Livro - Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos

Transcrição

Livro - Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos
O Domesticador
de Silêncios
Ricardo Flaitt
O Domesticador
de Silêncios
São Paulo
Centro de Memória Sindical
2013
Copyright © 2013
Carina Bap sta Flai
Coordenação editorial
Carolina Maria Ruy
Projeto gráfico de capa, miolo e diagramação
Ricardo Flai
Apresentação
Profa. Dra. Daniela Mantarro Callipo
Prefácio
Getúlio Cardozo
Posfácios
Val Gomes
Prof. Dr. Pedro Marques
Revisão
Profa. Mara Ghellere de Mendonça
Tradução de Neruda
Yael Reyna Pecarovich
Foto da Capa
João Carlos Juruna Gonçalves e Carolina Maria Ruy
(painel instalado em muro na rua Mateus Grou, Pinheiros, São Paulo, SP)
Fotos
Luiz Antônio Scarparo Maciel, Mateus Medeiros e João Carlos Juruna Gonçalves
Designer gráfico e webmaster
Diego Cavali.com
Ilustrações
Getúlio Cardozo , Marcio Dal Rio e Leandro Granito
Divulgação
Guto Ruocco | Circus Produções Culturais (www.circusproducoes.com.br)
André Azenha | Cinezen Cultural (www.cinezencultural.com.br)
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Flai , Ricardo, 1976
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS: poesia / Ricardo Flai . São Paulo:
Centro de Memória Sindical, 2013. 128 p. ; 16 X 23 cm.
ISBN 978‐85‐66157‐05‐5
1. Poesia brasileira. I. Título II. Autor
F576d
Ficha catalográfica na fonte elaborada pelo bibliotecário Ubirajara Dias de Melo CRB 8/6672
CENTRO DE MEMÓRIA SINDICAL
Rua do Carmo, 171, 3º andar, Bairro Sé
São Paulo ‐ SP
CEP 01019‐900
Telefone (11) 3227.4410
E‐mail: [email protected]
Site: www.memoriasindical.com.br
CDD‐B891.1
Para Carina e Lara Flaitt:
poesias vivas em minha vida
Índice
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Apresentação
Prefácio
Sobre una poesía sin pureza
Iniciei-me pras chuvas
O ferro de solda ou metal de conjuminâncias
Máquina de costura ou novelo de Elzinha
Invertebramentos da palavra
O domesticador de silêncios
A conversão dos silêncios
Dessilêncios e malabares
A Pedro Páramo
Brevidades
Quimiciriguelas do riuome
Monjolo
Picadeiro
Sobre o cortador de unha ou texto feito a partir de uma ideia do Barba
Nasasas do marimbondo
Noitintelhada
Entre raízes
Sobre o peso das distâncias
Diálogo
Pracatracar
Calendários
Medidãnzol
A poda dos telhados
O homem orquestrado
Leninários para campanários
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Desdumbigo
Cheiros cerzidos
Limite líquido
Meridianos
Demônios
Alicate
Varanmundo
Para(fuso)
A palavra Chaplin
Ode ao pernilongo
Monjolelétrico
Ode ao lexotan ou versos sobre a felicidade moderna
Mais-valia
Ventilador
Toesmo
Metapoema
Molécula
Jovem triste num comboio
Arados no olhar
Ladrilhos
Vazio de marceneiro
O ferro de Man Ray
Visgos para caleidoscópios ou gerundiando
O idioma Carina
Posfácio
Sabor interior
Sobre Ricardo Flaitt
Leia ao som de
"Gymnopédies",
de Eric Satie.
Caro Ricardo,
Belo o seu "Domesticador de Silêncios". Você tem
tudo na mão. Agora começa a segunda etapa:
persistência.
Abraços
Affonso Romano de Sant´Anna
Apresentação
Profa. Dra. Daniela Mantarro Callipo
O surgimento de um novo poeta é sempre motivo de comemoração: a poesia
descreve a vida, simplifica-a, reduzindo-a a versos que absorvem todos os
conflitos do ser humano; que dizer, então, quando surge um novo grande poeta?
Neste princípio de século, quantas expectativas! O homem do século XXI vai
superar seus antepassados, ou seja, eu, você, nossos pais? Vai conseguir criar
máquinas mais potentes, destruir com maior alcance, ser mais rápido, mais ágil,
mais esperto, mais?
O jovem poeta responde a essas questões ao contrapor riachos a foguetes,
monjolos a mísseis, máquinas de costura a bombas atômicas. Isso quer dizer
que o novo século comportará ainda o ser humano mais simples, a Elzinha que
cose destinos, o menino que se encanta com as luas minguantes produzidas pelo
pai, o marceneiro que vislumbra o belo num pedaço tosco de madeira.
Ricardo Flaitt nos lembra que ainda somos seres humanos e o passar do tempo é
só o passar do tempo. Ainda cultivamos os mesmos sonhos, as mesmas
esperanças, ainda buscamos a tranquilidade e a compreensão da existência.
"O Domesticador de Silêncios" apropria-se da linguagem: livre, recorta, cola,
transforma as palavras e cria um novo som, um novo sentido, o novo; hábil,
resume as pequenas ações do nosso pobre cotidiano e as enobrece,
dignificando-as; moderno, esboça quadros borrados, dos quais se depreendem
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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apenas as sensações que provocam; romântico, faz reviver nossos poetas que
cantaram o amor, a pureza, o eterno.
Flaitt, à maneira de Victor Hugo, faz conviver o belo e o grotesco, o sério e o
jocoso, o nobre e o incrivelmente simples. Tudo serve de tema para sua poesia,
tudo é matéria a ser destruída e reconstruída conforme lhe ditam as musas.
Paralelepípedos, ventiladores, pipas, tornam-se objeto de estudo e exaltação; o
rio Canoas torna-se mais belo que o Tejo, porque o Canoas é o rio que corre pela
aldeia de Flaitt, enquanto o Tejo... bem, o Tejo não corre pela sua aldeia.
Buscar defini-lo seria leviano; muito jovem, Ricardo Flaitt tem um longo
caminho a percorrer e é preciso deixá-lo fazer experimentações, divertir-se,
libertar-se. A nós, leitores, cabe celebrar o nascer de um novo grande poeta e
respirar aliviados: apesar dos foguetes, mísseis, e bombas atômicas, ainda há
berrantes, torresmo, maritacas, sanhaço-de-mamoeiro, um pai sentado na
varanda, milho, amor, café, semente de quem ama...
Mas, como dizia o bruxo do Cosme Velho, um prefácio, para ser bom, não pode
ser extenso: o momento é de deixar-se levar pelo vento, e seguir viagem até
Mococa, para conhecer o jovem poeta, para compreender melhor o mundo, para
reencontrar as lembranças que se rasgaram com o tempo.
Daniela Mantarro Callipo é Doutora em Língua e Literatura Francesa
pela USP e docente na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis-SP.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Prefácio
Getúlio Cardozo
Conheci Ricardo Flaitt não na literatura; conheci-o numa missa do galo de
1992. Se não estou enganado, sentava-se do meu lado esquerdo e fez um
comentário sobre as mulheres do rei Salomão. Não sei por que lhe disse que
Dostoiévski era parecido com o rei Salomão; acho que devido a seu misticismo.
Ele me disse que havia um cara atrás de nós parecido com Dostoiévski.
Voltando-me para trás, reconheci-o imediatamente: tratava-se de meu tio
Dimitri Fiódorovitch Cardozo, o único comunista e escritor da família. Cito a
missa e esse tio devido a sua influência em nossa formação literária e em nosso
costume de falar por muito tempo como os cossacos.
Penso que as longas histórias sobre a Sibéria, que Ricardo ouviu de Dimitri,
inspiraram seu livro "O Domesticador de Silêncios". Ou talvez um galo que,
nas madrugadas, cantava em seu quintal e que nunca foi visto.
