1 - Revista História

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1 - Revista História
Revista História - 1
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
A Revista História tem o apoio do Laboratório de
Revista História
Ano 2, Volume 1, Número 1
Edição 2011
Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais.
Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ)
Departamento de História, Campus Francisco Negrão
de Lima - Pavilhão João Lyra Filho Rua São Francisco
Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 -Rio de
Janeiro.
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Página da Revista: www.revistahistoria.com.br
Revisão
Verônica Maria Nascimento Tapajós
Diagramação
Luciano Rocha Pinto
Dossiê Punição e Controle
ISSN 1983-0831
Apoio:
Editores
Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva
Prof. Drdo. Luciano Rocha Pinto
Prof. Drdo. Marcelo Coimbra Biar
Profa. Ms. Verônica Maria Nascimento Tapajós
Profa. Dra. Paula Pinto e Silva
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Web Master
André de Carvalho
***
Conselho Consultivo
Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano
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Prof. Dr. Augusto Cesar Freitas de Oliveira
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Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira
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Prof. Dr. Duarcides Ferreira Mariosa
Revista História - 2
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
SUMÁRIO
A
CULTURA DA PUNIÇÃO: O
ELETRÔNICO DE PRESOS NO BRASIL
Augusto Jobim do Amaral
INFÂNCIA
CONTROLE
3
A DISCIPLINA NOS SERTÕES: MANUEL IGNÁCIO
DE SAMPAIO E UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO NO
CEARÁ (1812 – 1820)
João Paulo Peixoto Costa
12
ADMIRÁVEL
SOCIEDADE DE CONTROLE: UM
ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PODER DURANTE A
CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE ILHA
SOLTEIRA (1965 – 1973)
Tiago de Jesus Vieira
21
A DETERIORIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA E A CRISE
DA CULTURA PÚBLICA.
Luiza das Neves Gomes
28
CONTROLADOS
E CONTROLADORES: QUANDO
PRESOS SE TRANSFORMAM EM JORNALISTAS
Flora Daemon
35
EM DEFESA DA SOCIEDADE: O PODER
Maiara Moser
49
“DESVALIDA” E CRIMINALIDADE
FEMININA DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 20 E 30
Maria Clara Pecorelli
O ESCRITOR CIDADÃO CARNEIRO VILELA E
54
O
ADVENTO DA PRISÃO MODERNA E O SÉCULO
XIX: A EUROPA E O RIO DE JANEIRO
Marcelo Coimbra Biar
64
PROSTITUTAS
E “MÃES SEM MÁCULA”: ALTERIDADE E
IDENTIDADE FEMININA NO BRASIL COLONIAL
Kelly Cristina Benjamim Viana
71
A “LITERATURA COMO MISSÃO”
Marcio Lucena Filho
112
AS
RESENHAS DE LIVROS NOS JORNAIS O PAIZ E
GAZETA DE NOTÍCIAS COMO ESPAÇOS DE
CONSAGRAÇÃO E SOCIABILIDADE NO RIO DE
JANEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX
120
Renata Rodrigues de Freitas
DO ESPAÇO SAGRADO AO ESPAÇO PROFANO
Fábio Luiz da Silva
125
PLENITUDE
SEXUAL E EMPREGABILIDADE. O
TRANSEXUAL DISCIPLINADO
Marcia de Melo Martins Kuyumjian
Danielly de Oliveira Grance
79
LIBERDADE GRATUITA: DO DIREITO DE
PROPRIEDADE A CONCESSÃO DA MANUMISSÃO
Verônica Maria Nascimento Tapajós
91
HOMO SACER, ABANDONO E ESTADO DE EXCEÇÃO:
CONCEITOS DE GIORGIO AGAMBEN APLICADOS AO
ESTUDO DE UMA FAVELA BRASILEIRA.
Vivian Fernandes Carvalho de Almeida
Patrícia Graziela Gonçalves
Simone Nunes de Souza
105
CLIO SE APROXIMA DE CALÍOPE: OS
TRABALHADORES DO CACAU NO PÓS-ABOLIÇÃO
SOB A ÓTICA DE JORGE AMADO
Ronaldo Lima da Cruz
140
POÉTICAS DO DESEJO
Tânia Regina Zimmermann
149
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
A CULTURA DA PUNIÇÃO: O CONTROLE
ELETRÔNICO DE PRESOS NO BRASIL
Augusto Jobim do Amaral
Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS),
Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos
(História e Teoria das Idéias, COIMBRA – Portugal),
Professor de Direito Penal, Processo Penal e
Criminologia da ULBRA e da ESADE.
Resumo
O estudo analisa a cultura do controle penal na
contemporaneidade. Lança-se mão do caso do
controle eletrônico de presos no Brasil para examinar
as complexas mudanças no campo do controle do
delito. Se, apesar das experiências para tentar evitar a
prisionalização e lidar com a falência da pena de
prisão, ao longo do tempo, apenas houve um
aumento vertiginoso da população carcerária, devese ter fundamentalmente claro o alargamento do
controle do sistema penal sobre os cidadãos. Enfim,
são as modificações nas práticas de poder de uma
sociedade de controle que demonstram como operam

O artigo é a versão ampliada da palestra proferida na sede da
Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul
(FESDEP/RS). Agradeço as intervenções dos alunos e professores, razão
pela qual o texto vai dedicado a eles, em especial, nas pessoas dos
Defensores Públicos Lisandro Luís Wottrich e Álvaro Antanavinicius
Fernandes.
os novos mecanismos de sanção, e caberá
surpreender os diversos mecanismos de controle que
estão sendo implementados no lugar dos meios de
confinamento disciplinares.
Palavras-chave: Sociedade de controle, Sistema
carcerário, Monitoramento eletrônico.
Abstract
This article analyses the culture of the criminal
control in a current days. In such a way, examines
the electronic monitoring of prisoners in Brazil for
study the complex change in the field of the control
of crime. If, throughout the experiences of the
alternative to imprisonment and to try to deal with
the bankruptcy of the punishment by confinement,
have had a great increase of the incarceration, can be
verified, doubtlessly, the widening of control of the
criminal system on the citizens. Over all, at last, the
modifications in the power practices in a Society of
Control demonstrate how operate the new
mechanisms of sanction and, necessarily, verify the
diverse mechanisms of control that have been
implemented in the place of the disciplinary
confinements.
1. A nova ordem social do controle do delito
Sancionada no dia 15 de julho último a Lei nº
12.258 que prevê a possibilidade de utilização de
equipamento de vigilância indireta pelo condenado.
Em linhas gerais, alterou-se a Lei de execuções penais
especificando que o juiz poderá definir a fiscalização
por meio de monitoração eletrônica, cuja
implementação será regulamentada pelo Poder
Executivo. Monocordicamente, o argumento imposto
traduz uma preocupação com a falta de vagas no
sistema carcerário em geral, déficit este que
alcançaria em 2009, segundo dados do Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias do
Departamento Penitenciário Nacional1, 139.266
vagas. Assim, o que se avizinha no horizonte punitivo
brasileiro?
Infrutífero achar de forma inocente ou
ingênua que possa se tratar de um movimento
isolado, e não de um modo exemplar da tendência
estrutural que vem inundando amplamente o plano
das práticas punitivas há pelo menos trinta anos. É
uma mudança complexa e profunda no campo do
controle do delito como um todo que ali é
surpreendida como mero sintoma. De fundo, vem se
redefinindo em si a postura de enfrentamento
político-criminal que pontualmente podemos
Keywords: Society of control, Penitentiary system,
Electronic monitoring.
1
***
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94
C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm. (População Carcerária –
Sintético/2009). Acesso em agosto de 2010.
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identificar, como faz Garland1, dentro do panorama
da nova cultura do controle do delito.
O que pesa de maneira ímpar e acaba por
produzir uma mudança significativa, para além das
meras estruturas de controle, é o âmbito
imediatamente
ligado
a
elas,
o
aspecto
intrinsecamente vinculado que as anima, significa e,
de alguma forma, ordena os seus usos, que são as
sensibilidades culturais envolvidas. Trata-se de um
esforço perene de surpreender estes novos padrões,
dimensionar as incipientes coordenadas culturais que
dão novos propósitos  (re)significam continuamente
a importância simbólica deste campo , transformam,
suma, o modo de pensar e atuar dos agentes penais
frente ao delito.
Assim, interessa ressaltar ao menos três linhas
de fuga para analisar esta nova cultura penal.2 Por
um lado, o que emerge é a mudança de ênfase dos
métodos de reabilitação para o controle efetivo; da
perspectiva do “bem estar” para modalidade
puramente “penal”, centrada em objetivos
retributivos, incapacitantes, dissuasivos, e voltada à
dita segurança pública. Em especial, as leis e práticas
de semi-liberdade inclinam-se a serem vistas como
simples castigos à comunidade, em que se minimizam
os objetivos habitual e tradicionalmente dispostos de
David Garland, La Cultura del Control: crimen y orden social en la
sociedad contemporánea, Barcelona, Gedisa Editorial, 2005, pp. 2751
312.
2 David Garland, La Cultura del Control, pp. 286-290.
reabilitação em prol da vigilância intensiva dos
“liberados” confiada à polícia.
Com isto, um segundo momento nos convida a
verificar a própria redefinição do significado da
reabilitação. O foco se desloca do “cliente” para o
“delito”. As questões mais importantes atualmente,
neste aspecto, dizem mais com o controle do delito
que à assistência individual. Se antes a postura
acentuada era a de certa preocupação com a
transformação das relações sociais do indivíduo, no
sentido de tentar melhorar sua auto-estima e
desenvolver seu discernimento, a tendência agora é
torcida para um objetivo imediato completamente
diverso: circunda, pois, a imposição de restrições,
sempre enfocando a conduta delitiva e seus hábitos
conexos, visando à proteção do público. Inscreve-se a
reabilitação no marco do risco mais que no marco do
“bem-estar”. Poderão ser “tratados” os delinqüentes
apenas se isto servir para proteger o público ou,
quem sabe, para reduzir o custo envolvido no castigo
direto e simples.  Não se esqueça do argumento que
não falha quando da defesa do incremento de
mecanismos de controle em meio aberto, tal como as
coleiras/tornozeleiras eletrônicas: não raro a fala
passa pelo alto custo do detento ao sistema penal e as
possíveis vantagens (para quem?) de se adotar estes
mecanismos, no contraponto de se investir em mais
vagas em estabelecimentos prisionais. Falsa
alternativa, falacioso engodo, que não deixa escolha
senão dentro do impulso de aumentar a dimensão
sempre elástica da rede do controle penal . Nem
mesmo, ao que parece, enfim, a reabilitação põe-se
mais como mote principal do discurso de legitimação
do sistema penal. O interesse primordial paira
indeclinavelmente pelo “fortalecimento eficiente do
controle social”.3
Se a justiça penal, no século passado,
depositava algum crédito sobre os regimes de semiliberdade em seus diversos graus, o que se vem
constatando nas presentes práticas punitivas, é o
endurecimento do seu procedimento, e a rigidez
intensificada representa o norte a ser seguido.
Maximiza-se em regra o controle, nada disso sem a
constante pressão governamental e mesmo da
comunidade em geral que vê estes mecanismos
liberatórios como deletérios a todo o corpo social. A
permeabilidade ao processo político – ao estilo
populista em matéria penal – não pode ser
desconsiderada quando se examina a tamanha perda
de autonomia da justiça penal. A vulnerabilidade aos
estados de ânimo da opinião (veiculada como)
pública e a simples reação política às demandas
(sempre urgentes) de combate à criminalidade já
tomaram acento confortável no panorama políticocriminal. Tornou-se lugar comum esta tática,
principalmente querendo lograr vantagens eleitorais
a curto prazo. A alta sensibilidade dos governos e
legislaturas a estas preocupações, diante de
3
David Garland, La Cultura del Control, p. 289.
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indivíduos perigosos que precisam ser controlados,
apenas pode ser aliviada, neste registro, com medidas
punitivas que reflitam este medo massificado e
tranqüilizem a indignação geral. Entre o processo
político e o castigo vem havendo, sim, como alerta
Christie1, uma distribuição mais eficiente da dor,
quer dizer, os canais de acesso estão mais liberados
entre as crescentes demandas por punição e o
processo político; o incremento das penalidades está
mais facilitado e acessível, podendo dar-se quase que
instantaneamente. O novo clima penalógico nunca
esteve tão distante da menção à assistência e amparo
ao desviante e tão próximo da escala de gestão dos
riscos, do controle intenso das condutas destes
sujeitos para a proteção do público. O uso de
pulseiras e rastreadores eletrônicos em geral é apenas
um fragmento neste mosaico punitivo.
O toque de fundo é dado, afinal, pela sensível
metamorfose cultural na relação da sociedade com a
delinqüência. Garland verifica que o enfoque do
welfarismo penal fazia quase que coincidir o
interesse do delinqüente com o da sociedade, no
sentido de entender que o investimento no seu
tratamento seria compensado pela redução futura nos
índices de delito. Hoje, radicalmente, houve um
descolamento desta perspectiva. Ambas afastaram-se
amplamente e estão completamente desvinculadas: os
Nils Christie, La Industria del Control del Delito ¿La Nueva Forma de
Holocausto?, Editores dEL PUERTO s.r.l., Buenos Aires, 1993, pp. 181-
interesses dos condenados, quando contemplados, são
vistos como diametralmente opostos ao do público.
Quer dizer, o sentido comum da maior segurança ao
público é a opção que vigora, ainda que seja ao preço
do desprezo de direitos dos detentos que
habitualmente seriam tomados em conta. O estigma,
pois, ganha valor renovado, diferente daquele aspecto
danoso que tinha no complexo penal-welfare –
contraproducente e que diminuía a possibilidade de
reintegração –, e que durante anos foi criticado pelos
estudos críticos.2
A estigmatização recobre-se agora de certa
utilidade. Em realidade, é um fator duplamente útil.
Além de trazer consigo a verve do próprio castigo
pelo delito ao condenado, agora se configura um
alerta geral à comunidade sobre o seu perigo. Ressoa
nas entrelinhas do (in)consciente repressivo: por que
não os controlarmos eletronicamente sob a vantagem
de que, além de continuarmos punindo –
rememorando a pena e fazendo-a mimese
permanente do crime –, ainda teremos o acréscimo de
servir de sinal útil de cuidado a toda sociedade? Com
esta lógica blindada, diante do quadro de
autoritarismo cínico, faria sentido se questionar sobre
a tamanha estigmatização que se constrói sobre a
imagem de um condenado carregando um aparelho
localizador em qualquer parte de seu corpo?
Certamente não. Talvez seja porque já tenhamos
1
191.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. 4ª ed.. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
2
naturalizado que certos seres, por delinqüirem, de
fato, não mais são membros do “público” e não são
dignos de consideração? Ainda, quem sabe seja
porque estejamos convencidos e tenhamos mesmo
assumido inafastavelmente a divisão social entre nós
– vítimas inocentes e sofridas – e eles – perigosos e
indignos delinqüentes –, depósitos das projeções de
nossos fantasmas, sob o preço do controle repressivo
mais explícito possível, agora despojado de antigas
aspirações benevolentes, para a nossa segurança?
Assim estará montada a plataforma de pressão
sob as agências da justiça penal para novos
dispositivos de controle que agora compartilhem e
exponham as informações de delinqüentes com os
membros do público, para nos salvaguardarmos de
perigos potenciais. Isto, naturalmente, se dá tendo por
detrás, para além da mera esfera repressiva
estigmatizante, o sinal daquilo que diz respeito ao
controle de populações inteiras. O Estado penal que
se agiganta e amplia sua malha, nesta miríade,
também está preocupado em criar banco de dados
centralizados e informatizados para controlar os ditos
desviantes.3
Wacquant traz o dado estarrecedor deste impulso nos Estados Unidos,
onde mais de 55 milhões de pessoas, quase um terço da população
adulta do país faz parte destas “fichas criminais”. Proliferam-se de
forma selvagem as práticas dos bancos de registros, já havendo naquele
país mais de seiscentas empresas especializadas em “verificação de
antecedentes”. Este fascínio por novas técnicas de controle tecnológicas,
de fato, alarga, generaliza, prolonga sem precedentes e indefinidamente
os meios de vigilância. Ainda mais quando falamos de bancos de dados
infinitamente maiores e mais poderosos. Em 1994, apenas para ilustrar,
3
Revista História - 6
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
2.
Encarceramento, as penas alternativas e o
engodo
Características gerais de um certo tipo de
organização social, conectada às condições da
modernidade tardia, (re)configuram o campo do
controle do delito de uma forma mais ou menos
constante.
O
caso
brasileiro,
ainda
que
conjunturalmente diverso, estruturalmente também
obedece, o fluxo que movimenta o palpitante teatro
burocrático-midiático da lei e da ordem,1 tal como se
o Congresso americano liberou US$ 25 milhões para facilitar a
sistematização de fichários informatizados, graças à criação de um
registro-fonte comum, o CODIS (Combined DNA Indez System), que
contêm impressões genéticas dos indivíduos. Hoje, já praticam 48 dos
50 estados americanos o “fichamento biológico” efetuado por meio da
coleta de sangue do condenado por ocasião da saída da prisão.
WACQUANT, Loïc Wacquant, Punir os Pobres: a nova gestão da miséria
nos Estados Unidos A onda punitiva, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revan,
2007, pp. 234-249 e pp. 355-394.
1 Nos Estados Unidos, cenário mais visível desta dinâmica, ainda que a
incidência das principais categorias de infração criminal não tenha
mudado fundamentalmente desde meados dos anos setenta, os arautos
do eldorado da lei e da ordem teimam em desconsiderar que a
população encarcerada aumentou cinco vezes em vinte e cinco anos.
Em 2008, estava na casa dos 2.424.279 presos, o que aproxima o
índice de encarceramento da ordem de 796 presos para cada 100.000
habitantes (Levando-se em conta os dados de 2008 (como dito,
2.424.279 presos), associada à população consolidada no U.S. Census
Bureau (www.census.gov) de 304.374.846 pessoas à época). Soma-se a
isto o fato ainda estarrecedor que, com a extensão continuada da
colocação de enorme parcela da população sob a tutela penal, em 2008,
já havia 7.308.200 cidadãos, mais de 2,3% de toda a população do país
(ou 1 para cada 31 adultos) sob a égide do controle penal 1 –
correspondente a um homem adulto em vinte, um homem negro em
dez e a um jovem negro cada três (Dados colhidos no
http://bjs.ojp.usdoj.gov: Bureau of Justice Statistics, Office of Justice
Programs, U.S. Department of Justice, Prisioners in 2008, Washington,
Office Press, 2009, p. 08 e Bureau of Justice Statistics, Office of Justice
afigura no cenário mais visível desta dinâmica que
são os Estados Unidos2.
No Brasil, o que não nos deixa enganar é o
tamanho crescimento do contingente carcerário no
país ao longo dos últimos anos. O recrudescimento
dos aparelhos do sistema penal demonstra o êxito do
punitivismo em terras brasileiras. O Sistema
Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) do
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)
vinculado ao Ministério da Justiça, com referência a
junho de 2010, aponta que havia um total geral de
presos no sistema e na polícia de 494.237 indivíduos.
Os dados consolidados de 2008/2009 demonstram
que, em 2003, a população total no sistema era de
308.304 presos – quer dizer, um incremento
próximo de 38% em menos de sete anos.3 Curva que
foi corroborada recentemente pelo relatório do
Departamento de Monitoramento e Fiscalização do
Sistema Carcerário (DMF) do Conselho Nacional de
Programs, U.S. Department of Justice, Probation and Parole in the
United States 2008, Washington, Office Press, 2009, p. 03).
2 Nos Estados Unidos, o que se deve destacar, sobretudo, é a ampliação
considerável da malha de dominação do sistema penal exatamente pela
proliferação dos aparatos de bancos de dados criminais e pela
multiplicação dos meios e de pontos de controle à distância (vigilância
eletrônica) que eles possibilitam (Loïc Wacquant, Punir os Pobres, p.
232). Qualquer pretenso recuo nos números de encarceramentos, se
ocorrer, é apenas produto transitório e, ademais, é respondido com a
expansão aguda da tutela da justiça penal por estes outros processos
multiformes de controle (Cf. Stanley Cohen, Visions of Social Control,
Cambridge, Polity Press, 1985).
3 Dados rigorosamente retirados dos Dados Consolidados de
2008/2009 e dos Relatórios Estatísticos de junho de 2010 do InfoPen:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94
C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm.
Justiça (CNJ). Nele, o Brasil consolidou a posição de
terceira maior população carcerária do mundo, com
um número, ligeiramente superior ao dado anterior,
de 494.598 presos, ficando atrás, em patamares
absolutos, apenas dos Estados Unidos e da China.4
Correlacionado ao contingente populacional,
mesmo assim, segue-se no mesmo sentido crescente.
Tomada a população brasileira em número de
191.480.630 (população estimada pelo IBGE em
dezembro de 2009, que o Ministério da Justiça toma
como referência, mesmo sendo apenas uma
estimativa, e muito otimista, visto que a população
brasileira vem decrescendo nos últimos dois sensos),
chega-se, pelos dados consolidados do InfoPen de
dezembro de 2009, ao coeficiente de 247,35
presos/cem mil habitantes.5 Se em 2000, o senso
Notícia veiculada dia 28 de setembro último no site do CNJ
(https://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=articl
e&id=12150:brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-domundo&catid=1:notas&Itemid=169). A China possuía, até meados de
2009, segundo o Internacional Centre for Prision Studies do School of
Law
do
King´s
College
London,
1.620.000
presos
(http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/research/icps/worldbrief/wpb_co
untry.php?country=91).
5 Precisamente, tendo-se como base o Relatório Estatístico de junho de
2010 do DEPEN (494.237 presos) o coeficiente saltaria para 258,11
presos/cem mil habitantes. Com os números do CNJ (494.598 presos),
haveria 258,3 presos/cem mil habitantes. Para que não haja a intenção,
mesmo que indireta, de se argumentar que assim, lendo desta maneira,
estaríamos forçando dados a maior, captando a população brasileira
dada pelo IBGE, em estimativa de dezembro de 2009, e cruzando com
os dados prisionais de junho (DEPEN) e de setembro (CNJ) de 2010, se
for do agrado, pode-se adotar os dados mais elásticos da Anistia
Internacional do Brasil para 2010: 193,7 milhões de habitantes
(ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2010 – O Estado dos Direitos
Humanos no Mundo. Porto Alegre: Algo Mais Artes Gráficas, 2010.
4
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
demográfico do IBGE apontava 169.799.170
habitantes1 e a população carcerária no mesmo ano,
por dados do InfoPen, era de 232.755 presos (137
presos/cem mil habitantes à época), houve um
impactante aumento, pelos números atualizados do
CNJ, de mais de 52% ao final de 10 anos.
Suma, para além das variações numéricas, os
indicativos são evidentes. Se este panorama já não
ocupasse quase que um local comum na agenda de
quem se presta minimamente a lidar com a
problemática do controle penal, caberia vez mais
frisar que vem havendo, há certo período, um grande
crescimento da população carcerária nacional, seja
em padrões absolutos ou relativos à densidade
populacional.
A figura toma cores mais nítidas e
comprometedoras quando se agrega o dado de que
nada adiantaram os mais variados substitutivos
penais aplicados, ao longo do tempo, no Brasil. Desde
as penas pecuniárias, passando pela suspensão
condicional da pena, e chegando até o livramento
condicional, sucessivos mecanismos foram aplicados
na esteira da tentativa de evitar a prisionalização, fato
marcante no movimento político criminal pelo
mundo a partir principalmente da década de setenta.
Tais substitutivos, standarts do século XX em matéria
Acessível em http://thereport.amnesty.org), o que pouco ou nada de
variação haveria em termos estatísticos: ficaríamos com 255,15
presos/cem mil habitantes.
1http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tab
elabrasil111.shtm. Acesso em setembro 2010.
de controle penal, viriam sumariamente para se
enfrentar a dita “crise da prisão”, sobretudo a da sua
superlotação.
Talvez não haja circunstância mais saliente a
representar o fracasso no Brasil de evitar a pena
privativa de liberdade que o resultado das práticas
das ditas genericamente “penas alternativas” (aqui
entendidas também as medidas alternativas advindas
dos Juizados Especiais Criminais). Não há como negar
que, dentre outros objetivos, de alguma parte, vieram
a seu tempo para tentar suprir o perene déficit de
vagas no sistema prisional nacional, ou diminuir o
impacto sobre ele. Penas e medidas alternativas que
visavam, ao menos, esvaziar ou ajudar a atenuar as
condições prisionais catastróficas no país2. Se, como
visto, em terras americanas, a malha foi estendida
independente da adoção de medidas outras em meio
aberto  a curva crescente do encarceramento é
acompanhada por aquela da aplicação de outras
medidas, ambas tomam parelha carreira, ou seja, a
ampliação do manancial de controle do sistema penal
sobre os cidadãos foi acompanhada pelo aumento
vertiginoso da população carcerária  nada havendo
de minoração ou enxugamento do controle penal;
contra o desperdício da experiência, talvez não fosse
preciso demonstrar – sabendo-se da pulsão expansiva
Cf. CARVALHO, Salo de. Substitutos penais na era do grande
encarceramento. In: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais
Contemporâneos II. GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Porto Alegre:
EDIPUCRS [recurso eletrônico], 2010, pp. 158-162.
2
contida em todo sistema penal, independente do local
– aquilo que veio a ocorrer no Brasil.3
A evolução da relação comparativa entre
prisões e penas/medidas alternativas continua
gritantemente crescente.4 Não é demais reafirmar que
3Se,
de 1984, quando da edição da Lei 7210 com a inserção na reforma
da parte geral do código penal das penas restritivas de direito, até 1987,
havia um número pífio de 197 condenados cumprindo penas
alternativas (na cidade de Porto Alegre, na época, único núcleo deste
tipo de execução no país), na década de noventa, ocorreu um novo
impulso determinante para se acompanhar esta nova dinâmica
supostamente descarcerizante. O primeiro vetor normativo foi a criação
dos Juizados Especiais Criminais pela Lei 9099/95. Ali se trouxe a
possibilidade da composição civil (com a vítima) e/ou a transação
penal (com o Ministério Público) nos chamados casos de crimes de
menor potencial ofensivo (delitos cuja pena máxima não fosse fixada
acima de dois anos3). Trazida ainda a possibilidade da suspensão
condicional do processo, extensiva a todo o sistema processual penal,
nos ditos delitos de médio potencial ofensivo, aqueles cuja pena mínima
não ultrapassasse um ano. O outro braço fora a edição da Lei 9714/98,
que deu novo fôlego às penas restritivas de direito e veio ampliar as
possibilidades de sua aplicação aos crimes com penas fixadas até quatro
anos de reclusão. Considerando que em 95, primeiro ano de vigência
dos juizados especiais criminais, já houve (além dos 1.692
cumprimentos de penas alternativas – penas restritivas de direito) o
registro de 78.672 casos de medidas alternativas (composição civil,
transação penal ou suspensão condicional do processo), os dados de
2002 – após um curto período de implementação da Lei 9714/98, bem
como passada a redefinição dos critérios da Lei 9099/95 pela
10.259/01 – já demonstravam um substancial aumento: 21.560
cumprimentos de penas alternativas somados aos 80.843 casos de
execução de medidas alternativas. Assim, a linha evolutiva do controle
punitivo formal não carcerário não cessou de se exprimir de maneira
aguda. Em 2009, os índices já apontavam para 126.273 o número de
cumpridores de penas alternativas e de 544.795 a quantidade de
pessoas cumprindo medidas alternativas, chegando-se num total de
671.078 indivíduos sob a tutela do controle penal descarcerizado. –
Nem por isso os níveis de encarcerados diminuíram –.
4 DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Evolução Histórica
das Penas e Medidas Alternativas (PMAS) no Brasil. Brasília: Ministério
da Justiça, 2008. Veiculados em:
Revista História - 8
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
chegamos, em 2009, somados aos 473.626 presos, à
amplitude da teia penal no Brasil na casa de
1.144.704 pessoas envolvidas. Que se diga sem muita
parcela de erro: a institucionalização das penas e
medidas alternativas não diminuiu os níveis de
encarceramento no Brasil, ao contrário, a curva
permanece crescente, gradual e constante, o que bem
pode retratar a falácia do discurso que mantém firme,
até com belas intenções, a defesa dos instrumentos
substitutivos com vista a diminuir o impacto das
políticas punitivistas.
Questão mais atenta poderia ser aposta para
tencionar quase que ao extremo o raciocínio: a
situação não poderia ser ainda pior sem este tipo de
política alternativa? Os níveis de prisões não seriam
mais amplificados sem a possibilidade de medidas
alheias à privação da liberdade? Estariam estas
práticas na esteira do que se poderia chamar de
redução de danos?
Muito aquém do que a exploração do tema
demanda, cabe por certo não arredar pé, para se
encontrar uma posição firme, da premissa básica
extenuantemente vista até agora: os substitutos penais
não respondem à atenuação da prisionalização e não
servem de válvula de escape para o número de vagas
no sistema ou outro efeito análogo. Carece de
importância ficar se fazendo conjecturas do que
poderia ter ocorrido. Se a pedra de toque é salvar o
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ47E6462CITEMID38622B1FFD
6142648AD402215F6598F2PTBRNN.htm).
número máximo de vidas possível desde a limitação
do poder punitivo, pouco cabimento guarda saber se
hoje poderia ser ainda pior. Indubitável, pois – e é
sobre isto que se deve trabalhar –, que o resultado
destas práticas foi o alargamento da dimensão do
tecido penal que, de uma forma ou de outra, também
acabou sendo viabilizada por estes mecanismos. Mais
importante talvez à reflexão seja enfrentar estas
questões para além da mera comprovabilidade
empírica, para tocar exatamente aquilo que de
nuclear há para se perceber. Pontualmente, se
estivermos falando de dispositivos eletrônicos que, em
tese, num primeiro momento, aliviariam o acesso às
vagas na esfera da execução da pena em meio aberto,
o que haveria, não tarde no momento seguinte, seria
um novo déficit de vagas, igual ou maior do que o
anterior, tanto no âmbito dos regimes de semiliberdade quanto agora na nova esfera destes novos
dispositivos eletrônicos. Não se esqueça que, depois,
além disso, não deixaríamos de ter um produto
agregado, um outro preço a ser pago: não
ganharíamos a possibilidade de reduzir o âmbito da
prisão e, noutro patamar, teríamos como síntese
inarredável a inflação exponencial do controle penal.
Isto nada teria a ver com uma política do “menos
pior”, muito menos seria condizente com uma espécie
de política redutora de danos, ao menos na
perspectiva comum. Aquilo que a uma primeira vista
mais açodada poderia ser associado a um conjunto de
mecanismos voltados a limitar a estrutural propensão
ao excesso do poder punitivo – quer dizer, à
minimização do Estado de polícia implícito em cada
modelo de Estado de direito historicamente
considerado – esconde verdadeiramente uma veia
propulsora deste mesmo poder. Afirma-se isso, não
porque se esteja fazendo um exercício de futurologia,
mas apenas porque não merece ficar incólume e
intocado o que há de central no funcionamento do
sistema penal e do poder punitivo como um todo: a
sua expansividade. A história do sistema penal, em
alguma medida, sempre foi a história da sua própria
metamorfose. A sua reconfiguração é da sua própria
lógica. A própria prisão, em particular, já nos
alertava Foucault1, sempre utilizou-se desta
propriedade de forma magistral: nasceu com o
objetivo pautado pela sua perene reforma, ela é como
que seu programa, e não tardará em dar-se conta do
momento de se “flexibilizar” para não perder sua
centralidade. Ignorar a dinâmica expansiva do poder
punitivo, menosprezar que algum dispositivo que for
lançado nestas engrenagens, ainda que dotado das
melhores intenções, incorporará e não ficará privado
de suas propriedades estruturais, é ficar afeito a um
delírio infrutífero.
A perda é enorme ao não se atentar para cada
nova cena da economia da punição. Tão importante
quanto à necessidade de opor obstáculos aos
mecanismos que tendem à ampliação da rede penal é
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução
de Raquel Ramalhete. 19ª ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 1987, p. 197.
1
Revista História - 9
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
surpreender inclusive os próprios discursos que,
aparentemente, quando não de face ingênua,
pretendem-se dotados da potência de diminuir os
enormes danos que o poder punitivo vem
produzindo. Como que a face do Angelus Novus da
pintura de Klee, vista por Benjamin1, que de olhos
escancarados, boca aberta e as asas desfraldadas, com
o seu rosto voltado para o passado, tendo diante de si
até o céu o acúmulo de ruínas, vislumbra um
amontoar delas no que parece uma cadeia de
acontecimentos. Que tenhamos força para não
voltarmos às costas para o futuro como o anjo da
história, e não acabemos seduzidos pelos auspícios da
tempestade chamada progresso.
3.
Controle e confinamento: entre serpentes e
toupeiras
Parece difícil, ao menos se quisermos tocar
mais profundamente a questão, não enveredarmos
para uma retomada no estudo das práticas de poder.
Talvez se tenha depositado sobre isto pouca atenção,
principalmente nos meios jurídicos oficiais. Deleuze,
especialmente em entrevista televisiva célebre,
tornada clássica e amplamente difundida pelos atuais
meios digitais, dada ao Institut National de l´Audiovisuel (I.N.A.), mas sobretudo no seu livro sobre
Foucault2, ressaltava a análise de três práticas do
poder: o Soberano, o Disciplinar e, sobretudo, o de
Controle.
Não que a sociedade disciplinar tenha
acabado, por certo, mas que já não somos exatamente
isto, e a própria entrada em cena de novos
mecanismos de sanção, educação e tratamento não
nos deixa enganar. O alvorecer desta nova
configuração de sociedade não é novidade alguma. Se
respiramos uma sociedade de controle contínuo e de
comunicação instantânea, talvez importe então
realizar um estudo, alçar questionamentos,
surpreender os diversos mecanismos de controle que
estão (em vias de serem) implementados, no lugar dos
meios de confinamento disciplinares, cuja crise se
anuncia ao menos desde o último quarto do século
passado.
Vivenciadas já as sociedades de soberania,
onde interessava mais decidir sobre a morte do que
gerir a vida3, certamente também não estamos mais
apenas fixados nos meios de confinamentos
tradicionais de uma sociedade disciplinar. Sociedades
estas característica dos séculos XVIII e XIX, com o
apogeu no início do XX, dotada exatamente pela
passagem do indivíduo por moldes como a família, a
escola, a caserna, a fábrica, de vez em quando o
hospital e, notadamente hoje em dia, não
eventualmente, a prisão  instituições totais, como
quer Goffman4  estas formas sociais, são dispostas a
concentrar e distribuir o espaço, ordenar o tempo,
maximizando a força produtiva de sujeitos
disciplinados.
Como visto, à crise destas formas não cansa de
se dar alarde. O que não se acode normalmente é,
afinal, o fato de que apenas um olhar próximo da
ingenuidade não perceberia que são exatamente elas,
como eixos modelares de um tipo social, as primeiras
a se darem conta da sua situação crítica. Noutros
termos, diga-se melhor, é a perversa inflexão do
“centro”, captada por Martins, pois conscientes de
sua própria crise de centralidade, tais espaços
fechados se dirigem agora a zonas potenciais de
ensaio5. É a própria crítica aposta que faz despertar
nestes locais o pressentimento de sua ruína,
acarretando, em algum nível, antecipações,
metamorfoses, à sua perda de domínio. Não por outro
motivo, vivemos em certa medida uma era de crise,
retratada na sempre premente necessidade de
“reforma das instituições”: reforma dos hospitais, da
educação, da indústria, da prisão etc.
Portanto, ao que parece, a lógica foi
transformada em alto grau. As sociedades
disciplinares têm dois pólos amplamente explorados e
de fácil identificação: o binômio indivíduo/massa. O
Erving Goffman, Manicômios, Prisões e Conventos, São Paulo,
Perspectiva, 1999, pp. 13-108.
5 Cf. Rui Cunha Martins, O Método da Fronteira: Radiografia Histórica
de um Dispositivo Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas),
Coimbra, Almedina, 2008, pp. 194-195.
4
BENJAMIN, Walter Benjamin, “Teses sobre a Filosofia da História”,
Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D´Água, 1992,
p.162.
2 Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 2006, pp. 78-100.
1
Michel Foucault, História da Sexualidade 1: a vontade de saber, 10ª
ed., Rio de Janeiro, Graal, s/d, pp. 125 ss.
3
Revista História - 10
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
poder aqui é massificante e simultaneamente
individualizante, ou seja, molda a individualidade de
cada membro do corpo, assim como assinala sua
posição numa massa – é o poder do pastor, segundo
Foucault, regulado por palavras de ordem sobre o
rebanho e sobre cada um dos animais.1 Segundo
Deleuze, adiante, nas sociedades de controle, o
essencial não será mais a assinatura que identifica o
indivíduo ou número de matrícula que o posiciona
numa massa, mas o que o regulará será uma
linguagem numérica. Falamos aqui de uma cifra,
mais propriamente de senhas que marcam nosso
cotidiano pelo acesso ou rejeição à informação. Em
considerável medida, apenas acessamos e, sobretudo,
somos acessá(í)veis desta maneira. Cartões eletrônicos
de todas as espécies: de crédito, para ligar o
automóvel, para entrar em casa, no trabalho, apenas
para ficarmos em exemplos fugazes. Acessamos
bancos de dados e, sobretudo, fazemos parte de
milhões deles, dos mais diversos multiplicados ao
infinito, que demandam suas devidas senhas ou
registro, óptico ou digital – demonstrando como os
indivíduos podem se tornar “divisíveis” como meras
amostras de mercado – capazes de antecipar quiçá
nossos próprios desejos. Por isso, vemo-nos falando
em “trocas flutuantes”, necessariamente “surfando”
freneticamente na rede, “em órbita” nesta diferente
maneira de viver as relações com outrem.
1
Michel Foucault, Vigiar e Punir, pp. 117-161.
Para dar as tintas desse novo contorno que se
deve aprender a lidar, arremata Deleuze: a velha
toupeira monetária é o animal dos meios de
confinamento, mas a serpente o é das sociedades de
controle.2 Certamente, o poder que comporá estes
dispositivos  Foucault disse que ele se exerce a partir
de inúmeros pontos e vem de baixo3 , se considerado
abstratamente, não vê e não fala: é uma toupeira que
se orienta apenas em sua rede de galerias, em sua
toca múltipla.4 Metaforicamente, diferente da
serpente, sinuosa em seus movimentos, sagaz e
surpreendente no bote, que se esgueira
maliciosamente nos recônditos do controle absoluto.5
Como ressaltado, encontramo-nos naquilo que
se poderia chamar de crise generalizada de todos os
meios de confinamento, alguns chamarão de “crise
das instituições”. Indaga-se: sendo assim a lógica que
se anuncia, não devemos parar para analisar as
formas ultra-rápidas de controle ao ar livre que
2
substituem as antigas disciplinas? Como não conectar
isto à constante metamorfose que vem se operando no
próprio capitalismo? De que maneira abrir mão da
análise de um sistema imanente que não pára de
expandir seus próprios limites, que se (re)encontra
ampliado e entregue ao seu limite, que é o próprio
Capital? Será tão árduo assim perceber que os
arcaicos confinamentos como a prisão, verdadeiros
moldes, estão ficando démodé? Não será porque os
emergentes controles são muito mais condizentes com
este ambiente, já que são modulações em si, quer
dizer,
moldagens maleáveis,
reconfiguráveis
6
continuamente?
Por certo, sobretudo, trata-se a rigor, de uma
radical mudança da dinâmica do capitalismo. Não
mais existe radicalmente aquele modelo de
capitalismo do século XIX centrado na fábrica,
fundado na concentração de capital e voltado para a
produção, onde o mercado era conquistado pela
colonização, pela redução dos custos ou ainda pela
Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”,
Conversações, São Paulo, Ed. 34, 1992, p. 222.
3 Michel Foucault, História da Sexualidade 1, p. 90.
4 Gilles Deleuze, Foucault, p. 89.
5 Por outro lado, as máquinas que cada tipo de sociedade faz
corresponder são outras. Aquelas que exprimiam formas peculiares
simples das antigas sociedades de soberania poderiam ser vistas nos
relógios, nas alavancas e roldanas; passadas depois, nas sociedades
disciplinares recentes, para as máquinas energéticas, em que o perigo
se depositava na sabotagem. Atualmente, operam máquinas de terceira
espécie, máquinas informáticas, em que o perigo ativo está na pirataria
e na introdução de um vírus. Mas elas em si pouco nos dizem, senão
quando perquirimos sobre os agenciamentos coletivos que fazem parte
(Gilles Deleuze, “Controle e Devir”, Conversações. São Paulo, Ed. 34,
1992, p. 216).
Não será por acaso que, nas sociedades de controle, o desdobramento
da fábrica é a sua substituição pela empresa, principalmente quando se
verifica profundamente, nesta perspectiva, a transformação da forma
salário. É a modulação permanente do salário por um “sistema de
prêmios” (bônus por produtividade) que agora importa frisar.
Aprofundam-se desafios, tarefas, metas e todo novo jargão
“empreendedor” exatamente para reforçar a rivalidade. Introduz-se a
competição como emulador central e inexpiável neste novo contexto.
Sobre a massa da fábrica  que servia para a vigilância do patrão ou
para a mobilização do sindicato  é instaurado um modulador, o
“salário por mérito”, que surge para excitar e contrapor os indivíduos.
Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p.
221.
6
Revista História - 11
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
especialização. Se aquele capitalismo era dirigido
para a produção, a atual performance do capital é
voltada para a sobre-produção. O que se vende são
serviços e o que se compra são ações, como diz
Deleuze1. Compram-se produtos acabados ou
montam-se peças destacadas. O produto impera, não
a produção, agora relegada a algum país de terceiro
mundo. Os mercados são conquistados, assim, por
fixação de cotações e transformações do produto. Por
isso, não mais a fábrica concentrada, mas a dispersa
empresa. Os antigos confinamentos são agora figuras
cifradas deformáveis de uma mesma empresa que só
necessita de meros gestores.2 Enfim, os antigos
espaços analógicos que convergiam para algum
proprietário, público ou privado, parecem ser agora
figuras de uma mesma entidade que dispensa um
corpo e necessita de simples gestores.3
Sintetizará Deleuze: do homem confinado
para uma espécie de homem endividado. É óbvio –
diversos horizontes já se afiguram para confirmar
esta expectativa – que neste processo agônico dos
meios disciplinares – não se diga que eles tenham se
Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p.
224.
2 Em substituição, emerge um gigantesco agenciamento anônimo em
escala planetária. Um mercado global homogeneizante cujos Estados e
Bolsas são meramente suas sedes. Não existirá, pois, um “Estado
Universal”, justamente porque universal no capitalismo apenas o
mercado. Enganam-se alguns a não verem os Estados democráticos,
sim, formidavelmente, comprometidos com a fabricação da miséria
humana (Gilles Deleuze, “Controle e Devir”, p. 213).
3 Cf. Slavoj Žižek. Órganos sin Cuerpo: sobre Deleuze y consecuencias,
Valencia, Pre-Textos, 2006.
1
findado – as novas forças que se instalam deverão
enfrentar a explosão dos guetos e favelas, quer dizer,
controlar aqueles que, de certa forma, são pobres
demais para alguma dívida ou numerosos demais
para o confinamento.4
4.
Conclusão
Implementam-se, às cegas, novos tipos de
sanções. Dirá vez mais o filósofo francês: “face às
formas próximas de um controle incessante em meio
aberto, é possível que os confinamentos mais duros
nos pareçam pertencer a um passado delicioso e
benevolente”5. Enfim, é da crise generalizada dos
meios de confinamento, das candentes e sempre
urgentes “reformas”, que nascem as novas
configurações de controle. Pouco importará
perguntar o que é pior – devendo-se temer ou esperar
–, mas se impõe buscar novas ferramentas e
surpreender, a todo momento, estes incipientes
agenciamentos coletivos6. Alguns, açodada ou
ingenuamente, ainda que de boa-fé, podem enxergar
neste movimento um abrandamento no ideal
repressivo e, numa política do “mal menor”, até uma
certa conquista de migalhas de liberdades, mas,
retumbantemente, não raro, ignoram que passamos a
integrar outros inúmeros mecanismos de controle
Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p.
224.
5 Gilles Deleuze, Controle e Devir, p. 216.
6 Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p.
220.
4
que acabam por se agregar aos mais duros tipos de
confinamentos disciplinares. O alerta já fora dado em
1990 por Deleuze. O olhar com ares de profecia, hoje
completamente confirmada  realidade concreta em
tão curto espaço de tempo. A longa citação se
justifica:
“Não há necessidade
de ficção científica para se
conceber um mecanismo de
controle que dê, a cada
instante, a posição de um
elemento em espaço aberto,
animal numa reserva, homem
numa
empresa
(coleira
eletrônica). Félix Guattari
imaginou uma cidade onde
cada um pudesse deixar seu
apartamento, sua rua, seu
bairro, graças a um cartão
eletrônico (dividual) que
abriria barreiras; mas o
cartão poderia também ser
recusado em tal dia, ou entre
tal e tal hora; o que consta
não é a barreira, mas o
computador que detecta a
posição de cada um, lícita ou
ilícita,
e
opera
uma
modulação universal. O
estudo sócio-técnico dos
Revista História - 12
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
mecanismos de controle,
apreendidos em sua aurora,
deveria ser categorial e
descrever o que já está em
vias de ser implantado no
lugar
dos
meios
de
confinamento disciplinares,
cuja crise todo mundo
anuncia. Pode ser que meios
antigos,
tomados
de
empréstimo
às
antigas
sociedades de soberania,
retornem à cena, mas
devidamente adaptados. O
que conta é que estamos no
início de alguma coisa. No
´regime das prisões´: a busca
de penas ´substitutivas´, ao
menos para a pequena
delinqüência, e a utilização
de coleiras eletrônicas que
obrigam o condenado a ficar
em casa em certas horas. (...)
No ´regime de empresa´: as
novas maneiras de tratar o
dinheiro, os produtos e os
homens, que já não passam
pela antiga forma-fábrica.
São exemplos frágeis, mas
que
permitiriam
compreender melhor o que se
entende por crise das
instituições,
isto
é,
a
implantação progressiva e
dispersa de um novo regime
de dominação. (...) Será que
já se pode apreender esboços
dessas formas por vir, capazes
de combater as alegrias do
marketing? (...) Os anéis de
uma serpente são ainda mais
complicados que os buracos
de uma toupeira.”1
Sejamos menos afeitos à cegueira
toupeiras e mais atentos ao bote da serpente.
das
DELEUZE, Gilles. ´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle, p.
224-226.
1
A DISCIPLINA NOS SERTÕES: MANUEL IGNÁCIO DE
SAMPAIO E UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO NO
CEARÁ (1812 – 1820)
João Paulo Peixoto Costa
Mestrando em História do Brasil
pela Universidade Federal do Piauí
Bolsista do programa Reuni
de assistência ao ensino
Resumo
A partir da chegada de Manuel Ignácio de Sampaio
no Ceará em 1812, para ocupar o cargo de
governador da Capitania, diversa ações foram
executadas com o objetivo de transformar aquela
região periférica do império português. Tendo diante
de si um povo disperso pelo território, ainda “pouco
civilizado” – no olhar da elite político-intelectual – e
comandado por potentados locais, pôs em prática um
plano de monitoramento populacional, onde controle,
punição e disciplina agiam de forma marcante. Dessa
forma, a partir da documentação produzida por este
governo, este artigo pretende analisar de que maneira
se efetuou essa política de centralização do poder
(inclusive dos atos de punir) e de gerenciamento dos
habitantes.
Palavras chave: Ceará, controle, punição.
Revista História - 13
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Resumé
Depuis l'arrivée de Manuel Ignacio de Sampaio dans
Ceará en 1812, pour occuper le poste de gouverneur
de la province, plusieurs actions ont été effectuer
dans le but de transformer cette région périphérique
de l'empire portugais. Et devant lui un peuple
dispersé sur tout le territoire, encore «non civilisés» pour l'élite politique et intellectuelle - et gouverné par
des potentats locaux, a mis en place un plan de
surveillance de la population, où le contrôle, la
discipline et la punition a agi de façon marquée.
Ainsi, à partir de la documentation produit par cette
administration, cet article vise à analyser la façon
dont cette politique de centralisation du pouvoir (y
compris les actes de punicion) et de gestion des
habitants s’a effectuée.
Mots clé: Ceará, contrôle, punicion.
***
Introdução
Se a importância de uma pessoa para a
história se revelasse a partir de uma rua homônima,
poderíamos concluir que a passagem de Manuel
Ignácio de Sampaio pelo Ceará teria sido, se não
irrelevante, quase imperceptível. Localizada no
centro de Fortaleza, a Rua Governador Sampaio se
esconde em meio a nomes bem mais conhecidos,
como Floriano Peixoto, Conde D’Eu, Pinto Madeira ou
até mesmo Santos Dumont. Uma provável explicação
para esse fato é que esse militar português, que
governou o Ceará entre os anos de 1812 e 1820, foi
uma das grandes forças que contribuíram para o fim
da chamada Revolução Pernambucana de 1817.
Logo, para a memória daqueles que pretendiam
construir a história de um Brasil independente, era
muito mais edificante lembrar-se de nomes como
Tristão Gonçalves ou Bárbara de Alencar (que além
de terem sido protagonistas dos movimentos de
independência no Ceará, no século XIX, dão nome a
vias importantes da capital cearense).
Por sua vez, a figura do governador em
questão permanece ainda hoje desconhecida por
muitos, e o esforço para o apagamento de sua
memória vem de muito tempo. Exemplo disso é o
relato do então monsenhor Francisco Muniz Tavares,
participante dos conflitos em Pernambuco de 1817, e
que anos depois escreve a história dessa revolução.
Partidário das causas pela independência da região,
lutou ao lado dos revolucionários, e posteriormente,
dedicou-se a narrar a “sanguinolenta luta” que,
segundo ele, Pernambuco “sustentara contra huma
das mais poderosas nações maritimas da Europa,
defendendo sua honra, seu território” 1. Em sua obra,
cita os embates que ocorreram no Ceará, e a forma
como foi sufocado o movimento pela independência
que teve lugar na vila do Crato. Liderando o governo
Francisco Muniz Tavares, História da revolução de Pernambuco em
1817, 3ª edição, Recife, Imprensa Industrial, 1917, p. 76.
cearense nesse momento, Tavares coloca-o como o
grande responsável por esta derrota, cuja atividade
teria redobrado “com a noticia da visinha
conflagração”. De acordo com o autor, mesmo
sabendo que de nada precisava temer do povo desta
capitania...
...seu espirito era sempre
agitado, como são os que não
obrão
rectamente.
Hum
pequeno traficante da Capital,
só por ser Pernambucano, era
hum súbdito tão perigoso,
quanto
o
ouvidor
da
Commarca João Antônio de
Carvalho [...]. Não tendo a sua
disposição força sufficiente
para marchar contra as
Provincias
insurgidas
contentou-se de assegurar a
que governava, exercitando os
poucos soldados, prescrevendo
ordens severas a todos os
capitães mores, e desfigurando
com as mais negras cores os
actos
praticados
em
2
Pernambuco .
1
2
Francisco Muniz Tavares, 1917, p. 141 e 142.
Revista História - 14
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Não é nossa intenção confirmar as palavras de
Tavares, para quem o governador em questão teria
sido uma espécie de tirano, muito menos colocá-lo na
posição de um herói injustiçado pela historiografia.
Para além da legitimidade de suas ações, percebemos
que, através da análise do extenso acervo documental
deixado por ele e presente no Arquivo Público do
Estado do Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, futuro
visconde de Lançada1, teve participação fundamental
no desenvolvimento econômico e do ordenamento
populacional desta capitania que era considerada à
época um dos confins mais precários do Império
português. Nas palavras de João Alfredo Montenegro,
Sampaio seria uma “pessoa de profundas convicções
absolutistas-monárquicas. Desde jovem já se
apresentava austero, amante da disciplina e da
ordem”, características que ficaram marcadas tanto
em sua luta contra os revolucionários em 1817, como
no seu projeto de civilizar o povo do Ceará 2.
Como alguns exemplos de realizações deste
governador, nas quais não pretendemos nos alongar,
podemos citar obras de engenharia importantes,
lideradas pelo engenheiro Silva Paulet como a
construção do mercado público e a reforma da
Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção3, que até
então, era apenas uma paliçada de madeira, enquanto
1
Administração Manuel Ignácio de Sampaio (1º visconde de Lançada),
Revista do Instituto do Ceará, ano 30, Fortaleza, 1916, p. 201.
2 João Alfredo de Souza Montenegro, O trono e o altar: as vicissitudes
do tradicionalismo no Ceará (1817-1978), Fortaleza, BNB, 1992, p.22.
3 Administração Manuel Ignácio de Sampaio, 1916, p. 202.
as outras fortificações nas capitais do Nordeste já
eram de pedra e cal. No âmbito econômico, o governo
Sampaio teria sido “aquele em que a economia
algodoeira atingiu seu auge”, acompanhado de forma
inseparável “por um forte processo repressivo,
principalmente sobre os povos indígenas” 4. É
possível perceber que, juntamente com seu projeto
que visava impulsionar a produção, foi traçado pelo
governador todo um plano complexo e minucioso de
controle, disciplinamento e civilização da população
do Ceará, que além de manter hábitos “bárbaros”
para os conceitos ocidentais – como a dispersão
populacional – seria extremamente violenta,
praticamente independente do gerenciamento real5 e,
conseqüentemente, a causa do atraso desta capitania6.
Partindo da análise documental produzida por
Sampaio, este trabalho, que faz parte de uma
pesquisa desenvolvida no Mestrado em História do
Brasil pela Universidade Federal do Piauí, tem como
objetivo mapear as áreas de atuação dessa política
civilizatória desenvolvidas pelo governador, e
perceber de que maneira se construiu essas práticas
disciplinares num dos confins mais periféricos do
império português.
Francisco José Pinheiro. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680
– 1820, Fortaleza, Fundação Ana Lima, 2008, p. 319.
5 José Eudes Arrais Barroso Gomes, Um escandaloso theatro de horrores:
a capitania do Ceará sob o espectro da violência (século XVIII),
Monografia de bacharelado, Universidade Federal do Ceará, 2006.
6 João da Silva Feijó. Memória escrita sobre a Capitania do Ceará,
Revista do Instituto do Ceará, ano 03, Fortaleza, 1889, pág. 03 – 27.
4
Controle populacional
Um lugar sem lei, sem marcos no chão. Terra
de vagabundos e ladrões, tendo uma sociedade
marcada pela constante presença da violência
convivendo com a debilidade das instituições policiais
e judiciárias7. Esse parece ser o quadro social do
Ceará que Manoel Ignácio de Sampaio visualizou em
1812, quando assumiu o governo da Capitania. Além
dele próprio, os viajantes que aí estiveram na
primeira metade do século XIX expressaram
comumente em seus relatos impressões como essas
frente à situação social que encontravam: um sertão
“brabo” em pleno solo do reino de Portugal, e que
por isso mesmo precisava ser transformado. Como
exemplo, basta lembrarmo-nos da “Memória sobre a
Capitania do Ceará”, de João da Silva Feijó, onde
procurou passar em detalhes as suas principais
observações sobre diversos aspectos – naturais e
sociais – da referida capitania. De acordo com o
autor, a terra em si seria bastante promissora, sendo
“necessario ter muito pouco conhecimento do fizico
da Capitania do Ceará para duvidar das immensas
vantagens que Ella pode produzir” 8; logo, o
problema estaria na sua composição social. Formada
de uma “desfalecida população”, era “de maior parte
7
8
José Eudes Gomes, 2006, p. 127.
João da Silva Feijó, 1889, p. 03.
Revista História - 15
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
de pessima qualidade” 1, inviabilizando seu
desenvolvimento.
Por isso, percebemos que a população desta
capitania, “hum Povo ainda pouco civilisado” nas
palavras de Sampaio2, passou a ser motivo de forte
preocupação deste governo. A confecção de mapas
populacionais em cada vila, a renovação da “política
de passaportes” (que permitia o deslocamento de um
indivíduo para fora da capitania, ou mesmo de sua
vila, somente através de autorização), o crescimento
dos recrutamentos em companhias locais de
ordenanças e a chamada “caça à vadiagem” são
exemplos de ações governamentais desenvolvidas
nesse período que tinham como objetivo acabar com
o já citado problema da dispersão populacional. Esta
situação, tão combatida pelos governantes, teria como
decorrência não só o atraso econômico, mas também
a proliferação de costumes bárbaros e poucos
civilizados. Ou seja, era somente através de uma
constante vigilância, e do recrudescimento das
práticas disciplinares, que esta população poderia ser
gerida, controlada e, conseqüentemente, civilizada.
Em um ofício dirigido ao comandante do
destacamento de Sobral em abril de 1814, por
exemplo, o governador ordena que se em sua “ronda
tornar a prender alguns pretos q’ estejão em
batuques, será bom insinuar a os Senhores q’ lhes
dem algum castigo publico” 3, demonstrando a sua
preocupação em acabar com certos costumes
bárbaros, como os batuques, e ainda em expor as
punições dos culpados, com o objetivo de servir de
exemplo a outras pessoas.
Os choques entre as pretensões do governo e
as reações da população diante de seus projetos se
deram em vários setores desta sociedade, inclusive
com a elite econômica, e pudemos encontrar alguns
registros neste sentido nos documentos relativos à
instalação do chamado Correio do Norte do Brasil.
Esta “ferramenta sistemática de comunicação”,
“fundamental para a fluidez de relações comerciais
entre as vilas do Ceará e mesmo entre outras
capitanias” 4, não teria sido bem recebida
inicialmente por eles. Em carta encaminhada ao
Chanceler do Maranhão, acerca da criação de uma
agência dos correios nesta capitania, Sampaio o
alerta, dizendo estar certo de que nos “primeiros seis
ou oito meses” o funcionamento do correio “poderá
ter algûas irregularidades, porque os Povos do sertão
não gostam de novidades, como succedeo daqui até
Idem, p. 22.
2 Abril 15. Registro de hum officio dirigido ao Ex. mo Sn’ Dom Miguel
Pereira Forjaz [...] pedindo-lhe socorros. In: Livro 23, p. 124V.
Congresso internacional de história e patrimônio cultural / Encontro
regional de história do Piauí, Simpósio 16: “Memória, sociedade e
1
Abril 30. Rego do officio ao Teme Comde do destacamto do Sobral,
dando varias ordens sobre o mmo destacamto. In: Livro 34, p. 183. Grifo
nosso.
