View/Open
Transcrição
View/Open
Doutrina Nacional Iuria Novit Curia em Arbitragem e as Cortes Europeias LEONARDO MÄDER FURTADO Advogado. RESUMO: Este artigo trata dos limites do mandato dos árbitros ao decidirem o caso baseado em uma previsão legal não arguida pelas partes. Em alguns sistemas jurídicos, esta prática é denominada iuria novit curia. O autor procurou decisões sobre o assunto proferidas por cortes de países frequentemente utilizados como sede de arbitragens comerciais internacionais, e o interessante sobre o assunto é que o devido processo legal se transforma em um elemento importante na missão do árbitro, i.e., se o árbitro deve ou não agir com a máxima do iuria novit curia. ABSTRACT: This essay deals with the boundaries of the arbitrators' mandate when deciding a case based on a law legal ground not pleaded by the parties. In some legal systems such practice is referred as iuria novit curia. The writer sought for the decisions on this issue rendered by the courts from countries frequently used as seats of international commercial arbitration and the interesting about the matter is that the due process of law principle plays an important role in the mission of the arbitrator, i.e. on whether or not the arbitrator should act with the adage of iuria novit curiae. SUMÁRIO: Introdução; 1 O dilema dos árbitros; 1.1 O princípio do iuria novit curia em arbitragem comercial internacional; 1.2 Devido processo legal; 2 As sentenças arbitrais, o iuria novit curia e suas consequências; 2.1 Suíça; 2.2 França; 2.3 Suécia; 2.4 Inglaterra; 2.5 Finlândia; Conclusão. Is iuria novit curia, if challengeable, a matter of excess of mandate or violation of the right to be heard? INTRODUÇÃO Trata-se de artigo sobre os casos em que os árbitros aplicam previsões da lei não arguidas pelas partes em suas decisões. No Judiciário, esta prática é denominada iuria novit curia. O princípio do iuria novit curia prevê que o juiz sabe a lei. Assim, as partes apresentarão os fatos enquanto o juiz apresentará a consequência jurídica 1. Na prática, as partes apresentam ao juiz não apenas os fatos, como também seu entendimento sobre o direito aplicável 2. O juiz, por sua vez, profere a decisão. 28 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Quando as partes optam por abandonar o Judiciário e submeter suas disputas à arbitragem internacional, elas estão confiando ao futuro árbitro a competência para proferir uma decisão final sobre a lide existente entre elas. Entretanto, não está claro a que extensão os árbitros estão livres para aplicar a lei que lhes parece mais correta à solução da lide das partes. Em outras palavras, é permitido aos árbitros proferir uma decisão desconsiderando o direito defendido pelas partes e baseando-se em um artigo não arguido pelas partes? Este artigo baseia-se no direito comparado, levando em consideração decisões importantes proferidas por cortes de países populares como sede de arbitragens internacionais. A razão para o autor basear suas conclusões nas decisões das cortes é porque, na prática, são as cortes da sede e as cortes do local da execução da sentença que decidem qual é o escopo do mandato dos árbitros, já que ali se decide se a sentença será anulada ou executada. Para analisar as decisões do Judiciário profundamente, este artigo primeiramente analisará os direitos e deveres dos árbitros como adjudicadores, o que será feito através da discussão do princípio do iuria novit curia e o devido processo legal em arbitragem comercial internacional. A segunda seção discutirá a postura que algumas cortes europeias tomam em relação ao escopo do mandato dos árbitros. Esta seção focará nas respostas que as cortes dão quando o princípio do iuria novit curia é aplicado pelos tribunais arbitrais. Ao analisar as reações das cortes ao princípio do iuria novit curia, o autor chega ao problema deste artigo, qual seja se é permitido aos árbitros agirem com o princípio do iuria novit curia, e, se não, se o pedido de anulação da sentença deverá ser feito com base na suposta violação ao devido processo legal ou o excesso de mandato 3. Deve ser enfatizado que este artigo não abordará o mandato dos árbitros com relação ao escopo da cláusula compromissória. Aqui deve ser traçada uma linha entre os árbitros decidirem um caso além dos limites da cláusula compromissória, e quando o árbitro decide o caso com base em uma previsão legal não arguida pelas partes. Em ambos os casos, há questões jurisdicionais em jogo 4. No entanto, a base jurídica para se anular a sentença é diferente 5. A maior diferença entre essas duas bases está no fato de que no excesso de mandato, e na violação do devido processo legal, há uma cláusula compromissória, enquanto que no outro caso a sentença é anulada, pois não há cláusula compromissória válida sobre o ponto decidido fora dos limites da cláusula 6. O excesso de autoridade e a violação do contraditório são aplicados exclusivamente nos casos em que o árbitro decide sobre uma matéria além do escopo das petições apresentadas a ele 7. Este artigo também não discutirá a aplicação compulsória de leis de polícia pelos tribunais arbitrais. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 29 Finalmente, como esclarecimento, este artigo não discutirá a finalidade das sentenças arbitrais versus a intervenção das cortes. A deferência das cortes às sentenças arbitrais não está em discussão aqui. Ao contrário, o que se discute aqui é o escopo de liberdade que os árbitros possuem ao proferir suas sentenças. Como foi decidido no caso London Underground Limited v. Citylink Telecommunications Limited 8, existe uma diferença sensível entre a finalidade da arbitragem e o controle que resta ao poder das cortes para prevenir a conduta injusta de um procedimento arbitral. O ponto em discussão aqui é se as cortes consideram iuria novit curia como uma conduta injusta no procedimento arbitral, e se isto seria um caso de excesso de mandato ou violação do devido processo legal. 1 O DILEMA DOS áRBITROS O propósito dos árbitros é proferir uma decisão sobre a lide posta perante eles 9. O problema surge quando o advogado não desenvolveu todos os argumentos que tocam a disputa. Mas é dever do advogado levantar todo e qualquer argumento jurídico para assegurar que o caso foi discutido ao máximo possível? Ou o advogado deve deixar esta tarefa aos árbitros? Ou, ainda, devem todos ignorar isso e se aterem apenas ao que foi discutido na arbitragem? Se o mandato dos árbitros é destinado a resolver os problemas específicos, estariam eles excedendo seu mandato ao decidirem com base em um artigo não arguido pelas partes? Note-se que muitos consideram a discussão sobre a aplicação do iuria novit curia uma questão de devido processo legal 10. Como será discutido na segunda seção, na maior parte das decisões sobre o iuria novit curia a palavra final dada pelas cortes é que os árbitros deveriam ter avançado o argumento base de sua decisão, não levantado pelas partes, para que elas comentassem sobre ele antes de a decisão ser proferida. Caso contrário, a sentença arbitral é anulada. Essas ações previnem decisões inesperadas e desentendimentos dos tribunais em casos complexos. 