Amora silvestre - Tu e a tua irmã têm de fazer as partilhas. Ricardo

Transcrição

Amora silvestre - Tu e a tua irmã têm de fazer as partilhas. Ricardo
Amora silvestre
- Tu e a tua irmã têm de fazer as partilhas.
Ricardo fechou a porta e esgueirou-se pela aldeia.
- Bom dia Rica… senhor engenheiro.
Riu-se.
- Você foi ao meu batizado e sabe o nome que me puseram…
- Mas fica bem tratar-se as pessoas pelo que elas são, ou então elas não teriam lutado para chegar
onde chegaram.
Rubricou num sorriso um assentimento cúmplice.
- Mas não deixo de ser o Ricardo.
Despediu-se do encontro breve com um até logo, deixando a aldeia por um caminho aberto entre
muros de pedras. O sol observava-o lá do alto, quente ainda. Há muito tempo que Ricardo não
peregrinava por esses recantos da terra e, procurá-los, seria um trabalho conjunto de infância e
adolescência em busca de leiras de recorte familiar e de pormenores vagos. Os terrenos sempre foram
tarefa dos pais que entregaram aos filhos a oportunidade de vingarem nos estudos. Ocasionalmente
ajudavam os pais, mas o tempo foi afastando a faina de cada um. Caminhar agora ao encontro desses
espaços era pegar num fio ténue de recordações e ir enrolando, pormenor a pormenor, toda uma
extensão de familiaridades vagas até se encontrar, na imprecisão dos traços que conservava, com os
locais que outrora lhe foram familiares. A todo esse jogo de passado e presente se juntava a dimensão
futura, que era o de sentir que essas parcelas, de ora em diante, começavam a tornar-se encargo seu e
vinha daí o cuidado de saber o que se iria fazer delas.
Aqui eram as Covas… sim, aquela declinação além, no terreno… os pinheiros, onde estão? Aqui
cultivava-se milho e agora há alguma erva seca… e caganitas… da ovelha velha que rapou a erva verde…
mas também de coelhos… O terreno parecia-lhe mais pequeno. Não que encurtasse, mas os metros da
infância tendem a ser maiores que os metros dos adultos. Quanto valerá? A Rita não quer saber disto
para nada, mas se lhe vou dizer que isto não vale nada, o marido diz logo que eu quero é ficar com o
terreno. Eu já o tinha vendido quando o Zé da Arminda se interessou por ele, mas o quê! Para os velhos
isto tem sempre mais valor. O valor de quem sustentou ao longo da vida uma família criada com o
sustento arrancado a estas fatias de terra entaladas entre pedrarias. Que agora eram pasto de erva que
a ovelha velha rapava quando a mãe ali a deixava, as mais das vezes presa por uma estaca no chão duro
e o animal desbravando círculos imperfeitos no espaço verde.
Sacou de um bloco e de uma caneta e desenhou o perfil do terreno. Depois percorreu a passos
certos os muretes de pedra secular erguidos pelos antepassados que assim delimitavam as suas posses.
Assentou os números. Quis fazer cálculos, mas o recorte irregular, a ausência de máquina de calcular à
mistura com uma lassidão vespertina fizeram-no desistir. Lançou um último olhar sobre a leira de terra e
pôs-se novamente a caminho.
Pelos campos em redor pairava uma calma confrangedora. Era um fim de tarde de um julho
quente. A essa hora devia cruzar-se com as pessoas regressando das fazendas ou talvez garotos
conduzindo animais se o calor deixasse sair o gado dos seus redis. Mas nada disso sucedia. A aldeia
envelhecia e despovoava-se a olhos vistos. Resistiam alguns enquanto o tempo não viesse colher, um a
um, os que por ali iam ficando, esquecidos, resistentes, pregados a esse chão de história e de histórias.
Dos talhões cultivados de outrora restava agora uma terra ou outra cavada, mirrada nas plantas que
nelas cresciam, talvez pela seca, talvez pela secura das vidas que iam desistindo pouco a pouco.
- Vê lá se tu e a tua irmã se entendem e se vocês fazem as partilhas que depois, em eu não
estando, até acho que vocês não sabem o que é vosso.
