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Como matar sua mulher sem deixar vestígios CELES 1 2 3 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer formas ou meios, eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópias, gravações ou qualquer outro tipo de arquivamento de informações, sem auto4 rização por escrito dos autores. Aparecido Raimundo de Souza como matar sua mulHer sem deixar vestígios 2012 São Paulo - SP Editora Sucesso 5 Coordenação editori al Denise Barros Revi são Carina Bratt Projeto gráfico e Di agramação eletrôni ca Celeiro de Escritores Capa Claus Ritter Impressão digital e acabamento Prolgráfica www.celeirodeescritores.org © 2012 Celei ro de Escri tores S719c SOUZA, Aparecido Raimundo de Como matar sua mulher sem deixar vestígios / Aparecido Raimundo de Souza. São Paulo/SP : Ed. Sucesso, 2012. 100 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-89091-73-2 1. Histórias curtas. 2. Sexo-Ficção. I. Souza, Aparecido Raimundo de. II. Título. 82-32, 82-311.2 © 2012 Aparecido Raimundo de Souza 6 BRASIL O SEGREDO... Este livro não traz nenhuma fórmula mágica para o leitor se livrar da mulher chata (seja ela esposa, companheira, amante, ou qualquer outra modalidade de relacionamento a dois) e fugir aos ditames impostos e previstos em lei. Entretanto, em cada uma das crônicas, foi colocada uma frase (em “FANHOS”, por exemplo, trabalho que encabeça o livro, a dica é esta: “EM TORNO DOS CONTENDORES E TORCE PARA VER LOGO O DESFECHO.”) que, somada às demais onze peças restantes, levará o traído na sua moral abalada ao desvendo do quebra cabeça, e, de roldão, ao grande segredo de como lavar a honra. O objetivo do escritor não é propagar a discórdia ou a impunidade entre os maus amados, porém, acima de tudo, incentivar a leitura dos maridos insatisfeitos, presenteando aqueles pobres coitados politicamente declarados chifrudos, perante à sociedade a terem, em mãos, uma válvula de escape, caso dela venham a precisar futuramente. 7 Caberá, pois, ao galhudo, perdão, ao leitor atento, malicioso e, sobretudo capcioso, ao ler o livro, encontrar as 12 frases que culminarão numa conclusão final, ou seja, na do fim do mistério, ou, ainda, às portas do caminho para se cometer o crime perfeito (acredite, ele existe) atingindo, desta forma, o ápice maior, que é o de mandar a esposa adúltera a ver mais cedo o querido São Pedro, ou, dependendo do caso, ou da pulada de cerca, o cara do tridente, nas profundezas dos quintos. Evidentemente, é bom deixar claro, sem que o seu autor (aquele que estiver disposto a cometer a transgressão e não o sujeito que escreveu o livro, por tudo quanto é mais sagrado) se veja enrolado, “a depois”, com o que está posto no artigo 121, caput, do Código Penal. Pachá 8 ÍNDICE Fanhos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Evento de efeito reverso . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Macacos me mordam. . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Baba de caracol. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Inoh Irracional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Como abrir caminhos e vencer demandas. . 55 Detalhezinho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Temperatura ambiente. . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 De nascença. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 O gaiato. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 Matematicamente correto . . . . . . . . . . . . . . . 93 Hoje em dia se "encaixa". . . . . . . . . . . . . . . . 101 9 10 FanHos 11 12 Dois desconhecidos (um indo, outro vindo) se esbarram, sem querer, na movimentadíssima Avenida Paulista, centro de São Paulo. Um deles se vira e ataca: — Borra, bara, bue berda! Bolhe bor bonde banda. Bé bego? Brecisa be bengala? — Bue boi bue biz? — Bacabou be bisar bo beu bé. — Beu? — Bim! — Bão bui beu... —... Béééééé besmo? Be bem boi? Bo bapa? Sentindo no ar uma possível discussão, a curiosidade começa a juntar público. Uma pequena multidão se agrupa em torno dos contendores e torce para ver logo o desfecho. 13 Aparecido Raimundo de Souza — Bentão: bor bacaso boi bo bapa? — Beu bapato. Bomo bode ber, beu bisante besquerdo bé besgo. — Bele bo buê? — Bé bêsgo. — Bão bestou be bentendendo, bamigo. Bor bentileza, bepita. — Bêsgo, bêesgo. — Beja blaro. Bale bortuguês borreto. — Bestou balando. Bocê bor bacaso bé burdo? — Bou bo buê? — Burdo, burdo! — Burdo bé ba benhora bua bãe. — Ba bua! — Bão, ba bua. Bamos beça besculpas. Bisou beu bé. — Be bá balguém bue brecisa bedir besculpas baqui bessa bessoa be bo beu bapato. Mais gente começa a parar afoita e boquiaberta. Ninguém se mete. Só espia e se diverte com a desavença dos dois homens. — Bale bireito bara. Bem? 14 Aparecido Raimundo de Souza — Beu bapato. — Boxente be bele bala? — Be bez bem buando... —... Bentão banda bele be bedir besculpas bogo. Bão bosso bicar bo bia bodo baqui. Bamos bestou besperando. — Bestá bo buê? — Besperando, besperando. Bão ba bendo? — Bão bestou bé bentendendo. Bocê bempre balou bassim? — Bassim bomo? — Benrolado? —Bão bude be bassunto. Beça besculpas be bigo beu baminho. — Be bajoelhe. — Bo buê? — Bajoelhe bara. — Bontinuo boando. — Bique be boelhos be bão boará. — Bra bue bicar be boelhos? —Bara bouvir bo bedido be besculpa bo beu bapatinto baqui. 15 Aparecido Raimundo de Souza -— Ba bachando bue bou botário? — Bomo? — Bacha bue bou botário? — Bão. — Bacha bue bou bagar bico be be bajoelhar? — Bão buer bouvir bo bedido be besculpa? — Bomo bisse? — Besculpa. Bão buer bouvir ba besculpa? — Buero. — Bentão. Bique be boelhos. Os bisbilhoteiros de plantão, em número cada vez maior, só esperam por um desenlace sangrento. A contenda segue, assim, acirrada, para o regalo de todos. E tome troca-troca de farpas. — Bolha boço, bou be buebrar bo bocinho. — Buem beve ber bocinho bé bo beu bai. Bacho bue bocê buxou ba bele. — Bue boi bue bisse? — Bue bocê bem bocinho be borco. Buxou beu bai. — Buem bem bocinho bé ba benhora bua benitora. 16 Aparecido Raimundo de Souza — Buem? Bomo bisse? Bepita! — Bocinho buem bem be ba benhora bua bãe. — Bala bomo bacho, beu bimbecil. Bale bomo bum bujeito becente. — Bua bãe bem bocinho! — Biu? Biu bó? Bocê bão bonsegue. Bó babe balar belo bariz. Bau bau bau bau bau bau...! — Bou buebrar bua bara — Bai bo buê? — Bazer be bocê bicadinho. — Benha, be bocê bonra bessa balça bue beste. — Bo bue bocê batiu bai? — Bue bocê bé brouxo. Bau bau bau bau bau bau...! — Benha, beu besta. Baia bentro. Por não se entenderem num acordo de cavalheiros, os dois bicudos partem para a troca de sopapos, embrulhados, ambos, nas costuras desavergonhosas dos palavrões impublicáveis. 17 18 Evento de efeito reverso 19 20 Pifônio Dentadura chegou no apartamento mais amassado que bagaço de cana. Não andava, capengava. Todo torto, a carroceria corrida, dava a impressão de ter sido esmagado por um trator. Ao vê-lo naquele estado, Xingau o amigo com quem dividia as despesas de moradia, correu a acudi-lo: — O que houve com você? — Nada, cara. Nada. — Como, nada? Parece que um PitBull te rasgou da cabeça aos pés! — Mais essa. Estou fedendo a cachorro? — Claro que não! — Acaso estou me coçando como se estivesse cheio de pulgas? Xingau tentou acalmar o companheiro: 21 Aparecido Raimundo de Souza — Pelo amor de Deus, Pifônio. É apenas uma maneira de expressar. — Desculpe. Não estou no meu melhor momento. Só quero cair na cama e apagar. — Antes me conta o que houve! Algum problema lá no quartel? — Não, tudo bem. — E por que sumiu uma semana? Aprontou alguma? Estava preso? BICHINHO ARREDIO — Quem dera! Estive internado! — Já sei. Não foi bem nos exercícios. Ferrou a carcaça de verde e amarelo nos testes de sobrevivência? — Engano seu. Correu tudo às mil. — Não é o que parece. Se tudo estava nos conformes, por que voltou em pandarecos? Olhe para você, meu camarada... Parece um velho de cem anos nas costas. Pifônio se deixou cair no sofá e começou a chorar. Parecia um garoto que acabara de perder um brinquedo de estimação e queria urgente