Avaliação Neuropsicológica de Luria e os Princípios de

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Avaliação Neuropsicológica de Luria e os Princípios de
AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA DE LURIA E
OS PRINCÍPIOS DE REABILITAÇÃO
JANNA GLOSSMAN
TRADUÇÃO: CARLA ANAUATE
Eu fui uma aluna e colaboradora de Alexander
Romaniovich Luria de 1967 até a sua morte em
1977. É a maior alegria da minha vida.
Durante os anos 20, Luria e Vygotsky
começaram a fazer os primeiros experimentos
em pacientes com lesão cerebral. Eles
formularam os princípios gerais da nova
abordagem para analisar o processo de
organização psicológica. Em primeiro lugar, eles
tentaram especificar o relacionamento entre
formas elementares e superiores de atividade
psicológica e sua organização cerebral em
adultos sadios. Em seguida Luria e Vygotsky
determinaram possíveis mudanças nos processos
psicológicos que podem aparecer em diferentes
formas de lesão cerebral, e aquelas que podem
ser esperadas no desenvolvimento ontogenético
patológico precoce.
Então, a abordagem principal de Luria começou
com a análise da estrutura psicológica da função
mental superior para depois descrever seus
distúrbios. Gostaria de mencionar que seu livro
mais importante intitula-se “ Funções Corticais
Superiores no Homem (primeiro, J.G.) e (depois)
Seus Distúrbios em Lesões Cerebrais Locais”
(Luria, 1966).
Esta abordagem permitiu que Luria revisasse os
princípios da avaliação neuropsicológica: “ Em
trabalhos
experimentais
um pesquisador
normalmente começa por escolher um problema
específico. Em seguida ele constrói uma hipótese
e seleciona métodos para testar a sua hipótese. O
pesquisador organiza questões no intuito de
facilmente focalizar sua atenção naqueles fatos
que irão provar ou refutar sua hipótese. O mesmo
poderá ignorar todos os dados que não vão
contribuir para sua análise do problema e que
não vão provar a sua hipótese. Em contraste, no
trabalho clínico, o ponto de partida não é um
problema claramente definido mas uma série de
problemas e de recursos desconhecidos, ou seja,
o próprio paciente. O investigador clínico
começa fazendo observações cuidadosas do
paciente no esforço de descobrir fatos cruciais.
No começo, ele não pode ignorar nada. Até os
dados que, em princípio, pareçam insignificantes
podem se tornar essenciais. Em algum ponto os
contornos vagos dos fatores que parecem
importantes começam a aparecer, e o
investigador forma uma hipótese experimental
sobre o problema. Mas ainda é cedo para o
mesmo falar definitivamente se os fatos que ele
selecionou são importantes para o problema ou
irrelevantes. Somente quando o investigador
achar um número suficiente de sintomas
compatíveis
que
juntos
formam
uma
“síndrome”ele tem o direito de acreditar que sua
hipótese sobre o paciente pode ser provada ou
rejeitada. (The Making of Mind, p. 132).
Cada processo cognitivo é abastecido por
atividades combinadas de várias áreas cerebrais,
sob a condição de que cada área introduza sua
própria contribuição específica para os processos
integrativos.
Para clarear, eu vou introduzir e explicar alguns
termos utilizados por Luria.
Funções Mentais Superiores – são processos
complexos de auto-regulação. São de origem
social, sendo que sua estrutura é mediada e a
forma de seu funcionamento é consciente e
voluntária. Este entendimento pressupõe que a
função mental superior é um sistema funcional
consistindo de muitos componentes, cada qual
baseia-se no trabalho de uma área especial do
cérebro e realiza seu papel especial no sistema.
“A presença de uma tarefa constante (invariável),
executada por um mecanismo variável (variável)
, leva o processo a um resultado constante
(invariável), sendo este um dos aspectos básicos
distinguindo o trabalho de cada sistema
funcional. O segundo aspecto que distingue é a
composição complexa do sistema funcional que
sempre inclui uma série de impulsos aferentes
(de ajustamento) e eferentes.” (A . R. Luria, 1981
Fundamentos da Neuropsicologia: Editora da
USP) Como está descrito neste livro, que eu
estou muito feliz de apresentar à biblioteca do
IPAF, a comunicação humana pode ser
representada por um sistema funcional.
