Refletindo sobre a linguagem do cinema

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Refletindo sobre a linguagem do cinema
Refletindo sobre a
linguagem do cinema
BOLETIM 02
ABRIL 2005
SUMÁRIO
PROPOSTA PEDAGÓGICA
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DO CINEMA ........................................................................................ 03
Laura Maria Coutinho
PGM 1
LUZ E SOMBRA (ILUMINAÇÃO) .............................................................................................................................. 10
Filme Sugerido: O Carteiro e O Poeta
O Carteiro e O Poeta e a linguagem cinematográfica
Maria Madalena Torres
PGM 2
SOM, SILÊNCIO E FALA (TRILHA SONORA) ......................................................................................................... 15
Filme Sugerido: Abril Despedaçado
Som, Silêncio e Fala
Maria Helena Falcão Vasconcellos
PGM 3
EDITANDO A REALIDADE (MONTAGEM) ............................................................................................................. 26
Filme Sugerido: Nenhum a menos
Editando a realidade: Nenhum a menos
Rosa Helena Mendonça
Carla Inerelli
PGM 4
A ORIGEM DOS ENREDOS ........................................................................................................................................ 35
Filme Sugerido: O Senhor dos Anéis
A origem dos enredos
Osvaldo Condé
PGM 5
O REAL, A LINGUAGEM DA REALIDADE, O CINEMA ........................................................................................ 44
Filme Sugerido: Mamma Roma
O real, a linguagem da realidade, o cinema
Milton José de Almeida
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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PROPOSTA PEDAGÓGICA
Refletindo sobre a linguagem do cinema
Laura Maria Coutinho 1
Cinema é espetáculo. Ou seja, tudo o que chama a atenção, atrai e prende o olhar. Se não, não é
cinema, na sua mais pura acepção. O cinema criou os grandes planos e as panorâmicas e, da mesma
forma, espetacularizou o ínfimo, o detalhe, com tal nitidez e de uma forma tal, que nenhuma outra
linguagem é capaz de criar. Revela até o que, perfeitamente presente, é apenas pressentido, não se
ouve, nem se vê. “O espectador identifica-se, pois, menos com o representado – o próprio
espetáculo – do que com aquilo que anima ou encena o espetáculo, do que com aquilo que não é
visível, mas faz ver, faz ver a partir do mover que o anima – obrigando-o a ver aquilo que ele,
espectador, vê, sendo esta decerto a função assegurada ao lugar (variável – de posições sucessivas)
da câmera”2. O cinema seria, então, o espetáculo visto, proposto pela câmera, numa revelação
direta olho e máquina.
Esta série quer trazer para a discussão os principais elementos da linguagem cinematográfica que se
revelam e se escondem nas narrativas que cada filme, a seu gosto e a seu modo, apresenta.
Apreender o que os filmes dizem e o que cada espectador, ao ver o filme, quer dizer, talvez seja a
experiência educativa mais profunda que o cinema possa proporcionar. Cinema pode ensinar, para
muito além do conteúdo que os filmes parecem apresentar à primeira vista. Ir ao cinema, ver filmes
em vídeo ou na tevê são sempre ações que se confundem em um mesmo processo de fazer emergir
pressentimentos e atribuir sentidos ao que se desenrola nas telas, em linguagem feita de imagens e
sons. São as imagens e os sons que primeiro se apresentam, mas a linguagem audiovisual,
movimento, cor, é composta de muitos elementos e muitas nuanças, sintetizados em uma narrativa.
Os elementos que compõem o cinema estão, desde há muito, partilhando da vida de todos os que
habitam este planeta girante. Assim, ver filmes, mesmo aqueles mais banais, pode ser uma
experiência profundamente humana.
Cinema é também a primeira arte em movimento e para grandes públicos, sem pré-requisitos. Todos
podem, rápida e minimamente, compreender um filme, ainda que a língua do cinema exija, sim,
estudos talvez muito mais profundos e complexos do que a língua escrita. Contar histórias em
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imagens e sons é parte do modo de viver do homem contemporâneo. Hoje, estamos no mundo das
imagens, é o que alardeiam especialistas, ou não. Todas as histórias, mesmo as mais antigas,
contadas em filme, trazem nelas aquele certo gosto de atualidade que lhes confere o fato de emergir
das telas, sempre de novo e pela primeira vez.
A história que um filme conta é a história do filme, mas também a que cada espectador assiste. A
história de cada um, espectadores e personagens, é parte da história de todos; em meio a uma
enormidade de fios, se entrelaçam novos enredos em muitos plots, sejam eles reais ou ficcionais.
Desvelar o que isto representa para a formação, para a educação e para a aprendizagem deste
homem contemporâneo é um desafio para todos, educadores ou não. A linguagem audiovisual atua
em uma esfera que conjuga espaço e tempo, locação e deslocamento, o passado, presente e futuro
em permanente transformação.
Luis Buñuel, no seu livro biográfico, O último suspiro, refere-se a Eugênio d’Ors como “autor de
uma frase que cito freqüentemente contra aqueles que buscam a originalidade a qualquer preço:
Tudo o que não é tradição é plágio.” E completa: “Algo sempre me pareceu profundamente
verdadeiro nesse paradoxo.” Paradoxal ou não, tradição, no seu sentido etimológico, é o “ato de
transmitir ou entregar” e original é “princípio, precedência.” Assim, histórias e narrativas, conteúdo
e forma, originalidade e tradição parecem fundir-se em uma mesma e sempre outra experiência
humana, que o cinema tão bem retrata. E sugere que toda história é uma tradução, uma vez que está
baseada, copiada, inspirada, em muitas outras, numa seqüência espiralada, descontínua e infinita.
Toda arte é, antes de tudo, uma maneira de percepção. Quando expressa essa percepção por meio da
visão e da audição, traduz um conceito artificial, um artifício, um artefato. No caso do cinema, o
artefato é uma película sensibilizada pela luz, revelada e novamente impressionada pela luz, no
momento da projeção. Das nostálgicas lanternas mágicas às modernas técnicas de projeções
digitais, cinema é, na tela, luz e sombra. E é também a confluência de muitos mistérios.
Vejo o mistério, em muitos filmes, a partir da luz. Não há mistérios sem que os elementos
dramáticos estejam muito bem encadeados. Amaranta César3, em análise dos filmes de David
Lynch4, diz que “regras cambiantes e ambigüidades espaço-temporais constituem o universo
narrativo dos filmes de David Linch tornando-os, paradoxalmente, muito bem definidos. Suas
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histórias se constroem sobre um terreno móvel e desconcertante, configurado pela convivência de
figuras, personagens, cenários e situações que não respeitam um princípio pronto e reconhecível de
ordens, situados nas fronteiras dos gêneros, além das clivagens tradicionais (entre elas as que
separam o natural do sobrenatural, o sublime do grotesco). Há, portanto, uma ambigüidade
narrativa, proveniente de um mistério que nunca é totalmente esclarecido, e que, por sua vez,
envolve o espectador numa situação de desconforto e incômodo”.
Penso que o cinema de David Lynch tem a capacidade de trazer, para o cosmo de um filme, o
universo narrativo que ultrapassa as tramas que envolvem o próprio homem contemporâneo e não
apenas os personagens que transitam por suas histórias cinematográficas, configurando assim um
processo interativo razoavelmente complexo. Nesse sentido, seu cinema é identificado como pósmoderno5. Mas, talvez, extrapole, em muito, o âmbito de abrangência que esse conceito pretende
ter.
Cinema é arte contemporânea, síntese poética, alegoria e realidade. Tempo e espaço. Portanto,
compreender cinema é também compreender o tempo no seu transcorrer, na sua duração que,
muitas vezes, se desvincula do tempo físico da projeção. Talvez, por isso, o estranhamento que
muitos filmes causem a seus espectadores. Cada filme, com o estilo cinematográfico que adota, cria
um tempo que lhe é peculiar, além do tempo que a história pretende relatar. Além das paisagens
privativas que o tempo histórico dos filmes expressa – em locações, estúdios e cenários exclusivos –
, as narrativas cinematográficas falam, ainda, de um tempo que transcorre de maneira própria, sendo
somente daquele filme. O tempo na narrativa cinematográfica está na ação que imprime o ritmo,
assim como está no verbo nas linguagens escritas6. O tempo, no filme, vai além das palavras ditas
pelas personagens, não se restringe ao descrito pela ação da câmera. Está no que é falado pelos
personagens, mas está também na paisagem, na arquitetura, nas roupas, nos gestos, nos enfeites de
corpo e de ambientes. Sempre, pelo menos, dois tempos que, em fragmentações constantes, vão
revelando uma escultura de muitas faces. Para lembrar Tarkoviski, para quem cinema é esculpir o
tempo7.
O cinema é cultura e entretenimento, tem hora e local próprios para acontecer e, se visto nessas
salas apropriadas, pode proporcionar espetáculos de rara emoção e beleza. No entanto, pode ir
aonde a imaginação e a energia elétrica permitirem. Cinema é, assim, uma arte popular; fitas cassete
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e DVD, mais que as películas, transportam imagens e sons para todos os lugares e todas as pessoas.
E há muito o cinema já foi pensado para se aproximar da educação e da escola, em vários projetos e
em vários momentos, ainda que, “como sujeitos separados, a educação e a cultura falam de si e
entre si coisas distintas. A educação, para dentro de suas paredes, organizada por séries, etapas,
fases, especialidades, traz a cultura – ciência, artes – oficial ou oficiosamente embalada pela
pergunta: é adequada para que nível? (...) A cultura das artes e das ciências – poucas vezes
produzida em escolas e muitas vezes produzida fora delas – leva em conta a tradição e o
aprendizado técnicos, mas não os níveis, os programas rígidos, a divisão etária, a tradição escolar
dos pré-requisitos8”. A escola e as disciplinas percebem o cinema como o receptáculo de um
conteúdo próprio para uma aula, seja de História, Geografia, Língua Portuguesa, Matemática. Dessa
forma, os alunos-espectadores se aproximam dos filmes com certa reserva, ficando muito aquém
das possibilidades que este meio – o cinema – oferece. O desafio, então, para educadores e
professores que se interessam por cinema como método de trabalho, poderia ser o de estudar esse
artefato cultural, indo além do enredo, a partir da decomposição de seus dois elementos básicos –
imagens e sons – abordados de várias formas, seja no grande plano-sequência em que se constitui o
filme – do momento em que acende a luz ao instante em que se apaga. Ou, nos pequenos planos –
cortes para mudança de imagens – que vão se somando pouco a pouco para constituírem a
totalidade do filme. Walter Benjamin9 diz que “a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto
mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seus centros
a obra original”. Os meios eletrônicos e portáteis de cópia e projeção, a multiplicação de cópias, o
controle remoto, o retorno e o avanço de imagens e sons, de certa forma, desmistificaram a arte
cinematográfica que já surgiu para ser reproduzida e tornaram as histórias, os personagens, os
lugares dos filmes ainda mais próximos de nós.
Estes são os programas dessa série, que será apresentada no Salto para o Futuro/TV Escola,
de 4 a 8 de abril de 2005:
PGM 1 - Luz e sombra (iluminação)
Este programa trata dos elementos luz e sombra nos seus muitos aspectos expressivos. E de como,
no filme, o suporte, película de celulóide, impressionado pela luz, dá início ao processo
fotográfico,que se realiza nos inúmeros fotogramas que, justapostos, vão se constituir um filme com
história própria, ainda que multiplicado em inúmeras cópias. Luz e sombra são elementos
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dramáticos, ou seja, concorrem para a construção das narrativas que falam diretamente ao
emocional, podendo levar ao riso ou às lágrimas, comover.
Filme – O carteiro e o poeta.
PGM 2 – Som, silêncio e fala (trilha sonora)
Tendo como referência o filme Abril despedaçado, o programa apresenta os aspectos que estão
embutidos no filme, sobretudo, nos momentos de silêncio. Procura ressaltar a eloqüência do vazio,
na linguagem cinematográfica, e suas possibilidades expressivas. Estes aspectos são observados
nessa vendeta nordestina que o filme retrata, mas poderiam também ser na Albânia, onde foi escrito
o livro em que o filme se baseou, ou na Córsega, onde teve origem a palavra vendeta: espírito de
vingança, entre famílias, provocado por um assassinato ou uma ofensa.
Filme – Abril despedaçado.
PGM 3 – Editando a realidade (montagem)
Nesta série, em que estamos refletindo sobre as diferentes linguagens do cinema, ou dito de outra
maneira, sobre o que faz do “cinema” cinema, vamos nos deter na análise do processo de edição. A
escolha do filme Nenhum a menos, do diretor Zhang Yimou, deveu-se à possibilidade de pensar a
edição por meio de um universo tão familiar na educação: a relação professor-aluno. A partir da
narrativa fílmica, buscaremos compreender e refletir sobre o sentido desse elemento constitutivo do
cinema, que é a edição. Partindo da premissa de que o que sustenta esse trabalho é sempre uma
interrogação: Que história queremos contar? O que, por analogia, se aproxima do trabalho dos
professores, que ao fazer e refazer os planejamentos, precisam ter sempre em mente que alunos
querem formar.
Filme – Nenhum a menos.
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PGM 4 – A origem dos enredos
Estudiosos de literatura, escritores, roteiristas de cinema e de TV sabem que o número de histórias
originais é limitado. Alguns falam em 40 histórias. Por isso, os indianos dizem que a história que
não estiver contida no Mahabharata não existe! De certa forma as histórias sempre se repetem e,
quanto mais repetidas, mais interessantes se tornam, retratando sob os diversos ângulos as mais
variadas faceta da vida humana.
Filme – O Senhor dos Anéis.
PGM 5 – O real, a linguagem da realidade, o cinema
Aspectos da linguagem cinematográfica serão tratados neste programa, tendo como referência o
filme Mamma Roma, de Pier Paolo Pasolini. É um filme que emerge da realidade, ou seja, tudo
nesse filme é para ser visto como real. Em meio à história da prostituta romana que, pela relação
com o filho, deseja deixar a vida que leva, cenário (subúrbios de Roma) e personagens fundem-se
numa narrativa contundente.