Agora que leio os originais do livro de Ricardo Flaitt – são exatamente nove da
noite –, ouço meu finado tio formulando essas perguntas em meu ouvido: “O
que rasteja nos poemas de Ricardo Flaitt num só dia? O que entorta a perna e por
telepatia segue em Código Morse até a última gota deste livro? Quem é o pilão
cego que quer se afogar nas águas do rio?”.
Caro amigo Ricardo, transcrevo essa voz do além, contorcendo, na minha
língua, seus poemas. Deixo a um tio falecido a incumbência de prefaciar seu
livro, que traduzo da língua das pedras para a língua dos peixes. O silêncio me
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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toma quando leio seus poemas. Volto a esse mundo tão conturbado e diferente
deste daqui. A mata me come. Viro um pouco raiz, lama, lodo. Meto o chapéu na
cara e passo longe do crítico literário, do resenhista, do linguista. Boto uma
camisa velha, posto que foi de Idalécio Cardozo, pego um saco, facão, embira e
vou atrás do poema-peixe. Assim dá mais certo.
Vou me iniciar pelas chuvas. Eu, Dimitri Fiódorovitch Cardozo, conheci
Ricardo Flaitt no dia 9 de novembro de 1999, no casco da Coronel Diogo. Eu
lhe ofereci fungos e lodos. Ele me deu semana inteira de chuva. Nuvens
pastavam baixo e caramujo vinha atrás de pose para fotografia. Ricardo já era
próspero em sonetos e elegias. Trabalhamos juntos nesse negócio de poesia.
Fomos sócios, montamos até firma S/A, ficamos ricos, quebramos, montamos
microempresa para fazer um poema sobre máquina de costura.
Eu gosto mesmo é de ver Ricardo no Picadeiro. É um de seus primeiros poemas
e é de tirar o chapéu. Esse poema é melodia, a existência brilhando em mim.
Penso que Ricardo é o poeta que melhor soube falar das coisas sem nome, sem
endereço, sem destino.
Poucos como ele souberam dar voz a essa coisa que não sabemos se é corgo ou
traço, rua ou o quê, essa coisa fronteiriça entre o nada e a existência. Seus
poemas dão a impressão de que não existe o ontem nem o depois, mas um único
dia de encantamento e dor.
Ricardo tem a sabedoria dos vaga-lumes, do monjolo, dos caminhos-de-não-ir
das cidades pequenas. Vai parafusando sua obra com esses nadas da noite.
Entretanto, sua poesia não é cabocla, nem provinciana.
É o homem-poeta denunciando a inutilidade das coisas que o cercam, esse
mundaréu de desutensílios (Manoel de Barros) que o homem inventou.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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O casamento de elementos arcaicos e modernos imprime um lirismo especial
em seus poemas. O autor, mesmo, define seu texto como “fusão de Minas com a
modernidade” (Monjolelétrico). Dá a impressão de que alguma coisa do seu
passado distorce todas as formas que surgem no seu presente. Dessa maneira,
nasce o embate entre paisagem rural e urbana, como se copulassem, num
permanente corpo-a-corpo. É um texto fronteiriço, revelando o drama da
consciência entre o antigo e o novo, entre alguma coisa que se perdeu e o que se
deseja.
Tarefa impossível reconhecer o outro que se oculta em seu texto e que não é
mais o poeta. Na poesia, o poeta permite que o outro seja. Terá a palavra esse
poder alquímico de transformar o autor num estranho que nem ele se reconheça
mais? É possível o abstrato reagir quimicamente no interior do poema? Ou
poetas como Ricardo esmagam essa linha divisória entre o abstrato e o
concreto? Ou, na verdade, tudo no mundo é matéria de poesia? O poema é uma
zona tão tênue que não dá para dizer se é matéria ou espírito?
No seu texto poético, tudo é estranho ao homem, nada lhe pertence e por isso
distorce todas as coisas, dá-lhes outros nomes, numa busca desesperada de
sentido.
Talvez a única coisa no mundo que se assemelhe ao homem seja a poesia, essa
coisa agarrada na folha de papel, como o que tenta se agarrar no vazio. E tudo
que o homem toca, destrói ou encanta. Nada será mais como era antes - nem o
planeta, nem as palavras.
Penso que a poesia transcende a questão linguística e envolve toda a dimensão
humana. Talvez tenha a ver mais com a filosofia que com a literatura, visto que
se distingue de todos os gêneros literários conhecidos. A poesia dignifica o
homem, à medida que é resultado de um trabalho paranoico para imitar o
Criador.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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A palavra é o nada de onde o poeta imagina extrair aquele mundo inocente do
livro do Gênese, onde o homem reina sobre as coisas, de forma absoluta.
Ricardo, como outros poetas, aceita esse papel de criador, interferindo no
mundo sem mediações, deixando a situação de ser alienado para a de ser
onipresente. Apropria-se, por instantes, de uma coisa que julga lhe pertencer (o
mundo), para repeli-lo em seguida ou tentar moldá-lo à sua maneira.
Dessa forma, o poeta nunca se reconhece no mundo e, talvez, seja esta a
natureza do ato poético: a outra face que nos deslumbra e nos repele. A poesia
de Ricardo é a matéria que se corrompe, que se contorce e se transforma.
Mas percebo que, para um morto, falei mais do que deveria.
O silêncio me acena e outros Cardozos falecidos me aguardam. Deixe que meu
sobrinho, que é mais talentoso que eu, complete esta tarefa e assine este
prefácio por mim.
Getúlio Cardozo é poeta e artista plástico.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Sobre una poesía sin pureza
Pablo Neruda
É muito conveniente, em certas horas do dia ou da noite, observar
profundamente os objetos em pausa: as rodas que percorreram longas,
empoeiradas distâncias, suportando grandes cargas vegetais ou minerais, os
sacos das fábricas de carvão, os barris, as cestas, os cabos e asas dos
instrumentos do carpinteiro. Deles se desprendem o contato do homem e da
terra como uma lição para o torturado poeta lírico. As superfícies usadas, o
gasto que as mãos têm impressas nas coisas, a atmosfera quase trágica e sempre
patética desses objetos infundem uma espécie de atração não desprezível sobre
a realidade do mundo.
A confusa impureza dos seres humanos se percebe neles, o agrupamento, o uso
e desuso dos materiais, as marcas dos pés e dos dedos, a constância de uma
atmosfera humana inundando as coisas desde o interno e o externo.
Assim seja a poesia que buscamos, gasta como por um ácido pelos deveres da
mão, penetrada pelo suor e a fumaça, cheirando a urina e a açucena salpicada
pelas diversas profissões que se exercem dentro e fora da lei.
Uma poesia impura como um terno, como um corpo com manchas de nutrição,
e atitudes vergonhosas, com rugas, observações, sonhos, vigília, profecias,
declarações de amor e de revolta, bestas, arrepios, idílios, crenças políticas,
negações, dúvidas, afirmações, impostos.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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A sagrada lei do madrigal e os decretos do tato, olfato, paladar, visão, ouvido, o
desejo de justiça, o desejo sexual, o barulho do mar, sem excluir
deliberadamente nada, a entrada na profundidade das coisas e um ato de
arrebatado amor e o produto poesia manchado de pombas digitais, com marcas
de dentes e gelo, roído talvez levemente pelo suor e o pelo uso. Até alcançar esta
doce superfície do instrumento tocado sem descanso, essa suavidade duríssima
de madeira trabalhada pelo orgulhoso ferro. A flor, o trigo, a água têm também
essa consistência especial, essa recordação de um magnífico tato.
Não devemos esquecer nunca a melancolia, o gasto sentimentalismo, perfeitos
frutos impuros de maravilhosa qualidade esquecida, deixados para trás pelo
frenético estudioso: a luz da lua, o cisne no anoitecer, “coração meu” são, sem
dúvida, o poético elemental e imprescindível. Quem foge do mal gosto cai no
gelo.
“Sobre una Poesía Sin Pureza”, de Pablo Neruda, publicado na revista
Caballo Verde para la Poesía, de 1º de outubro de 1935. Tradução de Yael Reyna
Pecarovich.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Foto de Luiz Antônio Scarparo Maciel
Rua Coronel Diogo, Mococa-SP: extensão perdida daquilo que me pavimenta
Iniciei-me pras chuvas
Iniciei-me pras chuvas
No dia 9 de novembro de 1999.