O próximo termo importante é Fator
Neuropsicológico – uma unidade estruturalfuncional que é caracterizada por um princípio
definido da atividade e do funcionamento
(modus operandi) psico-fisiológico. Este fator
reflete, por um lado, um tipo definido de
funcionamento do cérebro quando em
funcionamento, proporcionado por redes neurais
de uma certa área do cérebro. Por outro lado, este
fator tem um significado psicológico, sendo um
importante elemento do sistema funcional
psicológico. O distúrbio do fator leva ao
aparecimento de uma determinada síndrome.
Síndrome é obrigatoriamente uma constelação de
sintomas, causadas por um certo déficit primário
(fator psicológico). Há sintomas primários,
secundários e terciários (compensatórios)
definidos dentro de uma síndrome.
- Sintoma Primário é o distúrbio da função
mental, imediatamente associada a lesão de uma
determinada área do cérebro conectada com o
distúrbio de um fator particular.
- Sintoma Secundário é o distúrbio da função
mental, aparecendo como uma conseqüência
sistêmica do sintoma primário (ou do déficit
primário) em função das suas relações dentro do
sistema.
- Sintoma Terciário (compensatório) é uma
mudança no trabalho de uma função mental,
conectada com a reorganização do sistema que
trabalha de forma patológica.
Análise da síndrome (sinônimo: análise fatorial)
é uma análise dos sintomas observados com o
objetivo de achar uma base comum (fator) que
explique sua origem. Supõe um procedimento
passo a passo que inclui a comparação de todos
os sintomas observados, uma estimativa
qualitativa destes sintomas, a descoberta de suas
bases comuns, detectando, assim, o déficit
primário e suas conseqüências sistêmicas e sua
reorganização compensatória.
Para clarear eu darei um exemplo, o mesmo que
Luria deu para mim, quando eu era sua aluna.
Ele descreveu o sistema funcional da atividade
que estava sendo realizada na sala de
conferência. Vocês percebem que há uma
atividade verbal de expressão (minha palavra) e
uma atividade de impressão (a sua escuta).
O primeiro fator é um nível suficiente de
ativação, relacionado com o tronco cerebral,
gânglios da base e sistema límbico. Um distúrbio
destas 3 regiões do cérebro reflete na fala, na
espontaneidade, exaustão, atenção flutuante,
micrografia e outros sintomas sub-corticais.
Então, cada um de nós precisa de boa motivação
e regulação voluntária relacionada ao córtex préfrontal. Sua lesão provoca distúrbio verbal
secundário devido a falta de intenção,
programação e seletividade do comportamento.
O próximo passo é discriminar fonemas e
entender o significado da palavra pronunciada.
Isto está comprometido nas afasias sensoriais
(acústico-gnóstico de acordo com a classificação
de Luria) pós-lesões na região temporal superior
esquerda. Uma não compreensão se revela nas
parafasias e paragrafias literais da fala
expressiva. É importante enfatizar que em cada
afasia, a fala está comprometida como um
sistema, incluindo ambas as funções expressivas
e impressivas, em cada forma da atividade verbal
(fala oral, leitura, escrita, compreensão,
nomeação, repetição e etc.)
Seguindo, a percepção de som inclui ambas
discriminações fonemática e sinestésica. Em
lesões da região pós-central esquerda, o paciente
com afasia motora eferente, também apresentará
parafasias e paragrafias literais, porém de
natureza diferente:
confundem sons não
contrastantes (como: lê-nê-dê) e fonemas
contrastantes (como: dê-tê) como acontecem nas
afasias sensoriais.
O próximo passo é organizar os sons (ou letras)
na seqüência certa (para distinguir “palm” de
“lamp”). A organização sinestésica fica
comprometida pós-lesões da região pré-motora
esquerda, provocando afasia motora eferente e
perseveração nas esferas verbal e motora.
Para falar ou entender uma série de palavras uma
pessoa precisa de certo volume e memória
auditiva que estará reduzida depois de lesões da
região temporal média esquerda. A síndrome da
afasia acústico-mnésica inclui compreensão,
problemas de nomeação e repetição, parafasias
verbais e a fala.
Outro mecanismo necessário para compreensão e
realização de sentenças é a síntese simultânea
das palavras em estruturas gramaticais. Fica
comprometida depois de lesões da região
temporo-parieto-occipital
do
hemisfério
esquerdo. Um paciente com afasia semântica
compreende bem palavras isoladas mas o sistema
inteiro de conexões de palavra fica
profundamente comprometido (especialmente
conexões quasi-espaciais como : em cima /
embaixo, antes / depois e etc.). Problemas da
análise e síntese espacial podem também ser
revelados em praxias, gnosias, desenhos e outras
atividades mentais, sendo esta, portanto, a
Análise de Síndrome do Luria.
