ECONOMIA NO ANTIGO EGITO
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ECONOMIA NO ANTIGO EGITO
A estrutura econômica do Antigo Egito a partir da perspectiva das comunidades aldeãs Clóvis Airton de Quadros (UEPG) [email protected] Resumo Esta pesquisa investiga a estrutura econômica do Antigo Egito a partir da perspectiva das comunidades aldeãs, procurando destacar a importância do homem comum na construção da sociedade egípcia, considerando que essa é uma das sociedades antigas que mais desperta o interesse dos alunos e das pessoas em geral. A partir da teoria do modo de produção asiático traça as principais características da economia egípcia antiga, aponta as transformações de concepção dessa teoria e a atual visão que se tem daquela sociedade. Busca indicar algumas das principais características da economia egípcia antiga, relativamente aos bens de consumo, ao meio de produção e circulação de bens. Destaca o fato de que os egípcios antigos possuíram especial interesse por bens de consumo exóticos, empreendendo grandes viagens de exploração visando suprir seu mercado interno. Palavras chave: Egito, comunidades aldeãs, mercadoria, economia. The economic structure of Ancient Egypt from the perspective of village communities Abstract This study investigates the economic structure of ancient Egypt from the perspective of village communities, seeking to highlight the importance of the common man in the construction of Egyptian society, considering that this is one of the ancient societies that most arouses the interest of students and people in general . From the theory of the Asiatic mode of production outlines the main characteristics of ancient Egyptian economy, the transformation of conception points of this theory and current view is that that society. Seeks to indicate some key features of the ancient Egyptian economy, for consumer goods, the means of production and circulation of property. Highlights the fact that the ancient Egyptians possessed a special interest in exotic consumer goods, making great voyages of exploration in order to supply its domestic market. Key-words: Egypt, village communities, commodity, economy. 1 Introdução A pesquisa em História está ao alcance daquele que “se disponha a recuperar no passado o processo de constituição do espaço de tensões e conflitos que é o presente e no qual busca se situar” (VIEIRA; PEIXOTO; KOURY, 1998, p. 68). Normalmente essa atividade está ao encargo do historiador profissional, entretanto, poderá ser realizada no ambiente escolar, pelos alunos, sob a supervisão do professor pesquisador. Esta pesquisa trata da economia do Antigo Egito e pode ser levada a efeito tanto no ensino médio, com grandes ganhos para os alunos, que refletirão sobre as condições de vida das pessoas comuns dessa famosa civilização, quanto pelos alunos do ensino superior de História, especialmente daqueles vinculados à Licenciatura, visando aprimorar as técnicas de investigação científica e promover a construção do conhecimento que será compartilhado com seus futuros alunos. O objetivo central deste estudo é, portanto, permitir a ampliação de conhecimentos sobre parcela menos aclamada na historiografia da sociedade egípcia antiga – os aldeães –, exercitando a atividade de pesquisa pelo professor e trazendo uma reflexão sobre o papel que os aldeães tiveram na construção do Egito Faraônico. Dessa forma, a civilização do Antigo Egito, assim compreendida, para fins deste estudo, aquela que perdurou entre 3000 a.C até 332 a.C (CARDOSO, 2004, p. 7), é caracterizada por um paradoxo interessante no que se refere ao cotidiano de sua população: apesar das convulsões internas, que resultaram na unificação do Alto e do Baixo Egito, das seguidas conquistas militares envidadas pelos reis e as ocupações estrangeiras de que o Egito foi vítima ao longo de grandes períodos, o modo de vida do sujeito comum permaneceu quase que inalterado ao longo de milênios. Esta estabilidade dentro da adversidade pode ser observada em muitos aspectos: na religiosidade, ressalvada a curta exceção de Akhenaton; no modo de produção agrícola baseado principalmente nas cheias do Nilo; na