o aconchego de um colo de mãe. — Fale homem, rasgue o verbo. Sou seu amigo. — Prometa que não rirá de mim e o que vou contar não 22 Aparecido Raimundo de Souza sairá destas quatro paredes. — Prometo! — Jure. — Juro! — Jure por Deus. — Juro por Deus. — Junte os dedinhos em forma de cruz e beije. Xingau fechou o rosto numa carranca: — Está duvidando de mim? Qual é meu? — Faça o que estou pedindo ou não direi uma só palavra. — Tá legal. Juro por Deus. Podemos ir em frente agora? Pifônio se ajeitou tirando os sapatos e recostando a cabeça num dos braços do assento. Esses gestos lhe arrancaram urros de dor. — Tem certeza de que não quer ir ao pronto socorro? — Não, seu idiota. Acabei de sair do hospital. Agora me escute. O sargento Punhetinha, que comanda a minha tropa cismou com a minha cara. Desde o dia em que nos vimos pela primeira vez, logo na formação do regimento. O desgraçado vem tentando me prejudicar de todas 23 Aparecido Raimundo de Souza as maneiras com o coronel Boró Curumé. Desta vez conseguiu. — O que foi que esse infeliz aprontou? — Me chamou na sala dele, depois que saí do refeitório. Assim que me apresentei, pediu que o acompanhasse até o alojamento dos oficiais. Não vi mal nenhum. Chegando lá, entramos em seu quarto. Os graduados têm essas regalias. Aposentos com banheiros separados, TV, net, chuveiro quente... —... Pula essa parte... —... Punhetinha trancou a porta e me pediu que tirasse a farda. — E para quê? — Calma, eu chego lá. — O que você fez? — Ora bolas. Tirei. Afinal de contas, o sujeito é meu superior. — Sei. E você, enquanto se despia, não procurou descobrir o motivo desse gesto estranho? — Claro, mas Punhetinha foi imparcial: “tire essa porra de farda logo e não faça perguntas”. Pois bem: fiquei como vim ao mundo... 24 Aparecido Raimundo de Souza —... E...? —... Nesse momento alguém bateu. Ele correu abrir. Sem que eu tivesse tempo de me tampar com alguma coisa, uma galera varou porta adentro. Na frente da leva, encabeçando, nada mais que o coronel Boró Curumé em pessoa. Tudo havia sido combinado às minhas costas. Pura armação. Tomei conhecimento da merda depois de ter caído como patinho. — E com que intenção esse bandido agiu dessa forma vil e infame? — O objetivo maior, meu prezado, me prejudicar. Ele me odeia. Na verdade, me detesta. O coronel Boró perguntou o que se passava e ele, pasme o sargento Punhetinha, na maior, respondeu que eu o vinha assediando há tempos. Vê se pode! Inventou que eu fora até o quarto dele para... Esquece. Não quero mais lembrar daquela cena. Passou! O coronel Boró me pegou pelo pescoço e explodiu cheio de raiva: “O exército não admite pederastas em suas fileiras. Vista sua roupa de civil e vaza. Quero você no meu gabinete em dois minutos”. — Estou de queixo caído...! — A melhor parte vem agora. Assim que o coronel virou as costas, a rapaziada se achegou ao sargento. Todos riam como se estivessem diante de um palhaço. Na verdade, eu era o bobo da corte. 25 Aparecido Raimundo de Souza — ... Mocinha — disse o sargento em tom malicioso. — Posso dar um jeito de você continuar aqui. Contudo, existe um pequeno detalhezinho. Uma condição. Terá que nos ajudar para sermos bonzinhos com você... — Bonzinho? — balbuciei numa interrogação muda.— O que o senhor quer que eu faça? — Como veio me propor deitar com você, e eu me recusei... A meninada está de prova... A gente quer que nos faça um favorzinho. Em troca, eu converso com o coronel e tudo volta ao normal. Pense na sua família. Se você for pro olho da rua, como de fato irá, sua ficha ficará suja. Mais que pau de galinheiro. Sem contar com o fato de que todo mundo saberá da verdade e... Desandei em lágrimas de terror e desespero. — O que é que eu preciso fazer sargento Punhetinha? — Consegui finalmente soltar o que restava da voz. — Pelo amor de Deus, fale de uma vez! Sargento Punhetinha de maneira curta e grossa concluiu: — Dar. — Dar?... Dar o quê? Não tenho nada que lhe interesse... — ...Não se faça de besta, mocinha. Queremos o seu caneco... Gelei. Entrei em pânico. Meus pés sumiram. Fiquei cego. 26 Aparecido Raimundo de Souza A tropa em peso estava ali. Ao todo, meu brother, ao todo, dezoito. — Pelo visto você deu um piti e pagou geral. Encarou os filhos da puta na porrada. E como estavam em maioria, se deu mal. Levou a pior. Ao invés de bater, apanhou mais que tapete em dia de limpeza. Isso explica ter ficado internado. Diz ai, meu herói: quebrou a fuça de quantos? — Você não entendeu. Não quebrei a fuça de ninguém. Eu me vi sem saída, num beco cheio de leões famintos. O que poderia fazer? E depois, que decepção para meus pais, meus irmãos, meus amigos e para Bebel, minha namorada? — Você não fez o que estou pensando! Diga que está zoando comigo... Certo? — Errado. Fiz sim Xingau. Eu dei. Dei com força. Liberei meu furisco pro batalhão inteiro. Me senti como aquela ave solitária, indo, indefesa, para um bando de répteis asquerosos que a iria devorar. — Isso é... Isso é horrível! — Bota horrível nisso. Por mal dos pecados, o último recruta, um negrão metido a gostoso, na hora agá, fez tanta palhaçada, que a camisinha estourou. Acabou gozando dentro... Xingau não se conteve com essa revelação. Ao invés de 27 Aparecido Raimundo de Souza se solidarizar com companheiro, por tamanha safadeza, caiu numa estrondosa gargalhada. Pifônio se enfureceu: — Do que está rindo? — Do negrão. A camisinha não aguentou o tranco? Será que você não corre o risco de ter engravidado e dar à luz daqui a nove meses a um lindo bacurizinho? Pifônio Dentadura embora estivesse aos cacos, como impulsionado por molas, saltou do sofá igual fera faminta e partiu com tudo para cima do amigo. Mesmo desengonçado e cuspindo marimbondos a torto e a direito, desceu o braço com vontade, com força, ódio e gana. Só não acabou com a raça de Xingau, porque os gritos do desditoso chamaram a atenção de outros residentes, que acorreram apavorados e botaram a porta da quitinete abaixo desapartando os dois. 28 macacos me mordam 29 30 O telefone celular de repente começou a tocar insistentemente dentro da mochila que o Bigode trazia às costas. Sem pressa, tirou-a e colocou no chão. Abriu um compartimento pequeno fechado por um zíper e pegou o aparelho que se esgoelava. Era o Paulo. — Alô! Paulo? Sou eu. Fale... — Bigode, por que demorou pra atender? Onde você está? — Onde marcamos. Na porta da casa que você me passou o endereço ontem à noite. Lembra? — Seu mentiroso. Então me diga: o que tem aí na frente dessa residência? — A entrada... — ...O quê? — Na porta de acesso tem a entrada, ora bolas. 31 Aparecido Raimundo de Souza — Seu imbecil, você ainda nem saiu da cama. Se realmente está aonde te mandei, me fale o que tem na porta, junto à entrada. — Você não explica! Só o velho senhor Capacho. — Um velho capacho? E quem colocou essa porcaria aí? — Isso eu não sei. O fato é que toquei duas vezes a campainha e ele apareceu. — Não estou entendendo. Você tocou a campainha duas vezes e ele apareceu? Ele quem, apareceu? — Meu Deus, Paulo, o seu Capacho. De quem estamos falando? — Bigode, o capacho não está no chão? — Não, o seu Capacho está em pé, na minha frente com um copo de café numa das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra. É um senhor simpático de idade bastante avançada. Foi ele que veio atender a campainha. — Um... Um senhor? — Em carne e osso. É a ele que me refiro desde o começo da nossa conversa. — Pastel. Você é um pastel. — Ah! Bem lembrado. O Pastel. Está quase chegando. Você tirou as palavras da minha boca. — Quem está quase chegando? — O Pastel. E, de lambuja, trazendo um ajudante. — Bigode, pelo amor de Deus, que pastel, que ajudante? — Pastel é meu vizinho, seu bocó e está vindo para cá 32 Aparecido Raimundo de Souza com outro amigo nosso, que mora no mesmo bairro. O nome dele é Bolinho de Carne. — Como? Bolinho de carne? — Isso. Um ajudante porreta. Sempre que o serviço aperta costumo convocar os dois. Assim como você lembrou de mim e me chamou... Fiz o mesmo com Pastel e Bolinho. Eles vão nos dar uma mãozinha