Glomeruloesclerose Segmentar e Focal Igor

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Glomeruloesclerose Segmentar e Focal Igor
Glomeruloesclerose Segmentar e Focal
Igor Gouveia Pietrobom
A glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF), considerada uma das
glomerulopatias mais comuns, rivaliza com a GNM (glomerulonefrite membranosa) como
maior causa primária de síndrome nefrótica em adultos nos EUA.12 Dados internacionais
referem epidemiologia com prevalência de 40% entre as glomerulopatias no adulto, com
uma incidência crescente desde a década de 1970 e atualmente estimada de 7 por milhão. 1
Dados nacionais de mais de 8000 biópsia de rim nativo de 1993 a 2006 elencam a GESF
como principal causa de glomerulopatia primária em adultos (21,52%) logo na frente da
glomerulopatia membranosa primária (21,50%).2
O diagnóstico anátomo-patológico da GESF não deve ser encarado como doença. Tal
denominação genérica, que deriva essencialmente da capacidade descritiva do patologista
renal e, traduz-se em lesão esclerosante focal (menos do que 50% dos glomérulos
acometidos) e segmentar (menos do que 50% da área glomerular) pode ser entendida como
uma síndrome clínico-patológica. Portanto, disso depreende-se que há múltiplos
mecanismos fisiopatológicos distintos envolvidos e diferentes doenças que podem receber
essa mesma denominação em comum (GESF). De fato, a lesão patológica de GESF pode ser
secundária a qualquer outra causa de doença renal crônica. 12 Interessante que, apesar dos
múltiplos mecanismos propostos, uma célula glomerular, o podócito, é considerada a célula
alvo desses múltiplos insultos. Inclusive se apresenta na literatura o termo “Podocitopatia”
para se referir ao grupo de doenças que compartilham essa lesão celular. 3
PATOGÊNESE
A patogênese da GESF é complexa e multifatorial. A hipótese é de insulto à população de
podócitos com depleção absoluta ou relativa (mínimo de 40%)4 seguida de progressão para
lesão podocitária secundária (efeito em dominó). Há evolução com solidificação do tufo
capilar glomerular com acúmulo de matriz extracelular e algumas vezes com sinéquias à
cápsula de Bowman. A barreira de filtração glomerular é composta pelo endotélio
fenestrado internamente, a membrana basal glomerular ao centro e o podócito (epitélio
visceral) em sua porção externa. O podócito por sua vez se apresenta com célula terminal,
extensamente ramificado com seus processos podais, interdigitados como os dedos de uma
mão em oração, a cobrir o endotélio e a membrana basal glomerular. Entre seus processos
podais encontra-se a fenda de filtração, uma espécie de junção adesiva especializada à quais
diversas proteínas estão presentes e podem sofrer modificações. Embora seja controverso
na literatura, considera-se que essa célula não pode sofrer reparo com replicação celular e
portanto constitui alvo final para a lesão predisponente da GESF. Tal barreira é considerada
essencial na manutenção da seletividade do filtrado glomerular, de modo que sua lesão
pode se manifestar como proteinúria.
Susceptibilidade genética ao desenvolvimento de GESF é descrita. Diversos são os
mecanismos e múltiplos sítios de lesão ao podócito são propostos, tais como, proteínas na
membrana celular, citosol, núcleo, mitocôndria, lisossomo, citoesqueleto de actina e
diafragma de fenda.
As formas genéticas mais comuns são as de transmissão autossômica recessiva e que
normalmente se manifestam precocemente durante a vida (nefrina e podocina). As formas
autossômicas dominantes (alfa-actinina-4 e Transient receptor potential cation channel 6)
normalmente se manifestam na adolescência e no adulto jovem. Acredita-se que uma
população que deva ser avaliada geneticamente são aqueles que têm apresentação clínica
precoce (infância), especialmente se menor que 1 ano de idade ao diagnóstico, doença
sindrômica, história familiar positiva e na corticoresistência.5
Entre os diversos grupos, a incidência de GESF e a taxa de sobrevida renal são piores
entre negros. Inicialmente fora atribuído ao gene MYH9 (produtor de cadeia pesada de
miosina 9 do citoesqueleto do podócito), que se correlaciona a síndrome de FletchnerEpstein (outrora variante da Síndrome de Alport), esta maior incidência. Posteriormente 2
variantes sequenciais (G1 e G2) do gene que decodifica a Apolipoproteína L1 (APOL1) foram
responsabilizadas pela maior prevalência de GESF, hipertensão arterial sistêmica, doença
renal crônica, nefropatia associada ao HIV (HIVAN) e possivelmente progressão da
nefropatia diabética nessa população. 6,12 Uma hipótese para a persistência evolutiva dessa
proteína é a capacidade de lise do Trypanossoma brucei, causador da doença do sono
africana com homologia à mutação da cadeia beta da hemoglobina A e proteção contra
Malária à custa do risco de Hemoglobinopatia.12
DEFINIÇÃO ANÁTOMO-PATOLÓGICA E CORRELAÇÃO CLÍNICA
Observa-se coalescência segmentar e focal do tufo capilar glomerular com acúmulo
de matriz extracelular e proteínas do plasma (hialinose). Como a lesão inicial é mais comum
em glomérulos justamedulares, faz-se necessária uma boa amostragem qualitativa e
quantitativa (20-25 glomérulos para 95% de chance de detecção de lesão focal) para que a
lâmina seja adequada para análise6. À microscopia eletrônica o achado é de apagamento
extensivo (>80%) dos processos podocitários, sem anormalidades da membrana basal
glomerular. Descolamento de podócitos próximos a área de esclerose pode ser observado. A
imunofluorescência típica encontra deposição de IgM e C3,de modo granular grosseiro,
segmentarmente presos na área de hialinose. Imunofluorescência negativa, pauci-imune
também não constitui achado incomum. Com a progressão da lesão de néfrons, observa-se
atrofia tubular e fibrose intersticial com predomínio nas áreas próximas aos glomérulos.