A.R. Luria descreveu 2 grupos principais de
síndromes neuropsicológicas: pós-lesões das
regiões anterior e posterior do cérebro (Slide 9).
- Reações impulsivas (desinibição de respostas
imediatas)
- Apraxia e agnosia secundária
III. Síndrome Frontal Médio-basal
- Perda da espontaneidade
- Exaustão
- Atenção e atividade flutuante
- Defeitos de orientação no tempo e na situação
- Comprometimento da seletividade
- Micrografia
Vamos
passar
agora
às
síndromes
neuropsicológicas em lesões de regiões
posteriores do cérebro.
I. Síndrome Occipital ou Occipito-parietal
- Agnosia do objeto
- Agnosia simultânea
- Agnosia para cor
- Agnosia óptico-espacial
- Hemi-negligência espacial esquerda
- Desenho
- Apraxia espacial e construtiva
II. Síndrome TPO
- Desordens polimodais na análise e síntese
espacial
- Acalculia primária
- Afasia semântica
- Apraxo-agnosia espacial
O primeiro grupo inclui:
I. Síndrome Pré-motor (pós-frontal)
III. Síndrome Parietal
- Afasias e agrafias motoras eferentes
- Apraxia dinâmica
- Afasia dinâmica
- Apatia no funcionamento cognitivo
II. Síndrome Pré-frontal
- Nenhuma reclamação ativa
- Perda de atitude crítica frente aos próprios erros
- Comportamento dependente do ambiente
- Comprometimento da regulação voluntária do
comportamento
- Agnosia tátil
- Aesterognosia
- Agnosia digital
- Alexia tátil
- Afasia aferente motora
IV. Síndrome Temporal
- Afasia sensorial (acústica-gnóstica)
- Afasia acústico-mnésica
- Agnosia acústica
- Amusia
A avaliação neuropsicológica de Luria inclui:
- Sentenças
- Estórias
- Série de Imagens (Objetos Reais e Desenhos
Abstratos)
- Série de Movimentos
I. Características gerais dos pacientes
VI. Inteligência
- Atividade geral do cérebro
- Orientação no tempo e no espaço
- Atitude crítica e de auto-consciência
- Adequação do comportamento
- Estado da esfera emocional
- Cálculos
- Solução de Problemas
- Compreensão do Significado de Histórias
Verbais
- Entendimento de Estórias em Quadrinhos
- Seleção de Analogias
Luria criou uma bateria de testes conhecida em
todo mundo para revelar estas síndromes.
II. Atividade Motora
- Coordenação Recíproca
- Praxia Digital
- Praxia Dinâmica
- Praxia Espacial
- Praxia Construtiva
- Praxia Oral
- Reações Convencionais
- Desenho
A teoria de Luria das 3 unidades funcionais
(blocos) do cérebro é de grande utilidade na
análise dos dados do exame Neuropsicológico. A
participação de todas as três unidades é
necessária para qualquer tipo de atividade
mental.
III. Funções Gnosticas
- Percepção Acústica
- Reconhecimento do Objeto
- Gnosia Espacial
- Percepção Cutânea-sinestésica
- Gnosia para Rostos
- Percepção da Cor
IV. Funções Verbais
- Fala Automática
- Fala Espontânea
- Nomeação
- Repetição
- Entendimento de Palavras
- Entendimento de Construções
Gramaticais
- Leitura
- Escrita
Lógicas
V. Memorização, reprodução direta e com
interferência
- 10 Palavras Isoladas
- Uma Série de Palavras
- A primeira unidade inclui o tronco cerebral,
os gânglios da base e o sistema límbico.
Proporciona um nível ótimo de ativação de
outras estruturas cerebrais através de uma relação
dupla recíproca com o córtex, ambas
influenciando o tônus (condições de atividade) e
regulando a própria experiência.
- A segunda unidade inclui os lobos temporal,
parietal e occipital do córtex. Sua função
primaria é a recepção, análise, e armazenamento
da informação.
- A terceira unidade inclui o lobo frontal.
Envolve a programação, regulação e controle das
ações humanas.
Como já foi citado anteriormente, a abordagem
de Luria pressupõe a análise qualitativa dos
sintomas que estão sendo estudados, baseados no
entendimento dos fatores, sublinhando as
atividades psicológicas complexas. A avaliação
quantitativa dos comprometimentos é de grande
valor para determinar as dinâmicas das mudanças
do funcionamento cognitivo durante o follow-up
neuropsicológico, e para medir a evolução dos
procedimentos de reabilitação e compensação.