4 João Paulo Peixoto Costa. Os filhinhos do governador: o “Correio do
Norte do Brasil” e os índios correio no Ceará (1812 – 1820), Anais do
Pernambuco” 5. Com este trecho, percebemos não só
a dificuldade da população sertaneja em aderir a
certos projetos modernizadores, como também certa
visão de menosprezo do governador perante dos
habitantes do Ceará.
Diante dessa situação de atraso social, no
olhar do governador Sampaio, percebemos que as
atitudes relativas ao controle e monitoramento da
população passaram a ter uma preocupação especial,
não somente em relação aos habitantes que
pretendiam circular dentro ou fora do território, mas
também àqueles que chegavam de outros lugares. Isso
ficou marcante durante os conflitos em Pernambuco
de 1817, já que o medo de que aquele povo “pouco
civilizado” aderisse às idéias revolucionárias fez com
que o monitoramento recrudescesse ainda mais,
como nos diz os escritos já citados de Muniz Tavares.
Outro exemplo desse controle minucioso em relação
às pessoas que circulavam no Ceará, e do receio em
relação às suas ações, está registrado no ofício
expedido ao escrivão de Granja em setembro de
1818, sobre a chegada de um frei franciscano na
capitania:
Na Sumaca Estrella do
Norte foi para essa Villa hum
3
movimentos sociais”, Teresina, Educar: artes e ofícios, 2010, p. 01.
Setembro 17. Registo de hûa carta dirigida ao Chanceller do
Maranhão, agradecendo-lhe ter concorrido pa o =convenio= do
General, em quanto a ampliação do Correio, e sobre mais objectos do
mesmo Correio. In: Livro 23, p. 63V.
5
Revista História - 16
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Religioso da Ordem de Sto
Antonio
por
nome
Fr.
Alexandre dotado de grandes
talentos e que apesar de trazer
todos os seus papeis Correntes,
e mui claros he de grande
disconfiança. Ordeno portanto
a vme que com o seu
Costumado Criterio haja de
Observar attentamente todas
as acções do dito Religioso
assim como tambem as
opiniões, e ideias que elle
publicar dando-me de tudo
parte a fim de eu poder
providenciar, e evitar a tempo
qualquer
funesto
acontecimento1.
Observemos que, mesmo trazendo todos os
documentos necessários em ordem, e de forma clara,
esse frade despertou grande desconfiança por parte
do governador, ainda mais por ser “dotado de
grandes talentos”, cuja natureza é difícil saber.
Porém, podemos supor que, pela proximidade
temporal dos conflitos em Pernambuco – que
ocorreram um ano antes e com fortes envolvimentos
Setembro 15. Officio ao Escrmor da Granja Jose de Almeida Fortuna pa
Observar os passos de 1 Frade q’ ahi chegou. In: Livro 28, p. 103.
Grifos nossos.
1
de religiosos – sua presença tenha provocado em
Sampaio a preocupação em se monitorar não só suas
ações, mas também opiniões e idéias, que dependendo
do conteúdo, poderiam causar algum “funesto
acontecimento”, como por exemplo, a renovação dos
ideais revolucionários.
Como já expomos anteriormente, estas
práticas de controle populacional, tanto em seus
deslocamentos como em seus cotidianos, sempre
estiveram acompanhadas de intenções relativas ao
crescimento econômico e à civilização dos habitantes.
Para ilustrarmos este quadro, damos como exemplo a
ordenação das atividades de pesca marítima na
Prainha, em Fortaleza, que mandou executar logo no
seu primeiro ano de governo, em 1812. Para isso,
além de instituir uma autoridade militar sob a qual os
pescadores deveriam obediência, tratou no seu ofício
de abril deste ano, enviado ao ajudante de milícias da
capital, sobre questões relativas ao comércio de
pescados. Colocou Agostinho Cardozo Batalha como
comandante e Antonio Raimundo como cabo, cujas
obrigações seriam a de “vigiar sobre o trabalho de
todos os Pescadores da Prainha, e obrigalos a ir ao
mar todos os dias que o tempo permitir”, atividade
esta que seria “em utilidade, tanto dos habitantes
desta Villa como dos mesmos Pescadores”. Caso
houvesse desobediência ou desrespeito por parte dos
pescadores, estes deveriam ser severamente
castigados, já que as ordens do comandante e do cabo
deveriam ser executadas “como se ellas emanassem
propriamente da minha boca”. Por fim, disse ainda
que criaria uma casa que serviria de praça para a
venda e compra dos peixes, tentando por essa
maneira deixar os trabalhadores “livres dos
atravessadores que se locupletão [enriquecem] a custa
do suor, e fadiga dos mesmos Pescadores”, como
também de “roubos, e desordens a que estavão
sujeitos vendendo o peixe em confuzão no meio da
Praia”.
Nessa ocasião, podemos observar que
interesses econômicos estão estreitamente atrelados
ao ordenamento do trabalho e dos costumes daqueles
pescadores. Se antigamente vendiam os seus peixes de
forma desordenada na praia, agora passariam a
trabalhar em uma casa própria para isso, livres de
atravessadores e roubos. Para que isso acontecesse, a
vigilância constante se fazia necessária, não só para
que trabalhassem de forma regular e disciplinada,
mas também para garantir o abastecimento de
Fortaleza e dos próprios pescadores. Na visão de
Sampaio, o controle das autoridades, a obediências
desses subordinados e as ameaças de castigos para os
rebeldes, agindo de forma combinada, seria
extremamente vantajoso até para os pescadores, tanto
que, para o governador, aqueles que infringissem a
lei estariam “esquecidos dos seus próprios interesses”
2. A disciplina, e todas as práticas relacionadas a essa
Abril 27. Registo de hûa Ordem dirigida ao Ajudante de Milicias
Francisco Xavier da Camera para a fazer publicar aos Pescadores da
Prainha desta Villa. In: Livro 26, p. 6.
2
Revista História - 17
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
forma de governo e poder, seriam o caminho para a
civilização do Ceará, e isso é visível neste exemplo de
ordenamento do trabalho.
Centralização das decisões e o controle das punições
Outras ações que foram fundamentais para a
política de Sampaio de controle dos habitantes,
constantes durante todo seu governo, estiveram
ligadas à centralização das decisões políticas e a
retomada do poder sobre o gerenciamento
populacional. Como nos conta o trabalho de José
Eudes Gomes, os potentados nos sertões acabaram se
desenvolvendo praticamente independentes dos
governos da capitania, seja em termos de decisões ou
no sentido da subordinação às ordens superiores1.
Indo de frente com essa realidade, encontramos nas
fontes registros variados de repreensões do
governador dirigidas a autoridades locais que não
respeitavam tal hierarquia, ou agiam de forma
autônoma. Em julho de 1813, Sampaio escreve ao
capitão mor do Icó recriminando a atitude do tenente
Ferreira, que “Seguindo talves hum Antigo costume
que aqui havia de todos darem Ordens com nome do
Governador lembrouse de escrever a VMe como se
fosse meu Ajudante d’Ordens”, indo por essa maneira
“contra o Sistema geral do meu Governo” 2.
Num ambiente onde seria costumeiro produzir
documentos oficiais sem a autorização devida, e
ainda usando o nome do governador, pode-se deduzir
a falta de controle político e o pouco alcance de certas
decisões centrais. Era impossível gerir de forma
satisfatória o povo sem que houvesse de maneira
efetiva a subordinação das autoridades locais em
relação à hierarquia e às ordens governamentais, e de
acordo com os registros, observamos que essa
situação foi atacada firmemente pela ação de
Sampaio. Em dezembro de 1813, o governador
recrimina o coronel de cavalaria miliciana de Sobral
por este não ter obedecido a sua ordem sobre o
“fornecimento de Soldados para guarnecerem os
quatro Presidios da Costa do Termo dessa Villa” nos
meses de fevereiro, maio, agosto e novembro em
todos os anos, e ainda manda castigar outros militares
culpados pela ausência de homens nas guarnições de
Itapajé e Almofala “cada hum conforme a sua
graduação e a proporção de sua culpa de que me
dará parte” 3.
No caso das decisões que demonstrassem
fidelidade e respeito à ordem central, elas não
deixavam de ser parabenizadas pelo governador. No
Julho 6. Registo de hum Officio ao Capmor do Ico com Resposta ao seu
Offo de 26 de Março sobre o castigo q’ deu ao preso Escro de Joaqm Jose
de Carvalho. In: Livro 17, p. 102.
3 Dezembro 29. Rego do Officio ao Corel de Cavallaria do Sobral a respto
dos Presidios no mmo espreçados. In: Livro 34, p. 130V.
mês de julho do ano anterior, Sampaio escreve ao
agente do recém criado Correio do Norte do Brasil no
Aracati, dizendo-lhe que fazia “muito bem em não
alterar em coisa algûa o arranjo do estabelecimento
do Correio, só pelo dito de algûas pessoas” 4. No
mesmo mês, com conteúdo semelhante, expede ofício
ao agente do Icó, insistindo-lhe que, “apesar do
melindre do seu Capitam Mor não deve VMce por
motivo nenhum alterar o que determinão as
instruções que lhe tenho dado para o arranjo do
Correio” 5. Notemos a difícil situação em que se
encontrava o responsável pelo correio: se de um lado
tinha uma instrução do governador, do outro havia
os pitacos da autoridade local, mostrando o quanto
era comum o poder de mando desses militares
espalhados pelo sertão.
A força desses capitães mores em suas vilas se
expressava também na sua liberdade em punir, da
forma que bem entendessem, qualquer pessoa que
infringisse as suas próprias leis, sem que para isso
precisassem pedir autorização do governador. Esse
costume também foi combatido por Sampaio, que
pretendia centralizar todas as decisões nesse sentido,
fosse ao âmbito militar ou não. Em novembro de
1813, escreve ao diretor da vila de índios de Monte
mor Velho (atual Pacajús), dizendo-lhe que “fes
2
1
José Eudes Arrais Barroso Gomes, 2006, p. 29 e 30.
Julho 16. Rego de hum Officio dirigido ao Agente do Aracati Manoel
Joze Rebello. In: Livro 26, p. 84.
5 Julho 27. Registo de hum Officio dirigido a Manoel do Espirito Santo
da Paz, Agente do Correio da Villa do Icó. In: Idem, p. 88V.
4
Revista História - 18
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
muito bem em não mandar castigar com palmatoada
os tres Indios Pai, filho, e genro que maltrataram
outro Indio tambem dessa Direcção” 1. No mês
seguinte, manda ao comandante de Sobral que
repreenda “mui Asperamente” ao comandante da
Barra do Acaracu (atual Acaraú) “por ter levantando
tronco sem Ordem minha”, e diz ainda que “não deve
por motivo nenhum Conservar presos no tronco [...]
mas unicamente mandalos para Cadeia dessa Villa” 2.
Já em janeiro do ano posterior, compondo suas
ações que buscavam impor entre as autoridades
locais o respeito à hierarquia e aos deveres militares,
Sampaio chega a agir em defesa de um soldado,
Manuel Joaquim Estremos, que havia se queixado do
capitão mor Antônio Francisco da Silva. Para isso,
escreve um ofício ao coronel do regimento da
infantaria miliciana do Ceará e Jaguaribe, Pedro José
da Costa Barros, relatando que, além do dito capitão
ter passado uma ordem ao soldado que estava fora de
sua escala de serviços, teria o “ultrajado [...] com
palavras picantes e desattenciozas improprias do
capricho e honra Militar”, como também tentado
“dar no Supe com hum pau (tendo previamte pa este
fim fechado a porta da sua Caza)”, e ainda tê-lo
“prendido a minha ordem não contente com aquelles
Novembro 16. Registo de hum Officio ao Director de Monte Mor o
Velho pa remetter huns Indios presos pa esta Capal. In: Livro 18, p. 6V.
Grifos nossos.
2 Desembro 15. Registo de hum Officio ao mmo Sargmor Commde Sobre
Varios Objectos. In: Idem, p. 29. Grifo nosso.
1
recolher as Cadeias
publicas presos a minha
Ordem, ou do seu respectivo
Coronel,
e
dando
te
immediatam
parte desta
prizão...3
desatinos”. Diante disso, o governador passou ao
coronel Costa Barros as seguintes instruções:
Ordeno a VSa, que [...] na
prezença de todos reprehenda
o sobredito Capm Antonio
Franco da Silva pr tudo quanto
praticou com o mencionado
Soldado
Manoel
Joaqm
Estremos, [...] fazendo ver ao
mmo
Capm
ter
faltado
essencialmte
Militar, q’
á
disciplina
assim como
estabelece a mais rigorosa
subordinação aos Superiores,
prohibe igualmte a estes o uso
de palavras injuriozas, e de
todo o procedimto q’ for
indecorozo aos inferiores, e q’
só tenderia a diminuir [?] o
brio e capricho Militar [...]. O
mmo Sargto Mór fará conhecer
ao mencionado Capmor, assim
como tambem aos outros
Officiaes [...] q’ [...] nenhum
Official de Milicias desta
Capitania poderá castigar os
offes de Patente, offes Inferiores
e Soldados que lhes forem
subordinados se não fazendo-
os
Em nome desse brio e capricho militar,
Sampaio expede essa ordem que pode nos oferecer
muitos elementos para a análise de sua política de
controle e disciplinamento da população e dos
variados setores desta sociedade. Percebemos que
estas ações autoritárias do capitão mor – assim como
a do comandante da Barra do Acaracu, citado
anteriormente – espelham algo que deveria ser
tendência na região: a liberdade de ação dessas
lideranças e a forma truculenta de lidar com seus
subordinados. Reforçando mais uma vez as suas
tentativas de centralizar as decisões, o governador
ordena que a punição não seja feita com agressão
física – tanto através de uma paulada ou com a
utilização do tronco – mas apenas com a prisão, e
somente com a sua ordem. Podemos ver que, dessa
forma, a punição “não visa [...] exatamente a
repressão” 4; o castigo que deve ser imposto “tem a
Janro 5. Rego do Offo ao Coronel de Infanta Miliciana do Ceará e
Jagoaribe sobre serto objecto relativo ao Capm Anto Franco da Sa. In:
Livro 34, p. 142. Grifos nossos.
4 Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão, 34ª edição,
Petrópolis, Vozes, 2007, p. 152.
3
Revista História - 19
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
função de reduzir os desvios. Deve portanto ser
essencialmente corretivo” 1.
Já que a punição continha um intuito
disciplinar, que visava a formação do desviante, e não
apenas o castigo por ele mesmo, as atitudes de
Sampaio neste sentido tinham também certa
flexibilidade, dependendo da situação. Exemplo disso
está registrado em ofício dirigido ao capitão mor do
Icó, por ocasião da seca que assolava o Ceará em
1816. Segundo o governador, pelos estragos que as
condições climáticas têm causado, “tanto no termo
dessa Villa como em todo o resto da Capitania”,
serem tão grandes, os furtos seriam “huma
consequencia necessaria desta Calamidade publica”.
Por isso, “á vista das Circunstancias do Certão”, não
seria “possivel reprimilos nesta estação se não em
mui pequena parte, alias correr-se-hia o risco de
augmentar a Calamidade em lugar de diminuir”.
Dessa forma, só se poderia “punir esses crimes com a
moderação e prudencia necessarias”, mas em relação
a qualquer indivíduo que se aproveitasse da “presente
Calamidade publica para dar livre exercicio ao
Antigo e arreigado vicio de se appropriar os bens
alheios, o mandará prender” 2. Aqui encontramos um
bom exemplo de exceção, onde a punição a um crime
evidente, que era o furto, deveria ser avaliada pela
autoridade por conta da situação calamitosa que se
Idem, p. 150.
Outubro 9. Officio ao Capmor do Ico accuzando huns Officios, e
Outros Objectos. In: Livro 21, p. 42V.
encontrava o Ceará. Era preciso, na opinião do
governador, moderação e bom senso no tratamento
desses episódios, além de discernimento para concluir
se se tratava de uma conseqüência do desespero
diante da seca ou de mais um caso do que ele chama
de “antigo e arraigado vício” da população, que era a
prática do roubo (outro costume dos sertões que, para
a elite político-intelectual da época, precisava ser
combatido).
Mesmo assim, a busca de Sampaio em ir de
encontro aos autoritarismos dos potentados locais
continuou até o fim de seu mandato, e já fevereiro de
1819, escreve um ofício a Jerônimo José Figueira de
Melo, condenando suas irregularidades. Diz que, se o
antigo governador João Carlos Augusto de Oyenhasen
o tivesse castigado como deveria, ele não teria “a
ousadia de pertender desacretidar as authoridades
constituídas”, além de ter sido, segundo consta em
documentos antigos, “hum dos maiores Regulos no
Certão comettendo delitos sobre delitos e abusando
constantemente da authoridade temporária dos
empregos que exerceo”. Nesse momento, o seu crime
teria sido conseguir ser eleito como juiz de órfãos de
sua vila “tão somente por suborno, e outros indignos
meios”, e diante desta situação, o governador o
ameaça: “eu jamais deixarei de faser punir com a
justa e rigorosa severidade das Leis se VMce não
deixar de dar uso ao seu genio revoltoso” 3.
Ao buscar subordinar esses potentados locais à
hierarquia instituída no reino, Sampaio não pretende
apenas centralizar o poder por si só, mas fazer com
que ele funcione de forma mais ordenada e regular
nos variados setores desta sociedade, ou seja,
construir uma “vigilância penal mais atenta do corpo
social” 4. Somente submetendo essas autoridades, o
governador teria condições de gerir a população de
forma mais eficaz, pois caso contrário, seria
impossível que suas ações tivessem o alcance
desejado, e muito menos que a tão necessária
civilização do povo fosse realizada, já que este estaria
submisso diante das vontades de capitães mores e de
outros poderosos, que nem sempre estavam engajados
nesse projeto.
Quando pensamos nas práticas punitivas, elas
se mostram como exemplares para pensarmos nesse
sentido: práticas como pauladas e açoite público no
tronco pareciam ser, de certa forma, comuns naquela
região, e feitas de formas independentes e arbitrárias.
Partindo de pensamentos modernos, a disciplina
pretendida por Sampaio também encontrava lugar
numa “nova ‘economia política’ do poder de punir”,
que buscava “assegurar uma melhor distribuição
dele”, fazendo com que não ficasse “concentrado
demais em alguns pontos privilegiados”, e sim
executado de forma mais inteligente e homogenia.
Essa nova tomada de rumo se configurou como um
Fevro 13. Offo a Jeronimo Joze Figueira de Mello sobre a sua irregular
conduta. In: Livro 28, p. 149V.
4
1
2
3
Michel Foucault, 2007, p. 66.
Revista História - 20
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
“remanejamento do poder de punir, mais eficaz, mais
constante e mais bem detalhado em seus efeitos” 1,
onde o que se buscava não era apenas a criação de
autoridades locais cada vez mais independentes e
fortes, e sim, o estabelecimento de um poder
disciplinar nestes sertões, cujo objetivo estava no
ordenamento social, no controle cotidiano dos povos
e dos poderes e, sobretudo, na civilização deste vasto
confim do império português.
Fontes: Arquivo Público do Estado do Ceará / fundo
“Governo da Capitania”
Série “Registro de ofícios aos capitães mores,
comandantes de distrito e diretores de índios”. Livros:
17 (1814), 18 (1813 – 1814) e 21 (1816 – 1817).
Série “Registro de ofícios às autoridades fora da
capitania”. Livro: 23 (1812 – 1817).
Série “Registro de ofícios ao escrivão deputado,
intendente da marinha, juiz da alfândega, agentes de
correios e pessoas particulares da capitania”. Livros:
26 (1812 – 1813) e 28 (1816 – 1819).
Série “Registro de ofícios do governo do Ceará aos
militares desta capitania”. Livro: 34 (1813 – 1814).
1
Idem, p. 68 e 69.
Bibliografia
Anexo
Administração Manuel Ignácio de Sampaio (1º
visconde de Lançada), Revista do Instituto do Ceará,
ano 30, Fortaleza, 1916, pp 201 – 247.
Francisco José Pinheiro. Notas sobre a formação social
do Ceará: 1680 – 1820, Fortaleza, Fundação Ana
Lima, 2008.
Francisco Muniz Tavares, História da revolução de
Pernambuco em 1817, 3ª edição, Recife, Imprensa
Industrial, 1917.
João Alfredo de Souza Montenegro, O trono e o altar:
as vicissitudes do tradicionalismo no Ceará (18171978), Fortaleza, BNB, 1992.
João Paulo Peixoto Costa. Os filhinhos do governador:
o “Correio do Norte do Brasil” e os índios correio no
Ceará (1812 – 1820), Anais do Congresso
internacional de história e patrimônio cultural /
Encontro regional de história do Piauí, Simpósio 16:
“Memória, sociedade e movimentos sociais”,
Teresina, Educar: artes e ofícios, 2010.
João da Silva Feijó. Memória escrita sobre a Capitania
do Ceará, Revista do Instituto do Ceará, ano 03,
Fortaleza, 1889, pp 03 – 27.
José Eudes Arrais Barroso Gomes, Um escandaloso
theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o
espectro da violência (século XVIII), Monografia de
bacharelado, Universidade Federal do Ceará, 2006.
Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da
prisão, 34ª edição, Petrópolis, Vozes, 2007.
Manuel Ignácio de Sampaio. In: CHAGAS, Manuel Pinheiro. História de
Portugal. Popular e ilustrada. Lisboa: Empresa da História de Portugal –
Sociedade Editora, oitavo volume, 1901, p. 281.
Revista História - 21
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
ADMIRÁVEL SOCIEDADE DE CONTROLE: UM
ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PODER DURANTE A
CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE ILHA
SOLTEIRA (1965 – 1973)
Tiago de Jesus Vieira
Mestrando em História
Universidade Federal de Mato Grosso
RESUMO
Partindo de estranhas coincidências, entre o livro
“Admirável Mundo Novo” e a documentação
encontrada sobre a construção da usina hidrelétrica
de Ilha Solteira. Este trabalho expõe como numa
localidade, em que vivem e viveram pessoas de
verdade, as relações de poder se desenvolveram tal
como numa ficção. Com demasiada assimetria nestas
relações, que envolvem empresa construtora da usina
e os indivíduos sujeitos a esta relação, que fora
mantida através da utilização de instrumentos que
Michel Foucault denominou como biopoder, que
agrega práticas de gestão da vida da população, com
disciplina e vigilância. A forma como se desenvolveu
estas práticas garantiram a empresa, constituir uma
sociedade do controle, quase como no livro de Aldous
Huxley.
centrale hydroélectrique Ilha Solteira. Cet article
explique comment une localité dans laquelle ils
vivent et les vrais gens vivaient, les relations de
pouvoir ont mis au point comme une fiction. Trop
asymétrie dans ces relations, impliquant la société de
construction de centrales et les personnes assujetties à
cette relation, qui a été maintenue grâce à l'utilisation
d'outils tels que Michel Foucault a appelé biopouvoir,
qui regroupe les pratiques de gestion de la vie des
gens, la discipline et la surveillance. La façon dont ils
ont développé ces pratiques a assuré la société, être
une société de contrôle, presque comme le livre de
Aldous Huxley.
Palavras Chave: Relações de Poder; Bio Poder;
Sociedade de Controle.
***
Este texto nasce das estranhas coincidências,
entre um dos principais livros do século XX,
“Admirável Mundo Novo1”, obra de ficção científica
escrita em 1932, por Aldous Huxley, e a
documentação encontrada sobre a construção da
usina hidrelétrica de Ilha Solteira, entre os anos de
1965 e 19732, na região da divisa entre os estados de
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Globo: Rio de Janeiro. 12
ed., 1984
2 As obras da construção da usina hidrelétrica de Ilha Solteira,
começaram no ano de 1965, embora o documento de início das obras
da usina, data de 03 de abril de 1966, e fora assinado pelo então
presidente da república Umberto de Alencar Castelo Branco,
1
RÉSUMÉ
De étranges coïncidences entre le livre "Brave New
World" et des documents sur la construction de la
São Paulo e onde se encontra hoje o Mato Grosso do
Sul3.
O livro narra à história de uma sociedade num
futuro distante, onde hipoteticamente prevalece o
controle total sobre as pessoas, que são précondicionadas biologicamente, e seguem uma
linhagem classificatória de acordo com suas castas,
além de serem condicionadas psicologicamente desde
a infância, por métodos que garantem o desapego à
natureza e livros, para garantir que estas não
representem riscos para ordem, os outros
questionamentos ou dúvidas, dos cidadãos eram
dissipados com o uso da droga “soma”, que não
causava efeitos colaterais. Aliado a este modo de
atuação sobre a mente, a prática de estimulação
sexual garantia a domesticação do corpo.
Mas quais podem ser estas coincidências entre
uma documentação histórica, que envolve pessoas
considerada uma obra de interesse nacional, quando entrou em
funcionamento em 1973 era considerada a sexta maior hidrelétrica do
mundo. O plano gestor da obra de construção do complexo urbanístico
estimava, que durante o período de obras, a população prevista seria,
entre 40 e 50 mil habitantes, constituindo o maior acampamento já
projetado para uma única obra, “acampamentos anteriores – Paulo
Afonso, Furnas ou Três Marias – apresentavam populações de número
muito inferior ou, como Brasília, diversos acampamentos
descentralizados”, cf. PLANO gestor de construção do complexo urbano
de Ilha Solteira. (s./l.), [1965-7?]. p.24. Documento encontra-se na
caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS –
Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração
especial de Ilha Solteira.
Cabe destacar que no período de 1965 e 1973, ao qual trata a
documentação selecionada, o estado de São Paulo fazia fronteira com o
estado de Mato Grosso. Uma vez, que a divisão dos estados só acontece
em 1977.
3
Revista História - 22
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
que viveram de verdade, com uma sociedade
estritamente ficcional, como a do livro Admirável
Mundo Novo? Realmente não se trata de uma das
tarefas mais fáceis, pois no livro uma série de
elementos ficcionais é apresentada, que a imaginação
análoga de historiador estanca, tornando inatingível
qualquer comparação racional, com uma sociedade
de pessoas de suor e sangue. E realmente não se trata
de uma comparação, mas apenas da necessidade de
fazer um relato sobre este livro, que se dá muito mais
por um “grito” silencioso das fontes que impõem esta
associação, do que por um estudo sistemático da obra.
O que se procurou fazer não é algo brilhante,
é apenas demonstrar como numa dada localidade, os
indivíduos podem ser sujeitados a relação de poder,
praticamente imperceptível para aqueles que estão
nelas envolvidos, sendo atingidos por relações de
poder em esfera molecular, na qual somente com
auxílio de um microscópio podem ser perceptíveis.
Se no livro, a docilidade das pessoas era garantida
pelo controle do conhecimento e uso de drogas que
inibiam as indagações. Nas sociedades que envolvem
pessoas reais, a atuação que permite transformar os
seres humanos em sujeitos controlados, são ações de
biopoder, que podem condicionar uma sociedade, a
fim de obter benefícios para um grupo, - no caso em
questão uma empresa -, sem que seja usado, drogas
como a “soma”, e nem utilizados tratamentos de
choque com livros e flores. Trata-se de algo bem mais
simples, mas nem por isso menos eficientes, através
de intervenções sobre as necessidades básicas da
população, gerindo aspectos da vida como habitação,
saúde, educação e lazer.
Estas intervenções minúsculas sobre a vida das
pessoas, que recebem o título de biopoder, são
formadas pela junção de práticas disciplinares que já
existiam desde o século XVII, com elementos de
preocupação com a gestão da vida, que vão surgir
cerca de cinqüenta anos depois, já no século XVII.
Mesmo sendo criadas em distintos momentos, estas
práticas vão ser somadas e cristalizadas pela ação de
instituições. Para Peter Pál Pelbart, “embora
separados no início, a disciplinalização dos corpos e a
regulação da população acabam confluindo1”, a
disciplina é essencial, pois se dirige ao corpo, como
possibilidade de reger o homem enquanto indivíduo,
por meio de instrumentos de vigilância, treino e
punição. Já ações de gestão da vida, dirigem ao
homem enquanto pertencente a uma massa global,
afetada por elementos próprios da vida, como a
própria morte, ou a ameaça de uma doença.
Portanto, o objetivo deste trabalho é
compreender as minúcias, das relações que envolvem
a utilização de mecanismos de biopoder pela empresa
responsável pela implantação da usina hidrelétrica de
Ilha Solteira, para observar estas relações em escala
molecular, é necessário a utilização de um
“microscópio”, este que será tomado de empréstimo
PELBART, Peter Pal. A vida capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
1
de Michel Foucault2, trata-se de um método para
análise de relações de poder, este por sua vez
considera que estas relações se dão em função de 05
elementos principais: sistema das diferenciações; tipo
de objetivos; modalidades instrumentais; formas de
institucionalização; graus de racionalização. Antes
desta análise cabe destacar que como toda teoria esta
classificação é provisória, parcial e inacabada. Ainda
mais, se tratando da complexidade que envolve
relações de poder, que são “virtuais, instáveis, não
localizáveis, não estratificadas, potenciais, e definem
apenas possibilidades de interação3”.
O que Michel Foucault classifica como sistema
de diferenciações, é a forma desigual com que
indivíduos, se apresentam diante de outros
indivíduos, estas diferenças podem ser da ordem
jurídica, econômica, profissional, lingüística, cultural,
de habilidade ou competência e etc.. Desta forma,
toda relação de poder passa por algum tipo de
diferenciação. No caso de Ilha Solteira, a empresa que
edificou a usina e como suporte para sua
implantação, também edificou um perímetro urbano
que seria capaz de abrigar até 50 mil trabalhadores.
Entretanto, valeu-se de um método de divisão sócioprofissional, na qual as outras diferenças, eram
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert. E
RABINOW, Paul. Michel Foucault – Uma Trajetória Filosófica: para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995, p.231-49.
3 LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do Capitalismo: A política no
Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 65
2
Revista História - 23
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
praticamente agregadas à classificação da CELUSA
(Centrais Elétricas do Urubupunga S.A.), empresa que
depois foi incorporada a CESP (Centrais Energéticas
de São Paulo), manteve o sistema de classificação, que
não era por seleção genética seguindo castas, como
no livro, mas também separava os sujeitos que eram
separados por níveis de 1 a 6, sendo que
remuneração, habitação, lazer estavam diretamente
articuladas a este sistema de classificação, que
seguiam uma ordem crescente.
Este modelo fora sugerido, a fim de sanar uma
preocupação que está presente no plano gestor de
construção do perímetro urbano de Ilha Solteira, que
era garantir um tratamento diferenciado para os
funcionários com maior grau de instrução. Desta
forma, este sistema possibilitava atrair, para a região
“inóspita”, engenheiros e médicos. Já aos
trabalhadores de estratos menores (1 e 2), não se
deveria preocupar pois tudo em Ilha Solteira, seria
um “Admirável Mundo Novo1”. O fato de ter uma
casa, e poder desfrutar de um clube, ter hospital por
perto e acesso à escola para os filhos, significaria
muito para estes trabalhadores de origem regional.
Michel Foucault2, por vezes chamou a
atenção, para o fato de que as relações de poder, não
somente devem ser associadas a aspectos negativos, é
justamente neste ponto que os mecanismos pautados
na gestão da vida, podem ser visíveis. Pois, atuam de
forma dupla, se pelo lado positivo garantiu acesso a
casa, saúde, educação e lazer, que boa parte dos
moradores da região realmente não tinha acesso
anteriormente. Em contrapartida compartilhavam de
uma situação visivelmente assimétrica de poder.
O tipo de objetivo é o modo como uns agem
sobre os outros, neste caso, os benefícios desfrutados
pelos funcionários de níveis menores, eram ínfimos se
comparados ao dos estratos mais elevados. Além de
garantir a manutenção dos privilégios, permitia a
operacionalidade da autoridade estática. A existência
de um hospital que pudesse atender os mais
necessitados, é uma tática que pode ser enquadrada,
como aquela de cordão sanitária, que graças ao
tratamento dos pobres, e que garantia aos ricos não se
vitimarem pelas doenças dos pobres3. Ao construírem
um clube para os níveis 1 e 2, e outro para os 3 e 4,
garantia aos níveis 5 e 6, não compartilharem do
mesmo espaço, que seus subordinados. Se por um
lado, proporcionou educação básica aqueles que
jamais haviam frequentado uma sala de aula, por
outro, supriu uma demanda da empresa na formação
de engenheiros elétricos, mecânicos e civis, com a
implantação em 1976 da Universidade Estadual
Paulista (UNESP). Ao garantir uma habitação para os
trabalhadores, deixou aqueles que tinham a
classificação mais baixa, no extremo oposto dos com
estratos mais elevados, este esquadrinhamento
disciplinar do espaço da cidade, permitiu uma
vigilância perpétua e constante dos indivíduos nos
primeiros anos 4.
Quando a CESP faz questão de destacar, em
seu álbum a respeito da história do município, que os
padrões “culturais” da cidade sempre foram bem
diversificados se comparados aos demais municípios
da região, se tornando “parâmetro”. Pois, o poder
aquisitivo de quem trabalhava na construção da
usina era elevado, e isto “influenciou a cultura
FOUCAULT, Michel. Micro-física do Poder. Tradução Roberto
Machado. Edições Graal: Rio de Janeiro. 23 ed., 2007, passin.
3 Idem, p. 263
do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas.
Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de
Ilha Solteira.
PLANO gestor de construção do complexo urbano de Ilha Solteira.
(s./l.), [1965-7?]. p.34. Documento encontra-se na caixa arquivo
1
nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas.
Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de
Ilha Solteira.
2
Havia uma distinção nítida entre os bairros – passeios - de chefes e os
de subordinados. Em 1973, Ilha Solteira contava com 5.144
residências, distribuídas da seguinte forma: 370 casas do tipo 1; 2.894
casas do tipo 2; 1.032 casas do tipo 3; 504 casas do tipo 4; 108 casas do
tipo 5; 164 casas do tipo 6. As casas dos trabalhadores de classificação
profissional menor, como os de nível 1, 2 e 3 em sua grande maioria
encontram-se na parte norte da cidade, e os passeios que fazem menção
as regiões norte e nordeste do Brasil. Já as casas dos níveis 4, 5, 6
estavam alocadas no sul da cidade, e os passeios recebiam nome das
regiões mais “desenvolvidas” do país, como Rio Grande do Sul, São
Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo com elevação a município em 1989,
pouco modificou nesta situação, continuando havendo uma nítida
separação entre as regiões de pobres e ricos, pois as pessoas
continuaram morando em suas casas, e carregando uma herança de
superioridade ou na maioria dos casos de inferioridade. Cf. CESP. A
cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco primeiros anos da área
urbana. (s./l.),1974. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135
4
Revista História - 24
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
regional, que passou inclusive a cultivar novos
hábitos de convívio social, tais como bailes,
apresentação dos artistas mais populares da época e o
consumo de produtos até então pouco usuais na
região1”. Esta influência na cultura regional, com
novos hábitos é uma forma sutil de destacar que a
população regional supostamente “não tinha
cultura”, e que graças ao intermédio da CESP, a
região conhecera um auto padrão cultural, como
destaca outro trecho, “artistas populares da época
que dificilmente se deslocavam para pequenas
cidades do interior, apresentaram-se nos clubes da
cidade. Elis Regina, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom
Jobim, Toquinho e Vinicius de Moraes2”. A análise
destes trechos permite evidenciar uma defesa ao
padrão cultural, que fora instituído na cidade, ligado
a MPB (Música Popular Brasileira), fato que também
pode ser constato com a criação do festival nacional
de MPB de Ilha Solteira3 na década de 1970.
A respeito do trechos acima uma indagação se
faz necessária. A quem interessava a realização de
festivais nacionais e a ida de artistas renomados da
MPB para Ilha Solteira? Os trabalhadores de níveis
mais baixos - de origem regional - ou aos
CESP, Ilha Solteira: A cidade e a usina. Fascículos da História da
Energia Elétrica em São Paulo, São Paulo, 1988.
2 Idem, p. 33
3 Sobre os festivais Nacionais de Musica Popular de Ilha Solteira, pode
se ler melhor em SILVA, Patrícia Garcia da. Representação do Brasil no
Festival Nacional de MPB de Ilha Solteira: 1997 a 2004. Monografia
(Licenciatura em História) - Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Três Lagoas – MS, 2004.
1
funcionários de auto nível – originários dos grandes
centros?
Não parece que estes shows eram realizados
para agradar os funcionários dos níveis mais baixos,
até porque estes não tinham “voz” para escolher. O
que parece é que uma minoria privilegiada,
funcionários de alto escalão da CESP, intermediava
estes eventos, e tentando instaurar um novo “padrão
cultural regional”, e atribuir a este padrão como
típico da região, que de certa forma é um modo de
normalizar as identidades culturais, processo este que
“significa eleger – arbitrariamente – uma identidade
especifica como o parâmetro em relação ao qual as
outras identidades são avaliadas e hierarquizadas4”.
Isto demonstra, que as estas relações de poder
em Ilha Solteira, vão além da lógica puramente
disciplinar, pois estão inseridos muitos elementos
biopoliticos na prática governamental da CESP. Esta
preocupação com a gestão da vida, difere de uma
sociedade estritamente disciplinar, sendo que o
modelo de administração lembra o de uma sociedade
de controle. Gilles Deleuze5 aborda que mecanismos
de poder calcados apenas na disciplina, seguem a
lógica da fábrica, na qual o trabalhador é um
produtor inconstante de força de trabalho, submetido
a um trabalho exaustivo, em troca de um pequeno
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença.
In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: A perspectiva
dos estudos culturais. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.73-10.(p. 83)
5 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 1992.
salário. Já nas sociedades de controle, este modelo da
fábrica é substituído pela empresa, que se vale de
táticas como prêmios para estimular a concorrência
entre os trabalhadores, em vez do salário homogêneo
como acontecia numa fábrica, passa-se a estimular
“uma rivalidade inexpiável como sã emulação,
excelente motivação que contrapõe os indivíduos
entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si
mesmo6”, atribuindo assim o princípio do salário por
mérito. Neste sentido “o poder possui uma eficácia
produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade.
E é justamente esse aspecto que explica o fato de que
tem como alvo o corpo humano, não supliciá-lo,
multilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo7”.
As relações de poder também passam por
modalidades instrumentais, são estas que fazem com
que o poder, permita a manutenção de uma dada
situação. No caso de Ilha Solteira, levantamentos
estáticos realizados de forma sistemática, tinham por
finalidade mapear todos os aspectos da vida dos
funcionários da empresa, por meio de extensos
questionários que interrogavam sobre saúde,
educação, lazer, habitação e etc. Com base nos dados
fornecidos por estas pesquisas, era possível ter uma
melhor gestão da população, evitando assim que
estes, interferissem no andamento da obra.
4
Idem, p. 221-3
MACHADO, Roberto. Introdução: Por uma genealogia do poder. In:
FOUCAULT, Michel. op. cit., p. XVI
6
7
Revista História - 25
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Cabe destacar que este modelo de classificação
desenvolvido pela CELUSA, e que depois foi mantido,
quando a empresa foi incorporada pela CESP, que foi
utilizado na distribuição espacial das casas e dos
clubes, favoreceu o aparato de vigilância dos
perturbadores da ordem, como revela o relatório
anual de 19701, que destaca que nos primeiros 5
anos já haviam sido catálogados cerca de mil
desordeiros. O serviço de vigilância e catalogação dos
perturbadores da ordem era feito pela AEIS
(Administração Especial de Ilha Solteira), entidade
que estava sob a tutela da CESP. Desta forma,
qualquer constrangimento causado por um
funcionário mesmo fora de seu expediente, poderia
ser utilizado pela empresa, para mapear os que
precisavam ser demitidos, que não foram poucos, nos
anos que seguiram a construção da usina. Segundo
dados da própria CESP a população de Ilha Solteira,
no início de 1972, era de 32.111 habitantes. No final
do ano seguinte a população tinha sido reduzida a
25.949, e no final de 1977 a população havia se reduzido a 22.752. Estas, drástica redução de quase
10 mil habitantes em pouco mais de cinco anos, se dá
em decorrência do término da construção da usina2.
CESP. Relatório anual de atividades de 1970. (s./l.), [1971?].
Documento encontra-se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de
Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos
relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira.
2 CESP. A cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco primeiros anos da
área urbana. (s./l.),1974. Documento encontra-se na caixa arquivo
1
nº135 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas.
O sistema de dispensa do
pessoal que mora em Ilha
Solteira tende ainda mais a
agravar os problemas acima
citados: Aos dispensados não se
dá aviso prévio, paga-se
somente o mês de aviso prévio.
Uma vez dispensado, o chefe de
família tem praticamente o
prazo de uma semana para
deixar a casa, tirar os filhos da
escola, providenciar a mudança
(para onde?) e encontrar um
novo emprego, inexistente na
região, encontrar uma nova
casa, uma nova escola para os
filhos. Para a maioria dentre
eles, que veio da zona rural, o
retorno à terra é impossível3.
Isto porque em função do processo de
construção das usinas de Jupiá em (Três Lagoas-MS)
e de Ilha Solteira, segundo o levantamento, houve um
Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de
Ilha Solteira.
INTTITUTO PAULISTA DE PROMOÇAO HUMANA: Pesquisa sócio –
econômica: Ilha Solteira e região de Urubupunga. Lins-SP. 1983. p.04.
3
Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo de
Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos
relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira.
processo de urbanização da regional, que modificou a
“estrutura fundiária da região em Pereira Barreto, as
3.039 propriedades rurais de 1960, tornaram-se
somente 976, isto é, menos 2.063, em 10 anos e em
virtude da transformação das terras, e em virtude da
transformação das terras4”.
A população dispensada das obras da usina de
Ilha Solteira, geralmente eram os trabalhadores de
nível profissional mais baixo, em sua maioria
constituída por pessoas originarias de um raio de 100
km. Em função desta transformação na estrutura
fundiária, retornar ao campo era praticamente
impossível, a saída era dirigir a região da grande São
Paulo5 e agravar ainda mais o problema do
desemprego na capital do estado.
Este sistema de correlação entre AEIS, órgão
responsável pela gestão do perímetro urbano de Ilha
Solteira, e a CESP encarregada da construção da
usina, demonstra uma outra modalidade, pela qual
passa uma relação de poder, as formas de
institucionalização que legitimam e garantem a
manutenção de uma dada situação, no caso em
questão a inexistência de uma prefeitura municipal,
permitiu a empresa responsável pela usina, o pleno
Idem, p.3
Esta informação são apontadas num levantamento feito pelo I.P.P.H,
sob encomenda da CESP. Cf. Instituto Paulista de Promoção Humana:
Pesquisa sócio – econômica: Ilha Solteira e região de Urubupunga. LinsSP. 1983. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo
4
5
de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos
relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira.
Revista História - 26
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
direito sobre o perímetro urbano e intervenção na
vida de seus mais de 30 mil habitantes no auge da
edificação, era de responsabilidade da AEIS, além do
serviço de segurança pública, saúde, educação e até
mesmo coleta de lixo.
O quinto e último ponto estabelecido por
Foucault, para análise de uma relação de poder, trata
dos graus de racionalização, empreendidos numa
dada situação, afim de garantir eficácia dos
instrumentos e a certeza de resultado. As outras
quatro formas de atuação do poder, expostas
anteriormente demonstram claramente a forma
racional, com que a CESP lidou com os mecanismos
de biopoder, aliando ação disciplinadora e de
vigilância, com práticas de gestão da vida, por meio
de uma estrutura hospitalar e escolar, até o então
momento não muito acessível na região. Cabe
destacar, que a eficácia da utilização destes
mecanismos de biopoder pela CESP, durante a
edificação de Ilha Solteira, trouxe resultados
extremamente positivos para empresa, uma vez que o
prazo estimado para a conclusão das obras da usina
era de 10 anos, e fora concluída dois anos. Se neste
período a tática fora um sucesso para empresa, nas
décadas seguintes, com a emancipação do município,
pouco a pouco todo este aparato de controle entraria
em ruínas, e os trabalhadores começariam a
questionar este sistema de controle, como pode ser
observado neste documento do início da década de
1990, da (Comissão Pró Manutenção de Empregos):
“hoje em nossa cidade mais
de 06 ônibus percorrem tanto
a Av. Brasil quanto os
passeios
no
recolher
funcionários que poderiam se
deslocar até a Av. Brasil
minimizando custos e tempo.
Como são servidos os setores
das Oficinas, Laboratórios,
Almoxarifado, zoológico e
viveiro, envolvendo um nº
bastante
significativo
de
pessoas que moram a
margem da Av. Central se é
possível prever uma redução
imediata de pelo menos 50%
das atuais despesas com os
ônibus que deixariam de
traçar pelos passeios. Por
outro lado, caso a CESP
resolva,
educativamente,
investir
no
fim
da
discriminação, ela poderá
eliminar os ônibus que
transportam funcionários de
alto nível, que parecem não
estar dispostos a reduzir
custos e despesas além de não
querem se solidarizar com
outros colegas de trabalho.
Talvez, somente com o ato de
eliminação da discriminação
a Cia ganhe mais de 20% do
que hoje esta faltando:
dinheiro.1
Além deste processo de descontentamento dos
trabalhadores, em resposta a herança da forte
estratificação social, deste sistema de classificação
sócio-profissional. Alguns jovens nos próximos anos
questionariam toda e qualquer forma de
hierarquização da sociedade, gritando “se nós
aceitarmos as suas leis, vamos se tornar como vocês,
vá se ferrar com suas leis, estamos cansados
queremos violar2”. Processo que Gilles Deleuze,
chamaria de explosão dos guetos3, mas está já é outra
estranha coincidência4, que as fontes impõem ao
COMISSÃO PRÓ-MANUTENÇÃO DE EMPREGOS: Carta á presidência
da empresa. Ilha Solteira –SP [1990-3?]. Documento encontra-se na
1
caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS –
Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração
especial de Ilha Solteira.
Extraído da música: GAROTOS PODRES. Rock de Sub Extraído da
música: CÓLERA. Violar suas leis. Interprete: Cólera. In: Cólera 20 anos
ao vivo. São Paulo, faixa 02, 1 CD, 2002. .
3 DELEUZE, Gilles, op. cit., 224
4 Esta outra coincidência refere-se ao fanzine confeccionado a partir de
1994 em Ilha Solteira, por um grupo punk. Sob o título de Gueto Zine,
em que estes jovens expunham nas páginas do fanzine, temas como à
repressão e cotidiano juvenil, em Ilha Solteira na década de 1990. A
consolidação do movimento punk em Ilha Solteira -SP é estuda na
pesquisa de mestrado em desenvolvimento pelo Programa de PósGraudaçao em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Com
título provisório de (O Punk do Interior: um estudo da construção de
uma identidade em Ilha Solteira -SP)
2
Revista História - 27
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
historiador e assim de coincidência em coincidência,
se faz à história.
administrativos, da administração especial de Ilha
Solteira.
FONTES
COMISSÃO PRÓ-MANUTENÇÃO DE EMPREGOS:
Carta á presidência da empresa. Ilha Solteira –SP
[1990-3?]. Documento encontra-se na caixa arquivo
Livro
CESP, Ilha Solteira: A cidade e a usina. Fascículos da
História da Energia Elétrica em São Paulo, São Paulo,
1988.
Documentos
CESP. A cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco
primeiros anos da área urbana. (s./l.),1974.
Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do
Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três
Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da
administração especial de Ilha Solteira.
CESP. Relatório anual de atividades de 1970. (s./l.),
[1971?]. Documento encontra-se na caixa arquivo
nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da
UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios
administrativos, da administração especial de Ilha
Solteira.
CESP. Relatório anual de atividades de 1983. (s./l.),
[1984?]. Documento encontra-se na caixa arquivo
nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da
UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios
nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da
UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios
administrativos, da administração especial de Ilha
Solteira.
INTTITUTO PAULISTA DE PROMOÇAO HUMANA:
Pesquisa sócio – econômica: Ilha Solteira e região de
Urubupunga. Lins-SP. 1983. Documento encontra-se
na caixa arquivo nº135 do Núcleo de Documentação
Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos
relatórios administrativos, da administração especial
de Ilha Solteira.
PLANO gestor de construção do complexo urbano de
Ilha Solteira. (s./l.), [1965-7?]. Documento encontra-
se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de
Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas.
Referente aos relatórios administrativos, da
administração especial de Ilha Solteira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
A DETERIORIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
E A CRISE DA CULTURA PÚBLICA.
Luiza das Neves Gomes
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGH/UERJ.
Resumo
O ensaio proposto tem como objetivo elucidar
criticamente os elementos constitutivos da relação
entre o espaço público e privado, visando dar
subsídios para pensarmos alguns problemas e tensões
presentes no cotidiano da sociedade urbana
contemporânea. Vamos destacar a partir das
transformações vinculadas aos processos de mudança
estrutural da esfera pública, ao alargamento do
espaço privado sob os imperativos do mercado, à
institucionalização acadêmica e o avanço dos poderes
midiáticos, os novos dilemas e desafios colocados à
cultura pública dos dias atuais.
Palavras-chave: esfera pública, cultura pública,
espaço público e privado
Abstract
The proposed test aims to elucidate the critical
elements of the relationship between public and
private space in order to provide subsidies to think
some problems and tensions in the daily life of
contemporary urban society. We will highlight the
transformations linked to processes of structural
change in the public sphere, the extension of private
space under the imperatives of the market, and the
advancement of academic institutionalization media
powers, new dilemmas and challenges facing the
public culture of today.
Keywords: public sphere, public culture, public and
private space
***
A necessidade de distinguir o público do
privado, passa pelas mudanças que os espaços
públicos estão sofrendo, resultado das alterações nas
formas de consumo, onde estão necessariamente
implícitos os centros comerciais que de algum modo
se prendem com a privatização. O que cabe analisar é
como as políticas urbanas de intervenção vão
influenciar nas mudanças estruturais da dimensão
social do espaço público e também do que chamamos
de cultura pública. Novos tipos de espaços semiprivados ou semi-públicos aparecem como o cenário
por excelência da vida urbana familiar e profissional:
shopping, espaços de lazer de condomínios privados,
casa de recepções, etc. Isso significa a privatização da
vida pública? Ou a publicização da vida privada?
O debate sobre a questão do espaço público
vem sendo discutida por especialistas de diversas
áreas, desde os anos 60. Dada a variedade de sentidos
expressa nos diferentes significados atribuídos à idéia
de “público” e seus efeitos, procuraremos nos
fundamentar em alguns autores que desenvolveram
trabalhos que se tornaram clássicos na filosofia
política, na sociologia e na história sobre o
tratamento da questão, dentre eles, Richard Sennett e
Jürgen Habermas e Russell Jacoby.
É bom deixar claro também que, embora o
nosso alvo seja uma reflexão sobre as atuais
transformações daquilo que convencionamos chamar
de “espaço público” – na arquitetura, no urbanismo,
no planejamento urbano, na geografia e em alguns
campos da sociologia – nenhum desses autores
mencionados a cima define explicitamente espaço
público ou propõe uma teoria sobre o mesmo. As
expressões mais correntes utilizadas, e por vezes
tomadas como sinônimas de espaço público, são a de
“esfera pública” e de “domínio público”.
Para definir o que vem a ser uma esfera
pública vamos nos basear na obra de Habermas, A
Mudança estrutural da Esfera Pública, no qual faz
uma apreciação histórico-filosófica da transformação
da esfera pública e da política na era moderna. Este
autor ao buscar a definição de esfera pública faz uma
conceituação do que vem a ser “público” e coloca:
“Chamamos de ‘públicos’ certos eventos quando eles,
em contraposição às sociedades, são acessíveis a
qualquer um – assim como falamos de locais públicos
ou de casas públicas1”. Portanto, quando nos
referimos a qualquer termo como ele sendo público,
HABERMAS, J. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro,1984.p.14
1
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
significa que tal termo, que pode ser uma praça, um
café ou um jornal.
Quanto ao termo “esfera pública", muitas
vezes ele aparece simplesmente como a esfera da
opinião púbica, em contraposição ao poder público.
Segundo Habermas de acordo com algumas situações,
inclui-se entre os órgãos de esfera pública os órgãos
estatais ou as mídias que, com a imprensa, servem
para que o público se comunique.1
A obra de Habermas será de grande
importância para demonstrar como se construiu
passo a passo o modelo de esfera pública, a partir da
formação e desenvolvimento do Estado Moderno
burguês. O autor percorre o processo histórico que
possibilitou o aparecimento de uma esfera pública,
cujos primórdios identificavam-se como um espaço
selecionado e de livre discussão.
Na Antiguidade e na Pré-Modernidade, era
fundamental atuar na esfera pública o que significava
“status”, reconhecimento e utilidade. Onde apenas as
questões de interesse coletivo para o bem de todo um
povo eram de interesse público e onde a vida pessoal
de cada um estava remetida para casa, para a família,
enfim para a esfera privada. O que percebemos é que
houve uma inversão do conceito de vida ativa
conforme avança a Modernidade.
Já no século XVI, com o surgimento do
capitalismo mercantil, surge uma nova esfera pública
1
Idem, p.15
na Europa. Segundo Habermas, a esfera pública
moderna está ancorada ao surgimento da sociedade
burguesa, do desenvolvimento do modo de produção
capitalista industrial, e da superação de sua fase
mercantilista.
É no Estado moderno que surge uma nova
“casta” social que se amolda em torno desse mercado
capitalista: a sociedade burguesa. É nesse momento
que vai se construindo nitidamente uma esfera
pública separada de uma esfera privada, como nos
colocou Habermas.2
O fortalecimento da burguesia e o
desenvolvimento das cidades foram assegurados por
novas instituições, que assumiram na Europa, do
século XVIII, funções sociais semelhantes: formaramse lugares como os cafés e salões, considerados
centros de uma crítica, na qual objetivavam a
efetivação de uma espécie de parceria entre os
homens da sociedade aristocrática e os da
intelectualidade burguesa.
A esfera pública burguesa, originalmente uma
esfera literária, constituída por um público leitor que
discutia arte e literatura. Ampliaram-se, assim, no
âmbito da esfera pública burguesa, os debates de
interesse geral – igualdade, liberdade, publicidade,
arte, ciência, filosofia, moral, direito e política. Na
esfera pública as pessoas podiam discutir, avaliar e
2
Idem, p.48
analisar suas idéias sem se comprometerem com as
instituições políticas.
Segundo Habermas, grupos seletos de pessoas
encontravam-se nos salões e cafés da Inglaterra,
Alemanha e França por volta do século XVII para
conversar, trocar idéias e discutir assuntos diversos.
Tais debates aconteciam na cidade, centro da
atividade econômica e cultural, em lugares
considerados focos de agitação no final do século
XVII e início do século XIX. Ainda que seja formada
por um público privado, e em lugares restritos, a
esfera pública não se reduz ao interesse de classe,
pois pressupõe a idéia de acesso livre e universal ao
espaço público.
Pode-se dizer que a função deste espaço era
permitir ao indivíduo a expressão de sua capacidade
racional diante do grande público letrado e, assim
fazer o uso público da razão. Desta forma,
estabeleceu-se
a
esfera
pública,
mais
reconhecidamente, uma esfera pública política.
Porém, quando finalmente a burguesia
conquista o poder político, já não há mais o interesse
em formar uma opinião pública orientada pela a
racionalidade, mas sim, voltada para os ideais
consumistas. Os meios de comunicação não mais
eram portadores de artigos que faziam com que a
população entendesse sua própria realidade, mas sim,
um alvo a ser atingido pelo mercado. Foi este
momento que Habermas caracterizou como a
decadência da esfera pública burguesa e da
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conseqüente refeudalização da esfera pública,
remetendo a momentos anteriores ao crescimento da
burguesia, a época feudal caracterizada pela esfera
pública representativa, na qual a nobreza delimitava
o que era interessante ser publicizado.
Assim, Habermas afirma que a partir do
advento do capitalismo do estado de bem estar social
ocorreu novamente uma transformações na esfera
pública burguesa a partir de mudanças estruturais
presentes, principalmente nos meios de comunicação
de massa e no papel regulador do Estado. Com o
capitalismo, as leis de mercado passam a penetrar a
esfera reservada às pessoas privadas enquanto
público, divulgando informações sob a ótica de seus
interesses. Com isso, o pensamento crítico cede lugar
ao discurso sedutor do mercado.
Sob essa lógica, há nitidamente a diluição das
fronteiras entre as esferas públicas e privadas. Neste
sentido, o Estado encetou um papel mais presente no
domínio do privado, apagando-se assim a diferença
entre Estado e sociedade civil, entre esfera pública e
esfera privada. Quando a esfera pública entrou em
declínio, os cidadãos transformaram-se em
consumidores, dedicando-se eles próprios mais ao
consumo passivo e aos assuntos privados do que aos
assuntos do bem comum e da participação
democrática. Enquanto que na esfera pública
burguesa, a opinião pública era formada através do
debate político e do consenso, na degradada esfera
pública do “estado de bem-estar” capitalista, a
opinião pública é administrada pelas elites políticas e
econômicas.1 Manipulada pelas mídias, encontra-se
hoje reduzida a pouco mais do que parte integrante
do sistema de controle e domínio social. A opinião
pública, formada no debate político, esfuma-se no
estádio contemporâneo do capitalismo, sendo agora
formada pelas elites dominantes, em prol dos seus
interesses particulares.
Em síntese a degeneração da esfera pública
para Habermas deve-se, fundamentalmente, de um
lado, à crescente intromissão do Estado na regulação
da vida social e, por outro lado, ao crescimento da
influência dos meios de comunicação de massa, que
teriam desvirtuado o processo de formação da
opinião pública e conseqüentemente da cultura
pública.
Outro autor que também faz uma crítica a
sociedade contemporânea e o declínio da esfera
pública é o Richard Sennett na obra O Declínio do
Homem Público. Porém, diferentemente de
Habermans, Sennet acusa o esvaziamento da esfera
pública baseada na hipervalorização da intimidade,
da privacidade, do retraimento e do silêncio. Este
autor afirma que tudo isso não começou no século
XX, como se pensa, mas surgiu a partir de uma série
de mudanças ocorridas nas sociedades dos séculos
XVIII e XIX.
1
Idem.p68
Para dar apoio para sua crítica à
modernidade, Sennett recorre ao período do Antigo
Regime, momento no qual se encontra uma sociedade
que construiu relações em que a vida privada e a vida
pública estavam claramente definidas e equilibradas.
À medida que chega ao fim o Império de Augusto os
romanos passaram a tratar a vida pública como
obrigação, justamente como é na idade moderna. Ou
seja, o espaço público romano ganhou outro
significado, pois já não é mais o espaço da discussão
sobre a vida em comum, mas uma questão de
obrigação formal.