O casco da Coronel Diogo
Ganhara reflexo.
Um vento fluvial
Ricocheteou no mineral
Chegando até minha pele
Repleta de fungos e lodos.
Assim chegaram-me líquidos.
Assim entendi os princípios.
Assim, chuvas chegaram
Em sentimentos cítricos.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Marcio Dal Rio
O ferro de solda ou
o metal de conjuminâncias
Quando meninoera, tempo que sol era apenesfera,
Pedi ao pai um ferro de solda pra concertar dicionários.
Em minha fábrica demendas
Catracava vocábulos coestanho, encavalava letras,
Corrupiava conceitos, emendava chuvas nolfato dos passarinhos,
Sons de uma velha cuíca em pedaços de inverno,
Cerzia serenos em cascos de vaga-lumes
E assim o mundo todo seliquefazia no mais profundemim.
A mãe até hoje não entendeu
Quando fundi um caleidoscópio nosolhos
Prenxegar a vida doavesso.
Mas era dessa forma que a vida ganhava sentido
E era assim que minha alma contornava a serra de Cajuru,
Sebanhava no Canoas, cingia o Rio Pardo
E terminava no bairro da Aparecida.
Eu só-tinha-isso: um metal de conjuminâncias
E um punhado de vocábulos
A fundir dicionários cambetas
Que continham todo o mundo dos meus pensamentos,
De minhas sensassâncias, meu sentir:
Mistura de sentimentos com infinitos e distâncias.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Máquina de costura ou
novelo de Elzinha
com Getúlio Cardozo
Uma máquina de costura que costurasse frases,
Que remendasse as sombras dos bichos.
Elzinha buscava no ocaso o modelo para suas vestes,
Cosia botões com cascas de laranjeiras em terno de andorinhas.
Em torno de uma casa de botão
Plantou jardim, cercou e conferiu endereçamento.
Em sua máquina de costurar reminiscências
Havia casulos de bichos de seda,
Que já forneciam linha para sua microempresa.
Quando chovia só dum lado da cidade,
Elzinha cerzia o tempo pras casas não desabotoarem...
Também remendava pétalas de rosas
Em hastes das carcomidas.
Muita gente procurava Elzinha
Pra costurar lembranças que se rasgaram com o tempo.
Euzébio ficava dias ouvindo o trintranar dagulha
E jurava que sentia a pele de seda da noiva morta lhe roçar o rosto.
Quando os bichos da seda se ausentavam,
Ela procurava os velhos cadernos de escola
E cerzia o mundo com linhas roubadas dos antigos garranchos.
Fazia horas extras criando roupas para as bonecas
Que eram muitas, dezesseis.
Mesmo na praça, na quitanda, na horta,
Arrastava nos pés a harmonia de sua máquina de costura:
Como monjolo pilando a vida.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Fregueses levavam-lhe cartas de amor para costurar palavras;
Porém, só não cerzia saudade porque lhe custava muita linha.
Cumulava a função de eletricista
Subindo em poste com o retrós
E restaurando com a linha onde o fio arrebentara.
Elzinha compilava cerrados e ventos
Por meio de suas linhas e agulhas.
À noite fazia a barra dos dias intoleráveis.
Emprestava as linhas dos postes
Pra dar luz aos seus inventos de pano.
Herdara a mania de cerzir diários
E, dias após dia, cosia-os
De modo que não se notavam
Os desvãos na linha do tempo.
Em suas engrenagens
Elzinha também fundira um alfabeto
Com retalhos de terra e porções de água
E ensinava renomeamentos pra vida
E juntava toda metafísica
Em torno de sua fita métrica,
Que era do tamanho do sonho.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Invertebramentos da palavra
Soletro minhas palavras invertebradas
E vivo a recontar a coleção de janelas
Que meus olhos herdaram das coisas.
Prossigo entre minérios e vozes de locas.
Estou para o ocaso,
Enumerando as tardes que se derrubam em mim.
Converso com as aleluias e os louva-a-deus,
Buscando uma santidade que não me foi concebida
E que nunca quis.
Assim sigo...
Recortando asas de insetos e borboletas
Pra atingir os invertebramentos da palavra,
Pra ficar acumulando sons de telhados,
Pra ficar ouvindo meus silêncios,
Sentado em minha escrivaninha,
Que não se cansa de ouvir a Coronel Diogo:
Extensão perdida daquilo que me pavimenta.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Marcio Dal Rio
O domesticador de silêncios
Naquele tempo
Caramujo não jazia pra música.
Inventariava minerais e vegetais
Nas bordas daqueles dias de faunas e floras.
A vida toda gargarejava
Com ruídos de apascentamentos
Enquanto ficava eu
Perambulando por paralelepípedos,
Domesticador de silêncios,
Convertendo safras de pássaros
Em pregos.
A vida toda se tocava
Por aboios de cigarras.
Eu imitava os olhos de Duchamp
Fazendo rodas de bicicletas sobre bancos nos pensamentos.
Meus olhos armavam alçapões pras coisas
E deixavam dicionários pra arvoramentos de sementes.
Eu forjava punhados de terra com engrenagens
E roubava o céu das palavras de Lorca
Pra dar noção de espaço e tempo às moscas e trenas.
E moscas e trenas trocaram centímetros e distâncias
Por infinitâncias no céu dendemim.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Marcio Dal Rio
A conversão dos silêncios
Hoje converti dois silêncios numa ária
E assim escutei a única voz quecoa em mim.
Meusolhos, caleidoscópios quebrados,
ganharam mais ângulos
E contornaram a serra de Cajuru galopando cerrações,
E cingiram sentimentos de uma vida inteira,
E construíram coretos em minha pele,
E tangeram áreas,
E corrupiaram em torno da minha existência,
Que vai da Aparecida às margens do Canoas.
Hoje converti dois silêncios numa ária
Mas confesso que poderiam ser rebanhos de sombras
Ou mesmo os louva-a-deus que nunca se ajoelharam.
Em minha santidade em direção ao descompasso,
Eu continuo a pazear silêncios prárias
Que continuam a cantar um sentido proverbo liquifazer-se.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Leandro Granito
Dessilêncios e malabares
Com três pontos roubados de uma reticência
Arrisquei meus primeiros malabares.
Desde criança meus olhos tentam equilibrar silêncios.
Depois dos pontos comecei a desfazer palavras:
Jogava-as pro alto junto ao mundo
Pra ver seus significados se fundindo no ar.
Eu buscava conceitos ultrapassando dicionários,
em cópula com a vida.
As coisas todas sempre sintegraram aos meus pensamentos,
Mas isso foi criando terrenos silenciosos na alma.
Fui conhecendo-me pras distâncias
Ao mesmo tempo em que me aproximei dos sons do universo.
Por isso digo que desde cedo aprendi a lidar com o inefável
Conversando com as coisas e seres que se deitavam nas retinas,
Praticando malabares com silêncios.
Confesso que hoje silêncios dormem em meusolhos.
Também não digo que não os quero;
Apenas digo que os malabares foram corrompidos
E conheceram o desequilíbrio ao tocarem o chão.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
33
A Pedro Páramo
em homenagem ao personagem de Juan Rulfo
Sua biografia foi escrita com ausências
Suas terras existiram em fragmentos de memória
Suas palavras foram pronunciadas com a métrica das distâncias.
O vento que passava por aquele mundo
Era o sopro que saía da boca dos moradores
Num imenso bocejo da mansidão de Comala
Onde o vale se formou com sussurros de antigos moradores.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Brevidades
Foram doze lavouras de coretos,
Trinta pés-de-laranja quemescorreram dosolhos,
Seis paineiras que sedesprenderam da pele,
Vinte e cinco minérios que se desvencilharam dasunhas,
Quatorze lagartos que correram prouvidos,
Sessenta e seis sinos cultivados em maritacas.
E pensar que a vida contém brevidades...