Filme: Mamma Roma.
Referências bibliográficas
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Almeida, Milton José de. Cinema arte da memória. Campinas-SP: Autores Associados, 1999.
Duarte, Rosália. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Teixeira, Inês A. de Castro e Lopes, José de Sousa Miguel (orgs.) A escola vai ao cinema. Belo
Horizonte: Autêntica.
Salto para o Futuro. Boletim Diálogos: cinema e escola. Rio de Janeiro, TV Escola/Salto para o
Futuro, 2002
Notas:
[1] Professora Doutora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
Consultora dessa série.
[2] Baudry, Jean-Louis. “A tela-espelho: espetacularização e dupla identificação”. In:
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Xavier, Ismail (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme,
1983, p. 397.
[3] Cesar, Amaranta. “Esse estranho mundo: um estudo poético do cinema de David
Linch”. In: Ramos, F.P. Estudos de Cinema 2000-Socine. Porto Alegre: Sulina, 2001.
[4] Diretor americano de A cidade dos sonhos, 2001; A história real, 1999; Coração
Selvagem, 1990;Veludo Azul, 1986; O homem elefante, 1980.
[5] Ver Anderson, Perry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1999. Jameson, Fredric. Pós-modernismo, a lógica cultural do
capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
[6] “Não são poucas as línguas que incorporam ao conceito de palavra temporal o
verbo. Verbo é a palavra que exprime um fato representado no tempo. E o tempus,
por sua vez, é variação que indica o momento em que se dá o fato expresso pelo
verbo. (Coroa, Maria Luiza Monteiro. O tempo nos verbos do português: uma
introdução à sua interpretação semântica. Brasília, Thesaurus, 1985.)
[7] Tarkoviski, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[8] Almeida, Milton José. Imagens e Sons – a nova cultura oral. São Paulo: Cortez,
1994, p. 13.
[9] Benjamin, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Magia
e técnica, arte e política. Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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PROGRAMA 1
LUZ E SOMBRA (ILUMINAÇÃO)
Filme sugerido: O Carteiro e o Poeta
O Carteiro e o poeta a linguagem cinematográfica 1
Maria Madalena Torres 2
O filme O carteiro e o poeta3, do diretor Michael Radford (1994), conta um episódio da vida do
poeta Pablo Neruda, vivido pelo ator Philippe Noiret. Na história, Neruda está exilado em uma ilha
na Itália, devido a problemas políticos. Mário Ruoppolo, vivido por Massimo Troisi, desempregado,
solteiro e semi-analfabeto, é contratado como carteiro, com a responsabilidade de cuidar,
exclusivamente, das correspondências de Neruda. Esse fato impulsionou o surgimento de uma
profunda amizade entre os dois.
A relação entre eles foi se consagrando na confiança pactuada por um diálogo sincero. O poeta foi
aprendendo a simplicidade do carteiro. Mario Ruoppolo, em convivência com Pablo Neruda, amplia
sua visão das coisas e seu conhecimento a respeito de si mesmo. Descobre, também, como
expressar sua paixão pela jovem Beatrice Russo e pelo mundo. Com Neruda, ele aprende lições de
sensibilidade, de cidadania, de política.
A todo instante, a vida dá provas da vulnerabilidade humana, soando em nossos ouvidos coisas que
estão por um fio. Quando tudo ia bem entre os dois amigos, é chegada a hora em que o poeta tem
permissão para retornar ao Chile. Compromete-se a escrever para Mário. Contudo, os anos se
passam naquela ilha e nada, só o vazio e as saudades. Perturbado, o carteiro não compreende o
silêncio do poeta. Nenhuma carta, só uma recomendação para que Mário fosse até a casa em que
Neruda e sua esposa residiram para enviar alguns objetos deixados, pelos dois, no local. Essa
correspondência foi enviada, friamente, pela secretária do poeta e, em nenhum momento, é feita
alusão ao carteiro. A imagem mais forte, nesse momento, é a da dor de Mário.
A linguagem cinematográfica é repleta de possibilidades narrativas. Como suporte à nossa memória,
elementos sutis ganham fôlego não somente na imaginação, mas na conjugação dos movimentos
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alicerçados pelas imagens e pela trilha sonora. A música faz evocar a dança que embala Pablo
Neruda e sua esposa Matilde na varanda da casa onde moravam. A mais leve brisa parece sugerir
essa passagem dos dois naquela ilha e na vida daquela pessoa. Numa exibição de filmes para um
grupo de professores alfabetizadores, um deles comenta, ao final: “a música nos fará sempre
recordar as cenas de um filme que por algum motivo tenham nos sensibilizado”.
O debate, após o filme, traz um certo alívio aos espectadores. E para os alfabetizadores não foi
diferente. Houve ainda um momento posterior para troca de idéias, durante o qual eles falaram e
puderam ser ouvidos, sua voz foi considerada. O diálogo é franco, espontâneo e rico de
experiências, como discorre o filósofo Walter Benjamin (1987, p. 204):
“Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais
facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará
à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá a inclinação de recontá-la um
dia.”
Com as novas tecnologias de projeção: o telão, o DVD, a televisão 34 polegadas e um projetor
multimídia, a emoção de ver filmes, fora de uma sala de cinema, torna-se maior. O cinema e a
televisão guardam suas especificidades e trazem consigo as características sedutoras de suas
narrações. São sedutores como sempre o foram as narrativas míticas. E o narrador, ao contar suas
experiências, o faz sempre de maneira original:
“Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. (...) Seu dom é poder contar
sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz
tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. (...) O narrador é a
figura na qual o justo se encontra consigo mesmo” (Benjamin, ibidem, p. 221).
Esse desejo de falar e de tecer comentários sobre os filmes está fundamentado no aprendizado
coletivo. Cada pessoa comenta sobre o prazer que a narrativa fílmica lhe proporciona e como ela o
seduz, e, sobretudo, sobre as significações que essa narrativa traz para suas vivências. Portanto, à
medida que se aprofunda a significação da linguagem cinematográfica, aos poucos podemos
compreender a importância do compartilhamento das idéias com outros espectadores. Ver filmes e
debatê-los, coletivamente, é a busca do entendimento também pelo olho do outro, portanto, para
além do filme. A opinião de cada espectador é tão criadora de sentido quanto a minha, a sua, ou a de
qualquer outro. É na coletividade que se constroem os sentidos e os conhecimentos mais profundos.
Após o filme, no momento em que os educadores conversaram sobre as personagens Neruda e
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Mário, ficou transparente, nos relatos, o quanto os espectadores desse filme culpam Pablo por ser
ingrato, volúvel e leviano, por ter ido embora, esquecendo-se de Mário. Mesmo com a volta de
Pablo Neruda e Matilde à ilha, as pessoas ficam insatisfeitas, porque voltaram tarde, o carteiro já
havia morrido.
A discussão de um filme é interessante, pois enriquece as várias formas de percepção. Um
alfabetizador, na tentativa de justificar o esquecimento de Pablo, faz o seguinte relato:
Então, o carteiro encontrou o mestre Pablo e ao mesmo tempo ele é despertado a pensar por si
mesmo a ir além e a se definir, falando: - eu não sou nenhum poeta. Por que Dom Pablo deveria se
lembrar de mim? Eu nem sou poeta, nem sou comunista, nem sou carteiro. Quer dizer, se colocou
como um nada. Mas ao mesmo tempo ele foi fazer com que o Pablo se lembrasse dele, usando a
metáfora do lugar, como algo assim essencial, porque quis expressar pelo carisma, que ele tinha
pelo poeta, a poesia do lugar. Quando ele passou por essa consolidação poética como Pablo Neruda,
se predispôs a aprender a cair no mundo, a entrar no universo. Como o poeta, disse. Na brusca
procura, encontrou as palavras. Eu acredito que ele sistematizou tudo aquilo e já no final do filme,
ele conseguiu ter uma idéia mais elaborada do que a do princípio, antes do contato com o poeta.
Outra coisa é que o poeta não ia adivinhar que Mário iria morrer. Voltou e também se entristeceu
com o fato de Mário ter morrido, ficou andando pela praia pensando na amizade dos dois.
O filósofo Mircea Eliade (1992), na obra o Mito do eterno retorno, lembra como é intensa, nos
humanos, a concepção da temporalidade cíclica, da repetição da tradição, dos ritos. E, ao mesmo
tempo, as dificuldades sofridas para a compreensão do fato de estarmos envolvidos no pensamento
moderno que compreende o homem como ser histórico, com todas as suas conseqüências. Nas
civilizações arcaicas, os homens não eram seres históricos e os acontecimentos tinham sentido
mítico e religioso. E, se houvesse uma alteração qualquer no curso da vida das pessoas ou das
comunidades, isso era considerado prêmio ou castigo aplicado pelos deuses.
A compreensão que se tem inicialmente é de que as pessoas estão imbuídas de um sentimento
mitológico, quando desejam uma regularidade nos acontecimentos, como regular é a estrutura
mítica dos ritos. O fato de Mário não ser lembrado por Pablo Neruda é um sentimento que abala os
espectadores do filme. É um choque o filme encerrar-se sem que o poeta escreva para Mário ou o
relembre de imediato. Esta não é uma situação bem recebida pelos espectadores, não é o que se
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espera que aconteça entre amigos e amizade deve ser um sentimento recíproco e não unilateral. Os
acontecimentos que o filme mostra estão na esfera do não-esperado. São acontecimentos banais,
mas pouco previsíveis e que, aparentemente, confrontam-se com a realidade da vida daquelas
pessoas e, igualmente, com a da vida de quem assiste o filme.
Seria um acontecimento regular se Mário fosse prontamente lembrado, após o regresso de Neruda
ao Chile. Mário, como as imagens do cinema, está sempre em movimento. É notável o processo de
sua mudança. Sua personagem parece emergir da alegoria da caverna, na obra A República, de
Platão, já que, antes de Neruda, Mário via somente as sombras. Um dia, não se contentando mais
com elas, expressa: “estou cansado de ser apenas um homem” – e pôde ver a luz.
O próprio cinema parece brotar da caverna de Platão. Também é constituído de luz e de sombra.
Quando se apagam as luzes, as imagens surgem repletas de luz. O cinema nada seria se não fosse
esse jogo permanente entre luzes e as sombras. É impossível imaginar um filme exibido no cinema
com as luzes acesas ou no meio da rua com o clarão do sol na tela.
Voltando ao filme, a partir do contato com o poeta, centelhas de luz começam a despertar Mário.
Ele experimenta uma intensa transformação em sua vida, tanto do ponto de vista ético, quanto do
estético. Começa a experimentar novas vivências, faz coisas diferentes, milita em um partido
político, desenvolve a arte de elaboração do conhecimento, aprende a conhecer, passa a perceber
coisas sublimes, transcendentes, como poesias, começa a admirar a geografia do lugar, onde antes
vivia sem perceber quase nada, reconhece a exuberante paisagem da ilha onde mora. Mário é um
artista nato, despertado por um encontro feliz, que encanta e reencanta os espectadores com suas
perguntas e incertezas. Nesse processo de transformação pelo qual vai passando, desbrava novos
horizontes, conforme comentário de um alfabetizador:
É interessante também quando a gente analisa a realidade da vida que tinha Mário. A princípio
ele só tinha como referência as cartas para entregá-las ao “mito” Neruda, depois ele teve
como referência o amor por Beatrice Russo, mais na frente, o poeta. Depois que conseguiu
passar por essas três etapas, ele atingiu uma consciência de mudança. Foi quando ele
conseguiu descobrir a essência da transformação, quando ele criou esse sentimento em si, um
jeito comunista de ser, de encarar a vida, um crescimento crítico da realidade em que vivia,
embora essa realidade sempre estivesse ali, em sua frente. O que mudou foi a lente para olhar o
mundo diferente, a lente de Mário mudou de cor, ficou mais nítida. E ele, como Pablo Neruda,
não ficou esses “conscientes chatos”, como alguns que vemos por aí, porque desenvolveu em si
a estética da criatividade, da poesia, da arte.
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Nesse filme, a poesia da natureza ultrapassa a poesia da escrita, já que Mário utiliza-se da
tecnologia que ele mesmo inventa para gravar a sonoridade da natureza e construir uma outra
poiesis, para homenagear o seu amigo e formador Neruda. Sai pela ilha acompanhado do chefe do
correio e grava os sons de seu lugar:
Número 01. As ondas em Cala di Sotto. Ondas Pequenas. Número 02. Ondas grandes. Número 03.
O vento nos rochedos. Número 04. O vento nos arbustos. Número 05. As redes tristes do meu pai.
Número 06. O sino da Igreja... com o padre. Número 07. Noite estrelada na ilha. Número 08. O
coração de Pablito.
Reminiscências...
Bibliografia consultada
ALMEIDA, Milton José de. Cinema: Arte da Memória. Campinas, SP: Autores Associados, 1999.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é o método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981.
(Coleção Primeiros Passos)
CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Tradução: Fernando Albagli e
Benjamim Albagli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
COUTINHO, Laura Maria. Aprendizagens, Tecnologias e Educação a Distância. Módulo 1, v. 3.
Brasília, UnB/FE, 2002.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Tradução de José A. Ceshin. São Paulo: Mercuryo, 1992.
PLATÃO. Diálogos III – A República. Tradução de Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Ediouro, s./d.
Notas
[1] Texto extraído da pesquisa de mestrado com o título provisório: Ressignificar o
Audiovisual na Alfabetização de Jovens e Adultos. UnB, Faculdade de Educação.
[2] Professora da Rede Pública de Ensino do DF, Assessora do MEC na área de
Educação de Jovens e Adultos, mestranda da Faculdade de Educação, UnB.
[3] Baseado no livro homônimo do escritor chileno Antonio Skármeta, editado no
Brasil pela Record.
