a formação de conceitos em alunos com deficiência

Transcrição

a formação de conceitos em alunos com deficiência
A
FORMAÇÃO
DE
CONCEITOS
EM
ALUNOS
COM
DEFICIÊNCIA
INTELECTUAL: ASPECTOS DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM
Roberta Pires Corrêa, Marcia Denise Pletsch
Universidade Federal Fluminense UFF, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
UFRRJ
Palavras-chave: Formação de conceitos; deficiência intelectual; perspectiva histórico-cultural;
Eixo Temático: Práticas pedagógicas inclusivas
INTRODUÇÃO
Ao pensarmos no processo de ensino e aprendizagem de alunos com deficiência
intelectual é preciso ter clareza que, em muitos casos, esses sujeitos em função de suas
especificidades demandam intervenções práticas pedagógicas com recursos alternativos para
garantir
a
apropriação
dos
conceitos
científicos,
aprendizagem
e
consequente
desenvolvimento. Vale mencionar que, a formação de conceitos é um processo que envolve a
tomada de consciência que se desdobra no ato de pensar que requer a apropriação das funções
psicológicas superiores como o desenvolvimento da atenção, memoria lógica e percepção
(VIGOTSKI, 2000). As formas superiores de comportamento consciente acontecem nas
relações estabelecidas com o outro e a cultura.
Com base nesse pressuposto este trabalho discute a partir da perspectiva históricocultural, por meio de um estudo de caso, a formação de conceitos de dois alunos com
deficiência intelectual que frequentam classes comuns de ensino, séries iniciais, em duas
escolas da Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Para
compreendermos a formação de conceitos pelos sujeitos participantes utilizamos uma
adaptação do método de investigação de conceitos do Luria (1986) que nos fornece
informações de como o pensamento se organiza pela palavra no processo de formação de
conceitos científicos, pois “a medida que a criança se desenvolve, mostra-se como se estrutura
a consciência, cuja “célula” é a palavra” (LURIA, 1986, p.57). Cada enlace das palavras
forma bases distintas, conceitos cotidianos e conceitos científicos que são interdependentes.
Quando a palavra se reporta as experiências, ao concreto, eles ficam no significado dos
enlaces imediatos, conceitos cotidianos, que são aprendidos antes da entrada na escola.
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Quando a palavra tem um caráter pragmático e inseri o objeto em uma categoria determinada,
estabelece relações lógico-verbais, há a construção do conceito científico que é aprendido no
espaço escolar.
OBJETIVO
Analisar a apropriação conceitual em alunos com deficiência intelectual a partir das
indicações da proposta de avaliação de conceitos do Luria (1986).
MÉTODO
As novas demandas educacionais nos remetem a busca de uma abordagem que
contemple o cotidiano escolar e os sujeitos envolvidos na sua construção. Por se tratar de uma
pesquisa de campo de cunho qualitativo optamos por utilizar o estudo de caso pela
possibilidade de descrever e interpretar os dados de maneira reflexiva (YIN, 2005). Como
instrumento de análise aplicamos uma adaptação do método de investigação de conceitos do
Luria (1986) nas salas de Recursos Multifuncionais (SRM). A figura a seguir ilustra
sucintamente as etapas dessa prova.
Figura 1 - Etapas do método de investigação de conceitos do Luria
Métodos de
determinação
de conceitos
Raciocínio mais
simples
Método de
comparação e
diferenciação
Raciocínio mais
elaborado
Método de
Classificação
Raciocínio
complexo
Fonte: Elaborado a partir de Luria (1986)
1
As ações junto aos sujeitos Júlio e André foram realizadas em momentos e dias
distintos. Para eles apresentamos dezesseis imagens de animais, impressas em alta definição,
no formato de cartões com a dimensão de 10 cm x 15 cm em papel colorido, que representam
diferentes categorias presentes na classificação: peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos
conforme exposto a seguir:
1
Por uma questão ética em pesquisa os nomes são fictícios respeitando a privacidade dos sujeitos.
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Figura 2 - Imagens de animais
A partir da resposta dos alunos e da mediação dos pesquisadores envolvidos
percebemos como Júlio e André construiram os conceitos a partir das imagens, conforme
indicado, de forma sucinta, no quadro a seguir.
RESULTADOS
Interações de André
Quadro 1: método de determinacão de conceitos
Considerações
Pesquisadora: o que é isto? (mostrando a imagem do porco).
André: “poogo” (vira-se para a pesquisadora e emite o som
onomatopeico característico do porco) – “oin”, “oin”.
Pesquisadora: O que é este?
André já segurando a figura do cachorro diz: “au” “au”.
André virando e desvirando a imagem repete: “au” “au”.
No quadro 1 os alunos não designam por completo
o significado da palavra dada e sim reproduz algum
traço do animal recorrendo a situação prática e a
Interações de Júlio
afetividade. Esse tipo de resposta reflete os enlaces
imediatos não representando a determinação de um
Pesquisadora: Mostrou ao aluno a imagem de um gato
e conceito (LURIA, 1986, p. 59). Em certos
momentos nas interações de Júlio percebemos uma
perguntou: O que é isso?
ausência de consciência ao designar o cachorro
Júlio : “o cacado” (gato).
como pato.
Pesquisadora: É o quê?
Júlio: “cacado” (gato).
Pesquisadora mostra a imagem de um cachorro. O que é isto?
Júlio: “au” “au”.
Pesquisadora: O cachorro é um?
Júlio: “pato” “pato”.