30 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Ademais, deve o mandato dos árbitros ser limitado pelo pedido das partes? Ou deve ser delimitado de acordo com o cenário fático apresentado pelas partes? Ou, ainda, deve ser delimitado de acordo com a posição jurídica apresentada pelas partes? Cada uma dessas condições torna o escopo do mandato mais restrito. Note-se que isso não está considerando a função e os efeitos das petições das partes, mas, ao contrário, o escopo do mandato dos árbitros para decidir com base em artigos não arguidos pelas partes. A obrigação dos árbitros é de decidir o ponto específico colocado diante deles 11. Eles possuem uma missão jurisdicional 12. Para este propósito, o árbitro está no mesmo patamar dos juízes 13. Consequentemente, o árbitro não pode ser considerado na mesma posição das partes. Embora haja um contrato que os vinculam, eles estão em um nível hierárquico diferente, pois o árbitro é o juiz das partes 14. Em outras palavras, muito embora os árbitros não sejam membros do Judiciário, sua relação com as partes não é em nível horizontal, já que os árbitros têm o poder de vincular as partes à sua decisão. Isto, entretanto, não significa que o árbitro tem a liberdade de ordenar às partes como ele bem quiser; o escopo do mandato dos árbitros é primeiramente limitado pela cláusula compromissória. O poder dos árbitros está alocado entre a vontade das partes e a lei 15. Nessa senda, o contrato dos árbitros com as partes é limitado pelos direitos fundamentais das partes. Estes direitos são a oportunidade de apresentar seu caso, o respeito ao princípio do contraditório e o tratamento igualitário 16. Mayer, em um posicionamento similar ao de Clay, limita a liberdade dos árbitros ao princípio da justiça natural (ou devido processo legal nos países de common law) 17. Abrangido pelo princípio da justiça natural encontra-se o princípio de "ser entendido" (cada parte tem o direito de ser notificada das alegações da parte contrária), o princípio do contraditório e o princípio do tratamento igualitário 18. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 31 O propósito deste artigo não é discutir a diferença entre devido processo legal, princípio do contraditório e princípio adversarial. A doutrina e a jurisprudência são divididas nesse ponto 19, e não é dever do autor esclarecer tais pontos aqui. Ainda nos princípios fundamentais, as partes possuem o direito de executar este direito, já que a indicação do árbitro foi baseada na sua capacidade jurisdicional 20. Ênfase deve ser dada ao fato de que tais deveres do árbitro são obrigações de meio e não de resultado 21. Assim, a missão do árbitro é relacionada a sua capacidade de dar às partes uma decisão final, respeitando os princípios processuais sagrados, No entanto ainda diferente da missão dos juízes, já que sua jurisdição é limitada à vontade das partes. De forma prática, o que foi dito é que os árbitros devem resolver os problemas postos a eles. 1.1 O princípio do iuria novit curia em arbitragem comercial internacional Nesta seção será visto como o princípio do iuria novit curia é abordado pelos praticantes da arbitragem. Ademais, é interessante entender como o princípio é considerado por cortes de diferentes sistemas legais, como jurisdições de common law e civil law, assim como cortes criadas por tratados internacionais. Embora arbitragem seja dificilmente comparada às cortes, é interessante observar a missão dos juízes em diferentes cortes e sua influência sobre as decisões arbitrais proferidas em tais jurisdições. De fato, não é pacífica a definição do conceito de iuria novit curia. Por exemplo, alguns entendem que iuria novit curia em arbitragem pressupõe que os árbitros alertaram as partes sobre entendimentos jurídicos não arguidos por elas de forma que elas tenham a chance de comentar tais entendimentos 22. Como será visto na segunda seção deste artigo, isto não deve levar à impugnação de uma sentença por excesso de mandato ou violação ao devido processo legal. Por outro lado, se tomarmos a perspectiva tradicional, iuria novit curia significa aplicar a consequência jurídica que mais serve à disputa independente do fato de as partes terem a chance de comentar isso 23. 32 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Até agora não há resposta direta se este princípio é aplicável em arbitragem. No Judiciário, em que não há esta pressão de se anular sentenças, a aplicação do princípio também é criticada. Se alguém leva em consideração o número de entendimentos jurídicos e de artigos existentes nos códigos, é impossível que um juiz possa aplicar todos corretamente 24. Entretanto, de acordo com o propósito do iuria novit curia, o juiz sabe a lei em geral, pois ele é experiente e pode procurar na lei de forma competente e representar o interesse do Estado com igualdade e justiça 25. Quando se discute esse princípio em arbitragem comercial internacional, o problema cresce. Nesses casos, é normal identificar várias leis aplicáveis ao procedimento 26. Em várias ocasiões, os árbitros nem sequer são familiarizados com aquele sistema legal 27. A diferença entre common law e civil law leva ainda a métodos de interpretação diferentes dos contratos. Baseado nestas condições, alguém dificilmente poderá imaginar que os três árbitros serão experientes suficientemente para ter um vasto conhecimento em todas as leis aplicáveis à disputa. Atualmente, isso é considerado como um encorajamento para as partes apresentarem petições sofisticadas aos árbitros sobre a interpretação e aplicação do direito, incluindo pareceres jurídicos em vários casos 28. Como um resultado, poderia haver um iuria non novit curia 29. Se os árbitros não são experts na lei aplicável à disputa, por que deveriam eles ser autorizados a aplicar o iuria novit curia? A princípio, esta consideração parece razoável. No entanto, se tomarmos uma posição de que existe o iuria non novit curia, alguém poderá assumir que, se o árbitro é especialista na lei aplicável, ele poderá agir com o iuria novit curia. E nesse sentido, quais seriam os requisitos para considerar alguém como especialista em uma lei? Esse conceito, portanto, parece ser vago. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 33 Chanais argumenta contra o iuria non novit curia primeiramente dizendo que as partes procuram a arbitragem em vez de o Judiciário, buscando a flexibilidade, às vezes a confidencialidade e outras vantagens da arbitragem. No entanto isso não significa que as partes buscam uma decisão menos justa 30. Ao incluir uma cláusula compromissória e escolhendo o árbitro devido às características intuitu personae, as partes querem que ele aplique sua experiência prática, não apenas seu senso de justiça. Ademais, Chanais, defende que o iuria novit curia seria uma opção "opt out" em arbitragem internacional. As partes que não quiserem correr o risco de enfretarem surpresas com as conclusões dos árbitros apontados por elas deverão avisar com antecedência que seu mandato é restrito 31. Analisando o problema com cautela, a discussão do iuria novit curia em arbitragem remonta ao caminho que os árbitros utilizam para atingir sua conclusão ao proferir a sentença. Eles são proibidos de aplicar seu conhecimento pessoal no caso. Um bom exemplo disso é o caso Radauti, decidido pelo Queen's Bench 32. Embora o exemplo diga respeito à aplicação de fatos não arguidos pelas partes, ao invés de lei, a ilustração feita pela Corte inglesa é muito clara. Se ao árbitro cabe avaliar um touro, ele não o poderá fazê-lo baseado em seu conhecimento pessoal. Assumamos que na semana passada o árbitro vendeu um touro por R$ 1.000,00. O touro que será avaliado na arbitragem não deverá seguir as mesmas premissas que o touro do árbitro seguiu, exceto se as premissas foram apontadas para as partes e elas as comentaram. No entanto, se o árbitro é experiente no mercado bovino, sabe as flutuações do mercado, não há que se abrir tais premissas para discussão, antecipadamente, às partes. Essa visão é baseada no princípio da justiça natural. Esse foi o entendimento mantido pela Corte de Apelação inglesa na decisão. Os árbitros podem utilizar o conhecimento disponível a eles. Se o conhecimento estava disponível para as partes, para os advogados e para os árbitros, já que todos são praticantes da área de comércio marítimo, por exemplo, não há razão para se considerar que os árbitros estariam agindo erroneamente ao levantar premissas diferentes na sentença arbitral 33, ou, até, como alguns dizem, parcial. 