Monica Dias Martins

Transcrição

Monica Dias Martins
O Banco Mundial e as Políticas Públicas na América Latina
Mônica Dias Martins
1
Este trabalho apresenta reflexões preliminares de uma pesquisa em curso acerca do Banco
Mundial e dos Estados nacionais na América Latina.
2
O Banco Mundial se proclama “a maior fonte de assistência à reconstrução e ao desenvolvimento
das nações”. Há mais de meio século, sucessivas missões visitam numerosos países, negociam as
condições para efetuar empréstimos, diagnosticam problemas e propõem soluções, estabelecem
diretrizes e metodologias para as políticas públicas. Assim, muitas iniciativas dos Estados
nacionais são inspiradas, financiadas e monitoradas, em detalhes, por um organismo multilateral.
Na América Latina, onde o Banco Mundial opera desde 1949, persistem os desafios para constituir
nações soberanas. A histórica concentração da terra, a fome e a pobreza crescentes, a extrema
desigualdade social, a migração de vastos contingentes do campo para as cidades, a dominação
política de potentados rurais, entre outros problemas, desqualifica os trabalhadores como
cidadãos.
Com o intuito de apreender as formas pelas quais o Banco Mundial intervém na formulação de
políticas públicas nacionais, inicialmente, examino sua organização interna. A quem interessou sua
criação? Que normas regulam as relações entre os países-membros? Por quem e como são
tomadas as decisões? Analiso, a seguir, suas premissas ideológicas, que compreendem tanto a
elaboração como a difusão de paradigmas e conceitos, detendo-me, em particular, na noção de
pobreza. Considerando que as populações rurais são afetadas com maior intensidade pela
pobreza, estudo as políticas agrárias orientadas pelo Banco Mundial. Discuto os principais
resultados de uma investigação sobre o modelo do mercado de terras, a partir dos casos do Brasil,
Colômbia, Guatemala e México.
Esses são os primeiros passos para compreender o papel do Banco Mundial na manutenção do
capitalismo, da hegemonia norte-americana e das classes dominantes na América Latina.
1
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e
coordenadora do Observatório das Nacionalidades, grupo inter-institucional de pesquisa vinculado à
Universidade Federal do Ceará (UFC).
2
Projeto de pesquisa com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
1. A Instituição
Em 1944, por iniciativa do presidente Franklin Delano Roosevelt, realizou-se a Conferência
Monetária e Financeira das Nações Unidas. O Acordo de Bretton Woods favorecia a expansão da
nova potência Ocidental: acesso às matérias-primas das ex-colônias européias, livre comércio para
seus produtos e facilidade para investir nas economias estrangeiras. Representantes de 44 países
presentes
aprovaram
Desenvolvimento)
e
a
do
criação
FMI
do
(Fundo
BIRD
(Banco
Monetário
Internacional
Internacional),
de
Reconstrução
desempenhando
e
funções
complementares. Ao BIRD, conforme o artigo I dos Estatutos Constitutivos reformulados, compete:
“dar assistência à reconstrução e ao desenvolvimento das nações-membros , facilitando o
investimento de capital para fins produtivos , promover o crescimento equilibrado do comércio
internacional, no longo prazo, e manter o equilíbrio da balança de pagamentos”.
Excetuando-se as nações européias, arrasadas pela 2ª Guerra Mundial e beneficiadas pelo Plano
Marshall (1948), os primeiros países a receber recursos do BIRD para investimento nos setores
industrial e de infra-estrutura foram Brasil, Chile, Colômbia e México. No período da Guerra Fria, os
financiamentos destinavam-se aos governos aliados do bloco ocidental, liderado pelos EUA.
Os projetos para os pequenos produtores rurais e para os pobres urbanos surgiram durante a
gestão de MacNamara (1968-1981). O estrategista da Guerra do Vietnã, Secretário de Defesa dos
presidentes John Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1968), ficou famoso por seus
discursos de “combate à pobreza” e pela reorganização administrativa do Banco Mundial, similar à
que ele havia protagonizado no Pentágono, nos anos 1960.