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Marcio Dal Rio
Quimiciriguelas do riuome
Juntei um punhado de rios:
Manada de silêncios mocoquenses,
Verdadeiras quimiciriguelas em dor
De riuome, de dor quesvazienche.
Pequenos pedaços de fluidez
Em olhos pra lagartos sesconderem em pedra
E eram de sol que precisavam meus versos
E era réptil ritmo que doverso em min'medra.
São as quimiciriguelas que meatacam as juntas,
Marimbondos coiçandoar, coiçandovento:
O turgilho expandindo a pele, expandindo o tempo,
Forjando a imagem da vida em meu pensamento.
Céu todo sidistorcia com batida d'água em pia:
Eram os punhados de rios que se diadisfaziam
Emendando a noite, remendando o dia
E o verso mudo que se diz em silêncio de mudaria.
Também quimiciriguelei palavras de dicionário:
Verbetes coxos, caramujos em rezaria,
Conceitos contornando borda de corgos,
Lambaris rasgando tecido d'água d'alma vazia.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Monjolo
Musicado por André Melo
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
Monjolo em milho, madeira em semente
Pila, sob água corrente, o que homem sente
Em surdina, quando monjolo se faz dendagente.
Monjolo em café descasca como se registrasse em ata
A fé, cobra-cega-mata socada no hífen da mata,
Subindo e descendo como lombo sob chibata.
Monjolo de vozes canta e grita descanso quespana
Língua pro córrego, sede-que-cede, sede-que-espana
Milho, amor, café, semente de quem ama…
Monjolo só, caminho, engenho, consolo.
Não pode um sonho pedir-lhe abrigo no colo;
Só tem o vento espalhando seu choro no solo.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Ilustração de Getúlio Cardozo
Picadeiro
Existo vendo o mundo como um circo.
Florescem, ao ritmo de hinos,
As Flores do Mal, de Baudelaire,
Em meus pensamentos herméticos.
São elas a mecanização
Das minhas segundas-feiras de inverno.
São elas meus risos sem fragrância,
Arrastando-se pelo tempo.
São... e não poderiam ser
Se não brotassem da repulsão.
Se eu pudesse ver os palhaços chorando
E os trapezistas meneando de estrela a estrela
Talvez assim
O picadeiro da existência
Brilhasse em mim.
(Mococa/1998)
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Sobre o cortador de unha
ou texto feito a partir
de uma ideia do Barba
Ao amigo Felipe Teixeira Martins, o Barba.
Aos 12 anos descobri um cortador de unhas enferrujado de meu pai. A lua
minguante que, até então, me era inacessível e incompreensível, naquele
momento, ganhou certidão de nascimento e até árvore genealógica.
Eu já havia escrito um conto que falava sobre a noite e as estrelas, mas notava-se
que não flutuava lua alguma. Sem saber de onde surgira, achei uma lua
minguante no chão e colei-a no canto da página para que meu conto não ficasse
sem noite.
Já se foram 17 anos e incontáveis noites depois daquele conto; porém, ainda
estou a observar meu pai sentado no sofá, com o cortador de unhas nas mãos a
produzir luas minguantes nos dedos dos pés.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
45
Nasasas do marimbondo
O mar, impondo no marulho do marimbondo,
Zurzindo no lombo o tangolomango,
De viver o ribombo dazunição.
Regula o barulho daságuas,
Trazendo nasasas os telhados de casas,
Compondo os dias de pingação.
O estrondo do marimbondo chorando
É galope diégua trotando,
É ferrolho nolho trancando lamentação.
Em seu coral de campainhas,
Verdadeiras procissões e ladainhas
Ferrolh(ar) provocando turgissão.
Mas o que marimbondo marimbondeia
É solidão d'homem, pequena candeia
Que não seacende na escuridão.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
47
Noitintelhada
Noitintelhada, chuvescorria pra calha dodia
E o que siouviam eram rebentos deversos,
Líquidos lumes que serradiam dos olhos,
Longínquas limitações, centelhas despersas.
E o que se juntou, retina nenhuma juntava não!
Matilha de vaga-lumes circundando aparências,
Escaravelhos tortos fundindo compassos,
Círculos de corpos circundando existências.
Do círculo, esferas não continham esperas,
Estrelaltivas mindicavam caminhos-de-não-ir,
Estradas pronada, falas e cercas,
Traçando silhuetas daquilo que se queria sentir.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
49
Ilustração de Marcio Dal Rio
Entre raízes
Sempre quis colecionar besouros,
Mas a ideia de colocar minha mãe entre raízes
Fascinava-me mais.
Mococa ensinou-me a quedar.
Enchi-me de silêncios e paralelepípedos.
Comecei entender as locas dendomem
Onde nas falas besouros dormem.
Na falta de besouros e falas,
Aprendi a entortar escaravelhos com a voz
E a juntar folhas de árvores pra ver o tempo
Imprimir em sua gráfica.
As ruas de Mococa perceberam-me pras distâncias.
Meus passos juntavam laranjas, limões e goiabas
E eu punha sementes naquilo que ganhava traço,
Que ganhava destino.
O verão chegou ao número 616 da rua Coronel Diogo.
Observei sarjetas para entender as estações.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
51
Sobre o peso das distâncias
Junto um punhado de terra na mão,
Aperto profundo até extrair as sementes.
Penso em todos os sentimentos ausentes,
Praforjar um caminho, um pedaço de chão.
O silêncio me acompanha falante:
Parece que os paralelepípedos me deixarão.
Sinto na espinha a intensidade do não,
Engendro balanças para mensurar o instante.
Há tempos não crio conceitos em traços:
Estou quedado, mercador da extensão,
Barganhando centímetros por solidão,
Fraudando osolhos pra encontrar os seus braços.
Se por um lado as pedras me abandonaram,
Compreendo-me novamente com imagens:
Elas que determinam minhas paragens,
Os caminhos que meus pés não andaram.
Em mente carrego minhas balanças
Com pesos, medidas e uma distância só minha:
O vazio silente da presente ladainha
Quekila em minhas lembranças.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
53
Diálogo
Musicado por Val Gomes e André Melo
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
A voz que não é voz
E não é silêncio
É som de saliva em foz,
De garganta repleta de nós,
Marandando no mar da gente.
A voz que não se fez a vós
Palavra ausente
Que não se concebe,
Que não se concede,
Que não se consente.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
55
Ilustração de Marcio Dal Rio
Pracatracar
Dependuro dicionários na varanda
E catraco marimbondos naspalavras
Pratrair ferruadas nos conceitos,
Prélasdiquiririnchaço,
Prélasdiquiririnchume,
Prentortar ar,
Prenviar conta de luz a vaga-lume,
Pracruzar naufrágio com tilápia,
Praespremer tatu em morsa
E as coisas quenuome remorsa.
Simplesmente pracatracar,
Pra ver o lombo turgir
E ficar fazendo curativos em significâncias.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
57
Calendários
Eu tinha um pedaço de pedra nosolhos.
Também se erguia uma vegetação rasteira noscílios.
Mococa confundia-se com Chicago
Ou Nova Deli ou Leningrado.
Os dias sucediam-se em moinhos de silêncio
E sempre havia um menino recolhendo suas bordas.
O ar era rarefeito quando me aproximava de mim;
Por isso plantei duas paineiras para amortecerem a queda.
Os cachorros observavam
Que eu tinha um pedaço de pedra nosolhos,
Mas nada podiam fazer além de uivar.
Eu os acompanhava porque a palavra
Já não dizia mais nada às oiças
E só me restavam ruídos na lembrança.
Então, nesses dias em que o silêncio cantava
Com vozes de ruídos em minhas memórias,
Eu plantava jabuticabeiras em torno de mim,
Tentando adocicar os calendários.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
59
Medidãnzol
Entardeci com as preces das tilápias,
Enquanto o outono veinovento em metros cúbicos.
A medida das sombras sestendia nos eucaliptos
E a medidemim sestendia naçude.
Mediram-me em açumetros,
Mas eu já vim com a medidãnzol.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
61
Foto de João Carlos Juruna Gonçalves
A poda dos telhados
Eu, que trazia gerânios no bolso
Com seus olhos gerando janeiros,
Cultivei sombras, podei telhados
Pragerminar janeiros gerânios o aninteiro.
