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AO INFINITO E ALÉM
Ronie Alexsandro Teles da Silveira
RESUMO:
A nave Voyager 1 deixou o sistema solar em direção ao espaço profundo. Esse evento
faz parte de um espírito de aventura em direção ao desconhecido que amplia
continuamente nossos horizontes. A filosofia parece estar alinhada, desde sua origem, a
esse tipo de disposição para a aventura. Entretanto, nem sempre essa expansão pode ser
interpretada como tendo gerado resultados positivos. Os eventos traumáticos do
totalitarismo no século XX parecem ter marcado negativamente o espírito de aventura e
a própria filosofia. De tal forma que, agora, precisamos reavaliar as condições para o
exercício da atividade filosófica. Tudo indica que a filosofia do século XXI terá que
manobrar entre seu histórico espírito de aventura e os horrores políticos do século XX.
Palavras-chave:
Espírito
de
Aventura;
Filosofia
Contemporânea;
Memória;
Totalitarismo.
ABSTRACT:
The Voyager 1 left the solar system toward deep space. This event is part of a spirit of
adventure into the unknown that continually expands our horizons. The philosophy
seems to be aligned, since its origin, this type of arrangement for adventure. However,
this expansion cannot always be interpreted as having generated positive results. The
traumatic events of totalitarianism in the twentieth century seem to have negatively
marked the spirit of adventure and philosophy itself. So that now we need to reevaluate
the conditions for the exercise of philosophical activity. Everything indicates that the
philosophy of the twenty-first century will have to maneuver between its historic spirit
of adventure and political horrors of the twentieth century.
Keywords: Contemporary Philosophy; Memory; Spirit of Adventure; Totalitarianism.
O título desse texto é uma citação literal de uma frase de Buzz Lightyear, o
astronauta do desenho animado “Toy Story” lançado em 1995. O personagem Buzz
Lightyear é uma homenagem ao segundo homem a pisar na Lua, membro da Missão
Apolo 11, o americano Edwin Aldrin Jr. Na sequência ficará evidente o motivo
filosófico de destacar essa frase de Buzz Lightyear no título desse artigo.
Tudo indica que a nave espacial Voyager 1 deixou o sistema solar no dia 25 de
agosto de 2012. Há mais de um ano, portanto, um objeto humano foi capaz de transpor
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Universidade Federal do Sul da Bahia – [email protected]
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os limites em que nossa vida tem se restringido desde sua origem. Essa nave, lançada
em 1977, leva vários tipos de mensagens gravadas para estabelecer contato com
eventuais seres alienígenas inteligentes que possam encontrá-la.
A Voyager 1 ultrapassou uma fronteira especial, até agora resistente a todos os
esforços humanos. Ela é um sinal inequívoco de nossa capacidade empreendedora, de
nos lançarmos para fora de limites que delimitam um sentido restrito para a vida
humana e de ir sempre além do que é dado.
A ultrapassagem da barreira do sistema solar seria, então, um passo além desse
constrangimento espacial em que nos encontrávamos até o momento. Ela seria um
evento bastante significativo se considerarmos que a história humana consiste em uma
aventura que nos leva sempre além de nossas condições atuais. Condições que são, por
definição, restritivas e limitadoras. Nesse sentido, a Voyager 1 representaria um passo
adiante com relação a uma fronteira especialmente resistente: aquela que afirma que
somos seres desde planeta, que nossa vida está definitivamente ligada a este espaço
específico que chamamos de Terra, que essa é uma condição necessária da humanidade.
De certa forma, essa maneira de interpretar a viagem da Voyager 1, implica em
compreendermos o sentido da vida humana como uma tentativa contínua de ultrapassar
limites e de abandonar delimitações de toda ordem. Essas delimitações seriam todo e
qualquer tipo de confinamento e de definição acabada de nossa existência. Assim
entendida, poderíamos dizer que o homem é, antes de qualquer coisa, um ser que
ultrapassa seus próprios limites – uma potência para ir além de qualquer configuração
particular que possa ser afirmada em uma situação de fato.