Sennett, relaciona a platéia dos teatros da
época do Antigo Regime com a forma das pessoas
agirem nos demais espaços públicos. Teatro e platéia
se refletiam ao criarem um mundo em que as pessoas
poderiam ser estranhas umas as outras e poderiam
conviver com essa diversidade. Para o autor, isso
favorecia o enriquecimento das relações públicas
facilitando o desenvolvimento de uma política
propriamente pública, reforçando, assim, os laços
sociais e as interações interpessoais. Porém, a vida
pública espetacularizada, corresponde à apatia na
idade contemporânea.
As cerimônias públicas, as necessidades
militares do imperialismo, os contatos rituais com
outros romanos fora do círculo familiar tornaram-se
deveres em que o romano participava com espírito
cada vez mais passivo, conformando-se às regras da
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
res publica e investindo cada vez menos paixão em
seus em seus atos de conformidade. 1
Sennett, assim como Habermas, aponta que os
fatores históricos que caracterizaram esses novos
parâmetros entre vida pública e vida privada estão na
emergência do capitalismo industrial, à decadência
do Antigo Regime, e a conseqüente relação que a
burguesia veio a ter com a vida pública nas grandes
cidades, como espaços privilegiados de sua afirmação
econômica, social e política como classe.
Para Sennett, a vida pública e o homem
público estariam hoje em franco declínio, cedendo
cada vez mais lugar para uma supremacia do
privado. Este autor descreve as modificações das
relações no espaço público como um crescente
esvaziamento de sentido do mesmo, através de um
paradoxo do isolamento em meio à visibilidade que se
reflete inclusive nas configurações urbanas e nas
edificações das principais cidades do século XIX. Esse
fenômeno pode ser entendido, pois na medida em que
todos se vigiam, em que há um interesse pela
intimidade como revelação da identidade, diminui a
sociabilidade, e o silêncio passa a ser a única forma
de proteção.
O desenvolvimento das cidades e o constante
aumento de “estranhos” favoreceu um sentimento de
temor entre as pessoas desconhecidas, que
procuravam, então, passar despercebidas umas das
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da
intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p15.
1
outras como uma forma de se autoprotegerem. Esses
fatores contribuíram para que as pessoas se voltassem
para dentro de si mesmas, abrigando-se no refúgio da
intimidade. Daí a necessidade das pessoas de terem
um local específico, em público, para se reunirem e
ao mesmo tempo manterem certa distância da
observação íntima dos outros, para se socializarem e
para sentirem-se em grupo.
Assim, os projetos arquitetônicos dos séculos
XIX e XX são cada vez mais voltados para o refúgio
na intimidade. Porém, ao mesmo tempo em que se
constroem espaços privados amplos e protegidos do
burburinho das ruas, estes são apenas áreas de
passagem, não de permanência e convivência. O
espaço público morre, torna-se somente uma
derivação do movimento e as ruas se transformam
para permitir a livre movimentação.
Nesse sentido, o espaço público perde sua
função pública ou de reconhecimento público na
sociedade e torna-se sem sentido e impessoal. Assim,
a verdadeira função da cidade como local de
encontro e sociabilidade entre estranhos é descartada
nos centros urbanos. Para Sennett:
“A cidade deveria ser [...] o
fórum no qual se torna
significativo unir-se a outras
pessoas sem a compulsão de
conhecê-las enquanto pessoas.
Não creio que esse sonho seja
inútil; a cidade surgiu como
foco para vida social ativa, para
o conflito e o jogo de interesses,
para
a
experiência
das
possibilidades
humanas,
durante a maior parte da
história do homem civilizado.
Mas hoje em dia essa
possibilidade civilizada está
adormecida.”2
Para analisar melhor essa transformação do
espaço público e suas conseqüências para o homem
público no século XX, vamos nos debruçar na obra
Os últimos intelectuaisde Russell Jacoby. Para este
autor, a era industrial destruiu ou diminuiu
consideravelmente a importância dos antigos centros
(como as praças) transformando os espaços urbanos
que agora vão ser construídos para atender o
mercado com objetivo de dinamizar a circulação3.
Esses espaços, por sua vez, se tornam ameaçados
frente ao novo modelo de urbanização inspirados nos
subúrbios e nas auto-estradas, que desfiguram o
tecido urbano e remetem os moradores para longe
dos centros urbanos.
2
3
Idem, p.414
JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: A cultura americana na era
da academia. Tradutora: Magda Lopes. São Paulo: Trajetória/Edusp,
1990
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Diz Russell Jacoby que um dos erros fatais na
sociedade contemporânea para o fim do espaço
público foi sacrificar todo o transporte coletivo em
prol do automóvel particular. Ele previu um futuro
em que a cidade seria um “vazio mecanizado”, uma
“massa confusa de vias expressas, viadutos e pátios de
estacionamento”. Para o autor, tudo isso contribui
para a deteriorização da esfera pública no que tange
as possibilidades de interação social.
Na nossa realidade, mas especificamente na
Barra da Tijuca, encontramos vários complexos
arquitetônicos que são planejados como ambientes
inteiramente voltados para o interior, as paredes
externas são vazias e sem janelas, mostrando para rua
uma face quase maciça de concreto e tijolo. Para os
pedestres eles são pouco convidativos, até
impenetráveis, com entradas e estacionamentos
subterrâneos, atraindo somente automóveis.
Sennett ao analisar a realidade dos centros
financeiros em Nova York também aponta a
existência de “espaços públicos mortos”, por estarem
sujeitos à lógica do fluxo e da circulação. Para
Sennett as empresas criam certos espaços que
aparentam ser de uso público, mas destinam-se,
sobretudo, para serem vistos, e não utilizados, através
dos artifícios arquitetônicos.
Para exemplificar essa questão Sennett aponta
que o prédio da Lever House, em Park Avenue, possui
uma praça ao ar livre no andar térreo, que serve de
passagem para a rua , constituindo um espaço morto
já que: “...uma praça pública em miniatura é
formalmente declarada, mas a função destrói a
natureza de uma praça pública, que é a de mesclar
pessoas e diversificar atividades.”1 Como podemos
perceber os logradouros públicos (avenidas, ruas,
praças, parques e jardins) têm se tornado, muitas
vezes, simples lugares do consumo e/ou de passagem.
Toda essa deteriorização da esfera pública
constituiu também uma crise da cultura pública
como afirma Jacoby e como já vimos com Sennett e
Habermas. Em seu livro “Os últimos intelectuais”,
Jacoby, ao analisar as novas gerações de intelectuais
norte-americanos aponta a escassez ou até mesmo a
inexistência de uma “cultura pública” após a segunda
guerra, em função da reestruturação urbana que
criou a vida segregada dos grandes subúrbios, das
transformações havidas no campo acadêmico e na
própria lógica do mercado presente em boa parcela
da produção dos trabalhos. De uma maneira
simplificada este autor afirma que o desaparecimento
dos intelectuais ocorreu devido a três fatores: a
reestruturação das cidades, o desaparecimento da
boemia e a expansão das universidades.
Para ele a cultura pública perdeu sua força
quando os intelectuais autônomos se transferiram
para da vida boêmia das cidades para as
universidades e afirma que “com poucas restrições,
no fim da década de 1950,os intelectuais americanos
escaparam das cidades para os campi, dos cafés para
a cafeteria.” 2 Jacoby asssinala que até esse período
“ser intelectual antes de mais nada, era mudar para
Nova York ou Chicago, e escrever livros e
artigos.”3Os intelectuais clássicos americanos tinham
grande audiência, pois se dirigiam ao grande público
com muita facilidade sem a linguagem rebuscada tão
comum nos textos acadêmicos.
A essa cultura pública Jacoby denominou
“inteligência urbana” em função de sua riqueza estar
intimamente relacionada ao tipo de vida que só os
centros urbanos propiciam. Em suas palavras: “a vida
cultural compõem-se das atividades de intelectuais
que não se limitam simplesmente a escrever ou
pensar ou pintar, mas que vivem e trabalham em
ambientes específicos4”.
Jacoby
afirma que
a
saída
dessa
intelectualidade dos espaços urbanos terá como
conseqüência a perca de sua qualidade nos ambientes
estéreis dos campus universitários, ao passo que a
inteligência crítica era fertilizadas nos ambientes
urbanos que continham diversidade, em especial nos
recantos boêmios criativos que proliferam em meios
urbanos precários, com ruas movimentadas,
restaurantes baratos e aluguéis razoáveis. Dessa
forma, a partir da década de 50 o “intelectual se
tornou mais solidamente classe média, um homem da
JACOBY. Op.cit.p.27
Idem, p.29
4 Idem, p.34
2
3
1
SENNET,op.cit. p.26
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
escrivaninha, casado, com filhos, vivendo em um
subúrbio respeitável.”1
Jacoby entende em seu livro que a necessidade
da sobrevivência dos intelectuais, a garantia de uma
aposentadoria, a certeza das férias prolongadas
atraíram jovens e aqueles que, por motivos os mais
díspares, buscavam a segurança.
O número cada vez menor de grandes
pensadores e a crescente proeminência das
universidades estão relacionados entre si. A ausência
de intelectuais plurivalentes significa a formação de
especialistas que refletem somente as questões das
universidades deixando de lado as necessidades do
público. A institucionalização acadêmica está
diretamente relacionada à especialização cada vez
maior dos intelectuais em decorrência das exigências
do mercado o que contribuiu de maneira decisiva
para o afastamento dos intelectuais da esfera pública.
O resultado, segundo Jacoby, é que a esquerda não
produziu uma geração de pensadores interessados
nas políticas públicas e abandonou o mundo das
idéias.
Jacoby diz que o intelectual de hoje para
obter seu brilhantismo precisa ter contatos e conexões
com universidades e pessoas respeitáveis e não mais
dar contribuições públicas. O alargamento do espaço
privado sob os imperativos do mercado tem levado o
1
Idem, p.130
intelectual a afastar-se cada vez mais da esfera
pública.
“Os intelectuais mais jovens não
mais necessitam ou desejam,
um público amplo; eles são
exclusivamente professores; os
campi são seu lares, os colegas
sua audiências; as monografias
e os jornais especializados, seu
meio de comunicação"2.
A profissionalização da vida intelectual nos
limites do campus universitário conduziria à
privatização ou à despolitização, à transferência da
energia intelectual de um domínio mais amplo para
uma disciplina mais restrita, em que as pressões da
carreira e da publicação intensificariam a
fragmentação do conhecimento.
Assim, entrincheirados nas universidades, não
importa quanto estes intelectuais produzissem: para o
grande público, eles se tornaram invisíveis. Por
optarem pela segurança de uma carreira eles mantêm
uma relação de dependência com as instituições que
os sustentam e escrevem somente para seus pares.
Esse processo intensificou ainda mais o declínio do
intelectual público e também do espaço público que
estes se comunicavam.
2
Idem, p.98
O espaço jornalístico para os intelectuais se
restringiu constantemente, em contraste com a
expansão das universidades. Predominou na
imprensa o esforço intenso de atrair leitores através
de uma cobertura "leve" e "cotidiana". Até mesmo na
esfera intelectual os temas discutidos refletem cautela
com os assuntos abordados. Jacoby diz que os
cientistas políticos parecem de modo sistemático
ignorar os problemas mais urgentes, numa época de
grandes agitações políticas com a guerra do Vietnã e
da Guerra Fria. Este autor constatou, por exemplo,
que nos dez anos situados entre 1959 e 1969, as três
principais publicações de ciência política editaram
apenas um artigo sobre o Vietnã, de um total de 924
trabalhos3. Nesse mesmo período, o principal órgão
acadêmico publicou um único estudo sobre a pobreza
e três sobre crises urbanas. Nota-se que o jovem, ao
entrar na carreira universitária, mostra-se prudente e
distancia-se de textos polêmicos, visando à
estabilidade.
De acordo com Habermas, com o crescimento
da sociedade midiática ocorre uma nova mudança
estrutural da esfera pública, que provoca
transformações fundamentais na figura clássica do
intelectual. É preciso que se relacione essa crise com o
crescimento da cultura da mídia, que contribuiu para
o surgimento de novos “líderes de opinião”. Cada
especialista é chamado para falar sobre o nicho que
3
Idem, p.101
Revista História - 34
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
lhe apetece e os intelectuais passam a atuar apenas no
interior de determinadas redes, que requerem
somente aquele conhecimento específico. Assim, a
sociedade midiática opera no sentido de uniformizar
o tempo da produção do conhecimento, o que acaba
por restringir e limitar a capacidade de reflexão por
parte da intelectualidade.
Tornou-se impossível sobreviver com as
críticas de livros, o telefone suplantou as cartas, os
cafés foram substituídos pelas conferências e assim
declinou a vida boêmia sob a pressão das
universidades. A decadência das grandes cidades e
das universidade, a expansão da televisão como
forma de lazer e a diminuição do número de jornais
reduziu o papel dos meios impressos como espaço
público para o debate político e cultural. Para
Habermas o jornalismo crítico, partidário e político é
substituído pelo manipulativo, consumista e
mercadológico.
Neste ensaio vimos que a dicotomia entre
espaço público e espaço privado se transformou no
transcurso
histórico,
sendo
que,
na
contemporaneidade, verifica-se um estreitamento do
seu significado. Na atualidade, público e privado
tendem a se confundir de modo crescente ao mesmo
tempo em que os significados e anseios comuns
compartilhados pelos membros da sociedade são cada
vez mais esquecidos.
Ao analisarmos as mudanças que ocorreram
entre as esferas da vida pública e da vida privada
vimos em que medida o esvaziamento de uma vida
pública traz problemas ao homem moderno e
contribui para mudanças significativas no meio
urbano e no meio cultural.
A partir de tudo isso podemos observar que,
atualmente, o próprio desenho urbano das cidades
como se inscreveu fez com que se instaurasse uma
erosão da dimensão pública. As modificações na
esfera pública e na própria política levam à extinção
da racionalidade, do pensamento crítico e contestador
em relação às ações políticas.
Encerramos este ensaio com o seguinte trecho
do texto de Habermas que apesar de publicado em
1984 define bem os dias atuais:
“De modo geral, o que se
encontra
nos
espaços
deliberativos, sejam virtuais ou
não,
é
uma
pseudoracionalidade
instrumental
baseada
num
pensamento
mercadológico, controlado pelo
marketing político. O próprio
espaço
deliberativo
transfigurou-se em apolítico.
Há nele um público de
cidadãos,
desintegrado
enquanto público, e “[...] de tal
maneira mediatizado por meios
publicitários que, por um lado,
pode ser chamado a legitimar
acordos políticos sem que, por
outro lado, ele seja capaz de
participar de decisões efetivas
ou até mesmo de participar” 1
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Revista História - 35
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
CONTROLADOS E CONTROLADORES:
QUANDO PRESOS SE TRANSFORMAM EM
JORNALISTAS
Flora Daemon
Mestre e Doutoranda em Comunicação
pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo
Este artigo investiga gestos de criação de uma
experiência jornalística no cárcere. Será cenário do
estudo o presídio Evaristo de Moraes, maior unidade
penal do estado do Rio de Janeiro no que se refere à
quantidade de internos. A idéia é observar a
materialização dessas vozes num ambiente no qual as
relações de poder invariavelmente transformam e
reconfiguram tanto o dizer, quanto os gestos de
apropriação midiática por sujeitos encarcerados. A
partir desse olhar, pretende-se discutir em que
medida a reprodução no universo intramuros do que
se entende como fazer jornalístico pode significar
algo além da apropriação de técnicas de redação,
para se converter em uma espécie de revide ao
“controle midiático” a partir das mesmas
ferramentas.
Abstract
This paper aims to investigate the gestures of creation
of a journalistic experience in prison. The study
concentrates on Evaristo de Moraes, the biggest
prison in the state of Rio de Janeiro in number of
prisioners. The idea is to observe how the prisioners'
voices can materialize themselves in a place where
power relations change and recreate the way of
saying something and the gestures of media
appropriation by them. From this point of view, this
study intents to discuss how in the confinement the
reproduction of the way of making journalismcan
signify something beyond the appropriation of
writing technique, to become a response to the media
control using the same tools.
***
1) Uma cartografia política do cárcere
O presídio Evaristo de Moraes é a maior1
unidade penal do estado no que se refere à
quantidade de presos e opera no regime de tranca
dura: seus internos permanecem 24 horas por dia em
celas, podendo sair somente durante a hora semanal
de banho de sol ou quando recebem visitas.
Atualmente, cerca de sessenta homens habitam as
vinte e cinco celas distribuídas entre quatro galerias
(A, B, C, D) de um pavilhão construído originalmente
para ser um galpão da Secretaria de Transportes e
Obras do Estado2.
Conhecido como “‘prisão dentro da prisão”
em decorrência de ser um local com mais restrições
do que os demais” (Dias, 2007: 230-231), o presídio
de Seguro é uma alternativa aos presos que se
encontram em risco dentro do Sistema, geralmente
solicitado por pessoas que cometeram Crimes Contra
os Costumes, como Estupro e Atentado Violento ao
Pudor, ou que estejam envolvidos em conflitos
internos graves.
Marques, em seu estudo sobre o Proceder3
dentro das prisões a partir da análise de uma
penitenciária paulista, explica que em unidades
penais mistas (que abrigam presos comuns e possuem
apenas galerias e celas destinadas ao Seguro)
solicitam o recurso “indivíduos que devem droga
para traficantes do “convívio”, indivíduos que se
envolvem em “quiaca” (briga) e não estão dispostos a
matar ou morrer, enfim, indivíduos infratores de
alguma regra do “proceder” que não pode ser
relevada pelos demais detentos” (2006: 26).
O Estado do Rio de Janeiro, nesse sentido, foi o
pioneiro no estabelecimento de unidades penais
específicas para internos do Seguro com destaque
A esse respeito ver: VASCONCELOS, Ana Silvia Furtado. A Saúde sob
Custódia: um estudo sobre agentes de Segurança Penitenciária no Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado defendida na ENSP/ CESTEH –
2
Cerca de 1400 homens cumprem pena atualmente no Evaristo de
Moraes.
1
FIOCRUZ, 2000.
3 De acordo com Marques, o Proceder se refere às regras produzidas
pela própria população encarcerada.
Revista História - 36
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
para o presídio Hélio Gomes e, em seguida, o Evaristo
de Moraes. Sendo este último, atualmente, a única
prisão com esse fim para homens que cumprem pena
em regime fechado no estado. Situado no bairro de
São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro, o Evaristo
de Moraes é conhecido no Sistema Penitenciário
como Galpão da Quinta e, entre os internos, como “o
patinho feio” das unidades penais por conta do mau
estado de conservação em que se encontra sua
estrutura física.
No início da década, a unidade era lembrada
pelas péssimas condições de salubridade e higiene,
conforme descreveu Vasconcelos: “presos e guardas
convivem em instalações precárias, com uma extensa
população de roedores que passeiam livremente pelo
interior da unidade” (2000: 53). Nessa época, o
Evaristo de Moraes rotineiramente ocupava as
páginas de jornais com reportagens que o apelidavam
de “Central da Extorsão” em referência aos falsos
seqüestros comunicados por telefones celulares. A
nomeação do atual diretor do presídio acarretou em
algumas mudanças estruturais. De acordo com ele, o
grupo de internos que praticava o crime foi
desmembrado e transferido para outras unidades,
bem como agentes penitenciários que não se
adequavam à nova gestão. A estratégia adotada pelo
diretor se baseou na criação de uma rede de
informações estruturada pela prática da delação com
o intuito de controlar a unidade e torná-la, nas
palavras dos internos, uma “cadeia rendida”.
Não é pretensão deste estudo mapear todos os
perfis dos internos que hoje habitam o Evaristo de
Moraes. A proposta é elencar os principais atores que
participam dessa trama cotidiana e que, para essa
investigação, se apresentam determinantes. Nesta
análise serão apresentados os grupos compostos por
Faxinas que trabalham na unidade estudada,
religiosos com predominância evangélica, os
“filiados” à “facção” Povo de Israel e os Frentes de
Cadeia. Ressalta-se, no entanto, que em alguns casos
os referidos sujeitos podem ocupar mais de uma
organização ou função no cenário prisional,
conforme veremos adiante. Ainda assim, cabe
registrar a relevância de outros personagens desse
cenário que não serão detalhados nessa análise para
que, futuramente, seja possível estabelecer um olhar
mais aprofundado a respeito das relações que se
travam intramuros.
Este é o caso dos agentes penitenciários e
professores do Colégio Estadual Anacleto de
Medeiros. Aparentemente ocupantes de lugares
antagônicos, esses profissionais se relacionam
diariamente com os internos que desenvolvem a
experiência jornalística no cárcere. Os limites
cercados da escola, no entanto, estabelecem a
restrição da atuação desses atores, salvo em casos de
segurança da unidade. A natureza da relação entre
profissionais da educação e da segurança carrega a
questão de origem institucional. Concursados para
atuar em secretarias diferentes e executar seus ofícios
em uma unidade penal, esses atores parecem
conviver numa espécie de tranqüilidade vigiada que,
de um modo geral, se restringe aos comentários
irônicos sobre a chamada mamãezada1.
1.1 - Os Faxinas: entre o dever e a dívida no espaço
de trabalho
Todos os internos que trabalham em unidades
penais
recebem
a
alcunha
de
faxina,
independentemente das suas funções. Lotados em
áreas como Divisão de Disciplina, Cozinha, Limpeza,
Enfermaria, Esportes e Escola, esses presos são
reconhecidamente capazes de realizar tarefas mais
elaboradas do que os demais e redimem pena por
meio do cálculo que estabelece que a cada três dias de
trabalho, um dia de reclusão será remido, proposição
que se enquadraria no que Goffman chamou de
sistema de pagamentos secundários.
Para compreender a complexidade do cenário
em que estão inseridos estes homens, é necessário
considerar a imbricação de atividades e funções de
natureza distintas operacionalizadas em um mesmo
ambiente. As esferas trabalho e moradia passam a ser
administradas, nesse contexto, como parte integrante
de um padrão único de conduta estabelecido por
meio da avaliação de uma espécie de prontuário
Expressão bastante utilizada na prisão para designar os gestos de
preocupação excessiva dos professores com os alunos presos. Seriam
considerados mimos.
1
Revista História - 37
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
extra-oficial que depende do cumprimento de
quesitos diversos que, normalmente, não estariam
relacionados. Goffman investiga em seu estudo sobre
as instituições totais esses atravessamentos com vistas
a fatores outros envolvidos na trama que
materializariam o desmantelamento do fora:
“qualquer que seja o incentivo dado ao trabalho, esse
incentivo não terá significação estrutural que tem no
mundo externo. Haverá diferentes motivos para o
trabalho e diferentes atitudes com relação a ele”
(2001: 21) O sociólogo complexifica o cenário
explicando que “nas instituições totais, as esferas da
vida são integradas de forma que a conduta do
internado numa área de atividade é lançada contra
ele, pela equipe dirigente, como comentário e
verificação de sua conduta em outro contexto”
(2001: 41)
Os faxinas são considerados “a espinha dorsal
da cadeia” (VARELLA, 1999: 99), pois transitam entre
os olhares dos guardas e dos outros encarcerados.
Ocupantes de um lugar simbólico ambíguo, essas
figuras parecem ser o elo entre a comunidade
carcerária e o poder oficial da prisão. A
complexidade desse papel está relacionada ao desejo
de obtenção de uma certa proximidade com os
agentes da disciplina ou, minimamente, com a
interpretação, por parte do coletivo, do que seria uma
postura adequada aos “ressocializandos”: “Ao ser
‘enquadrado’, o novato admite ser conformado e
codificado num objeto que pode ser colocado na
máquina
administrativa
do
estabelecimento,
modelado suavemente pelas operações de rotina”
(GOFFMAN, 2001: 26).
É necessário ressaltar, no entanto, que essa
internalização não significa adaptar-se, de forma
alienada, ao referido enquadramento. Analisando as
posturas que os internados utilizam nas instituições
totais, o sociólogo propõe um quadro esquemático
que contempla quatro possibilidades de táticas. Para o
caso
dos
faxinas, é interessante refletir
particularmente a respeito da conversão, um modo de
adaptação traçado pelo autor:
“O internado parece aceitar a
interpretação oficial e tenta
representar o papel de
internado perfeito. Se o
internado
‘colonizado’
constitui, na medida do
possível, uma comunidade
livre para si mesmo, ao usar os
limitados recursos disponíveis,
o convertido aceita uma tática
mais disciplinada, moralista e
monocromática,
apresentando-se como alguém
cujo
entusiasmo
pela
instituição está sempre à
disposição
da
equipe
dirigente”. (GOFFMAN, 2001:
61)
Fazer parte deste seleto quadro, no entanto,
significa estar exposto à desconfiança de alguns
agentes penitenciários que enxergam o faxina como
mais um preso a vigiar, com autorizações que lhe
garantem certos benefícios, e à estranheza de outros
detentos que, diferentemente deles, não podem
circular na unidade, se dirigir aos chefes de setor e
remir pena. Essa proximidade com o poder oficial, no
entanto, é um dos pontos de tensão entre os faxinas e
o coletivo. A internalização da postura do delator,
conhecido como X9, parece ser uma das principais
acusações sobre a conduta desses presos
trabalhadores. Aparentemente, “em contraste com
esse ambiente rígido, apresenta-se um pequeno
número de prêmios ou privilégios claramente
definidos, obtidos em troca de obediência, em ação e
espírito, à equipe dirigente” (GOFFMAN, 2001: 50).
Dessa forma, a acusação de cumplicidade entre
pessoas que, a princípio, são comprometidas com
lados antagônicos versaria sobre a implementação de
uma rede de informação a respeito da posse indevida
de dinheiro, de celulares, entorpecentes, além de
possíveis conflitos que poderiam se transformar em
rebeliões.
Por conta disso, a seleção de quais internos
devem atuar como faxinas durante o cumprimento de
pena parece ser um elemento importante para a
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
presente análise. Particularmente interessam a essa
pesquisa os faxinas da escola que, dentre outras
funções, também atuam no jornal. Aparentemente,
esses homens são selecionados a partir de indicações
que garantam que têm o perfil necessário para
desempenhar
determinadas
atividades.
Em
conseqüência desse cenário, uma nova questão se
apresenta: a partir de quais características se concebe
a construção de um perfil ideal para o cargo de
faxina da escola?
A hipótese que se oferece, resultado da
observação de campo, pretende complexificar a
importância do fator religioso nessa construção. A
maior parte dos presos que participaram do
movimento de retomada do periódico era evangélica
e, não de forma coincidente, também trabalhava na
escola1. Quando questionados a esse respeito, alguns
deles justificaram a presença massiva dos religiosos a
partir de discursos que pregavam o destino e a
responsabilidade moral com a comunidade
carcerária.
1.2 - Os Religiosos e o monopólio do discurso do bem
É bastante comum na cadeia, sobretudo
quando a unidade abriga internos que cometeram
crimes violentos com grande repercussão midiática, a
Dos treze internos que iniciaram o trabalho do jornal, sete estavam
lotados como Faxinas. Dentre esses, dois atuavam especificamente na
Liga de Esportes do Evaristo de Moraes.
1
conversão religiosa dos novos cativos. Além da
garantia de proteção, se transformar em um “novo
homem”, como se costuma dizer no cárcere, significa
optar por um caminho estrategicamente deslocado da
lógica das facções. Velho irá ressaltar que essa “a
adesão vigorosa e militante a uma ordem de valores,
religiosa ou não, é uma alternativa possível, dentro de
uma trajetória de vida, podendo ser provisória ou
definitiva”. (1999: 98).
O crescimento das experiências religiosas no
cárcere é objeto de estudo de Quiroga que observa
especialmente a ocupação desses espaços e a
conseqüente autorização para desempenho de
funções, a priori, do Estado. A antropóloga parte da
premissa de que essa atuação passa a ser legitimada
pela sociedade na medida em que os trabalhos
religiosos são estruturados em valores como a
confiabilidade. De acordo com a autora, “o que se
observa é uma certa aprovação (e freqüentemente,
incentivo) à presença dos agentes [religiosos], por
suas contribuições no apoio social aos presos e pela
colaboração no próprio processo de disciplinarização,
uma vez que ‘preso convertido é preso mais calmo’”
(QUIROGA, 2005: 16).
Aparentemente todas as unidades contam com
a presença de igrejas e congregações variadas. No
Evaristo de Moraes destaca-se a abrangência do
trabalho da Pastoral Carcerária (Igreja Católica), da
Igreja Universal do Reino de Deus, da Igreja Batista e
do grupo Kardecista.
Ao contrário do que geralmente se supõe a
respeito do discurso dos condenados sobre a culpa, a
pesquisa de campo que gerou o presente estudo
permitiu observar que a maior parte dos relatos dos
internos não pretende negar a acusação e a
responsabilidade por seus atos criminosos. Em outras
palavras, são raros os que se declaram inocentes.
Nesse sentido, um dos elementos fundantes da
conversão religiosa se torna parte de um processo
maior que pretende, por vias próprias, a expiação do
dolo. O testemunho da conversão religiosa passa a
ser, nesse cenário, um importante gesto de redenção
pela fé a um Deus que perdoaria aqueles que se
arrependem e desviam seus caminhos em direção do
bem. Ao contrário de todos processos que respaldam
a permanência desses homens no sistema
penitenciário, o ritual de conversão é o único que,
por meio da individualização, permite uma
experiência de um julgamento teoricamente superior
que, ao final, a todos redime e absolve. O testemunho,
necessário à conversão, pressupõe o registro oral das
experiências passadas (da vida e do desvio) a partir
de uma fala auto-referencial que também estará
presente na construção do discurso jornalístico no
cárcere, como veremos no terceiro capítulo deste
estudo.
Nesse sentido, propõe-se um paralelo com a
percepção desenvolvida por Michel Foucault a
respeito das práticas punitivas no contexto europeu
do Antigo Regime na qual o gesto confessional era
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
parte fundamental das cerimônias de suplício, tanto
por meio da ratificação da culpa, quanto por meio da
alegação da inocência que, nesse cenário, surtia o
efeito de blasfêmia interpretada como dupla
responsabilidade. As últimas palavras do condenado
que compunham o discurso de cadafalso eram
extremamente importantes à cerimônia pública que o
filósofo chama de dupla ambigüidade da confissão a
respeito da extorsão da verdade:
“O juramento que se pede ao
acusado
antes
do
interrogatório (ameaça por
conseguinte de ser perjuro
diante da justiça dos homens e
diante da de Deus; e ao mesmo
tempo,
ato
ritual
de
compromisso);
a
tortura
(violência física para arrancar
uma verdade que, de qualquer
maneira, para valer como
prova, tem que ser em seguida
repetida, diante dos juízes, a
título
de
confissão
‘espontânea’).(FOUCAULT,
1987: 35)
Ainda assim, fazer parte do grupo dos internos
religiosos nas unidades penais não parece ser
simplesmente uma adesão cômoda e estratégica. Mais
do que isso, esses homens necessitam seguir um
código de conduta rígido monitorado constantemente
por seus irmãos de crença. Os evangélicos, foco dessa
etapa da pesquisa, estão proibidos de assistir televisão,
principal passa-tempo entre os presos, ou ouvir
músicas “mundanas”. A eles são indicadas as
composições evangélicas e consumo de publicações
impressas da congregação. O não cumprimento
desses imperativos implica, como ressalta Quiroga
(2005: 20), em penalidades rigorosas.
No presídio Evaristo de Moraes, somente
presos evangélicos possuem celas próprias que, entre
outras coisas, garantem um convívio distanciado com
internos de outras crenças ou ateus. Atualmente estes
homens ocupam uma galeria inteira da unidade.
Mesmo assim, é possível identificar outra distinção:
entre estas celas evangélicas há, ainda, uma destinada
especificamente aos faxinas adeptos da religião. Nela
convive a maior parte dos internos que produzem o
jornal.
A vigilância entre os evangélicos conta
também com outro elemento raro na unidade: luz. Ao
contrário das demais celas, essas possuem
iluminação1 artificial durante todo dia facilitando a
leitura dos textos religiosos e, também, a observação
entre os internos. Marques analisa esse controle
constante e explica que “entre os habitantes da ‘cela
dos evangélicos’ há aqueles que ‘se escondem atrás da
De acordo com relatos dos presos evangélicos, as lâmpadas utilizadas
para iluminar essas celas são compradas pelos próprios internos que
habitam esses espaços.
1
bíblia’ – que são punidos quando descobertos
praticando atos proibidos segundo o ‘proceder’ para
os evangélicos – e aqueles que se mantêm na
condição de ‘ter proceder’. (2006: 28)
Ao estudar a cultura prisional, Carvalho
desenvolve uma proposta de tipologia social com foco
em determinados sujeitos desse espaço. A
pesquisadora os divide e denomina como Intocáveis
funcionais e Intocáveis disfuncionais. A última
classificação parece ser adequada ao perfil dos
internos evangélicos que vivem e, principalmente,
atuam no jornal desenvolvido no presídio Evaristo de
Moraes. Mais adiante, será possível propor uma
aplicação da primeira categoria na apresentação de
outra peça-chave desse cenário: os Frentes de Cadeia
que, observados a partir desse olhar, se encontram
integrados à “orgânica sistêmica da prisão”. De
acordo com a autora, o histórico criminal de sujeitos
enquadrados como intocáveis funcionais “perdura
durante sua estadia na prisão, assumindo novas
formas criminógenas, reformuladas e adaptadas ao
caráter do espaço-tempo do sistema social de ação
informal” (2003: 12).
A socióloga explica que esses indivíduos
tipificados como Intocáveis disfuncionais operam na
lógica da auto-guetização marginalizadora e
assumem “uma postura de auto-diferenciação, dentro
da sociedade informal, em relação à comunidade
prisional. Além disso, auto-destacam-se pela sua
diferenciação relacional radical em relação aos
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
sujeitos reclusos com quem estabelecem as suas
relações” (2003: 10).
A partir da aparente exclusão estratégica do
convívio com o coletivo, esses internos parecem
compor um cenário que abarca o fenômeno descrito
por Segato como superioridade moral estruturada
pelo monopólio do bem. Convertendo o espaço
prisional em um espaço do discurso a respeito do
“novo homem”, a igreja media os conflitos por meio
da dogmatização do evento da morte metafórica do
criminoso que, agora cristão, realiza o efeito que a
pesquisadora chama de “mimese regressiva”:
“é exatamente a imitação que
o preso faz do discurso do
‘bem’, copiando um discurso
cristão, com seus valores
familiares e suas fórmulas de
boas maneiras e repetindo o
mesmo, ad infinitum. O que
impressiona é a forma
mecânica
em
que
são
aplicadas
as
fórmulas
discursivas, sem introduzirlhes comentários alusivos à
situação específica vivida pelo
preso ou suas famílias”
(SEGATO, 2005: 44).
Ainda a respeito da referida análise, é preciso
ainda ressaltar a complexidade dos sujeitos
envolvidos
nesse
cenário
sem
torná-los
irremediavelmente vitimas ou vilões dos discursos
identitários. Esses homens, convertidos pela religião e
herdeiros do jornal, são elementos fundamentais para
a compreensão do espaço prisional do Evaristo de
Moraes. Sua influência será analisada, mais à frente,
no desenvolvimento das reportagens, disputas e
embates que compõem o cotidiano da equipe de
redação do periódico Em Prol da Liberdade, bem
como nas redes de informação que movimentam o
coletivo de internos, produtores e consumidores do
“Jornal a serviço dos cativos”1.
1.3 - O Povo de Israel: uma facção invisível
Ao contrário da maior parte das unidades
prisionais do Estado do Rio de Janeiro, o presídio
Evaristo de Moraes não pertence a nenhuma facção
oriunda do universo extramuros. Atualmente ele é
classificado pela Secretaria de Administração
Penitenciária como uma instituição neutra por não
abrigar internos pertencentes a nenhum grupo
criminoso. A rigor, o fato do Galpão ser destinado a
internos que solicitaram o Seguro ao Estado já
explicaria, de antemão, a ausência desse tipo de
organização entre os presos que, numa situação como
essa, pretenderiam simplesmente cumprir suas penas
sem transtornos ou comprometimentos significativos.
A referida frase funciona como uma espécie de lema do jornal Em Prol
da Liberdade é apresentada no cabeçalho do periódico.
1
Ainda assim, como se costuma dizer no espaço intramuros, não é possível passar pelo Sistema
impunemente. Sobretudo quando essa “passagem” for
resultado de uma prática criminosa contra os
costumes, como no caso da maior parte dos presos da
unidade estudada.
Os relatos2 sobre a prisão de pessoas que
cometeram os crimes de estupro e pedofilia
geralmente são sucedidos por uma fala a respeito de
outra punição comumente apoiada pela sociedade.
Durante o Antigo Regime os condenados eram
oficialmente submetidos ao sofrimento físico
condizente com os crimes a que eram acusados:
“Fura-se a língua dos blasfemadores, queimam-se os
impuros, corta-se o punho de quem matou”
(FOUCAULT, 1987: 39). Nos dias atuais, a prática
punitiva justificada por meio de uma sentença
paralela3 agrega ainda maior sofrimento à pena
restritiva de liberdade. De acordo com alguns relatos,
em algumas circunstâncias, homens condenados pelo
crime de estupro foram forçados a manter relações
sexuais com companheiros de prisão e,
eventualmente, com agentes penitenciários.
Também os jornalísticos. Como no caso da reportagem “Estupradores
sofrem ameaças nos presídios”, de Roberta Soares, publicada em
06/09/1998 no Jornal do Commercio de Recife, Pernambuco.
3 Para informações sobre tatuagens que condenados pelo crime de
estupro são obrigados a fazer ver: Rodrigo Toffolli: Corpos tatuados:
preliminares a uma abordagem semiótica, disponível da Revista Estudos
Semióticos – No 1: 2005.
2
Revista História - 41
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Esses relatos1 remontam uma história que tem
início em 2005, no presídio Ary Franco, no bairro de
Água Santa, zona norte da cidade. Desde essa época,
internos recém condenados são transferidos para a
referida unidade que cumpre a função de triagem
dentro do Sistema. A Secretaria de Administração
Penitenciária adota a política de separar presos a
partir das organizações criminosas a que eram
vinculados do lado de fora da prisão ou, como no
caso do presídio pesquisado, por meio da tipificação
do crime com o intuito de mantê-los sob um risco
menor de conflito2, conforme aponta Quiroga:
“O possível pertencimento a uma
facção (que muitas vezes é
definido pelo local de origem ou
moradia do interno) é hoje um
critério seletivo e classificatório
básico para o envio dos apenados
às diferentes unidades prisionais.
Estes passam a ser considerados,
e controlados, como membros
das facções que, não apenas
As informações apresentadas nesse breve histórico são resultado de
conversas com internos de várias unidades penais do Sistema
Penitenciário fluminense.
2 Experiências anteriores atestaram que abrigar homens de facções
rivais na mesma unidade pode ser uma política inadequada, como no
caso da penitenciária Dr. Serrano Neves, conhecida como Bangu 3, que
em dezembro de 2003 teve grande parte destruída em uma rebelião
praticada por membros das facções Comando Vermelho e Terceiro
Comando. Após o motim, a Seap dividiu a unidade em duas com o
propósito de separar os integrantes dessas organizações. Com uma
enorme chapa de de aço entre elas, surgiam, em abril de 2004, as novas
Bangu 3A e Bangu 3B.
orientam
comportamentos
individuais, como os disciplinam
no sentido da manutenção de
compromissos
normativos
coletivos” (QUIROGA, 2005: 14).
Mesmo assim, é praticamente inevitável o
convívio entre presos condenados por crimes contra
os costumes com aqueles que cumprem pena por
terem praticados os chamados crimes sociais3. Ainda
que esse contato seja muitas vezes breve, não são
raros os relatos sobre os abusos sexuais promovidos
por outros cativos. Por conta disso, um grupo de
presos do artigo4 resolveu se unir com o objetivo
oficial de proteger aqueles que, assim como eles,
sofriam toda sorte de violências físicas. De acordo
com depoimentos de internos de algumas unidades
penais, a idéia essencial desses homens era proteção:
“Eles estavam acuados. Essa é
a verdade. Viram que iam
morrer. Eles não tinham outra
escolha: ou matavam ou
morriam. Por isso se uniram. E
essa união dura até hoje,
1
Estamos nos referindo às práticas criminosas voltadas à obtenção de
bens materiais.
4 A política dentro do Sistema é não explicitar o artigo 213 referente ao
estupro quando se quer destacá-lo. Basta usar a expressão “o artigo”
para informar que está se falando sobre o crime de estupro. Os demais
crimes são nomeados como números: “Fulano é 157”, por exemplo,
para explicar que uma pessoa cometeu o crime de roubo.
mesmo com os conflitos e as
brigas. Hoje ninguém fala
mais em PVI. Hoje dividiu em
PVI e 0015”.6
O surgimento dessa organização que
pretendia agir estritamente dentro das unidades
penais desencadeou uma rebelião no interior do
presídio Ary Franco que foi retratada pela grande
imprensa como mais um motim pela melhoria das
condições do espaço prisional para os internos.
Aparentemente não houve, por parte da Seap ou dos
meios de comunicação, associação do evento com a
criação de uma facção formada por eminentemente
por estupradores.
O curioso nome da facção não possui histórico
confirmado. De acordo com alguns internos, a
denominação é resultado de alusão à problemática do
reconhecimento
do
país
na
comunidade
internacional. A justificativa é baseada nos constantes
conflitos geográficos que pretendiam fixar um
território judaico à sua comunidade. A proposta de
nomeação do grupo de internos que tomou como
referência uma crença religiosa sem relatos de
3
Durante a pesquisa a respeito do surgimento do Povo de Israel,
descobriu-se que o grupo originalmente formado havia se divido em
outra facção auto-intitulada 001, em alusão ao número do recurso
solicitado por aqueles que estão no Seguro. Por hora, não pretendemos
nos ater a essa organização.
6 Relato de um egresso do Sistema Penitenciário.
5
Revista História - 42
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
praticantes no Sistema aparentemente associava a
situação das disputas do espaço e de seus praticantes.
Existem, ainda, outras versões para o
surgimento da alcunha da facção. Uma delas remonta
uma cena em que leitura da bíblia pelo recém
formado grupo se une para encontrar palavras de
força antes do início da rebelião. E foi assim que o
capítulo 111 do livro de Salmos se tornou o lema de fé
para esses homens.
Outro aspecto parece importante para
compreender o surgimento da organização. Ao
contrário dos delitos que normalmente unem os
integrantes de facções como o Comando Vermelho,
Terceiro Comando e Amigo dos Amigos, esse
movimento é fruto de uma mobilização que tem
início dentro do Sistema Penitenciário e permanece
somente durante o cumprimento da pena. Além disso,
salvo em casos pouco comuns em que homens
praticam o estupro com parceiros, a natureza desse
tipo de delito parte de uma conduta criminosa
individual. O fenômeno de fundação do Povo de
“O reinado da duplicidade: 2. Salvai-nos, Senhor, pois desapareceram
os homens piedosos, E a lealdade se extingue entre os homens. 3. Uns
não têm para com os outros senão palavras mentirosas; Adulação na
boca, duplicidade no coração. 4. Que o Senhor extirpe os lábios
hipócritas E a língua insolente. 5. Aqueles que dizem: ‘Dominaremos
pela nossa língua, nossos lábios trabalham para nós, que nos será
senhor? 6. Responde, porém, o Senhor: ‘Por causa da aflição dos
humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei para lhes dar a
salvação que desejam’. 7. As palavras do Senhor são palavras sinceras;
Puras como a prata acrisolada, isenta de ganga, sete vezes depurada. 8.
Vós, Senhor, haveis de nos guardar. Defender-nos-ei sempre dessa raça
maléfica. 9. Porque os ímpios andam de todos os lados. Enquanto a
vileza se ergue entre os homens”.
1
Israel, nesse sentido, parece ser um gesto oposto ao
isolamento natural que os condenados por esses
crimes optam dentro da prisão para sua própria
segurança.
Normalmente, as práticas de arregimentação
promovidas pelas outras organizações criminosas
conseguem aumentar sua força dentro da prisão com
a cooptação de internos originalmente distantes do
crime organizado que, em troca de segurança e bens
materiais, aceitariam participar da facção. O caso do
Povo de Israel possui mais uma questão que merece
especial observação: ainda que nem todos os presos
que cumprem pena no presídio Evaristo de Moraes
tenham sido condenados por crimes contra os
costumes, estes, ao solicitarem o Seguro e a
transferência
para
a
referida
unidade,
automaticamente são enquadrados como “filiados” à
facção Povo de Israel, mesmo que não obtenham
ganhos2 diretos com isso: “Todos aqui são Seguro.
Todos são Povão de Israel. Gostando ou não disso aqui
estamos protegidos”3.
Dessa forma é possível pensar que os 1400
homens que hoje vivem no Galpão da Quinta e, por
isso, compõem a facção Povo de Israel, mesmo
involuntariamente, disputam uma legitimidade, por
meio de um discurso autorizado, também em
oposição às demais unidades penais estruturadas por
meio de facções criminosas que atuam no universo
extramuros e que, de certa forma, legitimam as
práticas violentas contra aqueles que cometeram o
estupro. Mesmo que silenciosos dentro do próprio
sistema, esses embates se encerram também nos
limites murados: “É uma organização de proteção
para quem está no Seguro, principalmente para
estupradores. Ela não existe do lado de fora. É uma
organização interna e que luta pela vida desses
internos. Quando ele sai e volta à vida ele deixa de
existir pra gente e a gente pra ele”.4
1.4 - Os Frentes de Cadeia
Outra organização interna do coletivo,
também estruturada a partir das idéias de autoridade
e representação, surge por meio de uma figura
conhecida na prisão como frente de cadeia.5 No
Evaristo de Moraes, dois homens desempenhavam
esse papel durante o desenvolvimento do presente
estudo, fato incomum em unidades penais. Um deles,
estrategicamente, ocupa um cargo importante no
expediente do jornal Em Prol da Liberdade.
Alguns internos descrevem os frentes como
administradores de conflito ou como uma espécie de
“juiz que tem que ser imparcial, tem que ser uma
Relato de um dos internos que compõe o jornal.
Relatos sobre “frentes de cadeia” são dificilmente obtidos no presídio.
Raros são os internos que mencionam essa expressão e, quando
perguntados, dedicam poucas palavras para descrever a atuação dessa
figura.
4
5
Estamos nos referindo às práticas de extorsão citadas no início do
presente capítulo.
3 Relato de um interno do presídio Evaristo de Moraes.
2
Revista História - 43
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
constante no desenrolo da cadeia”1. Para tanto, é
necessário que essa mediação seja pautada por uma
regra publicizada internamente que possa legislar
sobre questões cotidianas tal como descreve Becker:
“O mais típico é que as regras sejam impostas
somente quando algo provoca sua imposição. A
imposição, portanto, requer explicação” (2008: 129)
O autor do manuscrito Glossário de
Expressões e Palavras usadas por internos do Sistema
e das DPs é um preso que cumpre pena no Evaristo de
Moraes. Com o intuito de facilitar a compreensão2 de
algumas palavras que eram citadas durante a
pesquisa que possibilitou a presente reflexão, ele
resolveu escrever esse documento que destaca
questões que podem ilustrar a presente análise. Esse é
o caso do uso da palavra etapa. Além de defini-la
como “a porção que cabe a cada um do que tiver para
todos”, esse interno acrescentou imediatamente ao
lado uma observação que ultrapassa o simples
entendimento
da
expressão
idiomática.
Aparentemente, essa ressalva parece querer
comunicar que não basta compreender o significado
das palavras dentro da prisão, é necessário entender,
sobretudo, as regras dessas palavras praticadas
cotidianamente no espaço prisional pois “(é falta
grave comer a etapa do outro)”3.
Relato de um interno que compõe a equipe do jornal.
Ressalto que esse documento foi entregue a mim e a proposta era
facilitar o meu entendimento.
3 Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do
1
2
Sistema e das DPs.
É o que Becker chama de cultura desviante
determinada a partir de “um conjunto de
perspectivas e entendimentos sobre como é o mundo
e como se deve lidar com ele” (2008: 48). A partir da
idéia de rotina compartilhada e destino comum, esses
homens constituem a trajetória que o sociólogo
chama de profecia auto-realizadora (idem: 44) a
partir do seu enquadramento prioritário como ator
social desviante. Dessa forma, vale mais uma vez
recorrer à sua definição de desvio:
“é antes o produto de um
processo que envolve reações de
outras
pessoas
ao
comportamento.
O
mesmo
comportamento pode ser uma
infração
das
regras
num
momento e não no outro; pode
ser uma infração quando
cometido por uma pessoa, mas
não quando cometido por outra.
(...) Em suma, se um dado ato é
desviante ou não, depende em
parte da natureza do ato (isto é,
se ele viola ou não alguma regra)
e em parte do que outras pessoas
fazem acerca dele” (2008: 26)
Assim,
é
possível
estabelecer
um
questionamento a respeito desses homens que podem,
a princípio, também se deslocar de sua condição de
desviante. É Becker quem propõe uma reflexão: “As
pessoas pertencem a muitos grupos ao mesmo tempo.
Uma pessoa pode infringir as regras de um grupo
pelo próprio fato de ater-se às regras de outro. Nesse
caso, ela é desviante?” (2008: 21)
A deontologia do coletivo é estudada por Dias
que destaca a importância da observação do processo
de julgamento nesse cenário. “O regulamento interno
da prisão, que desconhece, em certa medida, as leis
oficiais e cria todo um sistema normativo e um minitribunal próprio, a fim de que as regras sejam
cumpridas – tanto as regras da administração quanto
àquelas da massa carcerária –, prevê uma série de
punições para os infratores” (DIAS, 2007: 222).
Dessa forma, é possível propor um
enquadramento dos frentes de cadeia na categoria
proposta por Segato de forma complementar à
classificação sugerida a respeito dos faxinas. De
acordo com a socióloga, o papel dos Intocáveis
funcionais “tem por base uma forma de organização,
suportada por uma ‘liderança informal’, operada no
cerne da sociedade reclusa” (2005: 13). Ela salienta
que “o estatuto social destes indivíduos é construído
com base no seu poder relacional. São conhecidos
pelo temor respeitoso através do qual são encarados,
não só pelos outros internos, mas também pela
autoridade institucional” (Idem: 12).
Ainda observando o Glossário desenvolvido
por um interno do Galpão, é possível encontrar outra
alusão emblemática. Ao definir a expressão “Vou na
direção”, o autor do texto explica tratar-se de um
Revista História - 44
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
“modo de dizer que uma situação vai ser resolvida ou
conversada com alguém que fala (geralmente
comentários ou fofocas a respeito de outrem)”1. Notase que em nenhum momento o dono do manuscrito
determina quem é a direção citada. Ainda assim, por
reconhecer as práticas internas de resolução de
conflitos conhecidas como desenrolo2, parece
pertinente pensar que essa é mais uma referência ao
frente de cadeia que, aparentemente, tem a função de
estabelecer a Última forma3 como “determinação do
coletivo para encerrar um conflito”.
Além de mediar conflitos ocorridos no interior
do coletivo, esses homens justificam seus papéis por
meio da idéia de representatividade dos presos junto à
direção do presídio. Essa proximidade com o poder
oficial da prisão, por sua vez, acaba por gerar tensões
diversas por conta do duplo lugar ocupado pelos
frentes: se de um lado eles são a voz instituída de uma
massa anônima que reivindica, por outro eles não
conseguem abdicar de sua condição de encarcerados
em negociações com a direção, chefias de segurança
ou de disciplina, ficando, por isso, suscetíveis a tratos
silenciosos e à eventual incorporação do papel do
delator.
Nesse sentido, é possível propor uma reflexão
a respeito da autorização para o desempenho das
atividades como frentes de cadeia, mesmo que de
forma extra-oficial. A rigor eles têm o dever de
representar o maior contingente de cativos do estado,
mas
parecem
estimular,
mesmo
que
involuntariamente, o fator incerteza que, de certa
forma, alimenta as práticas cotidianas do coletivo e
amplia a rede de vigilantes anônimos4 no cárcere. Em
outras palavras, o fato de dois homens atuarem nesse
cenário e estarem publicamente ligados tanto à
parcelas diferentes da massa carcerária, quanto à
direção da unidade que enfatiza sua gestão baseada
nas práticas de delação, parece ser um aspecto
importante quando se pretende obter e, sobretudo,
confirmar as informações que circulam no presídio
Evaristo de Moraes. A descrição desenvolvida por
Becker, nesse sentido, parece oportuna:
“Quando uma organização que
contém
dois
grupos
que
competem pelo poder (...) o
conflito pode ser crônico. No
entanto, precisamente por ser um
traço persistente da organização,
talvez o conflito nunca se torne
declarado. Em vez disso, os dois
grupos, enredados numa situação
que aprisiona a ambos, vêem
Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do
Sistema e das DPs.
1
A esse respeito, podemos indicar a pesquisa que vem sendo
desenvolvida por Mário Miranda Neto, mestrando do Programa de PósGraduação em Antropologia, da Universidade Federal Fluminense.
3 Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do
2
Sistema e das DPs.
Estamos nos referindo aos informantes não identificados que prestam
serviços ao poder oficial da prisão.
4
vantagem em permitir que o
outro cometa certas infrações e
não as denunciam”. (BECKER,
2008: 132)
É o que Ludemir pretende complexificar a
respeito da função política da figura do frente no
cenário prisional. Mais do que representar a massa e
mediar conflitos, esses atores desempenham o papel
de um controle que prescinde agentes penitenciários
e câmeras de vigilância. Esse poder definitivamente
atravessa os corpos condenados: “ter uma liderança
nas cadeias no fundo é mais vantajoso para a direção
do que para o coletivo. Conceder privilégios às castas
que se autodenominam frentes de cadeia é a melhor
estratégia para que não haja fugas e rebeliões, o
tendão de Aquiles das direções de unidade”5.
2 – Metamorfoseados em jornalistas
“Eu já vi comerciante, professor, padre e
bandido ser torturado. Jornalista não pode. Quando é,
todo mundo grita e acha absurdo! Jornalista não se
censura ou tortura e aqui no presídio eu quero ser
um”6. A referida frase é resultado da leitura de um
texto jornalístico por um interno que compõe a
LUDEMIR, Julio. O choque de gestão nos presídios. Disponível em:
http://odia.terra.com.br/blog/blogdaseguranca/200806archive001.as
p . Acessado em fevereiro de 2009.
6 Tal evento aconteceu em maio de 2008.
5
Revista História - 45
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
equipe do Em Prol da Liberdade. Tal produção tratava
da tortura de uma equipe de reportagem do jornal O
Dia que havia se infiltrado na comunidade do Batan,
em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, para fazer
apurações a respeito da vida em regiões dominadas
pelas Milícias. A indignação desses repórteres do
cárcere parece apontar para alguns elementos
interessantes à compreensão de um ethos jornalístico
que, a rigor, poderia ser reproduzido intramuros.
Entre várias construções possíveis, é razoável pensar
na liberdade do dizer como valor atribuído à prática
jornalística e que, automaticamente, remete à
censura, materializada, no caso do jornal O Dia e na
projeção dos periodistas leigos, na punição física de
quem ousa. A tortura, tal como citado no capítulo
anterior, faz parte do universo penitenciário tanto
quanto o interdito da palavra.
Mais do que isso, a exclamação desses presos
aponta também para eternos fantasmas da prática
jornalística que remontam um passado em que a
censura prévia dos meios de comunicação era uma
realidade, inclusive com a colaboração de jornalistas
censores (KUSHNIR, 2004). A discussão a respeito da
liberdade de expressão é rotineiramente pautada pela
própria imprensa, sobretudo em ocasiões em que se
propôs a regulamentação da prática profissional,
como no caso do debate a respeito da Lei de Imprensa
e da criação de um Conselho Federal de Jornalismo.
Neste momento, porém, pretende-se focar a
atenção na interpretação de que ser jornalista
significa deslocar-se hierarquicamente do seu público
seja no universo extra ou intramuros. A partir da
apresentação de alguns breves exemplos empíricos,
pretende-se lançar algumas hipóteses acerca dessa
experiência jornalística desenvolvida no cárcere e
avaliar os gestos de apropriação do dizer da grande
imprensa e seus múltiplos efeitos nesse contexto. Foi
assim que durante as discussões sobre a pretensa
necessidade de conduta imparcial deste profissional,
um dos internos apresentou um relato bastante
emblemático: “Não sei por que tanta preocupação
com essa coisa de ser imparcial. Eu entendo que o
jornalista julgue, que ele tenha opinião. Talvez a
gente até se pareça mais do que eles gostariam: somos
espertos, sagazes e manipulamos a verdade. A
diferença é que nós estamos presos”1.
Assim, propomos a interpretação a respeito do
engajamento em um projeto jornalístico no cárcere
como um gesto de filiação consciente a uma
experiência panóptica midiatizada. Ao desenvolver
um veículo de comunicação em uma unidade penal,
estes homens automaticamente invocam para si, com
intenções diversas, o direcionamento dos holofotes de
vigilância que pretendem capturar, sob o argumento
da garantia da segurança, informações que parecem
transbordar os limites dos conteúdos veiculáveis, para
se converter num palco de controle e verificações de
intenções distintas.
1
2.1 - A voz no papel: o jornal dos presos do Evaristo
de Moraes
Durante a reunião para determinar quais
seriam as pautas que mereciam ser desenvolvidas na
primeira edição do jornal definiu-se que todos os
integrantes do periódico deveriam sugerir assuntos
para, ao final, serem votados pela equipe. Os eleitos
seriam trabalhados pelos repórteres responsáveis
pelas editorias. Para o primeiro número de Em Prol da
Liberdade foram desenvolvidas dez reportagens, duas
charges, um artigo2 e uma coluna. Além disso,
criaram-se também os espaços Alma Gêmea e
Pensamentos e Poesias voltados especificamente para
publicação de textos de internos leitores.
Ainda que o propósito do presente estudo não
seja o de realizar uma análise de conteúdo dos jornais
produzidos pelos internos, mas pesquisar o fenômeno
de interpretação e apropriação do ethos jornalístico
para além da simples aplicação dos preceitos técnicos,
optou-se por dedicar atenção a determinados
aspectos da substância desses textos interessantes à
compreensão da prática de imprensa no cárcere. De
antemão é possível perceber certo flerte com o que se
costuma enquadrar como aquele jornalismo em que
as sensações “mesclam os dramas cotidianos – os
melodramas – em estruturas narrativas que apelam
Frase de um dos internos que compõe a equipe do jornal Em Prol da
Liberdade.
2
Intitulado Auto-estima ou Punição?