Combinar a análise qualitativa com a quantitativa
se torna muito importante na atual fase do
desenvolvimento neuropsicológico.
Existem duas possibilidades para combinar as
duas abordagens. Uma é aplicar a ênfase
qualitativa de Luria na análise da síndrome para
medidas psicométricas (Glozman & Tupper,
1995). Outra possibilidade é trabalhar no critério
de avaliação para a bateria de Luria. Esta tarefa
foi utilizada pelo próprio Luria: no seu “Tópicos
do Exame Psicológicos” (1973) sendo que a
magnitude de cada sintoma deverá ser avaliada
numa escala de 3 pontos: “ausente”,
“moderado”e “severo”. Os discípulos de Luria
tentaram trabalhar critérios de avaliações mais
diferenciados, para crianças e adultos, baseados
em avaliações psicológicas de cada estrutura de
tarefa e na análise qualitativa dos tipos de erros e
suas condições, podendo, então, viabilizar a sua
correção (Pylayeva, 1978; Tsvetkova et al.,
1981; Krotkova et al., 1983; Wasserman et al.,
1987; Glozman, 1999).
Nós propusemos um sistema generalizado de
quantificação do método do exame de Luria,
discutidos acima, em 6 esferas do funcionamento
cerebral. Este sistema de quantificação está
descrito em um livro que eu, também, trouxe
para o IPAF. O Dr. Quintino tentará possibilitar a
tradução deste livro que está em Russo
(Glozman, 1999).
A particularidade da nossa abordagem consiste
em trabalhar o sistema duplo de avaliação da
performance do paciente: o primeiro passo é
fazer uma lista de possíveis defeitos em cada
tarefa completando todas as 6 esferas mentais
(avaliação qualitativa). O examinador coloca o
sinal mais ou menos para cada item da lista.
Resultando em: 1) um padrão neuropsicológico
de desordens cognitivas para cada paciente
examinado;
2)
um
típico
padrão
neuropsicológico de desordens cognitivas para
cada grupo estudado de pacientes; 3) uma
dinâmica de padrões pós-tratamento, ou seja, o
desaparecimento de alguns sintomas (dinâmicas
positivas) ou o aparecimento de novos
(dinâmicas negativas). O segundo passo é avaliar
quantitativamente a magnitude de cada sintoma e
a severidade do distúrbio em cada área funcional.
Avaliando, também, o resultado resumido dos
distúrbios cognitivos em um dado paciente para
compor um exame completo de cada esfera
funcional. Tornando-se, portanto, uma expressão
quantitativa do padrão dos distúrbios e do nível
da performance do paciente.
Nós trabalhamos em um sistema de teste de 6
pontos objetivados por referências normativas,
(testagem preliminar de sujeitos sadios
combinados por idade e educação), levando em
consideração a qualificação dos sintomas
(defeitos primários e secundários), condições de
correções de erros e a possibilidade de realizar o
teste com sucesso com ou sem assistência
externa.
Vamos passar agora para a segunda parte do
artigo: abordagem de Luria para reabilitação.
Luria formulou os principais princípios da
reabilitação: a desinibição de funções
temporariamente inibidas, proporcionando o
funcionamento das habilidades funcionais de
áreas simétricas preservadas de outro
hemisfério e a utilização de componentes
preservados
do
sistema
funcional
comprometido.
O primeiro princípio indica, que distúrbios
funcionais aparentemente similares pós-lesão
cerebral podem ter naturezas diferentes: uma
dissolução estável de uma função ou a sua
inibição temporária. Esta última é fortemente
influenciada pela restauração espontânea. Não só
um tratamento farmacológico ativador bem como
uma mudança de atitudes através da psicoterapia
podem ser métodos eficientes de desinibição.
Dois últimos princípios (proporcionando o
funcionamento de áreas preservadas de outro
hemisfério ou componentes preservados do
sistema funcional comprometido) compõe a
reconstrução ativa do sistema funcional de Luria.
