a representação feminina no conto uns braços (1985) de machado

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a representação feminina no conto uns braços (1985) de machado
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NO CONTO UNS BRAÇOS (1985)
DE MACHADO DE ASSIS.
Lila Léa Cardoso Chaves COSTA(UFPI)1
Maria Edna Silva Pereira OLIVEIRA (UESPI)2
RESUMO:
Pretende-se investigar a representação da personagem feminina no conto Uns braços(1985) de
Machado de Assis, examinando a posição subalterna ocupada pela mulher em uma sociedade
que promove a invisibilidade no contexto de dominação masculina. A personagem, dona
Severina, se vê em meio à clausura e anonimato no ambiente familiar e por meio de ações
transgressoras anuncia a imagem de uma mulher queexpressa sentimentos femininos
sufocados pelo contexto de submissão masculina. O conto reflete a respeito do
comportamento entre homem e mulher e suas relações sociais. Trata-se de um quadro
orquestrado por Machado de Assis em uma narrativa provocativa que nos permite refletir
sobre as imposições e amarras formais em que a mulher se encontra exposta, impedindo-a de
nutrir qualquer sentimento que ameace a harmonia social. A pesquisa em torno do gênero no
conto machadiano permite, dentre outros elementos, a constatação de que ainda são relevantes
as desigualdades estabelecidas entre o universo masculino e feminino, com uma acentuada
relação simbólica que oprime e invisibiliza o sujeito. A ficção será examinada com a teoria de
Saffioti (1987), Pires (2003) e Foucault (1988), que direcionam suas proposições para as
relações de poder no discurso, gênero e os processos de construção da identidade feminina.
Palavras-chave: Representação. Mulher. Transgressão.
ABSTRACT:
We intend to investigate the representation of female characters in Uns braços (1985)
Machado de Assis, examining the subordinate position occupied by women in a society that
promotes the invisibility in the context of male domination. The character, Mrs. Severina,
finds himself in the midst of anonymity and seclusion in the home environment and through
transgressive actions announces the image of a woman expressing feminine feelings stifled by
the context of male submission. The story reflects on the behavior of man and woman and
their social relationships. It is an orchestrated by Machado de Assis in a provocative narrative
framework that allows us to reflect on the formal charges and bonds in which the woman is
exposed, preventing it from nourishing any sense that threatens social harmony. The research
around gender in Machado tale allows, among other elements, the realization that they are still
relevant inequalities established between the male and female world, with a strong symbolic
relationship that oppresses and invisibiliza the subject. The fiction will be examined with the
1
Especialista em Literatura Brasileira e Língua Portuguesa (UEMA), Mestre em Letras com área de
concentração em Estudos Literários (UFPI). E-mail: [email protected]
2
Especialista em Literatura Brasileira (UEMA), mestre em Letras (UESPI). E-mail:
[email protected]
2
theory Saffioti (1987), Pires (2003) and Foucault (1988), which direct their propositions to the
power relations in discourse, gender and the processes of construction of female identity.
KEYWORDS:Representation.Woman.Transgression.
Considerações sobre o autor
O escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis é considerado como o maior
nome da literatura nacional.Escreveu em praticamente todos os gêneros literários, sendo
poeta, romancista, cronista, dramaturgo, contista, folhetinista, jornalista e crítico literário. De
acordo com Vera Harabagi Hanna (2012), nas mais conceituadas universidades do mundo, é
obrigatória a inserção do nome desse autor nos planos de curso de literaturas da América
Latina, literatura brasileira e comparadas.
Nascido no Morro do Livramento, Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839 e falecido
em 29 de setembro de 1908, de uma família pobre, mal estudou em escolas públicas e nunca
frequentou universidade.Os biógrafos notam que, interessado pela boemia e pela corte, lutou
para subir socialmente abastecendo-se de superioridade intelectual.Para isso, assumiu diversos
cargos públicos, passando pelo Ministério da Agricultura, do Comércio e das Obras Públicas,
conseguindo precocemente notoriedade em jornais onde publicava suas poesias e crônicas.