34 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Não há razão para considerar que o árbitro ou o juiz que levante algum ponto não arguido pelas partes é parcial, já que o princípio do contraditório é respeitado 34. Em realidade, o devido processo legal, através do contraditório, deve ser considerado coexistente com o iuria novit curia, e não um inimigo 35. Tendo introduzido os leitores às ideias e discussões sobre o iuria novit curia, o autor agora explora o sistema das cortes. Na Alemanha, por exemplo, as cortes são autorizadas a utilizar o princípio do iuria novit curia 36. No entanto, a corte deve submeter às partes para comentarem sobre a previsão legal, não arguida por elas, que a corte entende ser aplicável 37. A doutrina alemã prevê que o mesmo entendimento deverá se aplicar em arbitragem doméstica e internacional 38. Contrárias à Alemanha estão as cortes de common law. Essas diferenças nascem do papel dos juízes nas diferentes jurisdições 39. Nos países de common law, a verdade poderá ser atingida pela discussão das partes, enquanto que nas jurisdições de civil law, o juiz possui um escopo de poder maior, o qual lhe atribui a oportunidade para buscar a verdade 40. Quando se olha para os tribunais internacionais, a Corte Internacional de Justiça 41 e o Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio 42 seguem o mesmo entendimento da maior parte das jurisdições de civil law. A Associação de Direito Internacional (International Law Association - doravante referida como "ILA") acredita que essa prática é seguida porque ela busca a proteção das normas internacionais ao invés da resolução da disputa entre os litigantes 43. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 35 Por outro lado, as cortes de common law, no que diz respeito à aplicação de lei estrangeira, entendem que, exceto se provado pelas partes, a lei estrangeira não deverá ser aplicada 44. Em contraste, as cortes de civil law geralmente decidem que a parte que não alegou a previsão legal correta na disputa não é impedida de ter uma decisão justa proferida pela Corte 45. O que as cortes estatais de jurisdições de civil law fazem quando autorizam a utilização do iuria novit curia é avançarem seu interesse de terem uma jurisprudência coerente 46. Ademais, quando as partes optam por arbitragem, uma das vantagens vendidas é que tal instituição prevê a liberdade das partes para escolherem a lei aplicável. Como é sabido, os árbitros nem sempre são conhecedores da lei aplicável. Em uma grande parte dos casos, a lei aplicável é escolhida após a nomeação do painel arbitral, e o próprio painel deverá decidir qual é a lei aplicável, seja pela lei mais próxima, seja por outro método de conflitos de lei. Portanto, é fácil de entender quão importante é o papel da lei aplicável. Consequentemente, se as partes estão vinculadas pela lei suíça para decidirem sua disputa, pois esta é a lei mais relacionada com a disputa e aparentemente a lei que daria a melhor solução ao caso, por que desconsiderar suas previsões? Fazendo o raciocínio inverso, se todas as previsões da lei suíça não são importantes, por que escolher tal lei? Por que ter uma decisão jurisdicional sobre a lei aplicável ou por que escolher a lei aplicável ao contrato se as previsões de tal lei não fazem diferença para o tribunal se não foram alegadas pelas partes? Aprofundando essas questões, alguém pode chegar à conclusão de que o problema não é, na verdade, a aplicação do iuria novit curia em arbitragem internacional, mas ao contrário, o problema é dar às partes a chance de serem ouvidas. Ademais, não parece razoável discutir tanto sobre a lei aplicável para o caso se os árbitros não podem encontrar a resposta para o problema na lei, já que as partes não arguiram essa previsão. Nesse sentido, a House of Lords chegou a uma decisão interessante no caso Lesotho 47. O caso será propriamente debatido na segunda seção desse artigo, mas, nesse momento, cabe dizer que a House of Lords decidiu que, se o painel arbitral chegou à conclusão errada devido a um erro de fato ou de lei, não cabe a anulação da sentença arbitral. 36 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL O autor não acredita que o tribunal arbitral deve se autoeducar na lei aplicável à disputa. O autor concorda com a perspectiva de que as partes tem o ônus de provar seu caso. Entretanto, quem deverá suportar as consequências da falha do demandante de lidar com as previsões legais relevantes? 48 O demandante ou o demandado? Kessedjian disse que os árbitros devem deixar as partes alerta sobre qual é sua opinião sobre as previsões legais que serão aplicadas na sentença arbitral 49. Ela salienta que o iuria novit curia não é aplicável à arbitragem internacional 50. A arbitragem internacional, na opinião dela, é mais independente do local da arbitragem. Consequentemente a multiplicidade de regras jurídicas aplicáveis aumenta 51. Por este motivo, os árbitros devem noticiar as partes das previsões legais que serão aplicáveis à disputa 52. Tais considerações levam os leitores à relação entre o devido processo legal e o iuria novit curia. 1.2 Devido processo legal Esta subseção é destinada a cobrir a relação entre iuria novit curia e o devido processo legal. A posição das cortes sobre o assunto será exposta na segunda seção deste artigo. Entretanto, visando a atingir a racionalidade das cortes para decidirem sobre o assunto, é importante entender quais elementos existem nesta relação. Não raras são as vezes em que se requer a anulação de sentença arbitral baseada no excesso de autoridade e violação do devido processo legal 53. Aparentemente, a lei das sedes mais populares de arbitragem entendem que a violação ao devido processo legal e o excesso de autoridade dos árbitros é um motivo para se anular a sentença arbitral 54. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 37 O arrazoado das impugnações sob tais motivos é muitas vezes basea-do no iuria novit curia. Portanto, há uma discussão implícita se os árbitros excedem seu mandato ou se violam o devido processo legal, quando proferem uma sentença sob a guarda do iuria novit curia. A doutrina parece adotar a posição de que se trata de uma violação ao devido processo legal. Por exemplo, Bolard advoga que se trata de uma violação ao princípio do contraditório 55. Poudret e Besson salientam que o princípio do contraditório atinge sua máxima quando os árbitros estão querendo proferir sua decisão baseados em seu conhecimento pessoal, ou em informações encontradas por eles, e as partes não esperam este entendimento 56. Assim, aparentemente, o iuria novit curia está mais relacionado ao devido processo legal do que ao excesso de mandato. Sobre a análise para verificação se houve violação ao contraditório, Van den Berg ensina que a corte que recebe o pedido de execução da sentença arbitral estrangeira não pode analisar se o árbitro poderia ter alcançado uma conclusão diferente caso ocorresse a violação ao devido processo legal 57. Isso porque tratar-se-ia de análise do mérito da disputa, o que é proibido pela Convenção de Nova Iorque 58. Ademais, o devido processo legal pode ter um escopo diferente dependendo do país. Como exposto por Kessedjian, o devido processo legal (le principe de la contradiction) é um princípio universal com um conteúdo nacional 59. Poudret e Besson lecionam que o devido processo legal em arbitragem internacional situada na Suíça não tem o mesmo conteúdo do devido processo legal de processos judiciais situados na Suíça 60. Basicamente, o devido processo legal é o direito procedimental fundamental de introduzir argumentos de fato e de direito para o tribunal antes de a sentença ser proferida 61. Trata-se de requisito formal 62, o qual é preenchido com o acesso, de uma parte, à informação apresentada para o tribunal arbitral pela outra parte 63. Interessante dizer que o requisito é ter acesso, mas não responder ou explicar o argumento apresentado pela parte contrária. Daí infere-se que a renúncia (waiver) se torna um elemento importante aqui. 38 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL A questão do que seria uma violação ao devido processo legal pode ser vista de diferentes perspectivas. Uma delas diz respeito ao caso de que o demandado em um procedimento arbitral deve ter conhecimento sobre os possíveis resultados da disputa. Portanto, ao aplicar a previsão legal não arguida pelas partes, os árbitros estariam surpreendendo o demandado. O contra-argumento é que, desde que a lei aplicável foi definida previamente na arbitragem, não há surpresa para as partes sobre a decisão do caso 64. A segunda perspectiva é que os árbitros deveriam considerar que, se o demandante não levantou um