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PROGRAMA 2
SOM, SILÊNCIO E FALA (TRILHA SONORA)
Filme sugerido: Abril Despedaçado
Maria Helena Falcão Vasconcellos 2
“Abril 1910 – na geografia desértica do sertão brasileiro, uma camisa manchada de sangue
balança com o vento. Tonho (Rodrigo Santoro), filho do meio da família Breves, é impelido pelo
pai (José Dumont) a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta ancestral entre
famílias, pela posse da terra. Se cumprir sua missão, Tonho sabe que sua vida ficará partida em
dois: os 20 anos que ele já viveu , e o pouco tempo que lhe restará para viver. Ele será então
perseguido por um membro da família rival, como dita o código de vingança da região.
Angustiado pela perspectiva da morte e instigado pelo seu irmão menor, Pacu (Ravi Ramos
Lacerda), Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição. É quando dois artistas
de um pequeno circo itinerante cruzam seu caminho... “ (da capa do vídeo).
Um olhar panorâmico
O filme todo articula duas lógicas que se contrapõem e ao mesmo tempo se conjugam, numa
história que acontece no sertão nordestino. História localizada e datada, que se dilata, expressando o
grande sertão da condição humana. Nele, a pulsação de possíveis veredas. A primeira lógica,
hegemônica, lógica do estabelecido, aprisiona um sentido de vida cristalizado e sem saída,
produzindo a morte em plena vida biológica. A outra, uma lógica “sem muita lógica”, tecida nas
linhas daquilo que vai acontecendo nas variações da vida, movimento aberto à possibilidade de
outros modos de organizar a existência.
A linguagem cinematográfica narra a história. E narrando a história, narra a construção de um beco
para a travessia da hegemonia de uma lógica dura à floração de outra lógica mais fluida. A travessia
é experimentação de um modo outro de existir, diferente do habitual experimentado como único
possível. Estréia de sentido novo, inauguração de outro modo de subjetivação. Passagem do
sentimento de impotência diante da obrigação de realizar o ritual de vingança, prescrito pela
tradição, ao sentimento da potência de se embrenhar pela invenção de um caminho novo que, sendo
desconhecido, não se sabe onde vai dar. É produção de um sentimento de si inédito. Sentimento que
se afirma na ação e segue movimento próprio.
A construção de uma outra percepção de si no mundo vai se construindo na complexidade das
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relações de forças que compõem essa história: o seco agreste nordestino; os Ferreira rivais; o desejo
de viver; o cultivo da obrigação de matar para vingar o irmão assassinado; a submissão do gado que
roda a bolandeira; o despertar das forças da juventude; a garapa escorrendo, esmagada nas
engrenagens; a mãe; as condições de trabalho; a perspectiva inapelável da morte; a religiosidade
pesada; a galeria de fotos dos mortos da família; as duras exigências do pai; as parcas condições
materiais da família; o medo da morte; o ambiente literalmente sério e carregado; a ausência de
expressões abertas de afeto; a proibição do riso e da alegria; o afeto, sensibilidade e lucidez de
Pacu, que questiona e pensa.
Enfim, a nova percepção germina nas engrenagens da máquina de moer cana e nas complexas
engrenagens do viver social.
No emaranhado dessas forças todas, Tonho é arrancado da estagnação em um modo determinado de
existir. Conta muito nesse processo a relação de cumplicidade e perspicácia questionadora do irmão
menor – Menino ou Pacu. Conta muito também a relação com a dureza do código da violência,
corporificado na dureza do pai.
No desenrolar do filme, novas relações se insinuam, quando Tonho e o irmão entram em contato
com outro modo de vida, que privilegia o risco e aventura; a mudança contínua; improvisação e
itinerância; sorriso-riso-gargalhada; a brincadeira; a graça, agilidade e beleza de Clara, jovem artista
circense.
O circo finca barraca em Bom Sossego. Os irmãos Breves conhecem a alegria e o riso de crianças e
adultos que assistem ao espetáculo. Ali a vida se mostra leve e fluida. A precariedade dos apetrechos
circenses é potencializada a favor do riso e do prazer.
Depois, Tonho segue com o circo até Ventura. Ele, que só conhecia Riacho das Almas, onde mora, é
fortemente afetado pela cidadezinha de Ventura e pelo que experimenta nessa viagem, ao lado de
Clara e Salustiano. Experiência de novo tipo de laço afetivo. Nas imagens que se sucedem, a
linguagem dos olhares enlaça Tonho e Clara.
É a descoberta de um mundo novo e, com ele, de um modo diferente de existir. Nova força entra na
engrenagem do viver de Tonho e Pacu. A paixão desestabiliza a obrigação de conformação a um
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sentido único e movimenta uma inquietação que abre veredas nunca dantes vislumbradas.
Olhares em zoom
1. Abertura
O título Abril despedaçado tem, como som de fundo, a fala de Pacu: Tonho, hoje é tu que vai
voar. A abertura mescla fragmentos de imagens em movimento e fotogramas fixos. Metáfora das
duas qualidades de movimentos que o filme embaralha?
Num primeiro bloco, ouve-se o ronco das engrenagens enquanto a câmara mergulha, mostrando a
bolandeira moendo a cana-de-açúcar. A insistência no detalhe dos dentes das engrenagens fala forte.
O movimento mecânico expressa, de modo plástico, a lógica do estabelecido e marcará todo o
filme. É o primeiro tipo de movimento. Movimento previsível e repetitivo, que engendra o mundo
da estagnação.
Dessa mesma engrenagem pode irromper, em fuga, uma outra lógica. Movimento aberto ao
inesperado, que engendra um modo novo de perceber-se com o mundo. Ele se insinua num
segundo bloco de imagens. Aparece Clara, cuspindo fogo em labaredas, que vão se refazendo em
formas imprevisíveis. Novamente se ouve a voz de Pacu: Ela é fogo, não te disse? E, contra um
azul transparente, o corpo de Clara gira no espaço, agarrado a uma corda. Mais, mais, roda
maissssss... grita ela, enquanto Tonho estica a corda e vai rodando. A câmara se desloca de baixo
para cima; de cima para baixo: Clara – Tonho. Os mesmos risos sonoros, um mesmo movimento
veloz. A lógica do riso se mostra de corpo inteiro e esgarça a lógica da tradição e do fardo.
Estava lançado o argumento do filme. O modo como a narração se constrói sustenta o argumento:
afirmação da força disruptiva e violenta da vida que, tecendo-se na lógica do devir e da criação,
despedaça devagar a lógica violenta da morte em vida.
Tonho, o protagonista, é tomado pelo movimento de desconstrução de uma subjetividade fixa,
formatada pelos ditames da tradição, alicerçada num sentido único para o viver. E é lançado na
aventura de uma identidade itinerante. Coisa de andarilho. Subjetividade móvel, que vai se fazendo
no agir, criando sentidos novos, nunca dantes vislumbrados. Sentidos não efetuados, mas que
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pulsavam como possibilidades nas engrenagens em que a vida se movia. A não conformidade de
Pacu e seu desassossego são forças que contaminam Tonho.
Na imagem final dessa apresentação, o convite para sair da narração da história e voltar à narração
do processo de produção do filme. Aparece um detalhe da câmera filmando o mar, o que remete à
cena final de Abril despedaçado, quando Tonho, depois de romper com a lógica do mundo em que
vivera, chega ao mar e contempla-o longamente.
São apresentados os créditos do filme, marcando bem a separação entre a apresentação e a narração
fílmica.
2. Início da narração
A narração da história se inicia com ruído de passos. Uma pessoa com chapéu de couro caminha
numa paisagem sombria. Silhueta escura num fundo azulado. É Pacu: “Meu nome é Pacu. É um
nome novo. Tão novo que ainda não peguei costume. Tô aqui tentando me alembrá uma história. Às
vezes eu alembro, outras eu esqueço. Vai ver que é porque tem outra que eu não consigo arrancá da
cabeça. É a minha história, de meu irmão e de uma camisa no vento.”
Uma camisa manchada de sangue seco, já amarelado, desfralda a lógica da violência e atravessa
entre o olhar do espectador e o rosto grave, ora do pai, ora de Pacu ou de Tonho.
A bolandeira aparece solene, focalizada em plongée. Um corte mostra, em detalhe, os dentes da
engrenagem se conectando, precisos. E rangendo, rangendo. Em primeiro plano, se sucedem os
Breves. A voz de Pacu vai apresentando o papel de cada um: “Pai é que toca os boi... Tonho, meu
irmão é o que mói a cana. Mãe recolhe os bagaço.”
O papel disruptor que ele desempenha na família vem límpido no comentário:
“Mãe costuma dizê que Deus não manda um fardo maior do que nós pode carregá. Conversa
fiada! (voz grave, pausada) Às vez ele manda um peso tão grande que ninguém güenta.” A dureza
da voz se rebela contra o fardo da tradição.
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Fardo. Talvez esse seja o modo como os Breves percebem a vida. Uma obrigação moral inexorável
pesa sobre todos. É contra esse mundo do fardo que Menino se rebela. O mundo do fardo se espanta
com outro tipo de mundo, que se insinua como mundo do riso.
3. Outros zoons
O primeiro a contatar os artistas foi Menino. Não tinha nome; simplesmente Menino. Ele está
carregando uma acha de lenha, quando passam os dois artistas de circo. A moça sorrindo lhe dá um
livro de histórias: “ – Você sabe ler?” “ – Sei não, mas leio as figura.” O livro, cheio de figuras,
passa a ser a possibilidade de criar outros mundos, mundos bonitos, mundos possíveis. À noite no
quarto, Menino lê seu livro. Tonho vê que ele está lendo de cabeça pra baixo: “ – Tá errado,
Menino.” “ – Tá não. Que pegá uma aposta mais eu?” E virando o livro de um jeito e de outro
mostra como a figura pode ser lida nas duas posições: “ – É igual de um lado e do outro. Tá vendo?
Tu é que não entende nada de livro.”
Quem disse que há um jeito único de se relacionar com um livro, de olhar as figuras? De olhar o
mundo?
Já nas cenas iniciais, Menino questiona a submissão ao código violento da tradição. A família
Breves está à mesa. O silêncio pesa no ambiente, reduzido ao mínimo necessário. A lamparina
tremeluz no escuro. Na parede, fotos da família. Última foto, a do irmão mais velho assassinado por
um Ferreira. No centro da cena, a honra da família Breves. Ouve-se a voz do pai, que rompe o
silêncio: “O sangue amarelou, Tonho, tu conhece a tua obrigação.” Menino olha para o irmão e ousa
desafiar a tradição: “Vai não, Tonho.” A mãe reforça a fala do pai: “A alma do teu irmão não
encontra sossego.” O pai continua: “Ele fez o que tinha que ser feito. Agora é a vez de Tonho.” Mas
Menino não se deixa convencer: “Vai não”. Uma bofetada estala forte e Menino cai. Levanta-se,
chorando seco, e senta-se à mesa. Em detalhe, a câmara foca a mão de Tonho apertando a mão do
irmão, pousada no joelho. Circula afeto e cumplicidade entre essas mãos.
Tonho parte para cumprir “sua obrigação”. O Ferreira se percebe perseguido e corre. Tonho corre
também. Arma em punho. A montagem dinamiza o conflito. A câmara se desloca, acompanhando os
dois homens correndo em meio à caatinga. O efeito é vertiginoso. Ouve-se a respiração ofegante,
ora de um Breve, ora de um Ferreira. Ouvem-se tiros. De repente salta o corpo do Ferreira e ouve-se
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um baque. No olhar inseguro, no pavor do rosto, Tonho duvida do sentido estabelecido para a vida.
A obrigação da vingança vacila nas engrenagens do ritual da morte. Tonho se sensibiliza ao ouvir
os roncos de morte e ao fitar o olhar desfigurado do inimigo. Racionalmente, ele sabe que cumpriu
sua obrigação, mas a vida reage e, no fundo, ele questiona existencialmente a lógica da morte. O
Ferreira, envolvido totalmente pelo sentido da vingança, mesmo nos estertores da morte, desafia a
suposta fraqueza do rival, num riso zombeteiro. E morre.
Era fevereiro; noite de lua cheia. Na próxima cheia será a vez de Tonho. Apenas o tempo da trégua.
No desenrolar-se do filme, a sensibilidade e a dureza rude se misturam, se contaminam. Há uma
arquitetura que compõe o mundo duro, de tristeza e vingança. A casa dos Breves, sombria e escura
por dentro, é regida pelas fotos dos mortos. Repetidas vezes a câmara passeia por essa galeria
fúnebre. A mãe, uma noite, ao deitar-se, sussurra cansada: “Nessa casa, os mortos é que comanda os
vivo.” No terreiro da casa, os bois, em movimento repetitivo, giram a bolandeira, enquanto as
engrenagens vão rangendo arrastado.
Menino, pressionado pelo peso das forças que compõem o mundo do fardo, diz a Tonho: “A gente é
que nem os boi. Roda, roda e nunca sai do lugar.” Isso depois de ter dito: “Tonho, eu tenho uma
vontade danada de ver o circo”, e ouvir deste: “Acha que pai ia deixá?” Mas essa resposta não
satisfaz Tonho, mexido pela fala de Pacu. E no escuro da noite, a câmera mostra a perplexidade no
rosto de Tonho. De repente diz: “Vão bora, Menino. Tu não queria ver o circo?” e escapam pela
janela do quarto.
O espetáculo do circo é algo mágico para os dois irmãos. O sorriso e a graça de Clara, as labaredas
de fogo, a platéia rindo solto, a emoção contida na simulação de um acidente, seguida de
descontração e alívio na descoberta da armadilha. Menino recebe de Salustiano um nome: Pacu,
nome de peixe. Não gosta do nome, mas parece que aceita, já que é assim que se apresenta no início
do filme: “Meu nome é Pacu...”
O circo significa um outro mundo. Menino não é o mesmo. Agora é Pacu. Os irmãos voltam para
casa renascidos. Tonho grita no meio do agreste seco: Pacuuuu.
