RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS NOVAS

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RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS NOVAS
RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS
NOVAS REGRAS (LEI 11.672/2008 E RESOLUÇÃO 8 DO STJ)
NOS PROCESSOS COLETIVOS
Luiz Rodrigues Wambier
Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos
Resumo: O estudo versa sobre a questão dos recursos especiais repetitivos,
tratada no art. 543-C do CPC, introduzido pela Lei 11.672, de 08.05.2008. Mais
precisamente, sobre a extensão e o alcance dessas novas regras nos
processos que envolvem os direitos transindividuais. No texto se apresenta a
nova disciplina legal e se analisa, também à luz da Resolução 8 do STJ (que
estabelece os procedimentos para o processamento e julgamento dos recursos
especiais repetitivos), em que medida ocorre sua interferência no
processamento dos recursos especiais interpostos em face de acórdãos
proferidos em julgamentos de ações coletivas. Definem-se os direitos que se
podem veicular em ações coletivas, os principais problemas que cercam as
ações dessa natureza (legitimidade, competência, ocorrência de litispendência
ou conexão, e extensão territorial dos efeitos de suas decisões) e analisa-se,
em especial, a escolha dos recursos especiais representativos da controvérsia.
Palavras-chave: Recursos especiais repetitivos - Art. 543-C do CPC Regulamentação - Resolução 8 do STJ - Escolha - Processos coletivos.
Abstract: The study is concerned with the repetitive special appeals, according
to Art. 543-C of the Civil Procedural Code (CPC), introduced by Act 11.672 as
of 8th of May, 2008. More precisely, it is about the extension and scope of these
new rules in proceedings where collective rights are discussed. The texts
present a new legal discipline and, also under Resolution 8 of the STJ
(Supreme Court of Justice) (that determines the steps for the preparation and
trial of the repetitive special appeals), they analyze the extension of its
interference in the preparation of special appeals brought by judgments in
collective actions. It defines the rights that can be presented in these actions,
the main problems concerning the reasons of the actions (legitimacy,
competence, event of lis pendens and territorial connection or extension of the
decisions’ effects) and specially analyzes the special appeals’ choice
representing the legal action involved.
Keywords: Repetitive special appeals - Art. 543-C of the Civil Procedural
Code (CPC) - Regulation - Resolution 8 of the STJ - Choice - Collective
actions.
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Sumário: 1 - Introdução; 2 - A disciplina do novo art. 543-C do CPC; 3 - A
regulamentação, pelo STJ, do procedimento para o processamento e
julgamento dos recursos especiais repetitivos; 4 - A escolha dos recursos
representativos da controvérsia no âmbito dos processos coletivos; 5 - A
aplicabilidade da disciplina instituída pela Lei 11.672/2008 às ações
coletivas; 6 - Conclusão; 7 - Bibliografia.
1 - Introdução
Muito se tem discutido, em especial em eventos científicos, acerca dos
reflexos, nos processos coletivos, das alterações legislativas no âmbito do
direito processual civil, desde que teve início, nos idos de 1992, a longa e
desgastante movimentação legislativa voltada à modernização do sistema e
prestação da tutela jurisdicional do Estado. São várias e intrincadas as dúvidas
geradas pelas novas disposições legais. Neste ensaio, nossa proposta é a de
analisar a aplicabilidade da reforma do CPC, operada em maio de 2008, às
ações coletivas.
Interessa-nos, no presente texto, analisar a questão dos recursos
especiais repetitivos, tratada no art. 543-C do CPC, introduzido pela Lei 11.672,
de 08.05.20081. Mais precisamente, interessa-nos saber a extensão e o
alcance dessas novas regras e da respectiva regulamentação nos processos
que envolvem os chamados direitos transindividuais.
A Lei 11.672, de 08.05.2008, entrou em vigor em 08.08.2008 (90 dias
após sua publicação), e o procedimento nela previsto se aplica aos recursos já
interpostos por ocasião de sua entrada em vigor (art. 2º).
O art. 543-C disciplina, em nove parágrafos, o processamento dos
recursos de competência do STJ (ordinários e especiais) fundamentados em
idênticas questões de direito. São regras semelhantes às do art. 543-B e seus
parágrafos, introduzidos pela Lei 11.418, de 19.12.2006, em que o legislador
instituiu o procedimento para a análise da repercussão geral, quando de
multiplicidade de recursos extraordinários com fundamento em idêntica
controvérsia se tratar.
Mas, repita-se, o art. 543-C disciplina tão somente o “processamento”
dos recursos dirigidos ao STJ, enquanto as regras do art. 543-B dizem respeito
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A Lei 11.672, de 08.05.2008, entrou em vigor em 08.08.2008 (90 dias após sua publicação), e
o procedimento nela previsto se aplica aos recursos já interpostos por ocasião de sua entrada
em vigor (art. 2º).
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à “admissibilidade” dos recursos extraordinários, considerando-se
repercussão geral da questão constitucional através deles veiculada.
a
Neste texto, nosso propósito é o de apresentar a nova disciplina relativa
ao recurso especial, instituída pela Lei 11.672/2008, para analisar, na
sequência, em que medida ocorre sua interferência no processamento dos
recursos especiais interpostos em face de acórdãos proferidos em julgamentos
de ações coletivas.
2 - A Disciplina do Novo Art. 543-C do CPC
O § 1º do art. 543-C dispõe que caberá ao presidente do tribunal de
origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais
serão encaminhados ao STJ, ficando suspensos os demais recursos até o
pronunciamento definitivo desse Tribunal Superior.
Estabeleceu-se, portanto, que, se houver vários recursos que tratem da
mesma questão de direito (independentemente de as decisões serem num
mesmo sentido ou antagônicas), devem ser selecionados um ou mais desses
recursos que, por melhor retratarem a questão debatida, deverão ser julgados
em primeiro lugar pelo STJ, para que a respectiva decisão possa ser aplicada
aos recursos cujo processamento esteja suspenso por força da aplicação da
lei.
Certamente, a intenção do legislador foi tornar mais rápido o trâmite de
recursos repetitivos dirigidos ao STJ, de modo que se possa diminuir
consideravelmente o volume de recursos encaminhados àquele Tribunal
Superior.
Ocorre que poderá haver dificuldade na identificação de questões
substancialmente idênticas e, a despeito de a eventual suspensão indevida de
um recurso ser passível de causar dano à parte, não foi previsto nenhum
mecanismo processual de impugnação às decisões dos presidentes dos
tribunais de origem. Tampouco no âmbito do STJ, na Resolução 8, de
07.08.2008 (que estabelece os procedimentos relativos ao processamento e
julgamento de recursos especiais repetitivos), foi previsto mecanismo
processual para veicular o inconformismo da parte com a suspensão indevida
de seu recurso.
A Resolução 8, de 07.08.2008, entrou em vigor em 08.08.2008,
revogando a Resolução 7, de 14.07.2008, que também estabelecia
procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais
repetitivos, e entraria em vigor também em 08.08.2008.
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É verdade que se a Lei 11.672/2008 silenciou a respeito também não
dispôs que tais decisões seriam irrecorríveis (aliás, nem poderia fazê-lo). Estáse, assim, diante de situação análoga à das decisões que aplicam o regime de
retenção aos recursos especial e extraordinário, previsto no art. 542, § 3º, do
CPC.
E, portanto, seria razoável a adoção das mesmas soluções para obter o
processamento imediato desses recursos, que oscilam na doutrina e na
jurisprudência entre uma simples petição, ação cautelar e agravo de
instrumento ao Tribunal Superior (considerando-se que aplicar indevidamente o
regime de retenção seria tão lesivo quanto negar seguimento aos recursos).