Em sua maturidade literária, reunido a colegas próximos, fundou e foi o primeiro presidente
unânime da Academia Brasileira de Letras.
Sua extensa obra constitui-se de nove romances e peças teatrais, duzentos contos,
cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de seiscentas crônicas. Obras comoMemórias
Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899),Esaú e
Jacó(1904)e Memorial de Aires(1908), elevam a sua produção posterior a fase romântica.
A obra machadiana foi de fundamental importância para as escolas literárias
brasileirasdo século XIX e do século XX. Nos dias de hoje torna-se referência para as
pesquisas acadêmicas e para o público leitor. Machado de Assis alcançou relativa fama e
prestígio no Brasil,contudo não desfrutou de popularidade exterior na época. Hoje, por sua
inovação e audácia em temas precoces, é frequentemente visto como o escritor brasileiro de
produção sem precedentes, de modo que, recentemente, seu nome e sua obra alcançam
diversos críticos, estudiosos e admiradores do mundo inteiro. Machado de Assis é
considerado um dos grandes gênios da história da literatura, ao lado de autores como Dante,
Shakespeare e Camões.
O feminino no conto
A invisibilidade social delegada à mulher no contexto do século XIX constitui-se em
torno da noção de inferioridade em relação ao universo masculino. À mulher compete o lugar
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e a condição servil pouco contestadora, ressaltando uma fragilidade em suas ações e de certo
modo, uma impossibilidade de resolver problemas complexos, quiçá os de ordem familiar.
As assimetrias que envolvem as relações de gênero vivenciadas por homens e
mulheres contexto social, quer de séculos anteriores, quer atual, são marcadas por diferenças
excludentes que definem papeis distintos para a perspectiva do gênero. Para o feminino tais
diferenças ganham um peso mais acentuado, pois legitima desigualdades sociais,
culturalmente construídas ao longo da história.
Em Machado de Assis, no conto Uns braços(1995), tem-se a personagem feminina D.
Severina, como uma mulher pertencente ao universo doméstico, que se preocupa em atender
todas as exigências do marido, convergindo para a sua total subordinação, vivendo na mais
completa dependência dele sem acesso a outras relações sociais.
Uns braços (1995) representa um ambiente em que a mulher submete-se ao silêncio ao
se contentar com as petições masculinas. De acordo com Saffioti, “a sociedade delimita, com
bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os
terrenos em que pode atuar o homem”(SAFFIOTI, 1987, p.8), delimitando os campos e os
espaços de atuação de um e de outro gênero. O narrador do conto apresenta a personagem D.
Severina como uma senhora que vivia à sombra do masculino “maritalmente” (Assis, s/n,
1994), fato que traz como significação a ideia de segurança à luz da sociedade do século XIX.
Ainda segundo a autora, o homem “é considerado o provedor das necessidades da família”
(SAFFIOTI, 1987, p.24), embora a mulher assuma todas as responsabilidades domésticas.
A personagem Borges, nominado no conto como o solicitador, é um advogado, com
nome reconhecido no contexto social da época, influente,portador de recursos, e mantenedor
do lar, que recebe em sua casa o filho de um compadre, a fim de que este pudesse se tornar
um procurador de causa, visto que para o pai esta era uma profissão rentável.
O narrador empenha-se em apresentar a personagem Borges como um homem
dominador, possuidor de uma visibilidade social que o permitia controlar e humilhar aqueles
que dele dependiam: D. Severina, o compadre e mais enfaticamente o jovem Inácio. Como no
texto que segue:
Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe
apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro,
cabeça de vento, estúpido, maluco.
- Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que
lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim,
ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!. (ASSIS, s/p, 1994).