Ali estão as Fragosas… e riu-se. Riu-se pela facilidade do reencontro que ia estabelecendo. Ao
mesmo tempo ia despertando outras recordações. As Fragosas tinham um chão que era um calo. Um
pedaço de terra que endurecia sob o sol de estio. As batatas nem medravam nesse terreno duro que as
oprimia e a custo a enxada conseguia quebrar o chão, desenterrando enormes torrões que escondiam
os escassos tubérculos. Ali se percebia que o trabalho agrícola era uma epopeia sem glória, nem
memória futura. E agora, que restava do terreno? Um chão ainda mais duro. A um canto resistiam duas
ou três couves e a rama espalhada pelo chão deixava adivinhar que por ali se cultivaram abóboras.
Ricardo abriu de novo o bloco e desenhou os contornos ásperos da parcela. Repetiu o ritual dos passos
traçados ao longo dos muros de pedra forrados a silvas. Numa das bordas da fazenda, para onde
outrora se atiravam as pedras que surgiam do chão, já mal se vislumbravam os limites precisos da
possessão. Terminado o esboço, ensaiou novamente um cálculo para logo de seguida desistir da façanha
e remeter para mais tarde essa tarefa. E pensava como podiam os antigos ser assim tão alheios à
geometria, desenhando, na paisagem que dividiam, parcelas de recortes irregulares e contas complexas,
quando o mais fácil seria, à luz da régua e do esquadro, traçarem divisões mais precisas e exatas.
O sol afastava-se já e Ricardo entendeu regressar a casa. Parecera-lhe tarefa fácil reconhecer e
avaliar os terrenos familiares, de acordo com as indicações da mãe. Mas o bom filho enredara-se
também num balanço relacional com a aldeia natal. De facto, ali brotara para a vida, mas toda a sua
relação com ela, cada vez mais ténue e longínqua, se parecia condensar agora num claro epitáfio: eu
nasci aqui. E quarenta e oito anos de um afastamento progressivo, meros traços no relógio que rege a
aldeia e as suas terras, eram para Ricardo uma imensidão de diferenças e de separações. Nos primórdios
da fase adulta da sua vida viera muitas vezes a casa. O Natal, as festas da aldeia, um fim-de-semana ou
outro, num ritual que impunha em casa. Mas em nenhum desses regressos se sentira um Anteu
revitalizado com as forças da terra-mãe. Encontrava apenas a degradação da vida dos pais a braços com
os problemas da velhice mais os problemas que eram os problemas pessoais do próprio Ricardo. Os pais
vivem sentidamente as agruras dos filhos. Por isso, para fugir ao filho, então, como vão as coisas e não
ter que desembrulhar frases sem sentido, Ricardo foi espaçando as vindas. Os filhos, criados no conforto
da civilização, detestavam os dias incómodos passados nesse recanto onde o telemóvel não tocava e a
internet não entrava. A mulher nunca comungara com um cenário que não compusera o seu passado e,
por isso, estranhava esse ambiente pobre que nunca lhe dissera nada. Um dia Ricardo veio sozinho. A
Cristina? Estamos separados, para não dizer que estavam divorciados. Mas vão voltar a viver juntos?
Talvez, para não dizer que isso já não estava nos planos de nenhum deles. A mãe revestiu-se de uma
cristianíssima amargura. No pai caiu um manto de tristeza, uma geada que cai sobre os rostos humanos,
queimando-lhes as réstias de alegria e abrindo-lhe profundos sulcos na pele já seca. Se Ricardo buscara,
num regresso às origens, só e descomprometido, a vontade de encontrar um recomeço e, assim, alguma
força, acabou por descobrir que nenhum passado se conserva intacto. A partir daí a aldeia ficou cada vez
mais longe do seu viver e as visitas passaram a escassear até que a morte do pai veio precipitar todas as
coisas.
Têm de fazer as partilhas e a Rita já mal quer saber daquilo, mas espera que seja o irmão a fazer
tudo, porque, diz, tem mais tempo e de terrenos percebe ele. E ali andava ele, vagueando por esses
campos, passado, presente e futuro de mãos dadas.
De repente chamou-lhe a atenção as imensas silvas que pendiam no caminho. Cresciam viçosas e
exibiam grossas amoras como nunca na sua memória se tinham visto por ali. Em criança, essas bagas
negras cativavam a criançada que se deliciava a apanhá-las e a comê-las. Tingiam os dedos de uma
tonalidade tinta carregada. Espremidas, davam um suco vináceo e a rapaziada divertia-se a imitar os
adultos numa confraria em festa.
- Olha, Ricardo, vinho.
- Vamos beber um copo de vinho.