na retirada dos cacarecos. — Bigode, seu espertinho de uma figa. Entra logo nessa droga de casa e comece a desmontar os móveis. — Tenho que esperar pelo Pastel e pelo... — ...Entre logo e deixe de palhaçadas. Estou chegando aí com o caminhão em menos de meia hora. Nesse tempo quero as tranqueiras todas desmontadas. Com ou sem esse pastel ou bolinho de carne. — Está bem, está bem, você é quem manda. Agora fale com o senhor Capacho. — Não quero... Apesar do contra, Bigode passou o celular para o ancião. — Bom dia, meu amigo. Com quem falo? — Paulo. Meu nome é Paulo. E o senhor? — Eu sou o Capacho. — O senhor ligou para meu patrão ontem a tarde pedindo um caminhão a frete? — Positivo. Liguei sim. 33 Aparecido Raimundo de Souza — Seu nome é realmente Capacho? — Na verdade, José Capacho da Silva Oliveira. Capacho para os amigos. — Desculpe. Nunca antes de hoje havia falado com alguém que tivesse um nome tão... — ...Tão...? — ...Tão fora do comum, excêntrico... — Agradeço seus elogios. Geralmente as pessoas acham estrambótico. — Que diabo vem a ser isso? — Extravagante. — Concordo plenamente. — Obrigado. Bem, voltando ao nosso caso, quanto tempo o senhor acha que levará para desmontar todos os meus móveis e acomodar no seu caminhãozinho? — Caminhão. Eu tenho um caminhão. Pois bem. Vai depender aí do Bigode que está ao seu lado. Risos. — Ele me parece um bom rapaz. Só acho que sozinho não conseguirá. Tenho muita tranqueira. Sabe como é: velho adora coisas antigas. — Não se preocupe seu Tapete. Vamos dar conta do recado. — Perdão, seu Paulo. Não é tapete, é Capacho. — Mil desculpas. Cabeça cheia de preocupações dá nisso... 34 Aparecido Raimundo de Souza — Eu compreendo. Deixa perguntar uma coisa, seu Paulo. Não é mais viável aguardarmos a sua chegada com seu caminhãozinho e a dos dois rapazes? Paulo começou a dar sinais de que a conversa não lhe agradava nem um pouco, quando o senhorzinho, com certa insistência, passou a se referir ao seu verículo como caminhãozinho. Precisava dar o troco. — Meu caminhão não é caminhãozinho. Eu tenho um caminhão. Mas a que rapazes o senhor se refere? — Aos que seu amigo aqui está esperando. Só um minuto. Seu Bigode, como é mesmo o nome dos ajudantes? — Pastel e Bolinho de Carne. Novos risos. — Pastel e Bolinho de Carne. — Macacos me mordam, seu Limpa Solas. Eu... Nessa hora, o sujeito ao ser chamado de Limpa Solas se abalou da base ao cimo, deixando que a cólera o dominasse completamente. Paulo finalmente se vingara do coroa. — Seu Paulo, por favor. Não gosto de brincadeiras, principalmente com meu nome. Capacho. Capacho. Será que 35 Aparecido Raimundo de Souza é tão difícil? Tome. Já me aborreci. Fale com seu amigo. Passe bem. — Fala mano. — Imbecil. Tinha que dar o telefone para o tal do Carapatio? — Paulo, não é Carapátio, é Capacho. Capacho. Ouvindo essa balela do outro ter lhe alcunhado de Carapatio o velhote perdeu a esportiva e as estribeiras, de uma só vez. Tomou o telefone do Bigode e explodiu: — Seu... Seu Paulo, o senhor vá sacanear a sua mãe. Carapátio uma ova. Fui claro? Além de tapete, limpa solas e não sei mais o quê, tem a cachimônia de me comparar ao navio que deu socorro ao Titanic? Vá a merda. E de barquinho, que é para chegar mais rápido. Outro detalhe: não é Carapátio, é Carpathio, com “th”. Paulo ao invés de tentar contornar a situação, já que havia tirado o velho do sério, resolveu continuar com a provocação: — O senhor deveria é ficar agradecido e lisonjeado. O apelido que lhe arranjei, sem querer, em nenhum momento veio denegrir a sua imagem de cidadão de bem. Como o prezado lembrou aí, Carpathio, com "th", foi o nome de uma embarcação que salvou muitas vidas num dos desastres mais famosos da história. Além de não ter afundado, o que é mais importante. 36 Aparecido Raimundo de Souza — Pois fique sabendo que vou afundar a mão na sua fuça tão logo chegue aqui com seu caminhãozinho. Aliás, depois dessa conversa fiada, não vai ter mais mudança. Agora mesmo sairei para contratar outro pessoal. Seu Paulo, passe muito bem... Ou mal. — Por favor, tenha calma. Vamos esperar então pelo Pastel e o Bolinho... — Não vamos esperar ninguém. E quer saber? Comerei esses dois assim que pintarem na área... E o senhor e o seu caminhãozinho de lambuja, como sobremesa. Para terminar nosso papo, assim que acabar de tomar meu café palitarei os dentes com o seu comparsa aqui, o Bigode. Temendo a ira da criatura que parecia atabalhoada e completamente fora de si, Bigode não esperou para ouvir o final da conversação, àquela altura completamente fora de esquadro. Tratou de passar a mão na mochila e dar no pé. Teve sorte. Num ímpeto de raiva, seu Capacho atirou o telefone contra sua cabeça. Não acertou. O velho, ensandecido, e soltando fogo pelas ventas errou a pontaria. 37 38 Baba de caracol 39 40 Antes mesmo de juntar as cuecas com as calcinhas, Janjão vivia pedindo a namorada para fazer sexo anal com ele. Dorotéia, entretanto, não admitia esse tipo de comportamento do futuro esposo. Sempre que o rapaz tocava no assunto, saia elegantemente pela tangente fingindo uma ignorância dos tempos medievais. — Sou moça de respeito, venho de um clã sistematicamente familiar. Você namora comigo há mais de dois anos e ainda não se deu conta disso? Sexo anal é para essas vagabundas de rua. Transo com você e faço tudo o que quiser, numa boa, sem problemas, mas anal, jamais. Dorotéia parecia uma fada encantada. Dona de lindos cabelos loiros que lhe caiam em cascata até um pouco abaixo dos ombros, era uma 41 Aparecido Raimundo de Souza jovem doce e ao mesmo tempo severa. De falar cetinoso e elegante, sem mencionar a hora em que iam para a cama. Entre quatro paredes levava Janjão quase às raias do desvario. Quanto a isso, o rapaz não tinha o que reclamar, exceto na hora em que tentava usufruir as vias proibidas usando a parte dos fundos. De certa feita, numa dessas investidas, chegaram a sair nos tapas — ela com o rosto vermelho — ele arranhado nas costas e braços. CASARAM. Com a troca de alianças, Janjão se sentiu mais dono de si e também da situação. Daria um tempo sem tocar em tão delicado tema. Deixaria passar a lua de mel, e, então, devagar, voltaria à carga. Dorotéia possuía um traseiro de dar inveja. Não que o resto fosse desconexo — ao contrário, a moça se assemelhava a Alessandra Biquine. Aliás, parecia ter sido esculpida com pedacinhos de estrelas, salpicada ao gosto de um criador bastante entendido no belo oposto. Havia, nela, um rostinho meigo de Patrícia Terlek, metido num corpo escultural de Renata Disse com as pernas bem torneadas de Claudia Vaia. Quando saia para compromissos sociais, a galera babava ao olhar para a jovem. Todos os chegados de Janjão o achavam um cara de sorte, de muita sorte. Janjão lado outro, possuía um leque bastante significativo de amizades. Porém, apenas uns dois ou três desse imenso rol se destacavam dos demais. O Vespúcio, certamente, um deles. Frequentava a casa de Janjão desde 42 Aparecido Raimundo de Souza os tempos em que ele namorava a Valeska, uma colega de escola que a turma, em peso, alimentava uma gana feroz de cair em cima, como um bando de chacais sobre despojos em decomposição. Janjão, sortudo, como sempre, restou escolhido entre os demais, apesar dos estultos adversários que lhe vigiavam com os olhos cheios de inveja. A raffinée só perdeu espaço no exato instante em que a Dorotéia pintou na fita. A partir dessa aparição, o romance esfriou completamente, até que caiu definitivamente no esquecimento. Cada um seguiu seu destino por estradas opostas. UM MÊS DEPOIS. Janjão resolveu celebrar essa passagem com um jantar a dois. Pediu ao chefe para sair mais cedo, antes da meia noite. Queria fazer surpresa à esposa. Conseguiu. Chegou faceiro (nem havia começado a novela das nove). Deixou o carro estacionado fora da garagem. Ao abrir a porta da sala, se deparou com a residência às escuras. Caminhou devagar. Do corredor que levava aos demais aposentos, percebeu que, da porta entreaberta, escapava uma luz que vinha do abajur sobre a mesa de