A personagem Borges era autoritária e indiferente, tratava de humilhar e se desfazer
dos que estavam em sua volta. Aqueles que viviam com ele no espaço privado do lar -Inácio e
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D. Severina- esforçavam-se para acatar a sua autoridade de chefe da família. Toda a rotina da
casa se dava em função de servi-lo bem e dotá-lo de satisfação.
Diante da relação marital, o narrador não acena indícios de expressões de carinho ou
afetuosidade de Borges com a companheira D. Severina, vê-se que este ainda lhe faz ameaças
quando ela se mostra desatenta e pensativa, recolhida a si mesma,fato que causa desconfiança
e incômodo para o universo masculino.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali
outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela
primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há
idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas
tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a
boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a
amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e
beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um
incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim. – Que é que você
tem? Disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de
pausa. - Não tenho nada. - Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo!
Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos... E
foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças. (ASSIS, s/p, 1985).
O conto permite visualizar que a atração do jovem Inácio se dá em relação a D.
Severina mediante os braços dela que o jovem passou a admirar. Ele resistia a toda
humilhação sofrida somente pela recompensa de poder ver os braços da protagonista durante
as refeições. À maneira diferenciada que Inácio a observava é que a faz contemplar e
imaginar os possíveis sentimentos que o garoto demonstrava experimentar em relação a ela,
pois este jovem “sentia-se agarrado e acorrentado pelos braços de Dona Severina. Nunca vira
outros tão bonitos” (ASSIS, s/p, 1985), o que permitiu a personagem se perceber como uma
mulher bonita e atraente, mobilizando um indício de transgressão expressa através de seus
sonhos.
D. Severina chega a pensar em relatar a Borges suas suspeitas em relação ao
comportamento do jovem Inácio,possibilidade logo refutada. Como na passagem:
Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao
solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou:
realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não,
não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o
acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. (ASSIS, s/p,
1985).
O universo repressor em que a personagem se encontra fortalece parâmetros
reguladores de seu comportamento. D. Severina é impulsionada a revelar suas suspeitas ao
marido, contudo a ideia é rejeitada a fim de não desarmonizar o status quoestabelecido
socialmente para a mulher da época.
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No contexto do conto, o narrador apresenta a personagem como uma mulher sem
adornos, sem vaidades, somente um pente de tartaruga que usava no alto da cabeça, com
“vinte e sete anos floridos e sólidos” (ASSIS, s/p, 1994), que se reservava ao espaço
doméstico, uma representação feminina subalterna e sem aspiração outras que não à condição
de esposa e dona de casa.
O narrador traz consigo a marca da exclusão em relação à mulher, apresentando-a
como culpada por despertar o interesse masculino, “também a culpa era antes de D. Severina”
(ASSIS, s/p, 1995) que trazia seus braços à mostra dentro de casa, pois seus vestidos tinham
mangas curtas, embora o narrador justifique que a personagem os mantivesse os braços
expostos porque seus vestidos estariam gastos. A palavra culpa utilizada pelo narrador reflete
o sentimento que a sociedade patriarcal expressa em relação à figura feminina, evidenciando
uma condenação ao seu comportamento, como argumenta Saffioti (1987):
A mulher acaba, quase sempre, sendo culpabilizada pelo seu próprio sofrimento. Se
apanhou do marido, se foi por ele assassinada, é porque assim o mereceu. A policia,
a justiça, enfim, a sociedade transforma a vítima em ré, até depois de sua morte.
(SAFFIOTI, 1987, p. 36).
Considerando a representação dada a D. Severina, o sentimento de culpa é algo que
parte não somente do narrador, mas dela mesma, pois diante da constatação de ser admirada
pelo jovem Inácio resolve posteriormente esconder os braços, sentindo-se na obrigação de
resignar-se. A personagem se sente reprimida em relação a sua condição de mulher,
poisreconhece que o contexto social a condenaria em tal circunstância, o que a faz retornar
para o plano da invisibilidade diante de si mesma e do outro. D. Severina não deseja ser
notada ou mesmo admirada, tendo em vista sua condição subalterna negando-se a despertar
qualquer sentimento que fosse reprovado socialmente.