Pode ocorrer através de uma reconstrução
intrasistema e intersistema que se dá por uma
utilização de componentes preservados ou
reservados do mesmo sistema funcional,
substituindo o componente comprometido. Pode
também ocorrer pela inclusão da atividade
comprometida em um novo sistema funcional,
pelo uso de algumas novas formas e jeitos de
mediação, pela transferência da atividade de
nível subcortical (involuntário) para um nível
cortical (voluntário) ou pela substituição de
operações sucessivas por operações simultâneas
e vice-versa. Por exemplo, a pronuncia de sons
(análise sinestésica) é o componente reserva do
sistema funcional da escrita, importante para a
formação da escrita na criança, porém não é
mais necessário para a escrita de adultos sadios,
sendo eficiente somente no suporte de agrafia.
desenvolvimento da mente, descritos por Luria
e Vygotsky em primeira instância no modelo
histórico-cultural
(mediado
por
signos)
proporcionando o desenvolvimento das funções
mentais na criança (Vygotsky & Luria,
1930/1993) e em seguida analisados pelo
processo de reabilitação.
Um bom exemplo de reconstrução intersistema é
o uso do sistema visual (pisando nos pedaços de
papéis no chão) como forma de ajudar pacientes
com Doença de Parkinson a andar. Este método
foi proposto por Luria e Vygotsky nos anos 20.
O processo de interiorização faz a função
mediada por meios externos se tornar a função
auto-regulada. Uma atividade partilhada entre
paciente e psicólogo é transformada em um
comportamento próprio, possível de ser
reproduzido em diferentes situações.
Também mostraram, que os movimentos fracos
da mão de um paciente com Doença de
Parkinson se tornam intensos, quando a atividade
motora de pressionar um bulbo é mediada pela
contagem. Este princípio de reconstrução de
processos psicológicos transferidos para outro
nível de regulação, foi utilizado muito por Luria
e seus seguidores em trabalhos de reabilitação.
Portanto, a principal abordagem da
reabilitação é a seguinte: Depois de determinar
qual das ligações da atividade estão
comprometidas, o neuropsicólogo determina
quais ligações permaneceram intocáveis. No
tratamento do distúrbio, Luria tentou usar o
restante das ligações, as quais ele suplementou
com auxílio externo para reconstruir a atividade,
como base no novo sistema funcional.
COMPONENTES RESTANTES DO
SISTEMA FUNCIONAL
+
AUXÍLIOS INTERNOS E EXTERNOS
=
NOVO SISTEMA FUNCIONAL
Um período considerável de treinamento talvez
seja necessário para construir e manter o novo
sistema funcional, mas no final deste período,
deve ser possível para o paciente realizar a
atividade sem assistência externa.
Tal possibilidade é o resultado do processo de
interiorização – princípios fundamentais de
A. R. Luria escreveu, que “a reeducação e a
orientação da atividade possibilita ao paciente
um sistema com meios eficientes sendo esta a
principal forma de restaurar a função
comprometida.” (Luria, 1948, p.222).
Para dar um outro exemplo de como este
princípio de mediação pode ser usado em
reabilitação, eu descreverei alguns métodos para
restaurar o significado lexical e a compreensão
da palavra, ambos em afasias e em crianças com
deficiência de linguagem, ou seja, com
problemas de nomeação. O primeiro passo é
restabelecer (para formar) uma relação entre a
imagem, a escrita e a palavra ouvida. O sujeito
tem que classificar as figuras quando as palavras
forem escritas e lidas pela professora, em seguida
deve copiar o nome da imagem no arranjo de
palavras
fornecido.
Nós
gradualmente
aumentamos o número de figuras e reduzimos a
mediação externa. De um arranjo de palavras
para uma escrita não mediada, de uma cópia para
uma escrita independente e assim por diante. Um
número considerável de exercícios é necessário
para estabelecer e para internalizar a relação
entre a palavra e sua imagem, transformando em
imagem externa a sua representação interna.
Um exeemplo é a classificação no que se refere a
aspectos semânticos.
O último passo é o chamado “método de
processamento semântico de palavras”.
A
imagem,
as
questões
propostas,
os
procedimentos de análise e o uso destas palavras
em sentenças e textos são mediados e
restabelecidos nas relações semânticas das
palavras. Estes métodos provaram sua alta
eficiência tanto em crianças quanto em adultos.
Três tipos principais interrelacionados de
mediação podem ser usados como reabilitação:
dicas visuais (incluindo marcas externas para
andar,
arranjos
de
escrita,
números
externalizados para contar e treino de atenção)
dicas semânticas (incluindo a análise lógica ao
contar e resolução de problemas, relações
semânticas para memorização de palavras,
relação de imagem e palavra para vocabulário e
memorização) e dicas emocionais (incluindo
métodos de computador, jogos especiais, criação
de situações de competição para treinar funções
espaciais e vocabulário).
