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O HEIDEGGER TARDIO: A QUATERNIDADE, AS COISAS E O HABITAR
THE LATER HEIDEGGER: FOURFOLD, THINGS AND DWELLING
Sabrina Ruggeri1
Resumo: Este trabalho pretende esclarecer a relação entre três conceitos centrais da filosofia
tardia de Heidegger: a noção de quaternidade [Geviert] como estrutura pré-ontológica de
mundo, o conceito de coisa [das Ding] como lugar de manifestação da quaternidade em
detrimento da objetificação da técnica, e a noção de habitar [wohnen] como um modo de vida
que parte de um essencial reconhecimento da finitude humana. É o conceito de coisa que nos
conduz à análise da noção de quaternidade, pois que cada uma das quatro faces dessa estrutura –
terra, céu, divindades e mortais – revela um traço da condicionalidade das coisas do mundo.
Numa via dupla, retornamos ao conceito de coisa enquanto aquela que deve manifestar a
quaternidade, e assim atestar as condições de sua própria produção, bem como as condições da
vida que a produziu. O modo de vida capaz de produzir coisas autênticas, por sua vez, é ele
mesmo um modo de vida que reconhece e se apropria de sua condição finita: nele, o homem se
assume como mortal e assim realiza seu modo de ser como um habitar. Sua tarefa, a partir de
uma conexão essencial entre os três conceitos, é a de habitar resguardando a quaternidade nas
coisas.
Palavras-chave: Heidegger. Metafísica;.Quaternidade. Habitar. Finitude.
Abstract: This paper intends to enlighten the relationship between three central concepts in the
late heideggerian philosophy: the notion of fourfold [Geviert] as a pre-ontological structure of
world, the concept of thing [das Ding] as the place of manifestation of fourfold and the notion
of dwelling [wohnen] as a way of life that essentially recognize the human finitude. Is the
concept of thing that leads us to the analysis of the notion of fourfold, since each of the four
facets of this structure – earth, sky, gods and mortals – reveals a trace of the conditionality of
things of the world. In a double manner, we return to the concept of thing as one that must
manifest the fourfold, and thus attest to the conditions of its own production as well as the
conditions of life that produced it. The way of life able to produce authentic things in turn is
itself a way of life that recognizes and appropriates his finite condition: in it, the man takes over
himself as mortal and so accomplishes his way of being as a dwelling. His task, from an
essential connection between the three concepts, is the task of dwelling safeguarding the
fourfold in the things.
Keywords: Heidegger. Metaphysics. Fourfold. Dwelling. Finitude.
1. A quaternidade como estrutura originária de mundo
No período tardio da filosofia de Heidegger, a análise de Ser e Tempo quanto ao
fenômeno do mundo dá lugar a um conceito mais fundamental: ao invés de uma
totalidade de significância articulada numa rede de referências, o mundo recebe a
1
Mestranda em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. E-mail: [email protected]
O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
denominação de quaternidade [Geviert]2 – uma espécie de estrutura originária que
possibilita o emergir de todos os entes, e que é assim condição de possibilidade da
abertura do próprio mundo enquanto totalidade de sentido. Em Construir, habitar,
pensar, conferência pronunciada em 1951, a noção de quaternidade aponta para uma
espécie de estrutura pré-ontológica que deve acomodar cada coisa de acordo com o
lugar próprio que lhe é designado, provendo as condições necessárias para a sua
emergência no interior da articulação íntima de uma estrutura de quatro faces que se
inicia “sobre essa terra” e “sob o céu”: “Ambos supõem conjuntamente ‘permanecer
diante dos deuses’ e isso ‘em pertencendo à comunidade dos homens’. Os quatro: terra e
céu, os divinos e os mortais, pertencem um ao outro numa unidade originária”
(HEIDEGGER, 2010, p. 129). A quaternidade, por fim, é essa união de quatro faces
cuja articulação provê o nó primordial que sustenta o mundo e a emergência de todos os
entes – resta desanuviar o palavreado intencionalmente poético de Heidegger e
esclarecer o conteúdo objetivo de cada uma das quatro pontas desta figura. A primeira
faceta dessa estrutura pode ser esclarecida pondo-se lado a lado “terra” e “céu”
enquanto representantes do mundo natural – a “terra”, como aquela cuja essência
consiste em alimentar e acolher em si todas as coisas: “A terra é o sustento de todo
gesto de dedicação. A terra dá frutos ao florescer. A terra concentra-se vasta nas pedras
e nas águas, irrompe concentrada na flora e na fauna” (HEIDEGGER, 2010, p. 129); e o
“céu” como a fonte de orientação para a vida humana sobre a terra: “O céu é o percurso
em abóbadas do sol, o curso em transformações da lua, o brilho peregrino das estrelas,
as estações dos anos e suas viradas, luz e crepúsculo do dia, escuridão e claridade da
noite, a suavidade e o rigor dos climas” (HEIDEGGER, 2010, p. 129).