Com a crise da dívida externa e a ascensão da doutrina neoliberal, o Programa de Ajuste
Estrutural
tornou-se a principal meta a ser implementada pelas instituições financeiras
internacionais. As medidas propugnadas pelo Consenso de Washington (1989) pioraram as já
precárias condições de vida de grandes contingentes populacionais. Na América Lati na, entre 1981
e 2001, a população que sobrevivia com menos de US$ 1,00 por dia aumentou de 36 para 50
milhões de pessoas. A afirmativa consta do relatório Perspectivas da Economia Mundial 2004,
divulgado durante a reunião do Banco Mundial e do FMI, em abril daquele ano.
“Aliviar a pobreza” tem sido uma preocupação constante do Banco Mundial, que também
concentrou sua atenção nos problemas ambientais e de discriminação da mulher. Como
reconhecem os documentos oficiais, “a pobreza global pode afetar adversamente as nações mais
ricas, visto que os mercados e as oportunidades de investimentos encolhem, o meio ambiente fica
prejudicado, e as pessoas migram em busca de trabalho e renda”.
3
Não parece improvável que, na atual administração de Wolfowitz, tal preocupação do Banco
Mundial venha a identificar-se com outra igualmente obsessiva para o governo dos EUA: o
3
O Banco no século XXI. Disponível em www.obancomundial.org.br .
2
“combate ao terrorismo”. Para muitos, o fundador do Instituto Projeto para um Novo Século
Americano e mentor do documento Reconstruindo as Defesas da América é o principal arquiteto
intelectual da “guerra ao terror”.
Estrutura Organizativa
O grupo Banco Mundial, sediado em Washington, é constituído por uma única presidência e cinco
instituições: BIRD, Corporação Financeira Internacional (1956), Associação Internacional de
Desenvolvimento (1960), Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos
(1966) e Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (1988).
Com 184 Estados-membros e atuando em cerca de 100 países, o Banco Mundial restringe seus
empréstimos aos integrantes do FMI. As assembléias anuais, realizadas conjuntamente pelas duas
entidades, revelam a consonância de pensamento e ação existente entre elas. Segundo seus
Estatutos, os empréstimos independem do regime político. Na prática, há sanções: Cuba está
ausente desde o ano seguinte à Revolução (1959), o Brasil foi preterido no período de 1958 a
1964, e o Chile durante o governo de Allende (1970-1973).
Formalmente, a instância máxima do Banco Mundial é o Conselho de Governadores, do qual
participam representantes dos Estados -membros, via de regra,
Ministros das Finanças ou
equivalente. De fato, as resoluções sobre orçamento, empréstimos, gastos com operações,
estratégias de assistência são tomadas por apenas oito países (Alemanha, Arábia Saudita, China,
Estados Unidos, França, Inglaterra, Japão e Rússia), detentores de uma cadeira permanente no
Conselho de Diretores-executivos composto por um total de 24. As demais nações, agrupadas em
16
blocos, elegem, a cada biênio, seus representantes. O voto é proporcional à contribuição
monetária do país (cotas-parte do capital subscrito), em vez de respeitar o princípio “uma nação,
um voto”, que rege o sistema da Organização das Nações Unidas (ONU). Como o maior acionista,
17,87% das ações, o governo dos Estados Unidos decide as matérias importantes que requerem
85% dos votos, tem prerrogativa de veto e indica o presidente da instituição, tradicionalmente um
norte-americano.
Sistema Financeiro
Os fundos destinados a projetos individuais ou setoriais da iniciativa privada e pública se originam,
em sua maioria, nos mercados internacionais de capital, mediante a venda de títulos. Os bancos
centrais dos Estados-membros também contribuem subscrevendo cotas de capital, de acordo com
sua situação econômica, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB). Nas décadas de 1970 e 1980,
quase a metade do dinheiro arrecadado pelo Banco Mundial provinha dos países exportadores de
petróleo, como a Venezuela.
Seus clientes preferenciais costumam ser países de extrema concentração de renda. Isto não se
deve ao compromisso com a “redução da pobreza” previsto nos documentos, mas à preferência
3
por governos que ofereçam melhores condições aos investidores estrangeiros, tais como mão-deobra abundante, barata e disciplinada, que tenham bons antecedentes de crédito, ou seja, paguem
os encargos da dívida externa, e que garantam flexibilidade à legislação trabalhista, previdenciária,
sindical, de proteção à indústria nacional e aos recursos naturais.