cabeceira. Esse pequeno foco emprestava, não só ao quarto, mas ao resto dos ambientes, um toque inebriante, quase mágico. Janjão imaginou Dorotéia deitada, sonhando faceira, com a sua volta. Quem sabe, essa noite, depois do restaurante (havia reservado uma mesa num lugarzinho bastante aconchegante e romântico), ela abrisse a guarda e liberasse 43 Aparecido Raimundo de Souza o que ele tanto almejava, desde os tempos dos amassos nos bancos do carro, no escurinho da garagem da casa de seus pais. Ao chegar ao umbral da porta, entretanto, a cena que viu o deixou perplexo. Embasbacado. De queixo caído. Dorotéia, a sua Dorotéia fazia sexo, pior, sexo anal com ele... Logo com ele, o Vespúcio, seu melhor e único amigo. Veio, à cabeça, de chofre, a vontade de pegar o revólver dentro do porta-luvas do carro e despachar os amantes traidores para os quintos do inferno. Não! Não se sujaria, nem mancharia seu nome. Aquela vaca despudorada não merecia. Após esse vendaval desencadeado pela traição da esposa, literalmente mordido pelo ódio que ensandecia e alucinava, resolveu assumir os chifres. Optou por dar meia volta e ir embora para algum lugar bem longe. Saiu como entrou. Devagar, sem ser notado. Na cabeça, agora, além dos cornos, levava a imagem de Dorotéia rebolando freneticamente o rabo — e Vespúcio cravando em sua bunda (a que ele tanto queria), um roliço enorme — fazendo com que a desqualificada e falsa moralista, ao sabor do sopapo da rola, emitisse pequenos gemidos de dor e prazer, levada, evidentemente pelo frenesi incontrolável do solavanco da trolha que lhe arregaçava os baixos fudetórios. — Maldita! No primeiro boteco que encontrou pela frente, parou o carro e entrou. Sentou num canto do estabelecimento e encheu a cara. Sofria o látego da amargura, em forma de frustração impiedosa. Afinal de contas, amava aquela 44 Aparecido Raimundo de Souza mulher com o ardor de adolescente, amava-a até a própria consumação de seus dias. Naquele bar, sozinho e sem forças para decidir o que fazer da vida, fugia à sua realidade interior. Tentava com forças superlativas, preencher o íntimo vazio, com o supérfluo de fora. Na verdade, queria justificar, de alguma forma, suas emergências infelizes. Altas horas, um solitário igual a ele pediu licença e se acomodou ao seu lado. Passaram a beber juntos, cada um tentando enterrar, à sua maneira, o fracasso e o derrotismo que lhes combaliam a alma. A certa altura, Janjão se abriu com o estranho. Contou toda a sua história. O novo amigo escutou em silêncio, pacientemente, sem interromper. Por fim, ao ver que Janjão se debulhava profusamente em lágrimas, respondeu: — É companheiro... A vida é assim! Vou expor, se me permite a saga que aconteceu comigo. Procurarei ser breve. — À vontade... — Dias atrás precisei me deslocar até Belo Horizonte. Com essa história dos atrasos nos aeroportos, apagões aéreos, etc, etc, decidi encarar a estrada, de ônibus. De repente, me deu uma vontade de... Como direi?... De cagar! Desculpe o termo, mas não sei me expressar de outro modo. Sentada ao meu lado, uma linda mulher de parar o comércio. Meu Deus! Com muito jeitinho, pedi licença e corri ao banheiro. Fiz uma força dos diabos, e nada. No lugar da bosta, só peidos... Fiquei irritado, chateado. Alguém bateu na porta e eu tive que ceder a vez. Voltei 45 Aparecido Raimundo de Souza para minha poltrona. Acomodado, tentei conciliar o sono. Dormir um pouco. Olhei para a moça, de soslaio. Parecia a suavité personifiqué de um anjo caído do céu. Suspeitei, comigo mais meus botões: ela está me vigiando. Tinha quase certeza disso. Não me enganava, aquele rosto redondinho, os cabelos louros, à altura dos ombros, a blusa e a calça jeans apuradas, os sapatos impecáveis. Sabe, meu amigo, ela possuía os olhos garços, de rara tonalidade, como duas transparências de infinito. Por isso percebi que me vigiava. — Vigiava? E para quê? — Sei lá. Talvez soubesse do meu problema com a barriga desandada e quisesse se deleitar vendo meu sofrimento, para me livrar do incômodo. Meia hora depois, me veio uma vontade louca de peidar, uma vontade dos diabos. (Risos). Arrisquei uma nova espiadela para a guria. Ela havia virado o rosto para o lado do corredor. Menos mal. Tudo indicava que dormia profundamente. Ledo engano. Sem saída, sem saber o que fazer, envergonhado, não queria, sobretudo, não era intenção perturbar o sono da coitadinha. Então tomei a decisão. Fechei os olhos e fiz força para efetivamente peidar. Imagine cara! Nessa hora, aconteceu o pior, o que eu mais temia... — ... A dondoquinha acordou? — Não. No lugar de peidar, eu caguei. Me borrei todo de bosta... 46 Aparecido Raimundo de Souza Janjão se irritou num quase arremedo de fúria. Bateu na mesa, enraivecido. Meia dúzia de garrafas foi ao chão e se espatifou: — Prezado, que falta de consideração. Bebia aqui no meu canto, em paz, curtindo as mágoas, o amigo chegou, perguntou se podia sentar, eu permiti. Depois contei o meu drama, expus o meu sofrimento... Esperava um conselho, uma palavra amiga... Um ombro onde me apoiar e você... Você me vem com esse papo furado de peidar e cagar? O desconhecido se levantou com muita dificuldade. Para não emborcar de vez, susteve o peso do corpo se apoiando a uma parede com uma das mãos. — Só queria lhe mostrar, meu amigo, como é a vida, descrevendo uma experiência vivida, sentida na própria carne. Afinal, aconteceu comigo. Pode ocorrer com você ou qualquer outro cidadão... — E o que esse seu lero-lero idiota tem a ver comigo? Com a minha história e com os fatos que trouxe à baila? — Hoje em dia, não podemos confiar nem no nosso cu, meu brother. Ouviu o que eu disse? Nem no nosso cu. Imagine, pois, dar uma nesga de credibilidade, que seja para o fiofó dos outros. Nunca se esqueça meu amado: “Le vrai peut quelquefois n’ être pás vraisemblable”. 47 48 InoH Irracional Poema: Joaquim Suspensório Duque Avenida Música: Seu Chico Malnãoel da Silva 49 OBS.: AS PEQUENAS E QUASE INVISÍVEIS MODIFICAÇÕES aqui introduzidas na letra (não na música, é bom deixar bem claro) do Hino Nacional, foram autorizadas, por escrito, por seus autores. Do contrário, este humilde escritor não teria como, nem porque, trazê-las ao conhecimento do grande público. Esperemos, pois, que as pessoas gostem, alertando que o autor do texto aceita outras opiniões, desde que estas não contrariem o bom senso da obra em sua originalidade. 50 Ouviram do Ipiranga as margens cheias de balas perdidas De um povo de mãos atadas o brado estressante, E o sol da Sacanagem, em raios amarelos, Brilhou no céu do inferno neste instante. Se o penhor da desigualdade Conseguimos conquistar com braços magros, Em teu seio, ó Fragilidade, Desafia a nossa paciência até a morte! Ó Pátria americanizada, Esfomeada, Salve! Salve-se quem puder! 51 Aparecido Raimundo de Souza Brasil, um sonho morto, um raio que os parta De amor e de Fernandinhos Beira Mar a terra enlouquece, Se em teu formoso céu tristonho e sujo, A imagem da Fome Negra resplandece. Gigante pela própria incerteza, És belo, és forte impávido Titanic, E o teu futuro espelha tantas mortes infantis Terra esfomeada Entre outras mil, És tu, Brasil, Ó Pátria despatriada! Dos filhos deste solo és mãe inútil Pátria esfomeada Brasil! Deitado eternamente em berço donde nascem pilantras Ao som do mar e à luz de um céu sem cores, Fulguras, Ó Brasil, florão de Busch 52 Aparecido Raimundo de Souza Iluminado ao sol do eterno FMI! Do que a terra mais empobrecida Teus risonhos, lindos campos tem mais invasões do MST; “Nossos bosques têm mais bandoleiros e espiões”, “Nossa vida” no Teu seio “Tantos horrores”. Ó Pátria falida, Esfomeada, Salve! Salve-se quem puder! Brasil, das falcatruas eternas, seja símbolo Dos colarinhos brancos que ostentas estrelado, E diga o verde-louro José desta flâmula — Mais corrupção no futuro e viva os Lalaus que atuaram no passado. Mas, se ergue da justiça a clava da propina, Verás que um deputado teu não dorme sem uma puta, 53 Aparecido Raimundo de Souza Nem teme quem te vigie, a própria sobrevivência. Terra pisoteada Entre outras mil És tu, Brasil, Ó Pátria despatriada Dos filhos deste solo és mãe inútil, Pátria esfomeada Sacanearam tanto... Que sumiu... 