A principal chave de leitura para o significado que Heidegger procura desvelar
ao pôr a “terra” e o “céu” como membros da estrutura pré-ontológica de mundo é o
reconhecimento da dignidade própria à natureza: é ela quem primordialmente nos
acolhe nesse mundo e é também quem provê o verdadeiro “solo” para a nossa
existência. Aqui, Heidegger desenvolve uma crítica à tradição e seu conceito abstraído e
desnaturalizado de ser humano (YOUNG, 2000, p. 198), o qual teria se desenvolvido
junto a uma reiterada recusa em reconhecer a nossa própria materialidade e, como
consequência, o nosso pertencimento ao mundo natural: pôr o nosso ser como
essencialmente sobre essa terra é superar aquela autocompreensão excessivamente
2
Seguiremos a tradução sugerida pelo professor Ernildo Stein que prefere o termo “quaternidade” invés
de “quadratura”, modificando assim as citações diretas quando necessário.
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O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
desencarnada para demarcar o terreno do humano como estando definitivamente dentro
do mundo, no meio do ente (o que traz no mesmo passo a superação do paradigma
moderno da subjetividade, onde a determinação do modo de ser do homem como
consciência instaurava uma separação de cunho ontológico entre o conteúdo
exclusivamente espiritual de seu ser e o mundo em seu estatuto material). É com a
fixação do lugar do homem junto ao mundo, numa posição intrínseca a este, que a
relação com a natureza se transforma: ao invés de uma posição de dominação e
disponibilização de seus recursos, a natureza passa a fazer parte do modo de ser do
homem, como sua condição – no contexto tardio da filosofia heideggeriana, o mundo
natural que recebe e acomoda o ser humano é para ser cuidado e protegido: os rios, os
ventos e as montanhas não estão à espera de nossa intervenção desgovernada, mas
encontram a plenitude de seu ser no seu próprio repousar-em-si.
A abordagem da noção de quaternidade que deve orientar nossa leitura é a de
John C. Edwards, para quem o sentido da estrutura ontológica da quaternidade deve ser
compreendido a partir da questão da coisa que emerge na filosofia heideggeriana do
mesmo período, e cujo esclarecimento deve do mesmo modo passar pela noção de
quaternidade, pois que a coisa é posta no centro da reunião de quatro faces da estrutura
originária de mundo (EDWARDS, 2002, p. 121). A quaternidade corresponderia assim
à condicionalidade da emergência das coisas, quer dizer, cada um de seus quatro
elementos responde por uma dimensão particular pela qual a coisa se encontra
condicionada (numa via de mão dupla a partir de onde, ao fim da análise da estrutura da
quaternidade, far-se-á possível esclarecer o que é propriamente uma coisa). Nesse
sentido, o primeiro dos elementos da quaternidade, a “terra”, ao fazer referência ao
mundo natural e assim trazer à tona a nossa própria corporeidade, aponta para a
substancialidade da própria coisa, revelando as condições materiais de sua produção. A
“terra” representa assim a espécie de “matéria-prima” com a qual produzimos as coisas,
e sobre a qual não podemos realmente determinar um conteúdo, ou imprimir-lhe um
sentido – a “terra” definitivamente não é algo legível, ela diz respeito ao caráter de
encerramento do ser. Assim, a “terra” deve nos lembrar da condicionalidade material de
nossas vidas e da substância de tudo o que se depara conosco em nossa estadia no
mundo, desafiando-nos em sua própria obscuridade: “A terra é aquela condição da vida
humana que nos confronta com a dureza do ‘estar-aí’ de certos poderes inomináveis,
mas não ignoráveis” (EDWARDS, 2002, p. 123). Assumida como este caráter de
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substancialidade que se fecha sobre si mesmo, a “terra” é uma condição necessária de
todas as coisas.