O pai percebe que saíram e os espera no escuro, com uma vela na mão. Questiona: “– Onde tu levô
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o Menino?” Só o silêncio responde. “– Onde tu levô o menino?“ “– Pro circo”. “– Pra onde?” “–
Pro circo.” O pai manda Menino para o quarto e continua a prosa com Tonho: – Tu vai pras festa
numa hora dessa, Tonho. Tu perdeu o respeito dos morto dessa casa? Tu devia se guiá por Inácio,
teu irmão mais velho.” “– Se preocupe não. Que eu já tô seguindo os passo dele”. O pai se exaspera
e grita: “– Tu cala essa boca.” “– O senhor me desculpa, mas eu não vou calá não.”
Depois de respirar os ares do espetáculo do circo, depois dos risos e gargalhadas, Tonho questiona o
mundo de interdito absoluto ao riso e à alegria. A vida exorcizada teima em abrir brechas e fazer
saborear porções discretas de sua potência.
Tonho espera o dia em que será assassinado em nome da vingança, mas não está morto. Depois do
circo, depois de Clara, depois dos questionamentos de Pacu, Tonho é outro. E o pai se espanta com
o inesperado da atitude do filho do meio. Tenta fazê-lo voltar aos laços da submissão de sempre.
A câmara foca, em detalhe, a correia de couro e desenrola-se cena trágica em gesto e palavra. A
força do pai é confissão de fraqueza. A certeza que alicerça a estrutura da família Breves está
desmoronando.
– Cala essa boca.
– Não calo.
A correia se agita no ar e golpeia.
– Cala.
– Não calo.
Novamente o braço se ergue e a correia desce forte.
– Cala.
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– Não calo.
– Cala.
– Não calo.
A cada insurgência, novo golpe da correia.
Realmente Tonho está se tornando outro. O pai pressente confusamente o perigo das in-surgências.
Primeiro foi Pacu, depois Tonho e até... Será que o gado também se insurge?
Na bolandeira, o pai aguilhoa um boi exausto, que se recusa a continuar rodando. A câmera mostra
o detalhe do olho manso e submisso do boi. Fustigado, empurrado e puxado, o boi se levanta e
continua a rodar. Esta cena acentua as cores pesadas do mundo dos Breves.
Abre-se outra cena, com um grito de Pacu, olhando pra longe: “Tooonho! Os boi tão rodando
sozinho.” Tonho larga a acha de lenha que traz nas costas e olha expressivo. Dois bois rodavam,
rodavam em volta da bolandeira, mesmo sem a canga no pescoço. Tonho olha. A câmara registra
um olhar pensativo. Na madrugada escura vem a reação e Tonho sai de casa uma segunda vez. Volta
a Bom Sossego. De lá partirá para Ventura, com Clara, Salustiano e o circo.
Em Ventura, Clara e Tonho se aproximam mais. Ela diz a Tonho: “Vou te ensinar uma coisa, me
ajuda aqui.” Tonho segura a corda, Clara se agarra e solta o corpo no ar em rodopios velozes.
Tonho vai rodando a corda com força: “Mais , mais, roda mais.” Risos se espalham sonoros. São
risos de Clara. Salustiano reprova a aproximação dos dois jovens. Tonho volta para casa.
É o caso de perguntar: Quem ensina o quê a quem?
Aproxima-se a lua cheia e Tonho tristonho, sentado no balanço. Pacu chega, observa
cuidadosamente o rosto do irmão. E Tonho: “ – Tu lembra que eu te ensinei? Tu morria de medo.”
“– Tonho, hoje é tu que vai voá. Tu fica no meu lugar e eu no teu.” “– Não, eu não quero, não.” Mas
Pacu empurra o balanço e Tonho, após a resistência inicial, voa alto e sorri. Menino empurra forte e
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ri, ri, ri.
A câmara registra o que se segue. A corda do balanço arrebenta e Tonho cai, imóvel, no chão. Pacu
se desespera. Inclina-se sobre o irmão, chamando-o. Pai e mãe observam de longe, cheios de temor.
Tonho, de olhos fechados, nem se mexe.
Mas deixa estar, que era apenas uma brincadeira de Tonho. Uma cena belíssima se desenrola
próxima da bolandeira, destoando do ambiente dos Breves. De repente, Tonho começa a rir, faz
cócegas no irmão, os dois rolam no chão gargalhando forte, numa alegria desprendida e boa. Cena
emblemática: da experiência diária do culto da morte, o momento inesperado do gozo da vitalidade,
do afeto, do brincar. Estampa-se o riso aberto no rosto da mãe. Nunca visto. Os dois olham e a mãe
continua rindo, rindo. Deitados no chão inventam outro mundo, outro modo de existir. Riso da terra.
Quando se ouve o riso do pai, os dentes se mostrando arreganhados, Pacu se assusta, fica sério, cai
na real do mundo em que vive. A câmara registra o rompimento do instante de gozo. De alguma
maneira mãe e pai são também provocados pela novidade que vai se instaurando no modo de
existir dos filhos.
Contracenando com o mundo dos Breves, o mundo do circo se mostra como o RISO DA TERRA.
É o que diz a faixa estendida na boca do circo. A vida do circo, os artistas, principalmente Clara,
expressam um mundo outro: outros sentires, outros olhares, outros fazeres, outros afetos; muitos
sorrisos, risos e gargalhadas nas andanças da luta pela sobrevivência.
Mas o circo não é só alegria. A relação de poderio de Salustiano sobre Clara é de prisão. Já no final
do filme, quando Tonho, mais uma vez, volta para casa, Clara deixa o circo, onde era subjugada, e
decide procurá-lo. Salustiano tenta impedir, dizendo que Tonho, marcado para morrer, talvez até já
esteja morto. Ela retruca: “ – Mas eu estou viva.” Clara vai até Riacho das Almas e diz a Tonho: “–
Vim te dizê que não tô mais presa e foi tu que me ajudou. Tu também pode, Tonho.” Eles se
acariciam, se beijam, entram na casa da lenha e se amam.
A pergunta insiste: quem ajuda a quem?
Depois disso, o desfecho é rápido. Um Ferreira espreita a casa. Pacu está sentado na janela do
quarto, de onde Tonho pulou e apara na mão a água da chuva. Chuva forte no sertão esturricado.
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Pacu ouve ruídos, pressente perigo. Pula pro terreiro e se dirige à casa da lenha. Contempla Tonho,
que ainda dorme. Clara já saiu. No chão, a tarja preta que marca o cabra que deve morrer. Pacu
pega a tarja e coloca na manga de sua camisa. Põe o chapéu de couro do irmão e sai andando.
Ouve-se o ruído dos passos, vêem-se galhos ressequidos no alto das árvores do caminho. O Ferreira
corre, dispara um tiro. Na corrida perde os óculos. Ouve-se a voz de Pacu: “– Agora tu já sabe a
minha história, mas eu continuo sem me alembrá da outra. A sereia... diacho! O Menino vai buscar
a sereia. Não, não era isso. Caraio! A sereia é que veio buscar o Menino. É isso. Eu estou
lembrando. (ri gostoso) Um dia a sereia veio buscar o Menino pra vivê mais ela. Ela virou o
Menino em peixe e levou ele pra viver debaixo do mar. No mar ninguém morria e tinha lugar pra
todo mundo. No mar eles vivia tão feliz, mas tão feliz que não conseguia parar de dar risada.”
Ouvem-se risos e mais risos do Menino. O Ferreira mira Pacu, pensa que é Tonho. O tiro é certeiro.
Riso e morte se encontram.
Tonho corre, vê Pacu morto, chora. Mãe e pai se desesperam. O pai grita: “– Mataram o Menino.
Pega a arma, Tonho. Não tem trégua. Vai meu filho, cobra o sangue, já.”
Tonho não diz nada. Entra em casa, pega alguma coisa, sai decidido: “– Quedê a arma, Tonho?”
Tonho pega a estrada e caminha resoluto.
“– Tu volta ou morre agora pela honra de nossa família.” Tonho caminha sem olhar pra trás. O pai
mira a espingarda. O alvo é Tonho. A mãe se precipita, agarra a arma e desvia a mira: “Acabô,
home, acabô, home, acabô tudo.” Os dois choram abraçados.
Transcorria o mês de abril. Abril despedaçado.
Tonho segue em frente, sorriso levíssimo, cara de homem, dono de seu nariz. O caminho se abre
numa encruzilhada. Várias vezes a câmara focalizara a encruzilhada. A opção costumeira era a trilha
da esquerda. Nesse dia, Tonho toma a outra trilha. E vai dar no mar.
O céu de Riacho das Almas acolheu três luas redondas. De fevereiro a abril três assassinatos
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confirmam a lógica da violência: Inácio, um dos Ferreira e Menino. Segundo o código vigente não
chegara ainda a vez dele, mesmo assim, em abril, mataram o Menino.
Estaria despedaçada a engrenagem da vingança? O mundo do fardo, em que se movia a família
Breves, fora despedaçado?
Esse “abril despedaçado” fortalece o mundo do riso, que só fez crescer no período das três luas
cheias. O mundo do riso iria mesmo vingar?
Notas:
[1] Direção: Walter Salles - Produção: Brasil-Suíça-França. Livremente inspirado no livro,
de mesmo nome, do escritor albanês, Ismael Kadaré, foi filmado no segundo semestre de
2000, no interior da Bahia.
[2] Professora do curso de Filosofia do CES-JF (Centro de Ensino Superior de Juiz de
Fora); Mestre em Ciências Sociais aplicadas à Educação – UNICAMP/Campinas, SP.
Doutora em Psicologia Clínica (Programa de Estudos e Pesquisas da Subjetividade) – PUC
– SP.
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PROGRAMA 3
EDITANDO A REALIDADE (MONTAGEM)
Filme sugerido: Nenhum a menos
Editando a realidade: Nenhum a menos 1
Rosa Helena Mendonça 2
Carla Inerelli 3
Etimologicamente, a palavra edição tem origem no latim editio-onis, que em sentido próprio
significa “ação de dar à luz, parto”. O sentido de publicação de um livro, de “atividade ou
empreendimento editorial”, de “seleção e combinação de materiais gravados ou filmados para
feitura de um programa, filme”4 acabou por se constituir no sentido que hoje emprestamos a essa
palavra.
Editam-se livros, jornais, programas de TV e filmes. Entretanto, há uma especificidade quanto ao
processo de edição de cada um desses “textos”. No cinema, podemos dizer, editar envolve, entre
outros aspectos, a ação de escolher, entre as cenas gravadas, as que farão parte do filme, ou, numa
outra perspectiva, de excluir o material que não irá compor a obra. A esse trabalho, agrega-se outro,
o de ordenar as cenas entre si, compondo uma relação entre parte e todo, numa costura que envolve
muitos elementos cinematográficos5. Dessa forma, podemos dizer que são os processos de captação
e de montagem que permitem ao cineasta “dar vida” a uma história. Tudo o que antecede esse
processo são apenas partes, trechos de uma história, que só ganha movimento quando é projetada na
tela.
No processo de captação de imagem, os recursos que podem ser utilizados são basicamente os tipos
de enquadramentos que a câmera oferece: close, plano americano, travelling, panorâmica. Sem
esquecer que, em cada cena captada, há alguns outros aspectos, como, por exemplo, todo o trabalho
de iluminação que precisa ser feito6. No processo de edição, temos a justaposição das cenas
gravadas entre si7. Nessa junção, podem ser utilizados diferentes tipos de “corte”: seco, ou com
efeitos especiais (fusão)8... Enfim, aqui também são múltiplas as possibilidades... Na finalização
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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do filme temos, ainda, a inclusão da trilha sonora, a abertura do filme, os créditos e o cuidado com
os demais detalhes técnicos que irão compor a obra.
Assim, podemos dizer que qualquer filme traz, ainda que de forma diferenciada, os elementos
citados, além de muitos outros. É por meio desses recursos que os cineastas podem “brincar” com a
noção de tempo e de espaço e, por conseqüência, com a representação da realidade. Para “entrarmos
nessa lógica do cinema”, basta, para isso, levantarmos a seguinte questão: Como é possível contar,
em apenas duas horas, histórias que podem durar dias, anos, ou mesmo décadas, séculos,
envolvendo indivíduos ou coletividades, tratando de dramas pessoais ou de fatos históricos?
O interessante desse processo é que todos os elementos de que o cinema se utiliza, ao longo do
tempo, foram sendo, aos poucos, percebidos e “interiorizados” pelos espectadores, permitindo, com
isso, a compreensão da linguagem cinematográfica. Se antes as “cabeças decepadas” 9 assustavam o
pequeno público que se interessava pela “nova” arte, já faz algum tempo que somos capazes de
perceber, identificar e reconstituir, por inteiro, a imagem que se apresenta fragmentada na tela, um
big close é tão natural quanto qualquer figura que aparece inteira na tela10.
Mas, se por um lado, com o passar dos anos, adquirimos uma certa “fluência” nessa linguagem, por
outro, alguns desses artifícios permanecem enigmáticos para nós. E ainda que não tenhamos de
desvendar esses “segredos” para conseguirmos construir um sentido para uma narrativa
cinematográfica, temos de considerar que, ao atentarmos para alguns desses elementos, muitos
outros sentidos para a história podem “vir à tona”. Assim, ao buscarmos desvendar esses “enigmas”,
poderemos atribuir outros sentidos para a narrativa, sentidos esses que talvez não se evidenciassem
numa leitura em que esses elementos constitutivos do cinema não fossem considerados, por
desconhecimento ou desatenção. Vale aqui ressaltar que não estamos nos referindo à busca da
intencionalidade do cineasta ao compor a obra. Queremos apenas ressaltar a possibilidade de se
construir significados para o filme, considerando esses elementos, já que os filmes são sempre
construções.