54 como abrir caminhos e vencer demandas 55 56 Chico Alfinete seguia calmamente por uma rua movimentadíssima do centro da cidade, em direção ao banco, quando dele se aproximou uma adolescente e lhe estendeu um panfleto. Solícito agradeceu com um sorriso maroto, mais pela beleza da jovem menina que pelo interesse em saber o que estava impresso na propaganda. Já dentro do estabelecimento, na fila enorme, enquanto esperava vez, resolveu matar o tempo lendo o papel. Dizia o seguinte: “Ei, amigo, se você está em dificuldades e não encontra a solução para a sua vida, preste muita atenção. Pare um instante e leia o que está escrito neste panfleto antes de atirá-lo na primeira cesta de lixo que encontrar pela frente. Faça isso, por favor, com bastante atenção. Reflita. 57 Aparecido Raimundo de Souza Conte até dez, antes de tomar a decisão que poderá mudar seu destino. Lembre-se: o que está aqui pode ser a chave para abrir todas as portas que estão fechadas, trancadas e cerradas na sua frente. Pense, de repente, que seus caminhos obstruídos num piscar de olhos se transformarão em estradas floridas, com a esperança de um amanhã diferente, onde um porvir melhor lhe sorrirá eternamente. Acaba de chegar a esta cidade, Mãe Chupeta em Boca de Bêbado, vinda diretamente da cidade de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia. Ela é a primeira espírita vidente e cartomante que, realmente vê tudo, enxerga longe, a única consagrada em todo o Brasil, de canto a canto, principalmente nos cantos. Mãe Chupeta em Boca de Bêbado mata a cobra e mostra o pau. E tem mais: com ela ninguém pode. O diabo foge, satanás pede arrego, os poderosos se curvam, se curvam tanto que passam a ter problemas de coluna. Seus conhecimentos são tantos e tamanhos, que até Deus antes de tomar uma decisão coça a cabeça e pede a São Pedro para que lhe aplique um beliscão no braço para ver se está dormindo ou acordado. Mãe Chupeta em Boca de Bêbado lhe ajudará a tratar de qualquer dificuldade por mais enrolada que possa parecer, lhe dará novas alegrias no amor, direcionando seus negócios, por vias calmas, lhe trará um bom emprego, 58 Aparecido Raimundo de Souza saúde, paz, tranquilidade, lhe protegerá do vício da inveja, do mal olhado, dos encontros e desencontros, das brigas em família, das pragas de mãe, das rixas entre amigos, questiúnculas com vizinhos e picuinhas com cobradores e síndicos. Até da sogra chata e do patrão babaca ela o livrará, como, igualmente, do pai que pega no pé, da amante inconformada e enfurecida, que não sai da cola e ameaça estragar seu lar. Pode também lhe dar orientação segura de como se livrar de processos judiciais, pensões alimentícias, ex-companheiras, como tratar com filhos problemáticos, adolescentes em fase aborrecente, filhas grávidas, manias, cacoetes, TOC, vicio do cigarro, aliás, você deixará de ser tabagista em cinco semanas, sem sair de casa ou do escritório. Mesmo que você não fume, largará do cigarro. O mesmo acontecerá se você for dependente do álcool ou das drogas. Enfim, qualquer que seja a pedra no seu sapato, o estorvo no seu dia a dia, o entrave no seu emprego, ou a nuvem negra pairando sobre sua cabeça, com uma consulta apenas, você terá êxito total e alcançará o sucesso pleno. Mãe Chupeta em Boca de Bêbado fará mais por você. Trará a sua namorada de volta, a mulher da sua vida que partiu com outro, e, pode ter certeza, ela não sossegará enquanto não se ver atirada, de volta e de joelhos, rezando, submissa diante de sua pessoa. Desfaça agora, de uma vez por todas, de qualquer tipo de trabalho ruim, mandinga, 59 Aparecido Raimundo de Souza bruxaria, magia negra e macumba. Não se esqueça: Mãe Chupeta em Boca de Bêbado é muito estimada em qualquer tipo de empreitada que meta a cara, e sempre alcança o sucesso, ainda que você seja um medíocre cantorzinho de banheiro. Com ela você tem sigilo, absoluto, honestidade, competência e seriedade. Ela joga búzios, tarô, cartas japonesas, runas, 21, palitinhos, roleta, víspora e até paciência. É a única que atira pedras com estilingue na cabeça de seus inimigos e, de roldão, lê a sua sorte olhando a sola dos pés, aonde, aliás, ficam todos os terminais nervosos do ser humano. Resultados rápidos, eficientes e garantidos ou seu dinheiro de volta nos bolsos dela. Atendimento todos os dias de segunda a segunda, inclusive sábados, domingos, feriados, natal, ano novo, dia santo, carnaval, das 8:00 às 22:00 horas. Consultas por preços módicos. R$ 15.99. Não perca esta oportunidade Ligue agora, marque uma consulta e mude a sua vida. 6699-6699 ou 6669-0069. Ou nos procure. Atendemos na Rua Paca Tatu Cutia Não, número 18, sala 504, Edifício Brechó da Véia. ATENÇÃO: Essa rua é a mesma do Sindicato dos Veados, Bichas, Gays, Lésbicas e Demais Simpatizantes. De uma chance à sua sorte. De uma chance a você mesmo. Marque a sua consulta agora. Não esqueça o talão de cheques. Mãe Chupeta em Boca de Bêbado aceita vales 60 Aparecido Raimundo de Souza transportes, vales refeições, miojo, exceto os de galinha, barra de cereais, alimentos não perecíveis, brinquedos para duas crianças de 5 e 6 anos, doações de roupas, além de trabalhar com todos os cartões de crédito, menos os cartões telefônicos. Viu o que você perderia se amassasse e jogasse este impresso na cesta de lixo sem dar uma chance a você mesmo? Além de perder esta oportunidade única que a sorte está lhe oferecendo, você seria mais um porco sujando as vias publicas”. Chico Alfinete não acreditava muito nessas tolices. Contudo, um amigo do serviço, lhe dissera que, dias atrás, fora numa dessas cartomantes e os resultados haviam sido os melhores possíveis. De repente, bateu nele uma vontade de saber as quantas andava a sua vida amorosa com a Ifigênia, a sua Fifi. A rua em questão ficava a duzentos metros do banco. Não seria nada demais. Com a Ifigênia, tinha um lindo casal de filhos. Não existia, em absoluto, nada que desabonasse a conduta da companheira. Entretanto, será que ela era cem por cento honesta? Dizia sempre a verdade? Com esses pensamentos à flor da pele, após ter resolvido seu problema na instituição bancária, se viu plantado no endereço da tal Mãe Chupeta em Boca de Bêbado, o coração trêmulo, e, no rosto, um medo angustioso, estampado pela estreia num terreno que ele desconhecia completamente. Depois de se identificar na portaria, pegou o elevador e tocou a 61 campainha da sala 504. Ao ser aberta a porta, pintou, diante dele, uma criatura elegantemente paramentada num rodado vestido branco, cheia de colares, pulseiras e coisas típicas da terra de Jorge Amado. O grito que a mulher emitiu, de susto e espanto, se expandiu para o corredor. O de Chico se misturou ao dela, e foi mais longe. Alertou os outros condôminos que acorreram assustados para ver o que acontecia: — Chicooooooooooo...? — Fifiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...? 62 DetalHeZinHo 63 64 Os dois amigos se encontram na birosca do bairro onde moram. Sentam, pedem uma gelada. O papo começa. Tapado: — Soube que você dispensou a Sandra Gegê. Ficou maluco? Imbecil: — Não. Tapado: — Posso ao menos saber qual o motivo? Imbecil: — Esquece. Fica chato comentar sobre a “mina” aqui onde a gente mora. Depois pode dar buchicho. Sem contar que a “pessoa” é nossa vizinha. Tapado: — Qual o quê! A nossa conversa não sairá daqui. 65 Aparecido Raimundo de Souza Imbecil: — As paredes têm ouvidos. E olhos também. Tapado: — Fala sério! Imbecil: — Fiquei sabendo que algumas paredes são tão espertas que, além dos ouvidos e dos olhos, dispõem de boca e nariz, como se fossem a extensão dos seres humanos, ou seja, certas paredes, principalmente as de lajotas, cheiram a coisa e depois saem fofocando. Tapado cai na gargalhada. Por um triz não derruba os copos. Imbecil: — Está rindo de quê? Tapado: — Da sua comparação as paredes. Você deveria ser comediante. Com relação a Sandra Gegê, acho que você pirou de vez. Por tudo quanto é mais sagrado. Deixar um avião daqueles... Puts!... Eu não dou uma sorte dessas. Ah, se fosse comigo... Imbecil: — O que você faria? Tapado: — Como, o que eu faria? Pô, meu! Está me tirando? Imbecil: — Não seja por isso. Sua oportunidade chegou. A beldade agora está livre, leve e solta. 