A mesma leitura imprime ainda um sentido distinto para o elemento “céu”:
numa clara contraposição à “terra”, o “céu” deve encarnar a possibilidade de abertura de
todas as coisas, como o horizonte a partir do qual tudo é passível de iluminação. Cada
coisa só pode ser aquilo que ela é, portanto, porque antes dela já está dado o todo a
partir do qual a sua emergência é possível: todas as coisas vêm à presença sob o céu,
sob a tutela de uma abertura que procura através de suas relações o lugar adequado a
cada coisa, como o horizonte de desvelamento de todo o sentido3. Por outro lado, se a
“terra” compreende a substância de que é feita cada coisa, e nisto já aponta para o
impacto que as coisas sempre oferecem aos nossos corpos na incontornável perturbação
de sua presença, o “céu” deve se referir do mesmo modo à condicionalidade material de
nossa vida, acenando para a resistência que a natureza sempre oferece aos nossos
projetos e práticas na impessoalidade de seus ciclos, em última análise, a interferência
do inumano na nossa vida. Por outro lado, se o mundo natural oferece resistência aos
projetos humanos, é também verdade que já estamos sempre em dívida com a natureza
– nossa existência não pode ser plenamente realizada sem que se reconheça desde o
princípio o nosso pertencimento a este planeta, a esta terra.
A segunda faceta da quaternidade se encontra do mesmo modo num
espelhamento, agora não mais entre o “céu” e a “terra”, mas entre as “divindades” e os
“mortais”. À essência dos seres humanos pertence agora a capacidade de morrer, não,
contudo, como uma saída da existência rumo à aniquilação, mas uma morte que se
manifesta desde o princípio de nosso ser enquanto reconhecimento de que somos feitos
de carne e osso e de que a matéria não é um mero suporte que carrega a nossa alma.
Nós, os mortais, somos aqueles que podem e sabem morrer: “Morrer diz: ser capaz da
morte como morte. Somente o homem morre e, na verdade, somente ele morre
continuamente, ao menos enquanto permanecer sobre a terra, sob o céu, diante dos
deuses” (HEIDEGGER, 2010, p. 130). Como aponta Young (2000, p. 198), a noção de
quaternidade supera Ser e Tempo ao se desfazer da categoria demasiadamente abstrata
de ser-aí (um modo de ser desprovido de gênero e de materialidade), em nome de uma
3
Embora Edwards não indique explicitamente, sua leitura quanto aos elementos “terra” e “céu” na
quaternidade segue de perto a aparição destes conceitos no contexto de A origem da obra de arte: a
“terra” como aquela que acolhe e encerra o ente sobre si, cuidando do encobrimento necessário a todo
desvelamento e atuando assim como a condição de possibilidade para todo irromper, e o “mundo”, por
sua vez, combatendo o encerramento da “terra” pela via da iluminação do sentido que a tudo quer
entreabrir (HEIDEGGER, 2007, p. 30).
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concepção do humano que tanto não nega a realidade do próprio corpo como também
não a expulsa de sua própria constituição ontológica. Nossa pretensão de racionalidade
não é incompatível com nosso pertencimento ao mundo natural: somos entes com
necessidades materiais e capacidades espirituais. O modo de ser do mortal, contudo,
precisa ainda do espelhamento de seu contrário – daquele que é imorredouro, a
divindade: “Os deuses são os mensageiros que acenam a divindade. Do domínio
sagrado desses manifesta-se o Deus em sua atualidade ou se retrai em sua dissimulação”
(HEIDEGGER, 2010, p. 129). O lugar que os deuses ocupam na quaternidade, contudo,
é a faceta mais obscura da estrutura pré-ontológica de mundo do Heidegger tardio.