moda, pois não houve grandes transformações no estilo e nos tecidos utilizados ao longo de séculos; no campo político, pois mesmo durante os períodos de dominação externa o Egito sempre se manteve fiel à sua estrutura altamente hierarquizada em torno do rei, da nobreza e da casta religiosa; e na economia que, ao que tudo indica, se manteve fiel à macro estrutura social baseada na centralização do poder em torno do rei e na atividade das comunidades aldeãs espalhadas ao longo do Nilo. Conforme Cardoso demonstrou no artigo “As Comunidades Aldeãs no Antigo Egito” (CARDOSO, 2008, p. 96-129), não existe consenso entre as teorias que procuram explicar a economia egípcia antiga, por isso, a eleição de qualquer uma delas se apoia, muitas vezes, mais do que em fatos, na visão de mundo do estudioso. Entretanto, subsiste, em qualquer dos discursos que se possa desenvolver sobre a economia do Antigo Egito, a necessidade de se referir às comunidades aldeãs, ainda que seja para negar sua relevância para a macroeconomia egípcia. Este artigo pretende analisar a economia do Antigo Egito, enfocando-a sob a perspectiva das comunidades aldeãs. 2 O “modo de produção asiático” O modo de produção asiático foi tema abordado na obra marxiana, entretanto, é de suma importância destacar que a História Oriental e os seus modos de produção em particular, nunca foram uma preocupação central no pensamento de Marx e Engels (CARDOSO, 2008, p. 97), os quais foram apenas tangenciados como interregno para a explicação das “formas que precedem a produção capitalista” (CARDOSO, 2008, p. 99). A concepção sobre o ‘modo de produção asiático’ pressupõe a distinção entre posse e propriedade: a posse é o poder que alguém estabelece de fato sobre um determinado bem, para dele extrair as suas vantagens (DINIZ, 2004, p. 34); a propriedade é o poder juridicamente estabelecido sobre algum bem, ou seja, é ideal, abstrata, a qual dá ao seu titular as prerrogativas de uso, gozo, fruição, disposição e reivindicação (DINIZ, 2004, p. 109). A propriedade, pois, abrange a posse, mas pode dela ser separada. Assim, sob a rubrica de “modo de produção asiático”, a obra marxiana concebeu a existência de uma comunidade superior ou englobante, que é encabeçada pelo rei, sendo esta a única proprietária de todas as terras, sendo as comunidades locais meras possuidoras, transmitindo hereditariamente a posse e não a propriedade; o que resulta dessa posse hereditária é a produção agrícola e artesanal que torna a comunidade autossuficiente em termos de reprodução e produção de excedente, o qual será apropriado pela comunidade superior. Nessa linha de pensamento, são duas as formas de posse: uma que correspondente à apropriação familiar de lotes trabalhados independentemente, outro é o trabalho coletivo da terra. Sendo assim, o ‘modo de produção asiático’ pressupõe a posse coletiva da terra para o trabalho de produção agrícola e a propriedade é estatal, o qual pode ser sintetizado da seguinte forma: “(1) a propriedade comum imediata, não passando cada indivíduo de um possessor e inexistindo qualquer forma de propriedade privada; (2) a unidade, nas aldeias, de agricultura e manufatura ou artesanato, garantindo o ‘ciclo autossuficiente da produção’” (CARDOSO, 2008, p. 100). A propósito do ambiente no qual foi concebida a teoria do “modo de produção asiático”, Cardoso registra que: o estado dos conhecimentos disponíveis de meados a fins do século XIX acerca da Pré-História, Proto-História e História Antiga, bem como da História do Oriente Próximo e do Extremo Oriente em geral, se comparado ao que temos atualmente, deixava muito a desejar não somente no sentido dos modelos teóricos e explicativos disponíveis, mas também no concernente ao acesso, publicação, compreensão adequada das fontes, e ao conhecimento dos fatos e mecanismos econômico-sociais básicos. (CARDOSO, 2008, p. 97) É interessante, ainda, observar que Marx baseou a teoria num estudo do parlamento inglês sobre a Índia datado de 1812, deixando de relacionar entre os possíveis fatores de coesão social o controle local da irrigação, prendendo-se à posse e à propriedade da terra (CARDOSO, 