Os empréstimos vinculam-se, geralmente, a projetos setoriais diversos -energia, petróleo e gás,
mineração, transporte, telecomunicações, irrigação, agricultura, desenvolvimento rural, saúde,
educação, serviços urbanos, pequenas empresas, turismo- bem como a projetos de reforma do
Estado. Para cada dólar que entra no país ao contratar empréstimos com o Banco Mundial, é
exigida uma contrapartida em moeda nacional, o que pode interferir na elaboração de orçamentos
públicos nacionais, na medida em que parte das receitas está comprometida antecipadamente com
propósitos determinados pela instituição internacional.
Boa parte dos empréstimos do Banco Mundial retorna aos seus maiores acionistas. Em 1993, as
potências que integram o G-7 contribuíram com 46,5% e receberam 53%, na modalidade de
contratos de consultoria e compra de equipamentos.
4
O dinheiro repassado diretamente às
empresas contratadas para executar serviços e obras gera um mercado estratégico para a
manutenção do capitalismo. Essa sistemática de liberação dos recursos beneficia as corporações
multinacionais em detrimento dos países, obrigados a importar produtos que poderiam ser supridos
pela indústria local. É o caso, por exemplo, do Brasil. Na década de 1960, a produção nacional
abastecia o mercado interno de equipamentos pesados para hidroelétricas. Vinte anos depois,
cerca de 80% desses equipamentos eram importados, sendo ¾ dos recursos oriundos do BIRD e
do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).
É imperativo para a sobrevivência do Banco Mundial que ele possa expandir continuamente seus
empréstimos, garantindo, a qualquer preço, o pagamento dos juros de modo a não perder a
confiança do mercado financeiro global e dos Estados doadores. Ao final da década de 1980, as
quinze nações mais endividadas, entre elas dez da América Latina, transferiam maiores quantias
ao Banco Mundial, via pagamento de juros, do que recebiam na forma de novos empréstimos.
5
Recrutamento e Formação de Quadros
O corpo técnico do Banco Mundial foi, originalmente, integrado por burocratas das ex-colônias
européias. Na gestâo de MacNamara, ingressam diversos funcionários do Pentágono. A partir dos
anos 1970, a universidade torna-se o celeiro onde são arregimentados os profissionais a serviço
do Banco Mundial. Engenheiros e economistas constituem o núcleo da elite tecnocrática, de
inspiração keynesiana e defensora do planejamento estatal. À época, emergem os grandes temas
4
Alex Hittle, The World Bank (Washington D.C.: Friends of the Earth, 1993).
5
The Economist, 12-18 de outubro de 1991. À época, os quinze países mais endividados do mundo eram
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, Filipinas, México, Marrocos,
Nigéria, Peru, Uruguai, Venezuela e a ex-Iugoslávia.
4
desenvolvimentistas: crescimento, distribuição de renda, modernização. A mudança de rumos
políticos durante o governo Reagan (1981-1988) afeta o pensamento e a conduta do Banco
Mundial. A nova geração da “Escola de Chicago”, com suas estratégias neoliberais, seus modelos
quantitativos, seus ciclos de projetos, sua terminologia própria (mercado, produto, cliente), assume
proeminência na instituição.
A progressiva assimilação, nos quadros do Banco Mundial, de técnicos oriundos das Organizações
Não-Governamentais (Ong’s), de especialistas em ecologia, em movimentos sociais e de cidadania
não altera substancialmente a orientação dominante. Na perspectiva desses críticos do Estado, o
fracasso dos projetos financiados pela instituição internacional, se porventura existissem, não seria
atribuído às políticas de ajuste estrutural, mas à persistência do clientelismo, da corrupção e do
tráfico de influência dos governos locais. Nos países ditos “pobres”, predominariam práticas
estatizantes e corporativistas do passado.
Trabalham no Banco Mundial cerca de 8 mil empregados de 140 nacionalidades, distribuídos na
sede e em 67 escritórios locais. Utilizando-se da extensa base de dados existente na biblioteca
conjunta das entidades de Bretton Woods, funcionários regiamente pagos gozam de prestígio nos
círculos acadêmicos e no meio técnico, nas esferas pública e privada. Seu desempenho é avaliado
pela eficiência e rapidez na execução das tarefas, fatores cruciais para o Banco Mundial. A
padronização de métodos e procedimentos, própria das burocracias, permitiria apontar soluções
simples para os intrincados problemas do desenvolvimento. Assim, a “estratégia de assistência ao
país” estaria apoiada em normas e critérios técnicos, consoante a
imagem de seriedade e
neutralidade que se espera de um organismo internacional.