Revista História - 46
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
ao imaginário que navega entre o sonho e a
realidade”. (BARBOSA, 2007: 123)
Ao apurar o olhar sobre os títulos da primeira
edição do Em Prol da Liberdade é possível notar, por
exemplo, o caso da reportagem sobre a história de um
ex-interno do Evaristo de Moraes, bolsista de um
projeto financiado pela agência de fomento à
pesquisa do estado do Rio de Janeiro, que deixou o
cárcere e hoje freqüenta grupos de pesquisa em uma
universidade pública. Ao construir um texto a
respeito de uma trajetória atípica para egressos do
Sistema Penitenciário, o repórter optou por um título
que flerta com as matrizes sensacionais do chamado
jornalismo popular, direcionando o sentido
interpretativo para uma ação transgressora
teoricamente familiar para aqueles que cumprem
pena restritiva de liberdade: a invasão.
literária, pela malícia dos dados em jogo, pela
intimidade com que falam ao leitor [grifo meu]”
(MEDINA, 1988: 120). No referido exemplo, porém,
é necessário mencionar que o uso das aspas foi uma
indicação1 da Assessoria de Comunicação da
Secretaria de Administração Penitenciária como
forma de enfraquecer o apelo às sensações
originalmente proposto pelo título.
Noutro caso, na manchete do jornal, é possível
notar a presença do imperativo esclarecedor
ocupando o espaço de uma margem à outra do papel:
IMAGEM 32
IMAGEM 2
A utilização do recurso da ironia, neste caso,
parece querer surtir efeito de piscadela ao leitor
prioritário que, deslocado ao lugar do sujeito
habituado às práticas infratoras, certamente não se
sentiria ofendido com a utilização de uma expressão
como recurso textual: “os títulos chamam atenção do
consumidor pela diagramação, pela forma verbal
Ainda no presente capítulo trataremos das indicações de mudança e
censuras da Assessoria de Comunicação da Secretaria de Administração
Penitenciária.
2 A referida imagem é apresentada aqui de forma reduzida.
Originalmente esta ocupa metade da página do jornal.
Analisando este que seria o primeiro contato
do público leitor com o periódico identificam-se
alguns elementos interessantes. O primeiro deles se
refere especificamente à opção pelo contraste entre as
fontes brancas, em negrito, com o box negro que
ocupa 50% da página: “os sinais de pontuação, os
números, os artigos, os contornos das letras – tudo
entra em jogo na diagramação, onde menos
importam os critérios de feio/belo e mais os critérios
de valorização visual do que se deve saltar aos olhos”
(MEDINA, 1988: 120).
Cabe, então, observar novamente a referida
manchete atentando, também, ao conteúdo do texto
principal e seus subtítulos inseridos nessa imagem. A
primeira frase já sentencia: “Chega de Boatos”. De
antemão, é necessário considerar o boato como justa
oposição à proposta de criação de um veículo
informativo que se pretende oficial. No contexto
prisional os rumores fazem parte de uma forte rede
de informações que se materializa, também, a partir
da atuação de dois elementos-chave. O primeiro deles
nos é apresentado por um interno que desenvolve
uma pesquisa3 sobre a realidade da prisão: “Logo na
porta das comarcas ficavam dois indivíduos que são
chamados de Ligação [grifo meu], responsáveis por
passar tudo o que acontecia do lado de fora para o
coletivo”. Esse sujeito, peça importante na difusão de
1
Trata-se de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, desenvolvida no âmbito do projeto
Cerrando Saberes, Serrando as Grades do Saber.
3
Revista História - 47
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
informações, sobretudo em unidades penais como o
Evaristo de Moraes em que os presos não podem
deixar as celas, conta também com o auxílio de um
instrumento chamado Tereza. Fabricado com tecidos,
esse artefato serve como meio de comunicação1,
quando transmitido entre celas, e como ferramenta
de fuga, quando lançado sobre os muros da unidade
penal.
Darnton desenvolveu uma hipótese sobre as
primeiras experiências com meios de comunicação de
massa que, de acordo com sua perspectiva, teriam
surgido na França do século XVIII por meio de um
elemento normalmente considerado “menor”, no que
se refere à confiabilidade, na construção da
informação: a fofoca. A forma de disseminação de
notícias, ainda sem o advento da imprensa, era
particularmente interessante. No primeiro momento,
o cenário conhecido como “a paróquia”, de
propriedade de uma senhora parisiense, contava com
freqüentadores que se relacionavam com a corte e o
parlamento de Paris. “Quando entravam no salão,
encontravam dois livros de registro numa mesa
próxima à porta. Um deles continha notícias dadas
como dignas de crédito, e o outro, fofocas. Juntos, os
dois compunham o cardápio da discussão do dia”
(DARNTON, 2000: 4). Assim, de acordo com o
historiador, surgiu o primeiro repórter, criado da
O mesmo interno desenvolve ainda uma reflexão sobre outro uso
dessa corda que liga as celas: o Shopping Tereza: “tido como uma feira
de negócios, com produtos diversos e presos convidativos”.
1
proprietária do salão, que perambulava pelas casas
em busca de novidades.
As ruas, a corte, os mercados, tabernas e
jardins públicos eram, segundo Darnton, o cenário
ideal para disseminação de informações através de
uma densa rede de comunicação formada por meios
que “se entrelaçavam e sobrepunham tão
intensamente, que temos dificuldade em imaginar seu
funcionamento” (2003: 50). Nesta França do Antigo
Regime a polarização entre o desejo da informação e
a “necessidade” de controlar esses dados estabeleceu
um cenário em que de um lado se encontrava “o
público com sua fome de notícias, e do outro, o estado
com suas formas absolutistas de poder” (2003: 49).
Mais tarde, o anseio pelo consumo dessas notícias
impulsionou o surgimento de uma pequena de
indústria fornecedora de gazetas manuscritas a
assinantes.
Ao pensar o impacto dos rumores no cotidiano
da referida unidade penal, é possível crer que quando
a equipe do jornal anuncia, em sua primeira edição, o
fim dos boatos como narrativas orais e perecíveis
(IASBECK, 2000: 12) por meio de uma reportagem
que irá esclarecer assuntos de interesse de grande
parte do coletivo, este grupo está dialogando
diretamente com interlocutores idealizados inseridos
num contexto em que a informação é extremamente
relevante. Avançando, propõe-se a hipótese de que ao
proclamar oposição às notícias pouco confiáveis,
muitas vezes sem autoria explícita, esses homens
negociam sua legitimidade como repórteres da prisão
ao garantir acesso a informações consideradas
seguras em um cenário em que, até então, somente
existiam rumores.
A rede de informações do Evaristo de Moraes
pareceu bastante eficiente na divulgação de que a
equipe do Em Prol da Liberdade estava desenvolvendo
uma reportagem a respeito de benefícios legais a que
grande parte dos internos teria direito. Idealizada a
partir da idéia de jornalismo de serviço, esta matéria
contou com uma entrevista exclusiva com o
coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da
Defensoria Pública que respondeu a todos os
questionamentos do periódico. Ainda durante a
finalização da referida edição, essa matéria “vazou”
entre os presos que seriam o público-alvo de uma
publicação que ainda não havia sido autorizada pela
Secretaria de Administração Penitenciária para
impressão e circulação. Ao justificar o gesto de
vazamentismo, o interno responsável pela liberação
do conteúdo explicou que era impossível negar acesso
àqueles assuntos de interesse público. “Antes de ser
jornalista eu sou preso também. Sei o que aquelas
informações significam pros meus companheiros”2.
2
Fala de um dos internos que compõe a equipe do jornal.
Revista História - 48
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
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Revista História - 49
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
EM DEFESA DA SOCIEDADE: O PODER
Maiara Moser
Graduanda em História
(Universidade Regional de Blumenau)
Resumo
Este artigo intenciona analisar o poder, tendo como
base de estudo a leitura de determinadas aulas do
livro Em Defesa da Sociedade, de Michel Foucault. O
seu livro é dividido em aulas e para a elaboração
deste artigo foram estudadas duas destas aulas, a aula
de 7 de Janeiro de 1976 e a aula de 14 de Janeiro de
1976. Foucault nos abre as portas e nos convida a
tentativa de conhecer um pouco do que em suas
pesquisas concluiu sobre o poder. Tem-se como
objetivo neste artigo, uma compreensão mais clara e
mais objetiva do que para Foucault é o poder.
Palavras-chave: Poder, relações de força, discursos da
verdade.
Abstract
This article aims to analyze the power, based on the
study of certain classes reading the book In Defense
of the Society of Michel Foucault. His book is divided
into classes and for the preparation of this article
were obtained from two of these classes, the class of
January 7, 1976 and the class of January 14, 1976.
Foucault opens the door and invites us to attempt to
know a little of that in his research concluded about
power. It has the objective of this article, a clearer
understanding and more objective than to Foucault's
power.
Keywords:
Power, power
relations, discourses
of truth.
***
Introdução
O livro Em Defesa da Sociedade é o volume
que inaugura a edição dos cursos de Michel Foucault,
no Collège de France, sendo que esta edição reproduz
a palavra proferida publicamente por Foucault. As
aulas de Foucault foram gravadas, e depois passadas
para o escrito. Refere-se ao curso dos anos de 19751976.
Michel Foucault foi um grande pensador,
nasceu em Poitiers, na França, em 15 de outubro de
1926. Seu pai era médico, mas Foucault não seguiu a
carreira do pai. Michel Foucault se graduou em
Filosofia, e em 1949 se diplomou em psicologia.
Escreveu grandes obras como História da Loucura,
Vigiar e Punir, História da Sexualidade e outros.
Morreu no dia 25 de junho de 1984, com 57 anos.
Neste trabalho pretendo apresentar com o
estudo das duas primeiras aulas do livro Em Defesa
da Sociedade, um breve entendimento do que para
Foucault é o poder. Em relação ao poder, Foucault nos
traz muita coisa. Você já se perguntou o que é o
poder? Pois então, esta é uma das interrogações que
Foucault nos faz durante seu texto.
Inicialmente, Foucault nos fala em relação às
genealogias, que são anticiências, e que são contra os
efeitos centralizadores de poder impostos aos
discursos científicos. Mais adiante, Foucautl trata do
marxismo, onde diz que o marxismo subordinou o
poder à economia, Foucault discorda totalmente disto,
pois para ele o poder não depende da economia.
Seguindo se refere aos mecanismos de poder, aos
discursos verdadeiros a que somos submetidos, ao
poder como exercício, e finalizando se refere ao
surgimento de uma nova mecânica de poder.
Em defesa da Sociedade: Poder.
Foucault nos fala da genealogia, nos fala que
as genealogias são anticiências, não se tratando da
recusa do saber, mas da insurreição dos saberes. A
genealogia não é contra os conceitos de uma ciência,
mas é contra os efeitos centralizados de poder que são
impostos à instituição e ao funcionamento dos
discursos científicos, que são organizados em
sociedades como a nossa. “É exatamente contra os
efeitos de poder próprios de um discurso considerado
científico que a genealogia deve travar o combate.” 1.
FOUCAULT, Michel, Em Defesa da Sociedade, São Paulo, Editora
Martins Fontes, 2002, p. 14.
1
Revista História - 50
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
As pessoas se questionam sobre o que é ou não
é ciência, como é o caso do marxismo, citado no texto
por Foucault, que há anos vem sendo questionado o
fato de o marxismo ter sido ou não uma ciência, essa
mesma pergunta foi feita em relação à psicanálise e a
semiologia dos textos literários. A crítica que a
genealogia faria a nós, é o fato de sermos nós mesmos
quem fazemos do marxismo ou de qualquer outra
coisa, uma ciência. Foucault nos fala que antes de
querer saber se uma coisa como o discurso marxista
por exemplo, é ou não científico, devemos pensar na
ambição de poder que o fato de ser ciência traz
consigo. Ele ainda nos fala que quando vê pessoas
tentando fazer do marxismo uma ciência, elas não
demonstram que o marxismo tem uma estrutura
racional, ou que suas propostas, sua tese, dependem
de procedimentos de verificação, mas o que ele
percebe é que há uma certa imposição ao discurso
marxista. “Eu os vejo vinculando ao discurso
marxista, e eu os vejo atribuindo aos que fazem esse
discurso, efeitos de poder que o Ocidente, desde a
idade Média, atribuiu à ciência e reservou aos que
fazem um discurso científico”. 1.
Dentre todas as genealogias o que está em jogo
é o poder. Foucault interroga sobre o que é o poder,
com a pretensão de determinar quais são os diferentes
mecanismos de poder que são exercidos em níveis
diferentes da sociedade. “... a análise do poder, ou a
1
Idem. p. 15.
análise dos poderes, pode, de uma maneira ou de
outra, ser deduzida da economia?”.2.
Com essa pergunta Foucault quer nos dizer o
seguinte:
Não quero de modo
algum
suprimir
diferenças inumeráveis,
gigantescas, mas, apesar
e
através
dessas
diferenças, parece-me
que há um certo ponto
em comum entre a
concepção jurídica e,
digamos, liberal do
poder político – a que
encontramos
nos
filósofos do século XVIII
– e também a concepção
marxista, ou, em todo
caso,
uma
certa
concepção corrente que
vale como sendo a
concepção do marxismo.
Esse ponto comum seria
aquilo que eu chamaria
de ‘economismo’ na
teoria do poder. E, com
2
Ibidem p. 19.
isso quero dizer o
seguinte: no caso da
teoria jurídica clássica
do poder, o poder é
considerado um direito
do
qual
se
seria
possuidor como de um
bem, e que se poderia,
em
conseqüência,
transferir ou alienar, de
uma forma total ou
parcial, mediante um ato
jurídico ou um ato
fundador de direito... No
outro caso, claro, eu
penso na concepção
marxista geral do poder:
nada disso, é evidente.
Mas vocês tem nessa
concepção marxista algo
diferente, que se poderia
chamar
de
‘funcionalidade
econômica’ do poder. 3.
Quando Foucault fala do poder relacionado à
concepção jurídica, fala que neste caso o poder é algo
concreto, que todos detém, mas viriam a ceder, para
3
Ibidem. p.19,20.
Revista História - 51
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
assim constituir um poder, uma soberania política.
Em relação a concepção marxista de poder, quando
Foucault nos fala de funcionalidade econômica, ele se
refere que para os marxistas o poder seria uma
questão de economia, e que o marxismo subordinou o
poder a economia, Foucault não concorda com essa
concepção marxista, pois para ele o poder não
depende da economia.
“Para fazer uma análise não econômica do
poder, de que, atualmente, dispomos?” 1. segundo
Foucault dispomos de muita pouca coisa, diz que
primeiramente, dispomos da afirmação de que o
poder existe somente em ato, e que o poder não é
trocado, ou retomado, mas que ele é exercido, e há
uma outra afirmação que diz que o poder não é
manutenção ou recondução das relações econômicas,
mas, em si, é uma relação de forças.
Foucault nos fala que desde 1940-1971 ele
buscou tentar entender o “como” do poder, ou seja,
aprender seus mecanismos, entre os seus dois limites:
as regras de direito que delimitavam formalmente o
poder e o outro lado que seriam os efeitos de verdade
que o poder produz. Para esclarecer o que Foucault
está buscando ele nos faz a seguinte interrogação: “...
qual é o tipo de poder capaz de produzir discursos de
verdade que são, numa sociedade como a nossa,
dotados de efeitos tão potentes?” 2.
1
2
Ibidem. p. 21.
Ibidem. p. 28.
Em qualquer sociedade, seja como a nossa, ou
qualquer outra, várias relações de poder formam o
corpo social, essas relações não podem se estabelecer
ou nem mesmo funcionar sem uma produção, sem
um funcionamento do discurso verdadeiro. Foucault
nos fala que não há exercício do poder, sem uma
certa economia dos discursos de verdade que
funcionam através dele. Foucault ainda nos fala que
somos submetidos pelo poder à produção da verdade
e que só podemos exercer o poder por meio da
produção da verdade. Em todas as sociedades isso é
fato, mas para o autor a relação entre poder, direito e
verdade, na nossa sociedade é organizado de um
modo particular. Para assinar a intensidade e
constância disto ele nos fala que:
... somos forçados a
produzir a verdade pelo
poder que exige essa
verdade e que necessita
dela para funcionar;
temos de dizer a
verdade,
somos
coagidos,
somos
condenados a confessar
a verdade ou a encontrála. O poder não pára de
questionar,
de
nos
questionar; não pára de
inquirir, de registrar; ele
institucionaliza a busca
da verdade, ele a
profissionaliza, ele a
recompensa. Temos de
produzir a verdade
como, afinal de contas,
temos
de
produzir
riquezas, e temos de
produzir a verdade para
poder produzir riquezas.
E, de outro lado, somos
igualmente submetidos à
verdade, no sentido de
que a verdade é a
norma; é o discurso
verdadeiro
que,
ao
menos em parte, decide;
ele veicula, ele próprio
propulsa
efeitos
de
poder. 3
Segundo Foucault, nós somos julgados,
condenados, classificados, obrigados a tarefas, temos
que seguir uma maneira certa de viver ou até mesmo
a uma maneira certa de morrer, e isso tudo é em
função dos discursos verdadeiros, que trazem efeitos
específicos de poder.
3
Ibidem. p. 29.
Revista História - 52
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Quando Foucault fala da relação entre poder e
direito ele menciona as sociedades ocidentais, que
desde a idade Média, a elaboração do pensamento
jurídico se fez em torno do poder do rei. A pedido do
poder régio que se elaborou o edifício jurídico. A
personagem principal desse edifício jurídico é o rei. O
imperialismo romano, remete em partes a isso de que
Foucault nos fala, era o imperador romano quem
criava as leis, os direitos, sendo que ele tinha também
que se submeter as próprias leis que criava. Mas
acima de tudo, o poder do imperador era o mais
absoluto, não existia nada que superasse o poder do
imperador, pois ele tinha em mãos o poder de todo o
império. A soberania era o principal problema do
direito, pois o discurso e a técnica do direito tiveram
a função de disfarçar, o fato da dominação, para que
no lugar dessa dominação aparecesse os direitos
legítimos da soberania e a obrigação legal da
obediência.
Foucault, quando fala em dominação quer
dizer, as diversas formas de dominação que podem se
exercer no interior da sociedade, não se referindo ao
rei, mas aos súditos. “Não, portanto, o rei em sua
posição central, mas os súditos em suas relações
recíprocas: não a soberania em seu edifício único,
mas as múltiplas sujeições que ocorreram e
funcionam no interior do corpo social.” 1.
1
.Ibidem. p. 32.
Para Foucault devemos ter em mente que o
poder não é algo que se partilhe com aqueles que o
têm, ou o detêm, e aqueles que não o tem e são
submetidos a ele. Para ele, o poder deve ser analisado
como uma coisa que circula, ele nunca está
localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de
alguns, e nunca é apossado como uma riqueza ou um
bem.
O poder funciona. O
poder se exerce em rede
e, nessa rede, não só os
indivíduos
circulam,
mas estão sempre em
posição
de
ser
submetidos a esse poder
e também exerce-lo.
Jamais eles são o alvo
inerte ou consentidor do
poder, são sempre seus
intermediários.
Em
outras palavras o poder
transita pelos indivíduos,
não se aplica a eles. 2
Foucault nos fala da importância de não se
fazer uma dedução do poder partindo do centro a que
tentaria ver até onde ele chega, como se reproduz,
2
Ibidem. p. 35.
como se reconduz até a sociedade. Mas que seria
preciso se fazer uma análise ascendente isso significa:
Partir dos mecanismos
infinitesimais, os quais
têm sua própria técnica
e tática, e depois ver
como esses mecanismos
de poder, que têm, pois,
sua solidez e, de certo
modo, sua tecnologia
própria, foram e ainda
são
investidos,
colonizados, utilizados,
inflectidos,
transformados,
deslocados entendidos,
etc., por mecanismos
cada vez mais gerais e
por
formas
de
3
dominação global.
Foucault, usa um exemplo para deixar um
pouco mais de clareza em relação a análise
ascendente e a dedução. Como exemplo ele usa a
loucura, através de uma análise descendente da qual
ele discorda e se refere a dedução também. “... a
burguesia tornou-se, a partir do fim do século XVI e
3
Ibidem. p. 36.
Revista História - 53
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
no século XVII, a classe dominante. Dito isto, como se
pode deduzir daí o internamento dos loucos?”. 1. A
partir disto, surgirá uma dedução de nossa parte.
Foucault diz que deduzir, é sempre fácil, e é isso
exatamente que ele reprova. Diz que é fácil para nós
dizer que o louco, aquele que é visto como o inútil na
produção industrial, deva ser descartado. Mas, como
Foucault não concorda com isso, ele fala que o que se
deve fazer é ver, como historicamente, partindo do
começo, os mecanismos de controle interviram na
exclusão dos loucos. Pois assim, Foucault acredita que
se mostrar que, no fundo, o que a burguesia
necessitava, não era que os loucos fossem excluídos,
mas que o que lhes interessava e que a mobilizava,
não era o fato dos loucos serem excluídos, mas a
técnica e o próprio procedimento da exclusão, os
mecanismos de exclusão. Sendo assim não havia a
burguesia pensando que a loucura deveria ser
excluída, mas os mecanismos de exclusão da loucura,
que a partir de algum momento, teriam com isso
algum lucro econômico ou político. “A burguesia não
se interessa pelos loucos, mas pelo poder que incide
sobre os loucos.” 2. Isso pode ser visto como uma
técnica de poder.
Foucault nos fala de uma nova mecânica de
poder, que surgiu nos séculos XVII e XVIII, diz ele
que essa nova mecânica de poder incide sobre os
1
2
Ibidem. p. 36.
. Ibidem. p. 39.
corpos e sobre o que eles fazem, é um mecanismo de
poder que se exerce através da vigilância.
Esse novo tipo de poder,
que já não é, pois, de
modo
algum
transcritível nos termos
de soberania, é acho eu,
uma
das
grandes
invenções da sociedade
burguesa. Ele foi um dos
instrumentos fundamentais
da
implantação
do
capitalismo industrial e do
tipo de sociedade que lhe
é correlativo. Esse poder
não soberano, alheio
portanto à forma da
soberania
é
poder
‘disciplinar’”.3
As disciplinas, segundo Foucault, tem o seu
discurso próprio, o discurso da disciplina é o da
regra, o discurso da regra natural, sendo assim a
norma. “Elas definirão um código que será aquele,
não da lei, mas da normalização, e elas se referirão
necessariamente a um horizonte teórico que não será
o edifício do direito, mas o campo das ciências
humanas.” 4.
Para Foucault o que tornou possível o discurso
das ciências humanas, foi o enfrentamento de dois
mecanismos e de dois tipos de discurso muito
diferentes, de um lado, a organização do direito em
torno da soberania, de outro, a mecânica das coerções
exercidas pelas disciplinas. “De fato, soberania e
disciplina, legislação, direito da soberania e
mecânicas
disciplinares
são
duas
peças
absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais
de poder em nossa sociedade.” 5. Foucault diz que
para lutarmos contra o poder disciplinar, buscando
um poder não disciplinar, não devemos ir em direção
ao antigo direito da soberania, mas deveríamos ir em
direção a um novo direito, sendo assim
antidisciplinar.
Conclusão.
Ao final deste estudo, pode-se compreender o
que Foucault pensa em relação ao poder.
Primeiramente é necessário entender que para
Foucault, o poder por si só não existe, o poder só
existe em exercício, ele é uma relação de forças, onde
o mais forte vence, para Foucault não é
necessariamente o poder que submete algo ou alguém
a alguma coisa, mas o que realmente submete são as
4
3
. Ibidem. p. 43.
5
Ibidem. p.45.
. Ibidem. p. 47.
Revista História - 54
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
relações de força, as técnicas e os discursos da
verdade.
Os discursos da verdade para Foucault, nada
mais são do que as verdades a que as relações de
força, ou as técnicas de poder nos submetem. São
verdades que nos fazem acreditar em várias coisas, e
por mais que essas verdades possam ser
comprovadas, isto não significa que não poderia ser
diferente.
Quando Foucault se refere à concepção
marxista de poder, ele demonstra o quanto discorda
da mesma. Pois para os marxistas o poder é uma
questão econômica, mas Foucault não segue e nem se
quer concorda com isto, pois para ele o poder não
depende da economia, não está ligado a ela.
Enfim, o que deve ficar claro é que o poder só
existe em exercício, e que ele é uma relação de forças,
de técnicas, de ações, de discursos da verdade que
atuam em nós, no nosso comportamento, tudo isso
podemos chamar de mecanismos de poder. Como
exemplo de poder que se exerce, podemos citar o
poder que o professor exerce sobre seus alunos.
Concluindo o poder não é algo que existe por si só,
mas é um exercício, ele só existe enquanto se exerce,
é também uma relação de forças, onde o mais forte é
que tem o poder de submeter.
INFÂNCIA “DESVALIDA” E
CRIMINALIDADE FEMININA
DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 20 E 30
Maria Clara Pecorelli
Mestre em História Social/UFRJ
Resumo
O contexto deste artigo é o da "modernização
autoritária" brasileira do início do séc. XX, cujos
propósitos de racionalidade e eficiência estariam
acima da política e dos anseios (contraditórios?) da
população (mas em nome do seu "bem-estar"). Iniciase o processo de construção da “Cidade
Maravilhosa”, tendo como efeito paralelo (e
indesejado) a intensificação da “favelização” que
instaurou marcas profundas na modelagem física e
simbólica da cidade. Assim, fomos buscar dentro do
movimento reformista políticas de promoção social
voltadas à infância das camadas populares: ao invés
da escola, encontramos uma política de tutela e
estigmatização dos segmentos menos favorecidos.
Refletindo a então dominante criminologia positivista,
as fontes criminais utilizadas permitiram uma análise
da vida e das práticas cotidianas das jovens pobres e
sua criminalização.
Abstract
The context of this article is the "authoritarian
modernization" in Brazil in the early 20th century,
whose purposes of rationality and efficiency would be
above politics and the (conflicting?) desires of the
population (but in the name of its "welfare"). The
process of building the "Marvelous City" had begun,
with the side (and unwanted) effect in the
intensification of "slums" that brought deep marks in
the physical and symbolic modeling of the city. Thus,
we searched within the reform movement social
promotion policies aimed at children from lower
classes: instead of the school, we found a policy for
patronizing and stigmatizing the disadvantaged
segments. Reflecting the then dominant positivist
criminology, criminal sources used allowed an
analysis of life and daily practices of poor youth and
its criminalization.
***
Entre
os
Fenômenos
mais
apavorantes dos tempos d'agora,
derivando por uma parte da
dissolução familiar vigente e por
outro lado oriundo da crise
econômica
que
assinala
a
transformação
do
regime
capitalístico - o abandono da
infância aparece a moralistas, a
sociólogos e a criminólogos como
digno de toda a atenção, pelas
relações diretas que tem com a
criminalidade urbana" (Evaristo de
Revista História - 55
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Morais, "Crianças Abandonadas e
Crianças
Criminosas",
apud:
RIZZINI, Irene, in RIZZINI &
PILOTTI, 1995: 111; grifos nossos).
Apresentação do tema
Escolhemos iniciar este texto1 pela voz de um
observador contemporâneo bastante atento a uma
questão que, no período eleito pelo recorte temporal
da nossa pesquisa (anos 20 e 30), já terá se
convertido no que se chamou então de "problema do
menor". Trata-se de uma declaração do jurista
Evaristo de Morais, em obra datada de 1900, e que
nos pareceu de uma abrangência representativa ao
tocar, num mesmo parágrafo, em aspectos que
apareceram de maneira recorrente (mas poucas vezes
relacionados) nos debates reformistas do primeiro
período republicano, em especial nos discursos
médicos e jurídicos. Vinculando "criminalidade
urbana" com "abandono da infância", e esta com
"dissolução familiar" e "crise econômica", proveniente
de um novo regime ("capitalístico") ainda em
processo de instalação, o autor exemplifica o
entrelaçamento de ambos os discursos em que os
pressupostos e propostas do primeiro abriram
caminho para a atuação do segundo na efetivação de
O presente artigo baseia-se em nossa dissertação de Mestrado,
defendida na UFRJ com o título: Crianças “Desvalidas”, Criminalidade e
Trabalho no Rio de Janeiro dos anos 20 e 30, da qual foram extraídos
alguns trechos, além da redação inédita para o texto corrente.
1
uma estratégia de combate ao "problema do menor", a
que nos referimos acima, que é como passou a ser
entendida desde então a política voltada para a
infância.
A vida social urbana, especialmente nos
centros maiores e, em particular, na capital do país,
em processo acelerado de crescimento (demográfico,
econômico, etc.), tornava-se mais complexa e
assustadora para grandes parcelas das elites
governantes nas primeiras décadas da República. Era
um tempo de incógnita, de transição ... que não
escapou a um olhar crítico como o de Evaristo de
Morais. Nos saberes científicos deste momento,
colocados diante de tais desafios, destacava-se a
consolidação de uma medicina do comportamento
através de diversas vertentes: higienista, psicológica,
psiquiátrica, etc., ao lado da implantação das
especialidades médicas infantis: puericultura,
pediatria, psicologia infantil. Não é difícil
compreender-se como uma tal saber tangencia o
outro, no campo jurídico. "A infância passa a ser o
fundamento da profilaxia do mau caráter, do crime,
das más tendências, maus hábitos, comportamentos
defeituosos, a fim de que, a partir dela, passem a
triunfar a normalidade (...) e a harmonia social, (...)
dois polos da mesma esfera" (ALBERTI, 1984: 74).
O foco do nosso trabalho não é a atuação da
corporação médica, a qual contribuiu no balizamento
dos marcos em que se pensava o controle e o
disciplinamento de um setor da infância percebida
como "desvalida", "perigosa" ou "em perigo de o ser",
num "período profícuo da história da legislação
brasileira para a infância", como constatou Irene
Rizzini (Idem, Ibid). Na verdade, nosso objeto de
estudo diz respeito à análise da atuação do primeiro
Juízo Privativo de Menores (o da capital do país), no
período inicial após a sua criação na década de 20 –
regulamentado pela lei nº 16.272 de 1923 e,
posteriormente, pelo Código de Menores de 1927. O
estabelecimento deste órgão foi resultado de um
longo debate nos meios intelectuais, principalmente
médicos e jurídicos, mais intenso a partir do final do
século retrasado, pretendendo-se sanar uma suposta
omissão pública no atendimento a setores da
sociedade vistos como deficitários ou “desvalidos”,
em suma, “inferiores”, com uma política estatal
“cientificamente” organizada. Embora não sem
disputas ideológicas diversas, tornou-se consenso,
paulatinamente, no movimento reformista do
primeiro período republicano e refletido nas
publicações acadêmicas e jornalísticas, ao mesmo
tempo que construído por leis, a visão de que as
mudanças econômicas e sociais – como a urbanização
crescente, o “industrialismo”, etc. – acarretam
mudanças nos valores morais da família, cuja maior
vítima seria a infância, bastando observar o
espetáculo degradante das ruas. Essa situação
tornaria as crianças potencialmente criminosas,
justificando uma “desprivatização” da família. Uma
causalidade “moral” dos males sociais fundamentou a
Revista História - 56
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
emergência de uma abordagem terapêutica, de base
médica, de prevenção e cura – para isso reclamando
um profundo esquadrinhamento das condições de
vida dos segmentos da sociedade mais expostos à
“desorganização” e à “anomia”.
Os métodos de classificação, categorização e
intervenção foram buscados na ciência do tempo,
positivista e naturalista – mas a instituição que se
especializou na “tecnologia do exame” foi o aparelho
judiciário, locus por excelência do inquérito e da
investigação do “desvio” às normas. No meio jurídico,
após vários projetos de lei, tornaram-se consenso
algumas idéias básicas das medidas a serem adotadas
nesse campo, segundo Irene Rizzini (1995: 124): a
tutela oficial do estado, o papel proeminente do juiz e
do tribunal especializados, a fixação da idade penal
em 14 anos, o escrutínio sobre a vida do menor e de
sua família, corrente e passada, controle sobre essa
última em função do pátrio poder e criação de
estabelecimentos diferenciados de prevenção e
reforma, segundo a avaliação de “abandonados” ou
“delinqüentes” – concepções depois consagradas na
lei. Consolida-se a noção, que permaneceu quase
inalterada até hoje, de responsibilização da família e,
de forma mais genérica, a “condenação” do meio de
origem das crianças e adolescentes dos estratos mais
pobres.
Fontes de pesquisa
No artigo 1º do Código de Menores de 27
delimitava-se a população abrangida pelas suas
medidas, o “objeto e fim da lei”: “O menor, de um ou
outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver
menos de 18 anos de idade, será submetido pela
autroidade competente às medidas de assistência e
proteção contidas nesse Código”. Este é o texto
completo do artigo, único do Capítulo Primeiro, para
o qual parecia caber ao menor ser abandonado ou
delinqüente, bastando à autoridade competente, no
caso o juiz ao final da instrução processual,
determinar uma das duas possibilidades para lhe
providenciar o destino apropriado, auxiliado na sua
decisão por “precisas informações, a respeito do
estado físico, mental e moral dele [menor] e da
situação social, moral e econômica dos pais, tutor ou
pessoa de sua guarda”. Tais informações, fornecidas
pelos funcionários do órgão – previstos na lei 10
comissários de vigilância e 1 médico – eram exigidas
para os processos de ambos, abandonados ou
delinqüentes, inclusive para aqueles a quem se
consagrou a inimputabilidade penal absoluta, os de
idade inferior a 14 anos. A investigação ampla e
minuciosa1 a que eram submetidos as crianças e
jovens apreendidos com base nas definições da lei,
A ênfase dada a essa investigação pode ser avaliada pelo número de
artigos do Código em que essa determinação aparece nos capítulos VI e
VII
1
corresponde ao que foi denominado de inquérito
social por Donzelot (1986), dentro dos mecanismos
individualizantes de que trata a antropologia
criminal, cujos paradigmas se inseriam na chamada
criminologia positivista, de origem lombrosiana.
Aliás, segundo as concepções desta, o que importava
era antes o “deliqüente” do que o delito, mais as
circunstâncias da sua vida do que as do ato praticado,
este mais como valor sintomático da personalidade do
indivíduo e, por decorrência, como “qualificação” do
seu meio de origem. Ganhando um espaço irrefutável
e cada vez mais importante, o “novo” inquérito
promove a transformação da justiça do delito na
“justiça do comportamento”, instância, portanto, de
normalização social.
São este questionários, presentes nos processos
desde a fundação da Justiça de Menores, as principais
fontes primárias da nossa pesquisa. Optamos pelos
processos do 2º Ofício, uma vara criminal, onde o
cumprimento da determinação legal de investigação
dos indiciados nos pareceu mais regular,
proporcionando séries mais completas do material.
Por outro lado, consideramos que os processos
criminais nos permitiriam o acesso aos mecanismos
de apreensão de uma parcela da população
considerada em situação de ameaça social. Foram
Revista História - 57
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
quase 400 processos referentes aos anos de 1925,
1928 e 1932 e alguma coisa de 19371.
Desde já salientamos que, tratando-se de um
estudo envolvendo a criminalidade, real ou suposta,
aceitamos o pressuposto geral segundo o qual “não é
possível” considerar a criminalidade como um dado
pré-constituído às definições legais de certos
comportamentos e certos sujeitos” (BARATTA, 1986:
22). Tal abordagem, constituída em oposição ao
paradigma etiológico (correcionalista) informado
pelo modelo positivista, parte de uma perspectiva
macro-sociológica como fator central para o estudo e
a interpretação da conduta desviada, e é beneficiária
das obras de autores como Foucault (1977) e
Donzelot, que questionaram e desnaturalizaram a
noção de delinqüência, trazendo à luz a dimensão
que antes permanecia oculta: a intervenção social,
fruto ela mesma da contingência histórica.
O tratamento das fontes compreendeu o
levantamento e cruzamento dos dados seriais
constantes dos documentos, os quesitos dos
questionários, preenchidos pelos técnicos judiciários.
Tais quesitos abrangiam os dados pessoais e
profissionais dos jovens e suas famílias, que
culminavam em um texto qualitativo com o título
Conceito do Comissário de Vigilância, por nós
também interpretado a respeito da mentalidade
Balizas cronológicas: um ano após o começo do funcionamento do
Juizado, um ano após a entrada em vigor do 1ºCódigo de Menores (27)
e após o início dos anos 30, período de crise.
1
vigente. Sem pretender reconstituir a fala e as
representações dos jovens das camadas populares,
objetivamos detectar “algumas regularidades que
permitam
perceber
valores,
representações,
comportamentos e normas sociais” (B. Fausto, Crime
e Cotidiano, apud RIBEIRO, 1993: 6) que circulariam
na sociedade mais ampla. Os questionários
pretendiam traduzir a “realidade”, contribuindo para
a construção e reificação de crenças e valores sociais
(relativos à infância). Mas toda essa “manipulação”
de idéias e representações ou “tecnologia do saber”
não se opera no vácuo. Não se pressupõe que esse
exercício de controle e vigilância, ou seja, de poder
possua uma “absoluta eficácia aculturante”, pois não
pode prescindir de uma “sinatonia com as táticas de
consumo e de utilização daqueles [que tem] por
função modelar” (CHARTIER, 1990: 60).
Estamos, assim, expondo resumidamente a
perspectiva do fordismo gramsciano adotada, quanto
à internalização dos valores burgueses pelas classes
operárias junto à sua sujeição ao trabalho fabril. No
nosso caso, será verificado o processo de construção
das “modernas” concepções de infância, quando
ocorre o confronto e a disputa pelo domínio de uma
determinada concepção, envolvendo as noções de
infância trabalhadora x infância delinqüente (V.
ASSIS, 1997 e BRAGA, 1993, para o contexto
brasileiro, e ARIÈS, 1981, sobre a história da
constituição da noção de infância). Porém, não
visamos o pensamento intelectual dominante, mas a
apreensão de práticas, particularmente as judiciais,
que emergem dos documentos através de
representações que operam historicamente no
interior da sociedade, construidas coletivamente.
A partir do que foi exposto, iremos destacar
agora a parte do material coletado que versou sobre
os dados pessoais e familiares dos jovens selecionados:
os perfis percebidos segundo a cor, sexo e
composições familiares. A proposta se resume a
apreender como eram “traduzidos”, na prática
cotidiana
judiciária,
os
conceitos
de
desvio/delinqüência a partir dos jovens retidos –
considerando as imagens e representações mais
recorrentes, além de comparar as proporções dos
delitos, de acordo com os mesmos critérios, com as
sentenças. Poder-se-á verificar determinados préconceitos sobre “desestruturação” familiar, cor e sexo
que indicariam uma ameaça potencial à sociedade.
Perfil das crianças e jovens criminalizados – Os
“filtros” da Justiça de Menores
A) A imagem: cor e sexo
Um dos conceitos mais disseminados e de
maior longevidade nas teorias e análises da
criminalidade, bem como no senso comum, diz
respeito à determinação de uma debilidade,
biológica/racial ou cultural, aos agentes do crime, em
oposição aos indivíduos “normais”, de forma a
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
construir um “outro” com características distintivas
dos demais integrantes da sociedade. Historicamente,
tais teorias correspondem à criminologia positivista –
opondo-se ao direito clássico – esboçada desde
meados do século retrasado e consolidada no século
passado. Nessa visão, o delito seria determinado por
causas biológicas, especialmente as hereditárias. A
antropologia criminal (lombrosiana), condenando a
suposta “metafísica” da livre vontade individual1,
propõe uma gradação de responsabilidade segundo
fatores
biológicos
e
(segundo
posteriores
desdobramentos da teoria) psicológicos e sociais,
dedicando-se a construir uma tipologia dos
criminosos2.
Para essa concepção determinista da realidade,
cada indivíduo é um caso, dando-se mais ênfase
menos às circunstâncias dos delitos do que às
características pessoais do “delinqüente” – de modo a
avaliar sua suposta periculosidade “natural”. Na
história penal brasileira3 do início do período
republicano conviveram as duas concepções, clássica
e positivista, alternando-se em cada etapa do processo
– seleção, inquérito, acusação e julgamento. Segundo
Ribeiro contribuíam para a escolha “provavelmente
fatores de hierarquização, estigmatização e
De acordo com a concepção liberal do delito como um ente jurídico,
ato da livre e plena responsabilidade do indivíduo.
2 A abordagem lombrosiana foi consultada em BARATTA, 1986.
3 E dos paradoxos da nossa cultura de modernização autoritária e
excludente.
1
diferenciação de caráter puramente sócio-culturais”
(1993: 37).
Passemos aos dados: as tabelas abaixo permitirão
a caracterização de alguns aspectos da parcela da
população investigada.
Observando-se a Tabela 1, verifica-se que as
crianças que passaram pela justiça de menores nos
anos apontados são em, em sua maioria, brancas,
numa proporção aproximada à indicada pelo Censo
na tabela seguinte, assim como seus pais. Desse
primeiro resultado, infere-se que a situação de
ameaça e alarme social precebida nas primeiras
décadas do séc. XX “naturalmente” associada a
indivíduos negros e pardos não se justifica, a julgar
pelo estudo da amostragem pesquisa na instituição
pública encarregada de seu controle.
Deixemos de lado os dados sobre
nacionalidade, que não interferirão no foco que
estamos imprimindo a esta comunicação, e passemos
à cor das meninas. Em primeiro lugar, salta à vista o
predomínio da população masculina no universo
“criminal” estudado, ficando as meninas com cerca
de 10% da amostragem dos documentos; e, entre elas
a prevalência das jovens negras e pardas,
especialmente as negras, o que é absolutamente o
oposto do que ocorre na população masculina em
estudo e na da cidade do Rio de Janeiro, segundo o
Censo da época. Quanto ao primeiro ponto, não é de
surpreender, visto que é notório e sabido, pelos
estudos do tema (por exemplo PERROT: 1989 e
ZALUAR: 1993, respectivamente França e Brasil), que
as estatísticas mostram o “domínio” masculino da
criminalidade. Na ausência de um maior número de
pesquisas sobre a criminalidade com enfoque quanto
ao genero, podemos afirmar – com nossos resultados
– que a preocupação maior das agências
governamentais repressivas no período em tela recaía
sobre os rapazes, talvez porque olhassem com mais
interesse para a formação da juventude trabalhadora
– portanto, masculina.
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
E, provavelmente por isso, emerge dos nossos
dados uma maioria de moças não-brancas que, como
será visto logo adiante, se ocupam em grande parte
das atividades domésticas – aliás, independente de
cor. São essas “serviçais” da casa “de boa família”
que são pilhadas pelas redes policiais/judiciárias.
Nessas relações e conflitos patrões/criadas, o índice
maior de delitos será especialmente o dos crimes
contra o patrimônio (furto), numa taxa maior do que
a verificada para a totalidade dos processos
analisados.
"desviantes", pelas instituições policiadoras, não são
destituidas de raízes familiares. Ao serem inquiridas,
apontam para a existencia, em 87.4% dos casos, de um
ou ambos os progenitores. O perfil familiar destes nãoórfãos aparece com maior clareza na proxima tabela,
onde é discriminado o estado civil dos pais,
configurando-se assim os tipos de família em função do
número de cônjuges e da legalidade da união.
vezes através de suas investigações nas vizinhanças ou
em locais tidos como relevantes. É desnecessário dizer
que não pretende retratar a "realidade" dos fatos, mas
sim como estes sao "lidos" ou descritos pelas partes
interessadas.
B) Situação Familiar – As crianças, seus pais, seus
lares
Percebe-se - já nessa divisão mais simples - que
as crianças recolhidas, devido a comportamentos
Tendo em vista apenas o total dos individuos
não-órfaos (271), observa-se que o percentual de
crianças provenientes de familias completas (com
ambos os progenitores) ultrapassa os 60%. Na outra
ponta, as crianças que se originariam de "lares
desfeitos", compreendendo um unico cônjuge nãoviúvo (separado), correspondem a 10.0% do mesmo
universo. Convém ressaltar que o painel familiar está
montado com base nas informações prestadas pelas
próprias crianças, ou por seus progenitores,
endossadas pelo Comissário de Vigilância, muitas
Não é necessário alongar-se demasiadamente
na análise deste quadro. Nota-se com nitidez a
"desvantagem", do ponto de vista da "estabilidade",
das famílias dos jovens não brancos (a referência de
cor foi tomada a partir das criancas e não de seus
pais). Entre os brancos, a família completa oficial
entra com uma taxa de quase o dobro das famílias
negras e pardas; assim como a taxa de orfandade é
maior entre os últimos, sugerindo um maior índice
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de mortalidade nessa população. Outro dado
“alarmante” seria o de uniões consensuais, com
taxas mais altas nas famílias não-brancas.
Nos três grupos de cor, os jovens
resguardados pela proteção proveniente da família
são maioria. Porém, também neste quadro o grupo
branco apresenta dados mais "favoráveis" no que
tange à "organização" familiar.
C) Dos delitos e das penas
Por não ser possível aprofundar a análise
desse tópico demonstrando exaustivamente os dados
colhidos, vamos apontar somente os resultados e
interpretações que elaboramos na nossa pesquisa
original. A partir do cruzamento dos dados,
verificamos com mais clareza o que havíamos dito
acima a respeito do peso maior do preconceito
incidindo sobre os negros, o qual, contribuindo para
aprofundar o estigma racial, não contribui menos
para reproduzir as relações sociais da sociedade
carioca e suas hierarquizações - perpassadas por
seculares dicotomias de cor. Praticamente a metade
dos jovens negros, ao serem confrontados com o
Juízo, foram retidos para uma pena "regeneradora",
que os pudesse "curar" para um futuro melhor como
cidadãos e os "educar" dentro de profissões prédeterminadas, oferecidas pelos cursos dos institutos
reformadores. Quanto aos jovens brancos,
pertencentes ao mesmo universo social e econômico
dos seus colegas de "desvio", receberam penas de
internação em menos de 20.0% das vezes; já os
pardos se situaram numa posição intermediária
(35.0%), embora numa proporção superior à dos
brancos. Sem contar que aos jovens não brancos
foram designadas menos condenações que não
acarretaram internação; esse tipo de condenação,
aliás, às vezes ocorria por excesso de lotação dos
reformatórios.
É preciso, porém, que seja enfocado mais de
perto o tipo de delito cometido por maioria negra,
que vem a ser aquele contra a propriedade1: pudemos
verificar que foi o que mais produziu internação. Os
crimes sexuais e os crimes de sangue foram
perpetrados por uma maioria branca (quase 80% em
cada tipo, dos processos analisados), invertendo-se a
teoria da suposta “sexualidade desenfreada” dos
negros, bem como de sua suposta periculosidade; mas
o que chama a atenção é a baixa proporção de penas
imputadas aos jovens brancos, autores desses crimes
– tendo em vista as metas do tribunal especializado. E
investigando um pouco mais, verificamos que todos
os indícios apontam para uma repressão maior
(penalização)
daqueles
indivíduos
menos
“protegidos” pela família nuclear completa. Se
formos nos deter na quesito de qual sexo predominou
nas condenações, a surpresa cresce. Identificamos
que, ao final dos processos, aproximadamente cerca
de 45% das jovens receberam sentença condenatória
(do total das indiciadas), ao passo que os rapazes,
dentro do seu universo de gênero, ficaram retidos em
25% do total. Talvez se possa explicar este resultado
pela pressão moralizadora maior sobre as moças,
ocultando mais ainda as condições de pobreza. A
Justiça de Menores propunha-se à “salvação” da
infância, mas acabou, no período estudado, como um
órgão de controle e repressão social, influenciado
pela ideologia do “branqueamento” – e não por um
conceito de cidadania plena e universal.
Os crimes contra a propriedade alcançaram 40% dos processos que
foram adiante.
2
1
Jovens domésticas na mira da lei
Há que se compreender o porquê deste "zelo"
excessivo com relação às jovens domésticas, e não só
às da Zona Sul2, mas a todas em geral. Ser-nos-ia
impossível, tendo em vista o escopo deste trabalho,
Onde se localizava a maioria das residências patronais das jovens
pesquisadas
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
fazer uma análise aprofundada a respeito da
moralidade sexual vigente e atuante, presente no
discurso reformista do anos 20 e 30. Abordagens a
esse respeito já vêm sendo feitas na área da
historiografia de gênero, das quais as mais
representativas se inserem no campo do estudo da
criminalidade, tais como as de Martha Esteves
(1989), Raquel Soihet (1989), Sueann Caulfield
(1993 e 1994), ou da prostituição, como o trabalho
de Magali Engel sobre "meretrizes e doutores" (1990),
não consultado aqui. Para os fins a que nos
propomos, quais sejam, delinear de forma sintética as
imagens dominantes a respeito das moças pobres e
criminalizáveis, nos serviremos, principalmente, do
sugestivo artigo de S. Caulfield (1993), denominado
Getting into Trouble: Dishonest Women, Modern
Girls, and Women-Men in the Conceptual Language
of "Vida Policial", 1925-1927, título que, numa
tradução aproximada, ficaria: "Metendo-se em
confusão: mulheres desonestas, moças modernas e a
relação mulheres/homens na linguagem conceitual
de 'Vida Policial', 1925-1927".
Vida Policial foi uma revista de curta duração
mas de intensa militância na difusão de conceitos tais
como moralidade, normalidade x desvio, proteção dos
valores familiares e, portanto, "da nação", etc., tendo
como suporte teórico e conceitual as últimas
descobertas da criminologia e da medicina legal, à
serviço de uma "polícia científica": "a moldura
conceitual que predominava em 'Vida Policial'
combinava as teorias da depravação herdada e da
inferioridade natural feminina com aquelas que
destacavam os traços negativos adquiridos através da
exposição a influências imorais" (CAULFIELD, 1993:
148). Dirigida por um advogado criminalista
(Waldemar Figueiredo) e um capitão de polícia (Raul
Ribeiro), seu público alvo era não só a própria polícia
mas a população em geral; para divulgar suas
prescrições a respeito das atitudes e condutas morais
apropriadas, os editores lançaram mão de artigos
escritos por autoridades legais proeminentes como
Evaristo de Morais e Roberto Lyra, e, mais
frequentemente, por especialistas acadêmicos no
campo da medicina e da criminologia - em destaque
a antropologia criminal lombrosiana. Pela análise do
material fornecido pela revista (editoriais,
reportagens criminais sensacionalistas, comentários e
estórias ficcionais detetivescas, etc.), a autora pôde
verificar que a noção de gênero "estruturava o
sistema conceitual do conhecimento criminológico e
que a sexualidade era uma preocupação básica no
trabalho de imposição da lei" (Idem, Ibid.). Não são
outras as conclusões de Esteves e Soihet, por exemplo;
ademais, tais autoras, além da que estamos utilizando,
situaram as políticas públicas relativas à repressão
policial e jurídica das primeiras décadas republicanas
- dentro das quais a que envolvia as mulheres, tanto
no papel de ofensoras como no de vítimas,
principalmente de abuso sexual - no contexto de
"modernização autoritária" promovida então, de base
ideológica "cientificista" e fundamentada em idéias de
racionalidade e eficiência como estando acima da
política e dos anseios (contraditórios?) da população
(mas em nome do seu "bem-estar"). Sintonizada com
o seu tempo, os objetivos da revista Vida Policial
ultrapassavam os da "pedagogia" imediata quanto à
moral e os bons costumes: visava angariar para a
corporação que representava a simpatia e o prestígio
públicos, uma vez que a mesma não gozava de boa
fama no seio da sua clientela (a esse respeito, v.
também Bretas, 1995) .
A revista publicou, enquanto durou,
incontáveis artigos sobre decoro público, sexualidade,
honra pessoal e familiar, e muitos outros desse
quilate, mas o que mais nos chamou a atenção - aliás,
a atenção de S. Caulfield, que nós aproveitamos - foi
uma seção intitulada "Eles e Elas", de periodicidade
semanal como a própria revista. Todo o linguajar que
associava
"doença,
depravação,
penetração
estrangeira, mulheres 'desonestas' e a ruína da família
e da nação" (Idem: 154) figurava em tal seção, em
reportagens cujas "estrelas" eram empregadas
domésticas indiciadas por furto contra seus
empregadores, inclusive ilustradas por fotos criminais. Fazia-se uma verdadeira e contínua
campanha contra a ameaça dessas "criminosas" e seus
parceiros, seres que colocariam em perigo a
"tranquilidade do lar". Ameaça suposta e, para
Caulfield, injuriosa, já que nunca eram anunciados os
vereditos dos processos respectivos. Os homens eram,
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
na maioria, suspeitos de vários tipos de vigarice,
pequenos furtos, fraudes, falsificações e roubo. E esses
indivíduos poderiam obter acesso às "casas de família"
justamente por meio das "criadas". A grita era
enorme, e o que mais parecia preocupante aos
editores não eram os delitos em si mas o que
poderiam significar, na sua visão: "deslealdade",
"cinismo" e "traição" àqueles que as haviam acolhido.
Com o propósito de auxiliar as "boas
famílias" a reconhecer o perigo e identificar naqueles
que batiam à sua porta em busca de um simples
emprego doméstico os que eram criminosos em
potencial ou "de fato", as reportagens abusavam de
perfis apavorantes, recorrendo às categorias
criminológicas conhecidas de tipos desviantes e
patológicos. Além de propiciar o obscurecimento das
origens do conflito social ao responsabilizar a
"natureza" dos indivíduos como fonte de todos os
males, a revista reforçava a construção de imagens do
desvio e da respeitabilidade fundamentadas por
categorias de raça e gênero. Sobre as moças com
emprego doméstico (havia rapazes nesta função,
ainda que poucos - 35% nos nossos dados relativos à
tal ocupação) recaíam as cargas maiores da
difamação calculada que a revista desenvolvia na sua
empreitada "educativa". Eram facilmente tidas como
prostitutas ou prostituíveis, responsáveis pelo abuso
sexual de que eram habitualmente presas. No seu
livro, Martha Esteves demonstrou que o recurso a
noções desse tipo pelos advogados que defendiam os
suspeitos como "defloradores", disseminadas na teoria
e prática jurídicas, era a tônica geral. Nos processos
de defloramento por nós encontrados na nossa
pesquisa, invariavelmente envolvendo jovens de
situação social oposta, também.
Nas teorias da nova criminologia
positivista, cujo pilar básico eram os "aspectos
familares e hereditários do crime" (BRETAS, 1995:
206), era reservado à mulher um "poder" imenso na
sociedade, responsável que era pela reprodução e
educação das gerações futuras. No último capítulo de
sua tese, denominado Policing Women, Bretas
ressalta que um fato pouco reconhecido nos estudos
criminais sobre as ocorrências envolvendo mulheres
é "o importante lugar que ocupavam [esses tipos de
caso] entre os deveres policiais" (Idem, Ibid.),
demonstrando o quanto tais noções já estavam
apropriadas pelas diversas práticas das políticas
públicas, além das mais conhecidas, como as médicas
e jurídicas. Sem contar que ocorrências criminais em
geral eram e são tidas como "apelativas" o bastante
para interessar à imprensa - e inúmeros exemplos
ilustram os estudos a que já nos referimos, mas
nenhum trabalho de caráter histórico trata
exclusivamente da relação entre o papel da mídia na
divulgação dos casos e, com estes, das noções e
conceitos correntes a respeito dos papéis sociais e
sexuais de mulheres, homens, crianças e
adolescentes.
No entanto, este papel não deve ser
negligenciado, uma vez que, formadora da opinião
pública, a imprensa contribuía e contribui
pontualmente na criminalização de estereótipos,
majoritariamente associados aos signos de classe e
pobreza. A "demonização" que a imprensa tem
produzido ao longo do tempo sobre determinados
grupos da sociedade só varia, ao que parece, com
relação aos eleitos. Tomamos emprestado de Vera
Batista (1996) o termo "demonização", que ela
emprega para o universo do atual tráfico de drogas
no Rio de Janeiro de forma bastante sugestiva. De
acordo com esta autora, na conjuntura brasileira de
1978 a 1988 houve um "deslocamento do inimigo
interno,
do
guerrilheiro/terrorista
para
o
bandido/traficante. A mídia se encarrega de esculpir
o novo inimigo público, o traficante armado. O
estereótipo do bandido vai-se consumando na figura
de um jovem negro, funkeiro, morador de favela"
(BATISTA, 1996: 233). Paralela à "aceitação do
consumo social e da cultura das drogas" (Idem, Ibid.),
há uma "demonização" daqueles que exercem o
tráfico na sua ponta menos oculta: a distribuição,
efetuada pelos jovens dos morros, sujeitos, graças
também (mas não só) a essa exposição, à corrupção
policial e ao extermínio. Na década de 20 a
demonização em voga na imprensa recaía sobre as
empregadas domésticas, além de outro serviçais e
subalternos, o que pode nos parecer simplório hoje mas nos leva a perguntar se era o produto, o reflexo,
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
dos contrastes sociais gerados não só pela eternização
de padrões econômicos excludentes, já fartamente
reconhecidos, mas também pelos da urbanização
elitista carioca (e brasileira), que instala a mais
extremada miséria no seio da mais extremada
riqueza, a "desordem" em meio à mais enganosa
"ordem".
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
O ADVENTO DA PRISÃO MODERNA E O SÉCULO
XIX: A EUROPA E O RIO DE JANEIRO
Marcelo Coimbra Biar
Mestre em Serviço Social (UERJ)
Doutorando em História (UERJ)
Resumo
O presente trabalho faz parte das investigações
iniciais do curso de doutorado em História Social, na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Seu objetivo é comparar a realidade européia e
brasileira, mais especificamente fluminense, no
decorrer do século XIX, quando do advento da prisão
como pena de privação de liberdade. Para tal,
confrontamos a realidade escravista fluminense, com
a sociedade burguesa européia, em processo de
consolidação, tendo individualismo e liberdade como
categorias privilegiadas para nossa análise.
Percebemos, com isso, que, a despeito da concepção
prisional das prisões ter sido assimilada igualmente
nos espaços confrontados, na Europa ela representava
uma parte coerente do processo de afirmação
burguesa, enquanto que no Brasil, era assimétrica à
prática escravista.
Palavra chave: prisão, indivíduo, liberdade
Abstract
This work is part of the initial investigations
undertaken in the doctoral course in Social History at
the Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Its goal is to compare the European and
Brazilian realities, and within this the Rio de Janeiro
State’s during the nineteenth century by the time of
the creation of imprisonment as a penalty of
deprivation of liberty.
We confront to this purpose the slave life of
Rio de Janeiro with the European bourgeois society in
the consolidation process, with individualism and
freedom as privileged categories for our analysis. We
realize, therefore, that despite the design of prisons
had been treated equally in the spaces confronted, in
Europe it represented a coherent part of the process
of affirming bourgeois, while in Brazil, was skewed
toward the practice of slavery.
