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D2 Caderno2 %HermesFileInfo:D-2:20130317: O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 17 DE MARÇO DE 2013 LEE SIEGEL SEGUNDA-FEIRA LÚCIA GUIMARÃES TERÇA-FEIRA ARNALDO JABOR QUARTA-FEIRA ROBERTO DAMATTA QUINTA-FEIRA LUIS FERNANDO VERISSIMO SÁBADO MARCELO RUBENS PAIVA SÉRGIO TELLES SEXTA-FEIRA IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO MILTON HATOUM DOMINGO LUIS FERNANDO VERISSIMO JOÃO UBALDO RIBEIRO LEE SIEGEL Saberes mundanos NOVA JERSEY Q uando eu era um menino judeu, tinha inveja de meusamigoscatólicos.Minhafamíliaeeufrequentávamos o que era conhecido como umasinagogareformista, o que significava que o serviço era em grande partedesprovidodesegredosemistério. A missa católica, por sua vez, era repleta de segredos e mistérios. Naquela época, a missa ainda era oficiada em latim, e quando um amigo católico ou algum outro me convidava para uma missa ou comunhão, eu ficava fora de mim. Os ritmos belos e encantatórios do idioma arcaico, o cheiro de incenso, os cantos, o vinho e as velas e hóstias – tudo tornava presente e real o mundo invisível, espiritual, que eu tão ardentemente esperava que existisse como uma alternativa melhor àquele que habitava mundanamente. Além disso, parecia existir uma família alternativa cujos membros jamais se infernizavam, jamais gritavam, e que jamais o abandonariam ou morreriam: Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto. Sicut erat in principio, et nunc, et sempre, et in saecula saecolorum. Amen. E os tabus – oh, os tabus! Eles pareciam chegar ao cerne de nossa experiência humana, a sexualida- de, que era, aliás, uma experiência humana que me torturava e intrigava. Como era libertador saber que a intimidade sexual que eu tanto almejava e não poderia atingir não era realmente, por lei divina, atingível por alguém com menos de 100 anos. Ao mesmo tempo, sua proibição parecia justificar meu interesse constante por ela. O fato de uma instituição sagrada mobilizar todas as suas forças contra o sexo elevava o pensar incessante sobre sexo de neurose a uma digna obsessão. Não era de admirar, eu pensava, que os pais de meus amigos católicos nunca se divorciassem. Envolverse noite após noite em prazeres satânicos os mantinha unidos. Nunca me ocorreu que eles não estavam autorizados a se divorciar. Mesmo quando fiquei mais velho e me deparei com a amarga decepção de amigos católicos cuja fé havia caducado, mantive minha velha inveja pelo fascínio de sua religião. Estava começando a frequentar círculos intelectuais em que o desprezo por qualquer tipo de fé religiosa era costumeiro – uma espécie de atestado de seriedade. No entanto, em vez de adotar posturas voltairianas similares, comecei a publicar numa revista católica liberal chamada Commonweal. Cheguei a namorar durante algum tempo a ideia de me converter, mas me lembrei de meus amigos de meninice e de como seu catolicismo estava intensamente colado às suas raízes étnicas. Entre os católicos italianos, e os católicos irlandeses, e os católicos poloneses existem diferenças culturais, moldadas e enrijecidas por idiossincrasias familiares, nas quais eu não poderia jamais me encaixar, que dirá compreender. Era atraído, sobretudo, pelos jesuítas por sua sutileza intelectual e ceticismo. Pareciam próximos da tradição talmúdica em que eu fora – em Sem o celibato ou as barreiras contra as mulheres, a mensagem do catolicismo seria revigorada grau leve – educado. Vivendo por um tempo em Chicago durante a adolescência, fiz amizade com um rapaz chamado Francis Byrne, que era educado por jesuítas. Bondoso e compassivo, ele me seduzia com histórias do chefe dos jesuítas, um homem conhecido por sua caridade e amor, que guiava um Cadillac, vestia ternos caros feitos sob medida e tinha uma amante. Isso não me pareceu hipocrisia, antes um modus vivendi permitido por uma religião ancestral, usada nos modos do mundo e nos caminhos do coração humano. Essa fé, assim me pareceu, tornava possível aplacar e neutralizar o lado animal da natureza humana, de modo que a centelha divina em cada ser humano pudesse persistir e florescer. Se posso falar como um outsider religioso, ainda tenho minha fé naquela