Interações de André
Quadro 2: Método de comparação e diferenciação. O
que há de semelhante?
Luria (1986) nesta etapa espera que o sujeito
consiga sem dificuldades dar uma resposta
Pesquisadora: O que tem de parecido entre eles? Mostra a
imagem do leão e do tigre.
André : “riião”
Pesquisadora: É um leão ou um tigre?
André :É.
Pesquisadora O que eles têm de parecido?
André: “oieesi” (aponta para o elefante em seguida para
categorial (o gato e cachorro são animais) ou ainda
(o gato e o cachorro são animais domésticos). A
tarefa de comparar estes objetos e inseri-los em
uma categoria é muito fácil
(LURIA, 1986, p. 61) entretanto, para eles, não foi
tarefa possível, pois a capacidade de análise,
o separar os traços generalizando-os, não estavam
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tigre) logo depois André se dirige à pesquisadora e com a mão
direita fazendo um gesto faz um som onomatopeico do leão
“ahaaaaa”.
desenvolvidas.
Interações de Júlio
Pesquisadora: O que tem igual entre o cachorro e o gato?
Júlio: “atchot” (gato).
Pesquisadora: O que tem de igual entre o cachorro e o gato?
Júlio: A pata “Ábabababa”
Pesquisadora: Não entendi o quê?
Júlio continuava a olhar para o cachorro e dizia: “Ococo”.
Interações de André
Quadro 3: Método de comparação e diferenciação. O
que há de diferente?
Pesquisadora: E esse aqui é o... (ela coloca as figuras do
cachorro e do gato lado a lado).
André: “aatú” (gato).
Pesquisadora: O que ele tem de diferente entre o gato e o
cachorro?
André: “au” “au” “ava”.
Pesquisadora: O que você acha que tem de diferente no
cachorro e no gato?
André: “miau”.
Interações de Júlio
A investigação encerra-se porque o aluno não conseguiu
alcançar os objetivos da proposta no segundo momento e
terceiro momento.
André estabelece as diferenças implicitamente
quando a pesquisadora pergunta em dois
momentos: O que ele tem de diferente o gato do
cachorro? Ele primeiro diz “au au” e no segundo
momento quando indagado ele responde “miau”.
André descreve o som dos animais, separando os
traços concretos do cachorro e do gato, não
introduz os animais em uma categoria abstrata
ficando na interação imediata em suas experiências
adquiridas no meio cultural, porque ele teve a
experiência de ver o cachorro latindo e o gato
miando (LURIA, 1986, p. 62).
Fonte: Elaborado pelas autoras.
DISCUSSÃO
Os resultados da nossa pesquisa evidenciaram que os alunos ainda apresentam
especificidades no que diz respeito a construção de conhecimentos científicos. O
desenvolvimento ocorre quando o aluno se apropria dos recursos culturais presentes na
sociedade que é sistematizado na escola. Nas palavras de Leontiev:
Podemos compreender de forma adequada o papel condutor da educação e da
criação, operando precisamente em sua atividade e em sua atitude diante da
realidade, e delimitando, portanto, sua psique e sua consciência (LEONTIEV, 1988,
p).
Luria esclarece que por mais simples que possa parecer à primeira vista a referência
objetal é produto de um longo desenvolvimento (LURIA, 1986). André e Júlio estão na
primeira etapa do processo, segundo indicado pela nossa pesquisa, em que a palavra esta
entrelaçada com a situação, gesto e a mímica (LURIA, 1986). Ambos os alunos não chegam a
completar a última etapa, classificação livre, que tem por objetivo separar os animais em
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grupos de maneira conceitual. Ou seja, ainda apresentam especificidades em relação a
abstrações e generalizações necessárias para efetivar esta etapa.
Essa fase nas considerações de Luria o caminho percorrido até as relações lógico
verbais, transitando do conceito cotidiano para o científico, “só ocorre com a educação”
quando a palavra adquire sua função generalizadora e analítica (p.59). Sem a capacidade de
pensar conceitualmente é impossível a consciência do ser humano (VIGOTSKI, 1995). Neste
sentido, podemos inferir que apesar dos avanços na conquista dos direitos educacionais,
sobretudo com o advento das políticas de educação inclusiva, as pessoas com deficiência,
aqui com deficiência intelectual, ainda não conquistaram o pleno direito a aprendizagem e
consequente desenvolvimento.
CONCLUSÃO
A escola deveria ser por excelência um espaço para a construção dos saberes
respeitando o ritmo de aprendizagem de cada aluno para proporcionar o seu desenvolvimento.
Nesse sentido, esperamos que nossa pesquisa possa promover reflexões sobre o papel social
da escola em contextos ainda marcados pela desigualdade social, a qual se reproduz
historicamente no ambiente escolar e nas práticas pedagógicas ali desenvolvidas. Igualmente,
os resultados de nossa investigação, em andamento, evidenciam possibilidades e caminhos
para a escolarização de alunos com deficiência intelectual, desde que sejam oferecidas
práticas pedagógicas que favoreçam a apropriação de conceitos científicos articulados com as
demandas culturais dos sujeitos e o contexto social em que estão inseridos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEONTIEV, A. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento infantil. Vygotsky, Luria e
Leontiev. In: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Edusp, 1988.
LURIA, A. R. Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1986.
VYGOTSKY, L. S. A. A Construção do Pensamento e da Linguagem. - São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
___. Obras Escogidas. Vol. III. Madrid: Visor, 1995
YIN, Robert K. Estudo de Caso, planejamento e métodos. 2.ed. São Paulo: Bookman, 2005.
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