A uniformidade da ação do Banco Mundial parece aparente; não há razões para crer que inexistam
tensões internas. As disputas pelo controle da instituição entre banqueiros e administradores
públicos, as divergências quanto à importância do Estado ou do mercado na promoção do
desenvolvimento, os conflitos entre os defensores da participação da sociedade civil e os
contestadores de seu envolvimento permeiam os 60 anos de sua existência. Hoje, as diferenças
se manifestam na noção de pobreza, que polariza as atenções da hierarquia do Banco Mundial.
2. O Poder das Idéias do Banco Mundial
O Banco Mundial se apresenta como “um dos maiores produtores de conhecimento e de
experiências sobre questões de desenvolvimento humano e redução da pobreza”.
6
Sua atuação
compreende a popularização de paradigmas e a disseminação de idéias e valores que tanto
influenciam as demais agências internacionais, as corporações multinacionais, as organizações
6
Folder do Banco Mundial, Centro de Informações ao Público (PIC), Brasília, s/data.
5
governamentais e não-governamentais, os círculos acadêmicos, os setores privados e os meios de
comunicação como também dependem dos vínculos estabelecidos com eles. Profissionais dos
mais diferentes matizes ideológicos elaboram a partir de seus conceitos, reproduzem suas
análises, utilizam suas fontes de dados. As eventuais mudanças de terminologia não alteram,
substancialmente, o núcleo do pensamento do Banco Mundial: o fundamentalismo do mercado.
Este seria o principal agente “estruturador” não apenas da economia mas também das relações
sociais e políticas.
A lógica da modernização, que prevalece no discurso e na ação do Banco Mundial, pressupõe a
necessidade de ajuda externa, mediante a transferência de capitais e tecnologias, às regiões
subdesenvolvidas. Suas prescrições integram um receituário único para todos os países e se
baseiam, principalmente, na apropriação privada dos bens naturais de propriedade comunal ou
pública -tais como florestas, rios, terras, minerais- bem como no aumento da produtividade -com o
uso intensivo de técnicas modernas de produção e gestão para poupar gastos com mão-de-obra.
A pobreza, medida em termos de renda monetária absoluta (menos de US$ 100) ou relativa
(menos de 1/3 da renda nacional), constituiria um problema de povos atrasados. Os pobres seriam
um obstáculo ao desenvolvimento, nem se beneficiando de seus resultados nem contribuindo para
sua consecução.
O caso da Colômbia é exemplar. Em 1950, uma missão do Banco Mundial recomendava a
migração incentivada dos agricultores e a formação de um setor agropecuário moderno,
destacando-se a expansão do rebanho bovino para abastecer o mercado norte-americano de
proteína animal. O principal entrave ao crescimento do país seria o número excessivo de
camponeses. Torná-los eficientes e produtivos só faria piorar a situação, pois haveria mais gente
no campo. Para reduzir parte dessa população, caberia, ou atraí-la para as cidades, ou expulsá-la,
não de acordo com as leis naturais da economia, mas mediante um choque: a guerra poderia
substituir um programa econômico de mobilidade acelerada. Desde então, tais idéias guiaram os
planos de sucessivos governos daquele país.
7
Para ajustar as economias nacionais à dinâmica internacional, o Banco Mundial tem encorajado
um caminho inverso ao percorrido pelas nações desenvolvidas , que protegeram a agricultura e a
indústria, apoiaram-se predominantemente em seus próprios capitais e tecnologias, fortaleceram a
poupança e o mercado interno. As políticas de liberalização, desregulamentação, flexibilização e
privatização aumentaram a pobreza, quando não provocaram um colapso institucional, como
ocorreu na Argentina, em dezembro de 2001. Cuba, que fez as reformas estruturais mantendo os
7
A missão foi presidida por Lauchlin Currie, autor do livro Desarollo econômico acelerado (México: FCE,
1968).
6
gastos com as políticas sociais (cerca de 30% do PIB), teve um crescimento médio de 4,1% ao
ano, acima do índice de 1,3% registrado na América Latina, no período de 1994 a 2002.
8
Visando redefinir o conceito de pobreza, numa perspectiva multidimensional, o Banco Mundial
contrata universidades e organizações não-governamentais (ONG´s) para realização de estudos.