Não é sem propósito mencionar que também em relação à situação da
suspensão indevida dos recursos dirigidos ao STJ poderia incidir, quanto aos
mecanismos de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de
origem, o princípio da fungibilidade, aplicável nos casos de retenção indevida
dos recursos especial e extraordinário, como já sustentou um dos autores
deste texto.
“(...) devem ser considerados pelos tribunais, como adequados para promover
o imediato processamento dos recursos especial e extraordinário interpostos
contra acórdão proferido em agravo de instrumento, tanto a ação cautelar
(recomendando-se, ante a urgência da medida pleiteada, que se admita o
processamento da ação tanto no juízo a quo quanto no órgão ad quem) quanto
o recurso de agravo, uma simples petição ou mesmo o mandado de segurança,
pois entre o cabimento desses meios vem oscilando, ao longo do tempo, o
entendimento dos tribunais superiores”. Vasconcelos, Rita de Cássia Corrêa
de. Princípio da fungibilidade – hipóteses de incidência no processo civil
brasileiro contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.243.
Nos termos do que prevê o § 2º do art. 543-C, se o presidente do
tribunal de origem deixar de cumprir o previsto no § 1º do referido dispositivo
legal, no STJ, o Ministro Relator poderá determinar que os recursos repetitivos
fiquem suspensos, no 2º grau de jurisdição, ao constatar que já há
jurisprudência dominante sobre a respectiva questão de direito, ou que tal
questão já está afeta ao colegiado, ou seja, que já há, na Seção ou na Corte
Especial, recurso especial selecionado para julgamento. O relator poderá,
inclusive, solicitar informações aos tribunais locais, a respeito da controvérsia,
que deverão ser prestadas no prazo de 15 dias (art. 543-C, § 3º).
Em relação à seleção do recurso especial, no STJ, a Resolução 8, de
07.08.2008, no art. 2º, §§ 1º e 2º, assim dispõe: “Art. 2º. (...) § 1º. A critério do
Relator, poderão ser submetidos ao julgamento da Seção ou da Corte Especial,
na forma deste artigo, recursos especiais já distribuídos que forem
representativos de questão jurídica objeto de recursos repetitivos. § 2.º A
decisão do Relator será comunicada aos demais Ministros e ao Presidente dos
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Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, conforme o caso, para
suspender os recursos que versem sobre a mesma controvérsia”.
Ainda entre as atribuições do Ministro Relator, está a de admitir respeitados os termos do Regimento Interno do STJ - a manifestação de
terceiros (pessoas, órgãos ou entidades) com interesse na controvérsia (art.
543-C, § 4º), bem como a de abrir vista ao Ministério Público, pelo prazo de 15
dias (art. 543-C, § 5º).
O julgamento do recurso (ou dos recursos) selecionado (ou
selecionados) terá preferência sobre os demais, no STJ, ressalvados os que
envolvam réu preso e pedidos de habeas corpus (art. 543-C, § 6º). E, julgado o
recurso escolhido, duas destinações poderão ser dadas aos recursos cujo
trâmite ficou suspenso: negativa de seguimento na hipótese de o acórdão
recorrido coincidir com a decisão do STJ (art. 543-C, § 7º, I); ou atribuição de
novo exame, pelo tribunal local, se o acórdão recorrido divergir da decisão do
STJ (art. 543-C, § 7º, II). Nesse último caso, se o acórdão divergente for
mantido pelo tribunal local, far-se-á o exame de admissibilidade - igualmente
suspenso no tribunal local - do recurso especial para, se positivo, remetê-lo ao
STJ (art. 543-C, § 8º).
A despeito do silêncio da lei quanto à recorribilidade das decisões
tomadas com base no art. 543-C, § 7º, parece-nos que, na situação do inciso I,
ou seja, negativa de seguimento ao recurso que estava suspenso, não poderá
ser negada a via recursal, permitindo-se a interposição de agravo de
instrumento ao STJ (CPC, art. 544). Até porque é possível que se esteja diante
de hipótese em que não haja identidade entre a questão veiculada no recurso
sobrestado e a que se julgou no recurso escolhido.
Nesse sentido: Talamini, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ “por
amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, artigo publicado em
15.05.2008.
Na situação do inciso II do § 7º do art. 543-C, verifica-se verdadeira
hipótese de juízo de retratação, uma vez que se permite, ao tribunal local, rever
sua posição diante da orientação consolidada no STJ. A Resolução 8,
anteriormente referida, dispõe, em seu art. 5º, III, que depois de julgados os
recursos especiais selecionados os demais recursos, fundados em idêntica
controvérsia, se sobrestados na origem, “terão seguimento na forma prevista
nos §§ 7º e 8º do art. 543-C do CPC”. Prevê de forma indireta, portanto, o juízo
de retratação pelo tribunal local, mas não o regula expressamente. A
Resolução 7, por aquela revogada, deixava clara a possibilidade de retratação,
ao dispor que competia ao órgão julgador competente no tribunal de origem
“reconsiderar a decisão para ajustá-la à orientação firmada no acórdão
paradigma”, e afirmava ser “incabível a interposição de outro recurso especial
contra o novo julgamento” (art. 10, II).
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Percebe-se que, diante da retratação, o STJ, num primeiro momento com a Resolução 7 -, havia obstado a possibilidade de a parte recorrida
interpor recurso especial em face da nova decisão. Talvez percebendo que
essa não seria a melhor solução, ao editar a Resolução 8, que revoga a
anterior, não repetiu esse óbice. Em verdade, nada dispôs a respeito. Em
nosso sentir, não poderá ser negado à parte recorrida, em razão da inversão
de sua situação processual, o direito de interpor novo recurso especial, em que
se poderá alegar, inclusive, que a questão debatida não é idêntica à que se
decidiu no recurso escolhido para julgamento.
Nesse sentido, em artigo publicado antes da edição das Resoluções 7 e
8 do STJ: Talamini, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ “por
amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, publicado em 15.05.2008.
3 - A Regulamentação, Pelo STJ, do Procedimento Para o Processamento
e Julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos
A Lei 11.672/2008 previu, no art. 2º, a regulamentação dos
procedimentos nela previstos pelos tribunais de 2º grau e pelo próprio STJ. No
âmbito do STJ, editou-se em primeiro lugar a Resolução 7, de 14.07.2008, que
estabelecia procedimentos relativos ao processamento e julgamento de
recursos especiais repetitivos, e entraria em vigor em 08.08.2008. Em
07.08.2008, com a mesma finalidade e revogando a Resolução anterior, editouse a Resolução 8, que entrou em vigor em 08.08.2008.
Essas Resoluções procuraram regular o que seriam os recursos
“representativos da controvérsia” (CPC, art. 543-C, § 1º), que mereceriam
encaminhamento imediato ao STJ.
Em seu art. 1º, § 1º, a Resolução 8 do STJ (repetindo a disposição da
Resolução 7) assim estabelece: “Serão selecionados, pelo menos 1 (um)
processo de cada Relator e, dentre esses, os que contiverem maior diversidade
de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial” (grifamos).
No § 2º do mesmo artigo, esclarece-se que se levará em consideração apenas
a “questão central discutida”.
A revogada Resolução 7 dispunha que deveria ser levada em conta
apenas a “questão central de mérito”.
Têm-se, assim, de forma objetiva, os critérios de escolha na Presidência
dos tribunais locais. Era mesmo esperado que se dissesse que os recursos
selecionados deveriam conter o maior número de fundamentos, para propiciar
a mais plena compreensão da questão de direito neles versada.