2008, p. 98). Dentre as críticas à teoria em comento, destacam-se aquelas que se opõem à imutabilidade do regime de exploração da terra pelas comunidades aldeãs na forma de propriedade coletiva e à inexistência de propriedade privada sobre a terra, pois não é crível que o mesmo modo de produção tenha se mantido inalterado ao longo do tempo: “a lógica asiática era somente uma das lógicas econômicas em jogo naquela economia e, pelo menos desde 2000 a.C., ou pouco antes, não era a mais importante” (CARDOSO, 2008, p. 102). Atualmente existem várias teorias para explicação dos sistemas econômicos das sociedades antigas e, numa sociedade de longa duração como foi a egípcia, é de se supor que vários sistemas econômicos conviveram, se sobrepuseram e alternaram, entretanto, parece que o regime de produção na aldeia, assim entendida a instituição familiar que explora a terra para sua subsistência e produz um excedente, atuando de forma autárquica, se manteve perene ao longo do tempo, sendo uma das características da sociedade egípcia e um dos pontos principais da ‘teoria do modo de produção asiático’ que pode ser adotado para fins deste estudo, conforme o tópico a seguir. 3 A aldeia como centro da vida comunitária do Antigo Egito Normalmente quando se estuda o Antigo Egito alguns estereótipos logo veem à mente: as pirâmides, a esfinge e as cidades esplêndidas das quais restaram ruínas de palácios e templos monumentais. É difícil imaginar que a verdadeira riqueza do Egito estava nas suas centenas de aldeias espalhadas ao longo do Nilo, naquelas comunidades aldeãs, das quais quase não restaram documentos escritos, mas que representaram a base social sobre a qual se assentou a opulência dos reis, conhecimento sobre o qual os alunos devem ter acesso a fim de delimitar um importante espaço de construção social que cabe ao cidadão comum. A teoria do modo de produção asiático destacou o caráter “familiar” das aldeias no sistema de produção do Egito Antigo e essa parece ser uma nota com a qual a maior parte dos autores está de acordo (CARDOSO, 2008, p. 100). Uma visão ‘dissidente’ sobre o papel das comunidades aldeãs no Egito Antigo é a de Théodoridès, para quem não existiam comunidades aldeãs no Egito faraônico, porque o Estado era tão centralizador que as aldeias, assim, como a administração, eram emanações diretas da vontade estatal representada por seus funcionários (CARDOSO, 2008, p. 104). Cardoso, por outro lado, concorda com a afirmação de Hoffman no sentido de que existe (...) uma forte continuidade entre os agricultores aldeães do PréDinástico e seus similares do período dinástico, posto que a passagem da sociedade pré-dinástica para a dinástica foi muito mais organizacional e política do que tecnológica e cultural. O Egito dos faraós permaneceu (...) essencialmente uma sociedade agrária de base aldeã (CARDOSO, 2008, p. 106). Assim, as estruturas sociais egípcias guardam algo daquela perenidade de que falávamos anteriormente, in casu, a formatação social e econômica a partir da aldeia. É a partir dela que a sociedade de produção se estrutura: na base da pirâmide econômica está a aldeia de formato familiar. É certo que existiram aldeias com finalidades eminentemente de produção e com caráter não estritamente familiar, que funcionaram como verdadeiros assentamentos ordenados pelos reis, mas estas conviveram com aquelas, que tiveram tiveram muito maior duração (CARDOSO, 2008, p. 109). É claro que o conceito de família, neste caso, deve ser entendido em sentido bem amplo, como sendo formada não só pelos laços de sangue, mas, também, de afinidade, que se estruturam na convivência harmônica entre todos os seus membros, com vistas à sobrevivência do grupo e à manutenção do Estado por meio dos tributos recolhidos. Para Cardoso, mesmo após as transformações sociais ocorridas a partir do século XIV a.C. com o domínio dos hicsos, com a introdução do trabalho escravo, da mercantilização e do shaduf, o sistema de produção aldeã não desapareceu, apenas que agora o caráter familiar havia sido reduzido (CARDOSO, 2008, p. 119). A propósito da organização social no Antigo Egito e a posição que as comunidades