Aparecido Raimundo de Souza

Transcrição

Aparecido Raimundo de Souza
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Parada de Sucessos
CELES
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Aparecido Raimundo de Souza
PARADA DE SUCESSOS
2012
São Paulo - SP
Editora Sucesso
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6
Coordenação editori al
Denise Barros
Revi são
Carina Bratt
Projeto gráfico e
Di agramação eletrôni ca
Celeiro de Escritores
Capa
Claus Ritter
Impressão digital e acabamento
Prolgráfica
www.celeirodeescritores.org
© 2012 Celei ro de Escri tores
S719p
SOUZA, Aparecido Raimundo de
Parada de Sucessos/ Aparecido Raimundo de
Souza. São Paulo/SP :Ed. Sucesso, 2012.
100 p. ; 21 cm.
ISBN 978-85-89091-87-9
1. Histórias curtas. 2. Sexo-Ficção. I. Souza,
Aparecido Raimundo de. II. Título.
82-32, 82-311.2
© 2012 Aparecido Raimundo de Souza
BRASIL
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ÍNDICE
PRIMEIRO LUGAR
Inconfundível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Refúgio para cornos avariados”)
09
SEGUNDO LUGAR
Três lágrimas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Havia uma ponte lá na fronteira”)
17
TERCEIRO LUGAR
Ciclo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “O vulto da sombra estranha”)
25
QUARTO LUGAR
Sufoco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Cinco contra 1”)
29
QUINTO LUGAR
Anjo noturno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “A outra perna do saci”)
37
8
SEXTO LUGAR
Liungua preusa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Refúgio para cornos avariados”)
45
SÉTIMO LUGAR
Fanhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Como matar sua mulher sem deixar vestígios”)
51
OITAVO LUGAR
O gesto supremo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Cinco contra 1”)
57
NONO LUGAR
Fofoqueiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “A outra perna do saci”)
65
DÉCIMO LUGAR
Infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(de: “Quem se abilita?”)
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PRIMEIRO LUGAR
Inconfundível
(de: “REFÚGIO PARA CORNOS AVARIADOS”)
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NO BERÇÁRIO DA MATERNIDADE, O MOLEQUINHO
ASSEDIA A GAROTINHA. Puxa conversa.
Menininho:
— Oi, gatinha! Não me lembro de ter visto você antes de hoje!
Menininha:
— Realmente. É a minha primeira vez. Na verdade, acabei de
chegar.
Menininho:
— Que legal! Eu também acabei de ser colocado aqui! — E
continua. — Eu sou um menino!
Menininha:
— Como sabe?
Menininho:
— Espera a enfermeira virar as costas que eu lhe mostro.
Cinco minutos depois a enfermeira deixa a sala e se afasta
silenciosamente. A garotinha ataca.
Menininha:
— Pronto, ela saiu.
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Menininho:
— Quietinha. Ela vai voltar. Esqueceu de acender a luz.
Menininha:
— É mesmo. Não havia percebido esse detalhe...
Realmente a enfermeira retorna e acende uma espécie de abajur
especial que invade o ambiente de forma suave, deixando a
sala quase em penumbra.
Menininha:
— Então, ela se foi.
Menininho:
— Calma. Você é bem apressadinha.
Menininha:
— Nem tanto. Levei nove meses para nascer.
Menininho:
— Eu também...
Menininha:
— Quem falou?
Menininho:
— Um homem alto, de branco.
Menininha:
— Ele usava uma máscara no rosto?
Menininho:
— Usava. E tinha um bigode engraçado...
Menininha:
—... E também carregava um negócio esquisito em volta do
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pescoço que de vez em quando colocava nos ouvidos?
Menininho:
—Sim. Aquele é o doutor pediatra. Aquilo que ele usa se chama
estetoscópio. Serve para ouvir o coração.
Menininha:
— Você é bem sabido para um piá na sua idade.
Menininho:
— Tenho por mania observar as coisas.
Menininha:
— Está gostando desse lugar?
Menininho:
— Não, tudo muito parado. E você?
Menininha:
— Achava melhor de onde eu vim. Era mais quentinho. Lembro
que ficava toda encolhidinha, às vezes dava uns chutes. Ai ouvia
a voz de mamãe, depois de papai... Aqui, além de frio, é meio
triste!
Menininho:
— Concordo. Pra falar a verdade estou cansado de ficar
olhando para o teto.
Menininha:
— Eu idem. Olha, você está me enrolando. A enfermeira deu
no pé faz um bom tempo. Não vai retornar tão cedo. Agora me
conta: como sabe que é homem?
Menininho:
— “Jo lo se!...”.
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Menininha:
— Quer deixar de ser exibido? Fale português claro. Além de
tudo ainda pronunciou as palavras de forma errada. Não se diz
“jo...
Menininho, interrompendo bruscamente:
—... Ta. Foi mal!
Menininha:
— Pois então: como sabe seu sexo? Você disse que ia me
mostrar. Deixa de papo furado e vamos direto ao assunto.
Menininho:
— Mocinha intransigente, você. Mas ta ai: gostei do seu jeito...
Vamos nos dar bem.
Menininha:
— Ande logo.
O pequeno levanta um pouco a coberta e cochicha.
Menininho:
— Olha aqui.
Menininha:
— Onde?
Menininho:
— Aqui.
Menininha:
— Estou olhando, mas não estou vendo nada!
Menininho:
— Como não está vendo nada? O troço está visível!
Menininha:
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— Ué, pode até estar, mas eu não estou vendo mesmo.
Menininho:
— Levanta um pouco a cabeça.
Menininha:
— Pronto!
Menininho:
— Viu?
Menininha:
— Não. Afinal, o que é que tem ai?
Menininho:
— Estica o pescoço, criatura. Parece que nasceu cansada!
Olha o tamanho...
Menininha:
— ...Deixa de ser bobão. Já estiquei o pescoço e realmente
não vi nem estou vendo porcaria nenhuma. Tamanho! Tamanho
de quê?
Menininho:
— Não é possível. Vira um pouco de lado.
Menininha:
— Assim?
Menininho:
— É. Conseguiu?
Menininha:
— Ah, agora deu pra perceber...
Menininho:
— Legal. Diga então o que você realmente viu?
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Menininha:
— Nossa! Preciso fazer isso?
Menininho:
— O que você acha? Fala logo. Acho que você está mentindo.
Não viu coisíssima nenhuma. Ou se viu está com vergonha...
Menininha:
— ...Vi sim. E não estou com vergonha de nada. Seu moleque
idiota!
Menininho:
— Você chegou onde eu imaginava. É como havia previsto:
você não viu porcaria nenhuma.
Menininha:
— Vi. Eu vi. E não me chame de mentirosa.
Menininho:
— Você me xingou primeiro. Disse que sou idiota.
Menininha:
— Ta desculpe.
Menininho:
— Está desculpada. Agora para me deixar bem alegre e levantar
meu astral, desembucha. Diz ai, minha linda, o que foi que você
viu?
Antes de responder a mocinha se abre num sorriso encantador.
Menininha:
— Seu sapatinho. É preto!
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SEGUNDO LUGAR
Três lágrimas
(de: “HAVIA UMA PONTE LÁ NA FRONTEIRA”)
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EU CHOREI PELA PRIMEIRA VEZ NA MINHA VIDA
quando meu casamento com Dalva desmoronou, soterrado por
visões sonâmbulas, no árduo facho da angustia dos estertores
mais sombrios. Contava vinte e poucos anos, era muito jovem
e imaturo. Entre rastros de violências mal cuidadas, parecia um
nômade na busca constante da plenitude pessoal. Nenhuma
experiência me conduzia à frente, principalmente a de convivência
a dois. Na cabeça, um vazio de múltiplas formas não deixava
os pensamentos tomarem chão. Se às vezes cogitava abrir o
peito na tentativa de modificar as coisas mais corriqueiras,
secretos ventos sopravam contrariamente, e levavam, para
longe, esses desejos mais veementes. Por isso, não havia a
quem recorrer para pedir conselhos. Fazia o que dava na telha,
como Lúcifer nas trevas, o espírito resistindo às fúrias do inferno,
batendo, constantemente, com os costados n’água. Morávamos
em um subúrbio apodrecido de São Paulo, e, nessa época, eu
prestava serviços a meu pai. Estudava faculdade à noite. A
cidade, demasiadamente provinciana, consumia a existência dos
dias numa luta suprema de atribulações mórbidas. O povo, em
si, tacanho e restrito a dogmas antigos, não oferecia condições
de perspectivas melhores. Tudo girava em torno de enervante
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rotina. Um belo dia, acorrentada dentro do próprio ego, Dalva
partiu. Foi embora como o vento gasoso transformado em
furacão. Levou mala e cuia, e, a tiracolo, arrastou nosso filho
Eduardo.