Também deve ser colocado, que durante o
processo de reabilitação, o neuropsicólogo tenta
dar ao paciente o máximo de feedback possível
referente a ambos o defeito e o efeito das ações
do paciente. Este feedback dá ao paciente
informações que são cruciais para a
reorganização do requerido sistema funcional e
sua consecutiva interiorização.
Outro ponto importante são as conseqüências
sociais da lesão cerebral. “A tragédia das vítimas
de lesões cerebrais é mais a perda de transações
na vida, do que a perda de habilidades físicas”
(Christensen & Uzzell, 1987, p. XV). O
problema da Qualidade de Vida, está
relacionado ao tópico mais crucial da psicologia,
no caso: a auto-percepção, relações familiares,
efeitos do stress e como lidar com a situação,
interface da saúde mental e física e assim por
diante. Qualidade de Vida é um novo e
importante conceito na avaliação de deficiências.
Pode ser considerada como um resultado dos
cuidados de saúde e reabilitação ou um status de
saúde e um sinal de deficiência funcional,
progressão da doença ou regressão ou a
manifestação de circunstâncias sociais e
condições externas bem como a construção
interna subjetiva de auto-avaliação e bem-estar
psicológico (Glozman, 1991, 2002; Murell,
1999; Phillips, 1993).
Em outras palavras: Qualidade de Vida é uma
construção subjetiva ou objetiva? É evidente,
que Qualidade de Vida é um fenômeno
multidimensional que necessita de uma
abordagem integrada para conceitualização. A
Qualidade de Vida é determinada basicamente
pela severidade da doença e pela eficiência da
reabilitação ou pela personalidade do sujeito?
A última resposta para esta questão determina a
abordagem centrada no paciente em reabilitação,
ou seja, o foco primário na experiência de
indivíduos, suas interpretações subjetivas e seu
conhecimento pessoal de saúde e doença, suas
estratégias de lidar com a realidade, auto-estima,
bem-estar emocional e interação social. A
abordagem centrada na pessoa tem sido
considerada como não tendo rigor científico, mas
está se tornando mais e mais reconhecida. Ela
permite
explicar,
porque
pessoas
que
aparentemente estão expostas a algum dano, que
até lidam com a realidade de maneira similar e
tem suporte social equivalente tendo diferentes
graus de exaustão e depressão evoluem
diferentemente após a reabilitação. Do ponto de
vista da abordagem centrada na pessoa a
Qualidade de Vida “significa a percepção e
avaliação do paciente (ele ou ela) do impacto da
doença e as conseqüências produzidas na vida
dele ou dela.” [Martinez, 1997, p. 6 ] A ideal
Qualidade de Vida exige a auto-satisfação do
paciente com aspectos mentais e físicos de sua
vida e o resultado do programa de reabilitação.
Eu considero que a Qualidade de Vida do
paciente e a sua satisfação com o tratamento
deve ser calculado, não tanto pelo grau absoluto
da habilidade preservada (“quantidades”de vida),
mas pela preservação relativa comparada ao
nível pré-morbido da habilidade. Fatores
emocionais e sociais, funcionamento familiar e
de lazer estão intimamente associados com a
Qualidade de Vida de uma pessoa. Por exemplo,
habilidades em ajudar os outros ou fazer
contribuições significativas a família foram
trazidas pelos sujeitos entrevistados como
essenciais para manter a qualidade de suas vidas
(Phillips, 1993). Um inventário especial também
provou que atividades relacionadas a família são
tão importantes para o sujeito como atividades
profissionais (Glozman, 1991).
O próximo problema é que pessoas cronicamente
deficientes podem com freqüência desorganizar a
vida de uma família inteira, mudar o estilo de
vida geral e desequilibrar o equilíbrio
estabelecido dentro da família.
Apesar das famílias serem o recurso mais valioso
e vulnerável para pacientes deficientes, os
membros da família executam um papel
importante
ao
apoiar
seus
parentes
comprometidos. A ênfase da pesquisa foi na
pessoa com a doença e no processo da doença e
não nos cuidadores.
Cuidar não deve ser um evento transitório que
vai e vem: é uma situação que exerce permanente
pressão cotidiana e transforma a vida do
cuidador e a do doente. Pode limitar as condições
do cuidador em proporcionar ajuda aos
familiares comprometidos de maneira mais
completa e mais longa como o mesmo gostaria
ameaçando o seu bem-estar físico e emocional. A
depressão do cuidador pode também resultar de
testemunhar o declínio e antecipar a morte do ser
amado.
