View/Open

Transcrição

View/Open
Doutrina Nacional
Iuria Novit Curia em Arbitragem e as Cortes Europeias
LEONARDO MÄDER FURTADO
Advogado.
RESUMO: Este artigo trata dos limites do mandato dos árbitros ao decidirem o
caso baseado em uma previsão legal não arguida pelas partes. Em alguns
sistemas jurídicos, esta prática é denominada iuria novit curia. O autor
procurou decisões sobre o assunto proferidas por cortes de países
frequentemente utilizados como sede de arbitragens comerciais
internacionais, e o interessante sobre o assunto é que o devido processo
legal se transforma em um elemento importante na missão do árbitro, i.e., se
o árbitro deve ou não agir com a máxima do iuria novit curia.
ABSTRACT: This essay deals with the boundaries of the arbitrators' mandate
when deciding a case based on a law legal ground not pleaded by the
parties. In some legal systems such practice is referred as iuria novit curia.
The writer sought for the decisions on this issue rendered by the courts from
countries frequently used as seats of international commercial arbitration and
the interesting about the matter is that the due process of law principle plays
an important role in the mission of the arbitrator, i.e. on whether or not the
arbitrator should act with the adage of iuria novit curiae.
SUMÁRIO: Introdução; 1 O dilema dos árbitros; 1.1 O princípio do iuria novit
curia em arbitragem comercial internacional; 1.2 Devido processo legal; 2 As
sentenças arbitrais, o iuria novit curia e suas consequências; 2.1 Suíça; 2.2
França; 2.3 Suécia; 2.4 Inglaterra; 2.5 Finlândia; Conclusão.
Is iuria novit curia, if challengeable, a matter of excess of
mandate or violation of the right to be heard?
INTRODUÇÃO
Trata-se de artigo sobre os casos em que os árbitros aplicam
previsões da lei não arguidas pelas partes em suas decisões. No
Judiciário, esta prática é denominada iuria novit curia. O princípio do
iuria novit curia prevê que o juiz sabe a lei. Assim, as partes
apresentarão os fatos enquanto o juiz apresentará a consequência
jurídica 1. Na prática, as partes apresentam ao juiz não apenas os
fatos, como também seu entendimento sobre o direito aplicável 2. O
juiz, por sua vez, profere a decisão.
28
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Quando as partes optam por abandonar o Judiciário e submeter
suas disputas à arbitragem internacional, elas estão confiando ao
futuro árbitro a competência para proferir uma decisão final sobre a
lide existente entre elas. Entretanto, não está claro a que extensão os
árbitros estão livres para aplicar a lei que lhes parece mais correta à
solução da lide das partes. Em outras palavras, é permitido aos
árbitros proferir uma decisão desconsiderando o direito defendido
pelas partes e baseando-se em um artigo não arguido pelas partes?
Este artigo baseia-se no direito comparado, levando em
consideração decisões importantes proferidas por cortes de países
populares como sede de arbitragens internacionais. A razão para o
autor basear suas conclusões nas decisões das cortes é porque, na
prática, são as cortes da sede e as cortes do local da execução da
sentença que decidem qual é o escopo do mandato dos árbitros, já
que ali se decide se a sentença será anulada ou executada.
Para analisar as decisões do Judiciário profundamente, este
artigo primeiramente analisará os direitos e deveres dos árbitros como
adjudicadores, o que será feito através da discussão do princípio do
iuria novit curia e o devido processo legal em arbitragem comercial
internacional.
A segunda seção discutirá a postura que algumas cortes
europeias tomam em relação ao escopo do mandato dos árbitros. Esta
seção focará nas respostas que as cortes dão quando o princípio do
iuria novit curia é aplicado pelos tribunais arbitrais. Ao analisar as
reações das cortes ao princípio do iuria novit curia, o autor chega ao
problema deste artigo, qual seja se é permitido aos árbitros agirem
com o princípio do iuria novit curia, e, se não, se o pedido de anulação
da sentença deverá ser feito com base na suposta violação ao devido
processo legal ou o excesso de mandato 3.
Deve ser enfatizado que este artigo não abordará o mandato
dos árbitros com relação ao escopo da cláusula compromissória. Aqui
deve ser traçada uma linha entre os árbitros decidirem um caso além
dos limites da cláusula compromissória, e quando o árbitro decide o
caso com base em uma previsão legal não arguida pelas partes. Em
ambos os casos, há questões jurisdicionais em jogo 4. No entanto, a
base jurídica para se anular a sentença é diferente 5. A maior
diferença entre essas duas bases está no fato de que no excesso de
mandato, e na violação do devido processo legal, há uma cláusula
compromissória, enquanto que no outro caso a sentença é anulada,
pois não há cláusula compromissória válida sobre o ponto decidido
fora dos limites da cláusula 6. O excesso de autoridade e a violação do
contraditório são aplicados exclusivamente nos casos em que o árbitro
decide sobre uma matéria além do escopo das petições apresentadas
a ele 7. Este artigo também não discutirá a aplicação compulsória de
leis de polícia pelos tribunais arbitrais.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
29
Finalmente, como esclarecimento, este artigo não discutirá a
finalidade das sentenças arbitrais versus a intervenção das cortes. A
deferência das cortes às sentenças arbitrais não está em discussão
aqui. Ao contrário, o que se discute aqui é o escopo de liberdade que
os árbitros possuem ao proferir suas sentenças. Como foi decidido no
caso London Underground Limited v. Citylink Telecommunications
Limited 8, existe uma diferença sensível entre a finalidade da
arbitragem e o controle que resta ao poder das cortes para prevenir a
conduta injusta de um procedimento arbitral. O ponto em discussão
aqui é se as cortes consideram iuria novit curia como uma conduta
injusta no procedimento arbitral, e se isto seria um caso de excesso de
mandato ou violação do devido processo legal.
1 O DILEMA DOS áRBITROS
O propósito dos árbitros é proferir uma decisão sobre a lide
posta perante eles 9. O problema surge quando o advogado não
desenvolveu todos os argumentos que tocam a disputa. Mas é dever
do advogado levantar todo e qualquer argumento jurídico para
assegurar que o caso foi discutido ao máximo possível? Ou o
advogado deve deixar esta tarefa aos árbitros? Ou, ainda, devem
todos ignorar isso e se aterem apenas ao que foi discutido na
arbitragem?
Se o mandato dos árbitros é destinado a resolver os problemas
específicos, estariam eles excedendo seu mandato ao decidirem com
base em um artigo não arguido pelas partes? Note-se que muitos
consideram a discussão sobre a aplicação do iuria novit curia uma
questão de devido processo legal 10. Como será discutido na segunda
seção, na maior parte das decisões sobre o iuria novit curia a palavra
final dada pelas cortes é que os árbitros deveriam ter avançado o
argumento base de sua decisão, não levantado pelas partes, para que
elas comentassem sobre ele antes de a decisão ser proferida. Caso
contrário, a sentença arbitral é anulada. Essas ações previnem
decisões inesperadas e desentendimentos dos tribunais em casos
complexos.
30
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Ademais, deve o mandato dos árbitros ser limitado pelo pedido
das partes? Ou deve ser delimitado de acordo com o cenário fático
apresentado pelas partes? Ou, ainda, deve ser delimitado de acordo
com a posição jurídica apresentada pelas partes? Cada uma dessas
condições torna o escopo do mandato mais restrito. Note-se que isso
não está considerando a função e os efeitos das petições das partes,
mas, ao contrário, o escopo do mandato dos árbitros para decidir com
base em artigos não arguidos pelas partes.
A obrigação dos árbitros é de decidir o ponto específico
colocado diante deles 11. Eles possuem uma missão jurisdicional 12.
Para este propósito, o árbitro está no mesmo patamar dos juízes 13.
Consequentemente, o árbitro não pode ser considerado na mesma
posição das partes. Embora haja um contrato que os vinculam, eles
estão em um nível hierárquico diferente, pois o árbitro é o juiz das
partes 14.