66 Aparecido Raimundo de Souza Tapado: — Então me “bate a pala”. Imbecil: — Bate o quê? Tapado: — A pala! Imbecil: — Que história de pala é essa? Tapado: — O mesmo que pista, seu burro. Bate pra mim, me de a página da cartilha, mostre o conteúdo. Imbecil: — Ummmm!... Tapado: — Vejo que você não tem nada na cabeça. Só vento. Não saber qual o significado de pala. Imbecil: — Saber ou não saber, não importa. Vamos esquecer a Sandra. Melhor que fazemos. Tapado: — Então deixa adivinhar. Você ficou um mês com ela. Curtiu, passeou, foi, voltou... E comeu. Não comeu? Imbecil: — Me pareço com um canibal? Tapado: — Palhaço. Faço referência a ter chegado junto. 67 Aparecido Raimundo de Souza Partido para o “vamos ver”. Imbecil: — Não, não cheguei a esse ponto. Não vi nada. Tapado: — Nadinha, nadinha? Imbecil: — Nadinha, nadinha. Tapado: — Vai querer me dar diploma de otário? Espia aqui na minha testa: acaso está escrito que sou trouxa? Um mulherão daqueles, com um pandeiro todo nos trinques e você não deu nenhum tapinha? Imbecil: — Pandeiro? Que pandeiro? Tapado: — Traseiro, cauda, cofrinho... Imbecil: — Em outras palavras: bunda? Tapado: — Claro, bunda, seu filho de uma égua. Imbecil: — Sinceramente? Não me apeteceu manter algo mais sério com ela. Apesar da bela retaguarda, ou como você colocou: pandeiro. O mais acertado, sem duvida, foi a decisão que tomei: mandei catar coquinho. Tapado se põe a remendar, na sacanagem, o amigo: 68 Aparecido Raimundo de Souza — “Não me apeteceu. O mais acertado, sem dúvida, foi a decisão que tomei: mandei catar coquinho”. Conta pro seu amigo aqui. O que houve, entre vocês, afinal? Imbecil: — Não houve absolutamente nada. Sabe o que eu gostaria de fazer agora? Mudar o rumo dessa prosa. Não quero mais falar no assunto. Caso encerrado. Tapado: — Ao menos pela nossa amizade, me dá o caminho das pedras... Imbecil: — Desista. Não existe nenhum caminho das pedras. Aliás, você não disse que iria adivinhar? Vá em frente! Tapado: — Ela não faz o melhor? Imbecil: — Melhor? Tapado: — É. Barba, cabelo, bigode? Só faz a barba? Imbecil: — Isto eu não posso precisar. Nem sabia que ela tinha barbearia. Tapado desfere um potente soco na mesa. Derruba os copos e a garrafa que se estilhaçam de encontro ao chão de cimento. O dono da birosca vem lá de dentro, rosto carrancudo, os olhos faiscando, prontos para incendiar uma floresta inteira. 69 Aparecido Raimundo de Souza Imbecil: — Não se preocupe seu Chiado. Eu arco com o prejuízo. Aproveita e providencia outra “ceva” pra nós, no capricho. O vendeiro, porém é direto e não manda recado: — Pois então paguem primeiro o prejuízo e a cerveja que consumiram. Assim evitamos problemas. Os dois amigos metem as mãos nos bolsos ao mesmo tempo. Imbecil: — Essa é minha. Você patrocina a próxima. Tapado: — Fechado. Nova garrafa e copos são colocados a disposição da dupla. Tapado: — Vamos em frente. Ela por acaso é “fria”? Imbecil: — Não. Tapado: — Se atropela com o microfone? Imbecil: — Passou longe... Tapado: — ... Então devo concluir, pelas suas palavras, que 70 Aparecido Raimundo de Souza ela é boa com o microfone na boca? Imbecil: — Você é quem está dizendo. Eu não confirmo nem desminto nada. Tapado: — Ah, já sei: ela não lava direito a perseguida. Com isso, a racha fede a bacalhau? Imbecil: — Esquece. Tapado: — É larga? Tem estrias? Morde o pau? Imbecil: — Tapado, pelo amor de Deus, vamos falar de outra coisa? Tapado: — Então abre o jogo. Imbecil: — Se eu falar você me deixa em paz? Tapado: — Deixo. Juro. Imbecil: — Jura de verdade? Tapado: — Eu juro! 71 Aparecido Raimundo de Souza Imbecil: — Não vale. Jure pela sua mãe. Tapado: — Pela minha mãe? Imbecil: — Sim. Quer ver ela mortinha, dentro de um caixão? Tapado: — Se é assim que deseja, dou o braço a torcer. Você venceu. Juro pela minha mãe. Meu pai eterno! Não acredito que estou fazendo uma coisa dessas. La vai: quero ver mamãe mortinha dentro de um caixão. Imbecil: — Agora eu acredito que você não baterá com a língua nos dentes. Tapado: — Faço qualquer coisa pra saber esse segredo da Sandrinha. Deixa de onda e abre o bico. Por que dispensou aquela gostosa, saborosa e igualmente deliciosa visão do paraíso? Imbecil: — Por um detalhezinho muito simples. Tapado: — Um detalhezinho? Que detalhezinho? Fala logo. Canta a pedra. Imbecil: — Ela tem pêlos na churréia. 72 temperatura ambiente 73 74 O cavalheiro elegantemente bem vestido entra no armazém assoviando New York, New York, de Sinatra e vai direto ao rapaz do balcão. — Por favor, um rolo de papel sanitário. — O senhor tem preferência por alguma marca em especial? — Qualquer uma serve. — Posso sugerir a que sai muito por aqui, e toda a vizinhança e adjacências faz questão de colocar no topo da lista de compras? — À vontade. Qual é? — Tico-Tico. — No fubá? — Como? 75 Aparecido Raimundo de Souza — Desculpe. Estava só brincando. Fale um pouco desse Tico-Tico. — Não há muito que dizer. Papel de alta qualidade, tecnologia japonesa. Vem em embalagens com quatro e seis unidades, tudo feito e produzido a vácuo, sem contato manual, coisa de primeiro mundo. E detalhe: não se rompe ao ser picotado. Dá o recado na lata. Basta uma passada de mão... Ou melhor, de dedo e pronto... — E o preço? — Para os fins a que se destina, é meio salgado. — Quero um desses populares baratos que não estuprem o meu traseiro – quero dizer, que não limpem o meu bolso, só o... Só o que tem de ser limpo, está me entendendo? — Depois do Tico-Tico temos o Limpa-Claro. — E é claro? — Claro que é bom. Aliás, excelente. — Já experimentou? — Não só eu como todos lá em casa. Mamãe, por exemplo, quando vai fazer suas necessidades mais prementes só usa o Limpa-Claro. Minha irmã Rosilda é a única chata da família. Cismou com o Toc-Cull. — Sabe o motivo? 76 Aparecido Raimundo de Souza — Segundo ela, esse é um papel mais grosso e consistente. — E a jovem aprecia a aspereza. Entendo! Você comunga com sua irmã essa manifestação de agrado em relação à grossura? Risos. — O senhor está mudando o rumo da prosa! — O que esse Limpa-Claro traz de extraordinário que mexe com a simpatia retrofuricular das pessoas? — As folhas são duplas, as cores variadas e tem a história dos sabores. — Sabores? — Perfeito. Vendo muito o que tem gosto de cereja. — Não me diga que sua freguesia além de usar, prova o papel? — Isso eu não sei, mas é o que vende e sai em grande quantidade. Então, qual o senhor vai querer? — Esse negócio de marca, para mim, não voga. — Aí é que o senhor se engana. — De que maneira? — Se eu lhe vender, por exemplo, um papel sanitário da 77 Aparecido Raimundo de Souza marca Buraco Limpo ou Bundisshow, com certeza o amigo passará raiva. — De que forma? — Na hora de ser usado o troço lhe deixará de calça-curta e a cueca fedendo. Sem falar no resto. A fórmula da fabricação é estranha. Parece que, na hora do vamos ver, o material, em contato direto com o dedo, se dissolve, vira farelo. — Meu falecido tio só usava um tal de Pintassilgo plus. Não sei se ainda fabricam. O rego dele nunca viu outro durante os 95 anos em que viveu. Se acaso faltasse, segurava a vontade de evacuar por três dias. Ia e vinha com aquele bolo de merda ruminando no intestino, soltava uns... Soltava uns... Você sabe. Bem fétidos e malcheirosos, de matar qualquer cristão. Ambos caem em estrondosa gargalhada. — O Pintassilgo, infelizmente, saiu de linha. Pois bem: qual devo embrulhar? O Tico-Tico, ou o Limpa Claro? — Vê esse baratinho mesmo... Como é mesmo o nome? — Buraco Limpo? — Não, o outro. — Bundisshow? — Na mosca. Levarei um rolo. 78 Aparecido Raimundo de Souza — Sugiro o Tico-Tico. — Sem chances. — Que tal, então, o Toc-Cull? — Limpar meu traseiro com algo abrutalhado e escarpado? Nem que a vaca espirre ou tussa. — Então...? — ... Manda o Bundisshow e fim de papo. No fundo, meu prezado, seja o Tico-Tico, o Buraco Limpo – a cagada é a mesma de sempre, o cheiro idem – e o fiofó, na hora de expelir o barro, não saberá distinguir entre um e outro. O importante é tirar o excesso das beiradas. Em casa, lavo tudo e fim de conversa. Fica novo e cheiroso outra vez e pronto para a próxima. — O cu é seu. — Que foi que disse? — Que a decisão é sua. Aqui está o que me pediu. Algo além? O cavalheiro paga, passa a mão no embrulho, e, da forma que entrou, vira as costas e sai assoviando New York, New York, do Sinatra. 