9
Apesar de o tema ser objeto de freqüentes debates, o Banco Mundial parece não ter em conta as
causas da pobreza ao examinar os resultados de suas políticas. Estas podem até beneficiar alguns
pobres, porém a pobreza persiste. Quem são os pobres? Como eles se tornam pobres? Os pobres
não estão à margem nem excluídos, como se tornou usual afirmar em relatórios, na literatura, na
imprensa. A pobreza não é ausência de capitalismo, mas sua conseqüência, fruto da expropriação
das terras e da exploração do trabalho.
A maior agência pública internacional constitui um elemento-chave do sistema multilateral de
poder. Sua liderança financeira, política e intelectual resultou de uma acirrada competição por
recursos e prestígio com a ONU.
10
Apesar de ser um órgão especializado das Nações Unidas , o
Banco Mundial manteve, frente a esta, uma conduta independente. Ambas as entidades
ambicionavam assumir a vanguarda na condução da economia mundial. Financiamentos
generosos por parte dos países industrializados, intimidação econômica, pressões políticas,
represálias e negociações foram fatores decisivos para o Banco Mundial expandir suas idéias e
atividades. Dessa forma, firma-se como gestor das políticas de desenvolvimento.
11
A atuação do Banco Mundial apóia-se, em larga medida, na coordenação de vários programas de
cooperação com a ONU, inclusive a CEPAL; na definição de diretrizes dos bancos regionais de
desenvolvimento, a exemplo do BID; na influência sobre os termos dos acordos bilaterais e dos
fundos de investimento, como o Fundo de Investimento para o Meio Ambiente; na aproximação
com as entidades educacionais, particularmente aquelas dedicadas à pesquisa e à produção de
conhecimentos científicos , como as universidades; nas conexões que cultiva junto à grande
imprensa, aos movimentos sociais e às ONG´s .
O relacionamento da poderosa burocracia do Banco Mundial com os governos possibilita constante
ingerência no destino das nações , em particular daquelas de economia débil, acentuada pobreza e
poderio militar limitado, a exemplo das latino-americanas . Importantes deliberações que dizem
8
CEPAL, Política social e reformas estruturais em Cuba em princípios do século XXI (2004). Disponível em
www.cepal.org
9
Banco Mundial, Alguém pode nos ouvir? Vozes de 47 países (Washington D. C.: mimeo, 1999).
10
Os estudos da economista norte-americana Cheryl Payer, The World Bank: a critical analysis (Nova
Iorque: Monthly Review Press, 1982) e da organização South Centre, La reforma de las Naciones Unidas
(Montevideo: Instituto del Tercer Mundo, 1998) oferecem um maior detalhamento das relações entre o Banco
Mundial e as demais agências internacionais.
11
Ver artigo de Nicolas Guilhot, pesquisador do Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália), publicado
em Le Monde Diplomatique, nº 558, ano 47, setembro de 2000.
7
respeito aos Estados nacionais, via de regra, são tomadas no estrangeiro. Interferindo nos
assuntos internos e na política exterior destes países, o Banco Mundial não mede esforços para
inseri-los em um mercado dominado por corporações multinacionais. Determinando prioridades no
gasto das finanças públicas, através da contrapartida em moeda nacional aos empréstimos
contraídos em dólar, garante o pagamento dos juros da dívida externa. Impondo e supervisionando
as políticas econômicas dos Estados credores, impede-os de serem competitivos e afeta a
sobrevivência de seus cidadãos, um contingente estimado em 4,8 bilhões de pessoas, em sua
maioria desempregadas, subempregadas ou praticando a informalidade.
Assim, governantes eleitos democraticamente, por vezes, deixam de atender a problemas vitais de
seus povos e abdicam de compromissos com a soberania nacional. Alegam não ter melhor
alternativa de acesso aos créditos internacionais e acatam as orientações dos bancos multilaterais,
inclusive as relativas à governabilidade. Esta é definida como “a capacidade das autoridades
nacionais de reduzir a dívida externa de seus países a níveis administráveis e reformar as
instituições públicas para torná-las eficientes”.
12
O paradigma da governabilidade, ao tempo em
que reduz as funções do Estado, justifica o envolvimento de instituições financeiras internacionais
em questões internas dos países onde opera, como, por exemplo, na elaboração de leis e políticas
que definem o uso e a ocupação do território nacional.