Em outras palavras, muito embora os árbitros não sejam
membros do Judiciário, sua relação com as partes não é em nível
horizontal, já que os árbitros têm o poder de vincular as partes à sua
decisão. Isto, entretanto, não significa que o árbitro tem a liberdade de
ordenar às partes como ele bem quiser; o escopo do mandato dos
árbitros é primeiramente limitado pela cláusula compromissória. O
poder dos árbitros está alocado entre a vontade das partes e a lei 15.
Nessa senda, o contrato dos árbitros com as partes é limitado
pelos direitos fundamentais das partes. Estes direitos são a
oportunidade de apresentar seu caso, o respeito ao princípio do
contraditório e o tratamento igualitário 16. Mayer, em um
posicionamento similar ao de Clay, limita a liberdade dos árbitros ao
princípio da justiça natural (ou devido processo legal nos países de
common law) 17. Abrangido pelo princípio da justiça natural
encontra-se o princípio de "ser entendido" (cada parte tem o direito de
ser notificada das alegações da parte contrária), o princípio do
contraditório e o princípio do tratamento igualitário 18.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
31
O propósito deste artigo não é discutir a diferença entre devido
processo legal, princípio do contraditório e princípio adversarial. A
doutrina e a jurisprudência são divididas nesse ponto 19, e não é
dever do autor esclarecer tais pontos aqui.
Ainda nos princípios fundamentais, as partes possuem o direito
de executar este direito, já que a indicação do árbitro foi baseada na
sua capacidade jurisdicional 20. Ênfase deve ser dada ao fato de que
tais deveres do árbitro são obrigações de meio e não de resultado 21.
Assim, a missão do árbitro é relacionada a sua capacidade de dar às
partes uma decisão final, respeitando os princípios processuais
sagrados, No entanto ainda diferente da missão dos juízes, já que sua
jurisdição é limitada à vontade das partes. De forma prática, o que foi
dito é que os árbitros devem resolver os problemas postos a eles.
1.1 O princípio do iuria novit curia em arbitragem
comercial internacional
Nesta seção será visto como o princípio do iuria novit curia é
abordado pelos praticantes da arbitragem. Ademais, é interessante
entender como o princípio é considerado por cortes de diferentes
sistemas legais, como jurisdições de common law e civil law, assim
como cortes criadas por tratados internacionais. Embora arbitragem
seja dificilmente comparada às cortes, é interessante observar a
missão dos juízes em diferentes cortes e sua influência sobre as
decisões arbitrais proferidas em tais jurisdições.
De fato, não é pacífica a definição do conceito de iuria novit
curia. Por exemplo, alguns entendem que iuria novit curia em
arbitragem pressupõe que os árbitros alertaram as partes sobre
entendimentos jurídicos não arguidos por elas de forma que elas
tenham a chance de comentar tais entendimentos 22. Como será visto
na segunda seção deste artigo, isto não deve levar à impugnação de
uma sentença por excesso de mandato ou violação ao devido
processo legal. Por outro lado, se tomarmos a perspectiva tradicional,
iuria novit curia significa aplicar a consequência jurídica que mais
serve à disputa independente do fato de as partes terem a chance de
comentar isso 23.
32
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Até agora não há resposta direta se este princípio é aplicável
em arbitragem. No Judiciário, em que não há esta pressão de se
anular sentenças, a aplicação do princípio também é criticada. Se
alguém leva em consideração o número de entendimentos jurídicos e
de artigos existentes nos códigos, é impossível que um juiz possa
aplicar todos corretamente 24. Entretanto, de acordo com o propósito
do iuria novit curia, o juiz sabe a lei em geral, pois ele é experiente e
pode procurar na lei de forma competente e representar o interesse do
Estado com igualdade e justiça 25.
Quando se discute esse princípio em arbitragem comercial
internacional, o problema cresce. Nesses casos, é normal identificar
várias leis aplicáveis ao procedimento 26. Em várias ocasiões, os
árbitros nem sequer são familiarizados com aquele sistema legal 27. A
diferença entre common law e civil law leva ainda a métodos de
interpretação diferentes dos contratos. Baseado nestas condições,
alguém dificilmente poderá imaginar que os três árbitros serão
experientes suficientemente para ter um vasto conhecimento em todas
as leis aplicáveis à disputa.
Atualmente, isso é considerado como um encorajamento para
as partes apresentarem petições sofisticadas aos árbitros sobre a
interpretação e aplicação do direito, incluindo pareceres jurídicos em
vários casos 28. Como um resultado, poderia haver um iuria non novit
curia 29. Se os árbitros não são experts na lei aplicável à disputa, por
que deveriam eles ser autorizados a aplicar o iuria novit curia?
A princípio, esta consideração parece razoável. No entanto, se
tomarmos uma posição de que existe o iuria non novit curia, alguém
poderá assumir que, se o árbitro é especialista na lei aplicável, ele
poderá agir com o iuria novit curia. E nesse sentido, quais seriam os
requisitos para considerar alguém como especialista em uma lei? Esse
conceito, portanto, parece ser vago.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
33
Chanais argumenta contra o iuria non novit curia primeiramente
dizendo que as partes procuram a arbitragem em vez de o Judiciário,
buscando a flexibilidade, às vezes a confidencialidade e outras
vantagens da arbitragem. No entanto isso não significa que as partes
buscam uma decisão menos justa 30. Ao incluir uma cláusula
compromissória e escolhendo o árbitro devido às características intuitu
personae, as partes querem que ele aplique sua experiência prática,
não apenas seu senso de justiça. Ademais, Chanais, defende que o
iuria novit curia seria uma opção "opt out" em arbitragem internacional.
As partes que não quiserem correr o risco de enfretarem surpresas
com as conclusões dos árbitros apontados por elas deverão avisar
com antecedência que seu mandato é restrito 31.
Analisando o problema com cautela, a discussão do iuria novit
curia em arbitragem remonta ao caminho que os árbitros utilizam para
atingir sua conclusão ao proferir a sentença. Eles são proibidos de
aplicar seu conhecimento pessoal no caso. Um bom exemplo disso é o
caso Radauti, decidido pelo Queen's Bench 32. Embora o exemplo
diga respeito à aplicação de fatos não arguidos pelas partes, ao invés
de lei, a ilustração feita pela Corte inglesa é muito clara. Se ao árbitro
cabe avaliar um touro, ele não o poderá fazê-lo baseado em seu
conhecimento pessoal. Assumamos que na semana passada o árbitro
vendeu um touro por R$ 1.000,00. O touro que será avaliado na
arbitragem não deverá seguir as mesmas premissas que o touro do
árbitro seguiu, exceto se as premissas foram apontadas para as partes
e elas as comentaram. No entanto, se o árbitro é experiente no
mercado bovino, sabe as flutuações do mercado, não há que se abrir
tais premissas para discussão, antecipadamente, às partes. Essa
visão é baseada no princípio da justiça natural.
Esse foi o entendimento mantido pela Corte de Apelação
inglesa na decisão. Os árbitros podem utilizar o conhecimento
disponível a eles. Se o conhecimento estava disponível para as partes,
para os advogados e para os árbitros, já que todos são praticantes da
área de comércio marítimo, por exemplo, não há razão para se
considerar que os árbitros estariam agindo erroneamente ao levantar
premissas diferentes na sentença arbitral 33, ou, até, como alguns
dizem, parcial.
34
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Não há razão para considerar que o árbitro ou o juiz que levante
algum ponto não arguido pelas partes é parcial, já que o princípio do
contraditório é respeitado 34. Em realidade, o devido processo legal,
através do contraditório, deve ser considerado coexistente com o iuria
novit curia, e não um inimigo 35.
Tendo introduzido os leitores às ideias e discussões sobre o
iuria novit curia, o autor agora explora o sistema das cortes. Na
Alemanha, por exemplo, as cortes são autorizadas a utilizar o princípio
do iuria novit curia 36. No entanto, a corte deve submeter às partes
para comentarem sobre a previsão legal, não arguida por elas, que a
corte entende ser aplicável 37. A doutrina alemã prevê que o mesmo
entendimento deverá se aplicar em arbitragem doméstica e
internacional 38.