Se isso é verdade, então a história humana é uma contínua atividade de
abandono daquilo que somos em uma circunstância particular, um movimento de deixar
de ser o que já se é, uma aventura em que o sentido que buscamos se encontra sempre
além daquilo que obtivemos ou do que realizamos. Se a nossa história é uma aventura
desse tipo, constantemente aberta em direção ao que ainda não somos, então ela diz
respeito a lançar-se em direção ao desconhecido, a lidar com aquilo que ainda não
somos e que não sabemos que somos – porque é na direção dele que nos movemos.
Esse constante alargamento da existência humana certamente compreende a
atitude de nos projetarmos dentro do frio vazio do espaço sideral, no abismo em que
tudo pode perder-se sem deixar rastros, na escuridão sem fim do indeterminado. Mas ele
também implica em ampliarmos os nossos modos de viver, de tal forma que os outros
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possam ser incluídos nele sem deixar de ser o que são. Isto é, entender a existência
humana como um movimento de expansão e ultrapassagem de limitações implica
também em construirmos modos de vida mais inclusivos, de tal forma que dentro deles
caibam todos os outros homens. A expansão dos nossos modos de vida implica em
ampliação da tolerância para com aqueles que adotaram padrões de existência diferentes
dos que estruturam nossas próprias crenças.
Viajar para o espaço longínquo e tornar presente aos nossos olhos uma zona
ainda oculta da realidade não é algo, afinal, tão diferente de ampliar nossas formas de
vida, de tal maneira que dentro delas caibam outras maneiras de viver. É verdade que
temos dado pouca atenção àqueles que vivem vidas estranhas bem ao nosso lado.
Flusser tem razão ao indagar sobre o sentido de nos lançarmos tão longe no espaço se
não conseguimos sequer cogitar como se constituem formas de vida não humanas
próximas a nós (FELINTO & SANTAELLA, 2012). Afinal, o que pensa uma formiga
ou uma girafa? Tal é a distância que nos separa delas que nem sequer somos capazes de
formular uma pergunta pertinente – porque “pensar” talvez não se aplique a uma girafa
ou não seja aquilo que ela possui de específico. Parece que nada sabemos sobre esse ser,
a ponto de admitirmos que ela se constitui como um limite intransponível para nós.
Nossa ignorância é tamanha que sequer sabemos o que perguntar a ela.
Há aqui um limite que não ultrapassamos ainda. Talvez não faça sentido
lançarmo-nos no espaço sideral sonhando com a possibilidade de estabelecer
comunicação com outras formas de vida se não somos capazes de nos comunicarmos
com seres que compartilham conosco a permanência nesse planeta.
Todas essas dimensões potenciais da expansão, contidas naquela expressão de
Buzz Lightyear, parecem exigir de nós algum grau de atenção: seja no espaço sideral,
seja na política ou em direção a outras formas de vida terráqueas. É verdade que a
própria possibilidade de expansão requer a capacidade de ampliarmos nossas fronteiras
interiores, de tal forma que possamos estar aptos a ultrapassar todas essas fronteiras
exteriores. Parece que a capacidade de ir além de nossas próprias limitações pessoais é
um requisito existencial que nos habilita previamente para ir além de qualquer fronteira
exterior.
Se há uma forma para preparar homens que sejam capazes de cumprir com essa
finalidade de extrapolar continuamente as condições existentes, acredito que ela
consista na capacidade de ir além de suas próprias condições pessoais. Nesse sentido,
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precisamos pensar em que a filosofia tem nos auxiliado a preparar os homens para
enfrentar suas próprias limitações e em que sentido o seu ensino está habilitando as
pessoas para se tornarem astronautas dispostos a se lançarem em abismos ainda
desconhecidos.
Parece-me que há aqui uma questão pertinente para a filosofia atual: nós, os
filósofos do século XXI, estamos afinados com esse sentido de ampliação da aventura
humana ou o exercício dessa atividade tem se mostrado como a procura por um terreno
sólido, a adequação a padrões conhecidos e a reiteração de procedimentos já
consagrados? Em outras palavras, a filosofia é, nos dias de hoje, uma aliada do espírito
de aventura?