O Banco Mundial tem sido objeto de contestações, que se intensificam e diversificam, sobretudo a
partir dos primeiros anos do século XXI. Generalizam-se as pressões e as críticas de ex-diretores,
governantes, intelectuais, jornalistas, dirigentes sindicais, lideranças populares, ativistas de direitos
humanos. O teor desses questionamentos é limitado, em sua maioria, ao malogro das metas
propostas nas “estratégias de assistência” aos países, à inadequação de suas diretrizes ao
objetivo de “alívio da pobreza”, às crises ambientais, econômicas e sociais provocadas pelos
empréstimos. Em decorrência, são encaminhadas reivindicações para proceder a reformas
administrativas e estabelecer mecanismos de participação. Como só se fazem demandas a quem
se reconhece o poder de atendê-las, resulta que tal postura reforça, às vezes inadvertidamente,
sua imagem como principal autoridade em questões de desenvolvimento.
O Banco Mundial parece propenso a aceitar que o processo decisório não é democrático e
transparente. E se fosse, o que mudaria? Este grupo adota uma conduta conciliadora, não nega
sua razão de ser e persiste em seus propósitos originais: incentivar o investimento direto
12
Para o Banco Mundial e o FMI as autoridades nacionais não costumam agir com firmeza em aspectos
relevantes para o monitoramento das políticas macroeconômicas, a exemplo da corrupção. Portanto,
competiria a eles prestar assistência técnica aos países, de modo a garantir transparência das contas
governamentais, efetividade na administração dos recursos públicos, estabilidade da economia e ambiente
regulado para a atividade do setor privado. Governance, the World Bank Experience (Washington D.C., 1994)
e Good governance: the IMF´s role (Washington D.C., 1997).
8
estrangeiro e garantir a própria segurança contra possíveis prejuízos causados por conflitos e
catástrofes, sob a justificativa de “aliviar a pobreza” nas regiões em desenvolvimento.
3. As Políticas Agrárias do Banco Mundial na America Latina
A análise da repercussão das atividades do Banco Mundial no que tange à elaboração de políticas
públicas, como, por exemplo, a reforma agrária, evidencia as dificuldades para constituir nações
democráticas. Na maioria dos países da América Latina, apesar das transformações em curso na
agricultura, esta conserva traços herdados do período colonial: o latifúndio, a monocultura, a
produção para o mercado externo. Em conseqüência, persistem os obstáculos econômicos,
sociais, políticos e culturais para concretizar a democratização do acesso a terra.
Essas considerações ajudam a refletir sobre o sentido das políticas agrárias perseguidas pelo
Banco Mundial desde 1995. Reconhecendo que a concentração fundiária existente nos países do
Terceiro Mundo gera “uma situação política instável, com desemprego rural, desordens civis e
violência armada”, o Banco Mundial propõe como solução a “reforma agrária de mercado”.
13
Ela
deve ser analisada, primeiramente, como a difusão para o mundo dos trabalhadores rurais, de
premissas neoliberais. Seu principal objetivo é atenuar os impactos negativos da abertura,
unilateral, contínua e ostensiva, do setor agrícola ao mercado internacional.
O modelo do mercado de terras
Uma ampla pesquisa acerca das políticas agrárias do Banco Mundial mostra que, independente de
processos nacionais cultural e politicamente distintos, a fórmula para intervir no quadro fundiário
era uma só: o mercado de terras.
14
De acordo com este modelo, cujo pressuposto é a ineficiência
do Estado, a livre negociação entre compradores e vendedores de terra asseguraria maiores
investimentos do setor privado em áreas rurais, o que traria crescimento econômico e “redução da
pobreza”.
Para testar a eficiência de sua proposta, o Banco Mundial começou a implementá-la em países
instáveis, como a Colômbia. O Brasil foi incluído sob a alegação de que a intensidade das
ocupações massivas de terra colocava em risco os direitos de propriedade e os ajustes estruturais.
Na ótica da Instituição, uma experiência bem-sucedida no Brasil seria vital para a pretendida
extensão a outras nações do modelo, que se convencionou denominar de “reforma agrária de
mercado”.
13
Conferência de Agricultura do Banco Mundial, Reforma agrária assistida pelo mercado (1995).
14
A pesquisa foi feita na África do Sul, Brasil, Colômbia, Filipinas, Guatemala, Índia, Indonésia, México,
Tailândia e Zimbabo. Os resultados constam do livro organizado por Mônica Dias Martins, O Banco Mundial
e a Terra: Ofensiva e resistência na América Latina, Ásia e África (São Paulo: Viramundo, 2004).