Contrárias à Alemanha estão as cortes de common law. Essas
diferenças nascem do papel dos juízes nas diferentes jurisdições 39.
Nos países de common law, a verdade poderá ser atingida pela
discussão das partes, enquanto que nas jurisdições de civil law, o juiz
possui um escopo de poder maior, o qual lhe atribui a oportunidade
para buscar a verdade 40.
Quando se olha para os tribunais internacionais, a Corte
Internacional de Justiça 41 e o Órgão de Apelação da Organização
Mundial do Comércio 42 seguem o mesmo entendimento da maior
parte das jurisdições de civil law. A Associação de Direito Internacional
(International Law Association - doravante referida como "ILA")
acredita que essa prática é seguida porque ela busca a proteção das
normas internacionais ao invés da resolução da disputa entre os
litigantes 43.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
35
Por outro lado, as cortes de common law, no que diz respeito à
aplicação de lei estrangeira, entendem que, exceto se provado pelas
partes, a lei estrangeira não deverá ser aplicada 44. Em contraste, as
cortes de civil law geralmente decidem que a parte que não alegou a
previsão legal correta na disputa não é impedida de ter uma decisão
justa proferida pela Corte 45. O que as cortes estatais de jurisdições
de civil law fazem quando autorizam a utilização do iuria novit curia é
avançarem seu interesse de terem uma jurisprudência coerente 46.
Ademais, quando as partes optam por arbitragem, uma das
vantagens vendidas é que tal instituição prevê a liberdade das partes
para escolherem a lei aplicável. Como é sabido, os árbitros nem
sempre são conhecedores da lei aplicável. Em uma grande parte dos
casos, a lei aplicável é escolhida após a nomeação do painel arbitral, e
o próprio painel deverá decidir qual é a lei aplicável, seja pela lei mais
próxima, seja por outro método de conflitos de lei. Portanto, é fácil de
entender quão importante é o papel da lei aplicável.
Consequentemente, se as partes estão vinculadas pela lei suíça
para decidirem sua disputa, pois esta é a lei mais relacionada com a
disputa e aparentemente a lei que daria a melhor solução ao caso, por
que desconsiderar suas previsões? Fazendo o raciocínio inverso, se
todas as previsões da lei suíça não são importantes, por que escolher
tal lei? Por que ter uma decisão jurisdicional sobre a lei aplicável ou
por que escolher a lei aplicável ao contrato se as previsões de tal lei
não fazem diferença para o tribunal se não foram alegadas pelas
partes?
Aprofundando essas questões, alguém pode chegar à
conclusão de que o problema não é, na verdade, a aplicação do iuria
novit curia em arbitragem internacional, mas ao contrário, o problema
é dar às partes a chance de serem ouvidas. Ademais, não parece
razoável discutir tanto sobre a lei aplicável para o caso se os árbitros
não podem encontrar a resposta para o problema na lei, já que as
partes não arguiram essa previsão.
Nesse sentido, a House of Lords chegou a uma decisão
interessante no caso Lesotho 47. O caso será propriamente debatido
na segunda seção desse artigo, mas, nesse momento, cabe dizer que
a House of Lords decidiu que, se o painel arbitral chegou à conclusão
errada devido a um erro de fato ou de lei, não cabe a anulação da
sentença arbitral.
36
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
O autor não acredita que o tribunal arbitral deve se autoeducar
na lei aplicável à disputa. O autor concorda com a perspectiva de que
as partes tem o ônus de provar seu caso. Entretanto, quem deverá
suportar as consequências da falha do demandante de lidar com as
previsões legais relevantes? 48 O demandante ou o demandado?
Kessedjian disse que os árbitros devem deixar as partes alerta
sobre qual é sua opinião sobre as previsões legais que serão
aplicadas na sentença arbitral 49. Ela salienta que o iuria novit curia
não é aplicável à arbitragem internacional 50. A arbitragem
internacional, na opinião dela, é mais independente do local da
arbitragem. Consequentemente a multiplicidade de regras jurídicas
aplicáveis aumenta 51. Por este motivo, os árbitros devem noticiar as
partes das previsões legais que serão aplicáveis à disputa 52. Tais
considerações levam os leitores à relação entre o devido processo
legal e o iuria novit curia.
1.2 Devido processo legal
Esta subseção é destinada a cobrir a relação entre iuria novit
curia e o devido processo legal. A posição das cortes sobre o assunto
será exposta na segunda seção deste artigo. Entretanto, visando a
atingir a racionalidade das cortes para decidirem sobre o assunto, é
importante entender quais elementos existem nesta relação.
Não raras são as vezes em que se requer a anulação de
sentença arbitral baseada no excesso de autoridade e violação do
devido processo legal 53. Aparentemente, a lei das sedes mais
populares de arbitragem entendem que a violação ao devido processo
legal e o excesso de autoridade dos árbitros é um motivo para se
anular a sentença arbitral 54.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
37
O arrazoado das impugnações sob tais motivos é muitas vezes
basea-do no iuria novit curia. Portanto, há uma discussão implícita se
os árbitros excedem seu mandato ou se violam o devido processo
legal, quando proferem uma sentença sob a guarda do iuria novit
curia. A doutrina parece adotar a posição de que se trata de uma
violação ao devido processo legal. Por exemplo, Bolard advoga que se
trata de uma violação ao princípio do contraditório 55. Poudret e
Besson salientam que o princípio do contraditório atinge sua máxima
quando os árbitros estão querendo proferir sua decisão baseados em
seu conhecimento pessoal, ou em informações encontradas por eles,
e as partes não esperam este entendimento 56. Assim,
aparentemente, o iuria novit curia está mais relacionado ao devido
processo legal do que ao excesso de mandato.
Sobre a análise para verificação se houve violação ao
contraditório, Van den Berg ensina que a corte que recebe o pedido de
execução da sentença arbitral estrangeira não pode analisar se o
árbitro poderia ter alcançado uma conclusão diferente caso ocorresse
a violação ao devido processo legal 57. Isso porque tratar-se-ia de
análise do mérito da disputa, o que é proibido pela Convenção de
Nova Iorque 58.
Ademais, o devido processo legal pode ter um escopo diferente
dependendo do país. Como exposto por Kessedjian, o devido
processo legal (le principe de la contradiction) é um princípio universal
com um conteúdo nacional 59. Poudret e Besson lecionam que o
devido processo legal em arbitragem internacional situada na Suíça
não tem o mesmo conteúdo do devido processo legal de processos
judiciais situados na Suíça 60.
Basicamente, o devido processo legal é o direito procedimental
fundamental de introduzir argumentos de fato e de direito para o
tribunal antes de a sentença ser proferida 61. Trata-se de requisito
formal 62, o qual é preenchido com o acesso, de uma parte, à
informação apresentada para o tribunal arbitral pela outra parte 63.
Interessante dizer que o requisito é ter acesso, mas não responder ou
explicar o argumento apresentado pela parte contrária. Daí infere-se
que a renúncia (waiver) se torna um elemento importante aqui.
38
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
A questão do que seria uma violação ao devido processo legal
pode ser vista de diferentes perspectivas. Uma delas diz respeito ao
caso de que o demandado em um procedimento arbitral deve ter
conhecimento sobre os possíveis resultados da disputa. Portanto, ao
aplicar a previsão legal não arguida pelas partes, os árbitros estariam
surpreendendo o demandado. O contra-argumento é que, desde que a
lei aplicável foi definida previamente na arbitragem, não há surpresa
para as partes sobre a decisão do caso 64.
A segunda perspectiva é que os árbitros deveriam considerar
que, se o demandante não levantou um argumento, haveria uma
renúncia a tal argumento. O demandado estrategicamente pode ter
considerado que o demandante renunciou ao argumento "x" 65.