Para Edwards, as divindades da fase tardia de Heidegger são uma espécie de
presença que chega de um outro mundo como mensageira, anunciando aos mortais a
dádiva de uma existência plena e realizada. Nesse sentido, os deuses compreenderiam
de uma só vez tanto a carência fundamental da vida humana que nunca se completa em
si mesma, como a esperança de que essa dádiva anunciada algum dia lhe será
concedida. Assim, a condicionalidade específica do elemento da divindade na
quaternidade se refere à vida humana, quanto a uma carência essencial que habitaria
nosso ser, e a uma esperança escatológica em nossa relação com o futuro (EDWARDS,
2002, p. 126). Mais uma vez o esforço de Heidegger compreende simplesmente a
exposição da fragilidade do humano: somos entes incompletos, eternamente inacabados,
é parte de nossa constituição mais íntima uma carência originária que nos faz voltar
nossos olhos ao futuro e neste mesmo gesto aguardar pela dádiva de dias melhores. É o
reconhecimento dessa fratura constitutiva de nosso ser que garante uma espécie de
“postura de espera” como condição do tornar-se mortal: faz parte de nossas vidas a
esperança pela doação das graças anunciadas pelos deuses. Deuses, contudo, não são
aqui concebidos como entes sobrenaturais e personificados de quaisquer religiões –
antes, qualquer coisa que traga consigo o anúncio daquilo que é novo, que irrompe em
meio à vida humana destruindo as relações habituais, e que então nessa poderosa
entrada no mundo oferece ao mesmo tempo uma renovada esperança de que é possível
se redimir de um cotidiano indiferente e banalizado, essa coisa já está sendo ela mesma
uma divindade.
Contudo, uma outra leitura do papel das divindades na quaternidade
heideggeriana é também possível: para Julian Young, os deuses referem-se antes de
tudo a um ethos fundamental, isto é, àquelas leis em torno das quais uma comunidade se
reúne e que são assim tornadas “divinas” a partir da autoridade que adquirem para os
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membros daquela comunidade (YOUNG, 2000, p. 198). A estratégia de Young consiste
numa comparação aproximativa com Ser e Tempo: os deuses da fase tardia
corresponderiam aos “heróis” da primeira fase. Em Ser e Tempo, a única fonte de
autoridade aceitável para um humano livre e autônomo é aquela da herança cultural de
seu povo, é nessa fonte “divina” de autoridade que o indivíduo pode procurar por uma
possibilidade existencial autêntica a qual deseja seguir como se seguisse a um herói
eternizado pela memória coletiva de sua cultura. As leis humanas são assim
consideradas “dos deuses” porque são sempre trazidas até nós, elas nos chegam a partir
do “outro mundo” (assim como a autoridade da herança cultural), atravessando as
distâncias junto dos mensageiros que, contudo, não são capazes de escrever esses éditos,
mas somente encarná-los de modo exemplar: “Eles [os deuses] comunicam as leis,
antes, sendo corporificações, encarnações, exemplares paradigmáticos destas leis. Eles
não as comunicam, ou não ao menos primeiramente, dizendo-as, mas sendo, antes, os
entes que eles são” (YOUNG, 2000, p. 199)4.
Ainda acerca da quaternidade, Young empreende uma nova comparação
aproximativa entre Ser e Tempo e os escritos tardios: assim como o conceito de ser-nomundo se trata de um “conceito estrutural” (YOUNG, 2000, p. 197), e é explicitado a
partir da estrutura temporal triádica dos existenciais do ser-aí – existência, facticidade e
sentimento de situação –, a quaternidade do mesmo modo representaria um conceito
estrutural na obra heideggeriana, cujos elementos de articulação corresponderiam agora
às quatro faces de “terra”, “céu”, “mortais” e “divindades”, isto é, de algum modo a
noção de quaternidade desenvolveria um novo conceito de ser-no-mundo. Porém, o que
Young não parece reconhecer é que essa renovada estrutura não é pensada a partir do
ser humano como no caso Ser e Tempo, onde o conceito de ser-no-mundo representava
uma estrutura ontológica que punha lado a lado ser-aí e mundo numa transparente
correlação. A quaternidade da fase tardia do pensamento heideggeriano é antes um
acontecimento prévio ao humano e mesmo ao emergir do próprio mundo (ainda que não
se refira ao termo, é provável que Heidegger tenha em mente aqui o sentido de Ereignis,
isto é, a procura por novos modos de se pensar o acontecimento em que o Ser se
apropria do humano), o que dota essa estrutura pré-ontológica do caráter de condição de
4
A chave de leitura de Young nos permite reconhecer um detalhe quanto à questão da modernidade em
Heidegger: antes da “morte” nietzschiana dos deuses, o homem moderno assistiria à “fuga” das
divindades, as quais ainda fariam parte deste mundo, contudo esquecidas e inoperantes. Junto ao tema da
fuga dos deuses na modernidade, Heidegger pretende tratar do desfalecimento do poder de integração de
todo ethos: a morte do homem como um ser ético compreende assim a própria morte do homem
(YOUNG, 2000, p. 200).