Eu me arriscaria a dizer que Tales de Mileto foi um dos primeiros astronautas,
porque foi capaz de lançar-se a uma distância tão grande que tornou possível a
consideração unificada da totalidade do mundo. Isto é, a pergunta pela origem da
natureza tornou possível olharmos para a Terra como se não estivéssemos inseridos
nela, como se fossemos capazes de viajar até o espaço e, de lá, pudéssemos contemplar
o planeta inteiro com um só olhar. De certa forma, a primeira pergunta filosófica é um
empreendimento de distanciamento espacial que permitiu uma apreciação da totalidade
do mundo, algo que espacialmente só se tornou possível muito tempo depois.
Nesse sentido, parece que o exercício filosófico se aliou historicamente ao
processo de expansão da nossa capacidade de tomar nossas próprias condições de
existência como objetos de reflexão e, portanto, como circunstâncias que poderiam ser
avaliadas e, eventualmente, abandonadas. Olhar de longe, ver as coisas do espaço, é
algo que nos permite julgá-las de maneira panorâmica e, a partir desse ponto de vista,
descartá-las.
De certa forma, a atividade histórica adotada pela filosofia intensificou o tipo de
distanciamento que nos permitiu deixar para trás muitas de nossas limitações
existenciais. Assim, a filosofia é uma das precursoras da Voyager 1 e pode ser definida
por aquele lema de Buzz Lightyear, porque ela facilita nosso movimento em direção ao
que ainda não somos. Ela é uma atividade voltada para o infinito e para o além. Com
efeito, a distância propiciada por tais movimentos, sejam de reflexão ou de
deslocamento espacial, permitiu que nos tornássemos aptos para estarmos além de
qualquer circunstância particular. Então, parece claro que a atividade filosófica se
constituiu historicamente como uma força promotora do espírito da aventura humana.
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Mas também é verdade que esse processo de afastamento das condições de fato
em que vivemos, esse alinhamento com o espírito aventureiro da filosofia, tem sido
objeto de crítica. A contemplação distanciada da totalidade de uma determinada forma
de vida humana tornou possível que nos descartássemos dela com relativa facilidade. A
ampliação da perspectiva tornou possível que nos desenraizássemos das condições
concretas em que vivíamos, de tal forma que elas perderam seu peso existencial
original.
Esse
movimento
envolve,
portanto,
uma
espécie
de
dispositivo
antigravitacional que retira do estatuto ontológico sua solidez e sua concretude
convencionais. É esse dispositivo de desengajamento que nos permite avaliar a
totalidade de nossas condições de existência, facilitando seu abandono. Nesse caso, a
distância está intimamente relacionada à perda de peso ontológico.
Nem sempre o abandono, facilitado pelo dispositivo antigravitacional, significou
algo de positivo para a vida humana. Isto é, certamente a facilidade proporcionada pelo
ponto de vista distanciado tornou possível a crítica e daí o desmantelamento de formas
de vida vigentes. Mas isso não garantiu que aquilo que foi proposto como uma forma de
vida alternativa tenha se apresentado como algo efetivamente melhor do que aquilo que
foi destruído. Nem sempre o progresso pode ser claramente identificado como tendo
resultado desse processo de afastamento e avaliação desengajada.
Isso significa que as viagens espaciais, filosóficas ou não, nos propiciaram
experiências que nem sempre se apresentaram como positivas. Quando os portugueses
chegaram ao Brasil e entraram em contato com os indígenas, perceberam que eles não
tinham qualquer tipo de vergonha e se comportavam de maneira inocente. Ocorreu-lhes,
então, que eles haviam encontrado o próprio Éden descrito no Gênesis. Mas se o Brasil
era o Paraíso, então só os europeus eram pecadores que haviam sido privados da
perfeição original. Eles seriam, portanto, descendentes de homens decaídos e punidos
por Deus (BUARQUE DE HOLANDA, 2000).
Nesse caso específico, a expansão da perspectiva propiciada pelas navegações e
pelo descobrimento de novos mundos, implicou uma reavaliação altamente pejorativa
do próprio europeu, na medida em que o obrigou a alterar seu ponto de vista tradicional
sobre si mesmo e sobre a civilização ocidental. Não foi em vão que dois marinheiros da
esquadra de Pedro Álvares Cabral abandonaram seus postos e desapareceram nas praias
brasileiras (FAORO, 1975). Somente com a chegada dos Jesuítas ao Brasil, 49 anos
após o descobrimento, é que os indígenas foram devidamente interpretados como
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pagãos a serem convertidos e, portanto, como homens inferiores a serem cristianizados.