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Como dissemos linhas acima, devem ser selecionados os recursos que
melhor retratarem a questão discutida, independentemente de as decisões
recorridas serem num mesmo sentido. Evidentemente, havendo acórdãos em
sentidos opostos, devem ser selecionados recursos representativos em cada
um dos sentidos, pois a simples existência de decisões antagônicas no âmbito
dos tribunais locais já traduz a diversidade de fundamentos a justificar a análise
e julgamento pelo Tribunal Superior. Espera-se, portanto, que sejam
encaminhados ao STJ os recursos que permitam, tanto quanto possível, o
conhecimento completo da controvérsia estabelecida nas instâncias ordinárias.
Não é sem propósito mencionar que a Resolução 7 do STJ diferentemente da Resolução 8, que a revogou - estendia a suspensão aos
demais recursos e, também, aos processos em andamento no 1º grau de
jurisdição. Em seu art. 1º, § 3º, a Resolução 7 previa que o presidente do
tribunal, “em decisão irrecorrível” (art. 1º, § 1º, da Resolução 8), poderia
estender a suspensão aos demais recursos, “julgados ou não, mesmo antes da
distribuição”. E no § 4º do mesmo artigo, dispunha que, determinada tal
suspensão, esta alcançaria os processos em andamento no 1º grau de
jurisdição que apresentassem igual matéria controvertida, independentemente
da fase processual em que se encontrassem. Ainda que no § 4º não se tenha
feito menção expressa à irrecorribilidade da decisão, a referência ao parágrafo
anterior levava a crer que se estaria, também aqui, diante de ato irrecorrível.
A Resolução 8, em vigor, felizmente não reproduziu essas regras, que
certamente gerariam muita polêmica, em especial no tocante à irrecorribilidade
das decisões. É inequívoco que a suspensão dos demais recursos, alcançando
aqueles que sequer foram distribuídos e, também, os processos que tramitam
no 1º grau, poderia causar à parte lesão grave e de difícil reparação. Pense-se,
por exemplo, em casos em que devam ser deferidas medidas de urgência, não
se podendo aguardar o julgamento do recurso especial escolhido, ainda que
isto se dê respeitando-se o princípio constitucional da duração razoável do
processo (CF, art. 5º, LXXVIII). A tutela de urgência, inclusive a antecipação da
tutela recursal, deve ser concedida imediatamente, sob pena de se violar outra
garantia constitucional: a da inafastabilidade do controle da jurisdição (CF, art.
5º, XXXV).
Em boa hora, então, o STJ alterou a regra, antes presente na Resolução
7 (e agora, felizmente, ausente da Resolução 8), que permitia que se
ampliasse a suspensão ao ponto máximo de atingir os recursos ainda não
distribuídos e aos processos em trâmite no 1º grau de jurisdição. De qualquer
modo, mesmo que assim não fosse (isto é, mesmo que a Resolução 7 não
tivesse sido revogada), na hipótese de se ampliar - indevidamente - a
suspensão, não poderia o STJ, em sede de Resolução, obstar à via recursal.
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Estar-se-ia, aqui, diante de outra situação em que, por não se prever
mecanismo processual de impugnação, se poderia lançar mão do mandado de
segurança, ainda que não seja fácil estabelecer o juízo competente para
processá-lo e julgá-lo.
Na mesma ordem de ideias, é oportuno registrar que, de certa forma
complementando a disposição que suspendia os processos no 1º grau de
jurisdição, a - revogada - Resolução 7 previa, em seu art. 12, que os processos
suspensos seriam decididos “de acordo com a orientação firmada pelo STJ,
incidindo, quando cabível, o disposto nos arts. 285-A e 518, § 1º, do CPC”. Nos
termos dessa disposição, o STJ conferia verdadeiro “efeito vinculante” às
decisões tomadas nos recursos especiais selecionados. A Resolução 8, em
vigor, nada dispõe a respeito.
Para nós, foi acertada a supressão dessa regra na nova
regulamentação. A vinculação dos juízes de 1º grau é ilegítima, pois, a teor da
regra constitucional, somente o STF pode editar súmulas vinculantes. Ainda
que sem a força da súmula vinculante do STF, seria legítima a disposição
revogada se o STJ, logo após o julgamento, editasse súmula da jurisprudência
dominante nessa Corte. Somente assim seria justificável - embora não
obrigatória - a aplicação, pelos juízes de 1º grau, das regras mencionadas, em
especial a do art. 518, § 1º, que condiciona o não recebimento do recurso de
apelação à circunstância de a sentença apelada estar em conformidade com
súmula dos Tribunais Superiores.
Há muito que discutir em torno desses temas, todos potencialmente
polêmicos. Nosso papel, todavia, neste texto, é o de fomentar a reflexão e a
discussão a respeito dos temas relacionados à questão dos recursos
repetitivos, como maneira de contribuir para o aperfeiçoamento do sistema,
tendo em vista sempre o interesse da sociedade (que se sobrepõe aos
interesses dos operadores, advogados, magistrados, etc.).
Parece-nos que, de todos os aspectos de que trata essa última alteração
do CPC (última até maio de 2008, observe-se necessariamente, dada a
incontrolável ânsia reformista que ronda a matéria processual civil), o mais
significativo (e central) é o que diz respeito à escolha dos recursos
representativos da controvérsia. Passemos, então, a refletir sobre essa escolha
nos casos de recurso especial interposto contra acórdão proferido em ação
coletiva para, na sequência, apontar qual deve ser, a nosso ver, o alcance das
novas regras nestes processos.
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4 - A Escolha dos Recursos Representativos da Controvérsia no Âmbito
dos Processos Coletivos
Em primeiro lugar, perguntamo-nos por que razão o legislador, ao
regular o processamento dos recursos especiais repetitivos, não teria feito
menção aos processos que envolvem os direitos transindividuais. Note-se que
tampouco o STJ, ao regulamentar os novos dispositivos legais, mencionou
possível reflexo das novas regras nas ações coletivas. Seria, talvez, porque
não deva ser considerada a existência de “ações coletivas repetitivas”? Ou
porque não se cogitou da provável existência de questões de direito discutidas
ao mesmo tempo em ações coletivas e em múltiplas ações individuais?
A questão envolve não apenas a conceituação dos direitos coletivos lato
sensu, mas, também, a análise de institutos processuais no contexto dos
processos coletivos, tais como a legitimação e a competência, a litispendência
e a conexão, a coisa julgada e a extensão territorial dos efeitos das decisões
neles proferidas.
Então, pergunta-se: a) que direitos seriam veiculados nas ações
coletivas?; b) gerariam esses direitos “idênticas questões de direito”?
Os direitos coletivos lato sensu, como já discorreu um dos autores deste
texto, situam-se num campo dos direitos que pertencem a todos, mas que não
são públicos, no sentido tradicional desse vocábulo. São, isto sim,
transindividuais ou metaindividuais, derivados da massificação da vida em
sociedade e do surgimento de novas “modalidades” de conflitos, em relação
aos quais o sistema processual centrado na iniciativa exclusiva do titular do
direito subjetivo não tem como fornecer respostas eficazes.
Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 293 e ss.
Cf. Mancuso, Rodolfo de Camargo. Defesa do consumidor – reflexões
acerca da eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT 676/38.
Esses direitos, que se desdobram em direitos difusos, direitos coletivos
stricto sensu e direitos individuais homogêneos, já se firmaram no nosso
sistema jurídico, restando aos estudiosos encontrar soluções criativas para os
diversos problemas daí decorrentes. Afirma-se, na doutrina, que os direitos
difusos e coletivos são “essencialmente coletivos”; os direitos individuais
homogêneos, por sua vez, são considerados “acidentalmente coletivos”.
Cf. Moreira, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição
Federal de 1988. RePro 61/188. Teori Albino Zavascki, a propósito, afirma que
em relação aos direitos difusos e coletivos ocorre “defesa de direitos coletivos”,
enquanto em relação aos direitos individuais homogêneos ocorre “defesa
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coletiva de direitos” (Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos.