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possibilidade do ser do humano. Além disso, uma leitura comparativa que identifica
uma continuidade entre as fases do pensamento heideggeriano a partir de conceitos
distintos quanto a uma estrutura ontológica de mundo encontra ainda outra barreira para
a sua autorização. Lá em Ser e Tempo, o peso ontológico dessa relação está todo do lado
do ser-aí, aquele que articula a totalidade de significância que é o mundo a partir da sua
própria projeção de sentido, e para quem o todo do ente aparece como objeto de
utilidade, subsumido ao centro de referência que se torna o ser-aí. Na fase tardia, pelo
contrário, os humanos têm de se ver mais duramente com a sua própria condição de
dependência em relação ao mundo, já que a estrutura em questão é responsável pela
doação de nosso lugar no mundo. O reconhecimento dessa condicionalidade deve
refletir no abandono da postura tipicamente moderna de dominação que sujeitava a
totalidade do ente à exploração voluntariosa, e assim inaugurar um novo relacionamento
com as coisas para além da objetificação do representar.
2. O conceito de coisa e a finitude humana
Como vimos junto à leitura de Edwards quanto aos elementos da quaternidade,
sua abordagem consiste em ler o conceito de coisa do pensamento tardio de Heidegger
segundo a capacidade desta em revelar as condições específicas de seu próprio ser – e
nesta mesma aparição, também revelar as condições da vida que a produziu, como
veremos adiante. Aqui, já está garantida a relação entre a quaternidade como estrutura
originária de mundo e as coisas que emergem a partir daí e assim asseguram o seu
pertencimento: somente a coisa assim concebida é capaz de apontar para a sua própria
condicionalidade, fazendo brilhar o todo ao qual ela própria deve o seu ser. Deste modo,
o critério utilizado para a aplicação do conceito de coisa no Heidegger tardio
compreende a exigência de que só é verdadeiramente coisa aquilo que preservar e
manifestar a quaternidade, de modo que é a própria quaternidade que leva para as
coisas o seu vigor de essência: “As coisas elas mesmas, porém, abrigam a quaternidade
apenas quando deixadas como coisas em seu vigor” (HEIDEGGER, 2010, p. 131). Essa
exigência de Heidegger encontra ressonância junto ao conceito metafísico de coisa,
principalmente em sua formulação moderna, que obriga a coisa a se enquadrar na
representação [vorstellen] do sujeito: aquele que põe algo diante de si e direcionado a si.
Nem um feixe de impressões sensíveis ao qual se acrescenta numa ordem temporal
posterior um sentido a partir da interpretação, nem um símbolo que de antemão exprime
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O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
algum conteúdo externo a si: o convite do Heidegger tardio ao seu leitor é o de que
concebamos a coisa apenas como uma coisa, sua força não deve vir de qualquer
tentativa de expressão, mas da sua capacidade de reunir em torno de si deuses e mortais,
e de integrar no mesmo passo terra e céu – a coisa reúne integrando a quaternidade 5.
Se esta pode ser dita a coisa verdadeira, então deve haver algum outro sentido em que a
coisa parece se desvirtuar de seu ser, um modo em que ela não é mais propriamente
uma coisa 6: quando esta deixa tanto de preservar como de manifestar a quaternidade
como sua condição de possibilidade, e no mesmo passo, quando a coisa, desfeita de sua
autenticidade, também não mais revela a fragilidade e incompletude da vida a partir da
qual ela emerge, ela se torna então objeto da técnica.