O filme escolhido, para fazermos essa discussão, foi Nenhum a menos, do diretor Zhang Yimou
(China, 1998). O motivo: a possibilidade de pensarmos a edição como elemento da linguagem
cinematográfica, por meio de um universo tão familiar na educação: a relação professor-aluno. A
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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esse motivo, soma-se outro: a oportunidade de enriquecer essa discussão, considerando também a
experiência de ter apresentado esse filme em sala de aula. Assim, esse texto traz, ainda que de
maneira indireta, as impressões dos alunos, bem como a experiência de duas professoras utilizando
o cinema em suas aulas.
A partir dessa experiência com os alunos e considerando também as discussões que vêm sendo
realizadas no programa Salto para o Futuro, a respeito dessa temática – cinema e educação –
buscaremos compreender e refletir sobre o sentido desses elementos constitutivos do cinema. Para
isso, escolhemos algumas cenas do filme Nenhum a menos, em que consideramos que essa questão
se evidencia de maneira mais expressiva do que em outras. Como em todo o processo de “edição”,
certamente, muitas coisas importantes ficaram de fora. Mas, por outro lado, foi possível rever
alguns trechos do filme que consideramos significativos e nos deter neles, buscando construir um
sentido entre os recursos utilizados pelo cineasta e o enredo da história, que narra a experiência de
uma jovem de treze anos que substitui o professor de uma classe multisseriada, no interior da China.
Tendo assumido com o velho mestre o compromisso de que, quando ele retornasse, não haveria
“nenhum a menos” entre os alunos, a jovem empreende uma incessante busca a um dos alunos que
“se evadiu” da escola, em busca de trabalho na cidade grande.
Na primeira cena, vê-se um homem, de costas, caminhando em uma estrada de terra. À sua frente,
uma paisagem composta por montanhas em diferentes tons de verde. Pequenas construções, que
parecem ser de argila, compõem a cena. À medida que ele caminha, uma jovem surge no canto
esquerdo da tela... Ela anda bem depressa, e até corre para conseguir acompanhá-lo. A câmera,
nessa primeira seqüência de cenas, fica praticamente imóvel... Quando há algum deslocamento para
a direita, é apenas para acompanhar os passos desses dois personagens. Ninguém fala, não há
música de fundo, o silêncio só é quebrado pelo som ambiente, pelos passos, pelo ruído de alguns
insetos e pelo canto dos pássaros.
Ao levarmos o filme para uma turma de quinta série, composta de alunos entre doze e quinze anos –
apesar de ter sido feita uma contextualização, na qual procuramos situar o filme, a história, o gênero
– para alguns desses alunos o ritmo e a ausência de diálogos foram inquietantes e perturbadores, a
ponto de a exibição ter de ser interrompida e retomada posteriormente. O diálogo que se segue é
uma tentativa de reproduzir esses momentos iniciais da aula:
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Aluno1: “Professora, aumenta aí o som. Não dá para ouvir nada.”
Professora: “Calma, eles não estão falando ainda, mas prestem atenção que dá para ouvir os
passos deles, os pássaros, o vento nas folhas...”
Aluno2: “Nem adianta aumentar, porque eles falam chinês, não dá para entender nada (risos). Tem
que ler o que está escrito.”
Esse diálogo ensejou uma experiência. A professora propôs à turma que voltasse a assistir o início
do filme, duas vezes. Uma com o volume regulado para o tamanho da sala, e outra sem som algum.
Foi então que os alunos puderam expressar a percepção de que o som é um importante elemento
constitutivo da narrativa, ainda que ela esteja sendo narrada em chinês.
Voltando ao filme, esses recursos que citamos acabam por imprimir, a esse trecho do filme, uma
certa lentidão, que parece ser a mesma velocidade com que o tempo escoa naquele lugar: uma
pequena vila no interior da China. Assim, todos os elementos do filme parecem ser utilizados para
atribuir um certo grau de realismo à história. Essa forma de captar e juntar as imagens, utilizada
pelo diretor, se assemelha aos documentários, mais, talvez, do que aos filmes de ficção. Esse
“realismo” se acentua ainda mais quando consideramos também a escolha do elenco do filme10 que
traz, para essa história, crianças e adultos que enfrentam essa mesma realidade no seu dia-a-dia, ou
seja, não são atores profissionais. Além disso, a história é inspirada em um fato real. Uma “edição
da realidade” como forma de construção da linguagem cinematográfica.
Porém, esse “realismo” parece se desvanecer sob os efeitos de luz utilizados para compor o
“cenário”. Não importa tanto saber se foi utilizado algum filtro ou se a tonalidade alcançada está
relacionada ao horário em que as cenas foram captadas. Mas, olhando para essa primeira seqüência
de cenas, temos a sensação de que cada take pode ser comparado a uma pintura, sobretudo pelo
aspecto “aquarelado” que as cenas sugerem. Esse artifício da luz também permite graduar o passar
do tempo nessa história. Para indicar que o dia está amanhecendo, por exemplo, o tom é claro,
azulado; durante o dia, o amarelo prevalece; ao anoitecer, o tom vai ganhando novos contornos de
um azul, mais escuro a cada take. É por meio de uma variação na nuança e na intensidade dessas
cores que o diretor nos informa sobre a “mudança no tempo”, ajudando-nos a introjetar um ritmo
peculiar às pequenas vilas, onde não se subverte, assim como acontece nos grandes centros, o ritmo
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
29
das horas. Pelo contrário, onde a vida parece fluir no tempo mesmo indicado pelo movimento da
Terra.
Isso poderia ser a explicação para a inquietação que tomou conta da platéia de alunos, acostumada
ao ritmo acelerado da cidade e, principalmente, “educada” pela exposição aos filmes de ação
frenética, que invadem tanto as salas de cinema, quanto os lares, pela tela da TV.
Em cena, sai o professor Gao, entra Wei. As crianças, sem os limites demarcados com rigor e afeto
pelo velho mestre, começam a imprimir um novo ritmo à narrativa. Falam mais, fazem “bagunça”,
conversam, brigam... E os planos e cortes revelam essa polifonia.
É justamente quando Wei vai para a cidade à procura de Zhang que a edição busca compor uma
interseção entre as duas realidades: os tempos/espaços do campo e da cidade se fundem na figura da
jovem professora, que tem de se adequar às exigências do novo contexto.
A rodoviária é o lugar de confluência entre essas duas experiências. É lá que Zhang se perde e é lá
que a busca da professora Wei realmente tem início. Tudo o que aconteceu antes – a decisão de ir
para cidade, a tentativa de conseguir a ajuda do prefeito, a solidariedade e o envolvimento dos
alunos, que se esforçam para conseguir o dinheiro para a passagem, o fato de ter feito a viagem
primeiro a pé, depois de carona, além de muitas outras dificuldades – nem de longe anunciavam o
drama que Wei viveria na cidade.
Na rodoviária, pessoas de todos os lugares, partindo, chegando... Cortes e planos buscam expressar
esse aparente caos urbano... Um movimento que parece desordenado, quando observado “de fora”,
mas que, na verdade, atende à complexidade da vida atual, onde as pessoas estão permanentemente
envolvidas nesse universo de “chegadas e partidas”. A comunicação interpessoal não dá mais conta
do diálogo e é necessário buscar intermediações.
A seqüência em que Wei procura o serviço de alto-falante para tentar localizar Zhang evidencia o
descompasso entre a sua cultura e os valores vigentes nas relações impessoais dos grandes centros.
Impaciente com a longa explanação de Wei sobre o desaparecimento do menino, a funcionária
entrega-lhe papel e lápis para que a mensagem a ser lida seja redigida. Mas o texto escrito pela
jovem professora é longo, expressa as razões da vinda do menino para a cidade, fala do cotidiano
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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difícil da vida na aldeia, da pobreza, da doença da mãe de Zhang... A funcionária, armada de uma
caneta e da “couraça” que provavelmente criara para lidar com tantas situações semelhantes, exige
objetividade. E a intervenção (no caso, também uma “edição do texto”) se dá no sentido de,
excluindo a narrativa de Wei, imprimir pertinência e clareza ao aviso. O texto a ser lido no altofalante pela funcionária não comporta ambigüidades... Ao contrário, por exemplo, do texto literário,
em que as ambigüidades são permitidas e dão origem a múltiplas leituras. “Nada disso interessa”,
diz ela cortando a parte do texto que conta a história do menino. A funcionária esclarece que a
mensagem a ser lida precisa dizer: “Como o menino é, como estava vestido, quando exatamente
desapareceu, onde estarão esperando por ele”... Esses são os elementos essenciais a um aviso de
desaparecimento, texto que jamais seria utilizado na vila, onde todos se conhecem pelo nome.
Como a chamada oral não surte efeito, Wei decide, inspirada em um quadro de avisos, espalhar
alguns cartazes, que redige com “paciência oriental”. Gasta seus últimos recursos em papel, pena e
nanquim e, aproveitando o breve ensinamento que obteve sobre o modelo textual em questão, vara a
madrugada na empreitada de compor vários cartazes. A edição em fusão, aliada à trilha sonora,
envolve o espectador na atmosfera. Um outro espectador, que acompanhava o trabalho – este um
viajante que compartilhava com a menina o pernoite na rodoviária, esperando alguém, um ônibus,
ou quem sabe aguardando o raiar do dia em um local seguro – curioso com os dizeres que iam
sendo desenhados, aproxima-se, lê e comenta: “Não tem número de pager, celular, endereço, região,
distrito... Não vai adiantar! As pessoas não lêem, têm preguiça até de pegar o telefone...” diz,
afastando-se, e deixando antever que uma “impaciência à ocidental”, mesclada a um crescente
individualismo, parece ser a marca de todas as grandes cidades no mundo. A persistente jovem vai
atrás dele e exige uma interferência que ultrapasse a crítica e aponte possibilidades naquele universo
tão desconhecido para ela.
“É só aparecer na TV, a cidade toda vai saber”, sugere rispidamente o interlocutor. Wei desiste de
afixar os cartazes, mas não desanima e sai em busca de mais uma intermediação para tentar
localizar Zhang. A professora vai ao encontro da TV.
Os mesmos efeitos de luz, aliados à trilha sonora e às sucessivas fusões, são os recursos que nos
permitem perceber o descompasso entre o tempo de Wei e o da cidade. E entre este e o da TV!
A persistência, aliada ao acaso, possibilitam que Wei tenha seus “quinze minutos de fama”. Uma
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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jovem professora que busca um aluno “evadido” da zona rural e perdido num grande centro. Uma
personagem perfeita para uma matéria sobre Educação no campo, a ser veiculada no telejornal
“China Hoje”, percebe, com seu “faro” jornalístico, o diretor da emissora.
E se, segundo Goulart (2003, p. 182-3) “o cinema (...) pode apresentar-se como uma reflexão sobre
o ser humano e sua universalidade, embora, no caso deste filme, à primeira vista, tantas diferenças
se destaquem de modo tão forte”, as semelhanças também podem ser surpreendentes. A
apresentadora do telejornal, não fosse pelos olhos amendoados e o idioma falado, bem poderia estar
apresentando uma edição na TV brasileira, pelo gestual, corte de cabelo, indumentária e, sobretudo,
o modo de conduzir a entrevista (se a escola já tinha possibilitado perceber identidades, entre
realidades tão distintas, a TV quase que elimina as diferenças, produzindo semelhanças).
Semelhanças logo percebidas pelos alunos que acompanhavam o filme, a essa altura já bastante
envolvidos pelo forte clima emocional que se criara. E, neste ponto, a edição do filme se confunde
com a edição do telejornal. Apresentadora pergunta, corta para Wei, a menina com a voz
embargada, corta para a apresentadora que introduz novas informações e volta à entrevistada, corta
novamente para Wei que continua em silêncio, corta para a apresentadora, volta para a menina,
corta para a lente, Wei, lente, Wei (close), contendo o choro, suplica a Zhang que volte.
A essa altura, parte da platéia de estudantes também continha as lágrimas, um choro compartilhado
por Zhang quando viu sua professora na tela.
Esse tratamento, tão freqüente em matérias desse gênero, confirma a assertiva de Moran, “os meios
de comunicação operam imediatamente com o sensível, o concreto, principalmente a imagem em
movimento (...) ao mesmo tempo utilizam a linguagem conceitual falada e escrita, mais formalizada
e racional. Imagem, palavra e música integram-se dentro de um contexto comunicacional afetivo, de
forte impacto emocional, que facilita e predispõe a aceitar mais facilmente as mensagens” (Moran
2000, p. 33-4). Assim, a utilização de recursos de metalinguagem –imagem dentro da imagem, TV
dentro do cinema – possibilitou a discussão sobre o processo de manipulação a que somos muitas
vezes submetidos enquanto espectadores, uma vez que essa parte do filme funciona como um
making of do telejornal.
Ânimos aliviados, a turma de lá, da tela, comemora a volta de Zhang; a de cá, de uma escola
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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pública brasileira, também se emociona com o desfecho.
Se a professorinha chinesa foi persistente, as professoras brasileiras, apesar dos longos anos de
regência de turma, também tiveram de ser. Foi necessário romper com o preconceito de que aquele
tipo de filme não interessaria a alunos daquela idade e realidade – acostumados a um outro ritmo de
linguagem, cada vez mais alucinante, à moda dos videoclipes e dos hipertextos – e, sobretudo, foi
necessário ter paciência de interromper e recomeçar, sem desistir... E essa persistência foi
imprescindível para abrir caminhos para a veiculação de outros filmes... Não sabemos se esses
jovens incorporaram essas experiências à sua vivência, de espectadores e cidadãos. Esperamos que
sim. Temos notícias de que, pelo menos um desses alunos – senão “nenhum a menos” – hoje
trabalha como projetista em uma rede de cinemas de arte e pensa em cursar/fazer cinema... Quem
sabe?!
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Milton José de. Cinema arte da memória. Campinas-SP: Autores Associados, 1999.
AUGUSTO, Maria de Fátima. A montagem cinematográfica e a lógica das imagens. São Paulo:
Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2004.
COUTINHO, Laura Maria. O estúdio de televisão & a educação da memória. Brasília, ed. Plano,
2003.
DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
MORAN, José Manuel, MASETTO, Marcos T., BEHRENS, Maria Aparecida. Novas tecnologias e
mediação pedagógica. Campinas, SP: Papirus, 2000. (Coleção Papirus Educação)
GOULART, Cecília Reinventando diálogos, vínculos, razões e sensibilidades. In: TEIXEIRA, Inês
Assunção de Castro e LOPES, José de Sousa Miguel (orgs.). A escola vai ao cinema. 2a ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2003.
Notas:
[1] Este texto busca dialogar com o projeto desenvolvido na Escola Municipal José
de Alencar, na Cidade do Rio de Janeiro, pelas professoras Rosa Helena Mendonça
e Vera Mourão, em 1999-2000, nas aulas de Língua Portuguesa. Em síntese, a
proposta era assistir a um filme, quinzenalmente, em vídeo, buscando sempre
alternativas qua ampliassem o repertório fílmico ao qual os alunos tinham acesso, na
TV, nas salas de cinema (onde se exibem filmes de ampla divulgação comercial) e
na maioria das locadoras. Assim, no projeto, foram escolhidos filmes chineses,
iranianos, brasileiros e também europeus, que em geral só costumam ser exibidos
nos cinemas de arte.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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[2] Mestre em Educação pela PUC-Rio. Professora de Língua Portuguesa (SME/RJ).
Professora de Tecnologias da Informação e da Comunicação (UNESA). Supervisora
Pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola.
[3] Mestre em Educação (UERJ). Pedagoga. Analista educacional do programa Salto
para o Futuro/TV Escola.
[4] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 1986.
[5] Até mesmo antes desse processo, há todo um trabalho anterior que envolve a
escritura do argumento, o desenvolvimento do roteiro, a escolha dos personagens...
No entanto, aqui vamos nos deter no momento de captação e montagem do filme,
pois há uma relação direta com o tema desse texto.
[6] Isso tudo sem considerar a direção dos atores.
[7] No caso do filme de ficção, esse trabalho já está previsto no roteiro. Já no
documentário, geralmente, esse trabalho ocorre posteriormente ao processo de
captação de imagens.
[8] Muitos de nós também já utilizamos esses artifícios, quando montamos uma
apresentação no Power Point, por exemplo. Este instrumento pede esses recursos
de linguagem e de edição emprestados ao cinema. E, hoje, o computador faz
edições para cinema e TV. A moviola, embora, insubstituível em muitos casos, já não
é mais a única responsável pela montagem.
[9] Massimo Canevacci, citando Béla Balàzs, diz que este usa palavras cheias e
comoção para descrever a ‘descoberta’ do primeiro plano, por ele atribuída a D.W.
Griffith, que inventou também a montagem alternada. Graças à fisionômica, o
cinema exalta a correspondência entre os sentimentos interiores até os mais
escondidos do homem e os traços do rosto: os movimentos da alma impressos,
‘marcados’ no código facial que, de tal modo, se torna a máscara da tela. (...) No
primeiro plano freqüentemente está a dramática revelação daquilo que realmente se
esconde na aparência do homem. Antropologia da comunicação visual. São Paulo:
Brasiliense, 1990. In: Boletim Diálogos Cinema e escola. Programa Salto para o
Futuro/TV Escola, junho 2002.
[10]Coutinho, Laura Maria. Boletim Diálogos Cinema e escola. Programa Salto para
o Futuro/TV Escola, junho 2002.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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PROGRAMA 4
A ORIGEM DOS ENREDOS
Filme sugerido: O senhor dos anéis
Osvaldo Condé 1
Segundo Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica, ou Junguiana, os mitos estão
guardados no inconsciente individual ou coletivo do homem, de onde periodicamente saem como
“os males libertados da caixa de Pandora”, só que com objetivo diverso: o de integrar o consciente e
o inconsciente, produzindo o crescimento do homem.
Estes mitos são arquetípicos, outra expressão divulgada por Jung, marcas antigas, padrões que se
repetem indefinidamente, seja na religião ou nos contos populares, no teatro ou na literatura, já que
todas estas manifestações têm por base a natureza humana.
Um empresário de Nova York, um camelô da capital de São Paulo, um sambista do Rio de Janeiro
ou um índio xavante, todos têm um objetivo em comum: sobreviver. Assim, todos esses
personagens passam pelos mesmos processos básicos: nascem, crescem, se reproduzem e morrem...
Vão à escola, fazem amigos, namoram, ganham dinheiro, sofrem, riem, adoecem, lutam, vencem,
perdem. Todos eles têm suas referências pessoais, crenças, mitos e um cabedal de experiências
particulares.
As experiências particulares são os sotaques, o colorido regional ou familiar; entretanto, as bases, as
histórias folclóricas, os mitos e as religiões do seu universo psíquico são muito semelhantes, podese dizer que são INCRIVELMENTE as mesmas, pois nascem no mesmo ambiente: o inconsciente
humano. Isto pode explicar a misteriosa repetição dos enredos, cujos temas centrais ultrapassam a
fronteira do tempo e da cultura.
Estudiosos de literatura, escritores e roteiristas de cinema ou de TV sabem que o número de
histórias originais é muito limitado. Alguns autores chegam a dizer que existem em torno de 40
histórias, todas as demais seriam adaptações ou cópias. É por isso que os indianos costumam dizer
que a história que não estiver contida no Mahabharata não existe!
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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O Mahabharata, atribuído a Vyasa, um texto com mais de 90 mil versos em sânscrito, é a maior
epopéia já escrita, há milhares de anos, e conta a guerra e disputas ocorridas dentro de um clã pela
posse da Índia antiga. O famoso Bagavad Gita, livro de cabeceira dos Hare Krishna, é apenas um
trecho do Mahabharata, transformado em filme, numa versão teatralizada, pelo diretor Peter Brook,
com mais de cinco horas de duração.
O Mahabharata tem uma estrutura similar à d’As Mil e Uma Noites, com muitas histórias dentro de
histórias ou histórias que correm paralelamente ao enredo central. As novelas modernas adotam esta
forma de narrativa, congregando para uma só história várias outras que se tocam; uma novela é
contada em vários “núcleos”.
É num destes clássicos textos arianos, compilados oralmente muito antes de Cristo, donde
extraímos alguns exemplos da repetição curiosa dos enredos, evidenciando a limitação da
originalidade. Ramayana, escrito por Valmiki, é esse outro clássico e irmão literário do
Mahabharata.
O Ramayana, o veículo ou o caminho do deus Rama, possui mais de 25 mil versos e conta a história
de um Avatar – uma das nove encarnações da divindade Vishnu – donde, a título de exemplo,
podemos citar pelo menos três pequenas histórias ou episódios que se tornaram enredos de
modernos filmes hollywoodianos:
Dois demônios moravam à beira de uma estrada, na borda de uma floresta. Pela janela da casa, eles
espreitavam os peregrinos que por ali passavam a caminho da floresta, em busca de um local para
meditar. Ao avistar um peregrino que se encaminhava em direção à casa, um dos demônios se
escondia na cozinha e o outro tomava feições humanas. Assim disfarçados, o demônio com feições
humanas chamava o peregrino, convidava-o a se refrescar à sombra e lhe oferecia comida. O
peregrino, cansado e naturalmente agradecido, aceitava a hospitalidade.
Enquanto isso, o segundo demônio se transformava em carneiro na cozinha, onde era morto pelo
demônio humanizado, depois preparado e servido ao agradecido e inocente peregrino. Tão logo o
viajante comia uns pedaços da refeição, o demônio disfarçado de gente se afastava e gritava: sai
berrando! E neste momento, o carneiro saía vivo de dentro do peregrino, estraçalhando-o em agonia
mortal. Os dois demônios assumiam sua forma original e devoravam o infausto viajante.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Esta história, que tem milhares de anos, é o enredo do famoso filme Alien, o oitavo passageiro. O
que muda é a ambientação e o tempo em que as duas histórias acontecem, uma na Índia antiga e a
outra no espaço sideral, onde um monstro extraterrestre usa seres humanos como hospedeiros de
suas crias repugnantes.
Outro exemplo do Ramayana, também convertido, talvez inconscientemente, em filme, são os feitos
de Hanuman, um dos “braços direitos” de Rama – herói central da epopéia em questão. Hanuman
tem o poder de aumentar ou diminuir o seu tamanho à sua vontade e tem uma força prodigiosa.
Lançando montanhas no mar para ajudar Rama a construir uma ponte entre a Índia e o Ceilão, hoje
Sri Lanka, faz com que os exércitos de Rama possam atravessar e combater o demônio Ravana, que
seqüestrou Sita, a esposa do deus Rama. Hanuman atravessa da Índia para o Ceilão com um salto,
onde encontra Sita; conversa com ela dando notícias de Rama e leva dela notícias para o deus; além
disso, põe fogo na cidade dos demônios e só não leva Sita para Rama pois esta é a obrigação do
deus. Hanuman é verdadeiramente o símbolo do devoto, e seu amor por Sita só é tão grande quanto
o que sente por Rama.
Onde entra Hollywood nesta história? Hanuman é um macaco gigante! E pode ser o protótipo de
King Kong, o gorila apaixonado e defensor de uma frágil jovem.
Noutra parte do Ramayana, Indrajit, o filho do demônio que seqüestrou Sita, usando seu principal
poder mágico, ataca o exército de Rama, matando muitos dos seus combatentes. Seu poder? O de
ficar invisível! Temos, então, um enredo bem comum em Hollywood: O homem invisível, tema
explorado recentemente no filme A Liga Extraordinária. Histórias antigas e modernas se repetem de
uma forma misteriosa.
Vejamos o caso do escritor inglês, de origem sul-africana, J. R. R. Tolkien, considerado, por muitos,
o mais genial e criativo ficcionista de todos os tempos. Com sua criatividade sem igual, Tolkien
criou um universo mitológico particular, povoando-o com uma botânica e uma zoologia, com
povos, genealogia, línguas, costumes, geografia, hidrografia, lendas e um panteão peculiar.
Mas, mesmo Tolkien, em sua reconhecida genialidade, não pôde fugir dos arquétipos da mitologia
nórdica, que eram sua fonte vivificadora.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Naturalmente, fica muito difícil dizer o que é influência literária consciente ou o que é arquétipo
inconsciente, impulsionando um autor como Tolkien, já que ele era um escritor com um vasto
cabedal de conhecimento literário e histórico dos temas que gostava de abordar, tais como: anões,
dragões, gnomos, elfos, cavaleiros andantes e mitologia em geral e nórdica em particular.
O número nove
São nove os mundos na mitologia nórdica.
A Terra Média é pois “Midgard”.
São nove os personagens da Sociedade do Anel.
São nove as noites passadas por Odin dependurado numa árvore para obter as Runas.
Runas são usadas como letras nas línguas faladas na Terra Média e Gandalf assina com uma delas.
O Um Anel
Muitos perguntaram a Tolkien a origem do Um Anel, se ele era derivado do Anel dos Nibelungos,
usado por Wagner para compor sua ópera. Tolkien negou veementemente. Em nossa opinião, o Um
Anel é derivado do Draupnir, anel de Odin, forjado pelos anões ou elfos, que tinha o poder de se
multiplicar gotejando a cada nove noites, gerando oito cópias iguais, em ouro, enriquecendo assim
seu dono.
O dualismo Tolkiniano
Como um escritor católico, Tolkien, educado por um padre, não foge do dualismo maniqueísta do
cristianismo. Para cada personagem há uma contraparte, para cada sombra existe uma luz que lhe
corresponde. A encarnação deste dualismo é o personagem Sméagol, um hobbit que se transformou,
pelo uso do anel maléfico, em Gollum.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Smeágol/Gollum é a repetição arquetípica da história do Dr. Jeckil e Mister Hyde, narrada no livro
O médico e o monstro de Robert L. Stevenson, uma esquizofrênica briga interna, provocada neste
enredo por uma poção química e no outro enredo por um anel mágico. Além da esquizofrenia de
Smeágol, a dualidade vai se repetindo em outros personagens de Tolkien:
O conselho Branco, dirigido por Gandalf x As forças de Mordor e Sauron
A sociedade do Anel x Nazgul
Aragorn x Boromir
Elfos x Uruk Hai
Frodo x Gollum
Ents x Orcs
Gandalf x Saruman
A história de O Senhor dos Anéis pode ser um típico enredo medieval, um conto de cavalaria: para
cada monstro, um herói salvador. Não podemos esquecer que Tolkien foi o tradutor para o inglês
moderno de Beowulf, um texto anglo-saxão do século VII que narra as aventuras juvenis do herói
do mesmo nome ao matar dois ogros que atacavam um reino na Dinamarca. Em sua maturidade,
Beowulf, mata também um dragão e se apodera de seu tesouro, do qual não pode desfrutar, pois
ferido pelo dragão, morre logo após a conquista.
Tolkien traduz também Sir Gawain e o cavaleiro verde, um poema arturiano escrito provavelmente
no século XIV, momento em que valores como lealdade, cortesia e generosidade são destacados. Sir
Gawain, baseado em sua palavra empenhada, coloca sua vida em risco de morte nas mãos de um
cavaleiro que, apesar de ter a cabeça cortada e arrancada fora do pescoço, continua vivo.
Este enredo lembra, ainda, o filme relativamente recente, do diretor Tim Burton: A lenda do
Cavaleiro sem Cabeça.
As aranhas
O tema das aranhas se repete em duas ocasiões importantes na obra de Tolkien, primeiramente em
O Hobbit, o livro que dá origem à saga de O Senhor dos Anéis, quando anões e hobbits são presos
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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numa colônia de aranhas gigantes e são salvos por Bilbo, usando sua espada (sting) Ferroada e sua
capa mágica dos elfos, ficando invisível.
Já na trilogia de O Senhor dos Anéis, Frodo e Sam são atacados por Shelob, a aranha gigante,
quando tentavam levar o anel para ser destruído. Tolkien repete o tema, e parece que há, ainda, uma
influência pessoal, pois quando criança o próprio autor foi atacado por uma tarântula, na África do
Sul, e quase morreu.