Revista Forense 329/149).
Os direitos difusos são aqueles em que os seus titulares não são
determinados ou, pelo menos, não são determináveis, pois embora digam
respeito a um grupo de pessoas, não é possível precisar-lhes claramente a
respectiva titularidade. Esses direitos estão definidos no inciso I do parágrafo
único do art. 81 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), aplicandose essa definição não apenas aos direitos difusos em matéria de consumo,
mas, por força do que dispõe o art. 117 do CDC, aos demais direitos difusos,
nas matérias de que trata a Lei da Ação Civil Pública. Segundo esse dispositivo
de lei, entendem-se por direitos difusos os transindividuais, de natureza
indivisível, cuja titularidade pertença a pessoas não determinadas, ligadas
umas às outras por meras e acidentais circunstâncias fáticas. A doutrina é
uníssona no reconhecimento da fluidez desses direitos, cuja titularidade se
espraia pela sociedade toda, e por todos os seus membros.
Quanto ao tema dos direitos difusos, ver, por todos: Fiorillo, Celso
Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito
processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.56-91.
O art. 117 do CDC incluiu um novo art. 21 na Lei 7.347/85, nos
seguintes termos: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei
que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”.
Na opinião de Nelson Nery Junior (A ação civil pública. RePro 31/229),
os direitos difusos são aqueles “que não têm um titular determinado, mas sim
dizem respeito a toda uma coletividade ou sociedade, tendo como centro a
qualidade de vida”.
Para Celso Agrícola Barbi, os interesses difusos têm origem no direito
francês, especialmente nos chamados interesses legítimos, cuja defesa se faz
diante da Justiça Administrativa (Mandado de segurança coletivo. In:
Gonçalves, Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del
Rey, 1996, p.61).
Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do
que os direitos difusos, justamente porque enquanto nestes a titularidade se
perde na indefinição subjetiva, naqueles há condições perfeitas de se
identificarem os titulares, em razão do necessário vínculo associativo ou
corporativo que os prende. Há, entre os titulares do direito coletivo, um vínculo
jurídico que determina a convergência dos respectivos interesses. O inciso II do
parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 define os direitos coletivos como
aqueles direitos transindividuais, indivisíveis por natureza, cuja titularidade
pertença a grupo, categoria ou classe de pessoas, que tenham vínculo entre si
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ou com o outro polo da assim chamada relação jurídica base. Trata-se, em
verdade, de direito do grupo social, representado por associações ou
corporações voltadas à defesa de determinados tipos de interesses da
sociedade. É um tipo de direito metaindividual, porque transcende aos
interesses de cada uma das pessoas vinculadas ao grupo associativo, para
guardar sintonia com os próprios fins institucionais do grupo. Os direitos
coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que os direitos
difusos, e não há, neles, a mesma fluidez.
Na opinião de Luiza Dias Cassales (Ação civil pública. Revista da Ajufe
48/41), são exemplos de grupos em que seus componentes estão unidos pela
relação jurídica base necessária para caracterizar os direitos coletivos, o
condomínio, a família, os entes profissionais e os sindicatos.
Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, têm as mesmas
características dos direitos coletivos, diferentes apenas pela divisibilidade do
dano ou da responsabilidade que lhes afeta. Constituem um tipo de direito
coletivo, porque também têm origem numa mesma situação jurídica. A
definição legal, estampada no inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC,
toma por característica desses direitos, de modo extremamente lacônico, a
nosso ver, a sua origem comum. A interpretação desse dispositivo nos leva a
concluir que a novidade está em se dar tratamento coletivo a direitos
individuais.
Essa terceira modalidade de direitos coletivos lato sensu se traduz nos
mesmos direitos subjetivos individuais de há muito conhecidos em nossa
ordem jurídica, que têm como seus titulares as pessoas individualmente
consideradas. A diferença entre esta classe de direitos e aqueles já
consagrados em nossa ordem jurídica reside justamente no modo como se
pode realizar sua defesa em juízo. Na verdade, eles contam com um
mecanismo a mais - ação coletiva -, através do qual se pode obter sua
proteção.
5 - A Aplicabilidade da Disciplina Instituída pela Lei 11.672/2008 às Ações
Coletivas
Definidos os direitos que se podem veicular nas ações coletivas, deduzse facilmente que eles podem, sim, gerar idênticas questões de direito. Se
considerarmos os direitos difusos, pode ocorrer que os entes legitimados
provoquem o Judiciário para solucionar questões que atinjam toda a sociedade,
fazendo-o de forma fracionada, em diferentes cidades do mesmo Estado da
Federação, por exemplo. Ressalvadas eventuais peculiaridades regionais, que
justificariam a propositura de diferentes ações coletivas num mesmo Estado da
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Federação, é forçoso reconhecer que a questão de direito versada em cada
uma delas pode ser idêntica.
O mesmo acontece com os direitos coletivos em sentido estrito. É
possível que sejam ajuizadas várias ações coletivas sobre a mesma questão
jurídica, na defesa de direitos cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou
classe de pessoas unidas por uma relação jurídica base.
Não é diferente a situação em matéria de direitos individuais
homogêneos. Aqui, a nosso ver de modo mais evidente, existe a possibilidade
de várias ações coletivas serem ajuizadas para a tutela de direitos que, nos
termos da lei, têm origem comum. Afinal, são direitos que admitem tratamento
coletivo - desde que inequívoca sua homogeneidade -, mas poderiam ser
tutelados através do processo civil individual, uma vez que se trata dos
mesmos direitos subjetivos individuais. O tratamento coletivo não elimina,
portanto, a possibilidade de vários legitimados ingressarem em juízo para
veicularem idênticas questões de direito, respeitadas as regras de competência
e os limites territoriais dos efeitos das decisões proferidas nas diferentes
demandas.
Como se vê, a possibilidade de se considerar a existência de ações
coletivas repetitivas está intimamente ligada à questão da legitimidade para a
propositura dessas demandas, da competência para seu ajuizamento e de se
saber se, diante da pluralidade de ações idênticas, haveria litispendência ou
conexão.
No tocante à legitimidade, como já sustentou um dos autores deste
texto, enquanto para os direitos subjetivos individuais está reservada a
legitimação para agir, nos termos do que dispõe o art. 6º do CPC, para a
defesa dos direitos coletivos há regras gerais sobre legitimação no Código de
Defesa do Consumidor e na Lei da Ação Civil Pública.
Há na doutrina complexa discussão - a qual não nos cabe aprofundar
nos limites deste texto - a respeito do modelo de legitimação, distinto do que
adota o Código de Processo Civil, visivelmente inadequado para permitir o
atendimento a todos esses novos movimentos vividos pelo Direito.
É que, como adverte Ada Pellegrini Grinover:2 a “legitimação para a
causa foi tradicionalmente comprimida, pela processualística clássica, nos
limites da coincidência entre a titularidade do direito material e a titularidade da
ação”, sendo necessária, em nosso entender, a criação de um novo sistema
processual, capaz de conviver com o do Código, além de oferecer respostas
aos novos tipos de conflitos.
2
O acesso à justiça no ano 2000. In: Marinoni, Luiz Guilherme (Coord.). O processo civil
contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p.35.
12
Em breves palavras, a legitimação ordinária, disciplinada no Código de
Processo Civil, é aquela em que o próprio titular da pretensão pode promover a
sua defesa em juízo, porque detentor da capacidade de estar em juízo e, ao
mesmo tempo, da legitimidade processual diante de um dado episódio em que
a defesa (em sentido lato) de seu direito se faça necessária. A chamada
legitimação extraordinária, por sua vez, é aquela em que existe verdadeira
dissociação entre o titular do direito discutido e aquele que pode agir em juízo
formulando pretensão. Trata-se, portanto, de situação excepcionalíssima e
sempre dependente, para que possa acontecer, de expressa autorização legal,
sem o que somente pode pleitear em juízo, a respeito de determinada
pretensão, o próprio interessado em seu objeto.