argumento, haveria uma renúncia a tal argumento. O demandado estrategicamente pode ter considerado que o demandante renunciou ao argumento "x" 65. Portanto o demandado não espera que o tribunal arbitral decida com base naquele argumento. Por consequência, os argumentos não expostos pelas partes deveriam ser considerados como renunciados. A terceira perspectiva é que, considerando que o devido processo legal é um princípio sacro da arbitragem, ao violá-lo o tribunal arbitral estará excedendo sua autoridade. Alguém pode arguir que isso não é razoável, já que o excesso de autoridade e a violação ao devido processo legal são motivos diferentes para anulação da sentença arbitral. No entanto, sendo o devido processo legal um dever dos árbitros, e não uma lacuna a ser preenchida por sua discrição, ao violar tal dever, o tribunal estará excedendo seu mandato. Ainda haveria uma pergunta: qual seria a violação do devido processo legal que não reflete o excesso de mandato dos árbitros? Se levarmos em consideração as duas primeiras perspectivas, as quais lidam com o elemento da surpresa e ciência do caso litigado contra a parte, há algumas considerações que devem ser feitas sobre tais elementos. Para que não haja surpresa às partes e para que seja cumprido o devido processo legal, Kessedjian alerta para cinco regras básicas para os árbitros 66. As primeiras duas regras são que os árbitros têm um papel pedagógico para com as partes e que eles devem agir com transparência 67. Tais regras emanam do fato de que o procedimento arbitral é flexível e os árbitros devem ter a chance de, ao contrário do juiz, deixar as partes saberem qual é a melhor forma de conduzir o procedimento e quais regras governarão a arbitragem 68. Os árbitros não devem surpreender as partes com as suas decisões 69. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 39 A terceira regra diz respeito ao comportamento dos árbitros no que concerne a prudência com as partes. O árbitro está sentado no tribunal arbitral devido à escolha das partes 70. Ele/ela são servidores das partes, no sentido de que suas ações resultarão numa decisão final e vinculativa sobre a discussão 71. Na quarta regra, Kessedjian diz que o árbitro deve estar aberto à melhor prática apresentada pelas partes 72. O árbitro pode administrar as provas que as partes apresentarem como bem lhe convier, mas não pode impor às partes que litiguem na forma como ele quiser 73. Pelo acima exposto pode-se inferir que a real interação do princípio do iuria novit curia com os princípios do devido processo legal e da oportunidade de apresentar seu caso é que o princípio é aplicável entre as partes e os árbitros. Em outras palavras, é uma relação triangular. As partes têm a chance de responder aos argumentos apresentados pela parte contrária. E, em arbitragem internacional, o princípio é estendido aos árbitros, e.g., as partes têm a chance de responder às ponderações dos árbitros sobre o caso. Este é o mesmo entendimento de Kessedjian, e ela assim conclui a quinta regra 74. Em realidade, o princípio do contraditório proíbe o unilateralismo; é uma regra ética do debate judicial, como conclui igualmente Kessedjian 75. A ideia de o princípio do contraditório vincular as partes e os árbitros parece ser razoável. No entanto, não soa razoável se levarmos em consideração a diferença existente entre os árbitros e as partes colocada por Clay, qual seja a de que não pode haver um equilíbrio exato entre os árbitros e as partes, pois os árbitros são os juízes dessas 76. Clay não trouxe tal diferença no contexto da aplicação do iuria novit curia, porém cita-se aqui a diferença apenas visando ao questionamento da posição do árbitro em relação às partes. 40 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Obviamente uma destas teorias deverá sucumbir. Ou os árbitros estão em um degrau mais elevado do que as partes ou eles estão no mesmo degrau no que concerne às previsões aplicáveis à solução da disputa. 2 AS SENTENÇAS ARBITRAIS, O IURIA NOVIT CURIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS Esta seção analisará o limite do escopo do mandato dos árbitros segundo a visão das cortes. Oriundo dos limites do mandado, e.g. se é determinado pelo pedido ou pelos argumentos debatidos, há três elementos que decidem o iuria novit curia: o devido processo legal (e quem é vinculado a ele); a surpresa; e o resultado do procedimento. Em cada uma das decisões mencionadas pode-se observar uma ênfase em um destes elementos. Consequentemente o entendimento do escopo do mandado dos árbitros é diferente de acordo com o local da arbitragem. Na análise de cada uma das decisões abaixo serão respondidas três questões: a corte considera iuria novit curia excesso de mandado ou violação ao devido processo legal? O escopo do mandado dos árbitros é relacionado ao pedido ou ao pedido somado dos argumentos debatidos pelas partes? E quais elementos guiam a decisão da corte [surpresa, discrição dos árbitros, devido processo (e quem é vinculado a ele) ou o resultado do procedimento]? 2.1 Suíça O primeiro caso analisado foi julgado pelo Tribunal Federal, em 3 de agosto de 2010, em que se decidiu pela improcedência de um pedido de anulação de sentença arbitral baseado no argumento de que os árbitros concluíram sobre os fatos do caso sem ouvir as partes antes. O Tribunal Federal suíço confirmou que tanto as cortes quanto os árbitros podem se valer do iuria novit curia, sendo que a produção de provas fáticas é limitada à ação das partes 77. O Tribunal Federal salientou que é importante que as partes devam ser indagadas a comentar sobre a previsão legal que o tribunal está considerando aplicar, caso as partes não tenham discutido sobre o assunto. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 41 No referido procedimento, o apelante alegou que o árbitro único confirmou sua jurisdição baseado no entendimento de que um dos contratos entabulados com a empresa filha e irmã das partes na arbitragem era nulo. Segundo o apelante, esse argumento nunca foi discutido durante o procedimento arbitral, e, se as partes tivessem tido a chance de comentar sobre tal contrato, o resultado da disputa seria diferente. O árbitro, alegadamente, estabeleceu a natureza do segundo contrato sem ouvir as partes previamente. O Tribunal Federal suíço entendeu diferente do apelante e julgou improcedente a ação. Diferentemente de algumas cortes estatais, como será ressaltado durante as próximas decisões, o Tribunal Federal suíço tomou o entendimento de que não entrará no mérito da decisão para analisar se houve excesso de poder ou violação ao devido processo legal. Quando se decide se as partes, de fato, discutiram o argumento da natureza do contrato que deu ensejo à confirmação da jurisdição do árbitro, o Tribunal Federal procura a citação das palavras que levaria à questão propriamente dita da natureza de tal contrato. Com isso, a corte apontou que o apelante estava tentando demonstrar que as conclusões do tribunal arbitral estavam erradas, e que não caberia à corte analisar a decisão 78. O Tribunal Federal entendeu que o apelante renunciou (waived) a seu direito de introduzir argumentos com relação à validade do contrato que deu ensejo à confirmação da jurisdição. Concluiu ainda que o apelante sabia ou deveria saber que o árbitro único poderia considerar a validade do contrato que deu ensejo à confirmação da jurisdição. A jurisprudência suíça foi citada para embasar o entendimento de que as cortes podem declarar de ofício o contrato como dissimulado. Da decisão acima referida pode-se chegar à seguinte conclusão: os árbitros podem aplicar iuria novit curia na Suíça desde que o novo ponto jurídico seja submetido ao comentário das partes; O Tribunal Federal aplicou um nível de revisão razoável no pedido de anulação ao não entrar no mérito da decisão, muito embora o apelante tenha tentado fazer com que a corte assim o fizesse. Poudret e Besson reprovam a liberdade dada pelas cortes suíças aos árbitros para aplicarem o iuria novit curia. O argumento utilizado pelos renomados doutrinadores é que a liberdade afeta o papel dos árbitros e as partes na arbitragem 79. De fato, a prática tem demonstrado que cabe às partes introduzir e provar os entendimentos jurídicos 80. Como resultado, os árbitros devem ser menos audaciosos quando substituírem os argumentos das partes pelo seu entendimento do caso 81. 