***
O advento da prisão moderna e seu tempo
Os estudos sobre as prisões ganharam vários
adeptos em todo o mundo, a partir da segunda
metade do século XX. Contudo, nas duas últimas
décadas, com a violência ocupando um lugar de
destaque no cotidiano e com o fato da população
carcerária ter dobrado em todos os países (Wacquant,
2008), estes estudos se impuseram como urgentes.
No presente trabalho, buscamos entender a
prisão moderna, seu papel na ordem estabelecida, e
seu desempenho na sociedade européia e
brasileira/fluminense,
para,
a
partir
das
peculiaridades percebidas, avançarmos sobre a
análise de nossa sociedade e da forma como essa
prisão construiu o nosso presente.
A obra de Foucault pode ser dividida em
empreendimentos genealógicos e arqueológicos, onde
o autor se dedica a analisar a origem e o
funcionamento, respectivamente, de estruturas que
reproduzem relações de poder.
Em Vigiar e Punir, obra que versa sobre as
prisões modernas, Foucault (1987) associa
diretamente o surgimento da pena por reclusão à
passagem do Antigo Regime à sociedade capitalista. É
na passagem do século XVIII para o XIX que,
lentamente, e respeitando a dinâmica de cada país, o
corpo do condenado deixa de ser o alvo da punição
para que seja atingido o delito. Assim, ao invés do
castigo corpóreo, passa-se a privar o criminoso
daquilo que recém assume o status de bem maior – a
liberdade. Até então, a reclusão, ou mesmo a prisão,
eram espaços existentes onde o criminoso era
recolhido até o momento efetivo do cumprimento da
pena, normalmente marcada pelo suplício em
público. Essa mudança, como o próprio autor nos
aponta, não se afirma por uma mudança de
consciência da sociedade ou aumento do aspecto
humanitário. Para além dessas questões subjetivas,
Revista História - 65
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
está a transformação da sociedade que agora passa a
se alicerçar por valores burgueses. A naturalização do
processo histórico foi um importante elemento
ideológico para a construção da hegemonia da classe
emergente. Apoiada em valores positivistas, e por
absoluta antítese ao ideário do Antigo Regime, tal
preceito defendeu o progresso natural da história
como afronta ao poder do monarca que, visto por
eles, era anti-natural, imposto. Afirmava-se, ainda, a
necessidade de uma igualdade jurídica entre os
cidadãos. Só assim, acreditavam, seria possível
viabilizar tal progresso. Livres do julgo limitador do
déspota, os indivíduos progrediriam naturalmente.
É preciso que se perceba que a referida naturalização
do processo histórico ganha em coerência ao
despersonalizar as relações de dominação, com a
saída de cena do monarca. Dessa forma, sem a figura
direta, pessoal, do opressor, fica mais fácil crer no
curso inevitável da história, já que a dominação
impessoal através das relações de produção se
apresenta de forma inédita e sofisticada para o olhar
do cidadão senso comum. Saídos de uma relação em
que o opressor tem nome, trono e coroa, o cidadão
comum não consegue percebê-lo como tal em uma
sociedade onde todos, juridicamente, são iguais. A
desigualdade e demais agruras das relações sociais de
produção, sem autor, se enquadram no hall dos feitos
naturais da história. Dessa forma, saem absolvidos,
não só os setores dominantes da sociedade, como,
principalmente, a forma pela qual ela se organiza.
Para completar tal quadro, a aceitação do processo
histórico de forma acrítica gera a conseqüente idéia
de anulação do homem enquanto sujeito histórico.
Crendo na sua passividade, tal postura se apresentará
nas ciências sociais, desenvolvendo o mito na
neutralidade científica retroalimentando a idéia do
homem
observador
passivo
da
sociedade
(Lowi,1988).
É nesse contexto, de construção de uma ordem
de diferenças naturalizadas, que perceberemos a
pertinência das prisões modernas. Para tal análise
partiremos da exposição de Foucault sobre a prática
dessas prisões, para então entendê-las como
instrumentos da nova sociedade em construção.
O suplício imposto ao condenado, tortura que
muitas vezes levava a morte, em público, colocava o
Estado em uma difícil posição. O criminoso, ao ser
anunciado, recebia toda espécie de protestos daqueles
que se agrupavam para ver sua desgraça. Contudo, o
desenrolar da penalização, marcada por excessiva
violência, acabava por gerar um sentimento de
compaixão ao criminoso, elevando o Estado à
condição de violento. As medidas geradas para
minimizar a relação direta do Estado com o
condenado, como a guilhotina, minimizando o toque
no corpo da vítima e o capuz usado pelo verdugo,
numa tentativa de despersonalização, não foram
suficientes para eliminar a autoria da execução. O
absolutismo é, por princípio, personalista. Qualquer
ação do Estado era uma ação pessoal e a eliminação
dessa prática só viria acompanhada de uma mudança
social que, ao mesmo tempo, corroboraria a nova
ordem. A troca do suplício pela supressão da
liberdade significa, também, a naturalização do
processo histórico. O Estado não se apresenta mais
como um tirano torturador e passa a condenar não
mais o indivíduo protagonista do crime, mas seu ato.
Assim, ao invés de machucá-lo fisicamente, trata de
seu comportamento.
Essa transformação da prática tem grandes
implicações. Em primeiro lugar, entendendo as
relações sociais como naturais, o ato delinqüente fica
restrito ao desvio pessoal. Ou seja, em uma sociedade
em que, por princípio, todos são iguais, em que se
venceu a tirania absolutista, ferir as regras de
convivência social passa a ser visto como um erro de
conduta sério, porém pessoal. O delito agride a
sociedade em suas estruturas e aparelhos. Dessa
forma, a penalização também não será mais
personalizada, nem por parte de quem condena, nem
de quem é condenado. Se as instituições é que são
feridas, igualmente serão elas que cuidarão e julgarão
o ato. Assim, a prisão deixa de ser um depósito
temporário de degredados a espera de seu castigo,
para ser ela própria o fim da execução. Destarte, não
mais pela tortura, mas pela correção. As prisões no
século XIX passam, gradativamente, a cumprir o
papel de formadoras daquilo que Foucault chama de
alma. Logo, passam a contar com psicólogos,
assistentes sociais, educadores. Individualizado, o
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
desvio passa a ser qualificado socialmente por esta
gama de profissionais, e o elemento da loucura ganha
ênfase nos diagnósticos/sentenças. Essa prática que,
para muitos, abranda a punição nada mais é do que a
mudança de alvo. Não é mais o indivíduo criminoso
que é inaceitável, mas seu ato.
Toda essa transformação absolve e reconfigura
o Estado perante a sociedade. Ele não é mais um
carrasco do indivíduo. Não se apresenta mais como
um torturador. Pelo contrário, passa a ser visto como
aquele que, tratando todos de forma igual, tem no
princípio da liberdade individual e da oferta de
oportunidades os alicerces do progresso natural da
sociedade. Mais do que não ser visto como violento
pelo cidadão, ele se apresenta como benevolente, já
que, para além da oferta das benesses do progresso, se
dedica a corrigir aqueles que falharam em seu papel
de cidadão quanto ao convívio social. Na mesma
medida em que se naturalizam as relações sociais, se
absolve a sociedade de qualquer culpa quanto aos
atos provocados pelos cidadãos. É um outro aspecto
da mesma face do individualismo. Ou seja, o caráter
correcional das prisões, hora equipadas por
profissionais formadores de conduta, afirmam o
caráter desviante do delinqüente, repousando sobre
sua vontade ou debilidade moral ou mental, qualquer
responsabilidade sobre seus atos, como se não fossem
estes produtos também de uma sociedade e seus
valores. Cabe destacar que diagnósticos de loucura
para criminosos, embora os isentassem parcialmente
da culpa dos seus atos, cumpria a importante função
de associar a insubordinação à norma de convívio
social a um ato irracional.
Para a eficiente reforma da alma era preciso,
além dos profissionais citados, a submissão a um
regime de normas e horários rígidos. Assim, os
apenados iriam exercitar a subordinação a uma
norma de conduta, importante fator de preparação da
alma para o retorno a sociedade capitalista. Melosi e
Pavarini comparam a cadeia a uma fábrica pelo seu
aspecto de alienação do fazer (Maia et al,2009). Ou
seja, o lugar onde os sobrantes do capitalismo
absorvem condições adequadas de submissão para
serem absorvidos pela fábrica. Contudo, junto a este
complexo aparato de normas e profissionais, era
necessário implementar a consciência da vigilância.
O aspecto panóptico, para isso iria ser fundamental.
A prisão panóptica, idealizada em sua essência por
Jeremy Bentham (Maia et al, 2009), previa uma
disposição arquitetônica de modo a permitir que um
guarda vigiasse muitos detentos que, por sua vez
deveriam estar em celas individuais. A sala do guarda
deveria, ainda, permitir a ele a plena visão de todos,
tanto quanto os apenados não poderiam constatar a
real presença do guarda.
Mais do que refletir sobre aplicação ou não do
panoptismo enquanto realidade física, é necessário,
para o debate aqui proposto, perceber de que forma
ele opera como torno da alma. A certeza de estar
sendo vigiado se torna mais relevante do que sua
efetividade. Ela constrói a real vigilância na medida
em que é internalizada pelo indivíduo. Assim, numa
sociedade que se baseia na naturalidade das relações
e na invisibilidade do dominador, a ingerência de
profissionais formadores de valores, a submissão a
normas e a certeza de estar sendo controlado formam
a trilogia da moderna dominação.
É dessa forma, portanto, que a prisão moderna
se associa à afirmação da sociedade burguesa na
Europa. Dentro da lógica do progresso natural da
sociedade, em que suas relações não são discutidas, a
prisão surge como um aparelho que reforça o caráter
benéfico da sociedade que, além de oferecer
oportunidades, se esmera em corrigir aqueles que
falham para com o convívio social. O indivíduo, que
é levado à passividade enquanto sujeito histórico, é,
contudo, e contraditoriamente, autor único do seu
mau feito. A liberdade é, ainda, afirmada como valor
fundamental quando sua privação se torna o castigo
maior para aqueles que desviam. Tanto quando o
trabalho forçado entre presos é proibido, visto que se
pretende associar valores positivos ao trabalho livre
assalariado, não cabendo, pois, vincular esse nobre
ato a passagens negativas como a penalização de
detentos, degredados da sociedade.
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A prisão moderna e os séculos XIX
O terreno da análise histórica oferece
armadilhas constantes e perigosas àqueles que
trilham seus caminhos. As semelhanças entre
processos que ocorrem em períodos ou realidades
diferentes é um bom exemplo disso. Frequentemente,
historiadores simplificam suas análises em função da
percepção de algumas semelhanças. Contudo, há que
se perceber que repousar o olhar apenas sobre as
coincidências implicaria na construção de uma
história inerte. Hobsbawm (1998) afirma que
devemos observar as diferenças, e não as
semelhanças, pois são elas que fazem mover a
história. O presente se apresenta sempre mais novo
do que repetido. São justamente os aspectos referentes
aos padrões de mudança que levarão ao constante e
dialético desenrolar da humanidade.
Este problema se apresenta quando tratamos da
introdução da concepção moderna de prisão, a partir
do século XIX, conforme o exposto no início desse
trabalho. O fato de ter havido esse mesmo processo
na Europa e no Brasil leva alguns estudiosos mais
afoitos a desconsiderar as diferentes realidades que
marcam esses lugares.
Ao dizermos que o século XIX, na Europa, é o
momento em que o capitalismo se consolida, é preciso
que entendamos que isso se dá através de um longo e
sólido desenvolvimento da burguesia e de seus
valores. Da mesma forma, quando apontamos a
prisão como elemento de afirmação desta sociedade,
entendemos sua atuação em total harmonia com seus
princípios. Sendo essa nova modalidade de prisão um
instrumento que priva de liberdade e responsabiliza o
indivíduo por toda uma transgressão às normas
sociais,
entendemos,
consequentemente,
que
INDIVÍDUO e LIBERDADE passam a ser conceitos
fundamentais e portanto, passíveis de serem
investigados mais de perto.
A Idade Moderna, que para alguns é um
período de transição da Idade Média à
Contemporânea, se apresenta mais rica do que essa
possibilidade simplista. É em seu decorrer que
assistimos o indivíduo surgindo para o mundo com
importância. Nesse período, há o rompimento com o
holismo e, a partir de Maquiavel, percebemos o
indivíduo protagonizando o processo histórico
(Dumont, 1985). A trajetória de Maquiavel à Hegel,
no tocante a concepção de Estado, vai nos apontar
para um homem que assume pouco a pouco o
domínio do mundo. Inicialmente formando uma
monarquia inconteste, ele passa a questionar seus
valores, na medida em que se desenvolve e consolida
enquanto classe. A monarquia que é acima do
homem, mas que foi construída por ele, vai sendo
despida para que surja o indivíduo pleno. Assim, em
exemplo mais objetivo, de Hobbes a Locke, assistimos
a própria mudança do caráter monárquico em
relação ao indivíduo, até que vemos o peso do Estado
ser descartado por completo em Rosseau e outros
(Gruppi,1985). A modernidade, portanto, seja
expressa pela transição de modos de produção, seja
pelas concepções de Estado, ou por outro paradigma,
é o locus de uma transição que se dá ao consolidar
valores que se definem de forma sólida.
O indivíduo, ao assumir seu lugar no mundo,
sua centralidade, expressos em Calvino e a
predestinação, no renascimento, e tantos outros
exemplos, transforma radicalmente a Europa. De tal
monta que percebemos os juristas assumindo papel
proporcional ao dos filósofos no desenvolvimento e
construção do ideário da Revolução Francesa e da
Declaração dos Direitos do Homem (Dumont, 1985).
O direito, até então refém da vontade do monarca, a
partir da igualdade legal entre os cidadãos, ganha
teorias e cuidados afirmando esse indivíduo na nova
realidade européia. Tal prática é exemplar em seu
caráter antitético ao absolutismo.
Se apresentamos o século XIX como o da
consolidação do capitalismo, podemos também, e
porque não, consequentemente, entendê-lo como o
da afirmação do individualismo. Contudo, essa
ligação existente entre capitalismo e individualismo
não se deu de forma tão harmônica ou sincrônica
como pode vir a parecer. É preciso que se destaque, e
isso é fundamental para o trabalho proposto, que a
consciência do indivíduo, assim como a cultura
relativa a seu direito, se dá antes mesmo desse
indivíduo
se
perceber
enquanto
classe
(Sennett,1988). Não há dúvidas que o processo que
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
consolida uma cultura individualista privilegia a
prática burguesa e é item fundamental para o próprio
processo revolucionário. A grande transformação
gerada neste processo cria, ao mesmo tempo em que
consolida uma nova ordem, contradições que, por
fim, acabarão por exacerbar ainda mais o
individualismo. Mesmo aqueles que estavam envoltos
na consolidação da nova ordem foram surpreendidos
pela grande transformação. Embora inicialmente
apenas Paris e Londres tenham se configurado em
grandes centros urbanos (Hobsbawm,1982), o
surgimento da urbanização foi fator de espanto e
desconfiança na Europa. A aproximação das pessoas,
a formação de novos grupos sociais, muitas vezes
configurados por imigrantes, causa estranheza entre
os cidadãos (Sennett,1988). Dessa forma, a reclusão,
ou intensificação no particular, devido à desconfiança
para aquilo que é público, retroalimenta a tendência
individual. Para além da predestinação calvinista que
favorecia o individualismo, esta própria prática vai se
favorecendo do estranhamento exercido pelo espaço
público para reforçar o privado. Assim, a família vai
se tornando o espaço sagrado na medida em que
reproduz as relações isentas das aproximações
mundanas, enquanto os demais convívios sofrem a
promíscua influência da exposição. As praças, vias
públicas e demais espaços passam a ser o locus onde
os indivíduos, em exibição aos demais, afirmam seus
status. Ou seja, onde exibem e confirmam sua
individualidade. O espaço público, portanto, se
esvazia de significado ou conteúdo, sendo o palco de
exibição do privado. Um espaço de verificação dos
sucessos individuais, sem que, cada vez menos,
possuam, por si, relevância para a construção do
processo histórico (Sennett,1988). Esse feito, ao
mesmo tempo em que justifica, é o resultado da
exacerbação do direito individual que, como já fora
citado, se iguala em importância à própria filosofia.
Ou seja, a afirmação da existência individual em suas
garantias legais se consolida sobre a prática do pensar
a relação do mundo com indivíduo. Cada vez menos
se pensa o todo, para pensar o individual. Mais que
isso, naturaliza-se o processo histórico, fixando-se no
feito pessoal igualmente naturalizado. Um bom
exemplo disso é a dimensão que os fatos da vida
privada dos políticos assumem na avaliação do
público quando do momento eleitoral (Sennett,1988).
É nesse contexto de século XIX europeu que
surge a prisão tal qual conhecemos hoje e Foucault
nos apresenta. Um instrumento que, ao mesmo tempo
em que corrobora a desigualdade, é fruto desse
processo de plenitude do indivíduo. Um aparelho que
pune privando do bem maior – a liberdade – aquele
que erra contra instituições e sociedade que, ainda
assim, investem em sua correção. Uma instituição
que, respaldada pela legalidade, afirma a igualdade
de todos pelo pretenso ato da isonomia perante à lei e,
assim, afirma a naturalidade das relações sociais,
depositando no indivíduo desviado a responsabilidade
pela sua má conduta.
No Brasil, contudo, e mais especificamente no
Rio de Janeiro, esse século traz grandes mudanças
que, ao contrário do que uma análise afoita possa
inferir, não se traduzem em transformações. O Rio de
Janeiro já era um grande e importante porto. O
advento do ouro em Minas Gerais consolidou ainda
mais tal perspectiva. Destarte, apesar do grande fluxo
demográfico proveniente da extração do ouro, da
conseqüente urbanização e da riqueza gerada, tudo
isso confirmava a lógica mercantil. A afirmação do
Rio de Janeiro, era, antes de mais nada, o sucesso
mercantil (Lessa,2001). Na seqüência desse
acontecimento, tivemos a vinda da Família Real em
1808, e a abertura dos portos que, a despeito de, para
muitos, ser a independência de fato (Prado
Junior,1986), e trazer consigo um crescimento do
aspecto urbano, ilustrado inclusive pela presença da
corte portuguesa, esse processo também não
transforma a realidade. Toda a série de mudanças na
estrutura urbana da cidade foram, em última
instância, ordenações dentro da mesma lógica (Lessa,
2001). Ruas sendo nomeadas e casas numeradas,
sinalizações e a expansão da cidade através da
instalação dos bondes se apresentam como facetas
dessa organização. Estes aspectos facilmente
confundidos com aspectos da modernidade, haja vista
o paralelo que pode se fazer com a Europa que
também passa por um grande fluxo urbano, podem
nos levar a fáceis enganos. Uma cidade que nega o
rural, se aglomera e se organiza desde sua origem em
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torno do porto com intensa variedade de etnias
(Cavalcante, 2004), se expande pelo bonde, e
inclusive conhece o vapor, tão associado a Revolução
Industrial, pode ser superficialmente vista como
alinhada a um capitalismo europeu. Entretanto, se
analisada mais atentamente, pode ser entendida como
o êxito mercantil escravista. O acúmulo de capital
gerado pela atividade portuária, seja ela ligada ao
tráfico ou não, jamais gerou uma acumulação que
dialeticamente viesse a transformar as relações de
produção. Pelo contrário, a riqueza fora construída
pela escravidão e para afirmá-la. A própria
industrialização no Rio de Janeiro do século XIX foi
realizada com mão de obra escrava que, quando não
majoritária, se apresentava em relevante proporção a
mão de obra livre (Soares,2007). A industrialização,
portanto, que poderia nos levar mais uma vez ao
equívoco da vulgar comparação com a Europa, não só
fora feita por escravos, como gerou novos
mecanismos de exploração dos mesmos já que
senhores escravistas lucravam através de vários
mecanismos de seção de mão de obra, como o aluguel
etc. Mais uma vez, vemos que aquilo que era o
moderno na Europa reafirmava o arcaico fluminense.
A própria ocupação de negros em ofícios de
características de trabalhadores livres como ferreiros,
cocheiros, ou mesmo em trabalho informal, pode ser
vista como uma negação a proletarização.
Embora, como vimos acima, o vapor, o bonde e
a expansão urbana possam nos aproximar,
aparentemente, da Europa do século XIX, a afirmação
da sociedade escravista nos afasta. A presença do
escravismo como alicerce, não só no tocante à mão de
obra, como cultural, afasta a possibilidade do
individualismo, tal qual o modelo europeu. Não há
protagonismo do indivíduo, nem tampouco a
valorização do direito enquanto afirmação do sujeito.
Isso porque, obviamente, não há igualdade jurídica. A
afirmação dessa sociedade é justamente a da anulação
de igualdades e possibilidades individuais. O trinômio
INDIVÍDUO X LIBERDADE X PROPRIEDADE
(Dumont, 1985) é desconstruido pela lógica da
escravidão. Calcada na propriedade de um sobre o
outro, a liberdade passa a ser princípio antipático,
tanto quanto indivíduo, classicamente falando,
inexiste.
O espaço público, teatro das representações
sociais e afirmação do privado no século XIX, na
Europa (Sennett,1988), se apresenta, no Rio de
Janeiro, promíscuo socialmente (Cavalcante, 2004), e
palco da afirmação do arcaico. Eram comuns os
passeios em que a família, hierarquicamente
perfilada, expunha seus escravos ao final da fila como
mostra de poder e status. Na antítese da prática
burguesa, a ostentação da propriedade sobre o
indivíduo, logo da ordem escravista, com inerente
negação do trabalho, davam a tônica do período. Um
período em que, contrariando determinações
governamentais,
proprietários
de
escravos
reivindicavam o direito ao castigo ou qualquer
deliberação sobre o destino de seus escravos. Suas
propriedades.
Definitivamente, o Brasil, no século XIX, não
vivia a afirmação do Estado burguês em decorrência
da derrota do antigo regime. Aqui, afirmava-se a
escravidão. A análise da relação do Estado com o
sentenciado, assim como de seus aparelhos
coercitivos, pode nos revelar muito sobre ele (Maia et
al, 2009). Contudo, sua descontextualização pode,
também, levar o pesquisador a caminhos errôneos se
seu diálogo com as fontes não se der de forma
problematizada. É bem verdade que a passagem do
século XVIII para o XIX marcou no Rio de Janeiro,
tanto quanto na Europa, o fim do uso do preso em
trabalhos forçados. Entretanto, no velho continente,
esse fato se deu em um contexto de afirmação
capitalista em que se precisava valorizar o trabalho.
Para tal, era necessário desvincula-lo de práticas
negativas. Por isso a recriminação inglesa sobre a
escravidão e o fim do uso de apenados em obras
públicas. No Rio de Janeiro, apesar de a medida ter o
mesmo teor, ela não vem romper com a lógica
vigente. Contraditoriamente, o último envolvimento
de presos em obras públicas no Rio de Janeiro se deu
no período joanino (Arruda, 2009), quando da
grande mudança da cidade em virtude da presença
da corte. Isso talvez tenha, inclusive, conduzido ao
engano algumas análises, já que esse período
sugestiona uma transformação, quando, na realidade,
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significa, como já foi dito, uma organização e até
modernização da ordem (Lessa, 2001).
Continuando nossa análise, percebemos a
predominância negra no contingente apenado no
início do século XIX. Dentre os 4776 presos pela
Intendência Geral de Polícia da Corte, entre os anos
de 1810 e 1821, 3182 eram escravos, 944 eram
libertos e apenas 20 livres (Arruda, 2009). Da
mesma forma, observamos como foco da repressão os
escravos e ex-escravos já que, justificado pelo
contingente reduzido, a polícia não permitia
aglomerações de negros nas ruas, considerando-os
potenciais problemas. Da mesma forma, era proibido
que negros usassem chapéus, máscaras ou fantasias
que escondessem sua condição étnica, cabendo, só
por isso, a prisão por entender que tal fato dificultava
a ação policial favorecendo ao crime. Essa norma
fazia do entrudo um período de tormenta para a
polícia (Arruda, 2009).
No caso brasileiro, a mudança do modelo
prisional não reflete a mudança da sociedade, como
já vimos. A análise da prisão, que na Europa
demonstra e afirma a nova ordem, confirma,
particularmente no Rio de Janeiro, a ordem
escravista. Holloway (1997) nos apresenta gráficos
bastante detalhados de meados do século XIX, quando
a presença negra se dá com bastante intensidade nas
prisões do Rio de Janeiro, assim como crimes ligados
à ordem cotidiana, como vadiagem, embriaguez,
capoeira, vagar fora de hora, etc, são predominantes
nos autos policiais, indicando a continuidade da
vigilância branca sobre o perigo negro.
Se a mudança da lógica punitiva não representa
a transformação social, o que deseja representar,
então?
Considerações Finais
Qualquer instituição ligada ao Estado expressa,
em essência, o perfil dessa sociedade, seu momento
histórico e o estágio de suas relações sociais de
produção. Ao analisarmos o advento da prisão
moderna, ou seja, da prisão como pena em si, pela
privação da liberdade, tal como nos apresentou
Foucault, pudemos entender seu vínculo direto com o
momento histórico europeu – ou seja, com a
afirmação do capitalismo e derrocada do Antigo
Regime. Contudo, embora com semelhanças, o
mesmo modelo de prisão no Brasil, mais
especificamente no Rio de Janeiro, não representou a
modernidade tal qual se assistia na Europa. Embora o
século XIX tenha trazido uma série de mudanças no
perfil da cidade desde a vinda da Família Real,
percebemos que essas mudanças, apesar de
dinamizar o quadro urbano e ampliar seus limites,
atuou dentro da lógica vigente reforçando, assim, o
caráter mercantil escravista do Rio de Janeiro. A
prisão, nesse momento, a despeito de ter eliminado o
castigo corpóreo e o trabalho compulsório em obras
públicas, tal qual a Europa, como não poderia deixar
de ser, respaldou a ação hegemônica, confirmando os
resquícios coloniais em pleno Império. A privação da
liberdade em uma sociedade escravista não significa o
mesmo que em uma sociedade em que liberdade e
individualismo são valores fundadores.
A contribuição desse trabalho não está,
obviamente, em perceber a relação da prisão com o
Estado. Talvez, nem a própria constatação de que as
realidades do Rio de Janeiro e da Europa não eram as
mesmas possa se constituir na sua principal
contribuição. Esta conclusão é sim importante por
afastar a perspectiva de se iniciar a análise da prisão
brasileira pela ótica européia, e, ao mesmo tempo,
chamar atenção para as peculiaridades de nossa
formação histórica. Contudo, saliento que para além
das constatações, este trabalho se faz importante ao
apontar para a necessidade de se aprofundar o estudo
sobre os meios coercitivos no Brasil, principalmente,
buscando entender de que forma se constrói essa
prática em que se reforça o estigma da exclusão sobre
uma parcela historicamente demarcada, assumindo a
voz da modernidade européia. Para tal, entendemos
que a análise do discurso sobre os depoimentos de
gestores e influentes personagens do sistema possa ser
um caminho interessante. Pretendemos buscar os
formuladores dos códigos civis, os médicos do século
XIX que atuaram sobre esse tema e, mais
recentemente, de autoridades da área. Entendemos
que assim poderemos verificar como se dá a
construção do imaginário popular que clama pelo
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
novo praticando o arcaico, favorecendo assim a
modernização conservadora (Ianni, 1998) tão
presente em nossa história.
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PROSTITUTAS E “MÃES SEM MÁCULA”:
ALTERIDADE E IDENTIDADE FEMININA NO BRASIL
COLONIAL
Kelly Cristina Benjamim Viana
Doutoranda em História Social – UNB
Resumo
O presente artigo visa analisar a construção da
identidade feminina no Brasil colonial, em torno da
figura de mulher honrada e vistuosa. Esta imagem foi
em sua maioria das vezes criada por um discurso
masculino e estrangeiro, sobre a visão do outro.
Procuramos mostrar como estes discursos serviram
para criar no imaginário colonial uma identidade de
virtude e comportamento feminino e como a
sociedade lidava com as mulheres que desviavam
deste padrão de comportamento.
Palavras-chave: mulheres, identidade, colônia
Abstract
The present article aims at to analyze the construction
of the feminine identity in colonial Brazil, around the
figure of honored and vistuosa woman. This image
was in its majority of the times created by a
masculine and foreign speech, on the vision of the
other. We look for to show as these speeches had
served to create in the imaginary colonial an identity
of virtue and feminine behavior and as the society
Revista História - 72
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
dealt with the women whom they deviated from this
standard of behavior.
Keywords: women, identity, colony
***
É através dos imaginários sociais que uma
coletividade estabelece a distribuição dos papeis e das
posições sociais1. Assim, é através de sua visão de
mundo que estrangeiros que visitaram o Brasil
duarante os séculos XVIII e XIX formaram seus
discursos sobre o papel e o lugar da mulher na
sociedade colonial. Na maioria dos casos, os
compêndios e livros sobre o comportamento feminino
foram escritos por homens e estrangeiros, e resumem
de maneira clara sua visão sobre o “outro” e as idéias
que estes possuíam sobre a conduta de tais mulheres.
Segundo Isabel de Castro Henriques “ Quando
os portugueses saem do espaço peninsular para ir ao
encontro do Outro levam consigo a certeza da sua
autonomia, que contém também a convicção de que
os Outros, sejam quais forem , não podem ser senão
inferiores: o que não está no nosso espaço não pode
possuir qualidades positivas.”2
Assim, eles
exprimiam em seus escritos crenças misógenas e
dúvidas sobre a natureza feminina e sobre seu
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol:
5. Lisboa: Casa da Moeda, 1985.
2 HENRIQUES, Isabel Castro. Os pilares da diferença: relações Portugal
– Àfrica, séculos XV – XIX. Lisboa: Caleidoscópio, 2004. p. 38
1
comportamento, estabelecendo regras de conduta e
de relacionamento entre os sexos.
Os valores morais das sociedades do século
XVIII e início do XIX, baseados em preceitos judaícocristãos estabeleciam que as mulheres deveriam ser
fieis e honradas, submissas aos homens
independentes de sua condição social. A honra era a
principal virtude feminina, era um bem semelhante a
vida e na visão da sociedade da época estava
diretamente ligada a questão da sexualidade, isto é,
ao controle que as mulheres exerciam sobre os
desejos de seu corpo. Para as mulheres solteiras a
honra estava vinculada a castidade e para as casadas
era revestida na fidelidade ao marido.
Em função dessa visão masculina sobre o
“outro”, a honra feminina se construía em relação à
vida pública. Era em função do olhar do “outro”
sempre presente que a sociedade determinava se a
mulher era ou não horada, era em relação a esse
olhar que as pessoas criavam sua auto-imagem. Para
Arlette Farge é o olhar onipresente que fornece o
conhecimento respeito do outro e o direito de falar
dele.3 O código moral da honra feminina era então
relacionado com a impressão causada nos outros, e a
mulher honrada era aquela que não causava
impressão nenhuma, uma vez que não era vista.
Nesse aspecto, foram escritos diversos
conselhos e advertências sobre a conduta feminina
que mostram a visão que os homens, sobretudo os
estrangeiros, tinham das mulheres na sociedade
brasileira do período colonial. Essa conduta estava
sempre ligada a relações de poder e ao julgamento
que os homens faziam do comportamento feminino, e
era através desta que os homens do período
construíam sua visão do “outro”. Com relação a
construção dessa imagem do “outro” Homi Bhabha
nos alerta que “A imagem é apenas e sempre um
acessório da autoridade e da identidade; ela não deve
ser nunca lida mimeticmente como a aparência de
uma realidade.”4
No estudo ora proposto, trabalharemos com a
construção desta identidade feminina e com as noções
de conduta e honra presentes na sociedade colonial
brasileira, procurando estabelecer as relações entre
esses discursos e a visão do “outro” criada em torno
da mulher. Analisaremos primeiro o ideal de mulher
honrada para em seguida trabalharmos com seu
oposto. Afim de com isso, compreendermos o peso e o
papel desempenhado por estas imagens no
comportamento feminino e também masculino no
período analisado.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2003. p. 85.
4
FARGE, Arlette. Famílias Honra e Sigilo. In: CHARTIER, R. & ARIES, P.
(org). História da vida privada. Vol: 3. p. 590.
3
Revista História - 73
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
O IDEAL DE MULHER HONRADA
Na sociedade do Antigo Regime a opinião
social sobre o indivíduo era fundamental e perder a
honra nesta estrutura social era deixar de pertencer a
boa sociedade, era perder um bem comparável a vida.
Assim, a honra nesta sociedade era um tesouro tão
valioso que deveria ser protegido por todos os meios.
Embora a noção de honra tenha adquirido
significados diferentes em cada local, cultura ou
tempo histórico, seu sentido sempre foi antagônico
para os representantes de ambos os sexos. A honra
masculina foi geralmente associada a um valor cívico,
o homem honrado era o cidadão virtuoso, e a honra
era a recompensa pública por sua virtude. No caso da
mulher o que se nota é a apropriação de um valor
moral. Assim, a mulher virtuosa era aquela pura,
casta e fiel ao marido, portanto, honrada e sua honra
não era um privilégio de classe e sim um bem que
todas as mulheres possuíam, desde que se
mantivessem castas ou fiéis. Percebemos, então, que a
noção de honra feminina estava sempre ligada a sua
conduta sexual.
O discurso moralista dos séculos XVIII e XIX,
baseados tanto em preceitos religiosos quanto
culturais foram ao longo do tempo contribuindo para
a construção destes discursos de mulher pura e
honrada. É sobretudo a partir desta visão do “outro”
que se delineia o perfil da mulher honrada e virtuosa
da época colonial. Os homens de letras do período
foram os principais emissores desses discursos
moralizantes, cuja a intenção era valorizar as
mulheres honestas, obedientes e recolhidas.
As parábolas barrocas do Compêndio
Narrativo do Peregrino da América1 de Nuno
Marques Pereira, são uma espécie de catequese
popular, que se fazia através dos casos exemplares
descritos pelo peregrino. Seu autor foi um filósofo
moralista que viveu no Brasil na segunda metade do
século XVII e primeira metade do século XVIII, e a
obra trata de vários discursos espirituais e morais,
com muitas advertências e documentos contra “os
abusos que se acham introduzidos pela malícia
diabólica no Estado do Brasil”, sobretudo, as Minas
Gerais.
Percebe-se nesta obra visão que um
estrangeiro tinha da sociedade colonial mineira, e
sobretudo, das mulheres. Essa visão do “outro” fica
mais evidente nos conselhos e exemplos de bom
comportamento dado para as mesmas:
“Fujam todo o trato de
conversações de homens e de
lhes aparecer, ainda que sejam
parentes... De nenhum modo
aceitem dáctivas, nem cousa
muito urgente, de homem
nenhum... Também devem ser
muito honestas no vestir, por
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da
América. Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1752.
1
que as galas desonestas estão
indicando corpo lascivo”.2
Além de visar domesticar a existência
pecadora das mulheres, o Peregrino ainda ditava
regras do obediência e observância ao marido: “nem
os cabelos da cabeça pode cortar sem a licença e
autoridade do marido”3.
Desta forma além de submeter-se às regras
morais as mulheres deveriam se preocupar com a
aparência, onde o vestir, o olhar e o falar, eram
indicativos de bom ou mal comportamento. As
parábolas do Peregrino estavam em perfeita sintonia
com a visão que os homens tinham do “outro”, ou
seja, das mulheres na realidade colonial. Assim, seja
através de exemplos ou de conselhos Nuno Marques
visava criar um padrão de conduta e comportamento
para as mulheres, e nos deixa conhecer um pouco do
pensamento masculino a respeito delas.
O casamento funcionava também como uma
forma de adestramento feminino, assim como o
estado de religiosa, o casamento aparecia ao olhar da
sociedade como um meio de preservar a honra
feminina, afastando o estigma de solteirona e os riscos
de desonra das jovens. Este adestramento no interior
do matrimônio, fazia-se não apenas pela fervorosa
pregação religiosa contra os famosos “tratos ilícitos”,
mas também através da divulgação na colônia dos
2
3
Idem. p. 299.
PEREIRA, Nuno Marques. Op. Cit. p. 150.
Revista História - 74
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
manuais de casamento que aconselhavam a escolha
da esposa ideal. Essa imagem de mulher iria ser
amplamente divulgada na sociedade colonial como
forma de adestrá-las e de divulgar o próprio
casamento.
Ângela Mendes de Almeida1 ao trabalhar com
os “Manuais Portugueses de Casamento” os analisa
como textos escritos por leigos e dirigidos aos
homens, para indicar os defeitos que deviam ser
evitados na escolha da esposa, ou reprimidos depois
do casamento. Fica evidente ao ler essas condutas que
mesmo se tratando de um escrito feito por leigos, o
pano de fundo é sempre a visão masculina e acima de
tudo os ditames da Igreja Católica.
Os manuais visavam facilitar a escolha da
esposa certa, e assim evitar o adultério e a ruptura do
matrimônio. Para D. Francisco Manuel de Mello
autor de Carta Guia dos Casados, o que garantia o
equilíbrio do matrimônio era a subalternidade, a
hulmildade, a honra e o recolhimento da mulher. Ele
ainda orientava ao homem como criar em sua esposa
essa identidade de mulher honrada e virtuosa:
“Dês-se-lhes a entender à
mulher que a coisa que mais
deve querer é a seu marido.
Tenha o marido para si que a
coisa que a coisa que mais
deve querer é a sua honra, e
logo sua mulher”2
mulher virtuosa poderia sair do lar durante toda sua
vida: “para se batizar, para se casar e para ser
enterrada.”4
Os romances escritos no século XVIII também
contribuiram para criar essa identidade de mulher
virtuosa. Leila Mezan Algranti3 ao trabalhar com a
honra feminina, analisa o romance setecentista
Pamela ou a virtude recompensada, de Samuel
Richardson. O livro trata da jovem Pamela empregada
na casa de um membro da nobreza, onde o jovem
nobre apaixonado por Pamela, tenta de todos os
meios seduzi-la. Pamela resiste sempre em defesa de
sua honra, assim, seu senhor reconhece a virtude da
moça e termina por desposá-la. O romance trata de
um modelo de mulher, de um ideal a ser perseguido.
Leila Algranti afirma que o romance teve ampla
divulagação no Brasil colonial, e o grande sucesso da
obra junto ao público, acaba por confirmar como
essas imagens de mulher, criadas por homens e
estrangeiros, sensibilizavam o imaginário da época.
Mesmo quando iletrados os colonos também
partilhavam dessa visão de mulher ideal uma vez que
esta também era difundida nos sermões religiosos,
nas confissões e mesmo nos ditos populares. Isso fica
evidente no provérbio popular da época que
asseverava haver apenas três ocasiões em que a
MELLO, D. francisco Manuel de. Apud: ALMEIDA, Ângela Mendes de.
Op. Cit. p. 171.
3 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1993.
Outro ponto importante a ressaltar é que a
preservação da honra feminina não era um assunto
que se referisse apenas às mulheres. Um homem
poderia ser considerado desonrado se viesse à público
as atividades sexuais de sua filha ou esposa, que não
fossem legitimadas pelos códigos morais da sociedade
colonial. Percebemos que, por ser responsabilidade
também masculina, a preservação da honra feminina
foi amplamente priorizda pelos homens.
Em várias sociedades, tanto a legislação como
os costumes garantiam a punição às mulheres
adúlteras. Em Portugal, assim como no Brasil, as
Ordenações Filipinas tratam prolongadamente das
penas impostas as mulheres que agem fora das
normas de conduta. No título 38 “Do que matou sua
mulher por a achar em adultério” é reafirmado o
direito do marido de matar a esposa adúltera bem
como seu amante, desde que esse fosse socialmente
inferior.5
Também o nosso já citado Peregrino da
América recomendava que em relação ao adultério
feminino devia-se:
2
ALMEIDA, Ângela Mendes de. Os manuais portugueses de casamento
dos séculos XVI e XVII. Revista Brasileira de História. Vol:17. São Paulo:
fevereiro, 1989.
1
ARAÙJO, Emanuel. O teatro dos vícios: trangressão e transigência na
sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. 194.
4
ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livro V. Org. Silvia Hunold Lara. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 151
5
Revista História - 75
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
“Um, era obrigar a adultera a
enforcar-se por suas próprias
mãos e debaixo lhe punham
fogo, e sob as cinzas da
meserável
enforcavam
também o adultero. Outro, era
levar a adultera a açoutar
pelas ruas, aldeias e lugares
circunvizinhos (...) e assim a
maltratavam
e
deixavam
1
morta.”
Percebemos, assim, que os homens sempre
tiveram especial atenção em punir os desvios
femininos, seja pela violência física ou pelo
enclausuramento das desviantes em recolhimentos ou
conventos religiosos; uma vez que a perda da honra
por uma mulher acarretava também uma mancha na
honra do pai ou marido.
Em Minas Gerais durante o século XVIII são
abundantes os casos de adúlterio e concubinato que
chegam a justiça civil e eclesiástica. Os maridos ou
companheiros destas mulheres vão a juízo exigir uma
retratação pública pela humilhação sofrida contra
sua honra:
“(...) diz Joaquim Estanislao
que ele se ve cazado na forma
de direito com Rita Marquez
com quem fez sua harmonia
tal que era invejoza a
suciedade. E feito tempo de
maiz de seis annos, o que
depois foi pervertido por
Antônio Rodriguez Pereira (...)
[a ré] se tratava ilicitamente
com o suplicado o que se
verifica por este lhe comprar
cazas onde a tem tiuda e
mantiuda a mulher do
suplicante
adulterendoa
continuadamente cujo excesso
fez o suplicante ciente o
capelão cura e o comandante
do lugar. E nem assim pode
desunir aquela liga que há
ente ambos que se axão
vivendo como cazados sendo o
cumplice tão bem cazado, e
por que o cazo he de querella
(...)”.2
Como se observa no caso de Joaquim
Estanislao o suplicante quer algo mais que a
separação de sua esposa Rita Marquez do suposto
amante, ele quer uma retratação pública pela desonra
sofrida. Isso fica mais evidente ao final do processo
2IPHAN
1
PEREIRA, Nuno Marques. Op. cit. p. 299.
– Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livros de Autos de
Querela. 1810.fl. 72v
quando o suplicante pede ao juiz que a querela seja
afixada nos lugares públicos da Vila. Assim, dessa
forma, além de conseguir uma retratação pela injúria
sofrida Joaquim Estanislao conseguiu ainda
desmoralizar sua esposa, que a partir de então passa a
ser vista pela sociedade como uma mulher sem
honra. Neste caso a marca da justiça é uma mácula
definitiva, e a pena vem manchar vergonhosamente a
honra de Rita Marquez por ter ousado transgredir as
normas da civilidade e da boa conduta.
Não só o adúlterio ou comcubinato podia
manchar a honra de uma mulher na sociedade
colonial, muitas vezes um comportamento desregrado
e violento era causa de exclusão desta da boa
sociedade. Isto fica mais claro ao analisarmos a
querela movida em vinte e sete de janeiro de 1816,
por Maria Izabel de Sampaio contra Maria Felisberta,
ambas moradoras na Vila de Nossa Senhora da
Conceição do Sabará.
“Diz Maria Izabel de Sampaio
moradora na rua da Lagoa
desta Villa que vindo ella de
sua caza para a Igreja do
Carmo, ao terço senão sete
para outo oras pouco mais os
menos da noite e chegando a
dita Igreja lhe sahio ao
encontro huã forra de nome
Maria Felizberta também
moradora nesta Villa, de modo
Revista História - 76
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
próprio e cazo pensado,
avançouse a suplinante, e lhe
foi dando logo inúmeras
pancadas
com
um
porrete(...)que quase a matou
tendo feito tal delicto pelo fato
de haver a suplicada se
envolvido com o marido da
suplicante e por ciúmes e
maldade há queria morta(...) e
cujos dezatinos he a suplicada
uzeira e vezeira e muito
inimiga da paz, e inquietadora
do sosego publico tanto assim
que sendo cazada a anos, não
existe em companhia do
marido de cuja companhia se
auzentou e veio para esta Villa
aonde vive escandalozamente
com
os
procedimentos
referidos e porque o cazo he
de Querella ”.1
A querela de Maria Izabel nos oferece indícios
de como uma comunidade colonial conhecia grande
parte de seus moradores e sabia identificá-los,
particularmente, neste caso, se tratando de uma
“uzeira e vezeira e muito inimiga da paz, e
inquietadora do sosego publico”.
Outra imagem criada neste período em torno
da figura feminina, é a de “santa mãezinha” como
definiu Mary Del Priore2, a construção dessa
maternidade idealizada foi um desejo tanto da Igreja
Católica quanto do Estado Português afim de adequar
a mulher a uma vida matrimonial desejada por
ambos. Em todos os discursos do período, oficiais,
médicos ou religiosos o que se pode notar é uma
condenação sistemática da mulher que tinha seus
filhos fora da instituição do casamento. Uma vez que
o principal papel da mulher na vida conjugal era e
maternidade.
Para ser essa mãe ideal as mulheres tinham
que seguir outras normas e leis. A mãe exemplar
deveria ser abnegada, devota, obediente ao marido,
observadora das leis de Deus e da Igreja e antes de
tudo, dedicada a doutrinação de sua prole. A
adequação ou não das mulheres a este quadro
normativo acabava por distingui-las, por serpará-las
entre modelares e não-adequadas. Na fabricação
dessa imagem de “mãe sem mácula” foi o resultado
de um pensamento misógeno em relação as mulheres
no período colonial. A “santa mãezinha” surgia
então, para transmitir as suas filhas que o casamento
deveria ser uma relação cujo equilíbrio repousava na
dominação do homem e na submissão consentida da
mulher.
No entanto resta-nos responder uma questão
se a fabricação de uma identidade de mulher ideal,
honrada e virtuosa acabou realmente por se sobrepor
as histórias de vida complexas e perpassadas por
conflitos e preconceitos?
A MULHER SEM QUALIDADES
Na colônia a honra feminina destacava-se
como elemento primordial nas relações entre os
sexos. No entanto, o ideal de mulher honrada não se
aplicava a todas elas, uma vez que na sociedade
colonial a escravidão permeava todas as relações
sociais fazendo alterar estas padrões entre indivíduos
livres e escravos. A honra era, obviamente, um valor
atribuído apenas a homens e mulheres brancos e
livres. Desta forma, percebemos que “a imagem das
mulheres[negras] (...)como nativos de segunda
categoria, comtém elementos emprestados do
conceito de gênero oriundo da metrópole, mas
tambpem dos seus vairantes endógenos.”3
Assim, escravas e forras eram consideradas a
priori mulheres sem honra, com as quais os homens
brancos podiam se relacionar sexualmente sem levar
HAVIK, Philip J. Dinãmicas e Assimetrias Afro-Atlânticas: a Agência
feminina e representações em mudança na Guiné (séculos XIX e XX).
In: PANTOJA, Selma (org). Identidades, memórias e histórias em terras
africanas. Brasília: LGE editora, Luanda: Nzila, 2006. p. 74.
3
IPHAN – Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livro de Autos de
Querela. Ano: 1808. Folhas: 70v/71v.
1
DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade
e mentalidades no Brasil colonial. São Paulo; Editora UNESP, 2009.
2
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
em conta qualquer norma de conduta ou preceito
religioso. Estas eram então tratadas como meretrizes,
sendo consideradas mais desonradas que estas, pois,
além de “mulheres públicas” eram também “de cor”.
O aspecto racial se sobrepunha na maioria dos casos
a condição legal, uma vez que as mulheres negras
mesmo sendo forras ou escravas eram vistas pelos
homens como socialmente desqualificadas, e sem
honra a ser preservada.
Nos arquivos criminais do período colonial
encontramos vários crimes de abusos sexuais
praticados contra escravas por seus senhores, ou
mesmo por qualquer outro homem branco. Na
mentalidade dominante deste período negras,
escravas e índias não eram mulheres cuja honra
merecesse qualquer atenção. Diferente do que
acontecia com as mulheres brancas e livres, as
escravas não possuíam qualquer dos privilégios que a
sociedade colonial atribuísse ao sexo feminino,
mesmo em casos de estupro elas dificilmente
conseguiam apelar legalmente.
Segundo Ronaldo Vainfas1 com ralação as
escravas qualquer restrição de conduta imposta pela
sociedade ou pela Igreja era ignorada pelos homens
da colônia:
“Fernão Cabral, por sua vez,
(...) conhecido sedutor, não
hesitou em confessar que
aprovava os pecados de um
falecido vizinho alegando que
o homem ‘nunca os fizera com
mulheres brancas e honradas,
senão com negras’. E o
lavrador Crespar Gonçalves,
português de 60 anos, negou
que fosse pecado dormir com
negras, mesmo se casadas.”2
Este alargamento da moral masculina não se
restringia somente as negras, mas estendia-se
também a prostitutas ou mulheres solteiras que não
contassem com uma proteção masculina. Assim, na
colônia, celibatária era a mulher que não se casava
mas se mantinha pura, enquanto solteira era
sinônimo de mulher disponível para “tratos ilícitos”.
As autoridades civis e eclesiásticas pareciam
tolerar estas mulheres, pois segundo o próprio clero
elas prestavam um serviço a comunidade, uma vez
que garantiam aos homens um espaço para exercer
sua sexualidade, sem que para isso precisassem
trangredir algumas regras sociais ou desonrar aguma
mulher até então considerada virtuosa. Esta
tolerância das autoridades demonstra o papel
exercido pela prostituição na sociedade colonial,
enquanto instância preservadora da honra das
demais mulheres como também como pacificadora da
violência sexual.
Em seu trabalho sobre as Minas Gerais no
século XVIII, Laura de Mello e Souza3, destacou que
um grande número de mulheres casadas, amaseadas
ou mães se dirigiam para a prostituição como forma
de sobreviver a miséria. Tais mulheres na maioria das
vezes tinham a permissão de seus pais e maridos para
tal atividade pois, através da prostituição sustentavam
seus domicílios bem como filhos, dependentes,
agregados e mesmo maridos e amantes, sem qualquer
constrangimento senão aquele dado pela pobreza.
O secretário de governo das Minas Gerais,
Manuel Afonseca de Azevedo encaminha em 1732
uma representação ao Rei de Portugal tratando desse
assunto. Segundo o secretário a pobreza de muitas
mulheres fazia com que a prostituição lhes servisse de
atividade complementar, exemplifica ainda que
“muitas vezes sucedem retirarem-se os senhores das
casas das vendas, dando passeios,(...)para darem
lugar a que as negras fiquem mais desembareçadas
para o uso de seus apetites”.4
Diante da situação de pobreza em que vivia
grande parte da população da Capitania
a
prostituição se constituiu como um caminho quase
obrigatório para muitas mulheres. Assim, não
SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: pobreza mineira no
século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
3
Representação do secretário de governo de Minas, Manuel A. de
Azevedo ao Rei, em 1732. In: BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros
e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte: s. Ed, 1972. p. 54-57.
4
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e
inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
1
2
VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. p. 64
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
faltaram mulheres que formaram prostíbulos
conhecidos como “casas de alcouce” e sobreviveram
graças a sua administração. Exemplar é o caso de
Rosa Pereira da Costa, moradora no Arraial do Tijuco,
que oferecia casa de alcouce,
“nela se ajuntavam todas as
noites
quase
todas
as
mulheres-damas que há neste
arraial e quantidade de
homens de toda a qualidade, e
na dita casa estão todas as
noites até fora de horas
conversando e tratando uns com
outros descompostamente, fazendo
saraus e galhofas.”1
lhe estes desaforos para que se
sustentasse e vestisse pelo
pecado da dita sua filha”.2
Muitas prostitutas atuavam no domicílio que
partilhavam com parentes. Pais e mães também
consentiam na prostituição de sua prole, como Inácia
conecida na sede do Bispado de Mariana como “a
Enforcada” que de 1745 a 1753 promoveu a
prostituição de sua filha
“que é metetriz (...) sempre a
mãe morou com ela na mesma
casa, vendo entrar homens
para tratarem torpemente com
a dita sua filha sem que lhe
proibisse, antes permitindo-
Outro ponto importante a ressaltar, é que a
vigilância às mulheres de “vida duvidosa” não era
feita apenas pelas autoridades civis e eclesiásticas,
mas toda a vizinhança se encarregava de viagiar suas
práticas sexuais, evitando que sua presença ferisse a
honra e a imagem da vizinhança. Caso isso ocorresse
elas eram denunciadas as autoridades. Para uma
comunidade pequena como era o caso das vilas
mineiras a idéia de contaminar-se com a venalidade
ou de manchar sua imagem era imensamente temida
e racharçada.
As mulheres “venais” do período colonial
tinham estatuto específico, e contribuíam para
reforçar o discurso masculino da sexualidade
regulada no matrimônio, pois eram seu contraponto.
Assim, estas mulheres foram úteis para a construção e
valorização da imagem de mulher honrada e mãe
exemplar que os discursos masculinos pretendiam
criar no período colonial.
Também o fruto destas relações ilícitas, a
criação de filhos bastardos, era considerado um fator
que privava a mulheres de certa dose de dignidade.
Além de ser uma constante preocupação das
autoridades locais limitar a expansão dos enjeitados.
AEAM. Livro de Devassas, Comarca do Serro Frio, 1734. fl. 73v, 74v e
75. Cit. por SOUZA, Laura de Mello. Op. Cit. p. 184.
2
1
AEAM. Livro de Devassas, maio-dezembro de 1753. fl. 139.
Na Comarca de Mariana as autoridades obrigavam
que
“notifique a toda mulher desta
cidade que não for casada em
face da Igreja que se ache
pejada, para que depois do
parto a vinte dias venha dar
parte a este Senado do feto que
teve com a cominação de que
não fazendo assim a dita
pejada, e não dando conta do
dito termo da sua barriga [sic],
pagar cinquenta oitavas de
ouro para a criação do mesmo
enjeitado.”3
As filhas bastardas, ilegitimas ou naturais,
não eram especificamente mulheres sem honra, mas
sob o jugo da sociedade mineira colonial, estavam
localizadas na tênue fronteira entre a honra e a
desonra, pois, traziam em si a marca do pecado, a
suspeita e o desconhecimento sobre sua origem e por
conseguinte a vergonha.
Assim, escravas, prostitutas, mulheres de cor,
solteira e bastardas eram mulheres que no período
colonial misturavam-se numa rede de preconceitos
Edital de 26 de setembro de 1748. AHCMM. Registro de Editais, liv.
152. Cit. por FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In:
DEL PRIORE, Mary(org). História das mulheres no Brasil. São Paulo:
Contexto: Ed. Da UNESP, 1997. p. 158.
3
Revista História - 79
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
morais de uma sociedade onde raça, condição legal e
legitimidade
de
nascimento
distinguiam
e
categorizavam indivíduos de acordo com a moral
dominante, concedendo ou megando-lhes o status e a
imagem de mulher honrada e virtuosa.
PLENITUDE SEXUAL E EMPREGABILIDADE.
TRANSEXUAL DISCIPLINADO1
O
Marcia de Melo Martins Kuyumjian
Historiadora e Doutora em Sociologia
Departamento de História
Universidade de Brasília
Danielly de Oliveira Grance
Assistente Social
Resumo
Este texto está dedicado à compreensão do trabalho
na contemporaneidade na perspectiva da históricocultural. Localiza um objeto muito particular, a
transexualidade e sua interferência na formação e
ocupação profissional. O foco está no efeito da
cirurgia para a inserção social do indivíduo pelo
trabalho e pelo reconhecimento da nova sexualidade.
O lócus de investigação foi o Programa de
Transgenitalização da Promotoria de Defesa dos
O texto é resultado de pesquisa realizada, nos anos de 2002 e 2003
como parte do projeto de pesquisa da 1ª. Autora do artigo e orientadora
da 2ª. Autora. A pesquisa resultou na elaboração de Monografia (Da
Identidade Sexual à Identidade Social) apresentada no Departamento de
Serviço Social da UnB, para requisito para a conclusão do curso de
graduação e a titulação de Assistente Social de Danielly de Oliveira
Grance, no ano de 2003. A pesquisa foi realizada no Ministério Público
do Distrito Federal e Territórios, mais especificamente na Promotoria de
Defesa dos Direitos dos usuários dos Serviços de Saúde – Pró-Vida. O
presente texto refere-se a uma releitura da monografia, tendo sido
atualizada com novos dados e fontes principalmente extraídos de sites
científicos da internet, e foi complementado com novas referências
teóricas do campo da História Cultural.
1
Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde (PróVida) do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios (MPDFT), nos anos de 2002 e 2003. O
problema da relação trabalho/ transexualidade
refere-se
à
representação
dominante
da
“inadequação” físico-psicológico do indivíduo para o
desempenho
de
funções
relevantes
ao
desenvolvimento social e econômico. A cirurgia
compatibilizaria corpo e psicológico. Mas fica a
polêmica: se trabalhar é um bem social, um estatuto
de reconhecimento das qualidades produtivas dos
indivíduos, o que aguardar de alguém visto e com
uma auto-referência de anormal?
Palavras-chave: Trabalho, transexual, controle social
Abstract
This text is devoted to understanding the work in the
contemporary view of cultural history. Finds a very
special object, transsexuality and its interference in
the formation and profissional occupation. The focus
is on the effect of surgery for the social integration of
the individual at work and the recognition of
his/hers new sexuality. The locus of the research
program was Transgenitalization Prosecutor's
Defense of the Rights of Users of Health Services (ProLife) of the Public Ministry of the Federal District and
Territories (MPDFT) in the years 2002 and 2003. The
problem of work / transsexual refers to the dominant
representation of the "inadequacy" of the individual
physical and psychological performance for assume
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
functions relevant to the social and economic
development.
Surgery
reconcile
body
and
psychological. But the controversy is: if work is a
social good, a status of recognition of the qualities of
productive individuals, what to expect of someone
seeing and self-reporting of abnormal?
Keywords: work, transsexual, social control
***
Reconheço sem ilusão a
natureza do fenômeno. É uma
inversão sexual fruste. Paira no
espírito. Sempre, porém, nos
momentos de meditação sobre
mim, me inquietou, não tive
nunca a certeza, nem a tenho
ainda, de que essa disposição do
temperamento não pudesse um
dia descer-me ao corpo. Não
digo que praticasse então a
sexualidade correspondente a
esse impulso; mas bastava o
desejo para me humilhar.
Somos vários desta espécie, pela
história abaixo – pela história
artística
sobre
tudo.