aldeãs ocuparam nesta estrutura, profundamente hierarquizada, é interessante observar a figura a seguir: Fonte: http://www.nowpublic.com/tech-biz/ancient-egyptians Figura 1 – Estrutura Social do Antigo Egito Conquanto esta representação não possa ser tomada como absoluta, nem mesmo válida para os vinte e sete séculos por nós assinalados no início deste estudo, ela pode ser tomada como ilustrativa de uma das muitas possibilidades de organização social egípcia antiga, principalmente porque apresenta alguns dados que parecem perenes naquela sociedade: o Rei no topo da pirâmide social e os aldeães (farmers) na base da pirâmide, logo acima dos escravos, com o detalhe de que a economia egípcia “nunca foi ‘escravista’ no sentido em que o foi a da Grécia clássica e helenística e a da Roma de fins da República e do Alto Império” (CARDOSO, 2004, p. 46), o que, em nosso entendimento, é mais um ponto a favor das comunidades aldeãs (constituídas principalmente por pessoas livres), que formaram a grande base econômica de sustentação do império. São três as características de uma organização aldeã comunitária no Antigo Egito (CARDOSO, 2008, p. 120-123): a) a presença de um elemento de solidariedade econômico-social em um sentido amplo: as comunidades experimentaram um grande sentido de autonomia econômica e social, pois ali eram produzidos os bens de consumos e suas trocas; b) eram os órgãos comunitários locais que exerciam controle da irrigação e de aspectos específicos do ciclo agrário: havia um profundo sentido de solidariedade entre aldeães, no sentido de contribuir para o pagamento de impostos e o controle do regime de produção era feito por órgãos comunitários locais, desde que não interferissem nas ordens da hierarquia estatal; c) os órgãos comunais locais tinham relevância na administração da justiça, administração e cartoriais: desde que não interferissem no poder estatal, esses órgãos comunitários representaram importante papel na vida das comunidades do Egito. De modo geral, portanto, comungamos da opinião de Cardoso, no sentido de que, ainda que profundamente supervisionadas pelas autoridades estatais egípcias (CARDOSO, 2008, p. 122), as comunidades aldeãs contavam com um relativo campo de autonomia, o qual era exercido para o benefício de seus membros e do próprio Estado, na forma de entidade eminentemente familiar. 4 A aventura egípcia em busca do raro O Egito foi uma das maiores sociedades do mundo antigo não apenas pelas obras em pedra que deixou, mas pela riqueza da vida humana ali presente: o Egito era um dos ‘formigueiros humanos’ do mundo antigo, em virtude de sua extraordinária fertilidade renovada anualmente pelos aluviões do Nilo. Sendo a vida agrícola inteiramente dependente da inundação, quando esta faltava ou era insuficiente ocorria a fome – apesar das reservas acumuladas pelo Estado – e morriam milhares de pessoas. Temos muitos documentos escritos (e às vezes pictóricos) que se referem a tais épocas calamitosas. Numa delas, durante o Primeiro Reinado Intermediário, segundo parece houve casos de canibalismo (CARDOSO, 2004, p. 38) A vida no Antigo Egito girava, em grande parte, em torno das comunidades aldeãs, ao ponto destas figurarem como o pilar da economia egípcia. Entretanto, é interessante lançar um olhar sobre os bens consumidos por essa sociedade, pois esse tipo de análise nos informa não só sobre o suporte material referente aos bens comerciáveis, mas, também, nos diz muito quanto aos hábitos de consumo, ao modo de vida e à perspectiva social e econômica que tinham de sua própria cultura e, de um certo modo, aproximam o aluno/estudante/cidadão de hoje do egípcio antigo, pois, no substrato da natureza humana, vê-se que os objetos de desejo deles não são muito diferentes dos nossos. Margareth Marchiori Bakos nos informa que “o Egito Antigo é conhecido como o celeiro da antiguidade desde o início do período dinástico pelo desenvolvimento no vale do Nilo, que impulsiona a produção agrícola organizada que alimenta a população e fornece excedentes de exportação” (BAKOS, 2001, p. 243-253). As comunidades aldeãs foram as grandes produtoras de cereais que alimentaram a