42 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Kaufman-Kohler nota que, quando analisando um ponto legal, o qual não é muito conhecido pelo árbitro, o painel arbitral deverá convidar as partes a se manifestarem sobre o assunto ao invés de tirarem suas próprias conclusões 82. Em uma decisão anterior, de 9 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal suíço, após confirmar a aplicação do iuria novit curia por tribunais arbitrais, anulou uma sentença arbitral da Court of Arbitration for Sport (doravante denominado CAS) sob o fundamento de que as partes foram surpreendidas por um elemento da decisão, qual seja a aplicação da lei suíça 83. De acordo com a decisão da corte, o caso não tinha conexão com a Suíça. Como consequência, o apelante não poderia esperar que a lei suíça fosse aplicável se não arguida pelas partes. Devido à omissão do tribunal arbitral do CAS de não dar às partes a oportunidade de comentar a aplicabilidade de tal lei, o tribunal arbitral do CAS violou o devido processo legal. Na terceira decisão proferida pelo Tribunal Federal suíço, a corte lidou com o elemento da surpresa, o qual as partes utilizaram como fundamento do pedido de anulação de sentença arbitral 84. O apelante, nesse caso, alegou que não havia a expectativa de que os árbitros decidiriam a data de início dos juros na sentença arbitral. No entanto, a corte encontrou nas alegações do apelante prova de que a questão dos juros havia sido tratada pelo apelante na arbitragem. Apesar da assertividade da decisão, a corte entrou no mérito da sentença arbitral para fazer sua análise. A corte analisou se o apelante trouxe o argumento da data base de contagem dos juros. Ademais, a corte analisou a força do desenvolvimento do argumento do apelante, assim como o arrazoado do árbitro. Ao final do dia, o tribunal julgou improcedente o pedido de anulação, no entanto incorreu em excesso de análise das razões da sentença arbitral. Nesta decisão a corte também lidou com a existência de arrazoado pelos árbitros na sentença e o limite da apreciação dos argumentos levantados pelas partes. Em verdade, a corte ainda confirmou que o dever de fundamentar a sentença é violado quando o tribunal arbitral não leva em consideração elementos importantes (seja de fato, seja de direito) oferecidos pelas partes, se tais elementos são importantes para a própria decisão. Ao confirmar isso, a Corte Federal suíça implicitamente mensurou quais elementos apresentados pelas partes são importantes ou não. Entretanto, este não é o papel da corte quando lida com impugnações aos laudos arbitrais. Nesse caso, o Tribunal Federal suíço intimou a parte contrária e os árbitros para justificarem as omissões da sentença. A corte esclareceu um pouco a questão ao confirmar que os tribunais arbitrais não são obrigados a lidar explicitamente com todos os argumentos levantados pelas partes 85. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 43 Da análise das decisões das cortes suíças pode-se inferir que os árbitros, quando atuam em arbitragens situadas na Suíça, estão autorizados a levantar previsões legais não arguidas pelas partes e convidá-las a comentar tais previsões. O elemento surpresa é um elemento importante na Suíça. As cortes suíças consideram a questão do respeito ao devido processo legal e o escopo do mandato dos árbitros relacionada com o pedido ao invés dos argumentos expostos pelas partes. 2.2 França Engel Austria, após ser condenada na arbitragem contra Dom Trade, requereu à corte francesa que anulasse a sentença arbitral baseada na violação ao princípio do contraditório 86. Dom Trade, por sua vez, alegou que o pedido de anulação era, na verdade, uma busca pela reapreciação do mérito pela corte. O tribunal arbitral no caso anulou o contrato entre as partes e condenou Engel Austria a indenizar Dom Trade baseado no princípio de direito austríaco Wegfall der Geschäftsgrundlage (princípio da imprevisão na execução dos contratos). Dom Trade alegou que o princípio foi discutido durante o procedimento. Levando tais fatos em consideração, o papel da corte francesa seria verificar se as partes discutiram esse ponto. Ultrapassar essa análise seria uma invasão do mérito da disputa. A corte francesa decidiu que, já que as partes não discutiram a aplicação do princípio de direito austríaco; já que o princípio do contraditório é de relevância absoluta em arbitragem; e já que o princípio de direito austríaco era a única base para se anular o contrato, a sentença arbitral deveria ser anulada devido à violação do princípio do contraditório. A corte francesa anulou parcialmente a sentença apenas no que concerne aos pontos da sentença que não haviam sido debatidos pelas partes. A corte deixou implícito que se os árbitros quisessem aplicar o princípio austríaco sua sponte, deveriam ter requerido às partes que o comentassem previamente. 44 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL A corte francesa não entrou no mérito da disputa. Ela aplicou a análise no nível correto. Apenas checou se as partes haviam discutido o princípio de direito austríaco durante a arbitragem. Ademais, a corte deixou implícita a aceitação do princípio do iuria novit curia em arbitragem internacional, desde que as partes tenham a chance de comentar sobre o assunto previamente à prolação da sentença arbitral. Outro caso interessante é a decisão proferida pela Corte de Cassação quando anulou uma sentença arbitral na qual os árbitros, sua sponte, analisaram o volume de transações comerciais de uma das partes na arbitragem e basearam sua decisão em tal prova 87. Os motivos para se anular a sentença foram de que o tribunal arbitral não convidou as partes a comentarem esta investigação do volume das transações comerciais, violando assim o princípio do contraditório 88. Outra decisão proferida pela corte francesa, mais recente, é o caso Nickel, decidido em 29 de junho de 2011 89. Nesse caso, o demandado na arbitragem requereu a anulação da sentença, pois o tribunal arbitral condenou-o com base na teoria da perda de uma chance, fundamento este que não havia sido discutido pelas partes na arbitragem. O pedido da arbitragem baseava-se em lucros cessantes. A Corte de Apelação de Paris anulou a sentença, e a Corte de Cassação confirmou tal entendimento. O fundamento utilizado pelo demandado na arbitragem para requerer a anulação da sentença arbitral foi a violação ao princípio do contraditório. Poudret e Besson entendem que, na França, o árbitro pode basear-se em previsões legais da lei, as quais foram implicitamente debatidas pelas partes 90. Isso porque não haveria, assim, elemento de surpresa 91. No entanto a Corte de Cassação anulou uma sentença, em 14 de março de 2006, devido ao fato de que os árbitros decidiram um caso com base em um artigo do Código Civil não arguido pelas partes 92. A racionalidade da decisão tomada pela Corte é que, enquanto os árbitros não estão obrigados a submeter às partes a fundamentação da sentença, o princípio do contraditório é de suma importância. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 45 Portanto, na França, o escopo do mandato dos árbitros está mais relacionado à previsão legal arguida pelas partes. As cortes francesas consideram que o elemento da surpresa tem papel importante no desenvolvimento do devido processo legal também. Consequentemente, quando se anula uma sentença sobre este assunto, a corte considera o iuria novit curia como uma questão de devido processo legal e não excesso de mandato. 