Deste modo, faz-se também possível uma abordagem negativa do conceito de
coisa, caminho no qual devemos encontrar a crítica exercida por Heidegger nos anos 50
quanto à realidade técnica contemporânea. A essência da técnica como armação
[Gestell] prevê o modo exclusivo de manifestação do ente segundo uma provocação
constante que o torna um mero instrumento disponível ao homem, essa disponibilização
totalitária, por sua vez, dá-se aos moldes de uma fonte de reserva [das Bestand]
administrada segundo a ordem do planejamento e do cálculo sistemático da totalidade
do ente. O principal contraste entre a coisa que desvela junto de si a quaternidade e a
coisa manifesta como dispositivo na era da técnica consiste no fato de que esta última
fica sempre aquém do reconhecimento de sua condicionalidade: as coisas da realidade
técnica encobrem as condições de sua própria produção, estas oferecem uma absoluta
adesão à vontade humana enquanto mergulhadas na impessoalidade própria daquilo
cujo ser corresponde unicamente à eficiência de sua utilização, quer dizer, os
dispositivos técnicos não oferecem qualquer resistência e assim já sempre se apresentam
como incondicionados para o uso e a manipulação humana. No mesmo passo, o
encobrimento dos objetos da técnica se dá também quanto à condicionalidade da vida
que construiu estes instrumentos: no horizonte contemporâneo da realidade técnica, esta
5
Heidegger (2010, p. 131) define a coisa como uma “reunião integradora”, reportando-se a uma antiga
palavra da língua alemã, “thing”, que também dizia “coisa”.
6
No mesmo sentido em que Zeljko Loparic aponta para a vigência de uma semântica temporal na análise
de Ser e Tempo quanto aos modos de ser da presentidade [Vorhandenheit] e da manualidade
[Zuhandenheit]: um enunciado ontológico deve ou descrever o sentido temporal de um fenômeno
originário positivo ou, neste caso, afirmar que algo não é mais isso ou aquilo – que a presentidade como
modo de ser dos objetos dados na representação não é mais a manualidade, estrutura que recebe o
primado ontológico na análise fenomenológica de Ser e Tempo, do mesmo modo em que o conceito de
coisa tardio recebe o primado junto ao modo de manifestação do ente como dispositivo técnico
(LOPARIC, 1996, p. 107-138; p. 2).
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vida é a de um humano incapaz de reconhecer tanto as suas próprias fraquezas como o
caráter insuperável de sua incompletude – uma vida que em alguma medida acredita ser
também ela incondicional. Se essa vida que constrói entes a partir de uma total
objetificação de seu entorno, concebe a si mesma como já sempre realizada e completa
em si mesma (postura que acarreta por sua vez um relacionamento prático com as coisas
do cotidiano no qual o humano acredita encontrar aí absolutamente tudo o que precisa,
onde é continuamente reabsorvido pelo fluxo da mobilização geral de um cotidiano
tecnicamente planificado), então o futuro para o qual essa mesma vida se atreve a
direcionar o olhar é sempre um futuro sem grandes novidades no qual não há nada
realmente digno de espera. Aqui, não há lugar para a esperança na mensagem divina
porque em última análise não há qualquer vislumbre de nossa condição radicalmente
incompleta – nada se espera porque nada parece faltar.
Do mesmo modo, essa vida que concebe a si mesma como incondicional e
produz coisas que escondem as condições reais de seu vir a ser, esconde ao mesmo
tempo de si mesma a sua mais profunda fragilidade: a morte como o destino certeiro.
No nível prático, o caráter extremamente impessoal das coisas que temos construído,
cuja neutralidade encarna de modo exemplar a objetificação a que nós mesmos nos
submetemos, somente alimentam as ilusões coletivas do humano como um sujeito
autocentrado e “todo-poderoso” que desconhece a mortalidade. As coisas que
construímos refletem assim a nossa própria ilusão de incondicionalidade (numa espécie
de delírio de autossuficiência): aqui, não ingressamos na quaternidade porque ainda não
nos tornamos verdadeiramente mortais. Assim, a nossa condição desapropriada de
algum modo “respinga” nas coisas que construímos: as condições de produção destas
coisas são as de uma vida mediana, homogeneizada, administrada, impessoal – as coisas
de nosso cotidiano são o testemunho vivo de um modo de vida que é nossa decisão a
cada momento. A possibilidade de entrada do humano na reunião integradora da
quaternidade parece repousar naquele movimento inicial de reconhecimento da finitude
de que fazemos parte, cuja falta mais profunda se encontra nomeada desde o princípio
de nossa vida quando de algum modo já estamos dirigidos para a morte. É esse
reconhecimento, portanto, que nos permite adentrar a quaternidade de uma só vez:
somos aqueles que sabem de sua carência fundamental e que assim se prostram cheios
de esperança diante dos deuses na espera de suas dádivas, e ao mesmo tempo, somos
também aqueles que vivem conscientes e apropriados de nosso fim inevitável, da morte
sempre vindoura.