9
O Banco Mundial desaconselha a desapropriação de terras, quer pela resistência das elites quer
pela radicalização dos conflitos. Ao pagar a terra pelo preço de mercado, esses empecilhos seriam
superados e se alcançaria a pacificação do campo. Embora as diretrizes do Banco Mundial
proíbam a alocação de recursos próprios para a compra de terra pelos trabalhadores , ele tanto
provê empréstimos para infra-estrutura e administração, como estimula os governos a criar linhas
de crédito fundiário, os chamados “bancos da terra”, com dinheiro do país ou de outros doadores.
Em tese, os agricultores pobres teriam acesso a recursos para adquirir terras dos grandes
proprietários. A intenção do Banco Mundial é comprar terra daqueles que estão dispostos a
vender, pelo preço que estão dispostos a pedir. Assim, a distribuição aconteceria e a pobreza seria
reduzida.
Facilidades do M ercado de Terras
Sendo a modernidade um dos mitos legitimadores do discurso neoliberal, a política do Banco
Mundial é descrita como moderna, enquanto os que a ela se opõem, com ações ou idéias,
representariam o tradicional. Ao negociar sua proposta com os diversos governos, o Banco
Mundial aponta as vantagens de seu modelo em comparação ao velho estilo de reforma agrária,
no qual o Estado intervém com medidas expropriatórias e distribui aos camponeses as terras
arrecadadas dos latifundiários.
O mercado de terra contribuiria para regularizar o caos fundiário e assegurar o direito de
propriedade aos investidores. O título alienável permitiria ao proprietário vender a terra, empenhála como garantia para solicitar crédito e associar-se em um empreendimento com uma companhia
privada. Este argumento tem sido usado para justificar a criação de um mercado de terras na
Guatemala, único país latino-americano que não dispõe de um sistema de cadastro fundiário
nacional. A importância desta medida, reivindicada pelas comunidades e negligenciada pelos
governos , até o Banco Mundial oferecer ajuda, é inegável. Sua lenta implantação deve-se às
acirradas disputas por terras, fruto da expropriação secular das posses indígenas, dos litígios de
fronteiras e dos 36 anos de guerra civil.
15
O mercado serviria, também, para ampliar a oferta de terras mediante a privatização de áreas
públicas e comunais, pois as terras privadas existentes seriam insuficientes para satisfazer à
demanda dos agricultores . No México, o programa do Banco Mundial está providenciando o
mapeamento, o parcelamento e a titulação individual dos ejidos, áreas de propriedade comunal
criadas após a Revolução de 1910. A mudança, na Constituição, do artigo referente à reforma
agrária integra um pacote de reformas neoliberais, que inclui, além das privatizações do ejido, do
15
Laura Saldívar Tanaka e Hannah Wittman, Acordos de paz e fundo de terras na Guatemala. In: Martins
(São Paulo: Viramundo, 2004).
10
gerenciamento da irrigação e de empresas públicas , o Acordo do Livre Comércio da América do
Norte (ALCA).
16
E, ainda, o mercado de terras inibiria práticas corruptas, interferências paternalistas e
procedimentos burocráticos comuns a processos de desapropriação dirigidos pelo Estado. A
execução dos programas fundiários, no Brasil, é descentralizada do âmbito federal para órgãos
estaduais e associações comunitárias com o intuito de acelerar e baratear o acesso a terra. Apesar
do novo arranjo administrativo, estes vêm apresentando os mesmos problemas de fraude,
supervalorização de imóveis, desvio de recursos, morosidade... Sem assistência técnica e frente a
uma política agrícola desfavorável, os trabalhadores dificilmente poderão saldar suas dívidas. A
compra e venda de terras, em detrimento da desapropriação por interesse social prevista na
Constituição, vem sendo c ontestada pelos movimentos que lutam pela reforma agrária.
17
Conseqüências do Mercado de Terras
As políticas agrárias do Banco Mundial afetam a vida das populações do campo bem como as
atividades dos Estados nacionais na América Latina. A tendência do mercado é a de ensejar
concentração, desigualdade, injustiça, instabilidade, concorrência. Atribuir a ele a função de
democratizar o acesso a terra significa eximir o Estado de suas competências constitucionais. Nos
países latino-americanos, a modernização agrária favoreceu a grande propriedade, seja
“tradicional” ou “moderna”, e destruiu ou integrou a pequena propriedade ou posse.