Por esse motivo, pouco ou quase nada recordo dele. O que
guardo, são frágeis mimos, retratos intermediários do único
aniversario que conseguimos realizar juntos, nada mais. Se olho
no espelho e questiono respostas, o silêncio exaurido me cerca
e violenta bem fundo o coração. Se penso no garoto ou experimento arrancar lembranças do passado, apenas flui a negação
de um grito sufocado na garganta seca. A toda hora, fantasmas
iracundos transpõem os umbrais do imensurável e me amedrontam. Geram, no cérebro, cenas abjetas de um filme triste e
melancólico que não gostaria de rever. Deparo com feridas
abertas cujas chagas não cicatrizaram. Resumo esse tempo
observando que muito cedo, na minha vida, ficou tarde demais.
Comecei a namorar, andavam altas, as horas no relógio da
desesperança. Aos vinte, portanto, o húmus da solidão
denegrida, já havia envelhecido os dias e escurecido, sobremaneira, meu risonho e cálido amanhã...
EU CHOREI PELA SEGUNDA VEZ NA MINHA VIDA
quando meu relacionamento amoroso e afetivo com a Carla
complicou mais do que devia. Naufraguei, de repente, nas águas
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gélidas de um mar enfurecido e me acorrentei em porões mal
cheirosos, onde lâmpadas e grades se confundiam com despojos
de um fim de aurora traçado por mãos incógnitas. Nessa época,
já diplomado, nascia do estardalhaço do anel de grau à vontade
de seguir carreira e me tornar um advogado brilhante. Na casa
dos trinta, ganhava a vida sepultando os meses com os poucos
clientes que apareciam no escritório. Carla, a jovem esposa,
moldava seus projetos a instintos soltos; construía um universo
sem subterrâneos. Nas horas de folga, trabalhava comigo na
função de secretaria. Também estudava as ciências jurídicas e
pretendia, mais a frente, ser alguém de raízes, pontilhando
caminhos em busca de crepúsculos não fecundados. Antes de
providenciar o divórcio com Dalva (a primeira mulher),
passamos a dormir interiorizado sono, acordar com a alquimia
do pôr do sol, a dividir tarefas e afazeres embaixo do mesmo
teto. Dessa união, olhos e pensamentos navegando idêntico
curso, futuro e pretérito interligados em igual verbo, nasceu
Narjara. Todavia, o destino se esvaiu nos contornos da
repetição e dividiu espaços. De súbito, veio o fim. Com ele,
rusgas, gritos, lágrimas molhando o espelho, reservando, uma
vez mais, novas incertezas e dissabores. Cada um seguiu por
sendas opostas. Ânsias solfejando rimas desconexas desenharam um poema melancólico em derredor do que restou de
um amor que parecia eterno.
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Na verdade, foi dura a visão que entrou pela janela na qual me
debrucei cansado, vencido, magoado, tentando ver lá fora, na
multiplicação do pesado silêncio, o vazio que permaneceu depois
que ela (igualmente de bolsas e malas) passou a mão em
Narjara, bateu a porta de casa alçando voo em direção a incerto
porvir...
ENTÃO EU CHOREI PELA TERCEIRA VEZ NA MINHA
VIDA. Desta feita, não por casamentos destruídos, ou por
invasões de sofrimentos no alagadiço da alma em frangalhos.
Derramei lágrimas em trêmulo mistério pelo nascimento de
Amanda, minha filha com Marlúcia. A miudinha chegou, num
mastim sonoro, bebendo o orgulho que crescia ao meu redor.
Abriu os olhinhos assistida por bons médicos, maternidade de
primeira linha, tudo a tempo e a hora. Eufórico, nutrindo a certeza
do mortal esplendor, não cabia, no corpo, o contentamento
que fluía de dentro do meu coração. Preparei sonhos para o
esperado dia. Ensaiei piqueniques, acordei quimeras de um
adormecido desejo de explosão refreado na alma. Deixei que
florescesse a esperança, como uma canção inocente rasgando
o crepúsculo. E ela coroou eterna estrela, efêmera luz divinal,
anjo descido do espaço. Mas trouxe, porém, no lábio superior,
um pequeno corte desfigurando o rostinho de boneca. Foi, na
verdade, um choque, um baque tremendo que consumiu parte
de mim. Senti-me como o faminto sem o pão para aplacar a
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fome visceral, como a dor incômoda na pele do enfermo
descrente, como a fé que se matou de tédio no peito de um
condenado à morte. Senti-me como se alguém atirasse,
inopinadamente, um balde de água fria, com afoiteza descomedida em nove meses de espera, cercados de preparações e
surpresas. Todavia, Amanda, meses depois, cirurgiada, voltou
ao normal. Do quadro antigo somente fotos selecionadas em
álbuns de família. Uma fita de vídeo mal gravada. Um pedaço
da história, da pureza, da infância que logo se tornou remota.
Evidentemente que essa lacuna não ficará adormecida, ou
esquecida no “para sempre”. Amanhã, ou depois, já mocinha,
Amanda, irá por certo, indagar por essa fase da sua estrada. É
o livro que ao ser folheado não poderá estar faltando nenhuma
página, mesmo que essa página traga, à tona, acontecimentos
e lembranças que deveriam ficar enterradas.
Amanda, hoje, grita o universo a plenos pulmões. É flor em
botão, barco de alegrias singrando águas tranquilas. Minha filha
saltita, pula, corre, ri o rostinho marcado por uma tênue e quase
apagada cicatriz. Ingênua pétala misturando esperança e perdão
em frashes endereçados a Deus. Seu olhar é um pouquinho
triste, com certeza, é um pouquinho triste. Quando a vejo (o
dedinho polegar esquerdo na boca), me ponho a imaginar o
que fiz de errado para ser castigado através dessa inocente?
Ao mesmo tempo, me alegro interiormente, porque numa
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determinada intermitência do destino, entre espinhos e chagas,
entre acertos e desacertos, entre idas e vindas, nesse encontro
especial (por que não?), ela chegou como uma esperança sem
par, iluminando com fulgor descomedido, meus passos incertos.
Essa mocinha quer queira eu, ou não, mudou radicalmente os
horizontes que pairam sobre minha cabeça —, e, mais que isso,
— me fez acreditar piamente, que lá do alto, bem acima das
nuvens visíveis, alguém gosta um bocadinho assim, de mim.
Barriguinha (como a trato carinhosamente) me consagra ao seu
esbanjamento de vida plena e eu me sinto inteiramente realizado
e feliz por ter tido a sorte de ser escolhido para ser seu PAI.
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TERCEIRO LUGAR
Ciclo
(de: ”O VULTO DA SOMBRA ESTRANHA”)
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— UM DOS MEUS BARMANS PEDIU A MÃO de uma
das garotas que servem as mesas...
—... Alguém que eu conheça?
— Sim a Centopeia.
— O cara tem bom gosto. A jovem é um pedaço de mau
caminho. E ai, ela aceitou?
— Não só aceitou como ficou tão feliz que passou a rodopiar
feito uma despirocada, pelo salão, até que...
—... Tropeçou e derrubou os copos num freguês chato, igual
aconteceu comigo, quando eu dei a ela, uma gorjeta generosa?
— Antes fosse. Centopeia foi até a adega, passou a mão numa
garrafa de vinho, chamou o tal rapaz que se enamorou dela,
subiu com ele no palco, tirou as coisas do sujeito pra fora,
despejou o vinho e passou a chupar o pau do coitado na frente
de todo mundo.
— Os fregueses devem ter adorado!
— De fato. Amaram! Dia seguinte, meu chapa, a casa lotou.
Tinha gente saindo pelo ladrão.
— Então você está saltitante... Os bolsos cheios, etc, etc...
— Deveria, não fosse um incidente acontecido ontem à noite.
— Que incidente?
— Centopeia se dirigiu ao caixa, levantou a saia da minha
mulher, arriou a calcinha e, num gesto até agora inexplicável
enfiou a língua no cu dela.
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QUARTO LUGAR
Sufoco
(de: “CINCO CONTRA 1”)
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TIBÚRCIO CAREQUINHA, O MAIS NOVO LOUCO DO
PEDAÇO, havia chegado de outro sanatório não fazia uma
semana. Viera transferido, pois aprontara além dos limites e o
diretor não aguentava mais olhar para a cara dele. O sujeito
não parecia um doido desses que se veem todos os dias, ao
contrário, às vezes fazia coisas de gente normal, noutras perdia
o controle e mordia os próprios olhos, arrancando da boca
uma velha dentadura, e, com ela, dando a entender que mastigava os órgãos da visão como se tivesse saboreando um delicioso naco de carne. Tão logo se viu solto, no pátio, para o banho de sol, junto com os demais internos, achou, no chão, não
se sabe como (talvez por descuido de algum funcionário), uma
dessas facas enormes de cozinha, bem afiada, jogada num canto, perto do portão que acessava um imenso jardim. De posse
dela, o primeiro que cruzou na frente resolveu correr atrás.
O infeliz era o Benedito Torrado, um sujeitinho boa praça, que
prestava serviços na enfermaria. Tibúrcio correu para cima dele,
a arma na mão, atitude ameaçadora.