Cuidar é portanto representativo de muitas
situações podendo resultar em um estresse
crônico. Cuidadores correm grandes riscos de
depreciar sua qualidade de vida por causa do
tempo e energia que envolve proporcionar os
cuidados necessários. Muitos cuidadores deixam
seus empregos ou reduzem seu horário para
desenvolver tarefas de cuidado. É importante
perceber que mesmo em casos, em que pacientes
estão bem controlados com medicação de
maneira a fazer poucas, se alguma, demanda ao
cuidador, estes podem experimentar estresse
emocional. O cuidador apresenta disposição para
dar o apoio necessitado, inabilidade de
compartilhar atividades, planos e problemas
domésticos prazerosos, para os quais não há
tempo, sensação de estar, sem querer, preso a
atividade de cuidado e uma incerteza sobre o
prognóstico da doença. Apoio emocional, que é
manter a interação social e animar o paciente, é
uma das tarefas universais do cuidador,
demandando “doação emocional” do mesmo.
Doação emocional exerce uma sobrecarga
emocional sobre o cuidador, perigosa para a sua
saúde mental e seu bem-estar emocional.
Freqüentemente parece ser uma experiência de
grande fardo devido aos aspectos físicos de
cuidados proporcionados que podem irradiar a
outras áreas da vida.
Para generalizar eu gostaria de propor o seguinte
esquema de fardo familiar:
FARDO FAMILIAR
Bem-Estar Económico:
. decréscimo da atividade profissional
. gastos do paciente com medicação e consultas
médicas
. estresse e perda de entradas financeiras
. necessidade de tratamento
Saúde Física:
. fadiga e exaustão
. depressão
Funcionamento Social:
. conflito quanto ao cuidador não ter um emprego
. menos contatos sociais
. raras possibilidades de saídas para lazer
. raras possibilidades de férias
Bem-Estar Psicológico:
. mudança de papéis dentro da família
. privação afetiva e doação emocional
. decréscimo na habilidade de cuidar de outros
parentes
. conflito familiar
É possível identificar três grupos principais de
determinantes possíveis de decréscimo na
Qualidade de Vida do cuidador.
Fatores Relacionados Ao Decréscimo De
Qualidade De Vida Do Cuidador
Clínico:
. Forma da doença
. Estágio da doença
. Duração da doença
. Desordens cognitivas e comportamentais
Fatores Psicológicos:
. Relação familiar
. Estratégias de como lidar melhor com a
situação
. Percepção da disponibilidade para apoiar
. Duração do casamento
Fatores Sócio-Demográficos:
. Idade do paciente e do cuidador
. Seus níveis de educação
. Seus status financeiro
. Posição que o cuidador ocupa na família
Por exemplo, cuidadores mais velhos são mais
suscetíveis a sobrecarga do que mais novos, mas
os mais novos sofrem mais do ponto de vista do
isolamento e da alienação de um mundo social,
resultado de uma constrição das atividade sociais
e de lazer. Cuidadores femininos ficam
significativamente mais perturbados do que os
masculinos. Porém, cuidadores masculinos
aparentam um acréscimo significativo de
sintomas depressivos com o tempo.
Dois processos (avaliação cognitiva e a
capacidade de lidar com a situação e os próprios
recursos) foram identificados como importantes
mediadores entre situações estressantes, tais
como, cuidar e as consequências psicológicas
para o indivíduo. O fardo que um cuidador
carrega é menos afetado pelos atuais sintomas,
do que pela percepção que o mesmo tem dos
sintomas da pessoa cuidada, da atitude ou
resposta emocional do paciente em relação ao
cuidador; da percepção da própria adequação
para lidar com o estresse e de até que ponto o
cuidar tem um impacto adverso na sua própria
vida. O conhecimento que o cuidador tem
referente a doença de um familiar, ou seja sua
preparação para cuidar, bem como sua previsão
de situações de cuidado, influenciam muito na
Qualidade de Vida do cuidador.
Nós trabalhamos com um questionário
compreensivo, que não consome muito tempo,
cobrindo as atividades do cuidador em várias
diferentes perspectivas: profissional, relacionado
a família, social e outras (Glozman, 2002).