2.3 Suécia A Corte de Apelação da Suécia anulou uma sentença arbitral por excesso de mandato dos árbitros, pois o fundamento da sentença não havia sido discutido pelo demandado 93. A arbitragem dizia respeito ao término de um contrato de distribuição pelo comprador (Systembolaget) após ter conhecimento de que o vendedor (V&S Vin & Sprit AB) estava envolvido em corrupção. V&S iniciou uma arbitragem requerendo indenização pela rescisão imotivada do contrato. O tribunal arbitral entendeu que o contrato não poderia ter sido terminado e condenou Systembolaget a indenizar V&S. Os fundamentos da decisão são que Systembolaget não tinha direito de terminar o contrato sob a guarda de um princípio de direito civil, o qual as partes teriam excluído a aplicação no contrato. A corte sueca entendeu que o tribunal arbitral lidou com questões (termo sueco denominado rättsfakta) na sentença arbitral que não foram abordadas pelas partes na arbitragem. Na prática arbitral sueca, as partes e os árbitros preparam um documento chamado recital, o qual funciona como um guia das deliberações do tribunal arbitral. O recital foi aprovado pelas partes e aparentemente não continha nenhuma referência de que o tribunal arbitral deveria decidir sobre a aplicação do princípio de direito civil na relação contratual das partes 94. O princípio utilizado pelo tribunal arbitral para fundamentar sua sentença prevê que uma parte tem o direito de terminar o contrato se a parte contrária o viola substancialmente. Systembolaget alega que o tribunal arbitral determinou que esse princípio fosse excluído da contratação pelas partes. Se V&S arguisse que esse princípio não havia sido aplicado, a sentença arbitral não seria anulada. V&S, por sua vez, alegou que o tribunal arbitral na verdade decidiu que Systembolaget não deveria ter terminado o contrato baseado no fundamento em que o fez, ao invés de determinar a aplicabilidade de tal princípio. 46 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL De acordo com a fundamentação do tribunal arbitral, o princípio de direito civil seria aplicável caso as partes não houvessem estabelecido os requisitos para terminar o contrato, i.e., se as partes não houvessem excluído a aplicação desse princípio de seu contrato. O tribunal arbitral entendeu que os termos de política de fornecimento e os termos de compra de 1995 (contratos que regulavam a relação das partes) regulavam como as questões de corrupção deveriam ser analisadas. Portanto, o princípio de direito civil não seria aplicável. No entanto, as partes não elaboraram argumentos sobre isto 95. A Corte de Apelação sueca entendeu que a conclusão à que o tribunal arbitral chegou não era nada, senão a análise se as partes haviam ou não excluído da contratação o princípio de direito civil. Como a discussão da arbitragem era se havia uma quebra contratual ou não, e o tribunal decidiu sobre a possibilidade de se excluir de contratação o princípio de direito civil, os árbitros excederam seu mandato. Em uma análise apurada, o que realmente ocorreu é que as partes não se basearam no fato e na lei no que concerne a aplicação do princípio de direito civil sueco. A corte considerou como relevante se V&S em algum ponto arguiu que as partes expressamente acordaram nos requisitos para se terminar o contrato, e como conclusão, a aplicação do princípio de direito civil não seria possível. A corte, de fato, encontrou na defesa de Systembolaget um pedido de que V&S tomou ações que o deram direito a terminar o contrato de acordo com o princípio de direito civil; encontrou ainda que V&S, em sua resposta, informou que o direito de terminar o contrato não existia sob aquele princípio. A corte disse que, ao fazê-lo, V&S não estava realmente discutindo se o princípio era aplicável ou não, mas apenas negando que o término do contrato sob a guarda de tal princípio não poderia ser feito. Em verdade, o recital continha uma declaração feita por V&S de que, se Systembolaget buscava o direito de terminar o contrato baseada em sanções de direito civil, isso deveria ser precisamente esclarecido. A corte, porém, não entendeu que este elemento do recital era um pleito que as partes excluíram da contratação do princípio de direito civil. Ademais, a corte considerou que V&S não arguiu que o princípio de direito civil não havia sido excluído de contratação. Por esta razão, o escopo do mandato dos árbitros não abarcava a discussão se as partes haviam excluído ou não a aplicação do princípio de direito civil. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 47 Heuman leciona que os árbitros devem submeter às partes para comentarem os pontos que pretendem levantar na sentença para evitarem surpresas 96. Segundo ele, esse é o guia procedimental que os árbitros podem seguir. Nesse sentido, os árbitros deveriam agir de forma a assegurar que as partes possam identificar quais são os pontos que estão sendo levantados contra elas 97. A parte contrária deve ser capaz de preparar sua defesa, objeções e contra-argumentos. A violação do princípio adversarial leva a parte contrária a lutar no escuro. Voltando ao caso Systembolaget, houve três pareceres legais emitidos por professores renomados. O Professor Jan Ramberg observou que V&S não discutiu que o princípio de direito civil não era aplicável, assim como não discutiu que as questões relacionadas à corrupção estavam exclusivamente reguladas pelo contrato 98. O Professor Lars Heuman apontou que o demandado na arbitragem tem o direito de se defender e de entender o pleito contra o qual se defende 99. Heuman notou que V&S não se referiu à relação de as partes serem reguladas exclusivamente pelas cláusulas contratuais 100. Assim, concluiu que Systembolaget não tinha nenhuma razão para acreditar que V&S estava arguindo a exclusão da aplicação do princípio de direito civil. Um terceiro parecer foi emitido pelo professor Bengt Lindell, o qual se aliou ao entendimento do Professor Heuman de que, se o demandado não tem conhecimento do pleito contra o qual luta, ele estará "lutando na neblina" 101. Nos três pareceres o que restou claro é que Systembolaget não tinha conhecimento de que a aplicação do princípio de direito civil estava em jogo. Professor Heuman e Professor Lindell focaram mais no respeito ao princípio adversarial que no excesso de mandato. Entretanto a corte entendeu que se trata de excesso de mandato, criando, assim, um entendimento peculiar da aplicação do iuria novit curia em arbitragem. 48 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Uma segunda perspectiva deste caso é que, apesar de a questão não ter sido levantada pelo tribunal arbitral sua sponte, a aplicação do princípio de direito civil tratava-se de um argumento trazido pelo demandado, o qual arguiu, em sede de anulação de sentença, não ter tido a chance de desenvolver suficientemente sobre este princípio. Note-se que Systembolaget arguiu que o princípio de direito civil dava direito ao término do contrato. Para fazer tal argumento, Systembolaget primeiramente deveria provar a aplicação deste princípio. Se se argumenta que é possível tomar uma conduta com base em um princípio, deve-se explicar o porquê, certo? A razão para Systembolaget terminar o contrato é que o princípio de direito civil autoriza o término se a parte contrária violou o contrato substancialmente. Então, por que aplicar esse princípio? O tribunal arbitral meramente rejeitou os argumentos expostos por Systembolaget. A conclusão a se chegar é simples: seguindo o parágrafo acima, se o princípio aplicado por Systembolaget para terminar o contrato não é válido sob estas circunstâncias, o contrato não poderia ser terminado. Consequentemente, o pleito colocado por V&S é provido. Se fosse aplicado o critério da previsibilidade utilizado pelo Tribunal Federal suíço da primeira decisão comentada, a sentença não seria anulada. Se Systembolaget requereu a aplicação do princípio de direito civil, o mínimo que deveria prever era que esse princípio poderia não ser considerado aplicável ao caso. Assuma-se que, se o tribunal arbitral aceitasse a aplicação deste princípio, ter-se-ia chegado a um erro na aplicação da lei. O tribunal arbitral teria aplicado um princípio dando direito à Systembolaget de terminar o contrato, que na verdade não poderia ter sido terminado, pois tal princípio não é aplicável ao contrato. Portanto, primeiro era previsível à Systembolaget que o tribunal arbitral poderia questionar a razoabilidade dos argumentos apresentados. Segundo, Systembolaget, o qual teve a chance de discutir a aplicação do princípio, já que ela própria introduziu tal argumento, discutiu tal princípio partindo do pressuposto que é aplicável. Em cada uma destas perspectivas de análise é possível se observar diferentes formas de definição do escopo do mandato dos árbitros. Na primeira análise, a qual é a adotada pela corte sueca, o mandato dos árbitros não está baseado apenas no que foi pedido, mas nos fatos e argumentos jurídicos apresentados pelas partes. No segundo entendimento, o qual é mais similar às cortes suíças, o escopo do mandato dos árbitros está mais relacionado ao pedido das partes, pois os árbitros, para recusarem o argumento de defesa apresentado por Systembolaget, poderiam declarar que princípio de direito civil não é aplicável. Portanto, o contrato não poderia ser terminado e o pedido buscado pelo demandante seria provido. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 49 Em conclusão, a corte sueca, no caso Systembolaget, entendeu que o escopo do mandato dos árbitros é delimitado pelo pedido e, mais importante, pelos argumentos desenvolvidos pelas partes. Ademais, a corte sueca considera que o fundamento para se anular uma sentença arbitral baseada em argumento não levantado pelas partes é o excesso de mandato. 2.4 Inglaterra Contrariamente ao entendimento sueco, a Corte inglesa negou parcialmente o pedido de anulação de uma sentença arbitral em um caso com semelhantes fatos 102. O demandante, no caso F Ltd. v. M Ltd. buscava indenização sob a guarda da Cláusula 27.3 do contrato. O tribunal arbitral condenou o demandado pelos atrasos da obra, mas, por uma construção jurídica, entendeu que a Cláusula 27.3 não abrangia o pedido de perdas e danos. Como consequência, o valor da indenização foi reduzido substancialmente. O demandante na arbitragem requereu a anulação da sentença com base no excesso de mandato dos árbitros. O pedido de anulação falhou após a corte entender que o demandante, de fato, perdeu sua chance de introduzir um argumento alternativo em suporte ao seu pedido de perdas e danos. A Corte inglesa ainda fez considerações sobre possíveis resultados da disputa, e, em todo caso, mesmo se baseando em outra previsão contratual, o pleito do demandante seria improcedente. Tal conduta marca a análise do mérito da decisão arbitral, o que é criticado como exposto na primeira seção deste artigo. O segundo caso a ser analisado é o caso Lesoto, a famosa decisão que permitiu aos árbitros cometerem erros sobre a aplicação da lei 103. O caso diz respeito a uma arbitragem oriunda de um contrato de construção executado por um consórcio de companhias europeias no território de Lesoto. Trata-se de uma arbitragem CCI situada em Londres. O termo de arbitragem previa que alguns dos pontos controversos entre as partes eram a moeda da sentença arbitral e se haveria juros. A lei material aplicável era a lei do Reino de Lesoto. O tribunal arbitral, no caso Lesoto, condenou o demandado a pagar indenização em uma moeda diferente daquela prevista no contrato e ainda condenou o demandado ao pagamento de juros. O demandado no procedimento arbitral alegou que o tribunal arbitral não poderia condenar ao pagamento de indenização em uma moeda diferente do contrato, pois o próprio contrato previa que os pagamentos deveriam ser feitos na moeda de Lesoto. Ademais, o demandado também alegou que o tribunal não poderia condenar ao pagamento de juros, pois o contrato não autorizava a contagem de juros por pagamentos atrasados. O tribunal arbitral entendeu de forma diversa e decidiu que as cláusulas contratuais não eram aplicáveis no que concerne a indenização decidida em sentença arbitral. 50 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL A Corte de Apelação concluiu que o tribunal arbitral excedeu seu mandato ao aplicar a Seção 49 da Lei inglesa de Arbitragem para condenar o demandado em juros, ao passo que deveria ter aplicado a lei material do contrato para tal questão. A lei material de Lesoto previa que a parte pode receber juros sobre a quantia de dinheiro que for indenizado. A House of Lords, ao revés, reverteu os julgamentos anteriores e declarou que, no pior dos casos, os árbitros cometeram um erro de aplicação de lei, mas que isso é um erro do exercício da jurisdição, não havendo que se falar em excesso de jurisdição, mas sim em erro na aplicação da lei 104. O terceiro caso é o caso ABB v. Hochtief Airport 105. ABB é uma companhia alemã que construiu o aeroporto internacional de Atenas (doravante denominado "AIA") juntamente com o segundo demandado no processo judicial, a qual detém o aeroporto. AIA também era o segundo demandado no processo arbitral. Hochtief é primeiro demandado no processo judicial e era o demandante na arbitragem. Hochtief detém 40% das quotas do aeroporto. O Estado grego detém 55% e ABB deteve, um dia, 5%. Hochtief iniciou uma arbitragem, pois ABB aparentemente transferiu suas quotas irregularmente ao Grupo Horizon. Com a transferência, o Estado grego poderia votar juntamente com o Grupo Horizon e controlar o aeroporto. Os árbitros declararam que a transferência das quotas era nula. ABB buscou então a anulação da sentença arbitral. O caso concerne o pedido de anular a transferência de ações de um dos acionistas do aeroporto (AIA) para o grupo de empresas que estava ligado ao Estado grego. Se válida, tal transferência permitira ao Estado grego controlar a companhia com 60% do capital votante. O tribunal arbitral julgou procedente o pleito, declarando que o primeiro demandado concluiu três contratos prévios com o grupo de companhias que comprou as quotas, prometendo a este grupo que venderia as quotas quando possível. O problema é que o estatuto da AIA obrigava os acionistas ordinários a oferecer sua participação primeiramente aos demais sócios antes de procurar outros investidores. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 51 O primeiro demandado impugnou a sentença arbitral arguindo que o tribunal arbitral agiu injustamente, pois não deu a chance de as partes apresentarem seu caso, e que a sentença foi baseada em um argumento diferente do que foi levantado pelo demandante na arbitragem. A Corte Superior inglesa recusou a impugnação, pois entendeu que as partes tiveram a chance de discutir as questões e o tribunal aplicou tais discussões à sentença arbitral. A análise deste caso é interessante, pois a Corte Inglesa primeiramente aceitou que o tribunal poderia conceder o pedido do demandante, mesmo que a decisão não se baseasse exatamente no que foi arguido. Em outras palavras, o demandante requereu ao tribunal que declarasse nulo o contrato de transferência de quotas. O tribunal arbitral levou em consideração três outros contratos prometendo a venda das quotas, somado ao último contrato, que efetivamente transferiu as quotas. Os três contratos anteriores foram assinados entre 1999 e 2003, e a transferência das ações foi feita em 2004. De acordo com o estatuto do AIA, havia duas condições para se transferir as ações. A primeira condição é que não haveria transferência antes de 2003. A segunda condição é que a transferência era possível se os outros acionistas tivessem a chance de fazer uma oferta antes de o vendedor transferi-las a outro comprador. Os contratos anteriores foram extensivamente debatidos no procedimento arbitral e a Corte inglesa entendeu que as partes tiveram a chance de apresentar seu caso sobre o ponto impugnado da sentença arbitral. Uma inferência que se pode retirar desta decisão é que a Corte inglesa reduz o escopo do mandato dos árbitros ao pedido das partes ao invés de valorizar tanto o que foi arguido por elas. O demandado, que impugnou a sentença arbitral posteriormente, declarou-se surpreso por saber que o tribunal arbitral concedeu o pedido baseado nos contratos anteriores, já que o que foi utilizado como fundamento pelo demandante na arbitragem era o último contrato. No entanto, uma vez que as discussões na arbitragem abrangeram os contratos anteriores, foi razoável que se mantivesse a sentença arbitral. Seguindo a decisão de ABB v. Hochtied, a Corte Inglesa de Justiça desenvolveu explicações sobre as decisões anteriores e anulou uma sentença arbitral baseada no fato de que as partes não tiveram a chance de familiarizar o tribunal arbitral com o seu entendimento do caso 106. A Corte inglesa em verdade fez mais do que isso nessa decisão. Ela declarou que o tribunal arbitral pode levantar pontos de fato ou direito não arguidos pelas partes, desde que as partes tenham a oportunidade de arguir sobre o ponto 107. Aparentemente as cortes concordam que há um dever de previsibilidade das sentenças arbitrais. A corte inglesa enfatizou que as partes não podem ser surpreendidas com questões que nunca ouviram do tribunal arbitral 108. Em conclusão dos casos ingleses, a maior parte das decisões considera o escopo do mandato dos árbitros relacionado ao pedido. Ademais, a Corte inglesa anulou uma sentença arbitral sobre o assunto baseada na violação ao contraditório, ao invés de excesso de mandato. 