Os dragões
Os dragões são temas comuns de contos diversos, desde Beowulf, tão apreciado por Tolkien, até
São Jorge e o dragão. É importante ressaltar que o padroeiro da Inglaterra é São Jorge. Um outro
dragão, muito conhecido, já teve sua vida contada e recontada no cinema... Drácula! A palavra
Drácula quer dizer: filho do dragão.
Um livro muito apreciado por Tolkien, na sua infância, O Livro vermelho das fadas, de Andrew
Lang, contém muitas histórias referentes a dragões. Os Nazgul montam dragões alados. No livro O
Hobbit, é um dragão que guarda o tesouro. Os nomes Sauron e Saruman parecem derivados de
sáurios, lagartos.
O amor impossível
Seria o amor de Aragorn por Arwen uma versão da história de Romeu e Julieta, uma narrativa
élfica? Apesar da nobreza de Aragorn, ele enfrenta a oposição do pai de sua musa, pois ela é
imortal e ele não.
O mesmo acontece com Brunnhilde – uma das Valkírias – filha de Odin, que se apaixona por
Siegfried. Aragorn seria um Dom Quixote que deu certo. Repetindo, assim, mais uma vez, em outro
tempo, lugar e língua, a história do Cavaleiro Andante.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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Os anões
A figura do anão, trabalhador de minas, um ser do centro da terra, aparece nas antigas mitologias
nórdicas e até mesmo na conhecida história de Branca de Neve e os sete anões.
Tolkien trata os anões de uma forma completamente tradicional, mantendo suas características de
seres tectônicos, cujo interesse maior são os metais e as pedras, trabalhando arduamente para
consegui-los.
A demanda da destruição do Um Anel
Este enredo lembra a busca do Santo Graal – assunto muito familiar a Tolkien –, a taça sagrada
que, por seus poderes mágicos, irá salvar Camelot. Já o Um Anel tem de ser destruído para salvar a
Terra Média, a Midgard, claramente inspirada na mitologia dos nórdicos. Para destruir o Um Anel,
acontece uma demanda que poderia nos remeter aos trabalhos de Hércules, da mitologia grega.
O Mago
O protótipo do mago, Gandalf, é, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, Odin, o pai dos deuses
nórdicos. Enquanto Gandalf encarna aspectos positivos do mago, Saruman encarna os aspectos
negativos.
Gandalf e Odin têm águias como animais simbólicos e, à sua disposição, os dois têm poderes
mágicos, controlando animais e um misterioso poder da palavra, que encanta e faz que sejam
obedecidos.
Saruman tem aves, semelhantes a corvos, que são suas espiãs, já Odin tem dois corvos que saem de
manhã e voltam à tarde para lhe dar informações do que acontece no mundo.
A corda dos elfos
A corda que é usada para prender Gollum é um fio prateado feito pelos elfos e que não é muito
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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enfocada no filme, mas, no livro, ela é detalhada e salva a vida dos hobbits, em pelo menos uma
ocasião. É uma corda extremamente resistente, apesar de fina.
Do mesmo modo, os elfos, nos relatos mitológicos anteriores, fizeram uma corda especial e mágica,
usada para prender o monstruoso Lobo Fenrir, uma corda tão poderosa que somente irá se soltar no
final dos tempos.
O Balrog
O demônio de fogo, que ataca Gandalf dentro das minas de Mória, numa das cenas memoráveis do
filme O Senhor dos Anéis, parece derivado diretamente de Surt, um demônio de fogo chamado
Ragnarok, que irá aparecer no final dos tempos, segundo a mitologia germânica.
Morte e renascimento
A morte e o renascimento de Gandalf, dentro das minas de Mória, é um ritual de passagem que
lembra cerimônias iniciáticas, ritos de passagem em que a morte simboliza o velho estado de
consciência que deve ser deixado para trás.
Morte e renascimento são vistos tanto no mito de Osíris, quanto na história cristã, e é o que se passa
com Gandalf. Voltando do reino dos mortos, ele se converte em Gandalf, o Branco, passando para
um novo estágio de consciência.
Bibliografia
Beowulf y otros poemas anglusajones siglos 7 a 10. Trad. Luiz Lerate e Jesús Lerate. Madrid:
Alianza Tres, 1986.
CONDÉ, Osvaldo. A mitologia e o esoterismo em O Senhor dos Anéis. Brasília: Gilgamesh, 2004.
Mahabharata. Recontado por Willian Buck. São Paulo: Cultrix, 1988.
Ramayana. Trad. Willian Buck. São Paulo: 1988.
Sir Gawain e el Cabalero Verde. Trad. Francisco Torres Oliver. Madrid: Ediciones Siruela, 1982.
TOLKIEN, J. R. R. O hobbit. Lisboa: Publicações Europa America, 1978.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
42
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis (3 volumes). Lisboa: Publicações Europa América, 1978.
Notas:
[1] Pesquisador de mitologia e religião comparadas.
REFLETINDO SOBRE A LINGUAGEM DE CINEMA .
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PROGRAMA 5
O REAL, A LINGUAGEM DA REALIDADE, O CINEMA
Filme sugerido: Mamma Roma
Milton José de Almeida 1
“As primeiras lembranças da vida são lembranças visuais. A vida, na lembrança, torna-se um filme
mudo”, escreve Pasolini em resposta à carta de um jovem leitor (Pasolini, Gennariello).
Em outro lugar, ele nos diz que a linguagem cinematográfica funda sua possibilidade de existência
num hipotético sistema de signos mímicos e de signos visíveis de uma sociedade composta de
pessoas surdo-mudas. Com essa hipótese, para nós um pouco extravagante, ele chama a atenção
para o fato de que estamos habituados a ‘ler’ visualmente a realidade, a manter um diálogo
constante com tudo o que nos cerca e se movimenta ao nosso redor, pessoas, coisas, locais.
Lemos e somos lidos visual e sonoramente, e a nossa simples presença visual, nossos hábitos e atos,
são uma imagem altamente informativa e expressiva. Informação e expressão são uma coisa só,
uma unidade estética e visual indissociável, social, política.
Escreve o nosso autor que “o caminhar só pela estrada, mesmo com os ouvidos tapados, é um
contínuo colóquio entre nós e o ambiente que se expressa através das imagens que o compõem: a
fisionomia da gente que passa, os seus gestos, os seus acenos, os seus actos, os seus silêncios, as
suas expressões, as suas ‘cenas’, as suas reacções colectivas (multidões paradas nos semáforos,
ajuntamentos em torno de acidentes ...); os sinais de sinalização, as indicações de trânsito, o
contornar de praças em sentido inverso e, em suma, os objectos e coisas que se apresentam
carregados de significados e por isso ‘falam’ brutalmente através da sua própria presença, são
outros tantos exemplos possíveis.” (Empirismo Hereje. pp.138-139).
Um filme é sempre uma representação desse real em diálogo visual.
1.
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A câmera cinematográfica capta o real, segundo suas possibilidades técnicas, e devolve, aos olhos
do espectador, esse mesmo real em pedaços. Pedaços e detalhes fotográficos do real que,
emendados na edição do filme, passam a ser uma narração visual, uma representação contínua de
uma história contada em imagens.
O cinema traz uma nova e original visão do real – e, podemos dizer, um novo conhecimento sobre a
que nos referimos quando dizemos real, existente, visto – diferente tanto do nosso olhar natural,
quanto da sua descrição em palavras.
Pasolini diz: “Nada como fazer um filme obriga a olhar as coisas. O olhar de um literato sobre uma
paisagem, campestre ou urbana, pode excluir uma infinidade de coisas, recortando do conjunto só
as que o emocionam ou lhe servem. O olhar de um cineasta – sobre a mesma paisagem – não pode
deixar, pelo contrário, de tomar consciência de todas as coisas que ali se encontram, quase
enumerando-as” e que, filmadas e projetadas no cinema, as coisas tornam-se signos vivos de si
próprias. (Pasolini, Gennariello. Os Jovens Infelizes.)
Não importa se a história que está sendo contada é verdadeira, ou criada. O efeito visual é sempre
de algo real. Mas não o real visto na realidade, mas aquele real transfigurado pela linguagem da
câmera e da edição.
O cinema capta o real e o devolve aos olhos do espectador como real transfigurado por uma nova
linguagem, que poderíamos chamar de linguagem do real.
A força política e visual dessa arte advém, principalmente, por ser uma arte que faz com que o real
represente a si mesmo, criando um efeito de realidade, ou seja, tudo o que é visto no filme parece
acontecer mesmo, as pessoas parecem existir mesmo, os locais parecem verdadeiros, pois pessoas,
coisas, lugares foram filmados realmente, tanto na realidade, em locais existentes, como em locais
fabricados, como os estúdios e cenários.
2.
Por serem constituintes da linguagem cinematográfica, as unidades filmícas: cenas, seqüências,
diálogos, sons, são simbólicas, são signos de uma outra coisa. Representam o real, pessoas, coisas,
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lugares, falares... mas não são o real. Estão no lugar dele, o representam ali na tela. Uma cena que
se vê num filme representa, naquele pequeno tempo em que aparece, uma cena que poderia ter sido
vista na realidade, numa duração muito maior.
Todo filme guarda uma relação íntima e simbólica com o real e, ao mesmo tempo, produz sempre
um efeito de real, seja ficção, seja documentário. A realidade em si nunca aparece num filme, seja
de ficção, seja documentário – ela só pode ser mostrada em sua forma representada e simbólica. Em
outras palavras, transfigurada, e em alguns casos, simulada. Mas é sempre algo produzido pelo real
e pela imaginação, em partes iguais ou desiguais.
Nenhum filme mostra a realidade tal como é. O que seria impossível para qualquer técnica, teoria,
ou instrumento. Nada, nem ninguém tem essa sabedoria. Talvez um ou alguns deuses, mas eles não
estão mais por aqui.
Um acontecimento, o lugar, as coisas, as pessoas envolvidas, podem ser vistos por todos ao mesmo
tempo, mas esse acontecimento vai se estilhaçar nos inúmeros reais que cada um constrói para si. E
a realidade ou “as verdades” sobre um acontecimento, sobre um filme, nunca vão ser unânimes,
iguais. A verdade única e homogênea sobre algo visto é sempre uma verdade negociada entre todos
que o presenciaram: todos têm que deixar de ver algumas coisas que viram, para poderem ver e
concordar com o que todos vêem de maneira igual. Ela, a realidade, tanto na ‘vida real’ quanto nos
filmes, será sempre política, antagonismo, discordância, consenso. Cada filme cria e recria uma
versão sobre o real, uma versão sobre um acontecimento, uma “verdade” parcial a ser
experimentada e vivida durante o tempo de sua projeção. Ver um filme é também um ato político,
além de ato estético, de diversão, de emoção, de educação.
3.
O ato de assistir a um filme nos coloca numa situação de abertura e fechamento afetivo e
emocional, constante e simultânea. Enquanto o filme passa, há uma transação ininterrupta entre ele
e nós. A todo instante, imagens e palavras, símbolos do real, entram por nosso corpo e se
transformam em realidades interiores, emoções, reações, rejeições, alegrias, risos, bem-estar...
Mas ver um filme é também dar novos significados ao filme, aos símbolos invisíveis e
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subentendidos nas imagens que estão sendo vistas, é vê-lo com os olhos do presente, e ver o
presente com os olhos do filme. Tudo o que aparece na tela alude a uma outra coisa além do que
está sendo visto, a mundos imaginados, sonhados, reais, do passado, do presente, e a mundos
presentes no esquecimento da memória.
Lembremos sempre que o cinema é uma arte da memória e da alusão.
Suas imagens fantásticas trazem a potência do real, e agem em nosso imaginário ou adormecerem
inesquecíveis em nossa memória. Quando novamente despertadas, elas ressurgirão em alusão e
recordação.
Por exemplo, no filme Mamma Roma, a seqüência do sofrimento e da morte de Ettore não só
mostra um jovem sofrendo, como alude ao sofrimento e à morte de Cristo, e também ao sofrimento
de todos os jovens que sofrem e morrem, morreram e morrerão em qualquer lugar do mundo, em
qualquer tempo da História. Essa seqüência pode também remexer a lembrança, os sofrimentos e os
sentimentos do espectador, não só cristão, mas de qualquer um em qualquer lugar, em qualquer
momento, se ele estiver sensível ao tema, mesmo inconscientemente. Ou poderá vir a sempre
emocionar-se com o tema, após ter assistido ao filme.
4.
Perceberemos melhor a linguagem do cinema, como instrumento específico cinematográfico de
criação, expressão e comunicação visual, se observarmos como um filme foi filmado, seus
diferentes planos, como foi editado, sua gramática visual.
Vejamos, então, alguns desses procedimentos, idéias, recursos e linguagem no filme Mamma Roma,
o segundo filme de Pier Paolo Pasolini, feito após Accattone. Ambos filmados na periferia de Roma,
na Itália dos anos sessenta.
O filme começa com um banquete de casamento numa pequena cidade da Itália rural, o casamento
de Carmine. Ele é o protetor de Mamma Roma, uma prostituta. Carmine está se casando com outra
mulher, uma moça de família. Despeitada com esse casamento, Mamma Roma desafia Carmine,
cantando uma música cuja letra o provoca, e à qual ele e a noiva respondem aludindo à sua "má"
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profissão. Pasolini alude visualmente, nesta cena, ao afresco da "Última Ceia", de Leonardo da
Vinci, e conseqüentemente, à idéia cristã de pecado, expiação, sacrifício, sofrimento e morte. São
temas que ressoarão durante o filme.
Leonardo da Vinci. Última Ceia (1495-7).