— Em guarda, vou te pegar para fazer picadinho...
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Benedito Torrado, ao se deparar com o sujeito vindo em sua
direção jogou para o alto umas caixas de remédios que trazia e
danou a correr e a gritar:
— Socorro, pelo amor de Deus, alguém me ajude!
O alerta chamou a atenção dos demais. O pátio inteiro, repleto
de doentes, se transformou numa plateia muda e indiferente,
cheia de rostos desfigurados, a maioria com a boca aberta,
alguns babando, outros dialogando com o vento, mas, no geral,
todos sem denotar um pingo de calor humano.
Na verdade Benedito estava desesperado, temeroso, as faces
petrificadas, as pernas bambas. Tibúrcio não queria saber de
nada. Com a faca na mão esquerda, dava a impressão, não de
um louco varrido, mais se assemelhava a um animal sanguinário
à cata da sua presa.
— Por tudo quanto é mais sagrado: alguém faça alguma coisa!
Os que trabalhavam em outros pavilhões, bem como os da
administração, pararam com seus afazeres, levados pelo clamor
dos berros de Tibúrcio, e, mais ainda, pelo sufoco do pobre do
enfermeiro. Sem exceção, todos arregaçaram as mangas e se
puseram a acudir, ou pelo menos tentar obstacular que o
aloprado transformasse o desditoso numa vítima fatal.
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De um minuto para outro, uma pequena multidão corria, estabanada, de um lado para outro, na esperança de deter o desmiolado do Tibúrcio. Todavia, a criatura, com a arma empunhada,
se esquivava ligeira, arisca, ao tempo que desenhava golpes no
ar, e, por essa razão, não havia quem ousasse chegar muito
perto. O diretor geral foi acionado. Largou o café e voou para
o hospital. Enquanto isso, nada parecia deter Tibúrcio e a sua
faca de lâmina afiada.
— Vou te pegar! Vou te pegar!
A cena, não fosse por demais hilariante, poderia até ser filmada,
e, certamente, daria uma boa vídeo cacetada, num desses programas de televisão onde seus apresentadores fazem chacota
e ganham ibope exibindo as mazelas de seus consanguíneos,
tirando, claro, a agonia do enfermeiro com Tibúrcio grudado
nas costas dele, rindo, gesticulando e fazendo caretas esquisitas.
A galera tentava, em vão, botar as mãos no maluco, mas o filho
da mãe demonstrava uma agilidade com as pernas e um raciocínio muito rápido e acima de qualquer suspeita.
Benedito Torrado, por seu turno, não aguentava mais lutar, ou
melhor, correr em círculos, voltando sempre ao mesmo ponto
de partida, sem achar uma saída segura. Sentia que a vida estava
por um fio, que os seus trinta anos andavam prestes a ser arrancados pelo corte certeiro de uma faca de cozinha nas mãos de
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um débil mental completamente fora de si.
Atônito e sem saída, se debulhava em lágrimas copiosamente.
Quase sem ar, fizera xixi nas calças e não via como se livrar
daquela figura hostil que, a cada minuto, mais e mais se aproximava, para lhe desfechar o golpe de misericórdia.
Certo que não morreria só. A turma de amigos, o diretor, a
secretária do diretor, os estagiários da seção de informática e
até dois seguranças se puseram em auxílio, mas ninguém, na
verdade, se atrevia a peitar Tibúrcio e lhe tomar a coragem que
carregava na mão fortemente armada pela presença fatídica da
faca assassina. Acionaram a polícia militar.
Dezoito soldados fortemente armados partiram para o hospício.
— Nada de revólveres. Esse Zé Mané é apenas um louco.
Não atirem, por favor...
O médico psiquiatra também deu as caras assim que telefonaram
para o consultório dele:
— Doutor, o que fazemos?
— Tragam a camisa de força.
— Sem violência.
— Sem violência? E o que é que estamos assistindo aqui? Por
acaso os dois mocinhos ali resolveram brincar de pega-pega?
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Completamente baqueado e sem forças, finalmente o louco do
Tibúrcio conseguiu encurralar o Benedito Torrado num canto
em que não havia por onde escapar. Ou o cidadão morria de
susto ou se deixava matar. Foi exatamente nessa hora que o
enfermeiro perdeu o controle, a compostura, a vergonha. Sujou
a roupa branca toda de bosta.
Vendo Tibúrcio, a dois passos dele, a faca reluzindo apontada
em sua direção, caiu de joelhos e implorou:
— Não me mate amigo. Não me mate. Não lhe fiz nada. Leve
em conta que tenho mulher e uma filhinha com menos de uma
semana de vida para criar.
Na cauda de Tibúrcio uma massa de amedrontados estancara,
sem ação, parada, colada ao chão, estática, sem respirar. Nem
a polícia que deveria entrar em ação teve o bom senso de fazer alguma coisa útil que colocasse um fim definitivo naquele
martírio.
Aconteceu, então, o inesperado, o imprevisível. Tibúrcio entregou a faca na mão trêmula do enfermeiro, e, na maior cara de
pau, disse para o desgraçado:
— Tome. Agora é a sua vez. Eu saio desembestado e você
dispara nos meus calcanhares!
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QUINTO LUGAR
Anjo noturno
(de: “A OUTRA PERNA DO SACI”)
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PACU DA CABEÇA VERMELHA SABIA QUANDO a
gostosura da vizinha do 301 estava em casa. Morava no 201,
o que lhe proporcionava, na pacífica contemplação dos sons
produzidos por ela, uma viagem ao faz de conta, em que
meditações bucólicas embaraçavam sua alma de homem
solitário. De repente, se via no meio da cena, como se estivesse
lá em cima, ao lado dela, igual um poeta sentado e embevecido
com o sussurro das árvores docemente agitadas pelo calmo
sibilar do vento.
A misteriosa moradora — dona de um corpo escultural e perfeito
— reunia todos os encantos do ser ideal com os quais qualquer
sujeito normal sonharia. Em razão disso, Pacu se tornou
perdidamente apaixonado. Uma paixão delirante, inconsequente, desenfreada e inexplicável. Uma paixão que
impregnava nas paredes pequenos nuances de senilidade,
misturados com momentos de furor e de ciúmes, mesclados
com pitadas de reviravoltas de ternura e lágrimas.
A linda chegava sempre por volta das cinco horas da manhã.
Estivesse dormindo ou não, acordava com o barulho dos sapatos
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dela nos degraus. Moravam, ambos, num prédio antigo, de
três andares, onde se acessava as residências por uma escada
de corrimão amarelo. Logo que entrava em casa, a jovem ia ao
banheiro. Ouvia a tampa da privada sendo abaixada às pressas,
e, depois, a descarga acionada. Em seguida, ela se dirigia para
o quarto. Livrava os pés dos sapatos altos e os toc, toc, toc,
toc, contra o piso de cerâmica cessavam. Movia a porta de
algum tipo de guarda-roupas ou algo semelhante, o que produzia um diálogo rústico entre o ato de ser aberto e o ranger das
dobradiças, como a de uma gata assustada soltando um miado
fora de tom. Pacu da Cabeça Vermelha imaginava, a partir
desse instante, que ela se despia completamente das roupas
usuais. Tinha início uma série de andanças calmas e suaves como
o de um desabrochar de flores. Naturalmente, a catita circulava
nua, ou só de calcinha. Tudo não passava de simples deduções
devido à convivência, o apuro dos ouvidos e a meticulosidade
nas observações. Do quarto ela entrava no banho. Abria a
torneira. Sobressaiam, então, os ruídos da porta do boxe sendo
acionada, do chuveiro quente ligado e da água escorrendo pelo
ralo. O fragor desse asseio corporal durava meia hora, quarenta
minutos, às vezes mais. Outros estalidos de menor importância
vinham em auxílio das repetições desses sons, até que,
inesperadamente, se tornavam fracos, como se a donzela
sumisse em pleno ar. Mas não. Em meio ao curto silêncio, ela
logo dava sinais de que estava lá, bem viva e esvoaçante. Ligava
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a televisão. Vozes e tiros, gemidos e berros substituíam a
calmaria reinante. A bela surfava nos canais à procura de algo
que preenchesse vazios ou espantasse a solidão.
O passeio durava um segundo. Logo esquecia o controle e se
atinha ao reprodutor de CDs. A voz adocicada de Ana Carolina
(ela adorava Ana Carolina) tomava conta do ar, se misturava à
magia da quase manhã, perdia a timidez e saia pela janela, como
leve brisa balouçando ao acaso. “... Eu quero te roubar pra
mim, eu que não sei pedir nada, meu caminho é meio perdido,
mas que perder seja o melhor destino...”. Pacu, embalado por
essa tranquilidade inabitual, e, inebriado pela voz da intérprete,
dava a seus devaneios uma cor risonha, saia literalmente do
chão, como se flutuasse. Voltava à vida quando os ponteiros
do relógio passavam das onze e meia da manhã.