Indaga-se, aqui, que modelo de legitimação processual têm os
legitimados para as ações coletivas. Na doutrina há quem afirme que se trata
de hipótese de defesa de direito alheio em nome próprio, traduzindo-se,
portanto, na legitimação extraordinária3. Nelson Nery Junior4 procura resolver
a discussão sobre a natureza da legitimação para as ações coletivas
entendendo existir, em sede de ações coletivas, verdadeira legitimação
autônoma para a condução do processo. Antonio Gidi diz que se utilizar da
clássica dicotomia entre legitimação ordinária e extraordinária, na matéria
relativa às ações coletivas, é pragmaticamente inconsistente, “como de resto,
com muitos dos institutos do direito processual individual”5.
A nosso ver, nas ações coletivas (genuinamente coletivas) realmente
não se trata de hipótese de defesa de direito próprio (legitimação ordinária) e
nem mesmo de situação em que se possa buscar arrimo no instituto da
legitimação extraordinária. Entendemos que a legitimação dos entes
autorizados à defesa dos direitos difusos, coletivos em sentido estrito e
individuais homogêneos deve ser tratada como uma legitimação especial, com
contornos próprios, derivados da circunstância de se destinar, num novo
momento da história, à defesa apropriada que se deva dar ao rol dos direitos
novos. É adequada, portanto, sua caracterização como legitimação autônoma.
Vejamos, então, quem são os legitimados para ajuizar as chamadas
ações coletivas e em que juízo devem fazê-lo.
3
Cf. Braga, Carlos Eduardo Faraco. Ações coletivas. Revista de Direito do Consumidor 7/95.
No mesmo sentido: Kroetz, Tarcísio Araújo. Efetividade da tutela jurídica processual no Código
do Consumidor. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná 25/327, nota 1.
4
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p.628, nota 17.
5
Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.42.
13
Exceto na ação popular, para a qual está ativamente legitimado somente
o cidadão, nas ações coletivas de modo geral é grande o rol de legitimados
ativos, previstos tanto na Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) como no
Código de Defesa do Consumidor. No rol do art. 5º da Lei 7.347/85, estão as
pessoas jurídicas de direito público, as associações, o Ministério Público, as
autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista.
Nessa mesma linha, no art. 82 do CDC, constam como legitimados,
concorrentemente: o Ministério Público ; a União, os Estados, os Municípios e o
Distrito Federal; as entidades e órgãos da administração pública direta ou
indireta; e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e
que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor.
Registramos aqui nossa discordância com o entendimento de que o
Ministério Público teria legitimidade também em relação aos direitos individuais
homogêneos. A despeito da tendência que se observa no sentido de admitir-se
a legitimidade do Ministério Público para as ações coletivas relativas a direitos
individuais homogêneos, um dos autores deste texto já discorreu em sentido
contrário (Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.338-352), mantendo a opinião
sustentada.
Trata-se, como mencionamos, de legitimação concorrente. Assim, a
princípio, cada um desses legitimados poderia propor, indistintamente, as
demandas coletivas. Por isso é tão importante mencionar, ainda que
brevemente, o requisito da “pertinência temática”, aplicável às associações,
autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista e
às entidades da administração pública direta ou indireta.
Note-se que, para a atuação desses legitimados, a própria lei
estabeleceu condições. No art. 5º da Lei 7.347/85, se exige, para a atuação
das autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia, bem
como das associações, que esteja incluída entre suas finalidades institucionais
“a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre
concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico” (inciso II). Também o art. 82 do CDC estabeleceu como condição
para a legitimidade das entidades e órgãos da administração pública direta ou
indireta que estejam estes entes “destinados à defesa dos interesses e direitos
protegidos por este Código” (inciso III). E para as associações, como visto
linhas acima, que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses
e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor (inciso IV).
Para Luiz Manoel Gomes Junior, há duas classes de legitimados para a
defesa dos direitos coletivos lato sensu: a dos “legitimados ‘amplos’, que não
se sujeitam ao requisito da pertinência temática - Ministério Público e entes de
14
Direito Público”; e a dos “legitimados ‘restritos’, que, de ordinário, tenham sido
criados visando à defesa de tais interesses ou que sua atuação tenha um
mínimo de correlação com o objeto tutelado”6. Embora tenha razão o citado
autor, na prática nem sempre se verifica a observância dessa distinção e
muitas vezes o próprio Judiciário desconsidera o requisito da pertinência
temática, havendo um elevado número de ações coletivas ajuizadas por
associações na defesa de interesses totalmente distintos de suas finalidades
institucionais. É o caso, por exemplo, de associações constituídas para a
defesa de interesses de donas de casa, de aposentados, e mesmo de
consumidores a elas associados, que ingressam em juízo em face de
instituições financeiras para defender supostos interesses de investidores em
cadernetas de poupança.
De todo modo, sendo muitos os legitimados e diversos os direitos a
tutelar, é certo que devem ser respeitadas para a propositura das demandas
coletivas, antes de mais nada, as regras de competência. Para as ações
coletivas reguladas no Código de Defesa do Consumidor, a competência está
prevista em seus arts. 93, I e II, e 101, I. A despeito de estar inserida no
capítulo que trata dos direitos individuais homogêneos, entende-se que a regra
do art. 93 se aplica também às ações que versam sobre direitos difusos e
coletivos em sentido estrito7.
Segundo essas regras, sendo o dano de âmbito local, a competência é
do juízo local (arts. 93, I, e 101, I); se de âmbito regional ou nacional o dano, a
competência é do juízo da Capital do Estado ou do Distrito Federal,
respectivamente (art. 93, II). Mas a clareza dessas regras é apenas aparente.
Há enorme discussão sobre qual o juízo competente para processar e julgar
ações coletivas - na qual não nos cabe adentrar, aqui, com profundidade - e,
apenas para registrar que a questão é realmente complexa, citamos a posição
de Ada Pellegrini Grinover8, para quem, se o dano for “propriamente regional”,
atingindo, exemplificativamente, duas comarcas, haverá competência
concorrente de qualquer uma delas.
Como se vê, não se exclui a possibilidade de serem ajuizadas por mais
de um legitimado, em comarcas distintas, ações que veiculem a mesma
questão jurídica. Seriam, verdadeiramente, ações coletivas repetitivas, em que
há, de modo geral, pedido e causa de pedir idênticos. Mas, havendo várias
6
Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.161.
7
Nesse sentido: Grinover, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.804. No mesmo sentido: Gomes Junior, Luiz Manoel.
Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.213.
8
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001,
p.808.
15
demandas coletivas envolvendo uma mesma questão de direito, todas elas
devem prosperar? Há, aí, o risco de se adotarem entendimentos diferentes e,
por conseguinte, de se proferirem decisões conflitantes, o que não é desejado
pelo sistema jurídico.
A solução para esse problema, para uns, é a reunião dos processos pela
conexão. Para outros, haveria litispendência e, portanto, apenas uma delas
poderia prosperar. Ada Pellegrini Grinover9 defende que haverá litispendência
quando forem idênticos os pedidos e a causa de pedir. Nas palavras de
Antonio Gidi, “a litispendência entre duas ações coletivas ocorre sempre que se
esteja em defesa do mesmo direito. É o que acontece quando há identidade de
causa de pedir e de pedido”.10 Nessa mesma ordem de ideias, Teresa Arruda
Alvim Wambier11 sugere que somente a primeira ação coletiva deverá subsistir,
pois nem sempre a melhor solução seria a reunião dos processos. Já Luiz
Manoel Gomes Junior12 entende que a questão deve ser solucionada “com a
utilização do instituto da ‘conexão’”, o que daria maior efetividade às ações
coletivas, porque a reunião dos processos permitiria a obtenção de mais
elementos para a proteção dos direitos nelas veiculados.