população egípcia e grande parte da população do Mundo Antigo, porém, o “cardápio” dos bens de consumo do Egito era constituído de uma infinidade de produtos, desde produtos alimentares (JACOB, 2003, p. 53), como cereais e frutas, carne e leite, até artigos de higiene e beleza, inclusive muitos supérfluos, como jóias e artigos de decoração. Tudo que não era produzido no Egito, era importado do exterior do império, ainda que fosse necessário grande esforço em termos materiais e humanos, o que instigava nos egípcios um sentimento de aventura e de conquista do raro: Aventurar-se rumo ao leste, seguir a costa do Mar Mediterrâneo, atravessar as barreiras formadas pelas cataratas e rumar para o interior da África ou penetrar nos desertos ocidentais são desafios que enfrenta somente para a conquista de algo raro, necessário, desejado (BAKOS, 2001, p. 244). É possível afirmar, pois, que o desejo de consumo de bens exóticos, como as madeiras nobres, o ouro, a prata, o cobre, a mirra, o incenso, os vinhos, os tecidos, as peles, as pedras preciosas e as especiarias impulsionaram os egípcios a desbravar vastas áreas da África e do Mediterrâneo, constituindo-se por si mesmo em fator de impulso econômico: o ímpeto de prosseguir a leste para o interior da África, a nordeste em direção ao Eufrates, a conquistar a ilha Elefantina e a Núbia são exemplos do espírito aventureiro dos egípcios (BAKOS, 2011, p. 245-251). O interesse humano por artigos exóticos, aos quais ele atribui um valor excepcional, tem impulsionado a humanidade a desbravar fronteiras, fato do qual a sociedade do Antigo Egito é exemplo e testemunha: “a busca de coisas especiais para suas rotinas e cerimônias leva os egípcios a empreitadas grandiosas, através de desertos e mares, confere-lhe um lugar especial na história e situa-o entre os que, na modernidade, chegam a novos continentes” (BAKOS, 2011, p. 252). 5 A atividade econômica no Antigo Egito Com base nos estudos efetuados por Karl W. Butzer, Cardoso traça o seguinte perfil hipotético das forças de produção atuantes no Antigo Egito: Ano (a.C) Habitantes 3000 870.000 2500 1.600.000 1800 2.000.000 1250 2.900.000 Fonte: CARDOSO apud BUTZER, 1986, p. 59 Km² cultiváveis disponíveis Habitantes por km² de terras cultiváveis 15.100 17.100 18.450 22.400 57,61 93,57 108,40 129,46 Tabela 1 – População, área cultivada e densidade demográfica hipotética no Antigo Egito segundo Cálculo de Butzer Esse perfil indica que, embora pequena para os padrões atuais, a população envolvida na produção, circulação e consumo de bens no Antigo Egito era relevante, exigindo um alto poder de organização do Estado e da sociedade visando o abastecimento. A tabela mostra o crescimento populacional do Antigo Egito (extremamente lento para os padrões atuais), o que exigiu a ampliação das áreas cultivadas e promoveu o adensamento populacional, por outro lado, indica que entre 3000 a.C a 1250 a.C a população mais que triplicou, entretanto, a área cultivada foi acrescida de apenas 7.300 Km², o que nos faz pensar que a disponibilidade de alimento para a população era bastante restrita, principalmente se considerado, ainda, o excedente destinado aos estoques do Estado e ao comércio exterior e que as colheitas eram extremamente suscetíveis a maior ou menor enchente do Nilo. Além disso, Bakos destaca que os meios de produção estavam centralizados nas mãos do Estado, assim como a própria atividade comercial consistia em monopólio estatal, realizado por funcionários públicos especialmente preparados para tanto (BAKOS, 2001, p. 244). O cultivo básico efetuado pelo sistema de produção aldeã girava em torno do trigoduro, da cevada e do linho, utilizados para o pão, para a cerveja e para o vestuário, ou seja, uma economia mantida pelas cheias periódicas do Nilo (CARDOSO, 1986, p. 63), de modo artesanal, com caráter nitidamente de subsistência mas que, a pesar disso, gerava um excedente capaz de permitir a riqueza do Estado Faraônico. Além da atividade agrícola, os egípcios desenvolveram o manejo de animais domésticos como bois, asnos, carneiros, cabras, porcos, aves diversas e cavalos, estes a partir das invasões dos hicsos. A