Uma bela madrugada, por volta das quatro da matina, despertou
com passos diferentes no corredor. Não os dela, mas de alguém
oposto aos hábitos a que se acostumara. Apurou os sentidos.
Ouviu, então, a voz grave de um homem, e, tal constatação,
bastou para lhe fazer mergulhar em horríveis visões. Seu mundo
caiu. Desmoronou, veio a baixo. A sedutora moradora do 301,
realmente, trouxera, consigo, um “estranja” a tiracolo. Estava
patente a sua presença no pedaço, e, por mais que quisesse,
não poderia simplesmente fazer de conta que não se importava.
_________________PARADA DE SUCESSOS
42
Deixar a coisa pra lá, meter o travesseiro sobre o rosto e tentar
conciliar o sono, bem sabia, seria humanamente impossível.
Afinal, de onde vinha esse cuidado sem razão? Por que essa
preocupação descomedida com aquela jovem? Não era nada
sua, nem um simples laço de amizade mantinha com ela. Que
ganharia se metendo em sua vida? Sabia que a ocupante do
apartamento acima do seu, se assemelhava a uma dessas deusas
hollywoodeanas, só vista nos cinemas, mas, e daí? Vezes sem
conta forçara encontros. Chegou ao cúmulo de mandar flores
e bombons com nomes trocados. Quando se esbarravam, fosse
saindo ou chegando, trocavam apenas ligeiros acenos de
cabeça, ou “olas” insossos. Num desses tropeços fugidios, certa
vez, ela lhe dirigiu um sorriso seco e sem a indicação de que
pretendia manter uma amizade duradoura ou qualquer coisa
equivalente.
Entretanto, a ida daquela graciosa para a cama, com o tal sujeito
que viera de contrapeso, avançou para seus tímpanos como
um cortejo melodramático aos toques de uma música sombria
e brutal. Não a de Ana Carolina, “... Eu vou contar pra todo
mundo, eu vou pichar sua rua, vou bater na sua porta de noite,
completamente nua, quem sabe, então assim, você repara em
mim...”, mas, um batidão simultaneamente duro e solene, no
qual se misturava o pensamento fixo enroscado nos dois
Aparecido Raimundo de Souza__________
43
abraçados, atarracados, quem sabe, num beijo de língua,
rolando, por certo, sobre os lençóis e os gritos de prazer daquela
fêmea estupenda, durante o ato, e, após, saciada pelo apogeu
do gozo supremo, o descanso merecido. Essa loucura aparentemente infantil fez com que os pensamentos desordenados
explodissem em ondas de um frenesi impetuoso. Pacu da
Cabeça Vermelha se viu, de repente, em meio a uma multidão
horrorosa de fantasmas circulando em volta de si. Como se tivesse sido atirado, sabe-se lá por quem. A esse quadro lúgubre,
se juntaram barulhos ensurdecedores, gemidos, gargalhadas,
gritos e urros distantes que outros tantos, vindos, talvez das
profundezas de prédios vizinhos, pareciam responder. Uma
coisa, porém, restou clara. A formosa do 301, a partir daquele
momento, perdera, para ele, seu caráter de nobreza. Deixou
de ser a princesa que morava em um castelo de mimos dentro
de seu coração desafortunado e vazio para se transformar numa
figura ignóbil e grotesca.
Decidiu que, a partir daquele instante, era chegado o tempo de
esquecer a moça de uma vez. Para sempre. Dar um basta.
Deixar de sofrer por quem nem sabia da sua existência. Colocar
uma pedra enorme em cima. Faria isso ou acabaria louco,
vivendo uma fantasia que não levaria a nada, nem a lugar nenhum.
Caminhou até o freezer. Abriu uma cerveja bem gelada. Fritou
uns tira-gostos. “... Eu quero uma lua plena, eu quero sentir a
_________________PARADA DE SUCESSOS
44
noite, eu quero olhar as luzes, que teus olhos não me tem deixado
ver, agora eu vou viver...” De volta ao quarto, escolheu um
pornô e botou pra rolar. Repetiu a cerveja, depois outra e mais
outra. Diante do aparelho de DVD, fartou os desejos incontidos
num cinco contra um em homenagem à musa graciosa que brilhantemente coadjuvava no filme. A campainha tocou. “Quem
poderia ser àquela hora?” Pelado, as mãos sujas da recente
punheta, não se preocupou em pegar uma toalha e se cobrir.
Estava grogue, a cabeça em pandarecos. “Que se foda! –
pensou. – Seja quem for, isso não é hora de bater na casa de
ninguém”. Destrancou a chave assoviando Ana Carolina. “...
Eu não vim aqui, pra entender ou explicar, nem pedir nada pra
mim, eu vim pelo que sei, e, pelo que sei você gosta de mim, é
por isso que eu vim...”. Escancarou a porta até o canto. Espanto
total. Diante dele, a gostosura da vizinha do 301. Aparecido Raimundo de Souza__________
45
SEXTO LUGAR
Líungua preusa
(de: “REFÚGIO PARA CORNOS AVARIADOS”)
46
47
O ADVOGADO INDICA UMA CADEIRA PARA o rapaz
que acaba de entrar em sua sala. Antes de sentar, o moço tira
da cabeça um chapéu ensebado e o coloca sobre a mesa cheia
de papéis e processos.
— Aceita água gelada?
— Nãu, oubriugaudo.
— Um café?
— Tenhu qui paugar?
— Claro que não. É por conta do escritório.
— Entãu eu aceitu um caufé.
O causídico chama a secretária pelo interfone e solicita que
traga a bebida para dois.
— Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?
— Adeugeusto Fumouso.
— Pois não. O que está acontecendo?
_________________PARADA DE SUCESSOS
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— Mueu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia
leuvou eule paura a deleugaucia.
— Sabe o motivo?
— Seugundo o pouliciaul de plauntão, roubo de uma mouto.
Mas já fuoi tuudo deuviudamente esclaureucido.
— Mas ele continua detido?
— Nãu. Acaubou de ser liubeurado. Souto, aufiunau, está em
causa, grauças a Deuus. Soulto!
A serviçal chega com a bandeja e serve os dois homens em
silencio:
— Senhor, açúcar ou adoçante?
— Auçuucar, pour fauvour.
— Não entendi cavalheiro!
— Aucho meulhor toumar aumaurgo meusmo.
Terminada essa tarefa, a jovem retorna à recepção.
— Bem, seu Adegesto...
—... Adeugeusto...
—... Seu amigo não está mais na delegacia?
— Grauças a Deuus, nãu.
— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se
chama, afinal, esse seu amigo? Souto ou Solto?
— Orlaundo...
—... Mas o senhor disse à minha colega, ainda a pouco, que
seu amigo Souto foi...
—... Nãu, nãu diusse. Fui buem clauro coum eula. Faulei o
Aparecido Raimundo de Souza__________
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seuguinte: que o meu aumiugo Orlaundo... De ounde eussa
criautuura tiurou eusse taul de Souto?
— O que o senhor falou, afinal, para minha sócia e colega de
profissão?
— Que meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas augoura nãu estáu
mais...
—... Mais o quê?
— Na deuleugaucia com o doutour deuleugaudo.
— Então ele foi realmente solto?
— Fuoi. Diaunte diusso eu vium auté auqui agraudecer, puois
nãu vuou mais preucisar de seus serviuços. Taumbém sauber
se deuvo aulguma couisa coum reulaução a hounourarios.
— Tudo bem, o senhor não me deve nada. Apenas gostaria de
um pequeno esclarecimento. Estou pra lá de confuso. Desculpe
a insistência. Seu amigo é o Souto?
— Nãu, doutor. Por tuudo quaunto é mais saugraudo.
— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender.
O Souto foi preso e agora está solto?
— Souto e Soulto nuunca estiuveuram preuso. Preuso eustauva
o Orlaundo...
Risos.
— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira?
— Nãu senhour. Clauro que nãu.
— Então...?
—... O Orlaundo, coumo eu diusse, eustauva preuso, e,
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augoura, eustá souto. Enteunde o que diugo? Eule augoura eustá
soulto. A counfusão touda no meu eunteunder eustá aui.
O doutor da lei, impensadamente, resolve brincar com o cliente.
Fala, ou melhor, arremeda o infeliz de forma grotesca:
— Iusso nus leuva a councluir que eule reualmeunte estauva
preuso, e, augoura, nãu eustá maius. Aucertuei?
O sujeito se enfurece. E com razão. Fora de si, desfere um
soco na mesa. Por pouco não derruba o restante do café:
— O senhour pour aucauso reusoulveu tiurar saurro da miunha
caura e me gouzar?
— De forma alguma.