A verdade é que eu só queria lhe dizer
Que meus móbiles não tinham mais o de comer.
Inventava calendários nacordes daviola
Prafastar o ruído duma data que mestiola.
Viderassim, raiz fincada no pronomemim,
Um galho em busca do sol:
Semente propeixe nanzol,
Silêncios-janeiros-gerânios em mim.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
63
As linhas fronteiriças daquela cidade
incrustada entre as divisas de São Paulo e Minas
Gerais desapareciam nas conversas com
Washington Moraes. O mundo se "pangeiava"
nas terras e nos continentes dos neurônios.
E eu, que só tinha 16, absorvia a organização
dos sistemas econômicos, a formação dos
povos, compreendia as desigualdades criadas
pelos homens, histórias sobre as religiões,
conhecia os grandes clássicos da literatura,
poesias, as explicações conceituais da origem
das palavras dos cinco idiomas falados por
Moraes e dava muita risada com suas histórias
divertidíssimas.
De tanto conhecimento e domínio sobre as artes
e os movimentos da vida, Washington colocava
palavras e conceitos na dança ao som do
homem orquestrado. E minha mente girava.
Para conhecer a obra da Washington, acesse o
Blog 256 Fundos: http://www.256fundos.
blogspot.com.br/
O homem orquestrado
para Washington Moraes
As sinfonias em cópula, o homem orquestrado.
Faço fieiras de constelações com barbantes
Dos que sobram dos olhos de Cervantes,
Dos que medram do solo drenado.
Meus gestos aglomeram dados.
Os conceitos corrupiam.
Os estados da alma permanecem
calados.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
65
Leninários para campanários
homenagem ao músico Lenine
Erumbatuque de pedra
Em senzala de folhas.
Ainda que recolhas,
O som nunca desmedra.
O que se diz discinesia
Sofriam sinos diante dos Leninários.
Surdos sinos nos campanários,
Estrofes coxas de poesia.
A canção que se ouvia,
Pessoas costuravam nosdiários:
Erusbatuques dos Leninários,
Botando casa na camisa do dia.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
67
Ilustração de Marcio Dal Rio
Desdumbigo
Senti-me tocando uma boiada de distâncias
E num havia berrante pra juntar tanta paisagem,
Nem som de cachoeira querendo serárvore.
Eu reunia tanta cantoria e vista de gente em direção ao nada...
Na verdade, mundoaboiava o que eu era
E o berrante eu já trazia comigo desdumbigo.
Coisas queandavam ganhavam pasto e bichos, moirão.
E tinha sempre um pedaço de terra na fala,
Arando o tempo presquecimentos dasausências.
Queria zunir, maribondear em lombo de vento,
Ferroar palavra escrita em folha de flamboaiã,
Tecer ferro nas bordas da manhã
Pro dia ganhar dobradiças
E poder abrilossilente como uma janela promundo.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
69
Cheiros cerzidos
É quando sinto seu cheiro
Que meusolhos cerzem reticências:
Quando o mundo se refaz,
Em meio às aparências.
Trago constelações de sonhos entrededos,
Quatro manhãs, três primaveras
Pra romper silêncios, cingir quimeras
Deixando em potes os nossos segredos.
Mas o que mais guardo em mim
São palavras que não atingem o fim.
Silêncios do seu cheiro nos meus sentidos,
Meus sonhos serenando nos seus vestidos.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
71
por Lara Flaitt
Limite líquido
Musicado por André Melo
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
a forma das coisas e dos seres
diluem-se em minha visão.
o ser dilui-se...
sou, fluindo no rio das retinas.
a existência escorre com anda de cobra
e não há árvore, calçada, estrela, cachorro,
sombra, folha, pássaro, réptil, velho
que eu já não tenha tomado sua forma.
ser todas as coisas e não ser nenhuma,
ter todas as formas e não ter nenhuma,
como afluente de rio que quando se mistura
não encontra mais identidade de suas águas.
esse limite líquido escorrendo das retinas
fazendo-me som, luz, caramujo, inseto,
vírus, célula, raiz, ferro, minério, átomo,
espaço, vazio, peixe, humano.
esse limite líquido interligando tudo e nada
ao infinito dentro de mim:
rio limite para a razão.
o encontro das águas com o infinito
faz as partículas de hidrogênio e oxigênio
rastejarem insanas pelextensão do meu corpo,
debatendo-se, picando umas às outras,
contorcendo-se, entredevorando-se
na busca do incompreensível.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
73
Meridianos
musicado por Kico Zamarian
e interpretado por Márcia Tauil.
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
Mesmo quando a arte dos versos me fere,
Insisto em escrever um poema em sua pele
Com palavras que esculpem as horas dos dias,
Com(passos) que os nossos corpos seguiam.
Com sentidos que compilem docas
Pra atracarmos beijos em nossas bocas
Que afaste a ausência abandonada em mim,
Como as areias das melodias de Jobim.
Em sua pele, tecido-folha-sereno,
Esculpir a palavra que contém meu terreno:
Espaço de minha existência, a cadência
Do líquido em nossa confluência.
Em seus olhos, traçarei linhas para descrever anos,
Fundir nosso tempo aos nossos meridianos
E, num abraço, finalizar nossos poemas,
Revelando, em pele, o amor e seus estratagemas.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
75
Demônios
Não estou só. Estão comigo os meus demônios.
Um com forma de rio vive em minhas retinas;
Outro com forma de lava escorre entre meus dedos,
Desembocando em minhas palavras.
O de terra se encerra em meus pés,
Revirando os possíveis caminhos.
O outro, com forma de vento, vive falando sozinho,
Sempre à procura do rio e da lava
Para celebrarem a alegria angustiante de viver.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
77
Alicate
Musicado por André Melo
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
com Getúlio Cardozo
Deram muito arame ao alicate;
Agora não há dentista
Que conserte seus dentes.
Armamos isca pra pegar alicate,
Mas ele nasce pra traíra
E a linha do poema foi-se embora…
Palavras são arames retorcidos em lábios alicateanos:
Fizemos três etceteras, quatro trios de reticências,
Dois tius, quarenta e nove acentos graves
E uma bardada de interrogações
Para acentuar que o alicate torna o poema útil:
Desinventa a beleza.
Possuímos edições completas de alicates
Para romper com os pastos de nossa poesia.
Moço em Mococa tomou mordida de um
E morreu de ferrugem na Língua.
Sempre amanhece em beira de cerca,
Ostentando o inexorável.
Literatura de alicate
É manual de instrução de arame farpado:
Foi assim que aprendeu consertar sombras.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
78
Só não desentorta o amor,
Nem conforta...
É mamífero copulando em caixa de ferramentas;
Poderia ser mamífero amamentando ruídos.
Ainda que viva a receber apertos de mãos,
Carrega consigo um estado de estar só…
Não recebe aragem; só fuligem.
Em surdina, pode até ser músico.
Certa vez vimos um rangendo a nona de Beethoven,
Por seus instrumentos de corrosão.
Já presumimos alicate com artrite, artrose,
Varizes e osteoporose...
Ilustração de Marcio Dal Rio
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
79
Varanmundo
Meu pai, sentado na varanda,
Fiscalizando a vida a dançar nuniverso,
Catalogando a chuva de domingo
Em seus compêndios de reminiscências,
Pondo ângulos no ócio,
Criando pássaros na gaiola do mundo,
Expandindo líquidos,
Alfabetizando os olhos dos insetos,
Quebrando réguas com silêncios,
Recitando parábolas asárvores,
Sentenciando telhados.
Juiz das causas naturais,
Confessando aos escaravelhos
O Infinito não diluído
No rio que é o homem.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
81
Ilustração de Marcio Dal Rio
Para(fuso)
Para(fuso) é preciso tempo:
Concerto pra relógio de parede.
Em arquivo de ferramentaria,
Para(fuso)
Inventaria porcas e acasalamentos.