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O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
3. O habitar como resguardo da quaternidade
Por fim, esse ingresso na estrutura da quaternidade a partir da apropriação do
homem quanto a sua condição de mortal é o sentido próprio da noção de habitar
[wohnen]. Se o modo de vida que produz os dispositivos da era da técnica, como vimos,
é permeado pela objetificação e pelo cálculo, o modo de vida que produz a coisa
conforme pensada na filosofia tardia de Heidegger, por sua vez, é antes um modo de
vida que faz aparecer a sua essencial finitude, segundo o reconhecimento de sua
condicionalidade. Deste modo, a noção de habitar no Heidegger tardio cumpre a função
de articular a questão da essência humana: o homem é enquanto aquele que habita, e
como habitante é também aquele que é antes de tudo, mortal. A conferência central para
a nossa investigação, Construir, habitar, pensar, fora pronunciada na ocasião dos
“Diálogos de Darmstadt” [Darmstädter Gesprächs II], cujo tema era “o homem e o
espaço”, neste contexto, Heidegger procura desfazer a compreensão instrumental da
relação entre habitar e construir: ao invés de construirmos para habitar, numa relação
causal em que um é o meio para a realização do outro, só nos tornamos capazes de
construir porque já sempre habitamos, pois é enquanto habitantes que construímos
coisas neste mundo, ao mesmo tempo em que habitar corresponde propriamente a
construir (de modo que construímos porque habitamos). Assim, iluminando a relação
essencial entre habitar e construir, Heidegger se atém à reconstrução etimológica do
termo “construir” [bauen]: a forma antiga da palavra, buan (que correspondia ao sentido
essencial de habitar), apresenta uma proximidade linguística com as formas conjugadas
do verbo ser (em alemão sein): Ich bin, du bist (eu sou, tu és), caminho que o conduz
para a enunciação da tese central de que o habitar corresponde ao modo de ser do
humano.
O que diz então: eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que
pertence ”bin”, “sou”, responde: “ich bin”, “du bist” (eu sou, tu és)
significa: eu habito, tu habitas. A maneira como tu és e eu sou, o
modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o
habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz:
habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à
medida que habita. (HEIDEGGER, 2010, p. 127)
O modo específico em que o habitar se dá, por sua vez, é o do resguardo:
enquanto habitante, a demora do ser humano junto às coisas deve se dar de modo
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apaziguado, num pertencimento que ao mesmo tempo o liberta para a vigência de sua
essência e o preserva do dano e da ameaça. “O traço fundamental do habitar é esse
resguardo” (HEIDEGGER, 2010, p. 129). No entanto, é importante que se observe que
este resguardo se dá numa via dupla de realização: tanto é o homem enquanto habitante
que é acolhido pelo mundo em seu livre pertencimento, como este recebe no mesmo
passo a tarefa de zelar e cuidar das coisas que pertencem ao seu lugar de morada.
Assim, o resguardo como traço essencial do habitar revela o caráter da relação do
humano enquanto habitante com o mundo, seja na dádiva de nosso acolhimento, seja na
contrapartida de nossa responsabilidade com as coisas do mundo. Por fim, o que
necessita de modo essencial de cuidado e proteção é a quaternidade enquanto o nó de
quatro pontas que sustenta de modo originário a fundação do mundo: a tarefa do habitar
é, portanto, a de resguardar a quaternidade. O próximo passo da questão consiste em
responder qual é o modo em que esse resguardo da quaternidade se dá: perguntar-se
sobre como é possível resguardar a quaternidade já é sempre perguntar sobre como é
que se realiza o nosso modo de ser como habitar, ou em outras palavras, como podemos
nos apropriar de nosso habitar.