produção pesqueira também era praticada pelos egípcios, através dos mais diversos meios como anzol, rede, nassa e arpão. A caça representava certo papel na produção, abastecendo o consumo dos privilegiados (CARDOSO, 1986, p. 63-64). A imagem abaixo mostra trabalhadores arando a terra e recolhendo a colheita sob os olhos atentos de um supervisor: Fonte: http://www.egyptan.sk/en/articles/ancient-egypt/government-and-economy.html Figura 2 – Semeadura e colheita no Antigo Egito No campo extrativista, são significativos a produção de tijolos com o barro do Nilo, a confecção de artefatos em pedra (blocos, colunas, estátuas) e a produção de madeira (de qualidade inferior), todos destinados à aplicação nas obras de construção civil do reino. Destaca-se o artesanato egípcio como um dos pontos altos da cadeia produtiva, pois ele era responsável pelo abastecimento dos mais diversos itens destinados ao conforto dos consumidores: desde utensílio de junco, barro e pedra, até a confecção de móveis e objetos de decoração (CARDOSO, 1986, p. 64-65). A imagem a seguir apresenta uma cena pictórica mostrando uma oficina de artesanato egípcio, atividade sumamente importante para a vida da população: Fonte: http://ancientegptian.wordpress.com/daily-life/ Figura 3 – Artesanato no Antigo Egito Os estudiosos destacam o fato de que os meios de circulação de bens no Antigo Egito ficaram quase que totalmente restritos ao sistema de escambo (dons e contra-dons), sobretudo quando se analisa a vida das comunidades aldeãs (CARDOSO, 2008, p. 120), que é o tema específico deste trabalho. Entretanto, a ausência de utilização da moeda por largo período, até próximo da conquista do Egito por Alexandre Magno, não impediu a pujança da economia egípcia, sendo esta, em nosso ver, uma das maiores conquistas daquele povo que, ao desprezar a utilização de moeda como instrumento de equivalência nas trocas, o que teria dinamizado e facilitado o comércio, ofereceu um ambiente de escambo de bens suficientemente amplo e estável para a estruturação milenar de sua economia, a qual se manifestou, sobretudo na riqueza do Estado: As tumbas do Reino Antigo mostram o pequeno comércio local de produtos por produtos, e o pagamento in natura de vários serviços. Em transações maiores e para o cálculo dos impostos (que eram pagos em espécie), o padrão pré-monetário de referência eram pesos de metal (shat, deben). (CARDOSO, 2004, p. 40) O sistema econômico-social do Antigo Egito pode ser dividido em dois campos para efeito de estudos: o primeiro (...) era o das estruturas econômico-sociais ‘estatais’: baseava-se na extração de excedentes de todas as comunidades locais, tanto urbanas quanto rurais, através do tributo em produtos e de trabalho para todos os empreendimentos do Estado – na forma da “corvéia real”, que servia para o trabalho agrário nas terras da coroa, dos templos e dos grandes funcionários, para as construções públicas, para as expedições extrativistas enviadas às minas e pedreiras, e para a guerra. O outro nível, maciçamente camponês, era o de unidades domésticas, ou comunais, em grande parte autossuficientes, possuindo economia e sistema social provavelmente bastante variáveis no detalhe de região a região, já que eram governados pelo costume. (CARDOSO, 1986, p. 68) É interessante observar, ainda, que a economia egípcia foi pautada, em grande parte, por um fio moral condutor que era a solidariedade, em virtude da qual havia cooperação entre os membros da aldeia para a produção, circulação de mercadorias e pagamento de impostos, ainda que ela tenha sido abalada ao longo dos séculos, nunca chegou a ser totalmente destruída nem mesmo durante o Reino Novo (CARDOSO, 2008, p. 120; 1986, p. 72-74). Este sistema econômico de base aldeã, no qual a economia é centralizada nas mãos do rei e dos funcionários estatais, onde a propriedade das terras é pública, cedida aos particulares por meio de arrendamentos e em que as mercadorias circulam por meio do escambo certamente não permaneceu completamente inalterada no intervalo que vai de 3000 a.C até 332 a.C. Cardoso registra que na segunda metade do II milênio e no I milênio antes de Cristo, por