Nos casulos das buchas
Como lagartas esperando o vôo,
Sonhando nascer pra borboleta de janela.
Para(fuso): essas invenções de Greenwich,
Verdadeiros meridianos circundando a vida,
Atarraxam nossas memórias frouxas
E espanam nossos segundos.
Em minha oficina de inutilidades,
Invento parafusos pratarraxar imagens,
Brinco de parafusar o tempo.
Assim desmonto cadeiras,
Sento sobre mim
E vivo a recontar os parafusos que sobraram.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
83
Ilustração de Marcio Dal Rio
A palavra Chaplin
A palavra Chaplin
Moldando-se no ar
Dizendo-se por conchas quebradas
Em compêndios sobre nada
Reticenciando o infinito...
O verso pantomímico
Solúvel ao vento
Cartilha de surdos
Para um mundo de cegos.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
85
Ilustração de Getúlio Cardozo
Ode ao pernilongo
Tu, que voas cingindo meu sono,
Que circundas o ar com teu zumbido,
Tens em ti o ímpar som... e uníssono,
Fazes-me acordar como se não tivesse dormido.
Tu, que habitas os armários na escuridão,
Que te escondes debaixo das camas,
Tens em ti o sangue de meu coração.
És meu irmão de sangue, mas não me amas!
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
87
Monjolelétrico
Trago no cérebro monjolelétricos:
Fusão de Minas com a modernidade,
Fusão de fios em engenho tosco.
Em todo ponto final do meu verso,
Tem um tum dum monjolelétrico,
A moendar lavras de palavras encravadas no pilão.
Monjolelétrico:
Essa máquina de da-ti-lo-gra-far de tecla só,
Catando milho, batendo cum dedo só,
Moendando gramáticas, contra a estática,
Como cavalos se curvando para a grama,
Compondo versos no telegrama
Da terra para o Código Morse,
Transcrevendo o poema que se contorce.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
89
Ode ao lexotan ou versos
sobre a felicidade moderna
Correm'mim instigância de vida vã.
Em meu sangue desabençoado,
Flui punhado de verso dissimulado
Nacordes milimétricos do lexotan.
Se tu dizes que não me amas,
Matuto telegramas pranestesiar,
Aumento a dose pra seis miligramas
Pra tempo segund'hora passar.
O controle do movimentinsano
Vira vida compassada e morosa:
Clair de Lune nas teclas do piano,
Lucidez condensada em pílula rosa.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
91
Mais-valia
Sou macambúzio, sorumbático,
Gente de amuo mesmo,
De cascos nas costas,
Pequena encosta diante da vida.
Mas o que tenho de mais-valia
É coisa pequena, coisa de poesia
Que rompe coaestação,
Que sangra a margem do dia.
Minhas retinas são entrelaçamentos de fios,
Redes prabrisas, alçapões pra naturezamentos;
Porém, a enxada que me foi dada praragem de rios
Foi fundida com desencantamentos.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
93
Ilustração de Marcio Dal Rio
Ventilador
Ventilador vive em viveiro de vento,
Ventilando vertigem de querer voar como Ícaro.
Já os do Paraguai não conhecem a história original:
Possuem sonhos de pipas, patos e planadores.
É pássaro batendo asas dentro de gaiola.
Não disfarça o Parkinson hereditário
Quando atinge o nível três.
Muitos atingiram a insanidade do vento
Por nunca conseguirem sentir brisas na face.
Quer silvar como vento em janela de folhas,
Mas nem os franceses extraíram tal som,
Através de seus biquinhos: faltam-lhes “esses”.
É crítico literário que vive a balançar a cabeça
Numa negação constante de si.
É cavalo dormindo nos campos cantos da casa.
Ventilador
Ventila a dor,
Mas não areja a alma.
E pensar que homem tem mesmo destino de ventilador:
É feito pra vento.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
95
Toesmo
Musicado por André Melo
Ouça em www.ricardoflaitt.com.br
Por hoje basta!
Cansei-me do sol e suas cla-re-zas...
Quero me infiltrar na noite
Como besouro em rua mal iluminada.
Nada me resta senão a mim mesmo.
Mas para evitar a rima a esmo,
Rimo a existência com torresmo.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
97
Metapoema
O poema é um(verso)
Faz-se tão di(verso)
Que transforma palavras
Em uni(versos)
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
99
Molécula
Com uma molécula fizeram o infinito.
Recortaram fogo e depositaram nos olhos dos macacos,
Colheram terra e armazenaram nas patas dos animais,
Nasceram flores em seus cascos,
Germinaram estrelas em seus passos.
Com água criaram rios dentro do homem
E as distâncias também vieram com as águas
E mais o silêncio e a mansidão e a profundidade
E o esquecimento e a saudade e a solidão...
Fincaram pés nas raízes dos ventos
Que, desde então, deixaram rastros no céu.
De tanto olhar o espaço, a criação adquiriu asas
E o ar fundiu-se ao fogo nos olhos dos macacos.
Das serras forjaram-se as espinhas dos animais,
Com painas e minérios fizeram o sonho:
A vida ganhou ângulos, surgiu a loucura
E a simetria perdeu-se por entre réguas e astrolábios.
O mar surgiu com o primeiro choro dos peixes.
Com cascalho, fizeram caminhos e répteis.
A vegetação formou-se nos corpos dos pássaros.
Fizeram o sol, juntando restos de araras.
A luz veio através de seus olhos,
Esticando-se no firmamento e no vento das asas.
A noite foi tecida com as sombras dos animais.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
101
Jovem triste num comboio
Inspirado no quadro “Jeune Homme triste dans um train”,
de Marcel Duchamp.
O ins-tan-te es-ti-lha-çan-do-se em tra-ços
Nes-sas sé-ri-es de car-ru-a-gens pu-xa-das
So-bre car-ris por u-ma lo-co-mo-ti-va.
O ser di-lu-in-do-se na fu-ga-ci-da-de...
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
103
Arados no olhar
com Rodrigo Xavier
(Estrada Marília - Mococa 1999)
É quando atravesso o Canoas
Que minha alma é líquida:
É quando as árvores se vestem
Com as silhuetas dos bichos.
Mococa desmonta gramáticas
Para ler, lê pípedos,
Formando o dialeto mocoquês;
Para ler, lê pípedos,
Conjugando o verbo mococar,
No tempo e no modo das folias-de-reis.
Trago veredas e arados no olhar:
Tudo que deita na terra dos meus olhos
Forma quem sou...
Os pés-de-café arraigados entre os meus dedos
E os montes mocoquenses
Foi Coimbra quem pintou.
Meu coração tem o pulsar de monjolos orquestrados.
Se a serra encerra Mococa,
Toca a terra um coreto com banda,
Ressoando na praça uma fonte
Na cidade que se estende em mim...
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
105
Ilustração de Marcio Dal Rio
Ladrilhos
Celebra o tato, teu toque de terra
Tualma ganhando ladrilhos,
Teu corpo, atalho de trilhos,
Pavimentando nossa espera.
Teu lábio, tua tez, tua orla
Em boca d'água morna,
Impondo os caminhos, ladrilhos
Do mundo sustentado noscílios.
Vê que nosso pavimento
É um solo esperando semente
Que a dor que a gente sente
Não encobre qualquer sentimento.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
107
Foto de Mateus Medeiros
Vazio de marceneiro
Marceneiro velho quer construir o vazio:
Empunha pensamentos ao invés de formões,
Colhe ventos na serra e nas margens do rio,
Engendra formas contemplando os grotões,
Recolhe chuvas nos silêncios dos telhados,
Engarrafa fragmentos de solidão ao ver mar,
Enterra, em meio às molduras dos quadros,
As perguntas que nunca mais vão lhe deixar.
João-de-barro, vôo de flamboaiã esvaecido,
Talvez tenha escondido o molde do indefinido.
Forma-se, na linha métrica do olhar, prateleira
Onde guarda sua coleção de pau-brasil:
Painas que abrigam semente de sua madeira
E um formão metafísico para forjar o vazio.
Em delírio esculpido, vislumbra formas
Nos traços negros do jacarandá-da-baía.