Aqui, manifesta-se uma ideia cara ao todo da filosofia heideggeriana, a ideia de
que falar do humano já é sempre falar das coisas do mundo e de sua relação com estas,
de modo que habitar não seria possível se se tratasse somente de “...uma de-mora sobre
a terra, sob o céu, diante dos deuses, com os mortais. Habitar é bem mais um demorarse junto às coisas. Enquanto resguardo, o habitar preserva a quaternidade naquilo junto
a que os mortais se demoram: nas coisas” (HEIDEGGER, 2010, p. 131, grifo nosso).
Assim, é o cuidado com as coisas de nosso mundo cotidiano que em última análise
garante a entrada do homem na quaternidade, já que a coisa é capaz de reunir em si a
simplicidade de quatro faces que compõe o mundo que nos recebe como um lugar de
morada – parece assim que a própria essência do habitar enquanto este resguardo
fundamental repousa antes nas próprias coisas. Também é assim que o modo de vida
como um habitar, isto é, um modo de vida essencialmente apropriado de sua condição
finita e em paz com a fragilidade e incompletude de seu ser, deve produzir coisas que
revelem a condicionalidade da vida humana e da própria coisa: o homem como
habitante realiza sua essência quando constrói coisas que atestam sua finitude, e quando
cuida destas mesmas coisas para que elas preservem em si o vigor próprio da
quaternidade.
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O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
4. Considerações finais
Se a análise da quaternidade [Geviert] como estrutura pré-ontológica de mundo
nos conduziu para a compreensão genuína das coisas, isto é, o conceito de coisa [das
Ding] como manifestação da abertura primordial que lhe concede a dádiva de seu ser, e
se então a coisa verdadeiramente desvelada a partir de sua dívida para com essa
estrutura quadripartite aponta na mesma via para a condição da vida que a produziu,
alcançamos ao fim o sentido de nosso modo de ser como um habitar [wohnen]: somos
aqueles que experimentam o acolhimento do mundo, e tratam de se apropriar dessa
condição enquanto cuidam das coisas do mundo que os acolhe. Habitar é construir
coisas que manifestam e preservam a quaternidade. Se o sentido de cada uma das quatro
facetas da estrutura originária de mundo pensada por Heidegger na fase tardia de sua
obra pode ser esclarecido pondo-se a coisa em seu centro, de modo que a sua relação
com a natureza e com o homem que a produziu se desvela num só movimento, também
a coisa, retomada a partir de um questionamento originário que busca romper com a
objetificação da metafísica (cuja fase de acabamento representa a modalidade do
dispositivo técnico), vê-se esclarecida a partir da compreensão do sentido da
quaternidade, pois esta somente dura enquanto resguardada na coisa.
A coisa verdadeira, aquela que pertence ao homem e que o reconduz à sua
essência, cumpre a força dessa relação quando revela de algum modo a dívida de quem
a produziu para com a natureza, sua fragilidade quando envolto nas intempéries dos
ciclos naturais, sua incompletude diante do divino que é fervorosamente aguardado – a
coisa verdadeira manifesta o acontecimento de sua pro-dução (como um vir-à-frente)
atestando seu pertencimento à vida de um humano que deseja morrer uma boa morte. É
assim que Heidegger irá afirmar que habitar é construir desde que se preserve nas coisas
a quaternidade, quer dizer, desde que o nosso modo de vida e as coisas que construímos
a partir daí espelhem de modo fundamental o reconhecimento de nossa
condicionalidade. Contudo, se as coisas pertencem a nós porque nos as construímos e
porque a sua preservação depende do nosso resguardo, também é verdade que nós ao
mesmo tempo pertencemos à coisa assim pensada: é esta que de modo primordial nos
abre o mundo em que se faz possível um habitar, pois que é em sua substancialidade
que permanece guardada a essencial duração da quaternidade – somos primeiramente
conduzidos a um habitar pela coisa. Na coisa resplandece o fundamento sobre o qual
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O Heidegger tardio: a quaternidade, as coisas e o habitar
repousa a própria possibilidade de nossas vidas como humanos: a quaternidade que
brilha nas coisas é o lugar a partir de onde o nosso habitar acontece.
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