Vale ressaltar que a personagem feminina demonstra possuir uma percepção de mundo
a partir do seu espaço doméstico o que não a impedia de desconfiar dos gestos do jovem
Inácio em relação a ela. Em circunstâncias cotidianas, toma ciência do comportamento
suspeito do jovem a partir de indícios vagos e atitudes acanhadas que a leva a presumir ser
notada através de um sentimento particular que a agrada.
D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar
nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No
dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que
era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um
sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. (ASSIS,
s/d, 1994).
O narrador do conto, embora apresente uma personagem reprimida, permite a
constatação de atitudes momentaneamente distanciadas das convenções sociais designadas à
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mulher. Os liames sociais e o sentimento de inferioridade da personagem revelam-se como
impedidores de uma transgressão maior com relação ao jovem Inácio, pois se trata da
possibilidade de um envolvimento amoroso entre uma mulher mais velha e um homem mais
novo, fato considerado desaprovado pela sociedade representada e ainda a possibilidade de
subverter as expectativas do seu mantenedor, Borges.
Os sentimentos despertados em D. Severina são instigados por uma situação que lhe é
alheia, ou seja, sentir-se notada por um homem. Toda essa circunstância tem um valor
diferenciado para a personagem, uma vez que ela se encontra em uma clausura social, sempre
a disposição do marido que não estabelece com esta um vínculo sentimental.
Foucault (1997) argumenta que:
[O] casamento exigia um estilo particular de conduta, sobretudo na medida em que o
homem era um chefe de família, um cidadão honrado ou um homem que pretendia
exercer sobre os outros ao mesmo tempo político e moral; e nesta arte de ser casado
era necessário domínio de si que devia dar a sua forma particular ao comportamento
de homem sábio, moderado e justo. (FOUCAULT, 1997, p. 07).
O sujeito masculino faz-se indiferente as sentimentalidades da mulher, dedicado ao
trabalho, consciente de que seu status quo garante estabilidade social e consequentemente a
certeza do domínio sob o grupo familiar, pois ele é o provedor da casa, aquele que tem o
controle do contexto familiar que o cerca.
A personagem masculina Borges expressa a noção de como a sociedade vê a
instituição do casamento, distante da visão romântica disseminada no universo feminino, pois
se para a mulher a perspectiva do casamento está condicionada a visão amorosa, para o
universo masculino traz como significado social e ideológico a ideia de ser o chefe, que
assume as responsabilidades e por isso pode exercer toda a autoridade sobre a mulher,
demarcando as relações de poder instituídas historicamente.
De acordo com Vera Lúcia Pires, as desigualdades apresentadas em relação ao
masculino e ao feminino se fazem de forma quase imperceptíveis através dos variados
discursos legitimados e autorizados pelo universo patriarcal, assim, as “relações entre os
sexos são estratégias de poder que, articuladas a partir dos discursos, tentam encobrir as
desigualdades, naturalizando-as” (PIRES, 2003, p. 207). É o que ocorre no entorno do conto
machadiano, em que o narrador estabelece para as personagens o princípio das desigualdades
entre o masculino e o feminino, sustentando para tais relações a noção de naturalidade diante
das vivências cotidianas em que estão envolvidas as relações de gêneros.
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Considerações finais
A pesquisa em torno do gênero, no conto machadiano, permite dentre outros
elementos, a constatação de que são fortemente acentuadas as desigualdades estabelecidas
entre o universo masculino e o feminino.As representações que delineiam o entendimento
sobre o gênero, quer na literatura, quer em outras significações simbólicas,particularmente na
perspectiva feminina, preconizam em geral a supremacia do macho.