Tenta, com cupim a roer a memória, registrar normas
A fim de compreender o que lhe definiria.
Criam-se farpas no sonho do marceneiro.
Abrem-se fendas no nada que se desejou inteiro.
(Mococa, 1994)
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
109
Man Ray, “Cadeau”, 1921/63. Ferro e pregos
O ferro de Man Ray
Ferro que não se passa em vidraça
É ferro con(fundo) de tachas.
Ainda que a vida possa chamar diabuso,
A utilidade do eletrodoméstico está no desuso.
O que o ferro desenruga são os anos:
Passa-se a vida como se passam os panos.
Sevaisgarçando a funcionalidade
É porque nele sipassinsanidades.
Quando a tartaruga de ferro se liga,
É quesquenta a vida coabarriga.
Mas, de todas as coisas que campeei,
É que é simplesmente o ferro de Man Ray.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
111
Visgos para caleidoscópios
ou gerundiando
Arando os ventos
Colocando visgos pra silêncios
Cifrando óperas pra besouros
Desengaiolando gerúndios
Alimentando vírgulas
Transformando pontos em reticências
coreografanduniverso
Sentindo sons migrarem para os ouvidos
Sentindo lacearem as cordas vocais
Educando os traços dos passos
Trago sombras para enfeitar a tarde
E ripas pra concertar distâncias
Porque o mundo perdeu-se do mundo
E meus olhos
Visgo pra caleidoscópios
Não estão conseguindo mais conviver com raciocínios
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
113
O idioma Carina
Meu tempo encontrou o seu tempo.
Chegarassim, sem mapas, coisidivida.
Em seus olhos turvoverdes
Perdeu-se o verbo que se perde.
Etiescuteincolhido, absorto, silente,
Com palavras escorrenamente.
Eticompreendi me compreendendo,
Porque a gramática da vida é percebendo.
As coisas-e-os-seres volveram sentidos
Quando sua voz migrou aos meus ouvidos.
O poema em vida, seus olhos de rima,
Nestrofe de um idioma chamado Carina.
Na compreensão genética dos segundos
É quergueram-se três novos mundos.
O instantagora já não maissideclara
Pois se propaga ao verde tom de Lara.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
115
Foto de Luiz Antônio Scarparo Maciel
Posfácio
Val Gomes
Assim como os músicos Tom Zé, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos e o
grupo Uakti, só para citar alguns brasileiros, que inventam sons e instrumentos
para tornar o mundo musical mais rico e criar mais beleza, Ricardo Flaitt traz
surpreendentes sonoridades poéticas em seu “O Domesticador de Silêncios”.
Flaitt é parceiro de Getúlio Cardozo e dialoga com Manoel de Barros e também
com João Cabral de Melo Neto, pois constrói poemas sem banalidades
discursivas ou falsos lirismos.
É possível encontrar neste livro poemas apropriados para a canção. Aviso que o
poema “Diálogo” já está musicado, pois os cancionistas que conhecem Ricardo
Flaitt encontram nas letras deste novo e grande poeta excelentes possibilidades
musicais.
Um brinde ao lançamento de “O Domesticador de Silêncios”, com a certeza de
que, se quebrarmos as taças, os ruídos cairão na superfície deste tempo-chão
para espantar a mesmice, os ratos, o bom-tom e a cegueira social.
Val Gomes é jornalista e compositor.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
117
Sabor interior
Prof. Dr. Pedro Marques
Paulista ainda traga, cospe e passa o pé? Orgulho da caminhonete, tara por
shopping e “modernidade” fizeram São Paulo exportar seu quinhão a Minas,
Goiás. Tempo de antibiótico, plástico, pastor, analista dizendo o que é a vida ao
homem. Não fosse fundo o poço, não sobrava areia para nossa identidade. É
notável quando um escritor paulista dá no peito: sou do interior, sô!
Ricardo Flaitt (1976-) masca o interior que largou Cornélio Pires por causa da
Capital. Cidades com mais cinquenta mil viventes perderam a batalha. Em vez
de ensinar dignidade à metrópole, tomaram lições de desumanidade. Mococa,
berço do poeta, virou mini-capital de problemas. E o interior é maior que
cinemas, palcos, crimes e carros aos milhares. Pra que duzentos eventos por
noite, se o sonho digere dois, três? É outro o tempo do poema caudaloso, terreno
em que este poeta se destaca dos viciados em pílulas e sacadelas.
É cicatriz na cara e vida na caçamba. Naturalmente 3D. Ricardo tem paladar
poético, o sentido mais afeito ao “experimentar”. Provar pela boca é guardar
conteúdo dentro, saber do bom e do ruim no ato. Esta poesia tem o ritmo da
gustação, papilas afiando olhos, narizes, ouvidos, dedos. Todos os sentidos a
partir da língua: “Junto um punhado de terra na mão / Aperto profundo até
extrair as sementes”.
Sabor, sentido que desbotou. Viramos uns devoradores sem apreciar nada. O
antropófago do século XVI conhecia mais o que mordia do que nós, que
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
118
convertemos comer e beber em consumir. Caboclo tem mãos e pés de lixa, pele
de sol, pelo deitado no sereno. Mas tem língua de esmeril, conhece saboreando,
polindo o que diz e mastiga até virar algo seu, interior, memória perene. “E
assim, o mundo todo seliquefazia no mais profundemim.”
O poeta sabe o sabor que fala, vê, cheira, ouve, toca, amarga. Pedra,
marimbondo, rua, cigarra, moça, fruta caem na língua que esmerilha cinco
sentidos do corpo, diversos sentidos da palavra. O Domesticador de Silêncios
(2013) doma o mundo pelo paladar, cujo ruído surdo é a mastigação da força
nova sobre as sabidas coisas. Difícil comer e falar, lance de mau educado ou
bom poeta. E a deglutição monta acordes saborosos, naturais, herméticos:
“quimiciriguelas”, “dendagente” ou “prélasdiquiririnchaço”.
A febre de cores lembra Murilo Mendes, no passado, e Ricardo Lima, no
presente: “Cosia botões com cascas de laranjeiras em terno de andorinhas”. As
touceiras de sons ecoam Manoel de Barros (ontem), Antonio Geraldo (hoje): “E
era réptil ritmo que doverso em min'medra”. É que nenhum poeta inventa a vela,
faz ventar (“a insanidade do vento”) do seu jeito as vozes que vem de antes, do
longe. Domesticar silêncios, nesse sentido, é também pilotar a tradição que, na
calada, tormenta a noite do caboclo.
(Campinas, outubro de 2013)
Pedro Marques é professor de Literatura Brasileira da UNIFESP e doutor
em Teoria e História Literária pela UNICAMP.
O DOMESTICADOR DE SILÊNCIOS | Ricardo Flaitt
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Sobre Ricardo Flaitt
Nasceu no vilarejo de Macondo, no dia 6 de junho de 1857, sob um frio de
congelar açude.
Como todos habitantes do vilarejo, em setembro de 1888 contraiu a doença da
insônia. A doença, além de afastar o sono, com o passar do tempo provocava o
esquecimento.
Aureliano Buendia desenvolveu um método para se defender do esquecimento,
escrevendo em papéis o nome dos objetos. Seu pai, José Buendia, divulgou a
ideia à população do vilarejo e foi, a partir desse ponto, que Ricardo Flaitt
escreveu as primeiras linhas. Começou a nomear as pessoas e os objetos até o
dia em que o esquecimento atingiu os valores da “letra escrita”.
O desconhecer advindo da doença fez com que Flaitt comparasse ventilador a
pássaro, liquidificador a gato, que rios copulassem, monjolos adquirissem
corações, marimbondos falassem...
Gabriel García Marquez, famoso escritor de Macondo, descreveu os efeitos da
doença: “Em todas as casas havia lembretes para memorizar os objetos e os
sentimentos, mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que
muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles
mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante.”
Flaitt foi um dos que sucumbiram. Atualmente mora em São Paulo, longe da
cidade divisa com o sul de Minas Gerais, mas segue renomeando e
reaprendendo tudo o que deita nas retinas a partir dos olhos de Lara.