fé. Para cada revelação aterradora de pedofilia, misoginia e cumplicidade com poderes mundanos desprezíveis, conheço incontáveis histórias de católicos que deram suas vidas para ajudar pessoas em tempos políticos sombrios, ou passaram – e consumiram – suas vidas ajudando pessoas a sobreviver em meio a uma pobreza e injustiça aviltantes. Eu não suportava ouvir o jornalista Christopher Hitchens discursar sobre a perversão da fé religiosa. Não me passava pela cabeça como alguém podia levar a sério o argumento gasto de Hitchens de que a religião era o ópio das massas quando Hitchens, como ele próprio admitiu, viveu bêbado todos dias e noites de sua vida. Assistindo à eleição do novo papa, não pude deixar de pensar que, de algum modo, o saber mundano que a Igreja Católica um dia conheceu e praticou – para cada papa venal, houve um papa magnânimo, e, às vezes, um que incorporava as duas qualidades – havia sido abandonado nos tempos modernos. Se ao menos a Igreja pudesse ser tão compreensiva com a sexualidade humana como o professor jesuíta de Francis Byrne e seus lenientes superiores. Sem o celibato e as patologias que ele amiúde origina, sem as barreiras institucionais erigi- das para mulheres, sem a tolerância aos abusos de poder coexistindo com misericórdia para os impotentes, a mensagem de amor e esperança do catolicismo – única na história humana – seria revigorada e disseminada livremente. (Evidentemente, está ficando cada vez mais difícil dar a outra face quando se está on-line o dia todo e nem se consegue encontrar a própria face). Sem a pátina institucional empanando o espírito católico, modernidade e trindade poderiam se ajustar como as peças perdidas de um quebra-cabeça. Meus amigos católicos me dizem que estão divididos entre a esperança inspirada pela escolha do nome do novo papa, e por seu background jesuítico e latino-americano, e a desesperança por seu conservadorismo e por sua aceitação passiva de autoridades iníquas no passado. A despeito de tudo, eu ainda invejo meus amigos católicos. Eles sabem exatamente o que está em jogo, e pelo que estão lutando. Isso é uma bênção. estadão.com.br Leia a versão original em inglês da coluna de Lee Siegel no site estadão.com.br/e/lee Literatura. Infantojuvenil Clássico alemão é reeditado por conter expressões politicamente incorretas Thais Caramico ESPECIAL PARA O ESTADO / BERLIM O politicamente correto chegou tambémàliteraturainfantojuvenil da Alemanha. Assim como as polêmicas envolvendo o caso de Monteiro Lobato no Brasil, um dos maiores nomes do país está em evidência: Otfried Preussler, autorde DieKleine Hexe(A Bruxinha), de 1957, e morto aos 89 anos no dia 18 de fevereiro. A questão, no entanto, não é proibiradistribuiçãodesseclássico na rede pública de educação básica,comochegouaserdiscutido no caso de Caçadas de Pedrinho,massimreeditaraobraeliminandopalavrasepassagensconsideradasinadequadaseracistas.A decisão foi anunciada pela editora Thienemann Verlag logo após aministraalemãdasRelaçõesFamiliares, Kristina Schröder – do partido conservador União DemocrataCristã,omesmodachanceler Angela Merkel –, declarar ser a favor da alteração. Para entender melhor a história, é preciso voltar um pouquinhoaofimde 2012,quando oeditor da Thienemann Verlag, Klaus Willenberg, recebeu uma carta que apontava “um sério problema” na página 86 do livro da inexperiente bruxinha de 127 anosquetemumanoparaaprender a ser uma ótima bruxa. O leitor chama-se Mekonnen Mesghena, que aos 14 anos deixou a Eritreia, no Nordeste da África, como refugiado, para viver na Alemanha. Formou-se em jornalismoehojeédiretordeMigração e Diversidade da Fundação Heinrich Boell. Ele lia para a filha quando foi surpreendido por algumas palavras e, como tem dito nos jornais, não conseguiu continuar a leitura como uma atividade prazerosa. “A experiênciafoimuitoruimeatéminha filha notou que algo estava errado”, ele costuma falar. Aoeditorda Thienemann Verlag, Mesghena pediu que a obra fosse revisada, especialmente no trecho em que os personagens se fantasiam para celebrar a Fastnacht, espécie de carnaval que acontece no Sul da Alemanha e também em algumas cidades da Áustria e Suíça. O texto, em tradução livre, fica assim: “Mas os