O cidadão, bastante trêmulo, se levanta enraivecido, passa a
mão no chapéu ensebado, vira as costas e sai da sala.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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SÉTIMO LUGAR
Fanhos
(de: “COMO MATAR SUA MULHER
SEM DEIXAR VESTÍGIOS”)
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DOIS DESCONHECIDOS (um indo, outro vindo) se esbarram, sem querer, na movimentadíssima Avenida Paulista,
centro de São Paulo. Um deles se vira e ataca:
— Borra, bara, bue berda! Bolhe bor bonde banda. Bé bego?
Brecisa be bengala?
— Bue boi bue biz?
— Bacabou be bisar bo beu bé.
— Beu?
— Bim!
— Bão bui beu...
—... Béééééé besmo? Be bem boi? Bo bapa?
Sentindo no ar uma possível discussão, a curiosidade começa
a juntar público. Uma pequena multidão se agrupa em torno
dos contendores e torce para ver logo o desfecho.
— Bentão: bor bacaso boi bo bapa?
— Beu bapato. Bomo bode ber, beu bisante besquerdo bé
besgo.
— Bele bo buê?
— Bé bêsgo.
— Bão bestou be bentendendo, bamigo. Bor bentileza, bepita.
_________________PARADA DE SUCESSOS
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— Bêsgo, bêesgo.
— Beja blaro. Bale bortuguês borreto.
— Bestou balando. Bocê bor bacaso bé burdo?
— Bou bo buê?
— Burdo, burdo!
— Burdo bé ba benhora bua bãe.
— Ba bua!
— Bão, ba bua. Bamos beça besculpas. Bisou beu bé.
— Be bá balguém bue brecisa bedir besculpas baqui bessa
bessoa be bo beu bapato.
Mais gente começa a parar afoita e boquiaberta. Ninguém se
mete. Só espia e se diverte com a desavença dos dois homens.
— Bale bireito bara. Buem?
— Beu bapato.
— Boxente be bele bala?
— Be bez bem buando...
—... Bentão banda bele be bedir besculpas bogo. Bão bosso
bicar bo bia bodo baqui. Bamos bestou besperando.
— Bestá bo buê?
— Besperando, besperando. Bão ba bendo?
— Bão bestou bé bentendendo. Bocê bempre balou bassim?
— Bassim bomo?
— Benrolado?
—Bão bude be bassunto. Beça besculpas be bigo beu baminho.
— Be bajoelhe.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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— Bo buê?
— Bajoelhe bara.
— Bontinuo boando.
— Bique be boelhos be bão boará.
— Bra bue bicar be boelhos?
—Bara bouvir bo bedido be besculpa bo beu bapatinto baqui.
— Ba bachando bue bou botário?
— Bomo?
— Bacha bue bou botário?
— Bão.
— Bacha bue bou bagar bico be be bajoelhar?
— Bão buer bouvir bo bedido be besculpa?
— Bomo bisse?
— Besculpa. Bão buer bouvir ba besculpa?
— Buero.
— Bentão. Bique be boelhos.
Os bisbilhoteiros de plantão, em número cada vez maior, só
esperam por um desenlace sangrento. A contenda segue, assim,
acirrada, para o regalo de todos. E tome troca-troca de farpas.
— Bolha boço, bou be buebrar bo bocinho.
— Buem beve ber bocinho bé bo beu bai. Bacho bue bocê
buxou ba bele.
— Bue boi bue bisse?
— Bue bocê bem bocinho be borco. Buxou beu bai.
— Buem bem bocinho bé ba benhora bua benitora.
_________________PARADA DE SUCESSOS
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— Buem? Bomo bisse? Bepita!
— Bocinho buem bem be ba benhora bua bãe.
— Bala bomo bacho, beu bimbecil. Bale bomo bum bujeito
becente.
— Bua bãe bem bocinho!
— Biu? Biu bó? Bocê bão bonsegue. Bó babe balar belo bariz.
Bau bau bau bau bau bau...!
— Bou buebrar bua bara
— Bai bo buê?
— Bazer be bocê bicadinho.
— Benha, be bocê bonra bessa balça bue beste.
— Bo bue bocê batiu bai?
— Bue bocê bé brouxo. Bau bau bau bau bau bau...!
— Benha, beu besta. Baia bentro.
Por não se entenderem num acordo de cavalheiros, os dois
bicudos partem para a troca de sopapos, embrulhados,
ambos, nas costuras desavergonhosas dos palavrões
impublicáveis.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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OITAVO LUGAR
O gesto supremo
(de: “CINCO CONTRA 1”)
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59
SOFIA ESTÁ NA CAMA NO MAIOR AGARRO COM João
Cleber, o melhor amigo de seu marido e seu amante nas horas
de folga. Vizinho praticamente porta com porta, para se acessar
um apartamento ou outro, bastam dois passos, apenas dois
passos no corredor imenso. Adriana, a mulher dele, fora passar
a noite no hospital, como acompanhante de uma tia que precisou
ser internada às pressas. Inopinadamente escutam a porta da
sala sendo aberta. Por instantes, Sofia permanece sem ação,
estatelada, sem saber o que fazer com seu vizinho, ali, pelado,
suando por todos os poros e, o pior de tudo, com uma pica em
posição de combate querendo mais. Os dois pulam estabanados, cada um para um lado, como se tivessem molas nas
pernas.
— Você não me disse que o Paulo viajaria depois do expediente
no escritório e só daria o ar da graça por aqui na segunda?
— Deve ter acontecido algum imprevisto — tenta se explicar
Sofia em meio a uma crise de pavor e medo que inunda seu
rosto momentaneamente. — Eu mesma marquei a passagem...
_________________PARADA DE SUCESSOS
60
A esta hora ele deveria estar embarcado.
— E agora o que é que eu faço?
— Seu apartamento é parede meia com o nosso. Saia pela
janela.
— Como? Não tem apoio para os pés! De mais a mais,
esqueceu que estamos no décimo quinto andar?
— Pule!
— Sofia, pirou de vez. Quer que eu me esborrache lá embaixo
no cimento?
— Com um cacete desse tamanho seria um desperdício...
—... Deixe de brincadeiras. Pense rápido como me tirar daqui.
Espere, tive uma ideia. Vou me enfiar embaixo da cama.
— Nem pensar. Você conhece o Paulo melhor que eu. É o
primeiro lugar que ele irá vasculhar assim que meter a fuça aqui
dentro. Ainda mais se desconfia de alguma coisa.
— No armário, então?
— João Cleber, pelo amor de Deus. Você não é nenhuma
criança. Pode ter certeza de que o Paulo vai escancarar todas
essas portas. Inclusive as inexistentes...
—... Jesus Cristo e agora? Além de perder a nossa amizade,
com certeza vai me matar.
— Não só a você, mas a mim também. Tive uma ideia.
— Que ideia?
— Depressa, não temos mais tempo. Fique em pé ali naquele
canto, perto da penteadeira. E comece a rezar pra tudo quanto
Aparecido Raimundo de Souza__________
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é santo que vier na sua cabeça.
João Cleber obedece. Sofia cobre o corpo do amante com
óleo e talco.
— Não se mexa até eu mandar. Finja que é uma estátua.
— Eu, uma estátua?
— Você ainda tem algumas opções. Primeira. Abra a janela e
pule. Segunda, fica aqui e peita o seu melhor amigo bigode a
bigode, olho no olho, ou terceira, se transforme numa estátua.
— Prefiro o plano d. De qualquer jeito estou fu...
— Estamos meu benzinho, se este disfarce não colar. Agora
fecha essa matraca, abra os braços e ponha no rosto um sorriso
de pato...
—... Pato?
— Psiu! Fale baixo, merda. Prenda a respiração. Nem ouse
piscar.
Paulo entra estabanadamente e dá de cara com a mulher nua
em pêlo saindo do banheiro.
— O que houve aqui, So. Ouvi vozes. E por que está assim
pelada? Você nunca se recolhe sem roupa!
— Calor, amor. Acabei de sair do banho. Vim desligar a
televisão e pretendia voltar pro chuveiro. Espere um pouco!
Você não deveria estar dentro de um avião a caminho de São
Paulo? Sua passagem não era para as nove? Olhe o relógio.
— Houve um acidente enquanto eu ia para o aeroporto. O
trânsito engarrafou. Acabei perdendo o voo. Até que achei bom:
_________________PARADA DE SUCESSOS
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estou com uma caganeira dos diabos. Já entrei aqui correndo
pro banheiro... No corredor, me pareceu ter ouvido vozes aqui
dentro.
— Ficou louco, amor? Vozes? Só se for de algum fantasma.
Nesse momento e só nesse momento Paulo se depara com a
estranha e desengonçada estátua.
— Que diabo é isso, So?
Fingindo uma naturalidade nervosa, Sofia responde entre dentes.
— Ah, amor é só uma estátua. Seu amigo João Cleber e a
Adriana colocaram uma no living. Eu achei bonita e perguntei
onde eles haviam comprado. Hoje pela manhã, logo que você
saiu, corri até a loja e me encantei com essa daí. Esse sujeito
parece um pouco com você!
— É impressão minha ou o pinto dele é do tamanho do meu?
— Maior...