Em nossa opinião - ainda que respeitemos todos os argumentos em
sentido contrário -, haverá, sim, litispendência, devendo ser extinta a segunda
ação coletiva, desde que idênticos o pedido e a causa de pedir. Até porque
haverá, também, congruência absoluta de partes nas ações coletivas se os
titulares do direito defendido forem os mesmos, independentemente do ente
legitimado que as tenha proposto. Aplica-se, a essa situação, a regra inserida
no art. 301 e parágrafos do Código de Processo Civil, de acordo com a qual há
litispendência quando se repete ação que está em curso (§ 3º), considerandose idênticas para este fim as ações que tiverem as mesmas partes, pedido e
causa de pedir (§ 2º).
É comum, como afirmamos antes, que diferentes entes legitimados
ajuízem demandas para a defesa dos mesmos direitos coletivos em várias
comarcas ou em vários Estados da Federação. Não raro, todos pretendem que
os efeitos territoriais das respectivas decisões ocorram em âmbito estadual, ou
mesmo nacional (com o que não concordamos, como a seguir será
evidenciado). Esta é uma questão verdadeiramente polêmica, mas, para nós,
se a sentença proferida em ação coletiva, em especial a que veicula direitos
9
Idem, p.861.
10
Coisa julgada e litispendência nas ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.219.
11
Litispendência em ações coletivas. In: Mazzei, Rodrigo; Nolasco, Rita Dias (Coords.).
Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.294-295.
12
Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.194.
16
individuais homogêneos, proferida em um Estado da Federação, tiver eficácia
em todo o território nacional (atingindo - ilegalmente, segundo pensamos todos os jurisdicionados do país), não se poderá permitir que continuem em
curso outras ações coletivas, ajuizadas em outros Estados.
Evidentemente, a solução a ser adotada para o problema aqui apontado
está diretamente ligada ao entendimento que se tenha quanto à extensão
territorial dos efeitos das decisões proferidas nas várias ações coletivas. Na
hipótese de se entender que os efeitos das decisões se dariam em âmbito
estadual, ou mesmo nacional (com o que não concordamos, repita-se), haveria
de se reconhecer a litispendência em relação às demais ações coletivas.
Poderia ser tolerada a existência de uma ação coletiva em cada comarca, por
exemplo, desde que se estendam os efeitos de suas decisões aos limites da
competência territorial do órgão julgador de cada uma delas, nos precisos
termos da regra do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública.
O art. 16 da Lei 7.347/85, na redação que lhe foi dada pela Lei 9.494/97,
estabelece o seguinte: “A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos
limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for
julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer
legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de
nova prova” (grifamos). O exame da letra do referido dispositivo legal permite
que se extraia somente uma interpretação possível: proferida uma decisão
judicial em ação civil pública, esta somente produzirá efeitos na “comarca” de
competência do juízo.
Note-se que essa norma reduz significativamente a abrangência do
disposto no art. 103 do CDC, que não estabelece limitação territorial ao alcance
da decisão judicial, que produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme
o caso. Diante disso, e considerando que as duas leis citadas formam um
microssistema destinado a regular as ações coletivas (conforme estabelecem o
art. 21 da Lei 7.347/85 e o art. 90 do CDC), é de se indagar se o citado art. 16,
por ter sido alterado em época mais recente, restringiria também o disposto no
art. 103 da Lei 8.078/90 (CDC). Nossa resposta a essa indagação é positiva,
embora se trate de questão bastante polêmica, e que se encontra distante do
alcance de entendimento uniforme.
Na doutrina, há quem argumente que o art. 16 da Lei 7.347/85 seria
inconstitucional por violação ao princípio da proporcionalidade e da
razoabilidade13. Há quem afirme que o referido preceito legal não poderia ser
aplicado em relação à tutela de direitos difusos, porquanto permitiria o
surgimento de decisões contraditórias sobre questões relacionadas a um
13
Nesse sentido: Nery Junior, Nelson; Nery, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil
comentado e legislação extravagante. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.1.349.
17
mesmo bem jurídico14. Outros defendem, ainda, que a nova redação do art. 16
da Lei 7.347/85 confundiu competência com coisa julgada, razão pela qual o
dispositivo não poderia ser aplicado15. Por outro lado, há quem sustente que
nada haveria de inconstitucional no referido art. 16, pois os limites territoriais
dos efeitos da sentença proferida em ação civil pública devem mesmo ser
definidos em atenção à competência do juiz de 1º grau que a julgar, e não em
razão da competência do tribunal para julgamento do respectivo recurso16.
Na jurisprudência, embora não se trate de posição majoritária, há
diversos julgados que aplicam o art. 16, interpretando-o textualmente17. Outros
julgados estendem a eficácia da decisão ao âmbito da competência territorial
14
Nesse sentido: Vigliar, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3.ed. São Paulo:
Atlas, 2001, p.182-183.
15
Nesse sentido: Mazzilli, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 3.ed. São
Paulo: EDJ, 2003, p.85-86.
16
Nesse sentido: Carvalho Filho, José Santos. Ação civil pública. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001, p.417-418.
17
TJRJ, 1ª Câm. Cív., Ap 2000.001.01873, Rel. Desemb. Benito Ferolla, j. 31.08.2000; TRF-1ª
Reg., 3ª T., AgIn 2001.01.00.041042-7, Rel. Desemb. Olindo Menezes, j. 09.10.2002, DJ
25.10.2002, p.85; TRF-5ª Reg., 2ª T., AgIn 13323, Rel. Desemb. Petrucio Ferreira, j.
06.10.1998, DJ 15.01.1999, p.156; TRF-4ª Reg., 3ª T., AgIn 103817, Relª Juíza Marga Inge
Barth Tessler, j. 17.12.2002, DJ 19.02.2002, p.602. No âmbito do STJ, também interpretando
restritivamente a regra do art. 16, merece destaque o acórdão proferido em sede de recurso
especial, assim ementado: “Processo Civil – Ação Civil Pública – Litispendência – Limites da
Coisa Julgada – 1. A verificação da existência de litispendência enseja indagação antecedente
e que diz respeito ao alcance da coisa julgada. Conforme os ditames da Lei 9.494/97, ‘a
sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão
prolator’. 2. As ações que têm objeto idêntico devem ser reunidas, inclusive quando houver
uma demanda coletiva e diversas ações individuais, mas a reunião deve observar o limite da
competência territorial da jurisdição do magistrado que proferiu a sentença. 3. Hipótese em que
se nega a litispendência porque a primeira ação está limitada ao Município de Londrina e a
segunda ao Município de Cascavel, ambos no Estado do Paraná. 4. Recurso especial provido”.