dois negros não eram do circo, nem os turcos e indianos. Nem mesmo as meninas chinesas, os ogros, as mulheres esquimós e o sheik do deserto”. A carta poderia ter sido um capítulo único e esquecido nessa história,nãofosseaministraSchröderdizerempúblicoquegostaria de ler o livro para a filha sem ter de pular ou editar essa parte, insinuando, então, uma atitude daeditoraeafirmandooteordiscriminatório. O editor consultou o autor que, aos 89 anos (com mais de 32 livros traduzidos em 55 idiomais) aceitou remover a palavra e qualquer outra parte que fosse considerada ruim. No fim de janeiro, cerca de duas semanas antes de Preussler morrer, a editora anunciou o lançamento de umareedição “correta”deA Bruxinha, prevista para julho de 2013. A notícia não caiu bem e, desde então, a empresa só responde a entrevistas através de uma carta explicativa de cinco páginas e um outro documento escrito em primeira pessoa por Klaus Willenberg, no qual ele lamenta a má repercussão e até prevê um boicote às vendas, mas se mantém firme na decisão. Para ele, não há censura ou uso excessivo do termo politicamente correto. O que ele defende é que por ter sido escrito em 1957, alguns termos do livro não fazem mais sentido. E insiste em chamar a alteração da obra por outro nome: modernização linguística. “Muitas crianças leem os livros do Preussler sozinhas e acabariam não dando atenção a uma nota de rodapé. Nós somos uma editora de literatura infantilresponsávelporaquiloquepublicamos.Portanto,um texto paracriançasnuncapodeserconfuso ou mal interpretado. Além do mais, a linguagem afeta a consciência e se um termo discriminatório pode ser evitado, pensamos numa forma razoável de omiti-lo”, diz Willenberg. Para a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, Christiane Raabe, a questão é muito maior. “Lamento essa decisão por diversas razões. O debate deixa claro que a autonomiadaarte,umpré-requisito essencial para o processo criativo do artista, não se aplica CAÇA ÀS BRUXAS para a literatura infantil. É um revés levando em conta a dura batalha para o reconhecimento da literatura infantil e tudo que ela sofre para ser entendida como parte da literatura em geral. Esse debate a enfraquece”, disse em entrevista ao Estado. Ofatode aministra tercolocado em xeque um clássico alemão fez com que o público entrasse em uma discussão surpreendentemente feroz. “A questão é que, como mãe, ela pode achar o que quiser. Mas, como representante do governo, a cena é outra”, defende a especialista. Para ela, há ondas de pensamentos retrógrados que se repetem com os anos. “Nos anos 1970, por exemplo, os contos dos Irmãos Grimm eram um tabu, diziam que de tão cruéis podiam infringir a alma do leitor”, completa a diretoradaBibliotecaInternacional da Juventude de Munique. Otfried Preussler. O autor de A Bruxinha, que morreu em fevereiro, havia concordado com as alterações, mas polêmica continua MICHAEL ENDE TAMBÉM ESTÁ NA LISTA ● O caso de Otfried Preussler chama a atenção, mas não está isolado. Pelas declarações da ministra das Relações Familiares, Kristina Schröder, a diretora da Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, Christiane Raabe, acredita que o autor alemão Michael Ende pode ser o próximo da lista. Michael Ende nasceu em 1929 em GarmischPartenkirchen, na Alemanha, e era filho do pintor surrealista Edgard Ende, banido pelos nazistas em 1936. Estudou na Escola Waldorf e, como muitos de seus contemporâneos, foi chamado para cumprir serviço militar em 1945, quando tinha apenas 16 anos. Voltou e tornou-se um dos principais autores alemães de literatura infantojuvenil do pós-guerra, especialista em fantasiar e, modesto, costumava dizer que fazia histórias para quem tinha entre 8 e 80 anos. Entre seus livros mais conhecidos está Jim Knopf und Lukas der Lokomotivführer (Jim Knopf e Lucas, o Maquinista), de 1960, traduzido em 33 idiomas. A história se passa na minúscula ilha de Lummerland e é sobre amizade. Um belo dia, chega pelo correio um pacote e, dentro dele, “um menino negro, Jim Knopf”. No texto, a palavra negro vem incomodando a ministra das Relações Familiares, que já sugeriu trocar “um bebê negro” por “um bebê de pele preta”. / T.C. FRANCIS KOENIG/DIVULGAÇÃO