79 80 De nascença 81 82 Assim que o garoto acorda e após ter tomado o café matinal, corre até onde esta sua mãe e manda a pergunta: — Mamãe, mamãe, me leva para ver o mar? — Não, meu filho... Duas horas depois o moleque volta a insistir: — Mamãe, mamãe, chegou um circo aqui no bairro. Foi armado logo ali na pracinha. A senhora me leva para ver o leão e o elefante? — Não, meu filho... Dia seguinte logo após o almoço a mesma cena se repete: — Mamãe, mamãe, me leva pra ver o cara que morreu ali no beco, essa noite, com cinco tiros? 83 Aparecido Raimundo de Souza — Não, meu filho... Passa algum tempo e o garoto retorna. Sempre eufórico e sorridente: —Mamãe, mamãe, me leva pra ver o novo campo de futebol que acabou de ser inaugurado? — Não, meu filho... O pobrezinho sai cabisbaixo. Tranca sua solidão no quarto e ali permanece por toda a tarde. A mãe, condoída, resolve ir até ele. Aproveita para levar o prato que o guri mais gosta: — Filho! — Sim mamãe? — Trouxe uma coisa pra você... — ... Já sei. Batatinhas fritas! — Sim. — Legal. — E de lambuja um copo de refrigerante. — Uau...! — Promete não ficar ai pelos cantos de tromba e com a cara amuada? 84 Aparecido Raimundo de Souza — Só se a senhora me levar na casa do Toninho hoje, às oito horas da noite? — O que vai ter lá? — Ele vai reunir a galera e mostrar o brinquedo novo que ganhou do pai. A senhora me leva? — Não, filho... Novamente o garoto se fecha num mutismo impenetrável: — Não quero as batatinhas... — Mamãe fez com carinho. Coma! — Não. — Tome o refrigerante. Está geladinho, como você gosta. — Não quero, não quero. Prefiro ir na casa do Toninho. — Não, filho... No domingo o piá faz a última tentativa: — Mamãe, mamãe, me leva no cinema? — Não, filho. — Está passando o Sherek. — Não, filho... 85 Aparecido Raimundo de Souza — Mas mãe, eu quero ir no cinema. Todos os meus amigos vão ver o Sherek. — Já disse que não. Por favor, não insista. O desditoso, não aguenta mais as negativas de sua genitora e se abre, finalmente, num choro convulso: — Me leva mãe. Toda a turma aqui do bairro vai ao cinema pra ver esse filme. — Não, não, e fim de papo. — Mãe, eu quero ver o Sherek... Eu quero... Me leva por favor, mãe, por favor... A mulher, indignada e fora de si, esbraveja, furiosa: — Para de encher meu saco, seu desgraçado! Não me peça para ir a lugar nenhum... Você não está cansado de saber que é cego? 86 O gaiato 87 88 Nesta manhã, o patrão chega mais cedo ao escritório e entra porta adentro todo alegre e saltitante. Antes de pisar em seu gabinete para começar o dia, reúne todos os funcionários no refeitório para divulgar a boa nova: — Gente, eu pediria um minutinho só da sua atenção. Pode ser? Hoje tenho uma ótima notícia para dar... A galera, em peso e a uma só voz: — Nós ganhamos alguma concorrência? — Não. O chefe da produção arrisca: — O senhor acertou na loteria? — Quem dera...! A secretária, bonita e encantadora, sumariamente acondicionada num vestido que praticamente deixa 89 Aparecido Raimundo de Souza tudo à mostra, se levanta e manda um palpite: — O senhor comprou aquele carrão que fomos ver no final de semana? 0 sujeito fuzila a moça com os olhos. Pensa em mandála às favas, mas, devido a magia do contentamento que o acompanha e contagia, sorri e acaba respondendo educadamente: — Não senhorita Silvia. Meu sócio se antecipou... Priscila, do RH se aventura: — Vamos, finalmente, mudar para o prédio novo? — Creio que isso ainda demorará um pouquinho. Pelo menos mais uns trinta a quarenta dias. O Waldir da informática também se faz presente: — O senhor saiu vitorioso naquela briga acirrada na justiça com a nossa maior rival no caso dos postes préfabricados com sensores anti-cachorros? — Meu rapaz, você errou o alvo. A notícia da qual sou portador é melhor do que tudo que foi ventilado até agora. E esse tiro que vou anunciar com o coração em festa, não saiu pela culatra. Grosso modo, a bala foi certeira... Dona Maria do financeiro se adianta confiante: — O senhor botará em prática aquela promessa antiga de premiar a melhor equipe com uma viagem ao exterior com 90 Aparecido Raimundo de Souza tudo pago e direito a acompanhante? — Ainda não, Maria. Talvez no próximo ano...!!! — Vai nos dar um bom aumento?— grita um engraçadinho anônimo lá do fundo do salão: — Pessoal, eu estou falando sério. Muito sério! — Dá uma dica ai, patrão — pede dona Dulce, da copa, com uma alegria intensa no rosto envelhecido. — Não tem graça, tia Dulcinha. Ficaria fácil demais. — Uma colher de chá...! — Ao menos de café, pode ser? — Melhor que nada. — Ok! Vou realizar meu maior sonho. — Sonho? Ah, tá. O senhor comprará um iate? — Seu palpite está gelado. Super gelado! — Um jatinho particular? — Passou longe, amigo. — Uma mansão numa praia afrodisíaca? — Já tenho uma. — Vai ter seu próprio canal de televisão? — Não! 91 Aparecido Raimundo de Souza — Vai se mudar de mala e cuia para um apartamento de cobertura em Las Vegas? — Nem pensar... — Trocará os móveis, as cadeiras e os computadores aqui da empresa por outros novos e de última geração? — Vocês terão tudo isso e muito mais quando mudarmos para o prédio novo. Nesse momento os funcionários gritam, assoviam, dão vivas e batem, com fortíssimo entusiasmo, uma salva de palmas. O todo poderoso a um gesto com as mãos, volta a pedir silêncio: — Galera, como já disse, e volto a repetir, estou falando sério. Seriíssimo! — Já que ninguém deu uma dentro, conta ai doutor. Manda o papo numa boa... —... Pois bem. A minha mulher, finalmente, ficou grávida. Não é sensacional? Minha mulher está buchuda, prenha, barriguda. Cíntia vai ter um nenê. Vai me dar um filho...!!! O mesmo engraçadinho anônimo de alguns minutos atrás, sentado, ainda, no fundo da sala torna a se levantar, e, desta vez, berra, chamando a atenção de toda a turma, em sua direção: — E o senhor, por acaso, sabe quem é o pai? 92 Matematicamente correto 93 94 De três em três meses, no enorme refeitório do manicômio, a direção reunia uma fila composta de seis psicopatas pinçados de todos os quase noventa pacientes, para fazer uma espécie de exame rotineiro. A ideia era determinar, através de uma ligeira avaliação, realizada por um especialista, qual (entre os menos birutas), estava apto para deixar as dependências daquele estabelecimento, receber alta e retornar à vida social e ao seio de seus familiares. Desta feita, quando o panteão da cura apareceu no umbral da porta com sua maletinha preta na mão esquerda, topou com a tal da meia dúzia de doentes ordenadamente sentados, um ao lado do outro, acompanhados de enfermeiros e funcionários que cuidavam para que tudo corresse numa boa e ninguém 95 Aparecido Raimundo de Souza saísse ferido, caso um deles, num inesperado ataque de comportamento, fosse acometido, por uma súbita crise inesperada, ou imprevista e deixasse a galera em polvorosa e com os nervos à flor da pele. Depois de se ajeitar, colocar seus pertences em uma mesa improvisada, o representante da medicina tirou dos bolsos do jaleco um estetoscópio, ajeitou no pescoço, seguido por um aparelho de medir pressão, e, após pegar a caneta e um bloco de receituário, fez sinal para que um dos enfermeiros cuidasse de trazer o primeiro. O sujeito sentou sem dizer nada e encarou o doutor. — Como é seu nome? — Bitelo. — Ok. Bitelo. Vou fazer uma pergunta simples. Simples e fácil. Preparado? — Sempre! — Quanto é um mais um? — Onze— respondeu de pronto, o gira. O doutor balançou a cabeça como a dizer com seus botões: “Esse não tem condições. Nem que eu quisesse.” Veio o segundo. Após indagar pelo nome, o mesmo questionamento voltou à cena. — Seu Fungado, quanto é um mais um? — Puta que pariu! 