Transcrevemos, por oportuno, trecho do voto da e. Relatora desse recurso especial, Ministra
Eliana Calmon: “(...) a abrangência e o alcance dos efeitos da coisa julgada da ação coletiva
vem sendo restringida pelo legislador, deixando os limites do efeito erga omnes no âmbito da
competência territorial do juiz que proferiu a sentença, ou outorgou a liminar. Assim ficou
assentado no STJ, no CComp 971-DF, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, sendo Relator para
o acórdão o Ministro Vicente Cernicchiaro, em 13.02.1990, DJ 23.04.1990. Dentro desse
entendimento firmou a jurisprudência entendimento uniforme no sentido de considerar que, em
matéria de ação civil pública, as ações conexas deveriam ser reunidas perante um mesmo juiz
e por ele decididas uniformemente, evitando dessa forma decisões contraditórias e que
estimulassem a busca por liminares. Neste sentido são os precedentes seguintes: REsp
485.842-RS (2ª Turma), REsp 586.691-SC (1ª Turma) e REsp 293.407-SP (4ª Turma). Dentro
do entendimento pretoriano não há litispendência, porque as ações referem-se a limites
competenciais distintos, estando a primeira circunscrita aos limites da competência territorial do
Município de Londrina e a segunda abrangendo os mutuários domiciliados no Município de
Cascavel” (2ª T., REsp 642.462-PR, j. 08.03.2005, DJ 18.04.2005, p. 263 – grifamos.)
18
do tribunal local18. Em outras decisões, tem-se o dispositivo legal por
inconstitucional, ainda que o STF, no bojo da ADIn 1576, não tenha
vislumbrado inconstitucionalidade no art. 16, que está em plena vigência e
eficácia. Por fim, há decisões que, sem se manifestar sobre a
constitucionalidade do referido dispositivo, simplesmente deixam de aplicá-lo,
ao fundamento de que a decisão afetaria relações jurídicas de qualquer parte
do País19.
A propósito, recentemente foi proferido acórdão, no STJ, estendendo a
eficácia subjetiva da decisão, em ação coletiva, a todo o território nacional.
Decidiu-se, no REsp 411.529-SP, pela inaplicabilidade do art. 16, porque a Lei
da Ação Civil Pública só seria aplicável em relação aos direitos dos
consumidores naquilo que não contrariasse as regras do Código de Defesa do
Consumidor, que conteria, em seu art. 103, “disciplina exaustiva para regular a
produção de efeitos pela sentença que decide uma relação de consumo”20.
Parece-nos que, ao contrário do que se decidiu no julgamento do
referido recurso, a intenção do legislador, ao editar a regra do art. 16 (na
redação que lhe deu a Lei 9.494/97), foi justamente restringir a abrangência
subjetiva dos efeitos da coisa julgada e, com isso, reduzir o âmbito de alcance
das ações coletivas. Talvez porque a incidência do art. 16 da LACP vem evitar
que, nas mãos de um único juiz, fique o destino de questões relevantes,
estendendo-se a eficácia de sua decisão por todo o território nacional.
18
TJSC, 4ª Câm. Cív., AgIn 97.015543-3, Rel. Desemb. Nelson Schaeffer Martins, j.
24.06.1999; TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.051738-5, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz,
j. 09.04.2003, DJ 02.05.2003, p.426.
19
STJ, 4ª T., REsp 173.379-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 04.12.2001, DJ
25.02.2002, p.382; STJ, 4ª T., REsp 293.407-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j.
22.10.2002, DJ 07.04.2003, p.290; STJ, 4ª T., REsp 253.589-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar, j. 16.08.2001, DJ 18.03.2002, p.255; TRF-3ª Reg., 1ª T., Ap. Cív. 96.03.75726-8, Rel.
Juiz Souza Ribeiro, j. 03.10.2000, DJ 31.10.2000, p.365. STJ, 4ª T., REsp 173.379-SP, Rel.
Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 04.12.2001, DJ 25.02.2002, p.382; STJ, 4ª T., REsp
293.407-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.10.2002, DJ 07.04.2003, p.290; STJ, 4ª T.,
REsp 253.589-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16.08.2001, DJ 18.03.2002, p.255; TRF3ª Reg., 1ª T., Ap. Cív. 96.03.75726-8, Rel. Juiz Souza Ribeiro, j. 03.10.2000, DJ 31.10.2000,
p.365
TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.022377, Rel. Juiz Ramos de Oliveira, j. 06.02.2003, DJ
26.02.2003, p. 875
TJSC, 4ª Câm. Cív., AgIn 97.015543-3, Rel. Desemb. Nelson Schaeffer Martins, j. 24.06.1999;
TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.051738-5, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, j.
09.04.2003, DJ 02.05.2003, p.426.
20
Acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, j. 24.06.2008, publicado em 05.08.2008.
19
Em verdade, precisamente porque os direitos individuais homogêneos
são, como visto anteriormente, divisíveis e de titulares perfeitamente
determináveis, é que a regra do art. 16 se volta mais diretamente às ações
coletivas que envolvem esses direitos.
De todo modo, está longe de ser pacificada a questão, o que nos faz
conviver com situações que reclamam, não raro, soluções criativas, mas que
não se afastem do sistema jurídico, sob pena de se incorrer em ilegalidades e
mesmo inconstitucionalidades.
É por isso que não há impropriedade em se afirmar que existem - repitase - ações coletivas repetitivas, propostas pelos vários legitimados em
diferentes comarcas, em relação às quais não se reconheceu a litispendência e
nem mesmo se determinou a reunião, por conexão. Em todas essas ações
pode haver decisões que, mesmo inválidas (muitas vezes em razão da própria
incoerência de se permitir que essas ações prosperem sem que se restrinjam
os limites territoriais dos efeitos de suas decisões), produzam efeitos no mundo
dos fatos. E são precisamente essas questões processuais controvertidas - e
não propriamente questões centrais de mérito - que se espera sejam
solucionadas satisfatoriamente pelo STJ (e eventualmente pelo STF, se de
matéria constitucional se tratar). É evidente, portanto, a importância de se
garantir o exame dessas ações pela via do recurso especial, no STJ, e do
recurso extraordinário, no STF.
Delimitados os principais problemas que cercam as ações coletivas,
cumpre-nos enfrentar a questão da aplicabilidade ou não da disciplina legal
instituída pela Lei 11.672, de 08.05.2008, aos processos que versam sobre os
direitos coletivos lato sensu.
Em primeiro lugar, indaga-se se deveriam os recursos especiais
interpostos em face de acórdãos proferidos em ações coletivas ser, somente
por tal circunstância, selecionados para julgamento pelo STJ. A resposta, para
nós, é negativa. A situação de que ora se trata é diferente da regulada no art.
543-B do CPC, que dispõe sobre o requisito da repercussão geral da questão
constitucional nos recursos extraordinários. Em relação à repercussão geral,
um dos autores21 deste texto já defendeu que esse requisito deve ser
pressuposto nas ações coletivas pelo simples fato de serem coletivas. Os
recursos especiais, diferentemente, não deverão ser selecionados
simplesmente porque contidos em demandas de natureza coletiva, mas, tão
21
Wambier, Luiz Rodrigues; Wambier, Teresa Arruda Alvim; Medina, José Miguel Garcia.
Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, v.3, p.246.
20
somente, quando realmente “representativos da controvérsia”, nos termos da
nova lei22.
No mesmo sentido já se manifestaram, em estudo sobre o novo art. 543C do CPC: Wambier, Teresa Arruda Alvim; Medina, José Miguel Garcia. Sobre
o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com
fundamento em idêntica questão de direito”. RePro 159/215.
Há que se atentar para os mesmos critérios de escolha concebidos pelo
legislador (recursos representativos da controvérsia - art. 543-C, § 1º) e pelo
próprio STJ, na Resolução 8. Lembre-se que a Resolução do STJ, em seu art.
1º, § 1º, estabelece como critérios a “maior diversidade de fundamentos no
acórdão e de argumentos no recurso especial”. Assim, mesmo em se tratando
de ações coletivas, os recursos selecionados deverão conter o maior número
de fundamentos para, como dissemos anteriormente, propiciar a mais plena
compreensão da questão de direito neles versada.