Portanto o demandado não espera que o tribunal arbitral decida com
base naquele argumento. Por consequência, os argumentos não
expostos pelas partes deveriam ser considerados como renunciados.
A terceira perspectiva é que, considerando que o devido
processo legal é um princípio sacro da arbitragem, ao violá-lo o
tribunal arbitral estará excedendo sua autoridade. Alguém pode arguir
que isso não é razoável, já que o excesso de autoridade e a violação
ao devido processo legal são motivos diferentes para anulação da
sentença arbitral. No entanto, sendo o devido processo legal um dever
dos árbitros, e não uma lacuna a ser preenchida por sua discrição, ao
violar tal dever, o tribunal estará excedendo seu mandato. Ainda
haveria uma pergunta: qual seria a violação do devido processo legal
que não reflete o excesso de mandato dos árbitros?
Se levarmos em consideração as duas primeiras perspectivas,
as quais lidam com o elemento da surpresa e ciência do caso litigado
contra a parte, há algumas considerações que devem ser feitas sobre
tais elementos. Para que não haja surpresa às partes e para que seja
cumprido o devido processo legal, Kessedjian alerta para cinco regras
básicas para os árbitros 66. As primeiras duas regras são que os
árbitros têm um papel pedagógico para com as partes e que eles
devem agir com transparência 67. Tais regras emanam do fato de que
o procedimento arbitral é flexível e os árbitros devem ter a chance de,
ao contrário do juiz, deixar as partes saberem qual é a melhor forma
de conduzir o procedimento e quais regras governarão a arbitragem
68. Os árbitros não devem surpreender as partes com as suas
decisões 69.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
39
A terceira regra diz respeito ao comportamento dos árbitros no
que concerne a prudência com as partes. O árbitro está sentado no
tribunal arbitral devido à escolha das partes 70. Ele/ela são servidores
das partes, no sentido de que suas ações resultarão numa decisão
final e vinculativa sobre a discussão 71. Na quarta regra, Kessedjian
diz que o árbitro deve estar aberto à melhor prática apresentada pelas
partes 72. O árbitro pode administrar as provas que as partes
apresentarem como bem lhe convier, mas não pode impor às partes
que litiguem na forma como ele quiser 73.
Pelo acima exposto pode-se inferir que a real interação do
princípio do iuria novit curia com os princípios do devido processo legal
e da oportunidade de apresentar seu caso é que o princípio é aplicável
entre as partes e os árbitros. Em outras palavras, é uma relação
triangular. As partes têm a chance de responder aos argumentos
apresentados pela parte contrária. E, em arbitragem internacional, o
princípio é estendido aos árbitros, e.g., as partes têm a chance de
responder às ponderações dos árbitros sobre o caso. Este é o mesmo
entendimento de Kessedjian, e ela assim conclui a quinta regra 74. Em
realidade, o princípio do contraditório proíbe o unilateralismo; é uma
regra ética do debate judicial, como conclui igualmente Kessedjian 75.
A ideia de o princípio do contraditório vincular as partes e os
árbitros parece ser razoável. No entanto, não soa razoável se
levarmos em consideração a diferença existente entre os árbitros e as
partes colocada por Clay, qual seja a de que não pode haver um
equilíbrio exato entre os árbitros e as partes, pois os árbitros são os
juízes dessas 76. Clay não trouxe tal diferença no contexto da
aplicação do iuria novit curia, porém cita-se aqui a diferença apenas
visando ao questionamento da posição do árbitro em relação às
partes.
40
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Obviamente uma destas teorias deverá sucumbir. Ou os
árbitros estão em um degrau mais elevado do que as partes ou eles
estão no mesmo degrau no que concerne às previsões aplicáveis à
solução da disputa.
2 AS SENTENÇAS ARBITRAIS, O IURIA NOVIT CURIA E SUAS
CONSEQUÊNCIAS
Esta seção analisará o limite do escopo do mandato dos
árbitros segundo a visão das cortes. Oriundo dos limites do mandado,
e.g. se é determinado pelo pedido ou pelos argumentos debatidos, há
três elementos que decidem o iuria novit curia: o devido processo legal
(e quem é vinculado a ele); a surpresa; e o resultado do procedimento.
Em cada uma das decisões mencionadas pode-se observar uma
ênfase em um destes elementos. Consequentemente o entendimento
do escopo do mandado dos árbitros é diferente de acordo com o local
da arbitragem.
Na análise de cada uma das decisões abaixo serão respondidas
três questões: a corte considera iuria novit curia excesso de mandado
ou violação ao devido processo legal? O escopo do mandado dos
árbitros é relacionado ao pedido ou ao pedido somado dos
argumentos debatidos pelas partes? E quais elementos guiam a
decisão da corte [surpresa, discrição dos árbitros, devido processo (e
quem é vinculado a ele) ou o resultado do procedimento]?
2.1 Suíça
O primeiro caso analisado foi julgado pelo Tribunal Federal, em
3 de agosto de 2010, em que se decidiu pela improcedência de um
pedido de anulação de sentença arbitral baseado no argumento de
que os árbitros concluíram sobre os fatos do caso sem ouvir as partes
antes. O Tribunal Federal suíço confirmou que tanto as cortes quanto
os árbitros podem se valer do iuria novit curia, sendo que a produção
de provas fáticas é limitada à ação das partes 77. O Tribunal Federal
salientou que é importante que as partes devam ser indagadas a
comentar sobre a previsão legal que o tribunal está considerando
aplicar, caso as partes não tenham discutido sobre o assunto.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
41
No referido procedimento, o apelante alegou que o árbitro único
confirmou sua jurisdição baseado no entendimento de que um dos
contratos entabulados com a empresa filha e irmã das partes na
arbitragem era nulo. Segundo o apelante, esse argumento nunca foi
discutido durante o procedimento arbitral, e, se as partes tivessem tido
a chance de comentar sobre tal contrato, o resultado da disputa seria
diferente. O árbitro, alegadamente, estabeleceu a natureza do
segundo contrato sem ouvir as partes previamente. O Tribunal Federal
suíço entendeu diferente do apelante e julgou improcedente a ação.
Diferentemente de algumas cortes estatais, como será
ressaltado durante as próximas decisões, o Tribunal Federal suíço
tomou o entendimento de que não entrará no mérito da decisão para
analisar se houve excesso de poder ou violação ao devido processo
legal. Quando se decide se as partes, de fato, discutiram o argumento
da natureza do contrato que deu ensejo à confirmação da jurisdição do
árbitro, o Tribunal Federal procura a citação das palavras que levaria à
questão propriamente dita da natureza de tal contrato. Com isso, a
corte apontou que o apelante estava tentando demonstrar que as
conclusões do tribunal arbitral estavam erradas, e que não caberia à
corte analisar a decisão 78.
O Tribunal Federal entendeu que o apelante renunciou (waived)
a seu direito de introduzir argumentos com relação à validade do
contrato que deu ensejo à confirmação da jurisdição. Concluiu ainda
que o apelante sabia ou deveria saber que o árbitro único poderia
considerar a validade do contrato que deu ensejo à confirmação da
jurisdição. A jurisprudência suíça foi citada para embasar o
entendimento de que as cortes podem declarar de ofício o contrato
como dissimulado.
Da decisão acima referida pode-se chegar à seguinte
conclusão: os árbitros podem aplicar iuria novit curia na Suíça desde
que o novo ponto jurídico seja submetido ao comentário das partes; O
Tribunal Federal aplicou um nível de revisão razoável no pedido de
anulação ao não entrar no mérito da decisão, muito embora o apelante
tenha tentado fazer com que a corte assim o fizesse.
Poudret e Besson reprovam a liberdade dada pelas cortes
suíças aos árbitros para aplicarem o iuria novit curia. O argumento
utilizado pelos renomados doutrinadores é que a liberdade afeta o
papel dos árbitros e as partes na arbitragem 79. De fato, a prática tem
demonstrado que cabe às partes introduzir e provar os entendimentos
jurídicos 80. Como resultado, os árbitros devem ser menos audaciosos
quando substituírem os argumentos das partes pelo seu entendimento
do caso 81.