—... O quê? Como sabe que é maior?
— Sou bobo! Não sei... Estou de sacanagem, tirando onda
com a sua cara. Mas se você quiser saber se o da estátua é
maior que o seu, eu pego a fita métrica e a gente tira a dúvida
agora mesmo. O que me diz?
Paulo se abre num sorriso meio sem graça. Acomoda, então, a
bolsa de viagem de um lado e a mochila com o lep de outro.
Tira os sapatos, as roupas e se deita:
— Apague a luz, minha linda e chegue para cá.
— Não quer tomar um banho primeiro? Que tal comer alguma
Aparecido Raimundo de Souza__________
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coisa? Ah, meu amor, tem um negócio que eu comprei pra você
no congelador e sei que vai amar...
— Depois, meu bem, depois. Agora se aninha em meus braços.
Estou louco para fazer amor com você.
Sem saída e completamente acuada, Sofia se entrega aos
carinhos do marido. Após balançarem os esqueletos até dizer
chega a fogosa se vira para o canto e, exausta, pega no sono
literalmente. Paulo que não pregou os olhos em face do intestino
desarranjado se levanta mais uma vez as carreiras e corre em
direção ao banheiro. Em seguida se dirige a cozinha onde
prepara um sanduíche e enche um copo de refrigerante. Retorna
ao quarto. Acende uma luz intermediária para não atrapalhar o
sono da esposa e o ambiente não ficar totalmente às escuras.
Caminha até a estátua. Olhando para a esposa que dorme feito
um anjo, Paulo sussurra no ouvido do seu amigo e vizinho que,
nesse momento chora em silencio, tem os olhos cheios de
lágrimas e soa feito burro fujão:
— Tome aqui, João Cleber. Coma e beba, mas, por favor, sem
fazer barulho para não perturbar o sono da “nossa Sofia”. Sexta
feira passada — está lembrado? — Você saiu para o trabalho,
e, para minha desgraça, o senhor me fez a gentileza de perder
a condução que o levaria até a empresa. Conclusão: voltou
sem avisar. Sabe o que aconteceu com a sua volta inesperada?
Eu passei a noite no seu quarto, como um idiota, ao lado da
televisão, disfarçado de arara, com um monte de roupas
_________________PARADA DE SUCESSOS
64
dependuradas nos meus braços. Nem um copo d’água, ou uma
xícara de café, que fosse seu filho de uma boa puta, você mais
a Adriana, perdão, a Dri, desculpe, a “nossa Dri” se prestaram
a me oferecer. Como pode perceber, não sou tão mal assim.
A propósito: você está uma gracinha nessa pele de estátua.
Me lembra amanha cedo, tirar uma foto sua antes de sair para
o trabalho. Agora, meu prezado, coma. A noite é
loooooonnnnnnga!... Aparecido Raimundo de Souza__________
65
NONO LUGAR
Fofoqueiras
(de: “A OUTRA PERNA DO SACI”)
66
67
AS DUAS FAXINEIRAS SE ENCONTRAM NO corredor
do edifício onde trabalham.
Marli:
— Biloca, estou pasma! Hoje cedo fiquei sabendo uma da
Lurdinha que me deixou de queixo caído.
Biloca:
— A pirua do 301?
Marli:
— É.
Biloca:
— O que te contaram Marli?
Marli:
— Que ela está saindo com o cara do 403.
Biloca:
— O Etevaldo?
_________________PARADA DE SUCESSOS
68
Marli:
— Esse mesmo. Parrudão, olhos verdes, cabelos compridos,
presos por um elástico de amarrar dinheiro...
Biloca:
—Tem uma Mitsubishi prata?
Marli:
— Tem!
Biloca:
— O próprio.
Marli:
— Pensei que tivesse caso só com o seu... Deixa pra lá... As
aparências enganam....
Biloca:
— Começou fala. Odeio quando as pessoas fazem esse tipo
de sacanagem.
Marli:
— Sabe o que é? Depois a bomba estoura nas minhas mãos.
Biloca:
— Fala droga.
Marli:
— Esquece.
Biloca:
— Ora, vamos. Não confia em mim?
Marli:
— Não se trata de confiar, ou não. Acho melhor ficar de boca
fechada.
Aparecido Raimundo de Souza__________
69
Biloca:
— Tá bom. Não te conto o que fiquei sabendo da Ritinha do
805.
Marli:
— Você vai falar. Ah, se vai. Que diabo de amiga eu fui arranjar
que não compartilha os segredos?
Biloca:
— Chumbos trocados não doem. Você não quer me dar a
ficha do Etevaldo do 403!
Marli:
— Não é que não queira. Já tenho fama de leva e trás por aqui.
Se alguma coisa vem à tona e descobrem que fui eu quem bateu
com a língua nos dentes, acabo parando no olho da rua. Tenho
duas boquinhas para dar de comer, o marido e a sogra chata.
Biloca:
— Não seja por isso. Eu também tenho meus filhos, o marido,
e, graças a Deus, a sogra chata mora sozinha e bem longe lá de
casa.
Marli:
— Vamos fazer um trato?
Biloca:
— Que trato?
Marli:
— Vomite os podres da Ritinha do 805 que eu canto a pedra
do cara da Mitsubishi. Tenho certeza que você vai cair de
quatro.
_________________PARADA DE SUCESSOS
70
Biloca:
— Fechado.
Marli:
— Vai guardar segredo?
Biloca:
— Sou um túmulo.
Marli:
— Jure!
Biloca:
— Pela minha mãe.
Marli:
— Qual delas?
Biloca:
— Como qual delas? Só tenho uma. A outra é minha madrasta,
quero dizer, a companheira do meu pai.
Marli:
— Então?
Biloca:
— Tá. Juro pela minha mãe.
Marli:
— Quer ver ela mortinha da silva?
Biloca:
— Credo!
Marli:
— Sim ou não?
Biloca:
— Que seja. E ai?
Aparecido Raimundo de Souza__________
71
Marli:
— Esse Etevaldo da Mitsubishi está comendo a Lurdinha do
301 e pulando a cerca com...
Biloca:
—... Pera ai! Que cerca?
Marli:
— Você é mesmo uma burra de pai e mãe. Parece saber tudo,
mas olha só. Pular a cerca significa que ele tá tendo um caso...
Um galho entendeu?
Biloca:
— Um caso? Um galho? Com quem? Pelo amor de Deus!
Não é só com a Lurdinha?
Marli:
— Não. E você não faz ideia de quem seja o galho dele...
Biloca:
— Gente aqui do prédio?
Marli:
— Não exatamente. De fora. Mas ligado a alguém que nós
duas conhecemos como a palma das mãos
Biloca:
— Vamos por eliminação: a gata que vem sempre no 901?
Marli:
— Tá frio.
Biloca:
— A Bunduda que faz as unhas do velhote do 1007?
Marli:
— Gelou mais ainda. Última chance.
_________________PARADA DE SUCESSOS
72
Biloca:
— Me liguei. Caiu a ficha. É a Marieta. Só pode ser a Marieta.
A sem vergonha quando morava aqui, abriu as pernas pra todos
os machos do pedaço. E mesmo depois de ter se mudado,
continuou aprontando. Dia desses esteve aqui e deu para o
vigia da noite, e, depois, para o paralítico do 202.
Marli:
— Seu Piteco?
—Biloca:
— Em carne e osso. Ela encarou a muleta dele, numa boa.
Bem, voltando ao Etevaldo, só falta agora o saradão papar a
ceguinha do 107 e... Você.
Marli:
— Me erra, Biloca. Acha que sou assim tão fácil como apanhar
mosca com mel? Pensa que vou para a cama com qualquer
borra-botas? Ainda mais em se tratando do galinha do Etevaldo.
E, agora, pior, depois do que eu soube. Ainda que assim não
fosse. Tenho meu marido, sou bem casada, adoro meus filhos
e até a sogra chata que é um porre!
Biloca:
— Pode até ser, mas soube que andaram te dando uns
presentinhos, apesar de ser bem casada, ter filhos e pá e bola,
caixinha de fósforos. O que me diz dos perfumes e das calcinhas
exóticas?
Marli:
— Tudo mentira. Inveja pura. Olho grande dos brabos. Quem
falou, deve estar morrendo de raiva e doido para estar em meu
Aparecido Raimundo de Souza__________
73
lugar. Afinal, embora não passe de uma serviçal, não sou de
jogar fora. Você mesma já presenciou: quando estamos indo
ou vindo aqui para o trabalho —, que estou arrumada —, fica
“assim” de carinhas assoviando e jogando piadinhas. É ou não
é?
Biloca:
— Não mude de assunto. Quem é a nova felizarda?
Marli:
— Que nova felizarda?
Biloca:
— Ora, de quem estamos falando? Do Etevaldo do 403, que
tem um caso com a Lurdinha do 301. Agora você me deixou
curiosa dizendo que, além da Lurdinha, o Etevaldo está
bombeando mais uma. Quem é afinal, a dita cuja?