Mamma Roma sente-se liberada de Carmine, e tenta retomar a vida ‘normal’. Resolve retomar e
encaminhar o filho de 16 anos, Ettore, que cresceu numa vila da província de Roma, Guidonia, sem
saber que a mãe era uma prostituta. Mamma Roma vai viver com o filho num bairro populoso da
periferia de Roma, e tenta fazer com que ele tenha um trabalho, eduque-se e tenha amizades
melhores. Batalha para isso, e consegue comprar um apartamento num condomínio novo, um pouco
mais perto, melhor, mas também periférico. Nessa seqüência, a câmera de Pasolini entra no interior
de Mamma Roma, e traz delicadamente o seu sonho para a visão do filho e do espectador,
conseguindo unir essas três pessoas em comunhão visual.
"Ecchela laggiù casa nostra, cu' a finestra lassù n'do ce batte er sole, n'do ce stanno qué mutande
stese, lassù all'urtimo piano. Guarda che qua ce stamo solo n'artro po' de giorni, vedrai in che casa
te porta tu madre. Vedrai quant'è bella, proprio 'na casa de gente perbene, de signori. Tutto 'n
quartiere de n'artro rango". diz Mamma Roma.
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Carmine reaparece e a obriga a prostituir-se novamente, o que ela faz por duas semanas, e em
seguida promete não fazê-lo novamente. Este plano seqüência noturno vai se repetir,
dramaticamente, próximo ao drama final.
Assim, para viver licitamente e educar Ettore, Mamma Roma abre uma banca de frutas num
mercado da região. Quer conseguir um emprego para o filho, para que ele vá aprendendo, e não
fique vadiando no bairro com más companhias. Com um amiga arma uma cilada para um 'burguês'
rico e influente, e consegue um emprego de garçom para o filho, num restaurante. De longe, ela e a
amiga observam Ettore. Mamma Roma chora, pois tem um vislumbre da extorsão – um pecado –
que teve que fazer para arranjar um emprego decente para seu filho. Novamente aqui a câmera se
compadece de Mamma Roma, como se fosse os seus próprios olhos.
Nesse entretempo, Ettore namora Bruna, uma moça esperta da periferia, com a qual vai ter a
primeira experiência sexual, entre o mato ralo e ruínas dessa região.
Diz Pasolini: “Na realidade, gosto dessas ruínas, da mesma maneira como poderiam ter sido
apreciadas por Pontormo, isto é, sempre me reconduzem a uma inspiração renascentista [...], mas na
realidade o pintor que me inspira figurativamente, mais que todos, inclusive como cor, é
principalmente Masaccio: que é um pintor mais firme. [...] Também a fotografia, gostaria que se
assemelhasse um pouco às reproduções em branco e preto do Masaccio. [...] Quanto às ruínas, direi
também que numa seqüência, quando Ettore vai fazer amor pela primeira vez com Bruna, escolhi
uma que é um pouco um símbolo fálico sem, no entanto, sublinhar muito esta simbologia”.
Ettore mostra as flores, a cigarra, e Bruna, que só viveu na cidade, desconhece os nomes
verdadeiros e não sabe nada de bichos e plantas.
Pasolini faz uma alusão visual e política aos valores do mundo camponês, na figura de Ettore, como
um repositório da beleza e da cultura autênticas, em contraste com a esterilidade moderna do mundo
do consumo capitalista, na figura de Bruna.
Pasolini insinua, nas cenas de periferia, que a alienação na moderna sociedade pragmática e
tecnológica pode vir também pela perda de identidade mítica com as origens sociais e históricas e a
quebra do sentido de harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo, faz uma crítica ao aumento da
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prosperidade, à migração de italianos do campo para a cidade, e ao vazio espiritual da modernidade
capitalista. A desolação e o feio mundo da massificação da moradia podem ser vistos pela janela do
apartamento de Mamma Roma.
Em seus filmes, as paisagens são sempre uma alusão visual e estética às paisagens presentes em
alguns quadros renascentistas, e às obras de alguns pintores, como Pontormo, Masaccio, Giotto.
Giotto. Massacre dos Inocentes (1306-7)
Pontormo. Deposição (1528).
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Pasolini diz: “Para mim, todas estas características, que eu listei apressadamente aqui, são devidas
ao fato de que meu gosto cinematográfico não é de origem cinematográfica, mas figurativa. O que
eu tenho na cabeça como visão, como campo visivo, são os afrescos de Masaccio, de Giotto – que
são os pintores que eu mais amo, junto a certos maneiristas (por exemplo, Pontormo). E não arrisco
a conceber imagens, paisagens, composições de figuras fora desta minha primeira paixão pictórica,
trecentista, que tem o homem como centro de toda perspectiva”.
“Então, quando minhas imagens estão em movimento, estão em movimento um pouco como se a
objetiva se movesse nelas como sobre um quadro; concebo sempre o fundo como o fundo de um
quadro, como um cenário, e por isto, eu o ataco sempre frontalmente. E as figuras movem-se neste
fundo sempre de maneira simétrica, o quanto seja possível: primeiro plano contra primeiro plano,
panorâmica de ida contra panorâmica de retorno, ritmos regulares de campos (possivelmente
ternários), etc. etc. Não há quase nenhum acavalamento de primeiros planos e de grandes planos. As
figuras em grande plano são o fundo e as figuras em primeiro plano movem-se neste fundo,
seguidas de panorâmicas, repito, quase sempre simétricas, como se eu num quadro – onde,
precisamente, as figuras não podem estar se não paradas – virasse o olhar para ver melhor o
particular. Assim, minha filmadora move-se nos fundos e figuras sentidas substancialmente como
imóveis e profundamente claroescurecidas”. Pasolini, Pier Paolo, Diário no Gravador, 3 de maio de
1962, em Accattone, Mamma Roma, Ostia. Garzanti Ed. Italia, 1993. pp. 386-387.
Pasolini intensifica as tensões entre a vida diária dos personagens e a sua representação visual, pelo
uso poético da linguagem cinematográfica, através de tomadas lentas nos rostos, para capturar o
enigma que é uma face humana. São planos frontais demorados, filmados com pouca profundidade
de campo que traz o mundo ao redor em aparição difusa.
Carmine reaparece e obriga novamente Mamma Roma a prostituir-se. Mamma Roma sofre, e volta
à prostituição. Como num momento de passeio pelo desespero e pelo fracasso da sua vida, Mamma
Roma anda pelo parque escuro, alusão ao inconsciente e aos desejos obscuros.
Nesse caminhar noturno, enquanto anda, encontra e conversa com alguns frequentadores e, nas
conversas, ela vai tendo pequenos vislumbres de si própria e da sua vida. É uma das seqüências
mais bonitas e marcantes do filme. Ela diz: “Daquilo que alguém é, a culpa é sua [...] Padre, não
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quis recomeçar do zero, mas você acha que não compreendi? [...] Explique-me você agora, porque
eu não sou ninguém, e você é o rei dos reis”.
Bruna conta a Ettore a ‘verdadeira’ vida da mãe. Ettore se perturba, larga o emprego, junta-se aos
amigos, pequenos delinqüentes, e vai com um deles roubar coisas dos doentes num hospital,
aproveitando o movimento da hora de visita.
Nesse dia, ele está mal, com febre alta, e é surpreendido ao roubar uma radinho portátil de um dos
doentes. É encarcerado no ambulatório da prisão, junto com outros prisioneiros. Estes lêem
passagens do Inferno de Dante, alusão ao pecado e castigo, e também ao bom e ao mau ladrão
crucificados com Cristo.
Febril e delirante, desespera-se, descontrola-se, grita, tem um ataque de nervos, e por isso é
colocado num dormitório isolado, e amarrado ao leito. Aí ele vai agonizar. Grita e chama pela mãe,
mas não é escutado por ninguém, e morre. A câmera parte de uma aproximação no rosto de Ettore e
faz um movimento de elevação do leito onde ele está, como se mãos invisíveis e piedosas o
levantassem. Esta cena repete-se por três vezes, como uma obsessão visual que marca o longo e
dolorido tempo da agonia de Ettore. A perspectiva produzida pela câmera remete diretamente à
pintura do Cristo Morto, de Mantegna.
Mantegna. Cristo Morto (1490)
O filme termina com o desespero de Mamma Roma. Seu olhar derrotado – também o da câmera –
parte da periferia de Roma para a torre da Igreja de São Pedro, no Vaticano, alusão à toda a história
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cristã, e as injustiças e justiças de seu Deus, único e poderoso, marcando a sua irremediável solidão.
Essa última cena fecha o ciclo do poderoso simbolismo religioso utilizado por Pasolini, que
começou pelo banquete de casamento, sinônimo de vida, baseado na Última Ceia, que alude à morte
iminente de Cristo. Depois, o filme mostra o arrependimento de Mamma Roma e sua tentativa de
recuperação, alusão à Maria Madalena. Fracassa, e o ciclo se encerra com o sacrifício do filho,
solitário, na prisão-hospital e o desespero de Mamma Roma, vivendo a dor de Maria, mãe de Cristo.
No mundo recriado por esse filme, a prostituta e seu filho ladrão são os únicos dignos e
merecedores de piedade. Pasolini intensifica essa dignificação através de alusões visuais a grandes
obras da pintura, e de alusões sonoras trazidas pela música do filme, de um compositor da grande
arte musical, Antonio Vivaldi. O Concerto em ré menor acompanha os amores de Ettore e Bruna, e
o Concerto em dó maior surge acompanhando a presença de Carmine, marcando o destino de
Mamma Roma e o de Ettore, em seu momento de morte. Essa música sublinha a tensão dessa cena e
lhe acrescenta qualidades melódicas, como diz o próprio Pasolini: “Provavelmente, esses motivos
de Vivaldi que escolhi foram motivos populares e eu lhes dei a sua verdadeira natureza, sentimental,
doce, melódica, e portanto, popular”.
As imagens, a música e o drama visual desse filme estimulam inúmeras alusões à contaminação às
impurezas relativas ao mundo moderno e contemporâneo: a queda e a transformação material do
mundo rural – visto como mais autêntico e puro (o que para Pasolini não quer dizer mais justo ou
melhor) – e o novo mundo industrial e consumista; a vida feita por uma combinação de
materialismo urbano, corrupção, exploração pela burguesia e estado capitalista, além da presença
distante de uma Igreja hipócrita e indiferente.
Nota: Este texto foi conduzido pelas idéias de Pier Paolo Pasolini, escritas e esparsas em seus
inúmeros livros.
Sobre o filme: Mamma Roma, 1962:
Escrito dirigido por Pier
Paolo Pasolini. Colaboração nos diálogos: Sergio Citti
Fotografia: Tonino Delli Colli; Coordenação musical: Carlo Rustichelli; montagem: Nino Baragli;
ajudante de direção: Carlo di Carlo; assistente de direção: Gianfrancesco Salma.
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Intérpretes e personagens: Anna Magnani (Mamma Roma); Ettore Garofolo (Ettore); Franco Citti
(Carmine); Silvana Corsini (Bruna); Luisa Orioli (Biancofiore); Paolo Volponi (o padre); Luciano
Gonini (Zaccarino); Vittorio La Paglia (senhor Pellissier); Piero Morgia (Piero); Leandro Santarelli
(Begalo, o Roscio); Emanuele di Bari (Gennarino, o Trovador); Antonio Spoletini (um bombeiro);
Nino Bionci (um pintor); Roberto Venzi (um aviador); Nino Venzi (um cliente); Maria Bernardini (a
esposa); Santino Citti (pai da esposa). Também participaram: Lamberto Maggiorani; Franco
Ceccarelli; Marcello Sorrentino; Sandro Meschino; Franco Tovo; Pasquale Ferrarese; Renato
Montalbano; Enzo Fioravanti; Elena Cameron; Maria Benati; Loreto Ranalli; Mario Ferraguti;
Renato Capogna; Fulvio Orgitano; Renato Troiani; Mario Cipriani; Paolo Provenzale; Umberto
Conti;
Produção:
Sergio
Arco
Film
Profili;
(Roma);
produtor:
Gigione
Alfredo
Bini;
Urbinati.
distribuição:
Cineriz
Filmado de abril a junho de 1962, nos Teatri di posa Incir De Paolis, Roma; Externas: Roma,
Frascati, Guidonia, Subiaco. Duração: 115minutos.
A primeira projeção foi na XXIII Mostra de Veneza, 31 de agosto de 1962; prêmio Mostra di
Venezia: Premio da FICC (Federazione Italiana dei Circoli del Cinema).
Lançado pela Versátil.
Outros Filmes de Pasolini já lançados no Brasil:
O Evangelho segundo São Mateus, Versátil
Édipo-Rei, Versátil
Medéia, Versátil
As Flores das Mil e Uma Noites, Play Arte
Decameron, Play Arte
Os Contos de Canterbury, Play Arte
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Accatone, Versátil
Apresento a seguir uma pequena bibliografia relativa ao que pode ser encontrado em português,
tanto desse autor, quanto de outros que podem introduzir o leitor no seu conhecimento.
Referências bibliográficas
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ALMEIDA, M. J. de. Imagens e Sons - A Nova Cultura Oral. SP, Ed. Cortez, 2003.
ALMEIDA, M. J. de, A Educação Visual da Memória - Imagens Agentes do Cinema e da Televisão.
Pro-Posições, vol. 10, n. 2 [29] junho de 1999. Faculdade de Educação/ Unicamp, Campinas-SP.
ALMEIDA, M. J. de. Aproximações em forma escrita sobre as imagens da pintura e do cinema, em
Representações do Espaço, Campinas, Autores Associados,1996.
GOMBRICH, E.H., A História da Arte. Guanabara, 1993.
PASOLINI, P. P. Escritos Póstumos. Lisboa, Moraes Ed., 1979.
PASOLINI, P. P. Os Jovens Infelizes - antologia de ensaios corsários. Editora Brasiliense,1990.
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XAVIER,
I.
(org.).
A
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do
Cinema.
Rio
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1983.
Nota:
[1] Professor Doutor da Universidade de Campinas, pesquisador e coordenador do
Laboratório de Estudos Audiovisuais-Olho. Autor de livros e artigos sobre cinema.
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