Outros resultados revelaram, que 100% dos
cuidadores examinados que cuidavam de
pacientes com a Doença de Parkinson
manifestaram algum grau de desordem de
adaptação, tendo um decréscimo nas suas
Qualidades de Vida. Os principais aspectos da
diminuição da Qualidade de Vida foram:
dificuldade em ou impossibilidade de lidar com
responsabilidade de emprego (todos os
cuidadores que não estão aposentados,
apresentaram falta de adaptação moderada ou
severa tendo que deixar o emprego ou reduzir
seus horários de trabalho para exercer as tarefas
de cuidador); perda da possibilidade de sair para
atividades de lazer ou férias; problemas no
gerenciamento da casa; aumento da necessidade
de tomar conta; sensação de falta de tempo
permanente e dificuldades em atender as
necessidade de seus filhos ou outros parentes que
eram executadas anteriormente, com, as vezes,
conseqüências negativas na atividade escolar
destas crianças. Também houveram sintomas de
distúrbio
nas
relações
familiares,
predominantemente esposas, que reclamaram
que, agora, raramente discutem planos e
problemas familiares com os seus parentes tendo
que decidir tudo sozinhas enquanto que, antes da
doença, o marido era o líder da família e a pessoa
que tomava as decisões.
Nossos dados também sugerem que a Qualidade
de Vida está relacionada não ao resultado
resumido das desordens cognitivas da pessoa
cuidada, mas a desordens específicas. São estas:
desordens da atividade mental, instabilidade
emocional, exaustão, perda de crítica quanto aos
seus próprios defeitos e desordens de orientação
quanto ao tempo e espaço, que foram reveladas
referentes ao grau de diminuição na Qualidade
de Vida do cuidador.
Portanto, o lar deve ser reconhecido como um
centro de cuidado e a díade cuidador-paciente
deve ser vista como uma unidade no sentido de
detectar situações problemáticas almejando
intervenção apropriada e eficiente pelos
profissionais, pois pacientes e cuidadores
reciprocamente afetam um ao outro e ao
profissional. Estas intervenções devem ser
ajustadas constantemente, como mudanças
funcionais ocorrem, e devem ser incorporadas,
tanto quanto possível, no estilo de vida da
família.
Para concluir, deixe-me citar os pontos teóricos
principais da abordagem de reabilitação de
Luria:
possibilitem ao paciente executar a atividade sem
auxílio externo.
. O processo de reabilitação é orientado pelos
objetivos pessoais do paciente e de sua família.
. O resultado da reabilitação inclui funções
cognitivas,
psico-sociais,
emocionais
e
comportamentais.
. Funções corticais superiores são concebidas
originalmente como sociais, mediadas pela fala e
consciência na sua execução.
. Uma qualificação cuidadosa do sintoma e uma
avaliação individualizada dos distúrbios é
herdada no programa de reabilitação. O principal
objetivo da avaliação é revelar os pontos fortes
do paciente, que são os componentes preservados
no sistema funcional comprometido e as formas
preservadas na atividade do paciente sendo
usadas na reconstrução deste sistema funcional.
. O último passo da reabilitação é internalizar e
automatizar um novo sistema funcional, de
acordo com os procedimentos treinados, que
Eu espero, que o meu artigo prove com evidência
que “o Lurianismo representa hoje um corpus
doctrinae compreensivo em neuropsicologia,
uma espécie de flamma perpétua com seus
pontos fortes e fracos. Porém esta abordagem
imaginativa, inteligente e criativa sempre gerará
discussões frutíferas e novas idéias...” ( PeñaCasanova, 1989, p.167).
Nota da tradutora: É com imensa honra e prazer
que realizei a tradução desta conferência.
Procurei ser fiel ao texto original preservando
tanto o conteúdo quanto o seu caráter
discursivo.
References:
E.D. Homskaya “Alexander Romanovich Luria. Scientific biography” Moscow: Voenizdat, 1992; English
translation: Kluwer Academic / Plenum Publishers 2001
A. R. Luria “The making of mind”, Harvard University Press, 1979
Elena Luria “The story of the life of Alexander Romanovich Luria” In: Luria Lectures. Soviet contributions
of 1990” Hans Reitzels Forlag, Copenhagen, 1991
Elena Luria “Moi Otets, A.R. Luria” [My Father, A.R. Luria], Moscow: Gnozis,1994
L.I. Moskivich, Dmitri Bougakov, Philip DeFina, Elkhonon Goldberg “ A. R. Luria: Pursuing
Neuropsychology in a Swiftly Changing Society” In: PATHWAYS TO PROMINENCE. Reflections of
20th Century Neuropsychologists. Kluwer Academic / Plenum Publishers 2002

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