Shakespeare e Rousseau são dois
exemplos, ou exemplares, mais
ilustres. E o meu receio da
descida ao corpo dessa inversão
do espírito – radica-mo a
contemplação de como nesses
dois desceu – completamente no
primeiro, e em pederastia;
incertamente no segundo, num
vago masoquismo.1
Introdução
Falar de sexualidade significa falar de
concepções arraigadas no homem moderno, como
verdades produzidas nos três últimos séculos na
sociedade ocidental. Refere-se a representações
sociais
elaboradas
sobre
repressão,
poder,
preconceito, interdição do corpo, desejo, paixão,
prazer, controle, gênero, pecado, opção sexual,
construção de papéis sexuais e sociais, doenças e
ocupações laborais.2
Assim,
a
sexualidade
é
geralmente
apresentada como um assunto pessoal de adequação
aos padrões socialmente aceitos, da representação de
si mesmo perante o público.
A questão dos
sexualmente “diferentes” está, portanto, no
realinhamento de seus papéis sociais como homem ou
mulher. Essa questão ocupa lugar de destaque no
discurso social, seja pela oferta de postos de trabalho,
de serviços disponibilizados no mercado, seja pelo
apelo à recomposição moral da sociedade, seja pelo
destaque que os boletins informativos existentes sobre
comportamento, saúde, beleza, educação, trabalho,
etc, dão à questão da feminilidade e masculinidade.3
Nesse contexto, os chamados sexualmente
diferentes modo geral se encontram diante de um
público, ora curioso, ora revoltado com essas “figuras
com algo de diferente”, com algo de constrangedor
no que se refere à (des) harmonização, em si mesmas,
da esperada representação social do masculino e do
feminino.
Tematiza-se, assim, a sexualidade. No entanto,
no que compete à localização desses indivíduos no
mercado de trabalho formal e até mesmo no
informal4, o debate se escasseia. Não nos deteremos
aqui em apresentar as atividades ocupacionais nas
quais se inserem os sexualmente “diferentes”, mas em
refletir a respeito dos parâmetros sociais que definem
prioridades até em termos do que é relevante ou não
Palavras de Fernando Pessoa copiladas do Parecer 39/97do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios (BRASIL. Conselho Federal de
Medicina, 1997, p.8)
1
MOSCOVICI, Serge. “The phenomenon of social representations”. In:
FARR, Robert M. & MOSCOVICI, S. Social Representations. Cambridge,
Cambridge University Press. 1984;SENNETT, Richard. A ética do
trabalho: a corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
2
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 10.
ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
4 LAUTIER, Bruno. Trabalho ou labor? Dimensões históricas e culturais.
In: Ser Social, Brasília, UnB, nº 5, jul./dez./1999.
3
Revista História - 81
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
para ser objeto de atenção de políticas públicas para a
empregabilidade.1
Para tanto, a pergunta que se estabelece é:
qual não é a dificuldade dos transexuais para
encontrar postos de trabalho que aceitem sua imagem
“desviante” e de se preparar profissionalmente para
assumir ocupações de relevância para a economia e a
sociedade? Uma possível resposta estaria na análise
da tendência desse grupo social de tentar
compatibilizar atividade ocupacional com opção
sexual ou de esconder e/ou omitir sua sexualidade,
principalmente pelo fato de a diferença ainda ser
tratada de forma preconceituosa, moralista,
conformadora e estereotipada na sociedade brasileira.
Embora não disponhamos de dados estatísticos sobre
o assunto, sabe-se que, em sua maioria, os
sexualmente “diferentes” atuam como “prostitutos”,
dançarinos e stripers, ou como maquiadores e
cabeleireiros. Há, ainda, certa regionalização
ocupacional como efeito dos dispositivos disciplinares
implementados socialmente por discursos proferidos
como vontade de verdade.2
Situa-se a leitura desta problemática, portanto,
na abordagem foucaultiana sobre a sexualidade na
modernidade. O processo de entendimento da
HENRIQUE, Wilnês. Questão social e políticas sociais no Brasil. In:
OLIVEIRA, Marco Antonio de (org.). Economia e trabalho: textos
básicos. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1998.
2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1986.
1
sexualidade como uma questão de cidadania abrange
toda a sociedade e convida a todos os envolvidos e
interessados na temática a refletirem sobre os modos
como a sociedade controla as práticas sexuais e
promove, no âmbito dos micropoderes, estigmas
detratores do caráter dos sexualmente indefinidos e
seus efeitos para a inserção desses sujeitos
sexualmente diferentes no mercado de trabalho e na
construção da sua autonomia como cidadãos. 3
1 Transexualidade4
Segundo Stuart Hall, reações defensivas e
ações ameaçadoras são movimentos que vão
fragmentando as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,
que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. A identidade
torna-se
politizada, sendo
descrita
como
constituindo uma mudança política de identidade
(de classe) para uma política de diferença. 5
Essa política da diferença sugere a noção de
representação social, expressa nas ciências, nas
religiões e também nas ideologias. É na tentativa de
tornar o desconhecido, familiar, ou de construir uma
objetivação do mundo que os seres humanos
elaboram
representações
que
modelam
comportamentos, pensamentos, enfim, a vida cultural
e social.6
A elaboração e a fixação dessas representações
são, portanto, o mote para compreender a
interferência da indefinição sexual na construção da
identidade social e como essa indefinição é
responsável pela participação dos chamados
sexualmente diferentes em trabalhos periféricos, sem
chances de ascensão social e profissional.
É nesse contexto que o transtorno na
identidade de gênero, na inadequação psicológica ao
sexo somático, informa uma situação de
transexualidade,7 na qual ocorre a não conciliação
entre sexo biológico e identificação psicológica sexual
MOSCOVICI, Serge. “ Notes towards a description of Social
Representations”. In: European Journal of Social Psychology. Vol 18,
Issue Nº3, July 1988.
6
OLIVEIRA, Manfredo A. A nova problemática do trabalho e a ética. In:
TEIXEIRA, Francisco J. S.; OLIVEIRA, Manfredo A. (org.). Neoliberalismo
e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez; Fortaleza: Universidade
Estadual do Ceará, 1996.
4 Este item do texto está fortemente ancorado na monografia de final de
curso em Serviço Social, de Danielly de Oliveira Grance, intitulada O
trabalho no fio da navalha: da identidade sexual à identidade social.
Monografia (Graduação em Serviço Social) Universidade de Brasília,
Departamento de Serviço Social, Brasília, 2003.
5 HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de
Janeiro: DP&A Editora, 2002, p.21.
3
Transexualismo é diferente de homossexualismo, de transvestismo e
de hermafroditismo. Homens homossexuais, mulheres lésbicas e
transvestidos não têm dúvidas ou desconforto quanto ao seu gênero ou
sexo; apenas têm orientação sexual por pessoas do mesmo sexo. O
transexual, por outro lado, não se sente jamais em uma posição
homossexual quando mantém relações com parceiros do mesmo sexo.
Também não se considera um travesti quando se veste de mulher, no
caso do transexual masculino, ou de homem, no caso do transexual
feminino. O hermafrodita apresenta duas genitálias (feminina e
masculina) e é um caso diferente dos demais.
7
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no mesmo indivíduo.1 Segundo o Conselho Federal de
Medicina (CFM), o transexualismo enquadra-se no
âmbito das intersexualidades não orgânicas, tomando
por referência as classificações elaboradas por Klebs
em 1876.2
de seu sexo. O mesmo sucede à mulher transexual,
que e sente um homem em um corpo feminino.
coloca-lhes uma séria barreira à sua condição
humana conforme as “leis da natureza”.
As falas dos participantes do Programa de
Transgenitalização salientam essa insustentabilidade
psicológica, moral e social de sua indefinição sexual:
Além disso, a certeza do transexual de
pertencer ao sexo oposto é embaraçosa para a família.
As pressões sociais tornam a vida muito difícil. Por
isso, as tentativas de suicídio e de automutilação são
comuns, pois esses indivíduos salientam a vergonha
que sentem do próprio corpo, vivendo o terror ao se
olhar ou serem olhados; tocar ou serem tocados.
Explicam suas atitudes, em relação à tentativa de
mutilação ou suicídio, enfatizando o nojo que sentem
de si próprios.
Logo, um transexual masculino ou feminino
tem uma crença profunda de que sua identidade de
gênero não é a mesma do sexo atribuído em seu
registro
de
nascimento.
Identifica-se
psicologicamente com o sexo oposto, embora
biologicamente não possua qualquer anomalia. O
transexual possui a genitália externa e a interna
perfeitas e de um único sexo, mas recebe estímulos
psicológicos do sexo oposto.
O transexual do sexo masculino quer, de
qualquer forma, transformar-se em mulher, porque
se sente mulher, porque acha que é mulher, sendolhe insuportável seu aspecto viril e a sujeição que lhe
é imposta de se conduzir segundo os padrões de
masculinidade. Vem, daí, sua obsessão em se
submeter a tratamentos clínicos e cirúrgicos que
ponham fim a esse antagonismo psicofísico e
dissipem sua angústia, reinserindo-o, social e
juridicamente, naquilo que considera a legitimidade
SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo –
aspectos médicos-legais. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais,
1993.
2 Informação retirada do Parecer e Proposta de Resolução sobre
Cirurgia Transgenital de abril de 1997, anexo à monografia
mencionada e referência para a elaboração desse texto.
1
Na adolescência, eu tive uma gravidez psicológica
mesmo sem ter relacionamento sexual. Sempre tive
vontade de ter um filho! Eu tinha esperança de que
as pessoas, em breve, me aceitariam como mulher!
Depois da cirurgia, eu não vou ter que tentar
esconder nada. Vou, naturalmente, sem me
preocupar, viver o meu ser!
Teria aceitação maior na sociedade, porque
ninguém ia me ver como homem, ou como metade
homem, metade mulher.
Uma vez, dei uma entrevista dizendo que eu via
meu órgão como um câncer. Que não era parte de
mim. O hábito de tomar banho era difícil, um
sofrimento! Eu odiava ‘aquilo’! Muitas vezes, quis
cortar ‘aquilo’ ali, mas não o fiz porque lia muito e
sabia que ia precisar ‘dele’ para a cirurgia. 4
A cirurgia resolveria, com certeza, toda minha
vida.[...] A minha vida social, afetiva e no trabalho
melhoraria. (sic) (informações verbais).3
Assim, vê-se que alguns desses sujeitos sociais
chegam a se imaginar mães. Outros incorporam a
ideia de deformação humana: meio homem, meio
besta. O que há de comum em seus discursos é a
afirmação de que todos vivem atormentados por seu
desajuste psicossocial. É firme sua consciência de que
não são aceitos socialmente. A dificuldade de se
inserir, de assumir uma identidade sexual diferente
Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de
Grance.
3
Estes sujeitos discriminados encontram grande
dificuldade em serem aceitos, perdem empregos e são
marginalizados. Sofrem uma das mais perversas
formas de exclusão social. O preconceito reverbera,
sorrateiramente, no encalço das diferenças. Os
acuados deixam escola, emprego, amigos e família.
Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida,
citados na monografia
de Grance.
4
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Já passei por várias situações difíceis na escola e no
trabalho. Já levei até cuspida e chute! Eu estudava à
noite, porque trabalhava de dia para pagar os
estudos. Na sala do lado, tinha um rapaz que vivia
me agredindo e gritava coisas horríveis para mim!
Eu estava saindo um dia para pegar o ônibus e ele
jogou o carro em cima de mim. Me machuquei
bastante! (sic).1
Mesmo a aprovação do projeto do Deputado
José de Castro Coimbra2 pela Comissão de Justiça da
Câmara Federal, projeto este que trata do
reconhecimento do transexualismo nas várias esferas
sociais, não foi suficiente para impedir manifestações
de repúdio como essas e acusações de amoralidade
contra os transexuais nem mesmo nas altas esferas
políticas. Este fato causa espécie, além de sustentar
atitudes de desrespeito, segregação, chacota e
violência contra os transexuais por parte de outras
esferas da sociedade.
Nesse sentido, a própria existência de
procedimentos de ordenamento jurídico nacional,
baseados em princípios constitucionais e éticos,
Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de
Grance.
2 No direito internacional, existe uma forte corrente favorável ao
reconhecimento do transexualismo administrativa, judicial ou
legislativamente. Na doutrina nacional, que se tem manifestado
favoravelmente a esse reconhecimento tem-se, aprovado pelo
Congresso Nacional, o Projeto de Lei n. 70, de 1995, de autoria do
deputado paulista José de Castro Coimbra, propondo alterações no art.
129 do Cód. Penal e no art. 58 da lei de Registros Públicos, que tratam
do assunto.
1
informa-nos sobre o infortúnio físico e psicológico de
transexuais e seus efeitos no convívio social. São
pessoas que passam longos períodos de suas vidas
aguardando a chance de uma cirurgia de
redesignação de sexo. Enquanto isso, insultos,
agressões, isolamento, carências afetivas, dificuldades
econômicas vão devastando a integridade social e
moral desses sujeitos, destruindo sua condição
humana e reforçando, nesses sujeitos, o desejo de se
redefinirem sexualmente
Eu tenho essa cirurgia como a maior vitória da
minha vida. Eu vou poder viver a partir daí, porque,
hoje, eu vivo, mas vivo escondendo. Vou nascer de
novo!. [...] Gostaria muito de fazer a cirurgia, retirar
os seios, engrossar a voz e ter barba. Ser o que
realmente sou. (sic) 3
A maior expectativa do transexual é, portanto,
a de adaptar sua aparência ao seu sexo psicológico.
Entretanto, sua transfiguração requer cirurgia
genital, ablação de mamas e histerectomia, no caso de
transexual feminino, ou cirurgia plástica para
formação de mamas, se transexual masculino. Exige
também acompanhamento médico para que dosagens
hormonais sejam ministradas, objetivando o
Depoimentos fornecidos durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de
Grance.
3
aparecimento das características secundárias do sexo
que deseja assumir. 4
Como parte desse processo de transfiguração
há, ainda, as técnicas psicoterápicas de readequação
do transexual a seu sexo biológico. Tais técnicas,
entretanto, vêm se apresentando completamente
ineficazes,
principalmente
porque
não
há
colaboração do paciente. Por isso, o CFM divulgou
nova diretriz de autorização, aos médicos, de
realização do tratamento cirúrgico de transexuais.
Essas novas diretrizes seguem normas de saúde
internacionalmente conhecidas, que incluem um
mínimo de dois anos de acompanhamento
terapêutico, por uma equipe multidisciplinar, antes
de autorizada a cirurgia.5
Com base nessas definições do CFM, o MPDFT
acompanha, cautelosamente, todas as etapas do
procedimento de transfiguração para assegurar os
limites legais da terapia. O foco das providências
judiciais ou extrajudiciais, civis, criminais ou
SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo –
aspectos médicos-legais. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais,
1993.
5Conforme consta no Parecer do CFM já citado: “nesses casos, temos os
sete níveis de diferenciação sexual concordantes, excetuado o sexo
psíquico, funcional e cerebral. O indivíduo só se identifica com o sexo
oposto, não aceitando em nenhuma hipótese manter-se na condição
disfórica; não tem absolutamente funcionalidade sexual ativa, apresenta
ereção insuficiente, masturbação ausente e repulsa ou desejo de
castração do próprio genital, além de busca desesperada por auxílio
científico. Seu hipotálamo induz ao comportamento e aparência física
do outro sexo”. (BRASIL. Conselho Federal de Medicina, 1997, p.3).
4
Revista História - 84
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
administrativas decorre, entre outras coisas, da
necessidade de se garantir, à equipe médica, a
segurança jurídica necessária para que a cirurgia não
seja confundida com lesão corporal grave. Retira-se,
desta medida protetora, os cuidados com a validação
jurídica da medicina. O objeto transexualidade é,
portanto, um procedimento médico-jurídico que
resguarda os aspectos legais e assegura proteção aos
médicos, mais do que ao paciente.1
As condições para se submeter à cirurgia, por
sua vez, impõem que o paciente atenda a dez critérios
bem definidos pelo CFM2. A prioridade é não ferir os
Dos fundamentos para efetivar a cirurgia corretiva, justifica-se ser
uma “proposta ética conciliatória entre a possibilidade plástica e os
impedimentos legais que vedam a mutilação do ser humano, vista como
a simples supressão de órgão ou funções, conforme o artigo 129 do
Código Penal: ‘Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
perda ou inutilização de membro, sentido ou função’”. Então, a
proposta é reconhecer a prática médica como “opção terapêutica [da]
cirurgia que se dispõe a remodelar a genitália externa de acordo com o
sexo psíquico.” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n.
39/97. Dispõe sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre
Transexualismo, Brasília, DF, p 4).
2 Esses critérios são:1 – capacidade civil plena; 2 – estar em dia com as
obrigações militares; 3 –estado civil solteiro(a), viúvo (a) ou
divorciado(a); 4 – não ter a guarda de filhos menores, salvo casos
excepcionais; 5 – Não ter antecedentes criminais; 6 – diagnóstico
médico e psicológico de transexualidade definido após
acompanhamento multidisciplinar por prazo superior a dois anos;7 –
capacidade mental para receber informações gerais e prestar
consentimento esclarecido; 8 –capacidade física para ser submetido à
cirurgia; 9 – risco cirúrgico normal; e 10 – consentimento esclarecido
por escrito em todas as fases da habilitação. Brasil, Ministério Público
da Uniâo, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,
Habilitação para cirurgia de Transgenitalização. Processo no.
001045/016, R.R.F., In: GRANCE, Danielly de Oliveira. Da Identidade
Sexual à Identidade Social. Monografia de conclusão de graduação
apresentada no Departamento de Serviço Social da UnB , 2003, p.44.
1
interesses do paciente e/ou dos médicos. Daí o
caráter cauteloso do MPDFT em evitar risco ao
tratamento e controlar gastos de recursos públicos,
evitando ações indenizatórias de pacientes
insatisfeitos com os resultados da cirurgia. A questão
que se estabelece é: em que medida essa
correspondência psicológica corrobora com sua
imagem física, externada socialmente? Sabem estas
pessoas que há riscos a correr, como, por exemplo, o
resultado insatisfatório da cirurgia, a perda da libido,
do prazer, a não corporificação das características
secundárias da sexualidade desejada. Não se pode
negar que a euforia com a possibilidade de realizar
um procedimento por muito tempo esperado possa
confundir as expectativas dos pacientes com as
consequências reais. Logo, e acertadamente, o
consentimento e as informações detalhadas do
paciente para esse procedimento amplo e moroso são
elucidativos para a compreensão do que significa esse
processo, por parte do próprio candidato, assim como
para sua decisão sobre permanecer, ou não, no
Programa de Transgenitalização. Apesar do risco, é
exatamente no imperativo existencial da busca da
felicidade que se ampara o argumento da
legitimidade da cirurgia.3 Portanto, não é por acaso
que estas questões interpelam por demais os que se
Ver BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe
sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo,
Brasília, DF, p.6.
sentem excluídos da possibilidade de se apresentar
socialmente como se percebem.
Em todo esse processo, há o entendimento do
CFM de que a execução da cirurgia de redesignação
de sexo “visa democratizar o acesso à intervenção
cirúrgica para as minorias sexuais oprimidas e
discriminadas”. (BRASIL, 1997: 7).
No que diz respeito ao MPDFT, sua
intervenção nessa “luta social” se norteia em direção
à redução do preconceito religioso, moral e social nos
seguintes termos:
A intervenção do Ministério Público tem a
finalidade de afastar o enorme preconceito religioso
e moral que ainda classifica o transexual como um
depravado perante Deus e os homens, o que não tem
sustentação jurídica num país laico em que a
separação entre o Estado e a Igreja é básica para
que, no exercício das funções que lhe são típicas,
esse mesmo Estado assegure a cada indivíduo ou
cidadão a liberdade religiosa, incluindo, aí, a
garantia do direito de não ser submetido a decisões
judiciais, ministeriais ou de qualquer outro agente
político ou administrativo, embasadas em princípios
religiosos, filosóficos ou ideológicos de quaisquer
espécies.4
Assim, a indefinição sexual de homens e
mulheres que não se reconhecem na forma sexual
3
4
RIBEIRO, Diaulas. Transexualismo: a abolição da escravatura. Correio
Braziliense. Brasília, Cidades, 21 set 2000, p.21.
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anatômica com a qual nasceram não apenas isola o
indivíduo, mas o condena e o marginaliza
socialmente porque, nos papéis sociais previstos, ele
ou ela não se encaixam. O raciocínio é simples: se
não está clara sua situação de gênero, não há como
cobrar deveres sociais nem garantir direitos. Sua
cidadania fica comprometida e sua habilidade social
corrompida pela pequena margem de ação que lhe é
oferecida: “Para a sociedade, não é tão importante
que você seja bonito ou feio, mas é fundamental que
você se defina como homem ou como mulher.” 1
Tem-se, até aqui, um relato dramático da
situação de pessoas que acreditam fortemente que a
mudança de sexo representará uma mudança de vida.
Elas poderão assumir, no modo de vestir, nos gestos,
na voz e nos hábitos comportamentos característicos
do sexo com qual se identificam internamente.
Embora a revolução sexual dos anos 60 tenha
aberto caminho para a conquista de muitos direitos
femininos, para a aceitação da homossexualidade e
do lesbianismo, esses temas ainda são tabu nas
sociedades contemporâneas. Filmes comerciais
passaram a retratar a temática, mas ainda com
algumas restrições. Embora cenas de comportamento
homossexual sejam insinuadas, elas jamais foram
Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de
Grance.
1
mostradas de forma tão explícita quanto as de casais
heterossexuais.
Assim, compreensivelmente, está registrado na
mentalidade coletiva um padrão de comportamento
previsível para homens e para mulheres. Portanto,
alguma uniformização está assente na nossa cultura.
Apesar da citada revolução, ainda se exige que os
homens sejam fortes, desportivos, lutadores,
racionais, que tomem a iniciativa e que se
responsabilizem pelas finanças do lar. Das mulheres,
espera-se que, em vez da força, usem o artifício e a
astúcia, que ajam com a intuição, discrição e
emotividade, que prefiram atividades menos
violentas, que contribuam com uma parcela menor
para o orçamento do lar, onde executarão a maioria
das tarefas.
Bem demarcados os territórios masculinos e
femininos, entende-se, mais facilmente, o drama do
transexual, que vive, dia após dia, o terrível conflito
de identidade sexual; vive, cotidianamente, o dilema
entre o que é cobrado com base em sua compleição
física e o que ele próprio expressa como concepção
de si mesmo no mundo sexual e, por consequência,
no social.
Nessa ambiguidade, esses sujeitos
denunciam, em suas falas que, ao mesmo tempo em
que são discriminados na vivência familiar, nas
brincadeiras infantis, na escola e nas amizades da
juventude pelo fato de serem “diferentes”, também se
sentem diferentes e se comportam de modo a reforçar
a discriminação e a segregação social que sofrem.
Interiorizam, assim, uma postura defensiva de si
mesmos e do ataque do outro, num duplo jogo de
violência simbólica que se alterna e torna a situação
do transexual mais vulnerável e mais instável
psicológica e socialmente.
Essa situação é marcante no mundo do
trabalho, porque é ali que o indivíduo se expõe como
profissional, concorre por cargos, procura novas
habilidades, sofre as conseqüências das suas decisões,
dos seus acertos e erros.
As transformações no mundo do trabalho que
se operaram a partir da década de 70 centralizaram o
processo produtivo na ciência e na tecnologia,
desequilibrando
as
relações
trabalhistas
e
desqualificando trabalhadores, submetidos a formas
de trabalhos precários e instáveis. Se esta situação não
é sinal de bons tempos para os indivíduos que se
enquadram no padrão do “bom cidadão”, certamente
não o será para os transexuais, que vivem em
constante tensão com seu próprio corpo e com a
“normalidade” social
Inevitavelmente, encontraremos, no mercado
de trabalho, em diferentes setores de produção,
serviços e comunicação, pessoas que se beneficiaram
da sua própria indefinição sexual e obtiveram sucesso
e reconhecimento social. Mas estes são casos raros. A
massa desviante está nas classes populares, sem
recursos financeiros para ajustar desejo pessoal e
Revista História - 86
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demanda social, para maquiar um problema desta
natureza como excentricidade temporária, como
fazem os mais favorecidos.1 Isto não quer dizer que os
transexuais de classes mais abastadas não sofram com
os dilemas sociais e psicológicos que a
transexualidade implica. Entretanto, eles encontram
meios e recursos para diluir os efeitos negativos e
tirar proveito social e econômico da situação. No
entanto, isto não coincide com as experiências da
maioria dos transexuais. Até a escolha do trabalho é
periférica. Para a maioria deles, a melhor das
hipóteses é tornar-se cabeleireiro.
Meu primeiro emprego foi numa padaria, mas eu
me vestia como ‘mocinha’. Por isso, fui procurar
emprego em casa de família. Eu sabia que em casa
de família eu ia ser aceita e tratada como uma
pessoa normal (sic).3
Sinto dificuldade de conseguir um emprego por
causa da minha situação. Acredito que a saída seria
um concurso público, pois os outros trabalhos que
faço, como aulas particulares e trabalhos de
digitação não têm muito retorno [...] Acredito que a
cirurgia me fará mais segura para competir mais e
entrar no mercado de trabalho (sic).4
Vejamos o que dizem alguns desses sujeitos:
Quando cheguei aqui, trabalhei de tudo para me
manter. Trabalhei de empregado de supermercado,
de empacotador. Em padaria, como balconista.
Depois, trabalhei em hospital público. Então, nessa
época, pensei em fazer o curso profissionalizante de
cabeleireiro, pois quando se é homem e tem
aparência de homem, é mais fácil arrumar emprego.
Mas, para gente que muda, mais por causa da
aparência, o único emprego que se encaixava era
cabeleireira (sic).2
Segundo preceitos estabelecidos no BRASIL. Conselho Federal de
Medicina.
Parecer
n.
39/97.
Dispõe
sobre
Cirurgia
Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo, Brasília, DF, p.
6-7, o CFM dispõe:”a justiça porque envolve a cidadania, o direito da
pessoa não ser discriminada no pleito à cirurgia, já acessível à
população de classe média e média alta.”
2 Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de
Grance
1
Destaca-se, desses depoimentos, o fato de essas
pessoas não se sentirem seguras quanto à
compatibilidade de sua indefinição sexual com o
trabalho a desempenhar.5 Chama a atenção, por
outro lado, o fato de esses sujeitos procurarem
Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de
Grance.
4 Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do
Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de
Grance.
5 Embora o mercado esteja cobrando mais habilidades, mais
conhecimentos, mais treinamentos e mais competência no desempenho
de atividades profissionais; embora esteja procurando um trabalhador
com perfil mais polivalente, que circule por diversas áreas do
conhecimento e com familiaridade em diferentes tecnologias, nada é
mencionado, nos depoimentos colhidos, sobre a competência
profissional desses transexuais. Ver: LARANGEIRA, Sônia M. G.,
Realidade do trabalho ao final do século XX. In: Ser Social, Brasília,
UnB, nº 5, jul./dez./1999.
3
funções nas quais a condição de transexual não seja
uma barreira: cabeleireiro, doméstico, digitador ou,
em última instância, funcionário público.
Certamente, o conforto do serviço público está
no regimento geral, conduzido por forte noção de
ética. Além disso, os critérios de seleção e convívio no
espaço de trabalho são embasados em princípios
legais de legitimidade do ser humano, respeito à
diferença e criminalização da discriminação. Mesmo
assim, nada garante que os transexuais não sejam
submetidos a situações de constrangimento nas
relações subjetivas no local de trabalho.6
Há de se ressaltar o posicionamento, que cada
um dos entrevistados demonstra, de se estar vivendo
na anormalidade.7 A questão, portanto, está na
DOMINGUES, J. M. A estratificação social, o capitalismo e o futuro do
trabalho. In: DOMINGUES, J. M. A. Sociologia e modernidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
7Este termo deriva da noção de comportamento normal, e “normal”
refere-se à falta de desvio significante da média. A não normalidade
refere-se a situação imprópria, doença. Por outro lado, a palavra
“anormal” varia enormemente em relação ao grau de satisfação ou não
com que uma situação se apresenta para outra pessoa. É por isso que,
no inglês, alguém engraçado é denominado de “pleasantly disturbed”.
No DICIONÁRIO OXFORD, “normal’ quer dizer conforme o padrão.
Isto é, pessoa que se comporta conforme o comportamento
predominante da sociedade. Imitar comportamento deliberada ou
inconscientemente está, portanto, intimamente ligado ao medo da
humilhação ou rejeição. No dicionário AULETE CALDAS, “normal”
significa: 1 – pessoa mental e fisicamente saudável; 2 – que não foge,
em termos de comportamento, à regra da maioria das pessoas; 3 – que é
social ou moralmente aceitável; 4 – que é usual, comum, habitual,
corriqueiro; 5 – que tem reação natural ou habitual; 6 – que é segundo
a norma ou padrão. Neste e em outros dicionários, a palavra está
associada à ideia de um padrão e de normas específicas para avaliar o
6
Revista História - 87
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
ratificação dos testemunhos sobre a anormalidade.
Em suas falas, os transexuais se consideram anormais.
Isto quer dizer que concordam com a norma, com os
papéis sociais distribuídos por gênero. Então, o
antagonismo entre forma e conteúdo não é percebido
como uma possibilidade, como um fenômeno da
natureza humana, pois já está escrutinado como
anormalidade, monstruoso e inaceitável; refere-se a
um distúrbio de identidade sexual que o MPDFT, em
parceria com o CFM, tenta corrigir, posto que
anormal.
A antagônica condição do transexual não se
restringe, então, à sua própria vontade de corrigir e
recompor sua unidade biopsicomorfológica. O poder
das normas sociais percorre sinuosamente os
quarteirões da cidade, os quartos de dormir e,
finalmente, invade a mente humana. É ali que se
instala a noção do perigo e da culpa. A vontade do
indivíduo em situação de transexualidade está
fortemente estereotipada por normas e valores
sociais. As sociedades “julgam” que o desencontro
entre sexo físico e sexo psíquico não é um problema
individual, mas uma questão social, das linhas
divisórias na sociedade entre o legítimo e ilegítimo, o
normal e o anormal.
comportamento dos membros de determinada sociedade. Não é por
acaso a presteza do dito popular que, em socorro ao incerto, avisa: “de
perto, ninguém é normal”.
2 A Sexualidade Ilegítima
Interessado pela constituição da ordem social,
Foucault analisa a sexualidade ocidental como
resultado de uma rede de discurso que toma forma a
partir do século XVII. Para ele, não é a repressão que está em foco,
mas a prática do falar sobre, do revelar-se.
Falou-se, e muito, sobre sexo. Marcada por
um código de moralidade e polidez profundamente
destoante da franqueza medieval, quando não se
guardava segredos, vigorando a tolerância com o
ilícito, com a obscenidade e as grosserias, a história
da sexualidade, na modernidade, articula interdição e
conhecimento. A sexualidade é cuidadosamente
encerrada na casa, na família, em que o casal
legítimo e procriador é o modelo. É na repressão ao
sexo que a burguesia contabiliza seu poder, oferece
um discurso pretensamente verdadeiro e procura
“modificar sua economia real”.1 Os mecanismos de
poder são ativados pela vontade de se instituir a
cidade normal, onde a autoridade, a centralidade e a
repressão são da competência do Estado, mas não se
reduz a ele. A sexualidade é assistida e legitimada por
um poder jurídico-discursivo, que atua como um
micropoder, como demonstração da onipresença do
poder que se acha em todos os lugares.
FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol1.
10ª. Ed.,Rio de Janeiro: Graal: 13
1
Assim,
constitui-se
uma
ciência
da
sexualidade, pela vontade de saber e pela proliferação
de discursos sobre o sexo. Descreve-se e classifica-se
o “anormal” pelo discurso, de modo a regulamentá-lo
e, finalmente, dominá-lo. A explosão discursiva
estabeleceu regras de decência e vocabulários
autorizados e delimitou lugares e regiões onde o
ilegítimo se encontrava. Assim, nova prática se funda
pelo policiamento dos enunciados, demarcando
regiões de silêncio, outras de traquejo ao falar e
outras de profunda discrição. O deslize na fala ou no
gesto pode ser um sinal de perigo, e a vigilância
solicita diagnósticos emitidos pela ciência da
sexualidade.
Ciência da sexualidade, psiquiatria e justiça penal
proferem discursos, diagnósticos, terapias, relatórios,
em prol da manutenção do controle social pelo filtro
da sexualidade normal ou não. A excitação com que
o objeto é tratado nos diferentes espaços profiláticos
conduz Foucault a identificar certa erotização do
discursivo, pois se criaram, em todo canto e em toda
parte, dispositivos para ouvir e registrar,
procedimentos para observar, interrogar e formular.
Talvez nenhum outro tipo de sociedade jamais tenha
acumulado, num período histórico relativamente tão
curto, tal quantidade de discurso sobre o sexo.2A
polícia vai agir para regular o sexo com discursos
informativos; áreas da ciência médica vão eliminar os
FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol1.
10ª. Ed.,Rio de Janeiro: Graal: 34
2
Revista História - 88
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
estereótipos característicos da Idade Média e
substituí-lo
por
discursos
analíticos
e
intervencionistas nas condutas sexuais da população.
O Estado se interessa sobre o sexo dos cidadãos, bem
como sobre seus usos, para controlar suas práticas.
Nos séculos XIX e XX, os dispositivos de controle se
ampliaram. Inicia-se, na mesma época, o tempo das
heterogeneidades sexuais. O marco legítimo continua
sendo o casal monogâmico e heterossexual. Ao
mesmo tempo, inicia-se a caça às sexualidades
periféricas. Interroga-se a sexualidade das crianças,
dos loucos e dos criminosos; incrementa-se o cuidado
com os devaneios, as obsessões, as pequenas manias e
as grandes raivas.
O reconhecimento dessa heterogeneidade sexual
institui, no século XX, mecanismos de “cura” em
sintonia com os de controle. Assim, a barreira entre
legítimo e ilegítimo se estreita, porque são dados, aos
sexualmente “diferentes”, atenção e tratamento
discriminado positivamente, para tentar corrigir uma
“anormalidade” física. Isto é feito sob a mais severa
vigilância institucional, médica e jurídica, com o
rigor discursivo e o controle sobre as práticas sexuais.
Os prontuários dos transexuais atendidos no
Programa de Transgenitalização, do Pró-Vida,
tornam-se objeto da mais minuciosa investigação. A
vida do indivíduo é exaustivamente descrita, seu
corpo é documentado por registros fotográficos, sua
situação física é submetida a demarcações. Juristas,
assistentes sociais, psicólogos e médicos são os
agentes autorizados e legítimos para proferir
pareceres sobre o caso e definir seu destino. A técnica
médica e a mecânica do corpo passam a controlar o
rigor discursivo, que deve atender a requisitos
protocolares rigorosos. Além disso, mais que
conhecer, a preocupação das instituições se estende a
procedimentos de “cura” e à correção cirúrgica,
instruída pelo entendimento de que a unidade
biopsicomorfológica está acima da função
reprodutora. Nos termos do Parecer 39/97:1
Essa dicotomia não foi provocada pela mão do
homem, nem por caprichos de índole sexual das
minorias oprimidas, mas pela própria natureza em
sua infortunística fisiológica de má formação. E
pode, no caso, corrigir o homem aquilo que a
natureza, por descuido, deformou. (BRASIL, 1997:6)
Para entender este procedimento, Foucault considera
os elementos que constituem o grupo dos anormais e
elaboramos um breve resumo sobre os três tipos:
o monstro humano que combina o
impossível e o interdito: é um domínio jurídicobiológico. Sucessivamente, as figuras do ser meio
homem, meio bicho, as individualidades duplas, os
hermafroditas representaram essa dupla infração. O
1.
Ver BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe
sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo,
Brasília, DF, p.6.
1
que faz com que um monstro humano seja um
monstro não é tão-só a exceção em relação à forma
da espécie, mas o distúrbio que traz às regularidades
jurídicas.
Como
desdobramentos,
inúmeros
equívocos continuam a rondar a análise e o estatuo
do anormal, porque há um enorme descompasso
entre as noções de natural e de natureza, que
embora modifique os efeitos jurídicos da
transgressão, não os apaga;
2.
o indivíduo a corrigir: personagem mais
recente é submetido às técnicas de disciplinamento,
a partir dos séculos XVII e XVIII, no exército, nas
escolas, nas oficinas e, finalmente, nas próprias
famílias contra práticas de adultérios, incestos,
sodomia, bestialidade. São procedimentos de
disciplinamento do corpo, do comportamento, cuja
normatividade não é mais a soberania da lei, mas
uma interdição social, que desqualifica o indivíduo
como sujeito de direito e utiliza, como medida de
correção, o internamento;
3.
o masturbador: figura nova ainda no
século XVIII, tem como campo de aparecimento a
família com a ação da criança masturbadora.
Refere-se à posição da criança no meio do grupo
parental, e ao espaço do quarto, da cama e do corpo.
Passa-se a reconhecer o corpo sexual da criança que
precisa ser controlado contra o abuso sexual que a
criança comete com seu próprio corpo. A correção é
um ato se de desfere sobre os pais, agentes
responsáveis que negligenciaram na vigilância e se
Revista História - 89
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
desinteressaram pela conduta dos filhos. A palavra
de acusação agora é depravação, responsável pela
reprimenda às babás, empregados, pais e parentes.
A nova economia das relações intrafamiliares é
controlada pelo médico, que arbitra e regula as
relações e a vigilância familiares. Entra em cena a
sexualidade da criança e suas anomalias como novo
dispositivo. 1
Curioso é que as declarações dos transexuais
sobre a percepção da diferença demonstram que a
descoberta de sua “anormalidade” ocorreu
geralmente na infância. É no seio da família que se
arbitra sobre comportamento e vestimenta apesar de
o menino preferir a boneca, ao carrinho, e o vestido
da irmã. Sob coação e longas reprovações, vão-se
desenvolvendo mecanismos de a criança se
conformar com o exigido. O mesmo ocorre com a
menina que prefere o short e o futebol.
Essa obsessão infantil em preferir aparentar-se
e comportar-se como o sexo oposto é exaustivamente
recriminada também fora do espaço familiar.
Medidas disciplinares localizadas são adotadas, mas
parece que sem se dar muita importância para a
diferença que desponta como uma teimosia de
criança. Parece que são poucos os familiares que
procuram ajuda psicossocial. Será, então, que o
procedimento adequado é o de reforçar a divisão
sexual feminino/masculino?3
Fica incógnita a natureza da transgressão na
criança e no adolescente. De todo modo, já algo se
Cena do Filme Flewless (Ninguém é perfeito) 2
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.69-94.
2
Fonte:
http://www.interfilmes.com/filme_14016_Ninguem.e.Perfeito(Flawless).html
Filme do diretor Joel Schumacher dirige uma história em que Robert De
Niro é ex-policial italiano linha dura, aposentado, conservador,
orgulhoso que vive na Cidade de Nova York. Um dia bandidos atacam o
cortiço onde ele vive. Um vizinho seu estava envolvido com negócios
escusos, ao tentar ajudá-lo, recebe um golpe do destino sendo
1
acometido por um derrame, que o deixa com paralisia parcial do corpo,
precisamente
o
seu
lado
direito.
Recusando-se a deixar o apartamento em que vive, Walter (Robert De
Niro) concorda com um programa de reabilitação que inclui aulas de
canto com um artista que mora no apartamento de cima: uma drag
queen chamada Rusty, interpretada por Philip Seymour Hoffman.
3 Supõe-se, logo, que a desqualificação do indivíduo começa ainda na
infância. Exames médico-psicológico geram relatórios denunciatórios
de práticas consideradas ilegítimas, cujo efeito é colocar o indivíduo em
condição de infração às normas e sob a suspeita, de acordo com o
discurso legal que se constitui, de representar perigo para a sociedade.
configura em termos da plasticidade física e gestual
que denunciam a “anormalidade” o tempo todo.
Assim, a desqualificação não se dá apenas pela
incompatibilidade sexo externo/interno, mas
também, e talvez mais aviltantemente, com a seleção
de trajes, gestos, ornamentos, comportamento,
preferências que conferem, ao corpo, algo de
grotesco, infame e ridículo. 4
Eis, aí, a descrição de uma conduta rotulada
como delito contra a moral e a ordem pública. As
presunções estatutárias de verdades ancoradas em
descrições psiquiátricas têm valor de lei, podem
aumentar a infração do indivíduo apenas pela
avaliação da disposição de seu caráter. Assim sendo,
pelo perigo social aludido à sua figura, é-lhe, já de
antemão, conferido o título de “criminoso por
propensão”. A isto Foucault denomina de
parapatologia, um defeito moral, próximo da doença.
No entanto, a prova de um comportamento
considerado moralmente defeituoso não é uma
patologia, tampouco infração criminosa, porque a lei
não impede ninguém de ser o que é, mas é suficiente
para transformar o indivíduo sob suspeita em réu.
Situação irremediável na base social cujas
representações sexuais e sociais são, como referência,
por demais confinadas no padrão do heterossexual e
monogâmico. É exatamente por essa condição de réu,
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.16 e
seguintes.
4
Revista História - 90
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
isto é, do sujeito perigoso para a sociedade pela
disposição de seu caráter e pelo defeito moral, que o
Programa de Transgenitalização disponibiliza
procedimento clínico cirúrgico-corretivo aos
transexuais.
Enfim, os agentes envolvidos no processo de
redesignação sexual salientam a importância do
exame psiquiátrico. É ali que se descreve o caráter
delinquente, as condutas criminosas, enfim, instrui o
processo em termos da culpa real, para que o juiz
afiance o julgamento psiquiátrico para concluir pela
anormalidade que precisa ser curada. Só então o
transexual será submetido à cirurgia reparadora.
Este diálogo com Foucault conduz à força da
frase: “O duro ofício de punir vê-se assim alterado
para o belo ofício de curar”.1 Vale ressaltar que, na
virada do século XX para o XXI, os avanços nas
técnicas médicas tornaram-se um dispositivo que não
apenas cura, mas corrige, transforma imperfeições e
defeitos em obras de arte. Dá nova forma, altera a
fisionomia, remodelando nariz, olhos e boca; adéqua
o tamanho e forma do seio ao estilo do corpo, afina
cinturas, implanta cabelos e dentes e tantos outros
milagres que a medicina oferece na busca do corpo
perfeito. São práticas que funcionam também como
dispositivos para atuar sobre o corpo anormal como
relevância social. No parecer inúmeras vezes citado, o
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.29.
1
corpo deixa de ser o cativeiro do indivíduo. O
princípio e o fim da condição humana estão na busca
de prazer, e o corpo deve ser um instrumento de
realização dessa vontade. O corpo se justifica, então,
como fonte de beleza e hedonismo. 2
Mas o problema dos transexuais não é a
imperfeição ou o defeito físico, mas, sim, a
“inadequação” físico-psicológico. O trauma está na
não correspondência do físico com o comportamento.
A aberração é a negação do seu próprio sexo e o
desejo pelo sexo do outro. A cirurgia tem, então, a
missão de transformar a “anormalidade psicológica”
em reassentamento civil; de adequar o indivíduo a
uma conformação corporal compatível com seu
comportamento e retirá-lo da suspeita ou da quase
criminalidade. Atrás desse procedimento está a
autoculpabilização, o não reconhecimento de si
mesmo como normal. Não é apenas a sociedade que
expõe os transexuais a situação de anormalidade, mas
eles mesmos se identificam como anormais. Deste
modo, não há o que queixar no que se refere à sua
inserção no mundo do trabalho. Se trabalhar é um
bem social, um estatuto de reconhecimento das
A partir desta reflexão sobre a relação punição/cura, Foucault se
dedica à análise da loucura, como uma anomalia mental. A instituição
médica nesse caso toma o lugar da instituição jurídica, porque a
loucura apaga o crime. Os indivíduos em acompanhamento pelo PróVida não são questionados pela anomalia mental, mas pela anomalia
físico-psicológica de reconhecimento da sua sexualidade. Deste modo,
consideraremos a discussão de Foucault sobre perversão e
discriminação social.
qualidades produtivas dos indivíduos, o que aguardar
de alguém que sequer reconhece seu próprio sexo? A
voz surda da ineptidão se instala como dispositivo
para limitar a participação dessas pessoas no mercado
de trabalho. O reassentamento civil não garante o
reassentamento social. Sua imagem de inepto
prossegue. Trabalhar em quê? Vive-se uma farsa,
apresenta-se, nomeia-se, veste-se e gesticula-se como
o que não se é. Como confiar em alguém com estas
características? Como confiar-lhe um ofício, uma
responsabilidade se é a imagem da própria negação?
Vê-se como negação, como bestial, no limite do
humano. Cruel processo de apreensão de si, triste
imagem que projeta de si, infeliz sociedade que
recusa seu cidadão sob o pretexto da diferença que o
torna desconhecido, estrangeiro e ameaçador à regra
social. Não serve para o convívio social, nem para o
trabalho, a não ser os periféricos, quando não, os
ilegais. A transexualidade está, portanto, no
paradigma da ilegitimidade, da recusa social.
Emsituação com mais desvantagens do que as que
apresentam os autores que se dedicam no debate
sobre a reestruturação do mercado de trabalho no
século XX. 3
2
SABOIA, João. Tendências do mercado de trabalho metropolitano:
des(assalariamento) da mão-de-obra e precarização das relações de
trabalho. In: GOUVEA, Ronaldo Guimarães. Globalização, fragmentação
e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MATTOSO, Jorge Eduardo Levi.
Transformações econômicas recentes e mudanças no mundo do
3
Revista História - 91
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Consome o pesquisador a inquietação dos
limites do conhecimento e da imensidão da realidade.
Realidade que se apresenta de tão variadas formas e
com tantos artifícios para contrapor ou
contrabalancear a multiplicidade de vozes e práticas
sociais. É como se a grande questão desses transexuais
pudesse ser solucionada na cirurgia em si, na
compatibilização corpo e alma. Mas as mazelas da
natureza e do humano são maiores e incontáveis
porque, atrás deste gesto de conciliação
individuo/sociedade, persevera um universo marcado
pelo rigor normativo, no qual a aparelhagem mental,
a apropriação simbólica e a estrutura imaginária
imputam, a esses indivíduos, uma representação de si
mesmos e do sistema social no qual estão inseridos. A
cirurgia é um passo, mas há outros dispositivos
sociopolíticos nos quais essa conciliação esbarra. A
discriminação tem seus próprios dispositivos e vai
buscar, nas cavernas mais obscuras do social, os
elementos detratores dos indesejáveis. Deste modo, é
a partir da conduta da sociedade e do indivíduo, face
à discriminação, que poderemos entender os canais
abertos à inserção social dos transexuais.
trabalho. In: OLIVEIRA, Marco Antonio de (org.). Economia e trabalho:
textos básicos. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1998.
LIBERDADE GRATUITA:
DO DIREITO DE PROPRIEDADE A CONCESSÃO DA
MANUMISSÃO
Verônica Maria Nascimento Tapajós
Mestre em História Política (UERJ)
SME-Rio e SEE-Rio
Resumo
As cartas de alforria nos permitem contemplar em
parte a relação senhor-escravo. Mesmo sendo um
direito senhorial, a alforria foi perseguida e
conquistada pelos escravos que se utilizaram de
diversas táticas para conseguirem-na. Nos diversos
tipos de alforria existentes – gratuitas, onerosas,
testamentárias e condicionais – os escravos se
utilizaram de diversos modos para convencerem seus
senhores de que eram merecedores da manumissão.
Ao trabalharmos com as alforrias gratuitas nesse
artigo, evidenciamos este tipo de libertação como
uma concessão senhorial, já que o escravo era
considerado propriedade, e o direito de propriedade
era amplamente preservado pela sociedade na
primeira metade do século XIX. Contudo, um senhor
jamais libertaria um escravo que não fizesse por
merecer, logo, mesmo nas alforrias gratuitas,
percebermos a participação ativa dos cativos no
processo de libertação.
Palavras-chave: Escravidão, Alforria, estratégia e
tática
Résumé
Les lettres de manumission nous permet de répondre en partie
à La relationmaître-esclave. Même en tant que droit de maîtrise,
l'affranchissement a été poursuivi et capturé par des esclaves qui
ont utilisé diverses tactiques pour y parvenir. Différents
types d'affranchissement disponibles - gratuitement, coûteux, lês
legs et les contingents-les esclaves étaient utilisés de diverses
manières de convaincre leurs
maîtres
qui
ont
été dignes d'affranchissement.
Em travaillant avec l'affranchissement gratuit cet article, nous
prouvons ce type de libération comme le prix d'une
maîtrise, que les
esclavesétaient considérés
comme
des
biens et droits de propriété a été conservé en grande partie par
la société dans la première moitié du XIXe siècle. Toutefois, un
gentilhommene libérerait un esclave qui ne le méritait pas, de
sorte que même dans la musiqueaffranchissement, la réalisation
de la
participation active
des détenus dans
leprocessus de libération.
Mots-clés: l'esclavage, l'émancipation, la
stratégie et les tactiques
***
As manumissões pautadas no acordo entre
senhor e escravo, apresentam uma grande
diversidade de casos e muitas peculiaridades, já que
uma libertação nunca seria igual à outra. Estas cartas
iluminam e tipificam as complexas relações entre
dominadores e dominados.
Revista História - 92
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
nomeadas e assignadas, perante as
quaes me dice que servindo-a como até
aqui tem feito seu escravo Manoel
Crioulo que ela comprara em pequeno,
até o seu falecimento, logo do dia dele
em diante, ficará livre de todo cativeiro
podendo, de então, avaliar-se como tal
e conduzi-se por onde e como lhe
convier por bem desta liberdade, que
lhe confere de agora e para esse tempo,
de sua livre vontade pelo beneficiar e
por isso roga a Justiça de Sua Alteza
Real lhe fação cumprir e a mim
Tabelião lhe dou fé nesta Nota e sendolhe lida a aceitou por estar a seu gosto;
e eu Tabelião como pessoa pública a
aceito em nome do liberto; e de tudo
dou fé e de por esses distribuído pelo
bilhete seguinte: Eva Gomes dá
Escritura de Liberdade a Manoel
Crioulo; Rio de Janeiro, vinte e seis de
abril de mil oito centos e oito. Em dous
dias Monteiro Diniz assignou a rogo da
libertante por ela não saber escrever
[assinaturas das testemunhas e do
tabelião].1
Identificamos quatro tipos de cartas de alforria
classificadas a partir dos motivos que justificaram a
carta para a concessão da liberdade. São elas:
gratuita, onerosa, testamentária e condicional. Neste
artigo, optamos por trabalhar com as alforrias
gratuitas, bem como a principal questão que perpassa
este tipo de libertação: o direito de propriedade, já
que era um direito senhorial alforriar ou não aquele
que era considerado sua propriedade pela lei.
Antes de começarmos a análise das alforrias
gratuitas, optamos por transcrever duas cartas
integralmente, para que possamos ter a dimensão do
documento completo. Notemos que a estrutura das
cartas é a mesma (o que está sublinhado), só
diferenciando uma da outra no que diz respeito às
informações concedidas pelos senhores.
Escriptura
de
liberdade
condicional que dá Eva Gomes a seu
escravo Manoel crioulo.
Saibam quantos este público
instrumento
de
Escriptura
de
Liberdade virem que no ano do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oito centos e oito aos
vinte e seis dias de abril nesta cidade
do Rio de Janeiro em meu cartório
apareceu prezente Eva Gomes, solteira,
moradora na Freguesia do Pilar,
reconhecida das testemunhas adiante
1
AN, 1o Ofício de Notas, Livro 199, Folha 64.
Escriptura
de
liberdade
condicional q dá o Tenente Francisco
Antônio Medeiros a seu escravo Iora
Congo.
Saibam quantos este público
instrumento de Escriptura de liberdade
condicional virem que no anno do
nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oito centos e nove aos seis
dias de maio nesta cidade do Rio de
Janeiro, em meu cartório apareceu
presente o Tenente Francisco Antônio
Medeiros, morador na freguesia da
Alfândega, com negócio reconhecido
por mim Tabelião, e me disse perante
as testemunhas adiante nomeadas e
assignadas que possue hum escravo
por nome Iora de nação Congo que
comprara ainda pequeno, o qual o
havia instado [sic] era que lhe desse
liberdade sugeitando-se a servi-lo por
tempo de seis meses, data desta para
neste tempo lhe ensinar outro escravo
novo
afazer-lhe
as
comprar
necessárias para casa, servir e ir as
casas dos seus fregueses e amigos como
elle fazia, e atendo mais que necessita
saber para o serviço [sic]; e tão bem
sugeitando-se a forrar a sua mulher
pela quantia de dez doblas, dar o
Revista História - 93
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
mesmo escravo por si, como de facto
deu neste acto outra tanta importância,
por cuja causa queria ele outorgante
debaixo das condições acima referidas;
e por ter recebido aquela quantia de
dez doblas condesconder com a
vontade do dito escravo dando-lhe,
como lhe dá, debaixo das mesmas
condições que por ônus lhe impõem,
liberdade desde já para se poder tratar
como livre, e passados os seis meses
poderá conduzir-se por onde e como
lhe convier, por bem desta carta; que
roga a Justiça de Sua Alteza Real fação
cumprir e a mim Tabelião, lhe dou fé
nesta Nota, sendo-lhe lida a aceitou
por estar a seu gosto; e eu Tabelião
como pessoa pública a aceito em nome
do liberto e de tudo dou fé e de por
esses distribuído pelo bilhete seguinte:
Francisco Antônio Medeiros dá
liberdade a seu escravo de nação
Congo em seis de maio de mil oito
centos e nove. [assinaturas das
testemunhas, do senhor e do tabelião].1
2.1.
Escravidão:Condição do homem que é
propriedade de outro homem. 2. Estado
ou condição de escravo; escravatura,
escravaria, cativeiro, servidão. 3. Falta
de liberdade, sujeição, dependência,
submissão. 4. Regime social de sujeição
do homem e utilização de sua força,
explorada para fins econômicos, como
propriedade privada. A escravidão é
uma instituição que envolve um grau
de dominação/subordinação entre
pessoas, abrangendo desde o direito do
possuidor sobre a vida e a morte do
escravo,
até
disposições
legais
cuidadosamente detalhadas quanto aos
direitos e privilégios mútuos; o
elemento essencial do acordo é o
direito de forçar o escravo a trabalhar
ou prestar outros serviços em proveito
do senhor.2
Ser escravo significava pertencer a alguém. O
fato de uma pessoa não pertencer a si mesma, não ter
poder de mando sobre sua própria vida, indica a falta
de liberdade que era a característica mais marcante
da escravidão. Vemos então, na escravidão à
SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro:
Léo Christiano Editorial, 1997,
p. 138
2
1
AN, 3o Ofício de Notas, Livro 201, Folha 32.
O direito de propriedade
existência da relação dominação/subordinação, onde
quem escravizava exercia o poder dominante e quem
era escravizado tinha que se conformar (pelo menos
deveria) com a sua condição de subordinado, aquele
que era submetido a um poder maior que o seu.
Seria simplista demais falar em uma relação
entre dominador e dominado, como sendo dominador
o senhor e dominado o escravo. Sabemos que essa
relação era bem mais complexa, pois ao mesmo
tempo em que o senhor era aquele quem dominava
era também um alguém dominado, no sentido de que
era dependente de um sistema que a princípio, o
privilegiava: o sistema escravista. O que seria dos
senhores sem os escravos? Essa é a primeira pergunta
que devemos fazer para tentarmos compreender a
questão da dependência. Quem dependia de quem?
Que o escravo era por lei dependente do senhor era
algo meio óbvio, na lógica escravista, mais não
podemos perder de vista que, nessa mesma lógica, o
senhor é dependente do escravo e de sua mão-deobra.
No Brasil, juridicamente o escravo era
considerado propriedade de seu senhor. Isso significa
dizer que o escravo era uma mercadoria, da qual o
senhor tinha o direito de “alugar, emprestar, vender,
doar, alienar, legar, hipotecar e dá-lo em usufruto”.3
A única obrigação do senhor para com o escravo
seria alimentá-lo, vesti-lo e cuidar dele, caso
MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2001,
p. 182.
3
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
adoecesse. Com direitos tão amplos, ficava difícil
pensar no escravo sem a figura do senhor ao lado,
que o controlava e o dava ordens a todo o momento.
Olhando por essa lógica, parece-nos até que o
escravo era como um fantoche nas mãos do senhor,
mas, como já dissemos, devemos tomar cuidado com
tais afirmações simplistas, pois, embora fosse
considerado mercadoria, na verdade eram seres
humanos, tolidos pelo sistema que os oprimia, mas
com todas as faculdades e capacidades próprias dos
seres humanos. Daí a grande dificuldade nessa
relação patrimonial. O escravo possuía iniciativa e
era dotado de razão. Logo, as negociações faziam
parte da relação entre senhor e escravo. Será que um
senhor que possuísse um escravo poderia fazer o que
quisesse com ele pelo fato de ser sua propriedade?
Sidney Chalhoub afirma que não, pois existia
muito bem definido entre os escravos aquilo que ele
chamou de “autonomia escrava”. O autor afirma não
conseguir imaginar que os escravos não produzissem
valores próprios, ou que pensassem e agissem
segundo significados que lhes eram inteiramente
impostos.1 A violência da escravidão não
transformava os negros em seres “incapazes de ação
autonômica”, nem em passivos receptores de valores
senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e
indomáveis.2 Ao trabalharmos com as cartas de
alforria identificamos elementos dessa autonomia
escrava. Ainda que o senhor não libertasse escravo
algum sem a sua vontade, na maioria das vezes os
escravos que conseguiam suas alforrias souberam
negociar com seus senhores.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas
décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras,
2
1
1990, p. 38
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos
Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brasileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a
propriedade,
é
garantida
pela
Constituição do Império, pela maneira
seguinte.
XXII. É garantido o Direito de
Propriedade em toda sua plenitude. Se
o bem público legalmente verificado
exigir o uso, e emprego da Propriedade
do Cidadão, será elle préviamente
indemnizado do valor della. A Lei
marcará os casos, em que terá lograr
esta única excepção, e dará as regras
para se determinar a indemnização.3
(grifo nosso)
plenitude”. Por ser o escravo considerado uma
mercadoria, logo, ainda que o Código não legislasse
claramente sobre a escravidão, era entendido que os
direitos senhoriais eram amplos. Para Eduardo Pena,
tal artigo demonstrava plenamente seu “caráter
escravista”, uma vez que os escravos eram
reconhecidos como “objeto de propriedade”.4 Essa
relação de plenitude do direito senhorial foi, de certa
forma, alterada com a escravidão urbana, onde temos
a presença mais visível de um Estado que, por vezes,
interferia na relação de poder senhorial. A Câmara
Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, em 1838,
lança mão de um conjunto de Posturas, que
estabelecia regras para o bom convívio social. Tais
posturas visam regular uma cidade escravista, onde
os escravos estão “soltos” pelas ruas em busca de
serviços, a mando de seus senhores. A partir do
momento que os escravos “ganhavam” as ruas da
cidade era de se esperar que eles fugissem do âmbito
privado, devendo ser fiscalizados pelo poder público.