O modelo do mercado de terras foi implantado, via de regra, em áreas com um complexo sistema
de posse e gestão comunal da terra, da água e das florestas . Ao introduzir o parcelamento da
terra e, portanto, a noção de propriedade privada, o que geralmente ocorre é a dissolução das
práticas de múltiplo uso e cooperação, além do agravamento das lutas entre famílias que
habitavam essas áreas. A ordem pretendida pelas “forças do mercado” é percebida pelas
populações camponesas, indígenas e negras como injusta, pois agride crenças, costumes e
sentimentos há muito estabelecidos .
As ameaças potenciais ou reais à sua concepção de vida e identidade cultural estão na base das
ações diretas que evidenciam o crescimento da resistência camponesa à política neoliberal do
mercado de terras. A Via Campesina, uma articulação que congrega entidades de mais de 60
países, promove seminários, discute estratégias de luta, propõe alternativas e elabora documentos
16
Laura Saldívar Tanaka, A reforma agrária mexicana: do ejido à privatização. In: Martins (2004).
17
Manuel Domingos Neto, O novo mundo rural, e Sérgio Sauer, A terra por uma cédula: estudo sobre a
“reforma agrária de mercado”. In: Martins (São Paulo: Viramundo, 2004).
11
de denúncia, constituindo-se em uma importante referência internacional. No momento, tem como
prioridades a defesa da produção agrícola nacional e a soberania alimentar.
18
A liberalização da economia trouxe prejuízos para os agricultores, elevando os custos de produção
e rebaixando o preço de seus produtos , o que dificulta honrar os compromissos assumidos com a
compra da terra. A garantia do título de propriedade pode ser anulada, caso seja usado com fins
de especulação, efeito inevitável do desenvolvimento de um mercado de terras. A alternativa de
vender a propriedade acarreta a relatifundização e a concentração de renda. Na Colômbia, o
programa está se convertendo em um “mercado entre pobres”: pelo lado do comprador, a maioria
das 13 mil famílias beneficiadas não pode pagar as prestações do imóvel adquirido; pelo lado do
vendedor, são pequenos e médios proprietários arruinados pela abertura econômica que oferecem
suas terras, não os latifundiários. Diante dos resultados pífios, o Banco Mundial destina cada vez
mais recursos às “associações produtivas” entre agricultores capazes e segmentos empresariais,
localizadas nas zonas monocultoras.
19
A dinamização do mercado, através de financiamento público para compra de terras privadas , é
uma forma de capitalizar o latifundiário, mediante a alienação das piores áreas e o pagamento de
altas quantias. As negociações de terra são realizadas em condições desiguais. Ao contrário dos
grandes proprietários, os trabalhadores interessados em comprar terras vivem em extrema pobreza
e se submetem não apenas a preços inflacionados como a juros elevados. Sem assistência técnica
e frente a uma política agrícola desfavorável, os “beneficiários” dificilmente poderão saldar suas
dívidas. A “reforma agrária de mercado” tem sido útil para subsidiar os grandes proprietários nos
momentos de dificuldades financeiras e garantir a ampliação de seus negócios rurais.
A política do mercado de terras do Banco Mundial desperta sentimentos de identidade e reações
das camadas populares , provoca mobilizações de massa, unifica lutas de organizações
camponesas e favorece o retorno da questão agrária à agenda dos governos, após décadas de
ditaduras militares na América Latina. Entretanto, nega, além da democratização da terra, a efetiva
participação dos trabalhadores rurais nas decisões sobre o quê, quanto, como e para quem
produzir. A intervenção do Banco Mundial se orienta por interesses contrários à reforma agrária,
definida como um processo de transformação das relações de produção e poder. Esta constitui
uma reivindicação histórica dos movimentos sociais e é imprescindível para a solução de graves
problemas associados à construção das nacionalidades na América Latina.
18
Flávia Barros, Sérgio Sauer e Stephan Schwartzman, Impactos negativos da política de reforma agrária de
mercado do Banco Mundial (Brasília: Rede Brasil, 2003).
19
Héctor Mondragón, Colômbia: mercado de terras ou reforma agrária, eis a questão. In: Martins (São
Paulo: Viramundo, 2004).
12

Documentos relacionados