42
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Kaufman-Kohler nota que, quando analisando um ponto legal, o
qual não é muito conhecido pelo árbitro, o painel arbitral deverá
convidar as partes a se manifestarem sobre o assunto ao invés de
tirarem suas próprias conclusões 82.
Em uma decisão anterior, de 9 de fevereiro de 2009, o Supremo
Tribunal Federal suíço, após confirmar a aplicação do iuria novit curia
por tribunais arbitrais, anulou uma sentença arbitral da Court of
Arbitration for Sport (doravante denominado CAS) sob o fundamento
de que as partes foram surpreendidas por um elemento da decisão,
qual seja a aplicação da lei suíça 83. De acordo com a decisão da
corte, o caso não tinha conexão com a Suíça. Como consequência, o
apelante não poderia esperar que a lei suíça fosse aplicável se não
arguida pelas partes. Devido à omissão do tribunal arbitral do CAS de
não dar às partes a oportunidade de comentar a aplicabilidade de tal
lei, o tribunal arbitral do CAS violou o devido processo legal.
Na terceira decisão proferida pelo Tribunal Federal suíço, a
corte lidou com o elemento da surpresa, o qual as partes utilizaram
como fundamento do pedido de anulação de sentença arbitral 84. O
apelante, nesse caso, alegou que não havia a expectativa de que os
árbitros decidiriam a data de início dos juros na sentença arbitral. No
entanto, a corte encontrou nas alegações do apelante prova de que a
questão dos juros havia sido tratada pelo apelante na arbitragem.
Apesar da assertividade da decisão, a corte entrou no mérito da
sentença arbitral para fazer sua análise. A corte analisou se o apelante
trouxe o argumento da data base de contagem dos juros. Ademais, a
corte analisou a força do desenvolvimento do argumento do apelante,
assim como o arrazoado do árbitro. Ao final do dia, o tribunal julgou
improcedente o pedido de anulação, no entanto incorreu em excesso
de análise das razões da sentença arbitral.
Nesta decisão a corte também lidou com a existência de
arrazoado pelos árbitros na sentença e o limite da apreciação dos
argumentos levantados pelas partes. Em verdade, a corte ainda
confirmou que o dever de fundamentar a sentença é violado quando o
tribunal arbitral não leva em consideração elementos importantes (seja
de fato, seja de direito) oferecidos pelas partes, se tais elementos são
importantes para a própria decisão. Ao confirmar isso, a Corte Federal
suíça implicitamente mensurou quais elementos apresentados pelas
partes são importantes ou não. Entretanto, este não é o papel da corte
quando lida com impugnações aos laudos arbitrais. Nesse caso, o
Tribunal Federal suíço intimou a parte contrária e os árbitros para
justificarem as omissões da sentença. A corte esclareceu um pouco a
questão ao confirmar que os tribunais arbitrais não são obrigados a
lidar explicitamente com todos os argumentos levantados pelas partes
85.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
43
Da análise das decisões das cortes suíças pode-se inferir que
os árbitros, quando atuam em arbitragens situadas na Suíça, estão
autorizados a levantar previsões legais não arguidas pelas partes e
convidá-las a comentar tais previsões. O elemento surpresa é um
elemento importante na Suíça. As cortes suíças consideram a questão
do respeito ao devido processo legal e o escopo do mandato dos
árbitros relacionada com o pedido ao invés dos argumentos expostos
pelas partes.
2.2 França
Engel Austria, após ser condenada na arbitragem contra Dom
Trade, requereu à corte francesa que anulasse a sentença arbitral
baseada na violação ao princípio do contraditório 86. Dom Trade, por
sua vez, alegou que o pedido de anulação era, na verdade, uma busca
pela reapreciação do mérito pela corte. O tribunal arbitral no caso
anulou o contrato entre as partes e condenou Engel Austria a indenizar
Dom Trade baseado no princípio de direito austríaco Wegfall der
Geschäftsgrundlage (princípio da imprevisão na execução dos
contratos). Dom Trade alegou que o princípio foi discutido durante o
procedimento. Levando tais fatos em consideração, o papel da corte
francesa seria verificar se as partes discutiram esse ponto. Ultrapassar
essa análise seria uma invasão do mérito da disputa.
A corte francesa decidiu que, já que as partes não discutiram a
aplicação do princípio de direito austríaco; já que o princípio do
contraditório é de relevância absoluta em arbitragem; e já que o
princípio de direito austríaco era a única base para se anular o
contrato, a sentença arbitral deveria ser anulada devido à violação do
princípio do contraditório. A corte francesa anulou parcialmente a
sentença apenas no que concerne aos pontos da sentença que não
haviam sido debatidos pelas partes. A corte deixou implícito que se os
árbitros quisessem aplicar o princípio austríaco sua sponte, deveriam
ter requerido às partes que o comentassem previamente.
44
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
A corte francesa não entrou no mérito da disputa. Ela aplicou a
análise no nível correto. Apenas checou se as partes haviam discutido
o princípio de direito austríaco durante a arbitragem. Ademais, a corte
deixou implícita a aceitação do princípio do iuria novit curia em
arbitragem internacional, desde que as partes tenham a chance de
comentar sobre o assunto previamente à prolação da sentença
arbitral.
Outro caso interessante é a decisão proferida pela Corte de
Cassação quando anulou uma sentença arbitral na qual os árbitros,
sua sponte, analisaram o volume de transações comerciais de uma
das partes na arbitragem e basearam sua decisão em tal prova 87. Os
motivos para se anular a sentença foram de que o tribunal arbitral não
convidou as partes a comentarem esta investigação do volume das
transações comerciais, violando assim o princípio do contraditório 88.
Outra decisão proferida pela corte francesa, mais recente, é o
caso Nickel, decidido em 29 de junho de 2011 89. Nesse caso, o
demandado na arbitragem requereu a anulação da sentença, pois o
tribunal arbitral condenou-o com base na teoria da perda de uma
chance, fundamento este que não havia sido discutido pelas partes na
arbitragem. O pedido da arbitragem baseava-se em lucros cessantes.
A Corte de Apelação de Paris anulou a sentença, e a Corte de
Cassação confirmou tal entendimento. O fundamento utilizado pelo
demandado na arbitragem para requerer a anulação da sentença
arbitral foi a violação ao princípio do contraditório.
Poudret e Besson entendem que, na França, o árbitro pode
basear-se em previsões legais da lei, as quais foram implicitamente
debatidas pelas partes 90. Isso porque não haveria, assim, elemento
de surpresa 91. No entanto a Corte de Cassação anulou uma
sentença, em 14 de março de 2006, devido ao fato de que os árbitros
decidiram um caso com base em um artigo do Código Civil não
arguido pelas partes 92. A racionalidade da decisão tomada pela Corte
é que, enquanto os árbitros não estão obrigados a submeter às partes
a fundamentação da sentença, o princípio do contraditório é de suma
importância.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
45
Portanto, na França, o escopo do mandato dos árbitros está
mais relacionado à previsão legal arguida pelas partes. As cortes
francesas consideram que o elemento da surpresa tem papel
importante no desenvolvimento do devido processo legal também.
Consequentemente, quando se anula uma sentença sobre este
assunto, a corte considera o iuria novit curia como uma questão de
devido processo legal e não excesso de mandato.
2.3 Suécia
A Corte de Apelação da Suécia anulou uma sentença arbitral
por excesso de mandato dos árbitros, pois o fundamento da sentença
não havia sido discutido pelo demandado 93. A arbitragem dizia
respeito ao término de um contrato de distribuição pelo comprador
(Systembolaget) após ter conhecimento de que o vendedor (V&S Vin &
Sprit AB) estava envolvido em corrupção. V&S iniciou uma arbitragem
requerendo indenização pela rescisão imotivada do contrato. O
tribunal arbitral entendeu que o contrato não poderia ter sido terminado
e condenou Systembolaget a indenizar V&S. Os fundamentos da
decisão são que Systembolaget não tinha direito de terminar o
contrato sob a guarda de um princípio de direito civil, o qual as partes
teriam excluído a aplicação no contrato.