Reconhecendo a questão da propriedade e dos
amplos direitos que o senhor tem sobre o cativo,
analisaremos as alforrias, como sendo uma concessão
senhorial.
A Constituição do Império definia em seu
artigo 179 o “direito de propriedade em toda a sua
Ibidem., p. 42
Constituição do Império de 1824, Título 8o, artigo 179, parágrafo
XXII.
3
PENA. Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos,
escravidão e a Lei de 1871. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2001,
4
nota 6.
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2.2.
Alforriar é um direito senhorial
Como vimos, a lei garantia o direito de
propriedade em sua plenitude aos senhores de
escravos. Logo, sendo o escravo propriedade do
senhor, somente este poderia decidir sobre a vida
daquele e, isso incluia, o ato de alforriar. Alforriar era
um direito senhorial, pois por fazer parte de seu
patrimônio, o senhor detinha o poder de negociar os
seus bens, bem como, no caso das alforrias gratuitas,
abrir mão deles.
Alforriar um escravo era um ato que só
dependia do senhor. Contudo, libertar um escravo era
uma decisão um tanto quanto complexa para a época,
pois envolvia tanto questões de consciência individual
quanto percepções e avaliações críticas da sociedade
na qual participavam.1 O escravo era visto
socialmente como um “alguém” representado por seu
senhor, não possuindo personalidade jurídica. Logo,
quem respondia pelo escravo e pelos seus atos era o
senhor. Quando analisamos as posturas de 1838,
vemos que logo após a lei, vem escrita a sanção em
caso de descumprimento da mesma. A punição era
dirigida tanto para os senhores – que poderiam
responder através de multas ou retenção – quanto
para os escravos – que deveriam ser punidos com
castigos físicos e prisão. Logo, se o senhor possui essa
responsabilidade perante a sociedade, ele só poderia
1
CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 98.
alforriar escravos que, bem ou mal, soubessem se
comportar diante dos “brancos”. Aquele escravo que
fosse rebelde, que não aceitasse as estruturas de
poder, este jamais receberia a alforria de seu senhor.
Um dos pilares da política de controle social
da escravidão era o fato de que alforriar se constituía
num privilégio exclusivo dos senhores. Ou seja, os
escravos sabiam perfeitamente que se quisessem
conquistar de seus senhores suas manumissões
deveriam trilhar o caminho da obediência e da
fidelidade. Assim como a escravidão foi uma
instituição baseada na produção de dependentes, a
alforria – por ser um direito exclusivo do senhor –
manteve essa característica, transformando escravos
em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus
antigos donos.
A alforria não “cortava” os laços existentes
entre senhores e escravos, continuando a existir uma
relação de subordinação/fidelidade dos escravos para
com seus antigos donos. Prova disso, era que caso o
senhor se sentisse desrespeitado por um antigo
escravo, poderia – e isso era um direito garantido por
lei – reescravizá-lo. A revogação de alforria por
motivo de ingratidão estava prevista no título 13 do
artigo 4 das Ordenações Filipinas do século XVII.2 Tal
dispositivo tornava possível ao senhor anular o
documento de alforria com a mesma facilidade com
que o assinou. Essa situação só foi alterada a partir da
2
MATTOSO, Kátia. Op. cit., p. 180.
lei assinada em 28 de setembro de 1871, que
estabeleceu em um dos seus artigos a alforria forçada
por indenização de valor. A partir desta data, os
escravos que apresentassem, como indenização, a
“quantia” justa a seus senhores pelas suas libertações,
deveriam receber destes suas alforrias, mesmo contra
a vontade dos mesmos. É claro que essa história de
“alforria forçada” rendeu muitas dores de cabeça
para os magistrados da época, pois várias foram às
batalhas judiciais travadas entre senhores e escravos
sobre esse assunto.
Contudo, não podemos perder de vista nosso
corte temporal, que se insere na primeira metade do
século XIX, onde nem se sonhava pensar em alforria
forçada e o direito de propriedade era garantido em
sua plenitude. Logo, alforriar era uma decisão que só
cabia ao senhor.
2.3.
Cartas de Alforria Gratuitas
A liberdade gratuita seria aquela na qual o
senhor ao conceder a carta de alforria não cobrava
ônus do escravo. A princípio, quando o senhor não
exigia pagamento do escravo, ao libertá-lo, sendo este
um direito seu já que estava se desfazendo de parte de
sua propriedade, causa-nos a impressão de que este
senhor era uma pessoa caridosa e generosa. Contudo,
devemos ter cuidado ao julgar este tipo de ato. Dizer
que alguns senhores, por vários motivos, geralmente
expressos na própria carta de alforria, como por
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
exemplo, “o amor de criação”, libertaram
gratuitamente seus escravos por um gesto de
“caridade e bondade” para com aqueles que os
serviram com fidelidade por anos, é uma coisa. Agora
dizer que todos os senhores que libertaram seus
escravos de forma gratuita foram “caridosos e
bondosos” é outra coisa completamente diferente,
pois a liberdade, mesmo que gratuita, pode
representar para o escravo abandono e desamparo.
Mas o que estaria por trás da alforria gratuita? Seria
esta um ato de verdadeira caridade dos senhores ou
estariam eles simplesmente se livrando de um estorvo,
como por exemplo, um escravo velho, doente ou
aleijado?1
Passemos para a análise de algumas cartas de
alforria gratuitas:
Escritura
de
liberdade,
concedida por Antônio José de Moura
a sua escrava Ângela crioula e seus
filhos Felíssimo e Antônio pardos.
Em meu Cartório, apareceu
prezente Antônio José de Moura,
Mestre Carpinteiro, morador na
Freguesia do Santíssimo Sacramento de
Cantagalo [...] me disse que era senhor
e possuidor de huma crioula chamada
Embora não seja objeto dessa pesquisa, vale destacar as denúncias
feitas a Câmara Municipal sobre o abandono e a condição de forros nas
ruas da cidade.
Ângela q comprara do Capitão
Francisco Ferreira Cunha e mais dois
filhos da mesma [...] chamados
Felíssimo e Antônio, ambos pardos, aos
quaes todos elles, mãe e filhos, confere
elle outorgante pura liberdade para
que desde já se possão tratar como
livres que ficão sendo e conduzir-se
por onde e como lhe convier...
Antônio José de Moura dá
liberdade a sua escrava Ângela crioula
e filhos em 12 de maio de 1809.2
(grifos nossos)
Na maioria das cartas analisadas, os senhores
deixam bem claro o motivo da libertação,
principalmente quando esta se dava de forma
gratuita. Nesta carta, contudo, o senhor ocultou a sua
gratuidade, não aparecendo o termo “gratuito” em
momento algum no documento. Sabemos que esta
alforria é gratuita, pelo fato do proprietário do
escravo, no caso dos escravos, não ter exigido
nenhuma espécie de pagamento ou condição para
que a liberdade acontecesse.
Esta carta pode também ser classificada como
uma liberdade coletiva, ou em conjunto, visto que
mais de um escravo adquire a alforria em um mesmo
documento. No caso específico, temos uma mãe e seus
1
2
AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 38.
dois filhos conquistando sua alforria de forma
gratuita. O procedimento é datado de 12 de maio de
1809, momento em que a cidade crescia e a
escravidão estava no seu auge. Por que este senhor
alforria de forma gratuita escravos em idade
produtiva, como por exemplo Felíssimo e Antônio?
Bem, poderíamos justificar o ato por uma possível
paternidade (o que podia ser plausível, mas no caso
específico, impossível de provar já que não foi
revelado na carta). Entretanto, as relações de
dependência e fidelidade fizeram parte das táticas
utilizadas por esses escravos na consecução de suas
alforrias.
Escritura de liberdade que dá
Luis Antônio Tavares a seu escravo
Mariano mulatinho.
Em meu Cartório apareceu
prezente Luis Antônio Tavares,
morador na freguesia de São Gonçalo,
e vive de rosa [roça], [...] e me disse
que por este instrumento e na melhor
forma de Direito, dá pura e irrevogável
liberdade ao seu escravo Mariano
Pardo [mulatinho] de idade de seis
anos, filho de sua escrava já falecida
chamada Gertrudes Angola, para que
se possa o dito mulatinho tratar desde
já como livre que he, podendo
conduzir-se por onde e como lhe
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
convier por bem desta liberdade, que
lhe confere gratuitamente...
Luis Antônio Tavares dá
liberdade a seu escravo Mariano
mulatinho em 31 de maio de 1809.1
(grifos nossos)
Também nesta carta de alforria não temos
motivos para duvidar da “boa vontade” deste senhor,
afinal de contas, ele está se desfazendo de um bem
que lhe pertence, e na qual ainda poderia lhe ser
fonte de grandes recursos, já que se trata de uma
criança de seis anos. Acaba sendo difícil para nós,
olharmos um caso como este e não desconfiarmos de
uma paternidade não revelada. A questão foi
amplamente discutida por estudiosos da escravidão
no Brasil, o quanto era comum o relacionamento
“extraconjugal” entre senhores e escravas. Muitas se
“deitavam” com seus senhores a contragosto, porque
eram forçadas e para não serem punidas. Outras
viam neste gesto de maior intimidade com seu
senhor, uma maneira de conseguirem “arrancar”
deles alguns benefícios, como por exemplo, a alforria.
As chances aumentavam ainda mais, quando a
escrava engravidava de seu senhor, embora isso não
fosse garantia de nada. Mas, seja como for, vários
senhores concederam, abertamente, alforria para seus
filhos, sendo tal informação expressa na própria
1
AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 57.
carta. Outros, não querendo assumir seu “pecado”
publicamente, mas impulsionados a libertar seus
filhos – o que não quer dizer reconhecer como filho,
logo como herdeiro – alforriavam gratuitamente,
alegando “carinho, afinidade, amor”, mas sem
reconhecer a paternidade. Talvez o caso de Luis
Antônio Tavares e Mariano seja este. O fato de o
senhor ter citado o nome da mãe de Mariano,
Gertrudes, que já havia falecido, pode ser mais um
indício de que Luis Antônio tinha alguma
consideração por Mariano e sua mãe. Mas seja como
for, por não estar expresso no documento, são apenas
especulações.
Neste tipo de alforria – gratuita – muitos
senhores afirmavam que estavam alforriando seus
escravos por “amor de criação”. Analisamos várias
cartas onde à justificativa para a alforria dada pelos
senhores, estava ligada a esse sentimento. Contudo,
devemos tomar um certo cuidado ao falar de um
sentimento como “amor” na relação senhor-escravo.
Qual seria o grau de carinho numa relação que
estava baseada na dominação? Debret, ao comentar
uma de suas pranchas que retratava uma família
jantando e crianças escravas sentadas ao chão
comendo o que sua senhora lhes dava, comparou
essas crianças a animais de estimação.
No Rio, como em outras cidades
do Brasil, é costume, durante o “tête-àtête” de um jantar conjugal, que o
marido se ocupe silenciosamente com
seus negócios e a mulher se distraia
com os negrinhos, que substituem os
doguezinhos,
hoje
quase
completamente desaparecidos da
Europa. Esses molecotes, mimados até a
idade de cinco ou seis anos, são em
seguida entregues a tirania dos outros
escravos, que os domam a chicotadas e
os habituam, assim, a compartilhar
com eles das fadigas e dissabores do
trabalho. Essas pobres crianças,
revoltadas por não mais receberem das
mãos carinhosas de suas donas
manjares
suculentos
e
doces,
procuram compensar a falta roubando
as frutas do jardim ou disputando aos
animais domésticos os restos de comida
que sua gulodice, repentinamente
contrariada, leva a saborear com
verdadeira
sofreguidão.2
(grifos
nossos)
Citaremos agora, algumas cartas de alforria
gratuitas, onde os senhores alegaram estar libertando
seus escravos por terem por eles “amor de criação”,
ou pelo fato deles serem suas crias.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São
Paulo: Círculo do Livro. Volume I, p. 172.
2
Revista História - 98
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Escritura de liberdade gratuita
que dá Felipa de Oliveira a sua escrava
Lauriana cabrinha.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Felipa de Oliveira, mulher
preta livre, que se conserva solteira1,
moradora na freguesia de Engenho
Velho, [...] que me dice que por esta
escritura confere pura e irrevogável
liberdade gratuitamente a sua escrava
Lauriana cabrinha, filha de outra sua
escrava chamada Maria Benguela,
para que de hoje por diante se possa
tratar como livre que fica sendo para
lhe conduzir como lhe convier por
bem desta liberdade, que lhe confere
de sua livre vontade, por quere-la
beneficiar em razão de ser sua cria.
Felipa de Oliveira dá liberdade
a sua escrava Lauriana cabrinha em 19
de julho de 1808.2 (grifos nossos)
Em todas as cartas de alforria que analisamos, quando quem estava
alforriando era uma mulher, após o seu nome, vinha seu estado civil
(solteira ou viúva). A mulher que fosse casada não podia alforriar
escravos, devendo o marido desta tomar os procedimentos para a
libertação. Uma outra peculiaridade verificada era quando o senhor (a)
que estava alforriando era negro (a). Sempre após seu nome, vinha uma
qualificação que fazia referência a sua raça: “preto livre”, “crioula
livre” ou “negro forro”.
2 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 150.
1
Nesta carta vemos que a senhora liberta uma
escrava criança, alegando possuir amor pela mesma.
Contudo, a mãe de Lauriana, Maria Benguela,
continua na condição de escrava. Essa situação faz
com que a perspectiva de vida desta criança não se
modifique, pois mesmo sendo considerada forra pela
sociedade, muito provavelmente Lauriana continuou
levando a mesma vida já que permaneceu na casa da
senhora de sua mãe, onde, com toda certeza, sofria as
interferências da mesma.
A carta transcrita abaixo, parece-nos ser da
mesma natureza. Não sabemos a idade de Joaquina,
mas se esta fosse criança, pelo fato de sua mãe
continuar escrava, ela também fatalmente continuou
ligada ao cativeiro mesmo após a sua libertação.
Escritura de liberdade que dá
Quitéria da Luz a sua escrava Joaquina
Crioula.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Quitéria da Luz viúva de
Manoel dos Santos Pinheiro, moradora
na rua dos Latueiros, [...] que me dice
que por este instrumento confere pura
e irrevogável liberdade desde já a sua
escrava Joaquina Crioula, filha de
outra escrava chamada Maria, para
que possa de hoje em diante tratar-se
como livre que fica sendo, e ir por
onde lhe convier, por bem desta
liberdade
que
lhe
confere
gratuitamente, por quere-la beneficiar
em razão de ser sua cria.
Quitéria da Luz dá liberdade a
sua escrava Joaquina Crioula em 04 de
agosto de 1808.3 (grifos nossos)
Em uma outra carta por nós analisada, o
reverendo Manoel Gomes Souto, confere liberdade de
forma gratuita, ao menino Luís pardo, de 7 anos. O
padre confere a alforria em nome de seus pais: o
Capitão Domingos Pinto de Miranda e Maria de Jesus
que já havia falecido quando seu filho registrou a
libertação da criança, alegando estar conferindo esta
liberdade gratuitamente “em razão do menino ser
cria de sua caza”.4
A carta abaixo é mais uma das várias
analisadas, dentro dessa perspectiva de alforria
gratuita por “amor de criação”. Parece-nos que
existia uma tendência entre os senhores em alforriar
crianças, mas sem estender à liberdade a mãe, o que,
como já discutimos, não modificava muito a condição
da mesma. Muito interessante, porém, é o termo
utilizado por Antônia ao conceder a alforria à
Emerenciana. A senhora afirma que por bem desta
escritura passada por ela, a menina Emerenciana
deveria passar a ser respeitada como livre que ficava
sendo. A carta de alforria era um instrumento de
3
4
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 169/169v.
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 19v.
Revista História - 99
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
poder do senhor reconhecido e valorizado pelos
escravos. Para a sociedade da época, esta deveria ser a
forma pela qual o escravo deixava de ser coisa,
tornando-se pessoa. Assim sendo, pouco deve ter
importado para as mães que tiveram seus filhos
alforriados, o fato deles continuarem, “presos” ao
cativeiro, pois o valor estava no fato deles agora
serem considerados livres e ter a possibilidade de uma
vida melhor que a que seus pais tiveram.
Escritura de liberdade que dá
Antônia Maria Rangel a sua escrava
Emerenciana parda.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Antônia Maria Rangel,
moradora no Lugar do Baldeador na
Freguesia de São Gonçalo, e vive
solteira [...] que me dice que por este
instrumento confere pura e irrevogável
liberdade a sua escrava Emerenciana
parda, de menor idade, filha de outra
sua escrava parda chamada Maria,
para que desde já seja respeitada por
livre, como de facto fica sendo por bem
desta escriptura, que lhe passa de sua
livre vontade gratuitamente, por
quere-la beneficiar em razão de ser
sua cria.
Antônia Maria Rangel dá
liberdade a sua escrava Emerenciana
parda em 20 de outubro de 1807.1
Joaquim Correa dá liberdade a
Claudiana Cabra em 30 de julho de
1808.2 (grifos nossos)
(grifos nossos)
Identificamos outra carta de alforria que
poderia ser classificada como gratuita, mas que na
verdade não foi. Segue abaixo sua transcrição e logo
após, uma breve análise.
Escritura de liberdade que dá
Joaquim Correa a Claudiana Cabra.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Joaquim Correa, homem
preto, morador na Freguesia de Nossa
Senhora do Pilar do Aguassu onde he
arraes de barcos [...] que me dice que
sendo casado com a escrava de dona
Joana Teles de Menezes, chamada
Maria Crioula, teve sua filha chamada
Claudiana Cabra, ao qual ele
outorgante depois comprara à referida
Dona Joana, e queria conferir como de
facto confere a mesma sua filha
Claudiana pura e irrevogável liberdade
que ficará gozando desde já como se
livre nascesse, para assim se poder
tratar izenta de mais cativeiro em
razão de ser sua filha.
1
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 111/111v.
Vemos que nesta libertação, existe uma
terceira pessoa envolvida além de senhor e escravo.
Temos um homem, Joaquim, que pela própria
descrição do tabelião, era um homem preto, logo,
provavelmente já foi escravo e conseguiu, não
sabemos de que forma, sua carta de alforria. Este
homem era casado com uma escrava, Maria crioula,
que pertencia a Joana Teles de Menezes, e com sua
esposa teve uma filha de nome Claudiana. Joaquim
travou uma luta pela libertação de sua esposa e filha.
Joaquim provavelmente negociou com Joana a
libertação de sua família. E passou a trabalhar com o
intuito de juntar dinheiro para oferecer a esta
senhora em troca da liberdade das mesmas. Assim
que conseguiu o valor estipulado por dona Joana
comprou sua filha, para então, como proprietário da
mesma, conceder-lhe a tão esperada liberdade.
Devemos
fazer
alguns
apontamentos:
Primeiro, diz respeito ao fato de dona Joana ter
concordado em se desfazer de sua propriedade pela
venda, pois se ela firmasse que não venderia sua
escrava para Joaquim, este não poderia fazer
absolutamente nada. Segundo, diz respeito à própria
relação em si. Parece-nos que houve um acordo entre
2
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 161v.
Revista História - 100
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Joaquim e Joana, que concordou em vender
Claudiana por uma quantia por ela estipulada (que
não sabemos, por não ser divulgado na carta de
alforria). Muito interessante também foi como o
processo transcorreu. Joaquim poderia ter pagado a
quantia estipulada por Joana, e esta mesma conceder
a Claudiana uma carta de alforria, que
classificaríamos como onerosa. Contudo, não foi o
que aconteceu. O pai precisou comprar a filha, para
então lhe conceder sua libertação. Por isso que
falamos que esta é uma carta classificada como
gratuita, mas que de fato não foi. Ela foi comprada
por Joaquim, o pai de Claudiana. Possivelmente após
a liberdade da filha, Joaquim começou a trabalhar
para comprar sua mulher. Contudo, não sabemos se
ele conseguiu.
Muitos senhores alforriavam seus escravos,
como um reconhecimento pelos bons serviços
prestados. Como em toda alforria, este tipo de
libertação era fruto de um acordo feito entre senhores
e escravos, onde o escravo deveria ser obediente, fiel,
companheiro de seu senhor, que para recompensá-lo
conferia-lhe a carta de alforria. Quanto mais um
escravo caísse “nas graças” de seu dono, maior era a
probabilidade deste facilitar a sua libertação,
podendo até mesmo concedê-la de forma gratuita.
Lembramos que esta “submissão” exigida dos
escravos para que fossem alforriados pode ser
interpretada como sendo uma tática adotada por
estes, e que fez parte das negociações em torno da
seos bens [...] me disse que mandara
comprar em Benguela huma escrava
chamada Ana á qual pelos bons
serviços que lhe tem feito quer
conferir, como de fato confere, pura e
irrevogável liberdade, desde já possa se
tratar como livre que fica sendo, e
conduzi-se por onde e como lhe
convier por bem desta carta que lhe
passa gratuitamente.
Manoel José dos Santos dá
liberdade a sua escrava Ana de Gentio
da Guiné em 16 de junho de 1809.2
liberdade. Vejamos agora algumas cartas de alforria,
cujos senhores justificaram a libertação dos seus
escravos de forma gratuita pelos bons serviços
prestados.
Escritura de liberdade gratuita
que dá Francisco de Souza a sua
escrava Marta parda.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Francisco de Souza morador
na paragem chamada Baldeador,
Freguesia de São Gonçalo, onde vive de
lavouras [...] me dice que dá pura e
irrevogável liberdade a sua escrava
Marta parda gratuitamente por quer
beneficiar em razão de ser sua cria e
dos bons serviços que lhe tem prestado.
Francisco de Souza dá liberdade
a sua escrava Marta parda em 11 de
maio de 1808.1 (grifos nossos)
(grifos nossos)
Escritura de liberdade que dá o
Capitão João José Coelho a sua escrava
Catharina Angola.
Em meu Cartório apareceu
prezente, o Capitão João José Coelho
morador na rua chamada da Quitanda,
e negociante nesta Cidade [...] me disse
que era senhor e possuidor de uma
escrava de nação Angola chamada
Catharina que comprara ainda nova, e
que em razão dos bons serviços que a
mesma lhe tem prestado e querela
[querer-lhe] ele outorgante beneficiar,
Escritura de liberdade que dá
Manoel José dos Santos a sua escrava
Ana de Gentio da Guiné.
Em meu Cartório apareceu
prezente, Manoel José dos Santos
morador no morro da Conceição no
lugar chamado Mato Groço, e vive de
1
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 80/80v.
2
AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 76v.
Revista História - 101
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
lhe confere pura e irrevogável
liberdade.
Capitão João José Coelho dá
liberdade a sua escrava Catharina
Angola em 24 de maio de 1808.1
(grifos nossos)
Nessas três cartas de alforria, vemos que os
senhores alegaram estar libertando as suas escravas
pelo mesmo motivo: “em razão dos bons serviços
prestados”. Na primeira carta, além dos bons serviços
o senhor também alegou “amor de criação” pela
escrava, o que nos leva a pensar que esta cativa era
relativamente jovem ou adulta. Estamos dizendo isso,
porque nas duas outras alforrias o registro foi
bastante econômico em informações, mas como se
tratam de alforrias gratuitas, temos que nos
perguntar suas motivações. Se estas escravas, libertas
gratuitamente, fossem relativamente jovens, suas
alforrias realmente poderiam ser consideradas um
gesto de “gratidão” desses senhores que quiseram
recompensá-las pela fidelidade com que os serviram
por anos. Contudo, se essas escravas já forem idosas
ou talvez portadoras de alguma doença que pudessem
prejudicar os seus serviços, esse quadro seria bem
diferente. Esses senhores ao invés de “bondosos e
caridosos” estariam sendo “insensíveis” e até mesmo
“cruéis” com suas escravas, que não prestando mais
1
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 94.
para o trabalho estariam sendo colocadas de lado.
Neste caso, o sentido da alforria dessas escravas
estaria totalmente deturpado, pois ao invés de
desfrutarem suas liberdades estariam elas numa
situação de desamparo.
Lembremos que embora o escravo fosse
considerado uma “coisa”, uma mercadoria na qual o
senhor podia alugar, hipotecar, vender, alienar,... este
mesmo senhor tinha uma responsabilidade moral,
social e, porque não dizer, legal de zelar por seu
escravo, alimentando-o, vestindo-o e cuidando dele
caso adoecesse. Quando os senhores concediam
cartas de alforria a escravos idosos e doentes estavam
simplesmente se eximindo da responsabilidade, se
livrando de um “peso morto”. Ao que nos parece,
mesmo que esses senhores tivessem essa intenção
“nada nobre” ao libertar seus escravos, essa
intencionalidade não costumava estar explícita nas
cartas, pois não foi encontrada por nós nenhuma
carta gratuita, onde fosse evidenciado o fato do
escravo estar idoso ou doente. Vale a pena fazermos
uma referência a obra de Kátia Matoso, onde a autora
citou uma alforria concedida “gratuitamente” por
uma senhora “insensível e cruel”, que não teve o
menor constrangimento em dizer o porquê estava
alforriando seu escravo.
... Maria Madalena Álvares de Jesus,
que, em agosto de 1805, liberta
gratuitamente o pobre negro Antonio
Villela, velho de mais de 70 anos, ao
qual se refere, com uma crueldade sem
rebuços, como “cheio de doenças e por
isso quem o veja não dará por ele um
tostão”.2 (grifos nossos)
Sabemos que não devemos fazer julgamento
sobre o passado, pois definitivamente esta não é a
tarefa do historiador. Contudo, não dá para
classificarmos todas as cartas de alforria – no caso
gratuitas – como se estas tivessem sido concedidas da
mesma forma por todos os senhores, ou tivessem a
mesma intencionalidade. Uma alforria concedida
gratuitamente a um escravo jovem, que tem todas as
condições de refazer sua vida como pessoa livre não
pode ser colocada como sendo igual a uma carta
como esta que acabamos de ver. Por isso, nos
utilizamos de algumas qualificações, como por
exemplo: senhores insensíveis e cruéis, ou caridosos e
bondosos. A intenção não é julgar, mas apresentar as
diferentes intencionalidades deste instrumento de
poder. Transcreveremos a seguir mais uma carta
gratuita selecionada.
Escritura de liberdade que dá o
Coronel Manoel Alvarez da Fonseca
Costa como Síndico dos Religiosos
2
MATTOSO, Kátia. Op. cit., p. 196.
Revista História - 102
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Capuchinhos a João escravo do mesmo
Hospício.
Em meu Cartório apareceu
prezente, o Coronel Manoel Alvarez da
Fonseca Costa, [...] que me dice que
tendo em consideração o Reverendo
Frei Luiz de Balistrino, prefeito do
Hospício dos Religiosos Capuchinhos, a
boa conduta, zelo e fidelidade com que
sempre serviram no mesmo Hospício o
escravo João do Rozário, e tendo-lhe
este pedido a sua liberdade consultara
com ele outorgante a este respeito,
acertando de comum acordo de lha
conferirem; e que por esta razão, ele
como síndico dos sobreditos Religiosos
confere pura e irrevogável liberdade
gratuita ao mencionado escravo do
dito Hospício chamado João do Rozário
para que desde já se possa tratar como
livre que fica sendo.
Coronel Manoel Alvarez da
Fonseca Costa dá liberdade ao escravo
João do Rozário em 04 de setembro de
1807.1 (grifos nossos)
Nesta alforria o escravo conseguiu sua
liberdade gratuitamente, por ter desempenhado bem
1
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 76/76v.
o seu serviço no hospício dos religiosos capuchinhos.
Parece-nos que este escravo pertencia à ordem
religiosa, e por isso, o frei Luis, mesmo na condição
de prefeito do dito hospício, não tinha autonomia
para libertar o escravo João. Para tal, teve que
consultar o síndico dos religiosos, o coronel Manoel
Álvares, que deveria ser uma espécie de
administrador dos bens da ordem. Manifestando seu
desejo de ver seu bom escravo livre, o coronel não
tardou para organizar os tramites para a alforria de
João.
Encerrando a análise sobre as alforrias
gratuitas, seguem dois documentos que datam de
1834 e 1835, respectivamente.
Escriptura de liberdade gratuita
que dá Joaquim José da Rocha a seu
escravo José de nasção Benguella.
Em meu Cartório apareceu
perante mim, Joaquim José da Rocha
[...] e me foi dito que he senhor e
possuidor de um escravo de nome José
de nasção Benguella, ao qual pelos
bons serviços que lhe tem feito disse
elle outorgante que por este
instrumento na melhor forma e via de
Direito lhe dá pura e irrevogável
liberdade gratuita, para que como se de
ventre livre houvesse nascido se possa
conduzir para onde bem lhe parecer.
Joaquim José da Rocha dá
liberdade ao escravo José de nasção
Benguella, em 14 de novembro de
1834.2 (grifos nossos)
Neste documento, assim como nas demais
cartas de alforria gratuita, percebemos que o senhor
faz questão de exaltar seu gesto de generosidade ao
conceder a liberdade a seu escravo. Afirmou que
estava alforriando José por causa dos bons serviços
que este havia lhe prestado, e percebemos com certa
clareza que esta alforria só ocorreu por que o escravo
foi merecedor dela, na percepção de seu senhor.
Poderíamos nesse momento aprofundar um pouco
mais a nossa análise. Existiu uma estratégia senhorial
em deixar claro para os cativos que o ato de alforriar
dependia exclusivamente de sua vontade, logo o
escravo que quisesse sonhar em ser liberto, deveria
agradar em tudo ao seu proprietário. Ao que nos
parece o escravo José foi bem sucedido nesta tarefa,
pois conquistou sua liberdade. A “auto-exaltação”,
também pode ser considerada uma estratégia
senhorial, pois ao deixar claro para o escravo que o
alforria porque quer, quando quer e, de forma
gratuita, isso levava o cativo a ter um sentimento de
agradecimento para com o seu antigo senhor, não
cortando os laços com ele após sua libertação. É a
chamada produção de dependentes, estratégia
2
AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 171, folha 21v/22.
Revista História - 103
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
largamente utilizada pelos senhores ao concederem a
alforria a seus escravos, transformando-os em
agregados e clientes.
Olhando esta carta só pelo ponto de vista da
estratégia senhorial, causa-nos a impressão de que o
escravo era um ser totalmente passivo nesta história.
Contudo, podemos perceber que os escravos se
utilizaram de táticas, pois mesmo conseguindo suas
liberdades gratuitamente, as conquistaram de seus
senhores. Logo, mesmo através da submissão, da
fidelidade, da obediência desses cativos percebemos
nestes gestos, táticas utilizadas por estes na conquista
de suas libertações, já que souberam “arrancar” de
seus proprietários suas alforrias.
Escriptura de liberdade gratuita
que dá José Miguel de Banon a Rita de
nação Moçambique.
Em meu Cartório apareceu
perante mim, José Miguel de Banon [...]
e me foi dito que falecendo sua May
[mãe] Dona Florinda Maria da
Conceição [...] dos escravos que possui
há huma por nome Rita de nação
Moçambique, ao qual pelos bons
serviços a que prestou a sua May, elle
outorgante por este instrumento lhe dá
liberdade gratuita, para que como se de
ventre livre houvesse nascido se possa
conduzir para onde bem lhe parecer.
José Miguel de Banon dá
liberdade
a
Rita
de
nação
Moçambique, em 23 de abril de
1835.1 (grifos nossos)
Darrigue, que vive solteira, moradora
no Beco chamado de João Baptista, [...]
me dice que em razão dos bons
serviços que havia prestado sua
escrava Bárbara crioula, que fora sua
cria, e pela fidelidade que sempre lhe
guardou era contente de lhe dar, como
lhe dá, pura e irrevogável liberdade
desde já; e que em contemplação a
mesma escrava, também confere a
mesma liberdade ao marido desta
chamado João, também crioulo, que
houve por título de compra; e
igualmente a sua filha por nome
Modesta, os quaes todos poderão desde
já tratar-se como livre que ficão sendo
para se poderem conduzir como e por
onde lhe convier por bem desta
liberdade que lhes confere de livre
vontade gratuitamente, na esperança
de que a acompanharão pelo tempo de
sua vida com o mesmo amor que até
aqui tem mostrado.
Dona
Francisca
Romana
Darrigue dá liberdade a seus escravos
Bárbara, João e Modesta crioulos, em
03 de agosto de 1807.2 (grifos nossos)
Neste documento podemos inferir que a tática
de Rita para conseguir conquistar sua carta de
alforria foi ser fiel e obediente a sua senhora até a sua
morte. Seu filho, José Miguel, num gesto de gratidão
(talvez até atendendo um último pedido de sua mãe)
decidiu libertar Rita, concedendo-lhe alforria
gratuita.
Para encerrarmos este artigo, gostaríamos de
comentar um último documento, que é uma carta
que chamou muito a nossa atenção. Em diversas
pesquisas, analisamos vários tipos de manumissões –
gratuitas, onerosas, testamentárias e condicionais – e
tivemos a oportunidade de perceber semelhanças e
diferenças deste instrumento de libertação. Contudo,
este documento possui uma incrível peculiaridade.
Esta carta de alforria é, sem dúvida, atípica.
Escritura de liberdade que dá
Francisca Romana Darrigue a seus
escravos Bárbara, João e Modesta
crioulos.
Em meu Cartório apareceu
prezente, dona Francisca Romana
2
1
AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 171, folha 157/157v.
AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 42v/43.
Revista História - 104
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Temos diante de nós uma alforria gratuita e
coletiva pelo fato desta carta ser o registro de
liberdade de uma família. Contudo, mais do que em
qualquer outra carta analisada, esta alforria nos
tocou por sua sensibilidade. Parece-nos que dona
Francisca já era uma senhora, uma vez que Bárbara,
que fora sua cria, já estava com uma família
constituída. O mais comum que temos observado em
nossas análises, era que nesses casos, por mais que
existisse um sentimento que envolvesse senhores e
escravos, os senhores (mais as senhoras) como uma
forma de ser protegerem da solidão e do desamparo,
procuravam dar liberdade condicional para seus
escravos preferidos, com o intuito de não ficarem
desamparados em sua velhice, e, ao mesmo tempo,
“proteger” o escravo do cativeiro após a sua morte.
Dona Francisca não agiu dessa maneira. Na
contra-mão da lógica escravista, concedeu “pura e
irrevogável liberdade gratuitamente” a sua cria,
Bárbara, e, “em contemplação a mesma escrava”
também concedeu liberdade a seu marido e filha;
afirmando que fazia isso “contente”, e que eles na
qualidade de livres poderiam conduzir-se por onde
lhes conviesse. Tais palavras caracterizam a liberdade
gratuita, onde nada foi cobrado pela manumissão e,
nem tampouco, foi imposto alguma condição para tal.
Esta alforria nos chamou a atenção, pois o comum
seria que dona Francisca concedesse liberdade
condicional a seus três escravos, liberdade esta que só
seria plena após a sua morte. Contrariando essa
lógica, optou por conceder liberdade plena à família,
afirmando ter “esperança de que a acompanharão
pelo tempo de sua vida com o mesmo amor que até
aqui tem mostrado”. Não temos como adentrar na
mentalidade nem na intencionalidade desta senhora.
Contudo, comparando esta alforria com as demais,
não podemos negar que esta carta representou um
gesto de confiança desta senhora em seus escravos.
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Os conceitos do filósofo italiano Giorgio Agamben,
homo sacer, abandono e estado de exceção, são
utilizados no presente trabalho para a análise de uma
favela brasileira na qual a comunidade encontra-se
em uma situação de abandono pelo Estado, sendo
todos os seus moradores estigmatizados como
criminosos pela instituição policial. Em função dessa
situação, essa comunidade encontra-se em estado de
exceção, a partir do qual se auto-organiza, com o
apoio dos próprios criminosos, para tentar manter a
ordem.
Revista História - 106
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
PALAVRAS-CHAVE: Favela, estigmatização, autoorganização.
autor percebe a relação entre o Estado e os segmentos
excluídos.
ABSTRACT
Para explicar a ligação do poder do Estado
sobre o homem em sua vida comum, Agamben utiliza
vários conceitos, pois acredita que existe em
determinadas situações, ambigüidades nessa relação.
Aqui,
apresentaremos
os
conceitos
de
bando/abandono e homo sacer, segundo os quais o
indivíduo possui sua inclusão no Estado através da
exclusão a qual é submetido e, em função de sua
situação indiscernível, se encontra em estado de
exceção.
The philosopher’s Giorgio Agamben concepts, homo
to sacer, abandonment and exception state are used
in this paper to analyze a brazilian slum in which the
community is in an abandonment state through the
State view, so the citizens there are becoming
stigmatized as criminal by the Police institution. In
this situation then, this community is in an exception
state, in an self-organization mode, with the support
of the local criminals, trying, this way, to keep the
order.
KEYWORDS: slum, stigmatization, self-organization.
***
INTRODUÇÃO
O presente texto traz a reflexão em torno da
exclusão de determinados segmentos sociais pelo
Estado, demonstrando como esses grupos são
estigmatizados pelas instituições. São fundamentais
em nossa discussão os conceitos do filósofo do direito,
o italiano Giorgio Agamben, os quais serão
apresentados no texto. Para tal discussão nos
propomos, primeiramente, a demonstrar como o
Segundo o autor, em italiano o termo
abandono pode significar “a mercê de...” ou “a seu
talante livremente” e bandido pode ser entendido
como “excluído, banido” ou “aberto a todos, livre”.
Nota-se que ambos podem representar-se com
significados opostos. Diante dessa ambigüidade, os
conceitos se aplicam para aqueles que não pertencem
a lugar algum, estando livres, como também, para
aqueles que foram abandonados, banidos ou
excluídos (AGAMBEN, 2002, p. 117).
Sua intenção, porém, é abordar uma situação
onde não se consegue determinar em qual das
condições o indivíduo se encontra, sendo entendida
como uma zona de indeterminação. Para explicar a
idéia, o autor faz a seguinte colocação:
“A relação de abandono é, de
fato, tão ambígua, que nada é
mais difícil do que desligar-se
dela. O bando é essencialmente o
poder de remeter algo para si
mesmo, ou seja, o poder de
manter-se em relação com um
irrelato pressuposto. O que foi
posto pelo bando é remetido à
própria separação e, juntamente,
entregues a mercê de quem o
abandona ao mesmo tempo
excluso e incluso, dispensado e
simultaneamente
capturado”
(AGAMBEN, 2002, P. 116).
A idéia exposta é que para ser abandonado é
necessário, primeiramente, pertencer a algum lugar.
Esse lugar é o bando, seu lugar de origem. Deste
modo, o abandonado sempre estará ligado ao bando
pela sua exclusão, pois, apesar de ter sido posto
“fora” de seu bando, sempre vai pertencer ao mesmo,
estando a “mercê de quem o abandonou” ou excluiu,
porque aquele, por sua vez, também não pode abrir
mão da relação que tem sobre quem baniu. Assim, o
abandonado jamais será livre e ao mesmo tempo não
pertencerá a lugar nenhum, estando em uma
condição de indeterminação quanto a sua relação ao
seu bando, a sua origem.
Revista História - 107
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Diante dessa confusa relação, o abandonado se
inclui ao bando através de sua própria exclusão, pois
não basta abandonar, já que o abandonado
continuará a existir. O bando, portanto, se manterá
ligado pela exclusão que o expôs e, por isso, o inclui,
o “dispensa e simultaneamente captura”. A liberdade,
portanto, apesar de ser inerente a condição de não
pertencimento, jamais será plena, pois sua exclusão
não a permite.
Mas por que foi abandonado? Se este fazia
parte de uma sociedade, de um bando, qual o motivos
que levou a seu exílio? A resposta está em seu valor
na sociedade. Não se abandona aqueles que são
importantes e valorosos para o grupo, mas, pelo
contrário, os que não possuem valor algum, o homo
sacer (AGAMBEN, 2002, p. 81). Este termo era
utilizado na antiguidade para definir pessoas postas
fora da condição humana, como se o indivíduo não
existisse. Agamben explica que se um indivíduo nessa
condição fosse morto, não haveria punição para o
assassino, na verdade, não se poderia se quer
classificar aquele que matou como assassino
(AGAMBEN, 2002, p. 90). Trata-se da posição mais
baixa a que podemos classificar um indivíduo em
relação à sociedade ou seu bando, pois ele é o
matável, insacrificável no sentido de não ter valor
para um sacrifício (AGAMBEN, 2002, p. 90). Ou seja,
ele não poderia ser oferecido como sacrifício, porque
não é sacrifício tirá-lo do convívio.
Assim como o abandonado, o homo sacer
também tem sua ligação com a sociedade através de
sua exclusão, onde a mesma exclusão que o
inferioriza também o incluí. Ambos podem ser,
portanto, o mesmo indivíduo incluído pela exclusão,
exilado, mas capturado ao mesmo tempo. Para
entender melhor os conceitos, é necessário que
façamos a relação do bando com o Estado e o homo
sacer abandonado, com os segmentos sociais que se
encontram a margem da sociedade (AGAMBEN,
2002, p. 112).
Percebe-se que esses dois conceitos se
explicam e se completam. No entanto, temos uma
última relação a esclarecer, quanto à condição de
indeterminação que ambos se encontram, tanto sendo
entendidos como o mesmo indivíduo como os
aplicando separadamente. Tal situação explica-se
pelo estado de exceção (AGAMBEN, 2004), outro
conceito fundamental, pois se aplica as
indeterminações jurídicas.
Entendemos que condicionar certos grupos na
perspectiva desses conceitos é como afirmar que a
cidadania não é aplicada a todos. Assim, a partir do
momento que indivíduos são excluídos, a idéia de
cidadania como pressuposto de igualdade é anulada.
Nessa percepção, colocamos homo sacers e
abandonados como cidadãos com o direito a
igualdade suspensos, não por determinação jurídica,
mas pela impossibilidade do Estado e suas instituições
fazê-lo cumprir. Sobre a aplicação jurídica do estado
de exceção, Agamben coloca:
“A lacuna não é interna à lei, mas
diz respeito à sua realidade, à
possibilidade
mesma
de
aplicação. É como se o direito
contivesse uma fratura essencial
entre o estabelecimento da norma
e sua aplicação e que, em caso
extremo,
só
pudesse
ser
preenchido pelo estado de
exceção, ou seja, criando-se uma
área onde essa aplicação é
suspendida, mas onde a lei,
enquanto tal, permanece em
vigor” (AGAMBEN, 2002, p. 4849).
As leis e/ou direitos, como explicado, não
deixam de existir, mas em função da deficiência em
fazer-se aplicar, elas são suspensas ou ignoradas,
como veremos posteriormente nos exemplos.
Para explicar a aplicação dos conceitos, o
autor cita a situação dos judeus durante o Holocausto
(AGAMBEN, 2002, 2004). Sendo posto fora da
condição humana em função da indiferença com sua
vida, eram homo sacers. Além disso, o local para onde
eram enviados representa a inexistência dos direitos
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
humanos, pois toda atrocidade contra a vida foi
cometida neles. Deste modo, tanto o judeu como o
campo de concentração eram “estados de exceção”,
porque ambos representaram uma suspensão de
direitos (AGAMBEN, 2002, p. 173).
O campo de refugiados também é um estado
de exceção, podendo ser identificado à presença de
homo sacers e abandonados, pois anulam o conceito
de cidadania e nação. Um último exemplo do autor
são as cobaias humanas para experimentos
científicos, presentes nos campos do Reich, mas que
já existia nas prisões dos Estados Unidos, com
prisioneiros condenados a morte (AGAMBEN, 2002,
p. 162-163). Todas essas situações são exemplos para
a aplicação dos conceitos pelo abandono estatal,
indiferença humana e direitos jurídicos suspensos ou
ignorados.
Apesar de exporem a realidade em que os
conceitos são encontrados, esses exemplos, nos dão a
sensação de que, não são situações comuns e
próximas, por isso a partir de agora traremos dois
exemplos
da
existência
dessas
condições
demonstrando que, esses conceitos são sim aplicados
em qualquer situação de exclusão ou desigualdade.
ESTIGMATIZADOS
Então, quem são esses excluídos na nossa
atualidade? Segundo Agamben, eles se encontram em
uma situação de não pertencimento, matáveis, sem
valor para a sociedade, um estado de exceção que
encontra espaços nas lacunas e fraturas do direito.
Se pensarmos esses conceitos baseando-se no
que o direito apresenta-se, veremos apenas
contrariedades. Mas se o inserimos na ação diária das
instituições, percebemos a aplicabilidade da idéia. Em
resumo, sabemos que a sociedade nunca foi
homogenia, pelo contrário, são minorias que se
encontram no controle, de forma direta, nas decisões
políticas, jurídicas, econômicas, etc, enquanto que
outra muito maior é excluída ou, como Agamben
coloca, é incluída através da exclusão.
Sabemos que a desigualdade social sempre
esteve presente nas sociedades e que o Brasil possui
altos índices, não sendo nossa intenção discutir-las no
plano econômico, mas sim aquela imposta a
determinados grupos em certas situações, por
instituições. Para isso, trazemos discussões de autores
sobre as instituições jurídicas e de controle social que
estigmatizam determinados grupos na busca do
controle da criminalidade.
Michel Misse coloca que desigualdade
proporciona mais desigualdades, mas, que por outro
lado, apenas a desigualdade social não explica a
priorização de determinados segmentos na busca dos
responsáveis pela criminalidade (MISSIE,1997, p. 1718). Para Alessandro Baratta, desigualdade no sistema
penal não se refere à distribuição dos bens, mas às
respostas desiguais que o sistema aplica as situações
negativas e a problemas sociais homólogos (BARATA,
2006, p. 105). Ou seja, os autores concordam que
existe, por parte de instituições, a priorização ou
estigmatização de determinados grupos, não
importando se o crime deste é o mesmo cometido por
um indivíduo de outro grupo, a aplicação da pena é
diferenciada.
O sistema penal, segundo Baratta (2006), já
tem definido os grupos e perfis dos delinqüentes, os
quais se encontram no proletariado urbano. Nessa
perspectiva, esse tipo de pré-julgamento só desvia a
possibilidade
de
identificação
de
outros
comportamentos socialmente negativos. Para o autor,
o sistema penal parte da idéia de que a tendência à
“desviação” criminológica é uma característica
natural, quando deveria também se levar em conta os
aspectos culturais das respectivas sociedades. Tanto
Baratta como Misse acreditam, assim, que o sistema
penal deve ampliar seus métodos através de reformas,
para alcançar uma relativa igualdade nas decisões
jurídicas. Vale destacar que, essa perspectiva estendese às instituições que contribuem para o sistema
penal, como o direito e a polícia.
Podemos concluir, diante dessas colocações,
que provem do próprio sistema penal a
estigmatização dos criminosos e a própria definição
do que é o crime, e a partir de uma criminologia
tradicional se define os grupos considerados de risco
(BARATA, 2006, p. 93). Este, então, deve ser
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percebido como um exemplo da classificação de
cidadãos de segunda classe pela própria instituição,
os quais se encontram no proletariado urbano. Os
métodos tradicionais da instituição, segundo o autor,
são os responsáveis pela distinção aplicada à
sociedade. Podemos entender, portanto, que apesar de
teoricamente o Estado afirmar que todos devem ser
tratados igualmente, o mesmo não possibilita as
reformas necessárias às instituições para o alcance
desse objetivo.
Porém, não questionamos as mudanças e
imposições necessárias que devem ser feitas nos
sistemas e/ou instituições. Nem tampouco queremos
condenar policiais como responsáveis pelas falhas.
Nossa intenção é demonstrar a dificuldade que o
sistema jurídico encontra para aplicar o conceito de
cidadania e igualdade proposta.
Entendemos através dos conceitos de Agamben
a origem dessas distinções. A estigmatização
apresentada aqui deve ser percebida da mesma forma
que a relação colocada anteriormente. Assim, a
inclusão desses estigmatizados é feita através da
exclusão a qual estão submetidos.
Esses
segmentos,
apesar
de
serem
abandonados pelos direitos que o próprio Estado lhe
propõe, continuam ligados ao bando, através de sua
responsabilização pelo crime. Sem respeitar suas
singularidades e relações culturais, o sistema penal
não considera sua posição na sociedade, ou considera
e por isso os excluem. Isto porque, como coloca
Agamben (2002, p. 186), “onde existe vida nua um
Povo deverá existir”, “onde existe um Povo, lá uma
vida nua existirá” 1.
Deste modo, podemos classificar os
estigmatizados das instituições jurídicas, citados por
Alessandro Baratta e Michel Misse como homo sacers,
cidadãos que, não tem valor algum e que podem ser
responsabilizados sem a devida valorização pelos seus
direitos à igualdade. Como também, são
abandonados, porque no momento que foram
classificados como responsáveis pelo crime, o Estado
permitiu as condições para que seus direitos fossem
ainda mais desrespeitados, como será demonstrado
no próximo exemplo.
UMA COMUNIDADE “BANDIDA”
É comum afirmar-se que “as favelas são
sinônimo de violência e abandono social”. No
entanto, pretendemos demonstrar, a partir de uma
pesquisa, que a situação dessas comunidades é bem
mais complexa. Entendemos que esta situação
tornou-se crítica pelo desrespeito a cidadania de seus
moradores. Isto porque, a indiferença com os direitos
que lhes foram “garantidos” pelo Estado, suspendeu a
possibilidade de ter uma segurança priorizada como
Para entender o sentido da frase é necessário fazer a relação de
“povo”, com políticos, ou grupos que economicamente tem influência
na sociedade. Em quanto que, “vida nua” é a expressão da vida de um
homem comum, as margens da vida política. Uma introdução em torno
da “vida nua”, pode ser encontrada nas p.15-16.
1
em outras regiões. Sobre a segurança nas favelas e a
relação com os policiais, Robert Shirley faz a seguinte
reflexão:
“As organizações policiais não
protegem os cidadãos da classe
média
e
abandonam
os
moradores pobres das favelas. A
polícia trata a Vila como
território hostil o que de certa
forma é real e cujo resultado é
um estado de guerra quase
declarada entre policiais e
moradores ... Por não conhecer
bem essa população a polícia
termina por tratar todos como
inimigos, em especial os jovens,
negros e pobres...” (SHIRLEY,
1997, p. 218)
Essa é comumente a realidade dos moradores
dessas comunidades. Chama atenção que o autor ao
se referir à “classe média” qualifica-os como
cidadãos, enquanto que os “moradores pobres das
favelas” são abandonados. Como já demonstramos, os
abandonados para Agamben podem ser classificados
como exilados, banidos ou bandidos, que, por sua
vez, classificam-se como homo sacers, mantendo uma
relação de inclusão/exclusiva com seu bando/Estado.
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Shirley afirma que a polícia, por inúmeros
fatores, acaba tratando todos os moradores como
inimigos, Nesse sentido, veremos que a exposição da
comunidade a essa relação com a instituição é visível
quando assume a posição em que são colocados. Para
melhor compreensão desse contexto, apresentaremos,
a partir de agora, uma pesquisa realizada entre 1985
e 1988, por antropólogos da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, na comunidade do Morro da
Cruz, periferia de Porto Alegre. Essa comunidade teve
origem na década de cinqüenta, quando o governo
estadual transferiu várias famílias pobres, a maioria
negra, do centro para a periferia, sem estrutura nem
apoio social, que levou anos para chegar. Sobre a
comunidade, é interessante colocar que:
“... população de 35 a 40.000
habitantes. Por quase duas
décadas, a vila foi dominada pela
gangue mais poderosa da cidade
(tráfico de drogas), (...) a
comunidade também era ilegal
pois tinha sido construída a
partir de uma invasão de terras e
porque
estava
legalmente
separada da sociedade urbana
que a cercava. O mito em Porto
Alegre, ... , é de que lá no Morro
existe uma guerra Hobbesiana de
todos contra todos, provocada
pela atomização e apatia fruto da
pobreza. Apesar disso, entretanto,
o Morro é considerado a
comunidade mais organizada da
cidade ...” (SHIRLEY, 1997. p.
216).
Durante o período na favela, os pesquisadores
perceberam que tanto a gangue como a comunidade
procuravam evitar a vinda da instituição policial para
o morro, tentando, para isso, resolver os problemas
existentes em conjunto. Mas os eleitos como
responsáveis pela comunidade há vários anos eram
líderes da gangue. Isso ocasionou uma baixa
criminalidade dentro da localidade e uma sensação
de segurança entre os moradores, mesmo tendo de
conviver com grupos armados presentes por toda
parte. Em contra partida, notou-se que o que deixava
os moradores incomodados era a presença dos
policiais na região.
Apesar do clima de violência provocado pelas
armas, a comunidade afirmava se sentir mais segura
vivendo entre os traficantes do que na cidade, na qual
o controle era realizado pela própria polícia.
Portanto, mais que ausentes, os policiais eram
indesejados por todos nessa comunidade. Essa
condição chamou a atenção dos antropólogos que
não entendiam o motivo de tamanha contrariedade. A
explicação para esse fenômeno, entre outros motivos,
estava nos procedimentos policiais no Morro. Os
integrantes da gangue não exerciam uma coerção
violenta sobre a comunidade, sendo alguns líderes
reconhecidos como verdadeiros heróis, ao contrário
dos policiais que, por não identificarem entre os
moradores os verdadeiros criminosos, tratavam todos
com violência, causando, com isso, muito mais
transtornos e perdas para a comunidade.
A condição do Morro, portanto, foi uma
resposta à ausência da instituição no local. Shirley
afirma que, nos três anos da pesquisa, a polícia
entrou formalmente na comunidade apenas uma vez
e teve uma atuação frustrada (SHIRLEY, 1997, p.
218). Ou seja, pela falta de segurança oferecida pelo
Estado, os integrantes da comunidade se organizaram
com o que tinham, compilando no bem geral da
comunidade e dos criminosos. Essa situação é um
exemplo da ausência dos direitos propostos, onde a
comunidade, como qualquer outra região, deveria ter
recebido o apoio e presença policial, desde a
transferência das primeiras famílias para o Morro, o
que não ocorreu.
A favela também não foi desvinculada do
município, apesar de seu abandono quanto às suas
necessidades sociais. Pela falta da assistência, os
moradores foram obrigados a se organizar, elegendo
os traficantes que, por sua vez, realizavam o trabalho
do aparato policial. Com isso, nota-se uma
transferência da relação que a comunidade deveria
ter com a polícia para com os traficantes. Além disso,
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
como citado por Shirley, não havia distinção para a
polícia entre moradores e traficantes, todos eram
inimigos. Isso obrigou os moradores a assumir a
posição que lhe era mais favorável.
Porém, apesar da comunidade fazer o possível
para as blitz não entrarem na favela, não era vedada
a polícia tal possibilidade. Notamos aqui a aplicação
dos conceitos de bando/abandono, já que o Estado e a
instituição policial, apesar de terem abandonado
aquelas pessoas, demonstraram que as mesmas ainda
estavam sobre sua tutela, existindo um atrelamento
dos abandonados em relação a aquele que os
abandonaram.
Além desse abandono evidente por parte das
autoridades, podemos entender que o motivo da
transferência das famílias para o morro estava na
condição social do grupo. O autor coloca que tratavase de “várias famílias pobres com maioria negra”, ou
seja, tratava-se de um grupo bem definido. Diante
dessa característica são homo sacers que, por não
terem valor algum, podiam ser colocados em
qualquer lugar, sem a mínima estrutura.
Notamos
também
que
a
relação
policia/moradores não era comum, uma vez que os
moradores se identificaram com os traficantes. O
motivo dessa situação está na forma de tratamento
policial. Fica clara nessa relação, a estigmatização da
instituição sobre o local e com agravante de
determinados grupos, como visto na citação acima,
“em especial jovens, negros e pobres”. Diante desse
exemplo, se no item anterior confirmamos a
existência de uma classificação dos grupos
considerados criminosos, aqui, percebemos sua
aplicação e resultados.
Foi a estigmatização sofrida pelos moradores
que os impulsionou a assumirem de vez a condição
de bandidos diante das batidas policiais, defendendo
aqueles que, para eles, eram os verdadeiros “heróis”
(SHIRLEY, 1997. p. 219). Assim, entendemos os
motivos das criticas realizadas por Alessandro Baratta
e Michel Misse quanto à necessidade de reformas nos
métodos criminológicos e penais. Pois, ao classificar
superficialmente segmentos como responsáveis pela
criminalidade, trazem mais problemas à sociedade do
que resultados.
É diante de todas essas exceções da favela do
Morro da Cruz que podemos também aplicar o
conceitos de estado de exceção, porque fica claro que
as condições jurídicas daqueles moradores não são
diferentes das de qualquer outra região, cidade, ou
estado no Brasil, mas, não são aplicadas em diversos
setores da comunidade.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Problemas são inerentes à nossa realidade,
como eram nas mais antigas civilizações. A origem
dos conceitos utilizados por Giorgio Agamben é
situada numa realidade muito diferente da nossa. No
entanto, é lastimável que, ainda hoje, consigamos
fazer comparações da desigualdade da antiguidade
com a nossa atualidade. Mas são percepções como
essas que nos possibilitam condições para
compreendermos e resolvermos os problemas
existentes.
A obra de Agamben, nessa perspectiva, nos
deu condições de trabalharmos a existência das
distinções sociais, camufladas pela direito à
cidadania. Além disso, apesar de privilegiar situações
fora da vida cotidiana o autor aponta as origens
dessas relações desiguais e demonstra em suas
considerações como não encontraremos as soluções
para essas distinções. E, enquanto não surgir uma
política que realmente resolva os problemas
fundamentais da sociedade, não haverá realmente
espaço para o fim dessas relações milenares, que no
“povo” a exclusão/inclusiva eminente:
“...O povo carrega, assim desde
sempre, em si, a fratura
biopolítica fundamental. Ele é
aquilo que não pode ser incluído
no todo do qual faz parte, e não
pode pertencer ao conjunto no
qual já está desde sempre
incluído. Daí as contradições e as
aporias às quais ele dá lugar toda
vez que é evocado e posto em
jogo na cena política. Ele é aquilo
Revista História - 112
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
que já é desde sempre, e que deve
todavia, realizar-se, é a fonte
para toda identidade, e deve,
porém, continuamente redefinirse e purificar-se através da
exclusão, da língua, do sangue,
do território...”
(AGAMBEN,
2002, p. 183-184).
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer e o poder soberano
e a vida nua I. – Belo Horizonte: UFMG, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. – São Paulo:
Boitempo, 2004.
BARATTA, Alessandro. Criminologia y ciências
penales. In Criminologia y sistema penal. IBdeF.
2006.