Existe uma diversidade de apresentação patológica da GESF. A classificação de
Columbia propõe organização da GESF (Primária e ou Secundária) em cinco subtipos de
forma hierarquizada: NOS (não especificada de outra forma, usual ou clássica), tip (pólo
urinário), perihilar (pólo vascular), celular e colapsante. 6, 12
A apresentação clássica é de proteinúria nefrótica com ou sem os demais achados de
síndrome nefrótica em 75-90% crianças e 50-60% adultos.11
A forma NOS é considerada o subtipo mais comum, presente tanto em formas
primárias como secundárias, como evolução dos outros subtipos de GESF e pode se
apresentar tanto com síndrome nefrótica quanto como anormalidade urinária assintomática
(proteinúria subnefrótica).6,12
O subtipo perihilar é o predominante entre as causas secundárias de GESF. A
alteração da hemodinâmica glomerular com aumento da pressão de filtração glomerular é a
alteração presumida e normalmente se manifesta clinicamente como anormalidade urinária
assintomática (proteinúria subnefrótica).6
A variante celular é a menos comum, que se apresenta com lesão segmentar
proliferativa endocapilar e células xantomatosas (foam cells). Este subtipo parece preceder o
estágio evolutivo da esclerose e é normalmente encontrado em formas primárias, também
algumas secundárias, se manifestando clinicamente como síndrome nefrótica.6
O sutipo tip lesion, com lesão esclerosante no pólo tubular, é comumente primária,
predominando a manifestação com síndrome nefrótica abrupta. É considerada a forma com
melhor prognóstico, com menor taxa de fibrose intersticial e atrofia tubular com predomínio
em caucasianos.6
A forma colapsante tem sido considerada recentemente uma forma distinta de
glomerulopatia. Dentre os subtipos de GESF é considerada a de pior prognóstico, com pior
resposta à terapêutica e predominante em negros. Manifesta-se clinicamente como
síndrome nefrótica com piora rápida e progressiva da função renal. Decorre do colapso
implosivo do tufo capilar glomerular consequente a hiperplasia e/ou hipertrofia do epitélio
visceral glomerular (podócito). Pode ser primária ou secundária a vírus (HIV-1, Parvovirus
B19, SV-40, EBV, CMV), drogas (pamidronato, interferon), doenças vaso-oclusivas
(ateromembolismo, nefropatia crônica do enxerto, nefrotoxicidade por inibidor de
calcineurina) e síndrome hemofagocítica.6
O melhor marcador de diferenciação entre a forma primária e secundária é através
da microscopia eletrônica com evidência de apagamento em mais de 80% (difusa) dos
processos podais. 11 Além desse achado sugerem injúria secundária: padrão geográfico
desigual de cicatrização da pielonefrite crônica,glomerulomegalia de néfrons não
acometidos nas formas adaptativas, grau de hialinose e esclerose vascular vistos na
arterionefrosclerose ou aumento na lâmina rara interna da membrana basal glomerular,
como forma de lesão endotelial.12
A forma primária (idiopática) da GESF tem fisiopatologia não claramente especificada
na literatura. Reposta imune inadequada de células T já foi elencada como hipótese inclusive
com relato de casos com resposta após bloqueio do CTLA4, molécula co-estimulatória de
CD80 (B7-1). 13 Evidência indireta sugere a presença de um fator circulante, capaz de alterar
a seletividade da barreira de filtração glomerular, especificamente da fenda de filtração,
induzindo lesão podocitária e proteinúria. Há relato de caso de paciente com doença renal
estágio terminal por GESF em hemodiálise que recebera rim transplantado de sua irmã com
evidência clínica e ultra estrutural de recidiva da doença no período pós transplante
imediato. O rim foi retirado por complicações da síndrome nefrótica e re-transplantado em
um segundo paciente com rápida resolução da proteinúria, melhora da taxa de filtração
glomerular e melhora das lesões ultra-estruturais após o transplante.7,12 Outras evidências
indiretas são: soro de pacientes com GESF em ratos induz lesão glomerular semelhante e a
melhora clínica com técnicas de imunoadsorção e plasmaférese no tratamento da recidiva
de GESF no pós transplante.6
Um possível fator circulante envolvido na patogênese é o cardiotrophin-like cytokine1 (CLC-1) da família da IL-6, identificada no fluido de plasmaférese de alguns pacientes e com
estudo experimental de redução da densidade de nefrina podocitária em ratos.