A corte sueca entendeu que o tribunal arbitral lidou com
questões (termo sueco denominado rättsfakta) na sentença arbitral
que não foram abordadas pelas partes na arbitragem. Na prática
arbitral sueca, as partes e os árbitros preparam um documento
chamado recital, o qual funciona como um guia das deliberações do
tribunal arbitral. O recital foi aprovado pelas partes e aparentemente
não continha nenhuma referência de que o tribunal arbitral deveria
decidir sobre a aplicação do princípio de direito civil na relação
contratual das partes 94.
O princípio utilizado pelo tribunal arbitral para fundamentar sua
sentença prevê que uma parte tem o direito de terminar o contrato se a
parte contrária o viola substancialmente. Systembolaget alega que o
tribunal arbitral determinou que esse princípio fosse excluído da
contratação pelas partes. Se V&S arguisse que esse princípio não
havia sido aplicado, a sentença arbitral não seria anulada. V&S, por
sua vez, alegou que o tribunal arbitral na verdade decidiu que
Systembolaget não deveria ter terminado o contrato baseado no
fundamento em que o fez, ao invés de determinar a aplicabilidade de
tal princípio.
46
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
De acordo com a fundamentação do tribunal arbitral, o princípio
de direito civil seria aplicável caso as partes não houvessem
estabelecido os requisitos para terminar o contrato, i.e., se as partes
não houvessem excluído a aplicação desse princípio de seu contrato.
O tribunal arbitral entendeu que os termos de política de fornecimento
e os termos de compra de 1995 (contratos que regulavam a relação
das partes) regulavam como as questões de corrupção deveriam ser
analisadas. Portanto, o princípio de direito civil não seria aplicável. No
entanto, as partes não elaboraram argumentos sobre isto 95.
A Corte de Apelação sueca entendeu que a conclusão à que o
tribunal arbitral chegou não era nada, senão a análise se as partes
haviam ou não excluído da contratação o princípio de direito civil.
Como a discussão da arbitragem era se havia uma quebra contratual
ou não, e o tribunal decidiu sobre a possibilidade de se excluir de
contratação o princípio de direito civil, os árbitros excederam seu
mandato. Em uma análise apurada, o que realmente ocorreu é que as
partes não se basearam no fato e na lei no que concerne a aplicação
do princípio de direito civil sueco.
A corte considerou como relevante se V&S em algum ponto
arguiu que as partes expressamente acordaram nos requisitos para se
terminar o contrato, e como conclusão, a aplicação do princípio de
direito civil não seria possível. A corte, de fato, encontrou na defesa de
Systembolaget um pedido de que V&S tomou ações que o deram
direito a terminar o contrato de acordo com o princípio de direito civil;
encontrou ainda que V&S, em sua resposta, informou que o direito de
terminar o contrato não existia sob aquele princípio. A corte disse que,
ao fazê-lo, V&S não estava realmente discutindo se o princípio era
aplicável ou não, mas apenas negando que o término do contrato sob
a guarda de tal princípio não poderia ser feito.
Em verdade, o recital continha uma declaração feita por V&S de
que, se Systembolaget buscava o direito de terminar o contrato
baseada em sanções de direito civil, isso deveria ser precisamente
esclarecido. A corte, porém, não entendeu que este elemento do
recital era um pleito que as partes excluíram da contratação do
princípio de direito civil. Ademais, a corte considerou que V&S não
arguiu que o princípio de direito civil não havia sido excluído de
contratação. Por esta razão, o escopo do mandato dos árbitros não
abarcava a discussão se as partes haviam excluído ou não a aplicação
do princípio de direito civil.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
47
Heuman leciona que os árbitros devem submeter às partes para
comentarem os pontos que pretendem levantar na sentença para
evitarem surpresas 96. Segundo ele, esse é o guia procedimental que
os árbitros podem seguir. Nesse sentido, os árbitros deveriam agir de
forma a assegurar que as partes possam identificar quais são os
pontos que estão sendo levantados contra elas 97. A parte contrária
deve ser capaz de preparar sua defesa, objeções e
contra-argumentos. A violação do princípio adversarial leva a parte
contrária a lutar no escuro.
Voltando ao caso Systembolaget, houve três pareceres legais
emitidos por professores renomados. O Professor Jan Ramberg
observou que V&S não discutiu que o princípio de direito civil não era
aplicável, assim como não discutiu que as questões relacionadas à
corrupção estavam exclusivamente reguladas pelo contrato 98. O
Professor Lars Heuman apontou que o demandado na arbitragem tem
o direito de se defender e de entender o pleito contra o qual se
defende 99. Heuman notou que V&S não se referiu à relação de as
partes serem reguladas exclusivamente pelas cláusulas contratuais
100. Assim, concluiu que Systembolaget não tinha nenhuma razão
para acreditar que V&S estava arguindo a exclusão da aplicação do
princípio de direito civil. Um terceiro parecer foi emitido pelo professor
Bengt Lindell, o qual se aliou ao entendimento do Professor Heuman
de que, se o demandado não tem conhecimento do pleito contra o qual
luta, ele estará "lutando na neblina" 101.
Nos três pareceres o que restou claro é que Systembolaget não
tinha conhecimento de que a aplicação do princípio de direito civil
estava em jogo. Professor Heuman e Professor Lindell focaram mais
no respeito ao princípio adversarial que no excesso de mandato.
Entretanto a corte entendeu que se trata de excesso de mandato,
criando, assim, um entendimento peculiar da aplicação do iuria novit
curia em arbitragem.
48
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Uma segunda perspectiva deste caso é que, apesar de a
questão não ter sido levantada pelo tribunal arbitral sua sponte, a
aplicação do princípio de direito civil tratava-se de um argumento
trazido pelo demandado, o qual arguiu, em sede de anulação de
sentença, não ter tido a chance de desenvolver suficientemente sobre
este princípio. Note-se que Systembolaget arguiu que o princípio de
direito civil dava direito ao término do contrato. Para fazer tal
argumento, Systembolaget primeiramente deveria provar a aplicação
deste princípio. Se se argumenta que é possível tomar uma conduta
com base em um princípio, deve-se explicar o porquê, certo? A razão
para Systembolaget terminar o contrato é que o princípio de direito civil
autoriza o término se a parte contrária violou o contrato
substancialmente. Então, por que aplicar esse princípio?
O tribunal arbitral meramente rejeitou os argumentos expostos
por Systembolaget. A conclusão a se chegar é simples: seguindo o
parágrafo acima, se o princípio aplicado por Systembolaget para
terminar o contrato não é válido sob estas circunstâncias, o contrato
não poderia ser terminado. Consequentemente, o pleito colocado por
V&S é provido. Se fosse aplicado o critério da previsibilidade utilizado
pelo Tribunal Federal suíço da primeira decisão comentada, a
sentença não seria anulada. Se Systembolaget requereu a aplicação
do princípio de direito civil, o mínimo que deveria prever era que esse
princípio poderia não ser considerado aplicável ao caso.
Assuma-se que, se o tribunal arbitral aceitasse a aplicação
deste princípio, ter-se-ia chegado a um erro na aplicação da lei. O
tribunal arbitral teria aplicado um princípio dando direito à
Systembolaget de terminar o contrato, que na verdade não poderia ter
sido terminado, pois tal princípio não é aplicável ao contrato. Portanto,
primeiro era previsível à Systembolaget que o tribunal arbitral poderia
questionar a razoabilidade dos argumentos apresentados. Segundo,
Systembolaget, o qual teve a chance de discutir a aplicação do
princípio, já que ela própria introduziu tal argumento, discutiu tal
princípio partindo do pressuposto que é aplicável.