96 Aparecido Raimundo de Souza O médico coçou a testa, numa clara demonstração de desânimo. Fez sinal para que lhe trouxessem o próximo. — Amigo, como é seu nome? — Zoião. E o seu? — Isso não vem ao caso. Quero que responda, seu Zoião: quanto é um mais um? O estouvado não se fez esperar: — É porra, meu prezado, é porra! O esculápio ficou agitado, raivoso, encapelado, literalmente enfurecido, mas se controlou. Veio o quarto. Usou da mesma tática aplicada aos três primeiros. — Seu nome? — Meu nome é Zé Pequeno! — Bonito nome. Quanto é um mais um? Zé pequeno pensou alguns segundos, e, então se levantando inopinadamente, aplicou um potente soco na mesa e respondeu, com encrespada rispidez: — No cu, seu veado. No cu. Posso ir? O perito aloprou. Ficou vermelho como um pimentão. Faltou pouco para chegar às vias de perder a esportiva e estourar com o sujeito. Mas, contou até dez. De que adiantaria? Era um débil mental... Bastante trêmulo e chateado, sinalizou para que o enfermeiro trouxesse o quinto. 97 Aparecido Raimundo de Souza — Amigo antes de qualquer coisa. Diga seu nome? — Banquinho de Pai de Santo, às suas ordens. — Vamos ver se você é mais esperto que seus colegas. Quanto é um mais um? O infeliz não se fez de polido, nem se mostrou civilizado: — É merda! É merda, seu Mané! Faltava o último dos moicanos, o derradeiro. Quem sabe esse estivesse em melhor situação, pelo menos posicionado no tempo e no espaço de forma coerente, e, com as graças do Altíssimo, recebesse a carta de euforia para deixar o sanatório. — Meu amigo, vou ser rápido e quero que seja também. — Pois não, seu doutor. Não quer saber antes meu nome? — Desculpe, já ia esquecendo. Qual sua graça? — Chifrudo Conformado de Oliveira. — Muito prazer, seu Chifrudo. Vamos lá. Quanto é um mais um? — Dois — respondeu, com firmeza. O destro, finalmente abriu um sorriso franco. — Parabéns, meu rapaz. É isso mesmo. Gostei de ver. — Eu é que agradeço a gentileza. 98 Aparecido Raimundo de Souza — Agora me diga, seu... Como é mesmo seu nome? — Chifrudo Conformado. Mas atendo pelo apelido de Galheiro. — Tudo bem, tudo bem, seu Galheiro. Pode esclarecer como chegou a essa conclusão? — Que conclusão? Que sou galheiro? — Não, amigo. Tal fato para mim não faz a menor diferença. Faço referência ao resultado do quesito que lhe propus. Um mais um, lembra? — Por certo, doutor, evidente que me recordo. Foi mel na chupeta. Na verdade me baseei nas réplicas dos meus amigos aqui presentes. — Como assim? Não entendi. Pode ser mais explícito? — Perfeitamente, doutor. Será um prazer. Faça os cálculos comigo. “Onze” mais “puta que pariu”, multiplicado por “é porra”, elevado ao cubo, obteremos, na lógica, a raiz quadrada de “no cu, seu veado”. Pois bem! Continuando, minha explanação, “no cu, seu veado”, dividido por “é merda, seu Mané”, diminuído da minha resposta, só pode dar dois, como, aliás, foi o que respondi. Dois! O psiquiatra catou suas coisas e, de mansinho, saiu à francesa. 99 100 Hoje em dia se “encaixa” 101 102 Gorgúndio Bitola Larga recebeu um baita de um envelope postado com AR trazendo seu novo manual de endereços com todas as especialidades médicas, bem como um cartão magnético de identificação do plano de saúde que vinha pagando a mais de dez anos. Como estava de férias e sem nada para fazer, resolveu ligar para ver se a coisa funcionava de verdade, como anunciava aquele amontoado de papéis, ou tudo não passava de propaganda enganosa para engabelar trouxas. Pegou o livreto azul, de capa dura. Quase uma centena de folhas coloridas. Abriu ao acaso. Por coincidência, caiu num geriatra que conhecia de longa data, desde os tempos em que levava sua falecida mãe para se consultar com ele. Passou a mão no telefone e ligou para o número indicado. Uma moça 103 Aparecido Raimundo de Souza de voz adocicada atendeu prontamente: — Clínica ASSUMIAMEG, bom dia. — Bom dia jovem. Gostaria de marcar uma consulta com o doutor Koffer. — Um minuto, por favor. Depois do que pareceu uma eternidade a atendente retornou: — O senhor é cliente dele? — Não. — Senhor. Obrigado por ter esperado. Só temos horários vagos para o ano que vem. — Nossa! — Infelizmente. Deseja mais alguma coisa, senhor? Enquanto permaneceu com o telefone no ouvido, Gorgúndio Bitola Larga observou que logo abaixo do doutor Koffer um outro médico da mesma especialidade atendia naquele endereço. Como se propusera a testar a qualidade dos serviços seguiu adiante, resoluto, disposto a levar a coisa a ferro e fogo: — E para o doutor Hãhnchen haveria possibilidade? 104 Aparecido Raimundo de Souza — Um instante por obséquio. Nesse instante se foram mais cinco minutos cravados. — Senhor, também está lotado. Só para começo de janeiro. — Que loucura! Estamos no final de novembro!... — Sinto muito, senhor. Gorgúndio desligou e contatou outros credenciados. Mesmo problema. Idêntica conversa. Não havia vaga. Quem sabe mudando de área e de esculápio, obtivesse mais sorte e fosse acolhido com sucesso. Optou por um tal de doutor Shekinah, cardiologista. Por incrível que pareça a conversa da secretária dele foi literalmente idêntica a das recepcionistas anteriores: — Não temos disponibilidade para o momento, cavalheiro. — Mas é urgente, dona. — Desculpe. Gorgúndio teve uma ideia que a princípio lhe pareceu brilhante. Aparecer pessoalmente no local. Anotou o endereço, pegou a moto e foi à luta. O consultório do doutor Shekinah estava sediado numa dessas mansões impecáveis, de dois andares, com jardins bem cuidados, piscina, churrasqueira e uma porção de carros importados 105 Aparecido Raimundo de Souza na garagem, sem falar no bairro nobre com uma pá de seguranças rondando para lá e para cá como se fossem cães de guarda. — Uma ficha para o doutor Shekinah... — Senhor, para hoje não temos mais nenhum horário disponível. — E para amanhã? — Igualmente impossível. — Meu caso é urgente. Diria até de vida ou morte. — Nem assim posso atendê-lo. Continuou questionando. — Mas a recepção está vazia. — Senhor, os pacientes estão vindo para cá. Dentro de dois minutos entrará uma senhora por aquela porta. — Uma desistência, ao menos? — Até agora todas confirmadas. — Ninguém que venha de muito longe e possa perder o horário? — Para hoje nenhuma chance mesmo, acredite. 106 Aparecido Raimundo de Souza Gorgúndio então jogou a derradeira carta que dispunha na manga. Encarou a beldade da recepção bem dentro dos olhos e arrematou enfático, e muito sério: — Já que é assim e não tem jeito, fazer o quê? Vou aproveitar que estou na chuva e me molhar mais um pouco. Procurarei outro profissional. Pago a consulta a vista e fim de papo. Deve ter aos montes, por ai. Fico muito agradecido, senhorita. Até mais ver... Estava quase no portão quando a jovem de avental azulmarinho o alcançou, se desmanchando em mesuras esolicitudes que dava até para desconfiar: — Senhor...!!!! — Pois não? — Uma paciente acabou de ligar para cá. Houve um imprevisto com o carro dela... — ... E o que eu tenho a ver com isso? — Acho que vai dar para lhe “encaixar”. 107 108 Aparecido Raimundo de Souza Livros do autor “A outra perna do saci” “O vulto da sombra estranha” “Tudo o que eu gostaria de ter dito” “Do fundo do meu coração” “Refúgio para cornos avariados” “Cinco contra 1” “Quem se “abilita”?” “Havia uma ponte lá na Fronteira” “Travessuras de Mindinho e Furabolo” “Mulheres em estado de coma” “Os três desejos” 109 110 contato com o autor: [email protected] 111 "A Editora e a coordenadora não se responsabilizam pelo teor dos conceitos, afirmações expressas e dados contidos nesta obra. Todo o conteúdo: texto formulado e as opiniões são de inteira e exclusiva responsabilidade do autor, que exerce seu direito de expressá-las publicamente." 112 Produzido no Brasil em Maio/2012. GRUPO EDITORIAL CELEIRO DE ESCRITORES 113 114
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