52 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 2.5 Finlândia A Corte finlandesa até o momento publicou a decisão mais liberal sobre o mandato dos árbitros. Ela confirmou uma sentença arbitral declarando expressamente que os árbitros não estão vinculados à argumentação das partes 109. De acordo com a corte finlandesa, os pleitos apresentados pelas partes constituem o mandato dos árbitros e os fatos discutidos na arbitragem modelam o mandato. No entanto, aplicar a lei não arguida pelas partes não é um elemento de surpresa. O caso, no entanto, deve ser escrutinizado para não ser entendido como extremo do liberal. O tribunal arbitral no caso rejeitou um pedido trazido sob a guarda do código de representante comercial e aplicou o código dos contratos que não foi arguido pelas partes. A razão para a manutenção da sentença é que o pleito trazido sob a guarda do código do representante comercial requeria a declaração de nulidade de uma cláusula contratual. Na Finlândia (como exposto pela decisão da corte), o código dos contratos pode ser aplicado sua sponte se o pleito é baseado em contratos nulos. Já que o pleito trazido era baseado numa cláusula contratual nula, a qual proibia indenização, o código dos contratos pode ser aplicado sua sponte pelos árbitros. As cortes finlandesas consideraram que as partes tiveram sua chance de provar e de discutir todos os fatos relevantes que foram mencionados na decisão, e que, portanto, não houve violação do princípio referido. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 53 A Corte finlandesa enfatizou que é importante as partes terem a oportunidade de apresentar seu caso. Assim, na Finlândia, a aplicação do iuria novit curia é uma questão a ser discutida pela suposta violação do devido processo legal. Ademais, o escopo do mandato dos árbitros está ligado ao pedido formulado pelas partes ao invés dos argumentos avançados por elas. CONCLUSÃO A pesquisa demonstrou que, até o momento, não há uma definição da extensão do mandato dos árbitros no que toca o iuria novit curia. Algumas cortes demonstraram que são mais adeptas a tais condutas do que outras. Isso significa que os árbitros são mais livres para aplicar a solução que mais bem entendem ao caso quando conduzem arbitragens situadas em alguns países, do que quando o fazem em outros. A maior parte das legislações de arbitragem não prevê como os árbitros devem acessar o conteúdo da lei aplicável 110. Ademais, a jurisprudência ainda é carente sobre esse tema. A pesquisa também levou o autor a concluir que não há consenso sobre o significado de iuria novit curia em arbitragem. De acordo com as decisões das cortes, iuria novit curia pode significar aplicar uma previsão legal independente dos comentários das partes, ou apenas levantar tais pontos para as partes comentarem posteriormente. Se se entende que iuria novit curia significa: (i) aplicar a previsão legal não arguida pelas partes; (ii) não levantar tais questões para as partes comentarem antes da prolação da sentença; e, (iii) havendo o elemento de surpresa na decisão arbitral, a consequência é que iuria novit curia não é aplicável em arbitragem comercial internacional, essa anulação poderá ocorrer tanto com base em excesso de mandato quanto com base em violação do devido processo legal. Na verdade, apenas a Corte sueca considerou a questão como excesso de mandato. Os especialistas no campo da arbitragem não esclarecem qual é a base para se pedir anulação por esse motivo. Poudret e Besson analisam a questão na seção voltada para os direitos processuais fundamentais na arbitragem, principalmente falando do direito de ser ouvido 111. Os mesmos autores dizem que o iuria novit curia e o direito de ser ouvido são paradoxos por essência, já que, enquanto o iuria novit curia autoriza os árbitros a aplicarem uma previsão legal antes de ouvir os comentários das partes sobre ela, o direito de ser ouvido requer a notícia a uma parte do ponto que não foi considerada relevante para elas até o momento 112. 54 RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL Muito embora o relatório da ILA sobre a lei aplicável em arbitragem comercial internacional preveja que decidir um caso com base em uma previsão legal não arguida pelas partes dá ensejo ao excesso de mandato 113. No entanto, o relatório da ILA enfatiza a importância do cumprimento do devido processo legal quando se aplica o iuria novit curia. Caminhando para a essência da questão do iuria novit curia em arbitragem comercial internacional, serão apontadas cinco conclusões: Primeira, o iuria novit curia, de acordo com a jurisprudência analisada, é subsidiário ao devido processo legal. E a razão de tal subsidiariedade é que as partes na arbitragem não podem ser surpreendidas pela decisão dos árbitros baseada em um argumento não discutido por elas. Como uma segunda razão, se o resultado da disputa é diferente caso o devido processo legal seja violado, o devido processo legal prevalecerá sobre o poder do iuria novit curia. Aparentemente, o devido processo legal prevalece sobre a autoridade dos árbitros. Segundo, como consequência, pode-se inferir que o princípio do devido processo legal é na verdade vinculativo às partes e aos árbitros. Isso significa que as ideias dos árbitros devem ser levadas às partes antes de se transformarem em sentença. Portanto, o devido processo legal é uma relação triangular em arbitragem comercial internacional, que vincula as partes e os árbitros, i.e., todos devem estar cientes de todos os motivos que podem interferir no resultado da disputa. Terceiro, como resultado da importância do respeito à relação triangular do devido processo legal, há uma hierarquia entre a violação do devido processo legal e do excesso de mandato dos árbitros. Em outras palavras, se o árbitro age com iuria novit curia, o motivo utilizado para se requerer a anulação da sentença é a violação do devido processo legal, pois ele é violado antes de ocorrer o excesso de autoridade dos árbitros. Quarto, infere-se que o escopo do mandato dos árbitros também varia de acordo com a jurisdição, seja de acordo com o pedido das partes, seja de acordo com os argumentos apresentados por elas. De fato, espera-se que os árbitros usem seu conhecimento e experiência quando valoram os argumentos e a prova apresentada pelas partes 114. RBA Nº 36 - Out-Dez/2012 - DOUTRINA NACIONAL 55 Quinto, como um resultado deste artigo, entende-se que as cortes colocam a responsabilidade de os árbitros acertarem o entendimento jurídico em suas sentenças arbitrais nas alegações das partes. Nesse sentido, após vistas as decisões acima, se colocarmos a autoridade dos árbitros em um lado da balança, e a renúncia, mesmo que implícita, das partes em apresentar todos os argumentos que puderem do outro lado da balança, o lado dos argumentos das partes será mais pesado. Em outras palavras, a visão das cortes é que os árbitros não são indicados para assegurarem a justiça a todo custo. Ao invés disso, o que se denota das decisões acima mencionadas é que os árbitros são indicados para resolverem precisamente o que foi colocado pelas partes, e, se tiverem alguma reflexão diversa sobre o entendimento jurídico do caso, eles devem se dirigir às partes para que comentem o entendimento jurídico antes de proferirem a decisão.