Marli:
— Preparada?
Biloca:
— Sim.
Marli:
— Acho melhor sentar... Senta.
Biloca:
— Estou bem em pé.
Marli:
— Senta.
Biloca:
— O rodo e o balde de água me seguram. Pelo amor de Deus,
fala de uma vez. Que diabo!
_________________PARADA DE SUCESSOS
74
Marli:
— Não é felizarda. É felizardo. O Etevaldo joga nos dois times.
É gilete, amiga. Camufla.
Biloca:
— O quê?
Marli:
— Isso mesmo que ouviu. Ele dá o caneco. Gosta de empurrar
o quibe. Morder a fronha. Come e... Não é preciso falar...
Biloca:
— Aquele pedaço de mau caminho, de olhos verdes e cabelos
compridos? Não, não pode ser... Deve ser intriga da galera.
Tem muita colega nossa querendo reganhar a perereca pra
ele...
Marli:
—... Todos no prédio estão comentando a nova conquista. Eu,
particularmente, acho uma pouca vergonha, uma indecência.
Me admiro a Lurdinha se submeter a sair com aquele traste.
Se pega uma doença, babau. E pior é o panaca que enraba ele.
Casado, dois filhos, esposa carinhosa, os cambaus.
Biloca:
— Ta, deixa de frescura. Quem é o sujeito que manda ferro no
cu dele?
Marli:
— Trato e trato. Quero saber antes da Ritinha do 805.
Biloca:
— Ok. Ela está de flerte com Romeu, o porteiro da noite.
Pilharam os dois no maior amasso.
Aparecido Raimundo de Souza__________
75
Marli:
— Minha nossa! Quem diria! Romeu com aquela carinha de
santo...
Biloca:
—... Deixa o Romeu pra lá. Já falei o que sabia. Agora quem é
o cachorro safado que mete a pica no rabo... Que manda brasa
no cano de descarga do Etevaldo?
Marli:
— É o seu...
Biloca:
—... Seu Augusto, o síndico?
Marli:
— Psiu! Fale baixo. Quer parar no olho da rua? Não é o seu
Augusto.
Biloca:
— Então, quem é? Solta logo essa língua...
Marli: — Acho melhor você ir lá embaixo e pedir a Balduína um copo
de água com açúcar.
Biloca:
— Deixa de ser nojenta. Não preciso dessas besteiras. Fale
de uma vez.
Marli:
— Tem certeza de que não vai passar mal? A coisa é forte. Vai
mexer com seu coração. A adrenalina nem se fala...
Biloca:
— Fala ou deixo de ser sua amiga. Por tudo quanto é mais
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sagrado, não podemos ficar aqui o dia inteiro.
Marli:
— Ta bom. Se você faz tanta questão de saber, lá vai a bomba:
o Etevaldo está transando com seu marido...
Biloca:
O quê? O que foi que disse? Repita que não ouvi direito...
Transando com quem? Repita, sua nojenta filha da...
O elevador, de repente, abre a porta e alguém desce. Ambas
se dispersam. Sai cada uma para um lado fingindo esfregar o
chão.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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DÉCIMO LUGAR
Infância
(de: “QUEM SE ABILITA?”)
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“Tanto vai a nada a flor que um dia se despetala.”
Guimarães Rosa
QUEM PODERIA IMAGINAR UMA LOUCURA DESSAS? Eu desejava plantar uma semente de urubu no fundo do
quintal lá de casa para ver se nascia uma ave igual às muitas
que avistava da janela do carro de papai, quando ele vinha me
buscar no final de semana, para eu ficar com ele em seu apartamento, na capital. Há curto tempo, ele havia se separado de
mamãe, e, desde então, passei a dividir as loucuras do vaivém
incessante, entre a cidade barulhenta e a roça, esta despojada
dos espetáculos que enchiam meus olhos de menino a uma semana no albor dos oito anos.
Tinha verdadeira adoração por meu pai. Ele era o meu herói de
todas as horas. O homem forte que lutava com dragões gigantes
e vencia as batalhas mais difíceis e impossíveis. Pouco acima
da linha dos trinta, profissional conceituado na firma onde trabalhava, procurava manter o ritmo de antes, quando ainda vivia
com a gente. Não deixava me faltar nada. Do computador
moderno ao celular de última geração, do brinquedo mais sofisticado aos jogos de vídeogames recém-lançados no mercado;
sapatos e roupas com as assinaturas das melhores grifes.
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À mamãe, também fazia graças elegantes, marcando presença
constante. Não porque quisesse tê-la de volta, em absoluto.
Simplesmente seu coração era grandioso demais e o amor que
nutria por nós ultrapassava os limites do mensurável.
Quando o questionava sobre morar novamente embaixo do
mesmo teto, ele, muito polidamente, ficava em silêncio. Um silêncio que chegava a ser constrangedor. Despistava, mudava
de assunto, e, por fim, para não me deixar totalmente sem resposta, inventava uma desculpa esfarrapada, mas que, bem sabia, não convencia meu ego interior, sedento de alguma coisa
mais concreta.
Eu era uma figura esguia, porém franzina e tímida, alvo fácil dos
guris mais corpulentos, que, vez por outra, inventavam de querer esperar por mim na porta da escola, para me descerem a
lenha nos costados. Me chamavam de “galinho rico”, porque a
melhor mochila era a minha, como a calça do uniforme e o
tênis. Enfim, implicavam até com a merenda que eu levava na
lancheira. Por isso, tinha raiva deles, um ódio mortal, um sentimento que, se pudesse ser posto à prova, aniquilaria a todos
só com a força do pensamento.
Quem sabe fosse essa a razão maior de eu querer plantar uma
semente de urubu lá nos fundos do terreno de casa. Se pudesse
Aparecido Raimundo de Souza__________
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comandar a ave, como num jogo, certamente não pensaria duas
vezes para ordenar que arrancasse o couro daqueles molecotes
desgraçados e depois deixaria que o bicho devorasse suas carnes fedorentas até atingir os ossos. Não sabia claro, que os
urubus não matam. Apenas se alimentam de carniça. E mais:
desconhecia o princípio da vida. Eles não nasciam de sementes
jogadas a terra, como se fossem plantinhas caseiras que floresciam e se tornavam adultas com o passar dos dias. O processo
era um pouco mais complexo, e a sua formação estava muito
aquém dos meus conhecimentos limitados.
Mas o dia de hoje tinha um motivo a mais para ser comemorado. E não somente pelo fato de papai ter vindo me buscar na
roça. Uma satisfação profundamente marcante regozijava meu
mundo de criança mimada: o aniversário dele. Essa data não
poderia passar em branco. Mamãe, dias antes, comprara um
presente requintado para que lhe fosse dado. Nunca me senti
tão próspero — apesar da pouca idade —, tão orgulhoso de
mim, em poder retribuir à altura tudo de bom que recebia daquele homem de cabelos cortados à militar, vestido a rigor,
impecável em ternos de linho, com motorista particular que abria
e fechava as portas do carro e fazia reverências engraçadas.
E mamãe? O que dizer dessa mulher maravilhosa que preenchia o meu outro lado? Se papai era o corpo sólido, ela,
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evidentemente, se constituía no espírito materializado, na beleza angelical e pura, na santa que venerava todas as horas, de
modo incansável. Mamãe era como uma bebida gostosa, um
vinho raro e doce que embriagava os lábios. A fruta apetitosa
que saciava a fome, a zelosa que distribuía carinhos e atenções
especiais. Entretanto, com todos esses atributos, mamãe não
passava de uma criança abandonada. Às vezes, eu sonhava
que ela havia sido deixada por alguém que eu não distinguia
bem a fisionomia. Seriam os pais dela, meus avós maternos?
Ou será que ela não conhecera, ou mesmo, não tivera os pais?
O fato é que nessas quimeras eu a via dentro de um cesto, largada à sorte, abandonada ao relento, à frente de uma casa humilde e de um bando de transeuntes que passava ao largo da
rua e lhe virava o rosto, indiferente à sua solidão.
Embora lutasse para parecer alegre, no fundo algo me dizia
que um vazio muito grande embaraçava seus passos. E por
que se separou de papai? Por que a vida deles, a dois, não deu
certo? Dava vontade, às vezes, de sentar em seu colo e perguntar, indagar, conversar como adulto, como gente grande.
Contudo, nas poucas oportunidades em que ensaiei partir para
o assunto, ao me aproximar, sentia-a temerosa, intranquila,
afogueada, tal como uma dessas muitas criaturas que vivem
pelas ruas, perdidas, vegetando a contragosto, presas a esmolas e restos de comidas, como mendigos nas sinaleiras.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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Agora, esperaria a hora oportuna para entregar o presente.
Mamãe fizera uma manobra rápida para que o embrulho em
papel vermelho com um laço discreto chegasse ao porta-malas
sem que papai atinasse com a surpresa antes da hora. Foi fácil.