Dessa forma, a dignidade europeia foi restabelecida e um sentido civilizatório pôde ser
obtido para sustentar o tipo de atividade colonial que foi desenvolvida pelos europeus
na América. O impacto inicial do descobrimento foi minimizado por uma
reinterpretação do significado existencial dos selvagens ameríndios. Só essa
reinterpretação foi capaz de estabelecer um padrão de atividade válida para o processo
de cristianização do gentio.
Esse exemplo torna evidente que novos descobrimentos propiciados pelo espírito
de aventura podem revelar verdades indesejadas ou imagens desconfortáveis de nós
mesmos – nesse caso uma compreensão altamente negativa sobre o modo de vida
europeu. O resultado das adaptações exigidas pelo distanciamento, as proposições sobre
que formas de vida poderemos adotar no futuro, não possuem um certificado de garantia
e não implicam em progresso garantido em qualquer sentido que possamos dar a esse
termo. O resultado da expansão da perspectiva e as necessárias adequações de avaliação
do sentido existencial de nossas vidas podem vir a resultar, inclusive, em um mundo
pior do que esse. O panorama geral pode adquirir uma feição feia quando confrontado
com a dimensão mais confortável do mundo que conhecemos e no qual vivemos.
Em função desse risco inerente à aventura, é compreensível que alguns tenham
entendido que devemos restringir nossas ambições, nossas proposições sobre como
deveríamos viver, já que elas são potencialmente perigosas e podem se mostrar mesmo
como extremamente danosas. De uma forma ou de outra, vários críticos tem defendido a
ideia de que devemos delimitar nossos movimentos intelectuais a dimensões
gravitacionais, sem adotarmos pontos de vista elevados demais.
Dessa perspectiva de interpretar o espírito de aventura haveria um perigo ligado
a grandes alturas, a grandes pretensões revolucionárias – sejam políticas,
epistemológicas ou morais – de tal forma que seria mais adequado realizarmos
pequenos ajustes cotidianos e correções menores no nosso modo de vida. Isto é, seria
mais prudente nos deslocarmos dentro de pequenas distâncias, sem nos lançarmos além
de limites seguros e já conhecidos, sem abandonar o terreno seguro da gravidade
terráquea.
Essa perspectiva crítica com relação àquilo que se entende como uma
extrapolação injustificada do empreendimento filosófico possui uma longa história e
não seria possível recontá-la aqui de maneira adequada. Apenas como referência para
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essa atitude, podemos nos lembrar do espírito geral do empirismo inglês, especialmente
a versão defendida por Hume (2000), do criticismo de Kant (1989) e mais recentemente
da posição de Hannah Arendt (1989). De maneira geral, essa crítica diz respeito a
colocar sob suspeita e conter os indóceis cavalos do carro de uma atividade filosófica
que envereda pela metafísica.
A despeito desse movimento crítico de autolimitação do espírito de aventura ter
se desenvolvido há algum tempo dentro da própria comunidade filosófica, ele foi
intensificado na atualidade pelos eventos históricos do século XX. Na mais branda das
hipóteses esses eventos parecem ter reforçado essa disposição cultural de contenção do
espírito de aventura filosófica.
De fato, as experiências totalitárias do último século parecem ter marcado de
maneira profunda aquele espírito de aventura demonstrado historicamente pela filosofia.
Não é raro que a própria literatura filosófica estabeleça relações, difusas ou causais,
entre o pensamento de Nietzsche e Heidegger com o Nazismo, e de Marx com o
Stalinismo, por exemplo. Nesse sentido, a obra de Popper (1974) sobre os inimigos
filosóficos da democracia – Platão, Hegel e Marx – é uma referência bastante eloquente.