Pensamos, no entanto, na hipótese de, a respeito da mesma questão de
direito, haver um grande número de ações individuais e coletivas (pouco
importando o número de ações coletivas que veiculem a mesma matéria de
direito) versando sobre idêntica questão de direito. Nessa hipótese, a nosso
ver, ainda que seja escolhido pelo tribunal local - ou afetado pelo STJ - um
recurso de ação individual, pela quantidade e qualidade de seus fundamentos,
assim como por sua natureza (ressalve-se que, como sustentamos acima, não
é o simples fato de se tratar de recurso interposto em ação coletiva que
determinará sua escolha, mas porque, invariavelmente, trarão maior
diversidade de fundamentos e argumentos), deve igual e necessariamente ser
selecionado o da ação coletiva, porque certamente conterá fundamentos que
poderão enriquecer a discussão, sobretudo em relação à natureza do direito
em exame.
Preocupa-nos, também, a regra do § 2º do art. 1º da Resolução 8, em
que se esclarece que se “levará em consideração apenas a questão central
discutida, sempre que o exame desta possa tornar prejudicada a análise de
outras questões arguidas no mesmo recurso” (grifamos).
22
É que nas ações coletivas, como vimos, há muitas questões processuais relevantes, a ponto
de justificarem, elas mesmas, a remessa do recurso especial para julgamento. É o caso da
legitimação processual, da existência de litispendência ou conexão entre as demandas
idênticas, ou, ainda, da restrição ou não dos limites territoriais da coisa julgada que se operou.
21
A solução para essa questão parece estar no próprio dispositivo acima
transcrito. A contrario sensu, não se deve levar em consideração apenas a
questão central discutida, se o exame desta não tornar prejudicada a análise
de outras questões arguidas no mesmo recurso. Assim, deve-se levar em
conta, para a escolha do recurso especial a ser encaminhado ao STJ, se de
ações coletivas se estiver tratando, os argumentos e fundamentos relativos às
questões processuais (até porque a questão central discutida poderá ser de
natureza processual, como, por exemplo, a que diz respeito à legitimidade do
proponente da ação coletiva) que estejam presentes concomitantemente com a
questão central discutida (se, repita-se, a questão central não for de natureza
processual), pois invariavelmente relevantes, como dissemos há pouco.
Precisamente por isso, pensamos que o sobrestamento de recursos
interpostos em ações individuais não deverá atingir automaticamente todas as
ações coletivas que tratem da mesma questão de direito.
Em nosso sentir, deverá haver a escolha ou a afetação de recursos
especiais, levando-se em conta as peculiaridades das questões neles
versadas.
Mas não é só. Pensamos que se deve levar em conta, ainda, para a
seleção dos recursos especiais a serem encaminhados ao STJ, a qualidade do
ente legitimado que o interpôs. Lembre-se aqui do requisito da pertinência
temática. Ainda que, objetivamente, haja a mesma “quantidade de
fundamentos” em todos os recursos, não faria sentido selecionar o que tenha
sido interposto por uma associação - por exemplo -, cujos fins institucionais não
têm qualquer relação com o objeto tutelado. Certamente se espera do ente
legitimado, cujos fins institucionais incluam a própria defesa dos interesses e
direitos tutelados na ação coletiva, que tenha melhores condições de
desenvolver os fundamentos a serem analisados pelo Tribunal Superior.
Essa questão nos leva a refletir sobre outra previsão da nova lei, no
sentido de que o Ministro Relator, “considerando a relevância da matéria,
poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse
na controvérsia” (art. 543-C, § 4º). Nos termos da Resolução 8 do STJ, essa
manifestação deverá ser escrita e prestada no prazo de 15 dias (art. 3º, I).
A nova disciplina legal assegura, assim, a intervenção do amicus curiae,
a exemplo do previsto no § 6º do art. 543-A (que admite a manifestação de
terceiros, limitada à análise da repercussão geral).
No entanto, uma vez que a lei não estabeleceu - nem mesmo a
Resolução - requisitos objetivos para a participação do terceiro, pensamos que
poderão intervir todos aqueles que demonstrarem ser parte nos processos
cujos recursos ficaram suspensos, pois poderão contribuir com subsídios para
a solução da controvérsia.
22
É esse, também, o entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier e
José Miguel Garcia Medina, para quem: “Podem aqueles que são parte no
processo em que há recurso sobrestado ter outros argumentos que justifiquem
o acolhimento ou rejeição da tese veiculada, argumentos estes não levados em
consideração nos recursos escolhidos e nas respectivas contra-razões”23. Já
para Eduardo Talamini, para ser admitido como amicus curiae, não basta que o
terceiro “apenas demonstre ser parte em outro processo em que há recurso
sobre a mesma questão”; precisa ele comprovar que tem algum argumento útil
e relevante para “acrescentar à discussão já instaurada”24.
Nosso entendimento é no sentido de não se restringir a manifestação de
terceiros, nesse caso. Tal preocupação assume especial relevância em se
tratando de ações coletivas. É que no Brasil, como anteriormente se expôs, as
regras que preveem os legitimados ativos para as ações coletivas apresentam
meramente condições (pertinência temática) para alguns dos legitimados (os
que Luiz Manoel Gomes Junior denomina “legitimados restritos”).
Não há, no nosso ordenamento jurídico, o instituto da “representação
adequada”25. No sistema das class actions, a representação adequada é
requisito essencial para legitimar a propositura de ação coletiva pelos
representantes dos titulares dos direitos transindividuais. Precisam esses
representantes demonstrar que têm condições de, verdadeiramente, tutelar o
direito coletivo veiculado na demanda, fazendo-o da maneira o mais eficiente
possível. Na lição de Antonio Gidi26, a finalidade desse requisito é “que o
candidato a representante proteja adequadamente os interesses do grupo em
juízo”.
A adoção desse instituto, em nosso sistema processual coletivo, evitaria,
por certo, que demandas coletivas fossem ajuizadas por quem não tem
condições de bem conduzi-las, fazendo com que, pela deficiência na
fundamentação e mesmo na produção de provas, venham a ser proferidas
23
Sobre o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com fundamento em
idêntica questão de direito”. RePro 159/219.
24
Julgamento de recursos no STJ “por amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, artigo
publicado em 15.05.2008.
25
Sobre o instituto da representação adequada, veja-se: Silva, Edward Carlyle. A
representação adequada nas ações coletivas. Direito em foco 1, Rio de Janeiro, n.2, 31-41, jan.
2006.
26
A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma
perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.99.
23
decisões que prejudiquem os titulares dos direitos em jogo. Enquanto isso não
ocorre, especialmente nos processos coletivos há que se permitir sem muita
restrição - repita-se - que terceiros intervenham antes do julgamento dos
recursos especiais selecionados, no STJ, contribuindo com fundamentos e
subsídios para a análise da questão jurídica. Esses terceiros poderão ser, sem
dúvida, os outros legitimados que, a despeito de mais qualificados para a
condução da ação coletiva, ou não a ajuizaram, ou tiveram sua ação extinta por
litispendência, ou, ainda, não tiveram seu recurso especial escolhido para
remessa ao Tribunal Superior.
6 - Conclusão
Com tais considerações, se chega ao final deste breve estudo. Ficam
em aberto, todavia, diversas questões capazes de nos desafiar a reflexão. Há
muito a ser debatido e solucionado pela doutrina e pela jurisprudência. Mas é
possível afirmar, sem risco de erro, ao menos uma conclusão: a aplicação da
nova disciplina legal deve ocorrer somente quando não houver dúvida de que
se está tratando de questões de direito verdadeiramente “idênticas” (CPC, art.
543-C, caput), sob pena de se desvirtuar o sentido da lei e se incorrer em
inconstitucionalidade por violação ao princípio do acesso à justiça.
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26

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