro do bolso e, muito
cuidadosamente, abriu-o na última página que vira escrita. E viu que novas palavras haviam
surgido nas folhas envelhecidas.
Procurou no rodapé.
_ 23 _
XLIV
“Perdidos, perdidos, mas não para sempre. Olhos de fada olham por vós.
Porém, na catedral distante vigiada por demónios com cara e asas de anjo, é fácil o
viajante perdido perder completa e irremediavelmente a razão. O segredo para que tal não
aconteça é muito simples: que não fale, jamais, com estranhos...
Após esta prova superada, algumas pistas serão reveladas para uma história que está
quase a ter o seu final.”
Fechou o livro e guardou-o.
Ambos sentiram-no ao mesmo tempo.
Voltaram-se e lá estava, em cima do castiçal baloiçante: um ser, uma criatura com
forma humana, de cabelos negros lisos e olhos vazios. A ponta dos dedos alongava-se até
serem garras, compridas, cortantes e letais sem qualquer dúvida.
Apontou-lhes um dedo e disse:
- Estão vocês perdidos? Dá para ver que daqui não são... – sorriu.
Com extrema agilidade, agarrou-se ao cabo que pendia do tecto e arranjou maneira de
chegar a solo firme. O seu sorriso alargou-se mais e os dentes, amarelados e irregulares,
alguns até partidos, refulgiram num esgar ameaçador.
- Bem-vindos. Esta é a minha casa. – fez uma leve pausa, a cabeça levemente
inclinada. - O meu território.
Trémula, a rapariga recomeçou a andar, com o livro bem apertado na sua mão direita,
enquanto a sua mão esquerda puxava o guitarrista que, levemente curioso, pensava nalgumas
perguntas para fazer àquela criatura. Como que adivinhando os seus pensamentos, Bruxinha
rapidamente largou-lhe a mão e tapou-lhe a boca. Apontou para o livro. E ambos seguiram o
mais silenciosamente que podiam, seguidos pelo ser que, divertido pelas suas reacções,
soltava risinhos arrepiantes de tempos a tempos.
Até o som ecoar por toda a catedral e já não saberem de onde partia.
Olharam em volta mas não o viram em lado algum.
Subitamente, a catedral pareceu-lhes um local de onde emanava algo de maligno. De
segredos obscuros. Porém, não tiveram muito tempo para apreender essa sensação. Por um
canto do olho, viram um pequeno vulto no meio de alguns escombros ali perto. Parecia estar
enrolado sobre si mesmo.
Cautelosamente, aproximaram-se, não fosse ser outro ente malévolo.
XLV
Mas era uma criança. Uma menina de cabelos claros e pele muito branca, com os
olhos azuis brilhantes molhados e a cara manchada de lágrimas abraçava com os pequeninos
braços os joelhos. Preocupado, o guitarrista acercou-se da criança e fez-lhe uma festa na
cabeça. Mas o cabelo não era macio e a expressão suave do seu rosto transformou-se numa
careta horrível quando os dentes amarelados e irregulares apareceram e os olhos perderam a
cor.
Então, uma voz horrível ressoou de forma terrível, ao ponto do pesado candelabro
antigo se despedaçar no chão.
- Vá lá, FALEM comigo! Prometo que mal algum vos acontecerá... Na verdade, será
como um agradável sonho sangrento.
_ 24 _
Os nossos dois protagonistas largaram a correr sem sequer pensar duas vezes. No
deambulatório, perto do altar-mor, encontraram uma porta baixa de madeira, meio escondida,
que abriram numa atitude de inconsciência momentânea.
Afinal, que perigos poderiam lá encontrar? A morte, até. Mas seria preferível àquela
criatura maldita.
A porta dava acesso a uma pequena área ajardinada onde flores de ar extremamente
suspeito baloiçavam-se na brisa. Adiante, um portão de grades de ferro. Experimentaram-no.
Não estava fechado à chave.
Olharam para trás, para ver se a coisa os perseguia. Viram-na ainda no interior da
catedral, uma sombra negra recortada contra uma janela de vitrais rachados a rogar-lhes
pragas. Suspiraram de alívio.
E eis que uma visão se lhes deparou.