Podemos notar nesse tipo de postura uma nota de prudência com relação às
consequências de um exercício filosófico radical, que poderia colocar a vida humana em
risco. Não é ocasional que a possibilidade da extinção da vida humana tenha se tornado
um assunto digno de atenção da filosofia política no século XX (KATEB, 1992). Assim,
a radicalidade do pensamento e seu exercício sem limites ou balizas indicaria antes um
tipo de desvario, uma pretensão excessiva de remodelar tudo, que poderia levar, como o
fez, à destruição, ao sofrimento e à morte.
Essa nota de prudência precisa ser avaliada nesse momento, porque ela redefine
o tipo de atitude que seria próprio para a filosofia do século XXI. Essa posição quer
restringir de alguma forma o espírito de aventura representado por aquela frase de Buzz
Lightyear. De certa maneira, ela incorpora um espírito reformista que prefere ir
alterando nosso modo de vida por meio de pequenas correções, de mudanças sutis, sem
assumir grandes riscos ou propor grandes transformações. Ela afirma implicitamente
que a segurança na viagem é mais importante do que as descobertas potenciais de novos
modos de vida.
Poderíamos compreender essa atitude como uma contrapartida filosófica da
reação ao acidente ocorrido com o ônibus espacial Challenger em 1986 que vitimou os 7
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tripulantes. Esse evento obrigou a uma redefinição conservadora da política espacial
americana. Nesse caso, em função do espírito de aventura em lançar-se ao espaço, vidas
humanas foram perdidas. Da mesma forma, o espírito de aventura filosófico poderia
proporcionar situações de risco à vida humana.
A explosão dessa nave durante seu lançamento e seu equivalente político, o
desastre dos regimes totalitários do século XX, parecem ter deixado sua marca no
espírito de aventura que a filosofia cultivou, embora não exclusivamente, desde Tales de
Mileto. No seu conjunto, esses eventos que marcaram o século XX parecem sugerir que
devemos adotar uma atitude de prudência no exercício do pensamento filosófico em
função de potenciais consequências nefastas para a humanidade. O ponto de vista
desengajado das condições existenciais efetivas pode se mostrar perigoso, talvez
justamente por implicar em uma diminuição do peso relativo de nossa condição
ontológica atual.
Então, há aqui um problema que se impõe a nós, filósofos do século XXI. Ele
implica em verificarmos que tipo de atitude devemos adotar considerando, de um lado,
o espírito de aventura que nos caracteriza historicamente e, de outro, os desastres
políticos do século XX. Como filósofos do século XXI não podemos deixar de nos
colocarmos esse tipo de pergunta, porque ela implica na possibilidade de adotarmos um
espírito caracterizado pela segurança e pela prudência e abrir mão daquele lema de Buzz
Lightyear.
Há certo consenso tácito quanto à definição do pensamento filosófico como uma
atividade essencialmente livre e, portanto, desvinculada de verdades preconcebidas. É
assim que geralmente definimos a filosofia, desde as aulas introdutórias que visam
formar novos filósofos. Mas também é verdade que essa definição não corresponde
àquilo que estamos praticando de maneira majoritária como uma comunidade de
filósofos.
Nesse sentido, pode-se observar uma tendência em tentar transformar a filosofia
em uma atividade parecida com a ciência. Isto é, em uma atividade limitada pela
escolha de um objeto de estudo, pela definição de um método e pela definição de uma
linguagem apropriada. Essas especificações, feitas previamente, estabelecem um espaço
particular para a atividade filosófica dentro do mundo da cultura acadêmica. A partir da
definição desses parâmetros, ela torna-se uma atividade com uma posição relativa bem
definida dentro do escopo geral da produção do conhecimento atual. Isto é, seu espaço é
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determinado antes do início da própria atividade filosófica. Isso certamente não faz
justiça ao nosso ideal de liberdade – talvez a essa altura uma pretensão meramente
literária.
Observe que o processo de especialização em nível de pós-graduação que vem
sendo utilizado na formação filosófica é idêntico ao processo de especialização presente
na formação dos cientistas. Ou seja, primeiro o aluno recebe uma formação geral,
depois uma especialização crescente no mestrado e no doutorado que termina nos
tornando aptos para falarmos de um ou de dois filósofos. Sendo um pouco mais realista,
a especialização de caráter científico tem nos habilitado a falar de uma categoria
presente na obra de um filósofo.