Não enfrentamos embaraços. Do nosso lado, dando uma força,
o bondoso Eugênio, o motorista. Assim que saímos, vi pelo
retrovisor que o bom homem me dera uma piscadela, acompanhado de um sorriso de cumplicidade.
Finalmente chegamos à capital. Que loucura! Amava o burburinho dessa metrópole gigante, os ônibus, as pessoas de um
lado para outro, atormentadas com seus afazeres. Semáforos
demorados, a fila interminável de automóveis de todos os tipos
e cores, buzinas, gritarias, a vida fluindo rápida, engolindo os
minutos. Num dado momento papai se virou para meu lado e
perguntou:
— Com fome?
Balancei a cabeça afirmativamente. Algumas quadras à frente,
paramos num restaurante em que já havíamos estado anteriormente uma dezena de vezes. Uma moça solícita, logo que
reconheceu papai, veio ligeira, ao nosso encontro, abrindo passagem e indicando um dos imensos salões luxuosos. Assim que
nos sentamos à mesa, e depois de pedido meu prato preferido
(o garçom sabia de cor, eu nunca mudava o cardápio), disse a
papai que precisava ir ao banheiro. Uma mentira convencional.
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Na verdade, eu corri para os fundos do prédio onde havia
uma saída para o estacionamento.
Eugênio, em pé, ao lado do carro (como a me esperar) se
apressou a abrir o porta-malas, e, de lá, me ajudou a retirar o
misterioso embrulho. Quando retornei, papai falava ao celular,
de costas para mim. Fui me aproximando, devagarzinho, pé
ante pé, a respiração contida, um sorriso largo, o sangue fervendo nas veias, as mãos trêmulas, um medo interior dele não
gostar do que eu lhe havia comprado...
— Pai!
Ele se virou, interrompeu a ligação com um “Te ligo depois”, se
levantou, colocou o aparelho sobre a mesa, abriu os braços e
caminhou ao meu encontro. Dois passos, apenas.
— Campeão o que é que temos por aqui?
Acocorado, me beijou longamente a testa.
Naquele instante, todos os que estavam acomodados em mesas
à nossa volta, pararam para nos observar. Ouvimos, de repente,
uma aclamada salva de palmas. Interessante! Se tivesse combinado com alguém, aquela recepção momentânea, certamente
não teria dado tão certo.
— Uauuu! Por essa seu velho não esperava. A cada dia você
me surpreende. Obrigado, filho.
Fez uma reverência com a cabeça, em agradecimento às palmas
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recebidas, e, em seguida, voltamos a nos sentar. Antes do primeiro gole de refrigerante, enquanto desembrulhava a enorme
caixa, com a velocidade febril que atropelava a sua idade, me
virei para ele e comecei a falar. Tudo o que havia em volta da
gente, me dava à impressão de estar em estado de suspensão,
de enlevo e de graça. Eu sentia que os pratos, os copos e os
talheres, postos sobre a mesa, vibravam com a nossa presença.
— Queria dizer uma coisa — falei com efusão. — Mas não sei
como começar. Só sei que amo muito o senhor e quero que o
senhor nunca se esqueça de mim...
Papai se deixou envolver, encantado, inebriado pela felicidade
que sentia. Capturei duas lágrimas rolando pelo canto dos olhos,
escorrendo, ligeiras, por sobre as maçãs do rosto. Parecia embalado por um doce acalento, ao tempo que lutava, com todas as
forças, para fugir de lembranças e melancolias amargas que eu
sentia, me davam a impressão de definha-lo, de corroê-lo interiormente. Nesse instante, embora eu não entendesse muita
coisa do mundo dos adultos, vi, diante de mim, um homem
forte, mas sozinho; senhor absoluto de si, mas desprotegido;
dono da verdade, mas amargurado, desorientado no espaço,
como se tivesse perdido a noção do essencial e se sentisse,
por isso, preso nos laços do impenetrável de seus pensamentos
mais lúgubres. Recordo que não consegui conter a emoção e
me abri num choro soluçante que demorou a passar. De súbito,
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ele deu comigo a observá-lo. Nossos olhos se encontraram.
Ele se perturbou. Constrangido, vacilou, ameaçou baixar a
cabeça, mas acabou sustentando o olhar, e, enfim, se abriu
num sorriso mágico.
— Você será sempre o meu campeão. Não importa quanto
tempo passe, jamais deixarei de amá-lo. Você foi, é, e será
sempre o presente mais bonito que recebi lá do céu. E sabe de
uma coisa? Só posso agradecer a Deus e, claro, a sua mãe,
por isso, e, também, por este momento. Acredite meu filho. Ele
será eterno.
Após essas palavras, me abraçou novamente e tomou as minhas
mãos entre as suas e, por fim, almoçamos sem trocar mais palavras. Até hoje, tantos, tantos e tantos anos depois, ele já em
idade avançada, os cabelos branquinhos, o olhar sem o viço
dos meus tempos de calças curtas, guardo, ainda, dentro de
mim, o encanto, o fascínio, a sedução e a sensibilidade daquele
instante, como se fosse único e verdadeiro. Aliás, foi realmente
único e verdadeiro, puro, como seu gesto bucólico de pegar as
minhas mãos e de aninhar minha cabeça contra seu peito. E eu
me lembro, me lembro que me senti feliz e seguro — seguro e
feliz — ouvindo as batidas descompassadas do seu coração.
Aparecido Raimundo de Souza__________
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LIVROS DO AUTOR
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TUDO O QUE EU GOSTARIA DE TER DITO
Esse trabalho do jornalista Aparecido Raimundo de
Souza, traz em seu bojo, 365 frases que o autor
publicou dos mais diversos autores,
como Confúcio, Dom Helder Câmara,
Thomas Mann e Mário Palmério, na
Revista CLASS. Foram selecionados
os melhores pensamentos e axiomas
durante os 5 anos em que o escritor
esteve à frente de uma página
sob o título “Reflexões”.
A OUTRA PERNA DO SACI
Livro de estreia do escritor Aparecido Raimundo
de Souza, pela Editora Sucesso/Celeiro,
com sede em São Paulo. São 25 textos
inéditos, 165 páginas, com prefácio do
jornalista Zeca Camargo, apresentador
da Rede Globo. Entre as crônicas,
destaques para Sinfonia escarlate,
Olhos sobre tela, Persuasão,
Demônios eternos e Mico,
entre outros.
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CINCO CONTRA 1
O escritor Aparecido Raimundo de Souza nos
apresenta 10 contos inéditos que vão do bucólico
Mundo das palavras ao contraditório Idi e Ota,
com destaque para as pérolas estudantis
brotadas das mentes tresloucadas dos
candidatos ao ENEN e suas criações
mirabolantes e completamente fora de
esquadro. Cinco contra 1, é, na
verdade, um golpe de martelo no
bom senso das pessoas.
69 páginas de pura emoção.
Vale a pena conferir.
O VULTO DA SOMBRA ESTRANHA
100 historinhas curtas, distribuídas
em 114 páginas. Entre essas
pequenas pérolas, Aparecido
Raimundo de Souza nos
oferece Cravo de bouba,
Mestre e gafanhoto,
Triângulo imperfeito
e o Inventor de
assombros.
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REFÚGIO PARA CORNOS AVARIADOS
Mais um livro com inéditos do jornalista Aparecido
Raimundo de Souza, num trabalho em que
divertidas ciladas do cotidiano são
tratadas com irreverente maestria,
através de 15 contos jocosos e
impudicos, como podem ser
conferidos nas leituras de
A agregada, Toque retal,
Liungua preusa e
Pelo telefone.
HAVIA UMA PONTE LÁ NA FRONTEIRA
O livro traz 12 crônicas inéditas do jornalista
Aparecido Raimundo de Souza. Nesses
textos estão reunidos a sua fase de
jovem rapazola descobrindo o mundo
ao seu redor, em contraste com a
visão mais apurada, ampla e
reflexiva da vida adulta
e a sua solidificação
como escritor.
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COMO MATAR SUA MULHER SEM DEIXAR VESTÍGIOS
Aparecido Raimundo de Souza destaca-se
no cenário das letras como um escritor
ousado, irônico, crítico e polêmico.
Nos doze contos de seu último livro:
“Como matar sua mulher sem
deixar vestígios”, o leitor
desfrutará de episódios
frugais, divertidos e
condimentados.
DO FUNDO DO MEU CORAÇÃO
Um encontro com diversos autores, suas ideias
e sentimentos; que bem poderia ser
descrito como uma sinfonia ao amor.
Nessa obra, Aparecido afirma-se
como homem sensível e romântico,
selecionando e ofertando ao leitor,
do fundo do seu coração,
uma coleção de frases e
máximas sobre o amor.
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PRÓXIMOS LANÇAMENTOS
Aparecido Raimundo de Souza__________
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contato com o autor:
[email protected]
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Produzido no Brasil em Setembro/2012.
GRUPO EDITORIAL CELEIRO DE ESCRITORES
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