- Vinho! Ah! Ah! Ah!
Uma gota ou outra rubricava nas roupas a brincadeira.
- Estes cachopos… Se fossem apanhar amoras para eu depois fazer um doce… Vão lá, vão.
Os dedos ágeis fintavam os picos que as protegiam. Nos sacos de plástico, esmagavam-se as bagas
mais maduras derramando a tinta bem escarlate.
- Queres uma amora? perguntou-lhe a Fatinha estendendo-lhe nas mãos algumas bagas silvestres.
Ricardo viu brilhar-lhe nos olhos um afeto puro quando a sua atenção cruzou o rosto dela e aceitou a
oferta. Eram doces e agradáveis.
- A minha mãe faz licor de amoras e diz que faz muito bem à digestão, continuou ela como se no
gesto houvesse uma dádiva maior que a pequenez dos frutos. Eu já provei um bocadinho que ela me
deu. É bom, mas depois a gente fica com a cabeça um pouco tonta, a andar à roda. Sabes que o meu
irmão, uma vez, foi à garrafa do licor da minha mãe e desatou a beber dele que apanhou uma grande
piela e nem dizia coisa com coisa e desatou a dormir que a minha mãe desconfiou logo o que ele tinha
feito e deu-lhe uma sova que lhe tirou logo o sono… Já provaste? Ricardo acenou que não. A tua mãe
não faz? Acenou de novo, que não. Lá em casa o pai bebia um copo de vinho à refeição e, de vez em
quando, em dia de festa, um cálice do porto. Queres provar um bocadinho? Anda, anda lá a minha casa
que a minha mãe não está lá e provas só um bocadinho que ela não dá por nada, anda. E foi.
Ainda hoje guarda na memória o sabor divinal desse contacto. Bebeu um cálice, bebeu dois, que a
Fatinha não deu mais com medo que a mãe fosse notar. Era um sabor adocicado, um travo avermelhado
de sangue a celebrar a vida, um prazer novo que se demorava na boca mesmo depois de tragado o
precioso líquido. A cabeça começou a querer girar nessa celebração de sentidos e de festa. Ela
aproveitou e, agarrando-se a ele, beijou-o na boca. Abriu-lhe os lábios cerrados com a sua linguazinha
pura numa imitação dos filmes que a apaixonavam e ele sentiu em si o travo húmido de uma outra
língua numa mistura de líquidos e experiências.
- O Ricardo e a Fatinha são namorados. O Ricardo e a Fatinha são namorados. Repetiam as outras
crianças quando, dali para a frente, começaram a andar juntos e refugiar-se da turbilhão das
brincadeiras das outras crianças para estarem mais sós. Que era feito da Fátima? Também ela saíra dali
para fora. Devia estar casada, com filhos e encargos sérios. Fora a sua primeira namorada e a sua
primeira experiência amorosa, se amor se pode chamar a essa imitação ingénua dos adultos, a essa
atração precoce por outros seres. Durou apenas esse verão, que depois se haviam de separar nos
estudos.
- Queres uma amora? recordava ele enquanto recolhia das silvas algumas bagas sumarentas dessa
dádiva silvestre. Meteu-as à boca, uma a uma, sem se importar de as lavar primeiro. Veio ao seu
encontro a memória antiga desse sabor perdido e nunca mais reencontrado. Colheu mais e comeu,
criança deliciada numa viagem de retorno a um sabor redescoberto.
- Sabes, tu és o meu amor, dizia ela com um brilhozinho nos olhos e uma voz meiga que o
encantava.
- E tu és a minha amora, ria ele, e depois ela, nesse encanto súbito de jogo de palavras e de
aprendizagem séria do sentido da vida. Ricardo sorria com a suavidade ténue destas recordações.
Pelo carreiro além, de regresso a casa, ia desfolhando as páginas soltas desses recantos. O Tó, o
Zé, o Pereira, a Bé, o Carlos, o Flávio, a Maria, e tantos outros. As brincadeiras de criança, o reencontro
nas férias, a ajuda aos pais e a fuga dessa vida que não ambicionava. Não, já não era dali.
Reparou que nas mãos levava ainda uma amora, baga solta de silva que já não recordava. Olhou-a.
- Minha amora…
Sorriu. E um travo húmido soltou-se na boca, ao mastigá-la, por entre o sabor doce e avermelhado
dos seus glóbulos.
Manuel Filipe, 2012