exemplo, a partir da XVIII dinastia, no período denominado Reino Novo, as sucessivas conquistas militares egípcias e a introdução de grande número de escravos, fez aparecer a figura dos “comerciantes”, sobretudo com os mercados da Ásia e da Núbia, bem como a propriedade imóvel privada, que surge com a doação pelo Estado aos funcionários públicos, sobretudo militares, de áreas de terra (CARDOSO, 1986, p. 72-73). Por outro lado, como já dito anteriormente, essas transformações não foram suficientes para extinguir as comunidades aldeãs e seu modo fundamental de existência com base na solidariedade, senão que as enfraqueceu: Ao nível das comunidades aldeãs as transformações mencionadas tiveram um impacto que as enfraqueceu, sem destruí-las. Perderam algumas de suas atribuições econômicas – como o controle do acesso à terra; ao progressos do direito privado, da estrutura familiar individualizada e das relações mercantis abalaram alguns dos laços de solidariedade comunal. A verdade, porém, é que a existência das comunidades e sua ligação estreita com o controle da irrigação persistiram no Egito tanto quanto o sistema de irrigação por tanques ou bacias, ou seja, até o século XIX depois de Cristo. (CARDOSO, 1986, p. 74). De um modo geral e com as ressalvas já destacadas, a economia egípcia manteve-se relativamente estável durante o período estudado, seguindo basicamente a mesma matriz de exploração econômica vinculada à agricultura e pecuária de subsistência, com base no regime de trocas, amplamente escorada na existência das comunidades aldeãs. 6 Considerações finais Embora a teoria do “modo de produção asiático” apresente certas incongruências, sobretudo no que tange à pretensa generalização para todas as sociedades orientais e em todos os tempos antigos, ela ainda se apresenta útil, enquanto modelo teórico, para explicação da economia de sociedades antigas, como a egípcia, desde que expurgada “das partes mortas” do pensamento de Marx e Engels (CARDOSO, 2008, p. 123). Nesse sentido, parece apropriada a afirmação de que a base da economia do Antigo Egito foi estabelecida a partir das comunidades aldeãs, as quais foram responsáveis pela produção de uma economia de subsistência suficientemente forte para sustentar o Estado egípcio antigo e lhe garantir a opulência pela qual é conhecido. A divisão de terras foi baseada na administração estatal, cabendo ao Estado, via de regra, a propriedade e aos aldeães a posse e exploração, ainda que tenham existido exceções, nas quais a propriedade era atribuída a altos funcionários estatais. Da mesma forma, o comércio foi altamente centralizado na figura rei/Estado, o qual era responsável pela circulação das mercadorias e abastecimento do consumo. A sociedade egípcia, entretanto, não foi totalmente autossuficiente no que tange ao abastecimento dos bens cobiçados por grande parte da população, normalmente bens de caráter exótico e não essenciais, o que motivou o processo de expansão territorial e as relações comerciais com outras nações, impulsionando a própria economia. Do ponto de vista da aldeia, entretanto, esta logrou ser altamente autárquica, sobrevivendo da produção agrícola e pecuária de subsistência e também do artesanato, mediante a circulação dos bens através do escambo, mantendo-se relativamente estável e sustentando a economia ao longo de milênios. 7 Referencias BAKOS, Margaret Marchiori. O Egito Antigo em busca milenar pelo raro. In: Phoînix n. 7, Rio de Janeiro: 2001. CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 2004. ________________________. As Comunidades Aldeãs no Antigo Egito. Revista Phoînix, n. 14. Rio de Janeiro: 2008, p. 96-129. ________________________. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. São Paulo: Ática, 1986. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 4. volume. Direito das Coisas. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. JACOB, Heinrich Eduard. Seis Mil Anos de Pão: a civilização humana através de seu principal alimento. São Paulo: Nova Alexandria: 2003. VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Yara Maria. A pesquisa em História. 4. ed. São Paulo: Ática, 1998.