Os seminários de discussão atuais, que reúnem a comunidade filosófica,
representam exatamente essa ênfase que temos adotado. Cada um de nós tem se tornado
um especialista tão especial que o diálogo tem sido comprometido na grande maioria
dos casos. As tecnicalidades e as exigências inefáveis por “rigor” têm se sobreposto ao
interesse geral, de tal forma que quase ninguém compreende o que os demais dizem.
Assim, as conferências ou comunicações se tornam monótonas e desinteressantes,
porque seu impacto fica restrito àqueles que também são especialistas na mesma área
filosofia, no mesmo filósofo e, talvez, no mesmo conceito. Essas atividades tem se
mostrado burocratizadas e, por isso, desvinculadas de uma vida intelectual relevante –
se é que podemos afirmar que ela existe fora desse ambiente.
É verdade que essa burocratização faz parte da tendência literária, muito
específica da formação cultural brasileira (AZEVEDO, 1963). Mas essa postura
verbalista, bacharelesca e de pouca capacidade de promover um diálogo pertinente com
outras áreas do interesse humano também é uma marca distintiva da fragmentação
promovida pelo sistema de produção de conhecimento existente no mundo
contemporâneo (SILVEIRA, 2013).
Observe que a própria noção, já sedimentada, de que há áreas de conhecimento
na filosofia (ética, teoria do conhecimento, filosofia política, filosofia da ciência) é uma
resposta ao nosso problema sobre a intensidade a ser alcançada pelo pensamento. Se há
áreas diferentes é porque existem limites. E os limites definem até onde podemos pensar
sem extrapolar as áreas nas quais nos tornamos competentes em função do processo de
treinamento. Não é de bom tom acadêmico discutir questões que estão fora de nossos
espaços de especialização, porque isso fere o respeito profissional pela capacitação dos
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demais. A delimitação de áreas e a profissionalização são dois aspectos da mesma
postura de restrição do pensamento a certa territorialidade. Não há melhor maneira de
finalizar uma discussão da qual você não queira participar do que a conhecida afirmação
de que “isso não é da minha área”. A conotação geográfica não é estranha, ela define o
tipo de postura que tem se tornado prevalente na atividade filosófica: o pensamento
deve se acomodar a alguma dimensão conhecida, identificável e restritiva.
O ponto de vista que está sendo afirmado hoje, com a adoção de tal padrão de
comportamento, é que devemos, sim, restringir nosso espírito de aventura. O
pensamento filosófico deve ser efetuado dentro de limites e não pode se apresentar
como uma viagem perigosa em direção a novos mundos e horizontes ainda
desconhecidos. Aquilo que parece estar se tornando predominante nos últimos anos na
filosofia não corresponde ao espírito afirmado pela figura de Buzz Lightyear.
De certa forma, essa é uma tendência esperada que deveria impactar a filosofia
mais cedo ou mais tarde. A divisão social do trabalho, típica dos processos produtivos
inaugurados com a Revolução Industrial, não poderia preservar o exercício filosófico
como se ele fosse uma dimensão sagrada da cultura. Como um processo social de
produção de conhecimento seria estranho que ele preservasse sua autonomia em um
mundo cada vez mais intensamente caracterizado por relações instrumentais. Tudo
indica, seja em função da situação social, seja em função dos comportamentos de classe
profissional que estamos adotando, que já fizemos uma opção por sacrificar o espírito
de aventura em benefício da adoção de um ponto de vista interno, mais prudente,
conformista e menos radical.
Minha avaliação com relação a esse tipo de postura é que fomos levados a adotála justamente em função de um cálculo com relação ao que foram os resultados políticos
negativos do século XX. Isto é, o Nazismo, o Fascismo e o Marxismo soviético
marcaram profundamente nossa experiência histórica, de tal forma que nos parece
impossível, nesse momento, abstrair os seus resultados perversos no desempenho da
atividade filosófica. Assim, propor que nós desconsideremos os resultados dessas
formas radicais de pensar e de agir, como se fossem meros acidentes de percurso,
certamente seria entendido pela parte não filosófica da humanidade como um gesto de
crueldade.