Em cada uma destas perspectivas de análise é possível se
observar diferentes formas de definição do escopo do mandato dos
árbitros. Na primeira análise, a qual é a adotada pela corte sueca, o
mandato dos árbitros não está baseado apenas no que foi pedido, mas
nos fatos e argumentos jurídicos apresentados pelas partes. No
segundo entendimento, o qual é mais similar às cortes suíças, o
escopo do mandato dos árbitros está mais relacionado ao pedido das
partes, pois os árbitros, para recusarem o argumento de defesa
apresentado por Systembolaget, poderiam declarar que princípio de
direito civil não é aplicável. Portanto, o contrato não poderia ser
terminado e o pedido buscado pelo demandante seria provido.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
49
Em conclusão, a corte sueca, no caso Systembolaget, entendeu
que o escopo do mandato dos árbitros é delimitado pelo pedido e,
mais importante, pelos argumentos desenvolvidos pelas partes.
Ademais, a corte sueca considera que o fundamento para se anular
uma sentença arbitral baseada em argumento não levantado pelas
partes é o excesso de mandato.
2.4 Inglaterra
Contrariamente ao entendimento sueco, a Corte inglesa negou
parcialmente o pedido de anulação de uma sentença arbitral em um
caso com semelhantes fatos 102. O demandante, no caso F Ltd. v. M
Ltd. buscava indenização sob a guarda da Cláusula 27.3 do contrato.
O tribunal arbitral condenou o demandado pelos atrasos da obra, mas,
por uma construção jurídica, entendeu que a Cláusula 27.3 não
abrangia o pedido de perdas e danos. Como consequência, o valor da
indenização foi reduzido substancialmente.
O demandante na arbitragem requereu a anulação da sentença
com base no excesso de mandato dos árbitros. O pedido de anulação
falhou após a corte entender que o demandante, de fato, perdeu sua
chance de introduzir um argumento alternativo em suporte ao seu
pedido de perdas e danos. A Corte inglesa ainda fez considerações
sobre possíveis resultados da disputa, e, em todo caso, mesmo se
baseando em outra previsão contratual, o pleito do demandante seria
improcedente. Tal conduta marca a análise do mérito da decisão
arbitral, o que é criticado como exposto na primeira seção deste artigo.
O segundo caso a ser analisado é o caso Lesoto, a famosa
decisão que permitiu aos árbitros cometerem erros sobre a aplicação
da lei 103. O caso diz respeito a uma arbitragem oriunda de um
contrato de construção executado por um consórcio de companhias
europeias no território de Lesoto. Trata-se de uma arbitragem CCI
situada em Londres. O termo de arbitragem previa que alguns dos
pontos controversos entre as partes eram a moeda da sentença
arbitral e se haveria juros. A lei material aplicável era a lei do Reino de
Lesoto.
O tribunal arbitral, no caso Lesoto, condenou o demandado a
pagar indenização em uma moeda diferente daquela prevista no
contrato e ainda condenou o demandado ao pagamento de juros. O
demandado no procedimento arbitral alegou que o tribunal arbitral não
poderia condenar ao pagamento de indenização em uma moeda
diferente do contrato, pois o próprio contrato previa que os
pagamentos deveriam ser feitos na moeda de Lesoto. Ademais, o
demandado também alegou que o tribunal não poderia condenar ao
pagamento de juros, pois o contrato não autorizava a contagem de
juros por pagamentos atrasados. O tribunal arbitral entendeu de forma
diversa e decidiu que as cláusulas contratuais não eram aplicáveis no
que concerne a indenização decidida em sentença arbitral.
50
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
A Corte de Apelação concluiu que o tribunal arbitral excedeu
seu mandato ao aplicar a Seção 49 da Lei inglesa de Arbitragem para
condenar o demandado em juros, ao passo que deveria ter aplicado a
lei material do contrato para tal questão. A lei material de Lesoto previa
que a parte pode receber juros sobre a quantia de dinheiro que for
indenizado. A House of Lords, ao revés, reverteu os julgamentos
anteriores e declarou que, no pior dos casos, os árbitros cometeram
um erro de aplicação de lei, mas que isso é um erro do exercício da
jurisdição, não havendo que se falar em excesso de jurisdição, mas
sim em erro na aplicação da lei 104.
O terceiro caso é o caso ABB v. Hochtief Airport 105. ABB é
uma companhia alemã que construiu o aeroporto internacional de
Atenas (doravante denominado "AIA") juntamente com o segundo
demandado no processo judicial, a qual detém o aeroporto. AIA
também era o segundo demandado no processo arbitral. Hochtief é
primeiro demandado no processo judicial e era o demandante na
arbitragem. Hochtief detém 40% das quotas do aeroporto. O Estado
grego detém 55% e ABB deteve, um dia, 5%. Hochtief iniciou uma
arbitragem, pois ABB aparentemente transferiu suas quotas
irregularmente ao Grupo Horizon. Com a transferência, o Estado grego
poderia votar juntamente com o Grupo Horizon e controlar o aeroporto.
Os árbitros declararam que a transferência das quotas era nula. ABB
buscou então a anulação da sentença arbitral.
O caso concerne o pedido de anular a transferência de ações
de um dos acionistas do aeroporto (AIA) para o grupo de empresas
que estava ligado ao Estado grego. Se válida, tal transferência
permitira ao Estado grego controlar a companhia com 60% do capital
votante. O tribunal arbitral julgou procedente o pleito, declarando que o
primeiro demandado concluiu três contratos prévios com o grupo de
companhias que comprou as quotas, prometendo a este grupo que
venderia as quotas quando possível. O problema é que o estatuto da
AIA obrigava os acionistas ordinários a oferecer sua participação
primeiramente aos demais sócios antes de procurar outros
investidores.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
51
O primeiro demandado impugnou a sentença arbitral arguindo
que o tribunal arbitral agiu injustamente, pois não deu a chance de as
partes apresentarem seu caso, e que a sentença foi baseada em um
argumento diferente do que foi levantado pelo demandante na
arbitragem. A Corte Superior inglesa recusou a impugnação, pois
entendeu que as partes tiveram a chance de discutir as questões e o
tribunal aplicou tais discussões à sentença arbitral.
A análise deste caso é interessante, pois a Corte Inglesa
primeiramente aceitou que o tribunal poderia conceder o pedido do
demandante, mesmo que a decisão não se baseasse exatamente no
que foi arguido. Em outras palavras, o demandante requereu ao
tribunal que declarasse nulo o contrato de transferência de quotas. O
tribunal arbitral levou em consideração três outros contratos
prometendo a venda das quotas, somado ao último contrato, que
efetivamente transferiu as quotas. Os três contratos anteriores foram
assinados entre 1999 e 2003, e a transferência das ações foi feita em
2004. De acordo com o estatuto do AIA, havia duas condições para se
transferir as ações. A primeira condição é que não haveria
transferência antes de 2003. A segunda condição é que a
transferência era possível se os outros acionistas tivessem a chance
de fazer uma oferta antes de o vendedor transferi-las a outro
comprador. Os contratos anteriores foram extensivamente debatidos
no procedimento arbitral e a Corte inglesa entendeu que as partes
tiveram a chance de apresentar seu caso sobre o ponto impugnado da
sentença arbitral.
Uma inferência que se pode retirar desta decisão é que a Corte
inglesa reduz o escopo do mandato dos árbitros ao pedido das partes
ao invés de valorizar tanto o que foi arguido por elas. O demandado,
que impugnou a sentença arbitral posteriormente, declarou-se
surpreso por saber que o tribunal arbitral concedeu o pedido baseado
nos contratos anteriores, já que o que foi utilizado como fundamento
pelo demandante na arbitragem era o último contrato. No entanto, uma
vez que as discussões na arbitragem abrangeram os contratos
anteriores, foi razoável que se mantivesse a sentença arbitral.