Outra molécula implicada é o suPAR (receptor solúvel do plasminogênio ativador de
uroquinase). Níveis elevados foram encontrados em dois terços de pacientes com GESF em
comparação a controles e outras glomerulopatias em estudos de coorte.8 Outro grupo
elencou a possibilidade de maior risco de recorrência de GESF naqueles que apresentavam
títulos de suPAR mais altos no período pré-transplante.11 Em contrapartida alguns estudos
recentes não encontraram correlação da titulação do suPAR com GESF, inclusive sem
conseguir distinguir formas primárias de secundárias. Outros ainda não obtiveram corte
capaz de conseguir distinguir GESF de outras glomerulopatias e até de eventos inflamatórios,
infecciosos e neoplásicos.9,12
Um candidato recente a “vilão gesfiante” é o micro-RNA miR193a que inibe o WT1,
podocalixina, nefrina e vários outros produtos gênicos de importância citoestrutural ao
podócito.10,12
Em relação às formas secundárias da GESF estas podem ser divididas em Virais,
secundária a Drogas, Adaptativas e Familiares (Genéticas). Em relação aos vírus incluem-se
HIV-1, com fatores de virulência nef e vpr, com lesão podocitária direta e indireta, Parvovirus
B19, EBV, CMV e SV-40. As causas por drogas incluem: heroína, pamidronato, interferon
(alfa, beta ou gama), inibidores da calcineurina, lítio, inibidor da mTOR e esteroides
anabólicos como drogas principais que devem ser citadas.6,12 Em relação as causas
adaptativas deve-se levar em consideração doenças que reduzam inicialmente a massa renal
(redução da população de néfrons, como na agenesia renal) e doenças que ocasionem
estresse hemodinâmico em população de néfrons inicialmente normal ( por exemplo
obesidade e anemia falciforme).6
PROGNÓSTICO
A GESF tem uma taxa de remissão espontânea menor que 5%, com DRET (Doença
Renal Estágio Terminal) em 50% dos casos em 5-8 anos. 6,11 Fatores de mau prognóstico
incluem: raça negra, grau e progressão de proteinúria, taxa de filtração glomerular baixa e
com piora progressiva, gravidade de fibrose intersticial e atrofia tubular na biópsia, subtipo
histológico (pior na variante colapsante, intermediário para NOS, celular e peri-hilar e
melhor na tip lesion). A resposta terapêutica prediz prognóstico que é melhor nos pacientes
com remissão completa ou parcial do quadro clínico.11
TERAPÊUTICA
O objetivo da terapia é remissão completa da proteinúria e estabilização da função
renal.6,11
Dieta restrita em sódio e inibidores do sistema renina-angiotensina-aldosterona são
recomendados para todos os pacientes.6,11 Para as formas adaptativas e genéticas não há
evidência de tratamento eficaz com corticoterapia, e resposta parcial para alguns subtipos
de forma genética de GESF.6 Para os demais casos, em adultos, na vigência de síndrome
nefrótica, inicia-se corticoterapia (prednisona 1 mg/kg com máximo de 80 mg) por até 16
semanas com desmame lento e progressivo nos próximos 3-6 meses.11 Para os pacientes
com intolerância, dependência ou resistência aos corticosteroides um grupo de drogas com
boa resposta clínica, porém alta recorrência (50%) com a retirada são os inibidores da
calcineurina. Há pequeno trabalho com adultos até 40 anos comparando ciclosporina à
dexametasona em associação com micofenolato em pacientes com GESF cortiço-resistente
com taxa de remissão semelhante. 11 Há diversos relatos na literatura de uso de rituximab,
sirolimus, adalimumab, ACTH, Pirfenidona e galactose oral, todos com taxa de resposta
variável. 11 Em relação as demais causas secundárias deve-se afastar o fator predisponente
sempre que possível (drogas) ou proceder ao tratamento da doença viral específica.6,11
TRANSPLANTE
A taxa de recorrência pós-transplante é estimada em 40%. Fatores de risco apara
recorrência incluem idade menor que 15 anos ao diagnóstico, raça não-negra, curso rápido
para DRET (< 3 anos), menos de 3 anos entre o início da terapia renal substitutiva e o
transplante, proteinúria maciça no pré-transplante e primeiro transplante com perda devido
a recorrência por GESF. Manifesta-se precocemente com retorno abrupto de síndrome
nefrótica e apagamento de processos podais e progressão para lesão esclerosante e focal
em semanas. Normalmente a lesão patológica segue o subtipo histológico pré-transplante,
mas não invariavelmente.12 Plasmaférese pode ser utilizada no tratamento da recorrência
com melhora da proteinúria após 8-12 sessões em média, mas com necessidade de
tratamento persistente no longo prazo.6,11,12
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