Isso significa que nossa avaliação do espírito de aventura não pode ser feita de
uma perspectiva histórica que avalie tudo o que a civilização ocidental produziu, desde
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Tales, porque a percepção do sofrimento recente de milhões de pessoas ainda está
presente e se impõe diante de nós. É a presença desse sofrimento recente em nossa
memória que nos conduz a adotar um ponto de vista historicamente mais restrito, ligado
ao conteúdo específico e muito vivaz do século XX.
Dessa maneira, parece-me que o espírito de aventura só poderá ser retomado
quando o sentimento da dor dos milhões de seres humanos sacrificados no século XX já
tiver sido absorvido de alguma forma. Nesse momento, parece mais humano que nos
ocupemos da lembrança do sofrimento, da preservação da memória dos nossos erros
passados e do resultado negativo de nossa audácia. Isso nos impõe uma atitude de
contenção respeitosa do espírito de aventura dentro do escopo do reconhecimento pelos
excessos teóricos de um passado recente.
Mas também parece ser verdade que a consideração da dimensão da dor deverá
ceder espaço pelo interesse com relação ao espaço desconhecido à medida que o
sofrimento for sendo superado e reabsorvido por uma perspectiva histórica mais ampla.
E isso, no momento histórico adequado, não significará mais crueldade com relação aos
milhões que morreram ou sofreram intensamente. No momento adequado, e apenas
nessa circunstância muito específica, isso significará que o trauma do século XX foi
superado e que estaremos prontos para novas aventuras.
Agora isso certamente soa mal, como uma forma abstrata e desencarnada de
tentar dar sentido a um passado altamente problemático e dolorido. Mas no futuro, não
seremos mais o que somos agora. Acredito que em breve nosso espírito terá retomado o
interesse pela expansão da vida em direções ainda inexistentes. Agora devemos nos
preocupar em manter Buzz Lightyear como um modelo para as futuras gerações,
aquelas que poderão retomar o princípio que afirma que a atividade filosófica implica
em lançar-se “ao infinito e além”.
O que estou tentado dizer é que o estilo filosófico que tem se mostrado
predominante no início do século XXI parece ser uma resposta aos desastres políticos
do século XX. Nesse sentido, essa postura conservadora não apenas é justificada, mas
até mesmo esperada. Mas não devemos perder de vista esse contexto que a justifica e
que, nesse momento, lhe dá sentido, sob pena de entendermos que se trata da única
maneira de se fazer filosofia. Isso nos levaria certamente a prolongá-lo além do estágio
em que ele funciona como uma espécie de mea culpa filosófica, como uma atitude de
contenção em função dos excessos anteriores. Devemos estar alertas para o fato de que,
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passado esse contexto muito específico, a aventura típica do pensamento precisará ser
revitalizada sob pena de burocratizarmos excessivamente a filosofia além do próprio
sentimento de pesar consequente com o século XX.
Nesse momento específico, nossa memória ainda deve se ocupar com o passado
imediato em função daquilo que ele significa. Mas é natural que ela se distenda
lentamente, permitindo-nos uma visão mais alongada da própria história humana e de
modo a incluir nela eventos menos negativos e mais otimistas. Não creio que isso
signifique propor uma reavaliação do nosso passado imediato. Antes disso, essa atitude
indica a lógica interna da própria constituição de uma narrativa em função de eventos
dolorosos. Em um primeiro momento a vivacidade do trauma se impõe e, com o passar
dos anos, uma narrativa menos focada torna-se necessária, de tal forma que uma visão
panorâmica permita uma compreensão histórica mais desengajada dos eventos. Enfim,
uma perspectiva que seja feita a partir de certo distanciamento e que, ao mesmo tempo,
promova esse distanciamento.
Isso significa que o estilo do exercício da filosofia do século XXI está
intimamente relacionado à forma como elaboramos o sofrimento histórico recente da
humanidade. Sendo assim, podemos ter a esperança de que em um futuro próximo
poderemos eliminar alguns limites que, de uma forma ou de outra, tem aproximado a
filosofia mais do espírito de funcionário do que do espírito de Buzz Lightyear.
REFERÊNCIAS
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POPPER, K. A sociedade aberta e seus inimigos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974. 2v.
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