Seguindo a decisão de ABB v. Hochtied, a Corte Inglesa de
Justiça desenvolveu explicações sobre as decisões anteriores e
anulou uma sentença arbitral baseada no fato de que as partes não
tiveram a chance de familiarizar o tribunal arbitral com o seu
entendimento do caso 106. A Corte inglesa em verdade fez mais do
que isso nessa decisão. Ela declarou que o tribunal arbitral pode
levantar pontos de fato ou direito não arguidos pelas partes, desde que
as partes tenham a oportunidade de arguir sobre o ponto 107.
Aparentemente as cortes concordam que há um dever de
previsibilidade das sentenças arbitrais. A corte inglesa enfatizou que
as partes não podem ser surpreendidas com questões que nunca
ouviram do tribunal arbitral 108. Em conclusão dos casos ingleses, a
maior parte das decisões considera o escopo do mandato dos árbitros
relacionado ao pedido. Ademais, a Corte inglesa anulou uma sentença
arbitral sobre o assunto baseada na violação ao contraditório, ao invés
de excesso de mandato.
52
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
2.5 Finlândia
A Corte finlandesa até o momento publicou a decisão mais
liberal sobre o mandato dos árbitros. Ela confirmou uma sentença
arbitral declarando expressamente que os árbitros não estão
vinculados à argumentação das partes 109. De acordo com a corte
finlandesa, os pleitos apresentados pelas partes constituem o mandato
dos árbitros e os fatos discutidos na arbitragem modelam o mandato.
No entanto, aplicar a lei não arguida pelas partes não é um elemento
de surpresa.
O caso, no entanto, deve ser escrutinizado para não ser
entendido como extremo do liberal. O tribunal arbitral no caso rejeitou
um pedido trazido sob a guarda do código de representante comercial
e aplicou o código dos contratos que não foi arguido pelas partes. A
razão para a manutenção da sentença é que o pleito trazido sob a
guarda do código do representante comercial requeria a declaração de
nulidade de uma cláusula contratual. Na Finlândia (como exposto pela
decisão da corte), o código dos contratos pode ser aplicado sua
sponte se o pleito é baseado em contratos nulos. Já que o pleito
trazido era baseado numa cláusula contratual nula, a qual proibia
indenização, o código dos contratos pode ser aplicado sua sponte
pelos árbitros. As cortes finlandesas consideraram que as partes
tiveram sua chance de provar e de discutir todos os fatos relevantes
que foram mencionados na decisão, e que, portanto, não houve
violação do princípio referido.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
53
A Corte finlandesa enfatizou que é importante as partes terem a
oportunidade de apresentar seu caso. Assim, na Finlândia, a aplicação
do iuria novit curia é uma questão a ser discutida pela suposta
violação do devido processo legal. Ademais, o escopo do mandato dos
árbitros está ligado ao pedido formulado pelas partes ao invés dos
argumentos avançados por elas.
CONCLUSÃO
A pesquisa demonstrou que, até o momento, não há uma
definição da extensão do mandato dos árbitros no que toca o iuria
novit curia. Algumas cortes demonstraram que são mais adeptas a tais
condutas do que outras. Isso significa que os árbitros são mais livres
para aplicar a solução que mais bem entendem ao caso quando
conduzem arbitragens situadas em alguns países, do que quando o
fazem em outros. A maior parte das legislações de arbitragem não
prevê como os árbitros devem acessar o conteúdo da lei aplicável 110.
Ademais, a jurisprudência ainda é carente sobre esse tema.
A pesquisa também levou o autor a concluir que não há
consenso sobre o significado de iuria novit curia em arbitragem. De
acordo com as decisões das cortes, iuria novit curia pode significar
aplicar uma previsão legal independente dos comentários das partes,
ou apenas levantar tais pontos para as partes comentarem
posteriormente.
Se se entende que iuria novit curia significa: (i) aplicar a
previsão legal não arguida pelas partes; (ii) não levantar tais questões
para as partes comentarem antes da prolação da sentença; e, (iii)
havendo o elemento de surpresa na decisão arbitral, a consequência é
que iuria novit curia não é aplicável em arbitragem comercial
internacional, essa anulação poderá ocorrer tanto com base em
excesso de mandato quanto com base em violação do devido
processo legal. Na verdade, apenas a Corte sueca considerou a
questão como excesso de mandato.
Os especialistas no campo da arbitragem não esclarecem qual
é a base para se pedir anulação por esse motivo. Poudret e Besson
analisam a questão na seção voltada para os direitos processuais
fundamentais na arbitragem, principalmente falando do direito de ser
ouvido 111. Os mesmos autores dizem que o iuria novit curia e o
direito de ser ouvido são paradoxos por essência, já que, enquanto o
iuria novit curia autoriza os árbitros a aplicarem uma previsão legal
antes de ouvir os comentários das partes sobre ela, o direito de ser
ouvido requer a notícia a uma parte do ponto que não foi considerada
relevante para elas até o momento 112.
54
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
Muito embora o relatório da ILA sobre a lei aplicável em
arbitragem comercial internacional preveja que decidir um caso com
base em uma previsão legal não arguida pelas partes dá ensejo ao
excesso de mandato 113. No entanto, o relatório da ILA enfatiza a
importância do cumprimento do devido processo legal quando se
aplica o iuria novit curia.
Caminhando para a essência da questão do iuria novit curia em
arbitragem comercial internacional, serão apontadas cinco conclusões:
Primeira, o iuria novit curia, de acordo com a jurisprudência
analisada, é subsidiário ao devido processo legal. E a razão de tal
subsidiariedade é que as partes na arbitragem não podem ser
surpreendidas pela decisão dos árbitros baseada em um argumento
não discutido por elas. Como uma segunda razão, se o resultado da
disputa é diferente caso o devido processo legal seja violado, o devido
processo legal prevalecerá sobre o poder do iuria novit curia.
Aparentemente, o devido processo legal prevalece sobre a autoridade
dos árbitros.
Segundo, como consequência, pode-se inferir que o princípio
do devido processo legal é na verdade vinculativo às partes e aos
árbitros. Isso significa que as ideias dos árbitros devem ser levadas às
partes antes de se transformarem em sentença. Portanto, o devido
processo legal é uma relação triangular em arbitragem comercial
internacional, que vincula as partes e os árbitros, i.e., todos devem
estar cientes de todos os motivos que podem interferir no resultado da
disputa.
Terceiro, como resultado da importância do respeito à relação
triangular do devido processo legal, há uma hierarquia entre a violação
do devido processo legal e do excesso de mandato dos árbitros. Em
outras palavras, se o árbitro age com iuria novit curia, o motivo
utilizado para se requerer a anulação da sentença é a violação do
devido processo legal, pois ele é violado antes de ocorrer o excesso
de autoridade dos árbitros.
Quarto, infere-se que o escopo do mandato dos árbitros
também varia de acordo com a jurisdição, seja de acordo com o
pedido das partes, seja de acordo com os argumentos apresentados
por elas. De fato, espera-se que os árbitros usem seu conhecimento e
experiência quando valoram os argumentos e a prova apresentada
pelas partes 114.
RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL
55
Quinto, como um resultado deste artigo, entende-se que as
cortes colocam a responsabilidade de os árbitros acertarem o
entendimento jurídico em suas sentenças arbitrais nas alegações das
partes. Nesse sentido, após vistas as decisões acima, se colocarmos a
autoridade dos árbitros em um lado da balança, e a renúncia, mesmo
que implícita, das partes em apresentar todos os argumentos que
puderem do outro lado da balança, o lado dos argumentos das partes
será mais pesado. Em outras palavras, a visão das cortes é que os
árbitros não são indicados para assegurarem a justiça a todo custo. Ao
invés disso, o que se denota das decisões acima mencionadas é que
os árbitros são indicados para resolverem precisamente o que foi
colocado pelas partes, e, se tiverem alguma reflexão diversa sobre o
entendimento jurídico do caso, eles devem se dirigir às partes para
que comentem o entendimento jurídico antes de proferirem a decisão.

Documentos relacionados