Aquilo que a sociedade do século XIX considera como sustentáculo à manutenção
da ordem social traz como resultado a anulação da mulher amparada pela ideologia patriarcal,
que simbolicamente a oprime e a invisibiliza, instituindo para ela a condição de objeto.As
relações de poder impostas pelas estruturas sociais atentam fortemente contra o sujeito
feminino. Durante séculos as mulheres confinadas ao lar, ao espaço doméstico, conviveram
com a negação e ocultamento de seus sonhos, desejos e possibilidades de se assumirem como
sujeitos da sua história, tendo à figura masculina a prerrogativa de decidir sobre seus destinos,
desencadeando uma seriação de desigualdades mediante os papeis estabelecidos.
Uma vez demarcados simbolicamente as atribuições de um ou outro gênero, e mais
que isso, o domínio do masculino sobre o feminino, tem-se como resultado dessa construção
social a presença geradora de variadas formas de violência.
A naturalização das desigualdades constitui-se uma premissa que o narrador do conto
aponta como resultado da acomodação social em que se apresentam o universo masculino e o
feminino. Essas categorias sociais, historicamente, são representadas não somente pautadas
na diferença, mas, sobretudo, na desigualdade através das práticas culturais que arregimentam
o poder masculino mediante o discurso instituído socialmente.
As análises acerca do gênero e da transgressão provocam discussões a partir das
formas de representação do masculino e feminino na construção de identidades ancoradas em
sistemas patriarcais e conservadores, estes últimos, por sua vez, constituem-se elementos
imprescindíveis na percepção da protagonista D. Severina e dos personagens Inácio e Borges
que introduzem a descrição do masculino, paralelamente aos costumes e circunstâncias que
cerceiam a representação da mulher, submetendo-a a um ambiente repressor e limitado.
Cada personagem interpreta o mundo à sua volta sob seu próprio prisma, enfatizando
uma ótica particular, embora no contexto narrativo, alguns posicionamentos se sobreponham a
outros, constituindo uma tensão entre o masculino e o feminino, entre o mais forte e o mais
fraco, seja em construções sociais, seja em relação ao dominador e o dominado, em uma
constante relação de poder e necessidade de dominação do outro.
O conto Uns braços permite um diálogo entre discursos que ressignificam a
representação feminina, assim como as convenções que revisitam o sistema patriarcal,
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reapresentando o passado em um contexto quase subversivo, em circunstâncias que apontam
uma possível transgressão da personagem D. Severina, quando esta se afasta
momentaneamente do comportamento exigido para uma senhora comprometida da época,
condição que sugere uma relevante mudança na percepção do feminino.
Machado de Assis desnuda uma sociedade que aglutina passado e as possíveis
transformações de um futuro que se deseja estabelecer,anunciando um princípio de
transgressão à figura feminina, distanciada das limitações que lhes são impostas. A
personagem se encontra em espaços controlados por convenções reguladoras de suas
sentimentalidades. Esta suscita um esforço de se reconstruir distantes dos padrões
convencionais e/ou se submeter às exigências que lhes são impostas, confrontando paradoxos
e reconfigurando a representação do feminino distante do caráter da invisibilidade.
Ainda que timidamente, os conflitos e possibilidades de transgressão do universo
feminino no diálogo instituído por Uns braços,são sufocados, mediados pelos liames sociais,
na perspectiva de se garantir a harmonia no contexto da sociedade representada, visto que a
mulher se submete as condições impostas, sujeitando-se ao caráter de invisibilidade.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado. Várias histórias. In: Obra completa, vol II. Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1985.
FOUCAULT, Michel. A Mulher/Os Rapazes: história da sexualidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997.
HANNA, Vera Harabagi. Machado de Assis em seu tempo, em nosso tempo.
In:GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres;BATISTA, Ronaldo de Oliveira (Org.). Língua e
Literatura: Machado de Assis na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
PIRES, Vera Lúcia. A identidade do sujeito feminino: uma leitura das desigualdades. In:
LUCENA, Maria Inês Ghilard (Org.). Representações do feminino. Campinas, São Paulo:
Átomo, 2003.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

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