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Prêmios literários
1º lugar no Mapa Cultural Paulista 2001/2002, categoria Composição Musical,
com o poema “Meridianos”, musicado por Kico Zamarian e interpretado por
Márcia Tauil. Concurso promovido pela Secretaria de Cultura do Governo do
Estado de São Paulo;
2º lugar no Mapa Cultural Paulista 2000, categoria Literatura - Poesia, com “O
Domesticador de Silêncios”. Concurso promovido pela Secretaria de Cultura
do Governo do Estado de São Paulo;
2º lugar no VI Concurso de Poesias da Universidade Federal de São João delRei com o poema "O Domesticador de Silêncios, realizado em 2006;
1º lugar no Concurso Literários da ALAB - Academia de Letras e Artes de
Barretos, com o poema “Monjolo”;
Menção Honrosa no 1º Concurso da Academia Gravatalense de Letras (2006),
promovido pela Prefeitura Municipal de Gravatal-SC, com o poema
“Brevidades”;
Premiado com publicação na “XV Antologia Poética (2007)”, da Fundação
Cultural Cassiano Ricardo, de São José dos Campos, com os poemas
“Dessilêncios e Malabares”, Sobre os Pesos das Distâncias”, “O Domesticador
de Silêncios” e “Picadeiro”.
Selecionado para representar o município de Mococa no Mapa Cultural
Paulista 1998, na categoria Literatura - Poesia, com o poema "Picadeiro".
1º Lugar no Concurso da Academia Saquaremense de Letras.
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Apoio Cultural
Diretoria Executiva do CMS
Presidente
Milton Cavalo
(Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e Região)
1º Vice-presidente
José Carlos de Morais
(Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes)
2º Vice-presidente
Djalma de Paula
(Federação dos Químicos do Estado de São Paulo)
1º Secretário-geral
Marcos Milanez
(Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações do Estado de São Paulo)
2º Secretário
Luiz Carlos Motta
(Federação dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo)
1º Tesoureiro
José Carlos do Nascimento
(Federação das Indústrias Têxteis de São Paulo)
2º Tesoureiro
Wilson Florentino de Paula
(Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil de São Paulo)
Diretor de Relações Sindicais
João Batista Inocentini
(Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos da Força Sindical)
Diretor Social
Elenildo Queiroz Santos
(Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos e Região)
Coordenadora de Projetos
Carolina Maria Ruy
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Considerações
Mais do que especiais a: Profa. Dra. Daniela Mantarro Callipo (uma grande honra), Profa. Mara
Ghellere de Mendonça (quem domina a gramática e a tolerância), Affonso Romano de Sant´Anna (genial e
generoso), Getúlio Cardozo e família (parceiro de poemas, histórias e de vida), João Carlos Juruna Gonçalves
e Carolina Maria Ruy (muito obrigado pela força e a belíssima foto de capa), Oswaldo Waquim Ansarah (um
verdadeiro irmão, uma das pessoas mais inteligentes, com alma e coração do tamanho do mundo), Cida Cilli
(todas as palavras deste livro não conseguiriam formular um agradecimento diante de tanto apoio), Guto
Ruocco (outro que sempre acreditou e apoiou!), Luiz Antônio Scarparo Maciel (um virtuose multicultural),
Sérgio "Cachorrão" Altiere (nunca esquecerei a força que me deu num momento tão delicado, obrigado),
Carmen Lucia Evangelho Lopes (admiração pela pessoa que é e pelo vasto conhecimento que possui), José
Miguel Wisnik, Edmilson Domingues e toda diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Ribeirão Preto,
Ubirajara Dias de Melo, Milton Cavalo e diretoria do Centro de Memória Sindical, Val Gomes (parceiro de
longa data), meus pais João Alberto Flaitt Corrêa de Barros e Maria Helena Dias Flaitt de Barros, meu irmão
André Flaitt, Dona Lu e "Seu Carlos" (in memorian), José Luiz Ribeiro (grande pessoa), Andressa Mascaro,
Vanessa Nagy, Roberto (Paris Gráfica), Márcio Dal Rio (pelos desenhos, pela amizade e pelo apoio),
Roniwalter Jatobá, Gustavo Correa Barreto,Yael Reyna Pecarovich, Prof. Dr. Pedro Marques, André Azenha,
Profa. Elenir Freitas (diferenciada), Profa. Regina Berton (com quem dei meus primeiros passos na
Literatura), Marcelo Duarte Jatobá (palmeirense gente boa demais!), Francisco Sales Gabriel Fernandes
(Chico do Sindicato) e família, Kico Zamarian, Márcia Tauil, André Melo e família, Débora Jorenti, Antonio
Geraldo Figueiredo Ferreira, Rodrigo Xavier e família, Marco Antonio Mota, João Franzin, Renata Grota,
Leandro Granito, Mateus Medeiros,Washington Moraes (um dos caras que me ensinou a ver o mundo além
daquilo que está no olhar) e Felipe Teixeira Martins (o Barba).
Também a: Adriano Talles, Rodrigo Lico, Fábio Casseb, Jeferson Torres Freitas, João Cilli, Paulo Celso
Pucciareli (grande poeta), Jeferson Zanchi, Paulo José Vieira, Viviam Nálio, Didô Carvalho, Luciano
Gonzalez e Flávia, Nelson Meyer, Marcelo Campos Mendes Pereira, Marcelo Duarte (Guia dos Curiosos),
Rodrigo Chinellato, Jonas Martinelli, Dayane Santos, Débora Rodrigues, Sérgio Ricardo Xavier dos Santos
Ribeiro da Silva, Renato Granito, André Plez, Marcelo Rehder, Alcino Mikael Filho (in memorian), Paulo
César Vieira, José Carlos Ruy, Luiz Romão, Paulo Eduardo Vieira (Curuja), Claudio Magrão de Camargo
Crê, Francisco José Vieira Guerra (Chico Guerra) e família, Eliseu Silva Costa, Edison Venâncio, todos os
companheiros de trabalho e parceiros da Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, Leandro
Nunes, André Oliveira, Almir Teixeira, Antonio Diniz, Dalva Ueharo, Jorge Pires, Jonas Lima, Gustavo
Zeferino e família, Marcelo Ruocco e família, Tânia Fetchir, Nelson Ferreira Júnior, Amadeu Vieira Guerra
Neto, Mariana Vieira Guerra de Oliveira, Ricardo Lucon, Margareth de Fátima Montagnine, Fábio Laguna,
Ricardo Barison e família, Ronaldo do Barco, Aline Herrera, Luciana Cristina Ruy, Marco Aurélio Cunha,
Álvaro Leandro Nunes Cunha, Kevin Kraus, Vitor Birner, Antonio Ventura, Luiz Gustavo Giuntini de
Rezende, Marcos Tamira, Silas, Aurélio Mendes e Paula, Samy Davis (parceiro!), Claudio Omena, Jaélcio e
Tiago Santana, Célio Bueno, Carlinhos/Lucy e toda família Bueno, Dirceu Guardiano, Fernanda Arantes
(Mococa), Fátima Elias Fernandes Vacari, União Brasileira de Escritores, Circus Produções Culturais,
Agência Sindical, Central Força Sindical, Band News FM, Revista Cult, toda diretoria do Sindicato dos
Metalúrgicos de Piracicaba, Marquinhos (Sindicato dos Metalúrgicos de São José do Rio Preto), Niula e
Werton (sempre amigões), Nelsinho Calil, Renata Lutfi, o amigo historiador Julio Machado e Coelho de
Moraes.
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Contatos
{
Ricardo Flaitt
E-mail
flaitt@ricardoflaitt.com.br
Facebook.com/rFlaitt
Site
www.ricardoflaitt.com.br
Correspondência
Caixa Postal 78 554
São Paulo - SP
02071-970
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Esta obra foi composta em Times News Roman e Lucida Bright.
Impressa pela Paris Gráfica (11) 5021.6366 em offset sobre
papel pólen soft em outubro de 2013.

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