Por ali continuava um pequeno carreiro, bastante discreto por estar consideravelmente
imerso entre árvores. Começava perto de um muro de pedra maciça gelada, invisível do ponto
onde os dois aventureiros estavam, e serpenteava até ir dar a um túnel escavado numa grande
rocha e uma câmara no fim.
A câmara onde, nada mais nada menos, dois amantes pétreos repousavam, abraçados
na eternidade.
XLVI
De costas para eles, em frente às estátuas, estava o desconhecido de olhos verdes. Ou
azuis, tanto faz. Convém dizer que já ali estava havia algum tempo, em profunda meditação. E
o que havia concluído fora que era destino seu ficar sozinho e para sempre preso, naqueles
estranhos jardins e caminhos secretos, até que a sua alma fosse salva.
Permaneceu o silêncio.
Os três esperavam, em expectativa, que algo se lhes fosse revelado. Porque o livro
deixara de conter mensagens desde a fuga da catedral e eles não sabiam que fazer para que a
história terminasse.
Por fim, Bruxinha aproximou-se do desconhecido que puxara de um cigarro e o
colocara na boca sem o acender. Este voltou-se, juntamente com o seu senhor, para encarar a
rapariga que, por breves instantes, pareceu mais crescida.
- Desculpa. – sussurrou ela. E ele, suspirando, com ar de profundo cansaço, apenas
assentiu, tirou o cigarro, deu-lhe um beijo ao de leve na face, foi até ao fundo da câmara, até à
porta estreita, e desapareceu.
A sós, o guitarrista e a rapariga fitaram-se longamente. E o guitarrista perguntou, num
quebrar de silêncio:
- Então e... que estátuas são estas?
Aproximando-se suavemente, a rapariga respondeu, com doçura e alguma intenção um
pouco mais oculta na voz:
- Estão enfeitiçados. Mas vem cá, quero-te contar um segredo...
E, puxando-o pela gravata esfarrapada, beijou-o longa e apaixonadamente.
- Mas... – protestou, muito debilmente, o rapaz, completamente apanhado de surpresa
por tal iniciativa deveras deliciosa.
- Shh! Não faz mal, as estátuas não nos estão a ver...
Em frente às estátuas, os dois amantes reconheceram-se sem qualquer receio ou
impedimento. Ele viu a tristeza solitária na vida dela e ela viu a paixão, acima de toda a
frustração pelas infinitas recusas, dele pela sua música.
_ 25 _
E estavam nisto quando uma leve cor voltou às faces da rapariga-estátua e o seu
coração, há tanto tempo adormecido, recomeçou a bater. E não viram um brilho de lágrimas
voltar aos seus olhos castanho-esverdeados, nem o seu cabelo negro agitar-se suavemente
com a estranha e sobrenatural brisa que se levantara ali dentro quando os seus poros
começaram a ser invadidos pela vida.
Não. Não viram que, lentamente, a pedra dava lugar à delicadeza da pele e ao tecido
das roupas, e que as cores e os sons de um corpo amaldiçoado a renascer eram a mais bela das
sinfonias.
Por isso, quando sobressaltados quase de morte por um soluçar desconhecido a viram,
absolutamente nada lhes ocorreu. Limitaram-se a ficar especados, a olhar para a figurinha
feminina que se sentara no chão e que, inutilmente, tentava trazer à vida a estátua que tinha à
sua frente, tocando-a, abanando-a, gritando enquanto chorava, repleta de desespero por ter
retornado à vida sozinha.
(... Neste exacto instante, algures por entre estalactites, estalagmites e estátuas
vigilantes, o par de asas fragmentadas pertencentes a uma certa menina-fada reconstituíam-se
e fortificavam-se, numa conclusão de um enigma.)
A luz fraca que passava através do vitral embutido lançava reflexos de mil cores,
tornando a cena ainda mais irreal. E maravilhosa, pensou Bruxinha, sendo a primeira a
recompor-se do seu estado de assombro.
notas:
Chegados a este ponto da história, convém esclarecer certas coisas.
O facto da estátua masculina não ter recuperado a sua forma humana significa a não conclusão do
enigma. Ainda que a resposta esteja, evidentemente, num beijo apaixonado, nem tudo pode ser resolvido
assim(9).
A menina das asas quebradas... como as recuperou ela? Bem, lembram-se da estátua guardiã das mãos
vazias?... Pois. Já a criatura insana é alguém que ficou, tal como os dois amantes de pedra e o estranho de olhos
verdes ou azuis, um ser amaldiçoado. O “porquê”, deixo ao toque da vossa imaginação. Uma versão que poderia
ser bastante plausível seria o estranho de olhos verdes ter a mesma identidade do louco da catedral gótica, o que
seria, para além de um teste às personagens, uma reviravolta surpreendente... Ou então não. Poderá fazer parte de
uma história paralela a esta, que fica inteiramente ao toque da referida imaginação.
... Convém ainda referir que o estranho dependente de nicotina não é, de modo algum, um bom exemplo
de como meninos e meninas se devem comportar. O cancro existe e os anúncios são reais. :/
Claro que a nossa Bruxinha não apreendeu inteiramente todas estas coisas mas ficou
com borboletas a segredar-lhe bocadinhos de informação.
Percebeu que beijos apaixonados podem resolver algumas coisas mas não tudo.
Falou depois com a estranha que continuava na vã tentativa de acordar o que não
poderia ainda o ser. Ficou a saber que a menina anteriormente estátua chamava-se Isabelle e
que não se lembrava de como tinha ficado ali presa.
Entretanto, o seu cansaço era muito. Esfregou os olhos. Ardiam-lhe e pesavam-lhe.
Sentia-se exausta e as cores começaram a empalidecer.
Ao longe, ouviram-se badaladas abafadas, vindas de algum local desconhecido. O
guitarrista e a rapariga recuperada da pedra também as ouviram.
Olharam-se interrogativamente e depois o guitarrista largou um grito de surpresa e
agarrou na mão da Bruxinha. Esta, vagamente chocada, viu-a tocar-lhe a pele fugazmente e
depois atravessá-la.
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O que, infelizmente, inclui más notas nos testes e/ou exames, a não atribuição de uma avultada quantia em
dinheiro e a guerra que anda a devastar o nosso Planeta.
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Portões abriram-se num ranger ensurdecedor, de gelo.
Começou a ver as coisas a dissolverem-se lentamente no ar e as últimas coisas que viu
foram as paredes frias de uma câmara escavada na rocha, duas caras ansiosas e assustadas e
depois um símbolo estranho num portão tosco e de madeira. Treze borboletas de asas negras e
púrpura acordaram e passaram por ela, apenas meras sombras fugidias.
E deixou de ouvir.
XLVII
E acordou.
Estava na sua cama, estes eram os seus lençóis e era de dia, pelo que a luz que se
escapulia pela nesga da janela dava para deduzir.
Apurou os ouvidos e os sons urbanos manifestaram-se, como que a darem-lhe
desagradáveis boas-vindas. Por entre eles, o som de pássaros atrevidos, que da sua varanda a
desafiavam, num alegre esvoaçar.
Sonhei, disse a sua voz em voz alta. Não acredito, murmurou-lhe uma borboleta
pequenina que entrara no seu quarto de forma desconhecida e que pousara, provocante, na sua
almofada.
Lembrou-se de procurar um relógio e viu que já estava atrasada.
No autocarro, pensou ter visto um estranho parecido com o guitarrista pela janela e
teve um sobressalto. Mas foi demasiado depressa e não chegou a ter certezas.
Antes de entrar na sala de aula, procurou uma blusa branca e cor-de-rosa clara e puxou
pela manga, o que resultou numa das suas melhores amigas vir incluída e a protestar
debilmente que não eram modos de modo nenhum educados de chamar a atenção a alguém.
Após um razoavelmente rápido resumo do seu sonho, esquecidos a aula e o sono, já as duas
raparigas colocavam hipóteses cheias de entusiasmo e disparate.
Passaram o dia inteiro a cochichar sobre esta história, causando alguns olhares
indignados por parte de professores e até de colegas invejosos e coscuvilheiros.
À noite, cada uma em sua casa, continuavam a troca de palavras através da
maravilhosa tecnologia do século XXI.
Ao adormecer, a Bruxinha desejou sonhar mais. Mas este já não era o seu sonho...
... No outro lado da cidade, a amiga também adormecera. E pensa, como é estranho
este caminho...
Encontra um livro estranho, de páginas vermelhas, cor de sangue, no chão, entre
folhas secas e pequeninos círculos de cogumelos.
E vê o sorriso doce de uma menina-fada...
*
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