BRESCIANE, Maria Estélla M. Londres e Paris no
século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo:
Brasiliense, 2008
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento das
prisões. Petrópolis, Vozes, 1987.
RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e
estrutura social. Rio de Janeiro: Revan. 2004
MISSE, Michel. Cidadania e criminalização no Brasil:
o problema da contabilidade oficial do crime. IN:
Misse, Michel (org.). O crime violento no Rio: o
problema das fontes. Rio de Janeiro: IFCS. Série
"Iniciação Científica", 1997, n.9.
SHIRLEY, Robert W. Atitudes com relação a policia
em uma favela do sul de Brasil. Tempo Social: revista
sociológica. USP, São Paulo. 9(1): 215-231, maio de
1997.
O ESCRITOR CIDADÃO CARNEIRO VILELA E
A “LITERATURA COMO MISSÃO”
Marcio Lucena Filho
Especialista em literatura brasileira (FAFIRE)
e Mestre em história (UFPE)
RESUMO
Este trabalho realiza algumas considerações críticas
sobre o romance A Emparedada da rua Nova do
escritor Joaquim Maria Carneiro Vilela (1846-1913).
A pesquisa procurou reconstruir as lutas de um ativo
intelectual que viveu as tensões e os dilemas da
modernização do Brasil. Defendemos que o folhetim
vileliano pode ser lido como um texto de intervenção
no debate político da época. Por meio da Emparedada
o escritor-cidadão Carneiro Vilela vocalizou algumas
das suas insatisfações, criticando práticas, valores e
Instituições (Igreja, Polícia, Justiça) do Brasil
oitocentista.
Palavras-chave: Literatura Brasileira. Joaquim Maria
Carneiro Vilela. Geração de 1870.
ABSTRACT
This paper is a critical review of the “A Emparedada
da Rua Nova” novel, by Joaquim Maria Carneiro
Vilela (1846-1913). The research intended to rebuild
the academic struggle of a man, considered at the
time as an intellectual asset, which experienced the
tensions and dilemmas of the industrializing process
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
period in Brazil. In this work, we argue that the
Vilela’s feuilletons can be read as part of the political
debate of that time in Brazil. Through the “A
Emparedada” the citizen-writer Carneiro Vilela
expressed some of his dissatisfactions, criticizing
political practices, social values, and institutions such
as the Church, the Police and the Justice Courts in
Brazil during the 18th Century.
Key words: Brazilian literature. Joaquim Maria
Carneiro Vilela. Generation of 1870 in Brazil.
***
1. Introdução
Este trabalho realiza algumas considerações
críticas sobre o romance A Emparedada da rua Nova
do escritor Joaquim Maria Carneiro Vilela (18461913). Intelectual multifacetado, ele foi juiz,
jornalista, poeta, romancista, dramaturgo, ilustrador,
epigramista, pintor, cenógrafo e um dos fundadores
da Academia Pernambucana de Letras.
Carneiro Vilela viveu em um período de forte
efervescência intelectual. Podemos considerá-lo como
integrante da geração de 1870, grupo heterogêneo
que produziu diversas críticas ao status quo Imperial.
Os integrantes de tal geração foram intelectuais
atuantes que pensaram o Brasil e propuseram
mudanças nas instituições políticas, no sistema
eleitoral, nas práticas educacionais e teceram críticas
à forte ligação Estado-Igreja e à centralização política
presentes na sociedade brasileira daquele período.
Para Ângela Alonso, os textos publicados por estes
intelectuais “podem ser interpretados como
intervenção no debate político da época”1 . As suas
“interpretações desembocam num diagnóstico da
contemporaneidade como período de crise e na
proposição de um programa de reformas” 2. Segundo
esta autora a geração de 1870 produziu programas
completos de reformas modernizadoras.
A tese de Alonso nos inspirou a realizar uma
leitura da Emparedada a partir dos seguintes
pressupostos: 1) o romance de Carneiro Vilela pode
ser lido como um texto de intervenção no debate
político da época; 2) Vilela utilizou-se do seu folhetim
mais famoso para vocalizar algumas das suas
insatisfações com os rumos do Brasil oitocentista; 3)
Ele enfeixou na sua literatura um conjunto de críticas
aos valores, práticas e Instituições (Igreja, Polícia,
Justiça) do Brasil oitocentista.
Nicolau Sevcenko também nos ajudou a
pensar e problematizar o romance vileliano. Para este
autor, o texto literário fornece ao estudioso da ciência
social “um ângulo estratégico notável, para a
avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes
no seio de determinada estrutura social” 3. Para ele,
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento - a geração 1870 na crise do
Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra. 2002. p. 166
2 Idem. p. 178
3 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões sociais e criação
cultural na Primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
p. 28
1
“a literatura se presta como um índice admirável
para o estudo da história social” 4. No seu livro, A
literatura como missão, ele analisa a obra de dois
grandes escritores brasileiros: Lima Barreto e Euclides
da Cunha. Para Sevcenko estes intelectuais são
“escritores-cidadãos”, que representam “uma
minoria de consciência íntegra, animada pelo anseio
de justiça e pela inteligência crítica, clamando
corajosamente, embora em vão, por uma sociedade
equilibrada” 5.
A tese do escritor-cidadão defendida por
Nicolau Sevcenko contribuiu para a construção de
uma interpretação da Emparedada da rua Nova.
Defendemos que Carneiro Vilela pode ser
considerado um “escritor-cidadão”, que desejou
transformar o Brasil e esteve engajado em causas
sociais e políticas. Revisitar a sua literatura nos
ajudou a entender um momento crucial da nossa
história quando ocorreu um acelerado processo de
transformação política, econômica, social, religiosa,
cultural, mental.
O escritor-cidadão Carneiro Vilela teve forte
envolvimento com as questões do seu tempo, não
ficou alheio à grande crise que marcou a entrada do
Brasil na modernidade. A Emparedada guarda uma
interpretação crítica acerca dos principais dilemas
vivenciados pelo Brasil. Nela o autor desfere duros
golpes aos modos de pensar e de agir da sociedade do
4
5
Idem. p. 31
Idem. p. 30
Revista História - 114
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Recife oitocentista. A literatura vileliana está imbuída
de
uma
missão.
Na
ótica
vileliana
a
contemporaneidade é um período de crise. Ele
pensou a sociedade brasileira da época e inseriu na
sua produção literária críticas a valores e práticas
vigentes no Brasil do século XIX.
2. Carneiro Vilela: Argos do Recife oitocentista
O romance A Emparedada da rua Nova,
publicado em 1886, possui um enredo cativante e
intrigante. Ao longo das suas 485 páginas o leitor é
arrastado por uma história de sedução e crime. A
trama, extremamente bem narrada, desenrola-se
sobretudo pelas ruas do Recife, entre os anos de 1862
a 1864. O romance de Vilela possui todos os
ingredientes de um bom enredo: exposição clara,
complicação da trama de tirar o fôlego do leitor,
clímax e um desfecho que no caso da Emparedada é
extremamente trágico. A existência de um enredo tão
bem tramado recheado de diversos conflitos acentua
a tensão da trama, prendendo a atenção do leitor. A
Emparedada é um romance in media res dividido em
duas partes (I - “O cadáver Suaçuna” e II - “O
segredo de família”) e um epílogo (“As vítimas de
amor”). O livro apresenta 80 capítulos. Adultério,
ciúme, vingança, ambição, chantagem, imoralidade,
corrupção são ingredientes encontrados na trama.
A história narrada foi relatada por uma
escrava que trabalhou no sobrado da família Favais e
presenciou os fatos aterradores que ocorreram na
província de Pernambuco. A escrava é a fiadora
verossimilhança, pois ela “viveu” os fatos que são
contados em “segunda mão” pelo narrador. Este
afirma a todo momento que o romance é verídico: “é
um dos muitos episódios verdadeiros e misteriosos da
história secreta da nossa província”.
O romance “A Emparedada da rua Nova, do
escritor-cidadão Carneiro Vilela, pode ser lido como
um texto de intervenção no debate político, como um
diagnóstico pessimista do mergulho do Recife na
modernidade. A literatura foi a arma encontrada pelo
escritor para denunciar uma sociedade incapaz de
absorver plenamente os valores do mundo moderno.
Defendemos a tese que a Emparedada pode ser lida
como um texto de “crítica às instituições, aos valores
e às práticas fundamentais da ordem imperial” 1.
O narrador da Emparedada - crítico, ácido e
irônico - constrói um bem acabado painel da
sociedade recifense oitocentista. Ele apresenta, com
sua “língua” extremamente ferina, uma sociedade
decadente e corrupta. O narrador se comporta como
um
“demolidor”
das
mais
representativas
“instituições”, atacando a Igreja Católica, o governo,
a imprensa, a polícia, a justiça, a educação religiosa, a
relação arcaica entre o poder privado e o poder
público, etc. Enfim, o texto vileliano denuncia as
contradições da sociedade recifense, e também
brasileira, que contribuem para retardar o ingresso
do Brasil no mundo moderno. Em seu romance, Vilela
se mostra pessimista em relação às possibilidades de
mudança na sociedade recifense do século XIX, que
seria, ao seu olhar, cronicamente inviável.
A Emparedada apresenta um narrador intruso
e onisciente que se nomeia, apropriadamente, como
um “argos diabólico e abelhudo”. 2 Argos,
personagem mitológica, possuía cem olhos dos quais
cinqüenta continuavam abertos mesmo quando
dormia. Os seus olhos enxergavam, de maneira
perspicaz, o mundo a sua volta. Da mesma forma, o
narrador, lança os seus olhares sobre o Recife
oitocentista e denuncia, com uma voz firme, as
práticas arcaicas que marcam o funcionamento da
capital da província de Pernambuco, cidade que se
pretendia moderna. O narrador, navegante ousado e
abelhudo, singra os mares do Recife e faz um
diagnóstico da contemporaneidade como um período
de crise.
2.1. Ataques vilelianos à imprensa, à polícia, à justiça
patrimonialista e à igreja
A trama vileliana se inicia com a descoberta de
um cadáver nas matas do engenho Suaçuna. Paira
inicialmente uma dúvida sobre a identidade do
VILELA, Carneiro. A emparedada da rua Nova. Coleção: Os velhos
mestres do romance pernambucano. Recife: Ed. do Organizador. 2005.
p. 21
2
1
ALONSO. Op. Cit. p. 43
Revista História - 115
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
morto, bem com a causa da sua morte. Suicídio ou
assassinato? As opiniões na cidade se dividem:
(...) cada qual estabelecia um
certo número de argumentos e
daí tirava as conclusões mais
absurdas, prognosticava os fatos
mais
aterradores
ou
comprometia as pessoas mais
gradas e mais respeitáveis da
cidade, conforme a face sob que
encarava o fato em questão, ou
segundo a importância e o
crédito
que
dava
aos
esclarecimentos da polícia e da
folha do governo, habituados,
como estamos todos, a ser
mistificados por esses dois
poderes – imprensa e polícia –
quando lhes convém não dizer a
verdade ou deixar que a dúvida
paire
sobre
qualquer
1
acontecimento.
O folhetim vileliano não possui apenas a
função de entretenimento. Se assim fosse poderia ser
suprimida da narrativa a fala sobre a imprensa e a
polícia como poderes que mistificam, mentem,
logram. O narrador continua a sua cruzada de
1
Idem. p. 20
denuncia afirmando: “a polícia ou fora inepta ou
contemporizara com o crime, não querendo expor ao
rigor da lei pessoas altamente colocadas”2. Estúpida
ou corrupta, eis a visão do ‘argos abelhudo’ sobre a
polícia do Recife do século XIX que não deseja fazer
valer a lei e prender indivíduos de posição social
elevada.
Vilela, em outro momento da narrativa,
continua fustigando a polícia e denunciando as suas
práticas arcaicas. No romance, o morto encontrado
no engenho Suaçuna foi assassinado a mando de
Jaime Favais que contratou um certo Zarolho para
realizar o intento. O plano de Zarolho consistia em
matar Leandro e fazê-lo passar por Alabama,
estrangeiro que aceitou abandonar o Recife com o
nome de Leandro e para tanto recebeu polpuda soma
em dinheiro. O plano de Zarolho, entretanto, não foi
perfeito, pois a carta de Josefina (Esposa de Jaime
Favais), usada como isca para atrair Leandro ao
Engenho Suaçuna, foi encontrada no bolso do
cadáver, o que desfez a tese de que o morto seria
Alabama. A carta foi enviada ao chefe de polícia do
Recife, Dr. Bernardes, que convocou o comendador
Antônio Braga, um dos homens mais ricos da
província e sogro de Jaime Favais, a comparecer na
delegacia.
Antônio Braga ao chegar à delegacia “foi
imediatamente recebido, e apenas o viu, correu o
2
Idem. p. 21
chefe de polícia ao seu encontro com essa lhaneza e
deferência que as nossas autoridades essencialmente
políticas, costumam dispensar aos amigos e às pessoas
de posição e influência monetária” 3. Dr. Bernardes
iniciou o diálogo com o comendador e o informou
sobre a carta encontrada no Engenho Suaçuna
afirmando que ela estava assinada por Josefina. A
carta é a prova cabal do adultério da filha do
comendador e aponta como principal suspeito do
crime o genro dele. Ela desmascara um crime e
poderia levar Jaime e seus comparsas à Casa de
Detenção do Recife.
Dr. Bernardes entretanto não pretendia fazer
justiça, pois a
(...) verdade ia ferir em cheio
pessoas solidamente colocadas
no comércio e dignamente
recebidas na sociedade. (...)
Havia-se
já
formado,
a
propósito
daquele
acontecimento e em torno do
assassinato, uma opinião, que
seria fácil de destruir, é certo;
mas que já estava arraigada e
podia muito bem continuar de
pé com toda a verossimilhança,
e
sem
que
acarretasse
conseqüências
perigosas
e
3
Idem. p. 402
Revista História - 116
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
fatais. Com efeito, o polaco não
tinha ninguém por si, e a sua
morte era equivalente à morte
de um cão vadio que obstruísse
as ruas por aí. 1
Na visão do Dr. Bernardes
Restabelecendo a verdade, pois,
a autoridade ia não só entrar
num luta, como também ferir
reputações bem firmadas e
incomodar pessoas pertencentes
à
poderosíssima
colônia
portuguesa e ao comércio. Para
que isso, portanto? Qual o
interesse próprio que tirava a
autoridade com essa prova de
zelo
social
e
autoritário?...Indispor-se com
alguns poderosos e criar mais
alguns inimigos. Ele não fora
investido daquele cargo para
fazer justiça nem punir os
criminosos, não! Fora-o para
fazer política e para servir os
amigos. Portanto era inútil,
ridículo
até,
o
representar de Catão 2.
O chefe de polícia abafou o crime e entregou a
carta ao comendador, pois não viu vantagem
nenhuma em agir como o censor romano (Catão),
figura conhecida pela sua integridade. Ao contrário,
dr. Bernardes enxergou, ao abafar o crime do
Engenho Suaçuna, uma boa possibilidade de lucro,
pois dava ao abastado português “uma prova
exuberante de amizade, segurava a gratidão do velho
capitalista e habilitava-se a, em qualquer tempo,
poder exigir dele o que fosse conveniente ou
necessário. Era o que se chama matar de uma
cajadada dois coelhos”.3
Vilela é implacável e utiliza esse momento da
narrativa para empreender mais um ‘ataque’ às
autoridades policiais recifenses, denunciando a falta
de impessoalidade na relação entre autoridades e
pessoas abastadas, bem como a corrupção no alto
escalão policial da capital da província. O trecho do
texto que afirma que o chefe de polícia ‘não fora
investido no cargo para fazer justiça nem punir os
criminosos, mas para fazer política e para servir os
amigos’ representa uma corajosa denúncia das
práticas patrimonialistas que marcavam o Brasil
2
1
Idem. p. 403
querer
3
Idem. p. 403
Idem. p. 404
oitocentista. O Argos diabólico denuncia a existência
de fronteiras não nítidas e definidas entre o poder
público e o poder privado, pois sabe que essas
práticas dificultavam o nascimento de uma sociedade
moderna baseada na impessoalidade das leis. Esse
‘ataque’ à polícia, presente em várias passagens da
trama ficcional, representa a exposição de uma faceta
arcaica que marca a sociedade recifense.
Essa questão da justiça é reforçada em outra
passagem do texto vileliano. Jaime Favais participou
da exumação do cadáver do Suaçuna e manteve
contatos com o delegado e o escrivão de Jaboatão,
pois desejava influenciar na construção da tese de
que o morto era o Polaco Alabama e que este havia
cometido suicídio. Na beira da cova, Jaime, Zarolho e
Bigode de Arame afirmam que o morto é o polaco. O
delegado retruca com o seguinte desabafo:
O Sr. tirou-me um peso de dez
arrobas de cima de mim!
Imagine que não se descobria
essa trabalhada toda, que
trabalhão ia eu ter para
desencavar o assassino desse
sujeito!...tinha que ver! Tinha
de deixar todos os dias as
minhas lavouras, os meus
trabalhos, os meus cômodos,
para me ocupar com esse
inquérito que não me rende
nada, ou só me rende intrigas e
Revista História - 117
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
inimizades. Nada! Ainda se no
fim a gente se deparasse com
algum guabiru rabudo e
pudesse
por
esse
meio
machucar
um
adversário
político...ainda vá: mas se a
gente, no fim de contas, topasse
com
um
correligionário...hein?...não era
uma dos diabos?...Assim foi
bom o senhor aparecer. Foi
Deus quem o trouxe por aqui. 1
A fala do delegado é muito clara. Ele não foi
investido no cargo para fazer justiça, mas para
perseguir adversários políticos 2. O narrador não se
conforma com as práticas do delegado e protesta: “se
ele fosse autoridade, longe de aquela insistência e
conseqüente explicação lhe tranqüilizasse ou lhe
destruísse os escrúpulos, tê-los-iam aumentado, e
desde então o negociante e os dois acólitos teriam
ficado sob uma vigilância rigorosa, porém disfarçada
e inteligente”.3
No dia seguinte à exumação, o delegado, o
escrivão e Jaime esperavam ansiosos por Zarolho e
1
Bigode de Arame que iriam, formalmente, depor e
afirmar que o cadáver encontrado era do Polaco
Alabama. Entretanto, eles não apareceram. O
escrivão, percebendo a contrariedade de Jaime,
afirmou que poderia resolver esse problema e
contratar testemunhas para construir a versão
desejada por Jaime: “- Ora, estão vocês aí a malucar
por uma ninharia? (...) que é que falta? As
testemunhas?...isso arranja-se”.4 O escrivão completa
a sua fala afirmando: “ou a gente é autoridade, ou
não é: se é, é justamente para servir aos amigos. Não é
assim comendador ?”. 5 A voz de Vilela é implacável
ao denunciar a precariedade da justiça brasileira
vinculada a práticas patrimonialistas. O seu folhetim
é ficcional, mas o escritor- cidadão aproveita-se dele
para intervir no debate político e denunciar práticas
atrasadas.
Vilela não concentra sua ‘artilharia’ apenas no
binômio justiça e polícia. Ele fustiga também a
educação ministrada por instituições vinculadas à
Igreja Católica, afirmando que essas instituições não
formam cidadãos aptos para exercerem uma postura
crítica diante do mundo, ao contrário reforçam
vícios, pois os educadores asfixiam o coração dos
educandos. Sobre a formação educacional de Clotilde,
o narrador protesta:
Idem. p. 124
Em Pernambuco, Guabiru é o apelido depreciativo dos membros do
Partido Conservador
3 VILELA. Op cit. p. 403
2
4
5
Idem. p. 174
Idem. p. 175
Para a mulher – para a futura
mãe de família, para a
verdadeira base da sociedade
moderna, - estreitavam-se os
horizontes
intelectuais
e
morais,
proibiam-lhe
a
liberdade de pensar e de sentir,
entregavam-na aos corvos do
fanatismo e da hipocrisia,
asfixiavam-lhe o coração,
envenenavam-lhe o espírito e,
em vez de procurarem formar
uma esposa e uma mãe com
todas as aptidões para procriar
cidadãos e homens de espírito,
preparavam uma beata inútil e
estúpida, apta apenas para
dissertar
sobre
as
problemáticas virtudes do
rosário ou para engrolar
ladainhas depois de indigestos
e
perniciosos
sermões
jesuíticos”. 6
As palavras do narrador são muito duras sobre
os efeitos negativos da educação ministrada por
setores ligados à Igreja; na sua visão esse tipo de
educação estreitava os horizontes intelectuais e
6
Idem. p. 36
Revista História - 118
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
morais e preparava para a vida uma mulher
beatificada, fanática, sem senso crítico, inútil. O
narrador finaliza a sua fala sobre Clotilde afirmando
que ela saiu do colégio “revoltada pela asfixia
intolerante daquela atmosfera de beatério”. 1
A formação educacional da mãe de Clotilde,
Josefina, não foi diferente. Ela estudou no mesmo
colégio da filha. A educação do Colégio das Irmãs
Caridades era “eivada desses preconceitos piegas,
cheia dessas crendices estultas, imbuídas dessa fé
falsificadora e embrutecedora”. 2 Os padres que
ministravam as aulas eram
sacerdotes sem idéias, sem
princípios, sem moral, sem
crenças, sem estudo (...)
sacerdotes que fazem da
religião um fanatismo; da
moral, um enigma; da
verdade,
um
mito;
da
consciência, uma futilidade;
da razão, um monstro; do
coração, uma besta; de Cristo,
um mercador do templo, e de
Deus, um capadócio!”. 3
Idem. p. 36
Idem. p. 188
3 Idem. p. 188
Na visão do narrador, a educação recebida por
Josefina deixou o seu coração “mal educado, em cujo
fundo dormitavam esquecidos todos os vícios
aprendidos e adquiridos no colégio e todas as
corrupções insinuadas nos confessionários”. 4
Celeste Cavalcanti, amiga de Josefina e amante
de Leandro Dantas, estudou também no Colégio das
Irmãs Caridades. Segundo o narrador ela possuía um
“temperamento ardentíssimo, de mais a mais
desenvolvido largamente pela estrumeira da
educação colegial”. 5 Na nossa visão, as falas do
narrador sobre os ‘vícios aprendidos e adquiridos no
colégio’ e a ‘estrumeira da educação colegial’ fazem
parte da estratégia do escritor-cidadão que procurou
ao longo da narrativa denunciar práticas arcaicas que
retardavam o nascimento efetivo de uma sociedade
moderna. A educação religiosa nesse particular
contribuía sobremaneira para inviabilizar uma
sociedade mais moderna, pois incapaz de formar
cidadãos mais críticos e preparados intelectualmente
e moralmente.
Além de atacar as escolas vinculadas à Igreja,
o narrador denuncia a ambição desmedida da Igreja
por recursos pecuniários. Jaime, que desejava casar às
pressas a sua filha com o seu sobrinho, pois descobriu
que ela estava grávida de Leandro, afirma criticando
a Igreja: “o que não se consegue da igreja católica por
meio do dinheiro? - pretendia conseguir e
1
2
conseguiria do bispado todas as dispensas e faria
celebrar o casamento à capucha, porém com a maior
brevidade”. 6
Para finalizar nosso argumento sobre o ataque
do escritor cidadão à Igreja, lembramos que ao final
do texto vileliano, o narrador afirma que Calu,
prostituta e mãe de Leandro, integrou-se à Sociedade
São Vicente de Paula, e dessa maneira “caira, pois na
maior das misérias: na exploração da hipocrisia e na
corretagem da religião e (...) Maroca, filha de Calu e
também prostituta, contraiu sífilis e ficou entre a falta
de caridade do médico materialista e ignorante, e a
estúpida carolice das irmãs de caridade”7. Enfim, o
escritor-cidadão acredita que a Igreja, com suas
práticas atrasadas, contribuiu para retardar o
nascimento de uma nova ordem social.
Considerações finais
A Emparedada dialoga com a historicidade e
denuncia práticas arcaicas que marcam a capital da
província. O Argos diabólico, narrador do texto
estudado, esmiúça o funcionamento nefasto da
sociedade recifense oitocentista, e com seus cem olhos
enxerga e denuncia as práticas não modernas que
ocorrem no interior da urbe. O texto vileliano
denuncia o caráter predatório e patrimonialista da
6
Idem. p. 255
5 Idem. p. 190
4
7
Idem. p. 462
Idem. p. 475 e 476
Revista História - 119
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
justiça, o atraso da educação vinculada à Igreja
católica, a presença da desonestidade nos negócios, a
ambição desmedida e a relação promiscua entre
homens ricos e indivíduos que ocupam cargos
públicos, como delegado, escrivão e chefe de polícia.
A obra estudada reproduz o estado social e
mental do Brasil da segunda metade do século XIX,
quando um acelerado processo de modernização
econômica marcou os principais núcleos urbanos do
país. Apesar do desejo reformista, ela transpira um
tom pessimista, pois na visão do narrador não há
possibilidade de mudanças sociais, econômicas,
educacionais, políticas e mentais, uma vez que a
sociedade recifense do século XIX, porque não a
brasileira, está condenada a relações sociais
extremamente arcaicas e predatórias. Tanto a elite
econômica
quanto
as
camadas
populares
desrespeitam a lei e agem seguindo a máxima
maquiavélica: “os fins justificam os meios”. A lei,
nessa sociedade, é apenas para os inimigos.
O narrador flagra o processo de
aburguesamento de alguns setores sociais do Recife
oitocentista, e constata que novos valores foram
construídos. A modernização da cidade nesse período
trouxe um apego maior ao dinheiro e à aparência. O
narrador não tem esperanças pois esse processo de
modernização predatória é avassalador e veio para
ficar, veio para depreciar ainda mais os valores da
sociedade senhorial e escravista pernambucana, ou
seja, na sua visão melhorar não poderia, mas piorar
sim. A modernização não trouxe valores modernos
(igualdade
perante
a
lei,
impessoalidade,
democratização da política e da educação, justiça
isenta...) mas ressignificou as predatórias relações
escravistas tão presentes na sociedade brasileira. A
lucidez do “narrador-sociólogo” é desesperançosa e
desconcertante.
A única e rarefeita esperança curiosamente
veio de uma mulher quase cega, mãe do pedreiro que
foi obrigado, numa madrugada, a emparedar
Clodilde. O pedreiro quando chegou em casa narrou
o fato a mãe que exigiu que ele denunciasse o
hediondo crime. Ele dirigiu-se ao chefe de polícia e
contou o ocorrido. O chefe de polícia, entretanto, não
acreditou e achou que ele estava louco.
A mãe do pedreiro talvez represente o único e
pequeno fio de esperança numa “sociedade
apodrecida”. Ela deseja justiça, quase cega não vê
distinção de riqueza e de classe, o nó é que o chefe de
polícia tem os olhos bem abertos, e essa abertura
retarda o nascimento efetivo de uma sociedade
moderna, ancorada numa justiça isenta e “cega”
(metaforizada pela mãe do pedreiro), num sistema
educacional não obscurantista, na igualdade de todos
perante a lei e na constituição de um governo não
voltado aos interesses privados. O emparedamento de
Clotilde e a impunidade de Jaime metaforizam o
emparedamento desses valores modernos.
A pesar do tom pessimista imprimido ao texto.
É possível que ao destruir a imagem da sociedade da
época representando-a como algo cronicamente
inviável, o autor deseje na verdade um pacto de
refundação dessa sociedade que precisava
urgentemente de reformas. O reformismo vileliano
seria coroado com a abolição da escravatura e pela
implantação do ‘passo agigantado’ da democracia.
Carneiro Vilela foi um escritor-cidadão que clamou
corajosamente por uma reforma social profunda, que
alargaria significativamente os direitos de cidadania.
Referências
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento - a geração
1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e
Terra. 2002.
ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: A formação
do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo.
Humanitas/FFLCH/USP. 2004.
CHALHOUB, S. Machado de Assis: historiador. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NASCIMENTO, L. A Imprensa em Pernambuco: 18211954. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
1969.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. p. 310.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões
sociais e criação cultural na Primeira república. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Revista História - 120
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
VILELA, Joaquim Maria Carneiro. A emparedada da
rua Nova. Coleção: Os velhos mestres do romance
pernambucano. Recife: Ed. do Organizador. 2005.
AS RESENHAS DE LIVROS NOS JORNAIS O PAIZ E
GAZETA DE NOTÍCIAS COMO ESPAÇOS DE
CONSAGRAÇÃO E SOCIABILIDADE NO RIO DE
JANEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX
Renata Rodrigues de Freitas
Mestranda do PPGH-UERJ e bolsista FAPERJ
Resumo
Este artigo procura discutir as representações dos
livros resenhados pelos jornais O Paiz e Gazeta de
Notícias, a partir das implicações destas no espaço
cultural do Rio de Janeiro no final do século XIX,
onde estavam inseridos indivíduos que procuravam
adentrar na República das letras, mas que nesse
período não conseguiam viver apenas da venda dos
seus bens simbólicos, ou seja, das obras que
produziam. Desta forma, consideramos o jornal como
um espaço de consagração para esses homens que
almejavam
notoriedade
e
reconhecimento
profissional posto que servia como um meio de
divulgação das obras através das resenhas dos livros
publicados.
Palavras Chave: Campo Literário, Rio de Janeiro,
século XIX.
Abstract
This article discusses the representations of the books
reviewed by the newspaper Gazeta de Notícias e O
Paiz, from the implications in the cultural space of
Rio de Janeiro in the late nineteenth century, where
they were placed individuals who sought to enter the
Republic of letters, but in this period could not live
just from the sale of their symbolic goods, ie the
works they produced. Thus, we regard the newspaper
as a place of consecration for those men who craved
notoriety and professional recognition since it served
as a means of disseminating works through reviews
of published books.
Keywords: Literary Field, Rio de Janiero,19th century.
***
O espaço público1 do Rio de Janeiro da
segunda metade do século XIX era constituído por
homens de letras, que buscavam um espaço de
notoriedade na República das letras em formação.
Grande parte desses indivíduos construíam redes
sociais de grande importância em lugares como bares
e cafés localizados nas principais ruas da capital que
A expressão espaço público é utilizada levando em conta as reflexões
do prof° Marco Morel em sua obra: “As Transformações dos Espaços
Públicos”. O autor leva em consideração a polissemia da expressão
indicando em seu trabalho três possibilidades: “espaço público como
cena ou esfera publica, onde interagem diferentes autores, e que não se
confunde com o Estado; a esfera literária e cultural, que não é isolada
do restante da sociedade e resulta da expressão letrada ou oral de
agentes históricos diversificados; e os espaços físicos ou locais onde se
configuram estas cenas e esferas.” Marco Morel, As transformações dos
espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade
Imperial (1820-1840), Rio de Janeiro, Hucitec, 2006.
1
Revista História - 121
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
naquela época possuíam as mais diversas livrarias e
um crescente comércio de livros.
Nesse período esses homens de letras
publicavam as mais diversas obras de cunho literário
e científico, de forma que a divulgação de tais
publicações era algo fundamental para estes
indivíduos conseguirem um locus no meio literário.
Os jornais O Paiz e Gazeta de Notícias possuíam
espaços dedicados a publicidade dessas obras através
de resenhas críticas elaboradas pelos seus respectivos
redatores. Tais representações dos livros resenhados
nesses periódicos, de grande circulação no espaço
cultural do Rio de Janeiro no final do século XIX,
serviam como espaço de consagração para os homens
de letras, ou seja, indivíduos que procuravam
adentrar na República das letras, mas que nesse
período não conseguiam viver apenas da venda dos
seus bens simbólicos, ou seja, das obras que
produziam. Desta forma, consideramos o jornal como
um meio de inserção desses indivíduos no campo
literário, já que almejavam notoriedade e
reconhecimento profissional, servindo assim como
um espaço de divulgação das obras através das
resenhas dos livros publicados.
Durante a década de 1880 foram
significativas as transformações qualitativas e
quantitativas no que tange ao fornecimento de livros,
à importação de obras com pluralidade de temas bem
como uma ampliação do número de anúncios de
livros publicados nos principais periódicos do Rio de
Janeiro. Nas resenhas analisadas foram encontrados
um leque de opções para pensar as diversas formas de
interação entre os autores (os homens de letras que
almejavam um lugar no campo literário em
formação), os leitores e a sociedade, que, na segunda
metade do século XIX, passaram por transformações
políticas consideráveis. Conforme esses homens
foram garantindo seu espaço não somente nos jornais
através da publicação de suas obras, mas também nos
bares, cafés, livrarias e outros locais, tornou-se
possível a construção de uma rede social fundamental
para a consolidação desses intelectuais que foram
responsáveis pela a formação de uma opinião pública
influente no final do século XIX.
Tendo em vista a análise do livro como objeto
cultural e histórico por excelência e como um meio
de transmissão de cultura no qual estão em jogo
relações de poder é de extrema importância situar
essa discussão dentro de uma perspectiva da história
política e cultural. Assim, ao ser abordada a questão
da recepção dos impressos bem como dos livros que
circulavam no “espaço público” do Rio de Janeiro
durante a segunda metade do século XIX, foi levado
em conta que ao longo deste século, “a cidade do Rio
de Janeiro assumiu de forma hegemônica o papel de
capital cultural além de ser centro das decisões
econômicas e político-administrativas”1. Tais escritos
Tânia Maria Bessone, Palácio de destinos cruzados: bibliotecas,
homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920, Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1999, p. 85.
1
são considerados tanto como instrumentos de poder daqueles que detinham o privilégio da escrita quanto espaços de consagração para os indivíduos
que buscavam um locus na boa sociedade.
Levando em consideração que durante a
segunda metade do século XIX ocorreu uma
significativa ampliação do número de resenhas,
comentários, artigos e anúncios referentes às
publicações de livros, nossa análise voltou-se para as
resenhas de livros publicados em seções específicas
dos periódicos O Paiz e Gazeta de Notícias, intituladas
respectivamente de “Publicações” e “Registro de
Entradas”, dedicadas a “publicizar” com detalhes,
através destes comentários, as obras nos jornais,
sendo estes de grande importância para a “elevação”
dos homens de letras à categoria de intelectuais. Além
destes dois espaços específicos no jornal dedicados à
divulgação das publicações, as resenhas foram
gradualmente ocupando um espaço significativo no
jornal com o surgimento de várias seções como as do
“Salão de O Paiz” e a seção de “Livros Novos” (ambas
encontradas em O Paiz) e “Livros de Graça”, “Livros
Baratíssimos” e “Livros Novos” encontradas na
Gazeta de Notícias. Algumas obras eram divulgadas
sob o título “sahiu à luz” (impresso em destaque),
outras também, dependendo da sua importância e
popularidade, possuíam um espaço exclusivo como,
por exemplo, o Almanack Laemmert.
Revista História - 122
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Grande parte das resenhas analisadas diziam
respeito a publicações de caráter literário, científico
ou jurídico. Diversos anúncios e resenhas destas
obras procuravam divulgá-las utilizando-se de uma
linguagem bem simples e didática recorrendo muitas
vezes a gravuras e símbolos com o intuito de divulgar
leituras e assim atrair um público leitor significativo
Um outro aspecto a destacar é o espaço
dedicado à opinião de outros órgãos da imprensa com
relação a uma determinada obra que tenha
conseguido um público leitor considerável1:
“ O Manual Mercantil
Nenhuma
outra
obra
conhecemos que mais satisfaça
àquelles que querem aprender o
mecanismo commercial, já na
sua theoria, já na sua prática.
Com bastante clareza e
methodo são expostas noções
completas acerca do commercio
terrestre e marítimo, da
escripturação mercantil e dos
diversos títulos e termos
comerciais.
(...)
Esta obra é um importante
serviço prestado à classe
comercial, a que pertence o Sr.
Verediano Carvalho, que tanto
a tem honrado. Ela está em 1ª
edição, o que mostra a jus
aceitação que tem tido” .2
A partir deste trecho, é possível observar que
além de anúncios e resenhas acerca de diversas obras,
o jornal passou a reservar um local para críticas e
resenhas referentes a publicações que tenham se
destacado pelo sucesso de público leitor e por seu
conteúdo de caráter utilitário e informativo. A
publicação de resenhas de outros jornais por parte de
O Paiz demonstra a formação de um campo editorial,
pois observamos que tal iniciativa torna evidente o
fato de que diversos periódicos estavam preocupados
em divulgar livros e impressos no final do século XIX.
Os anúncios sobre a publicação de impressos
– diferentemente das resenhas – apresentavam tanto
um aspecto informativo, quanto comercial e tinham
lugar nas últimas páginas do jornal, em sua maioria,
dando informações sobre as obras publicadas – para
isso recorrendo muitas vezes a gravuras e símbolos –
ou aquelas que se encontravam à venda em
determinado local – principalmente livreiros e outros
locais que se dedicavam a venda de livros e em
muitos casos a outros ramos dos negócios.
Opinião da imprensa do Jornal Gazeta de Notícias. O Paiz, 10 de
fevereiro de 1889.
2
1
Optamos por manter a ortografia utilizada nos periódicos analisados.
Tendo em vista que tanto os impressos como
os livros no decorrer do século XIX eram tidos como
espaços de consagração para os homens de letras,
devemos levar em consideração a existência do
“espaço público”3 constituído na cidade do Rio de
Janeiro. Segundo Marco Morel, a diversidade do Rio
de Janeiro como cidade – com atores sociais e vida
urbana – e como Corte, ou seja, como sede da
monarquia, marca o surgimento de uma opinião
pública decorrente da reflexão dos “letrados”.
A partir da análise de anúncios e resenhas de
livros publicadas nos jornais O Paiz e Gazeta de
Notícias, ao longo da década de 1880, foi possível
encontrar a recepção inscrita nessas representações.
Sabe-se que nesse momento apenas uma pequena
parte da população do Rio de Janeiro era
alfabetizada4. o que nos leva a acreditar que a leitura
era um fator de distinção econômico e social.
Contudo, pode-se inferir também que se tratava de
um elemento de diferenciação cultural e, a partir da
nossa análise, até mesmo profissional. Diversas
resenhas analisavam livros voltados para um público
Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa,
atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), Rio
de Janeiro, Hucitec, 2006.
3
De acordo com censo de 1872, a região do Rio de Janeiro contava com
29,8% de “instruídos”. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na
província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História
Privada do Brasil. Companhia das Letras. São Paulo: 1997. v. 02. pp.
150-151.
4
Revista História - 123
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
especifico já que tais publicações eram destinadas a
diferentes categorias de profissionais como
comerciantes, advogados e médicos. Tal análise nos
leva a questionar a idéia de que a leitura está
vinculada a uma determinada classe social, quando
na verdade o que vemos é a existência de publicações
pautadas em outros critérios que não apenas o
econômico, conforme podemos notar em um
fragmento das resenhas publicadas:
O Sr° Veridiano de Carvalho
acaba de publicar a 10ª edição
do seu Manual Mercantil ou
Encyclopedia elementar do
Commercio Brazileiro. É um
importante
trabalho
que
recommendamos
como
o
primeiro no gênero. Em 314
paginas tractou o autor, com
grande proficiência, de tudo
quanto
diz
respeito
à
contabilidade commercial (...)
impressa nas officinas dos Srs.
Laemmert & C.1
necessidade do manual para o público profissional
específico, neste caso, os profissionais do comércio.
Tal exemplo nos remete a um outro aspecto relevante
para a compreensão do campo literário no período
estudado: a questão da recepção. O próprio material
analisado, permite refletir sobre as apropriações que
eram realizadas das obras resenhadas, no entanto
uma análise mais atenta nos permite inferir acerca da
recepção das próprias resenhas, pois consideramos
haver sinais de recepção inscritos na própria
produção do objeto pesquisado. Roger Chartier
discute questão semelhante ao afirmar que ao
Compreender como a recepção
particular e inventiva de um leitor
singular (ou de um ouvinte ou de um
espectador) está encerrada em uma
série de determinações complexas e
entrecruzadas: os efeitos de sentido
buscados pelos próprios dispositivos da
escrita, os usos e apropriações impostas
pelas formas de “representação” do
texto (no escrito ou no oral, no volume
ou no codex, no manuscrito ou no
impresso, sobre a cena ou na leitura,
no livro ou na tela, etc) [...].2
Percebe-se na citação acima não somente o caráter
utilitário da obra, mas também o interesse por parte
dos editores em ressaltar as qualidades e a
Escribir las prácticas: Foucault, de Certeau, Marin, Buenos
Aires: Manancial. 1996, p.50.
2
1
Gazeta de Notícias, 10 de janeiro de 1889.
A essa lista de formas de apropriação impostas
pela “representação” do texto, é possível pensar
também as resenhas de livros em periódicos a partir
das particularidades que esse registro escrito possui.
Dessa forma, a analise das resenhas de livros
presentes nestes órgãos da imprensa no final do
século XIX, não fica restrita apenas à publicação e
circulação de impressos, mas também às implicações
que estes possuíam nas relações de poder
estabelecidas no espaço público do Rio de Janeiro da
década de 1880, como por exemplo, no fato de em
1889 o jornal O Paiz passar a publicar resenhas de
obras de caráter republicano, além de alguns dos
autores dos livros resenhados ocuparem importantes
cargos, como no caso de Alfredo d'Escragnolle Taunay
(visconde de Taunay), que teve o seu livro “Visconde
de Rio Branco” comentado em uma edição de O Paiz
do mês de outubro de 1884.
Em sua obra “Boemia Literária e Revolução”
Robert Darnton analisa a pesquisa de Daniel Mornet
acerca dos catálogos das bibliotecas particulares, que
em sua maioria haviam sido impressas para a venda
em leilões nos arredores de Paris no século XVIII3.
Mornet constatou em seu trabalho que os livros de
autores considerados clássicos do Iluminismo não
estavam presentes nestas bibliotecas. Darnton
observou uma série de objeções à teoria de Mornet,
Robert Darnton, O iluminismo como negócio, São Paulo,
Companhia das Letras, 1996, pp. 168-169.
3
Revista História - 124
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
contudo, algumas questões levantadas por este autor
tornaram-se relevantes às pesquisas posteriores
acerca da História do livro. Em relação a análise sobre
as resenhas de obras publicadas em jornais na cidade
do Rio de Janeiro no século XIX, uma pergunta
levantada por Mornet que nos cabe destacar é: “o que
liam esses homens?”. Tal questão é importante pois
diz respeito ao nosso objeto de trabalho que são os
comentários dos livros nesse período. Dessa forma,
pode-se depreender de tal questão que é possível
discutir não apenas o que liam, mas também “como
liam esses homens?”, ou seja, quais dispositivos de
leitura1 estão presentes nas fontes encontradas.
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DO ESPAÇO SAGRADO AO ESPAÇO PROFANO
Fábio Luiz da Silva
Doutor em História – UNESP/Assis
Universidade Norte do Paraná – UNOPAR
Resumo
Houve uma época em que o espaço sagrado era
preenchido pela totalidade da experiência humana.
As transformações sociais e culturais que
engendraram a sociedade moderna representaram o
surgimento de uma forma de “ver” que
progressivamente foi dispensando as explicações
religiosas do mundo. Neste artigo, a palavra espaço é
entendida em dois sentidos que avançaram paralelos
na história do conflito entre Ciência e Religião:
espaço geográfico e espaço simbólico. O espaço
profano ganhou terreno à medida que a ciência
aumentava o conhecimento dos homens a respeito da
natureza, ou seja, conquistava maior espaço
simbólico. No entanto, longe estamos do final dessa
disputa pelo espaço simbólico e geográfico.
Palavras-chave: Ciência, Religião, Espaço Sagrado,
Espaço Profano
HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na
província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz
Abstract
There was a time when the holy space was fulfilled by
the totality of the human experience. The social and
Revista História - 126
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
cultural changes that devised the modern society
represented the birth of a way of seeing that
progressively excluded the religious explanations of
the world. In this article, the word space is
understood in two meanings that advanced in
parallels in the history of the conflict between Science
and Religion: the geographic space and the symbolic
space. The profane space gained importance as
science raised man’s knowledge over nature,
therefore,
conquering
a
greater
symbolic
space. However, we’re far from the end of this
dispute for the symbolic and geographic space.
Keywords: Science, Religion, Sacred Space, Profane
Space
***
Introdução
As relações entre ciência e religião geralmente
são conflituosas. Costumeiramente sabemos de
investidas dos criacionistas contra a idéia da evolução
das espécies e recentemente o cientista Richard
Dawkins1
vem
publicando
livros
que
deliberadamente atacam a idéia da existência de Deus
(McGrath, 2005). Ao que parece, portanto, ciência e
religião ainda disputam espaço como formas
explicativas da realidade. Em certo sentido, o
Autor de livros abertamente anti-religiosos como “Deus - um delírio”
(2007) e “O Relojoeiro cego” (2001) e também do excelente “A
Grande história da evolução” (2009). Datas das edições brasileiras.
1
pensamento científico tem mantido a hegemonia que
conquistou a partir do início da era moderna. O
aumento do espaço simbólico2 ocupado pela ciência
significou uma diminuição do espaço ocupado pela
religião. Esse fenômeno foi paralelo a outro: o avanço
do espaço profano sobre o espaço sagrado.
A primeira era a esfera
sublunar, que continha todas
as substâncias sujeitas à
corrupção,
devido
à
contrariedade
natural
existente entre os quatro
elementos constitutivos dos
corpos (fogo, ar, terra e água)
e suas qualidades (quente,
seco, frio e úmido). A segunda,
a esfera supralunar (ou
celeste), era povoada pelos
astros, pelos santos que estão
na Glória Eterna, os anjos e
Deus. Acreditava-se que o
mundo supralunar emitia
fluidos, influxos invisíveis que
influenciavam as coisas do
mundo sublunar [...]. (Costa,
1996, p. 487)
Uma das formas de representação
do espaço sagrado é a idéia de “além”. O lugar onde
está o “além”, ou “mundo espiritual”, pode ser uma
questão problemática para muitos de nós, mas não
era para as pessoas que viveram antes que o
pensamento científico passasse a ditar quais eram os
limites entre o real e o imaginário. Mergulhados no
sagrado, o homem religioso do passado sabia que o
“além” estava logo ali em cima, no céu, e se houvesse
uma escada grande o bastante poderia tocá-lo.
Antes da era moderna, a visão
predominante dividia o mundo em duas partes: a
sublunar, corruptível, imperfeita e, acima da Lua, o
mundo divino e celeste3. Divisão que se consagrou
durante séculos, configurando uma arquitetura
cósmica que perdurou pelo menos até o século XVI4.
No sentido utilizado por Pierre Bourdieu.
Essa divisão entre mundo celeste e mundo sub-lunar, corresponde à
divisão que o homem religioso faz do mundo como um todo. Para o
homem religioso tudo o que existe pode ser considerado sagrado ou
profano (Eliade, 2001).
4 Poderíamos, talvez, perceber essa mesma dicotomia quando falamos
em real versus virtual. Lembrando a observação feita por Pierre Lévy
(1996) de que virtual não se opõe a real, mas a atual.
2
3
Como não se podia conceber um
lugar sem a presença da divindade tinha-se horror ao
nada, ao vácuo, ao vazio5. Assim, o espaço acima de
nós deveria ser preenchido com algo, o paraíso – um
lugar para irmos após nossa morte. Jean Delumeau
A dificuldade em conceber o vazio pode ser percebida pela criação e
persistência da idéia do Éter, uma substância imaginada para conter os
corpos celestes, que somente foi descartada no início do século XX.
5
Revista História - 127
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
estudou esse que é um dos maiores sonhos que a
mente do homem ocidental produziu, isto é, a crença
no paraíso e no “além” eterno repleto de felicidades,
realizando uma ampla análise de textos e imagens do
paraíso ao logo dos séculos e acabou por concluir que
a nossa relação com o “além” modificou-se
profundamente neste tempo todo. “Por muito tempo o
sobrenatural e o real concreto da terra estiveram
imbricados um com o outro: o sobrenatural invadia o
cotidiano; inversamente, o mobiliário terrestre
encontrava
vasto
espaço
no
mundo
celeste”(Delumeau, 2003, p. 507).
Mas, a partir do final da Idade
Média o espaço profano começou a invadir o espaço
sagrado. Descobriu-se que os elementos do céu têm a
mesma natureza dos elementos do mundo sublunar.
A distinção entre o céu e a terra se desfez
paulatinamente até que a chegada o homem à Lua, no
século XX, tornou-se a evidência da vitória do céu
profano sobre o céu sagrado. Nas palavras de Jean
Delumeau:
Daí em diante, o paraíso só
pôde ser definido como uma
utopia, isto é, no sentido
etimológico dessa palavra
forjada por Thomas More,
como um ‘não-lugar’ [...].
Afastando-se da tentação do
maravilhoso, o crente de hoje
deve aceitar o vazio das
representações relativas ao
além. (2003, p.507)
A partir do Iluminismo, a crença em
um mundo povoado pelos mortos foi sendo
empurrada para o espaço das crenças populares.
Seguindo esse raciocínio deveríamos chegar à
conclusão de que, no mundo contemporâneo, o
“além” já deveria ter desaparecido. Afinal, no lugar
do ranger dos dentes encontramos, nas entranhas da
terra, petróleo e no lugar dos anjos cantando e
tocando harpas, achamos as pedras e poeira da Lua.
Mas não foi isso que aconteceu. Percebemos que o
céu sagrado continua a prender a atenção das pessoas
e as representações do “além” estão longe de estarem
vazias como quer Jean Delumeau.
Uma das questões mais importantes
para compreensão das representações do “além” se
refere problema do lugar, do espaço onde está esse
“além”. Jacques Le Goff já havia levantado esse
aspecto em seu estudo sobre o nascimento do
purgatório. Ele considera que a organização do
espaço onde a sociedade existe é um aspecto
importante de sua história.
Organizar o espaço do seu
além foi uma operação de
grande alcance para a
sociedade cristã. Quando se
aguarda a ressurreição dos
mortos, a geografia do outro
mundo não é uma questão
secundária. E pode esperar-se
que exista uma relação entre
a
maneira
como
essa
sociedade organiza o seu
espaço aqui em baixo e o seu
espaço no além, pois os dois
espaços estão ligados através
das relações que unem a
sociedade dos mortos e a
sociedade dos vivos. (Le Goff,
1993, p.18)
Concordamos com Le Goff de que a
questão do lugar do “além” não é secundária.
Esperando a ressurreição dos mortos ou não, todos
atribuem grande importância em saber “onde”
estarão. Para compreendermos esse processo,
trilharemos um caminho que nos permitirá traçar
uma breve história de como o espaço profano invadiu
o sagrado.
A Conquista do Sagrado pelo Profano
Ptolomeu, o último representante da
ciência grega, produziu uma explicação do mundo
Revista História - 128
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
que pode ser considerada a conclusão de todo o
trabalho do intelecto grego sobre o cosmos. Sua longa
influência sobre a nossa visão do universo é inegável.
Sabe-se pouco sobre a vida de Ptolomeu, mas sabemos
que escreveu seus trabalhos entre 127 e 141 d.C. e
que viveu em Alexandria, naquela época, uma
província romana e uma referência cultural.
A principal obra de Ptolomeu é
conhecida por Almagesto, nome dado pelos árabes e
que significa “o livro muito grande”. Nessa obra,
Ptolomeu descreve o sistema geocêntrico que
conseguia explicar muitos fenômenos celestes com
certa precisão.
Ao
final
do
período
helenístico, Claudio Ptolomeu
(século II d.C.), em sua Síntese
Matemática
utilizou
intensivamente a matemática
para a compreensão do
movimento dos astros. [...] Foi
o que fez Ptolomeu, com a
ajuda
da
geometria,
conjugando
movimentos
circulares de forma tal que o
movimento
resultante
se
aproximasse
das
órbitas
aparentes. (Vargas, 1996, s/p)
O modelo de Ptolomeu podia
descrever os movimentos do sol da lua e dos planetas
e também permitia realizar previsões de suas posições
futuras com razoável exatidão (Gleiser, 2003). O
sistema de Ptolomeu caracterizou-se por considerar o
universo finito, a terra fixa no centro do universo, a
órbita perfeitamente circular dos planetas (McGrath,
2005) e a divisão do mundo em duas partes: o
sublunar e o celeste (Simaan; Fontaine, 2003). Ao
mesmo tempo, é importante notar que Ptolomeu
dedicou-se igualmente à astrologia, sendo o autor do
livro Tetrabiblos, que trata dos signos e sua influência
nos acontecimentos na Terra.
A cosmologia medieval foi
influenciada diretamente pelos
escritos de Aristóteles (384322
a.C.)
e
sobretudo
Ptolomeu (c.100-170) e seu
Tetrabiblos. [...] Porém, devo
ressaltar logo de início que os
conceitos de astrologia e astronomia
estavam intrincados e queriam dizer
na maior parte das vezes a mesma
coisa. (Costa, 2002, p. 486)
Tal representação do universo
estava em perfeita concordância com o imaginário
religioso da época. Ptolomeu pretendia estar em
contato com a divindade ao investigar os mecanismos
celestes, pois considerava que esses eram obras
divinas. Por exemplo, considerando que Deus só
poderia obrar perfeitamente, os planetas deveriam ter
suas órbitas circulares porque essa seria a forma mais
perfeita.
Como não poderia deixar de ser, o
universo para o homem medieval era fechado tal
como era fechada cidade medieval, cercada por
muralhas. A cidade medieval, por sua vez, foi o
protótipo de muitas cidades celestiais, é o que nos diz
Delumeau, “[...] ao longo das eras os artistas muito
naturalmente imaginaram a cidade celeste utilizando
ou recompondo os elementos que lhes propunha a
silhueta das cidades de seu tempo” (2003, p.118). No
centro desse Universo estava a Terra, local da
corrupção, habitada por seres passíveis da
degradação moral e, por isso mesmo, de morrerem. A
Terra era rodeada pelas esferas da Lua, do Sol, dos
planetas e das estrelas seguindo uma ordem crescente
de perfeição. Acima da esfera das estrelas fixas havia
a esfera do primum mobile, e, ainda, além desta, a
esfera empírea, habitação de Deus. Desta maneira, a
hierarquia de valores morais refletia-se na hierarquia
do espaço. Mais do que isso, a divisão primitiva do
universo em apenas duas regiões, sublunar e celeste,
cedeu o lugar a um número maior de subdivisões ou
céus.
Apesar disso, continuou existindo a
diferença básica entre mundo terreno, caracterizado
pela mutabilidade, e o espaço celeste, reino da
Revista História - 129
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
permanência etérea e eterna. O universo, assim
concebido, é dividido de tal modo que o resultado é
uma escala gradual que se estende de Deus até a mais
baixa forma de existência moral, ou seja, Lúcifer.
Uma das descrições que retratam melhor esse “além”
é, sem dúvida, a de Dante Alighieri, a qual podemos
considerar o arremate das representações anteriores,
ou como nos diz Jacques Le Goff (apesar do fato de
estar se referindo ao purgatório, podemos estender
suas observações a todo sistema cristão do “além”),
“[...] através de uma obra de excepção, reuniu numa
sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo rasto
segui nesta obra [O Nascimento do purgatório]. Il
Purgatório é uma conclusão sublime para a lenta
gênese do Purgatório”(Le Goff, 1993, p.395).
Muito antes de Dante, porém,
descrições do “além” já eram freqüentes,
principalmente em formas de viagens ao “outro
mundo”, pois se o “além” é um lugar, é possível
viajar até ele, ou pelo menos vê-lo e, portanto,
descrever suas paisagens e seus habitantes. Assim,
acreditava-se que viajar pelas esferas celestes era uma
coisa totalmente possível de ser feita, desde que
acompanhada por algum anjo ou santo, “Tratam-se
de relatos feitos por homens a quem Deus havia dado
a graça de visitar; em geral conduzidos por um anjo
ou um arcanjo, o Inferno e o Paraíso [...]”(Le Goff;
Schmitt, 2002, p.26).
Encontra-se, por exemplo, na “Vida
dos Santos Padres de Mérida”1 (Delumeau, 2003),
obra datada do século VII, o caso do menino Augusto.
O jovem é apresentado como simples, inocente e de
muita fé. Tendo ficado doente e de cama, o menino
relata o que viu durante esse período. Afirmou que
esteve num lugar maravilhoso, grama verde, repleto
de flores perfumadas, rosas, lírios, coroas de pedras
preciosas, véus de seda e onde soprava uma leve brisa
perfumada. Viu também muitas cadeiras, para a
direita e para a esquerda e uma cadeira mais alta no
centro. Relatou, ainda, ter visto muitos servidores
bonitos e bem vestidos preparando um banquete. De
repente, continua a descrição, uma multidão de
santos apareceu, enfeitados com pedras preciosas,
ouro e com coroas reluzentes. Entre eles, segundo o
menino, havia um homem bonito, resplandecente,
mais alto que os outros, mais brilhante que o sol e
mais branco que a neve. Esse homem sentou-se na
cadeira mais alta e todos caíram em adoração. O
menino foi levado até esse homem que ordenou que
fossem fornecidas bebida e comida ao menino. Após o
banquete, o homem levou o menino para ver o
jardim. No jardim havia uma corrente de água
cristalina e ao longo dela muitas árvores e flores
Podemos ver uma breve análise do imaginário ligado ao “além”
contido nessa obra em: FAVARO, Germano Miguel Esteves. Algumas
1
considerações acerca do imaginário ligado ao além na hagiografia vida
dos santos padres de Mérida. 2006. Disponível em:
<http//www.assis.unesp.br/neam/anais2006/anais2006.htm>.
Acesso em: 21 dez. 2006.
perfumadas de muitas fragrâncias. Pouco tempo
depois o menino morreu.
Nesta descrição ainda não temos
todos os elementos do “além” cristão presentes na
obra de Dante, mas já vemos alguns elementos que
permaneceram. É verdade que o menino não descreve
uma cidade espiritual, como a Jerusalém Celeste, ficase com a sensação de um palácio cercado de jardins.
A imagem do “além” muitas vezes se aproxima da
representação do jardim do éden.
Outra visão do “além”, agora do
século XII, é a produzida por Hildegarda de Bingen.
Nascida em 1098, viveu o período do avanço da vida
monástica, quando Cluny, e depois Císter, foram
exemplos do ardor espiritual desse momento. Era a
décima filha de uma família de nobres e teve uma
vida onde a doença e o sofrimento estiveram sempre
presentes, aliás, como convém a uma santa. Aos oito
anos, foi entregue a uma jovem de família nobre que
morava num mosteiro para que fosse educada. Desde
cedo tinha visões, como quando viu a cor de um
bezerro antes dele ter nascido, mas as guardava em
segredo. Somente aos quarenta e dois anos, suas
visões vieram à luz. Ela ouviu, em 1141, uma voz que
a ordenava a escrever tudo o que lhe fosse dito e
mostrado. Ela escreveu que uma luz brilhante como
fogo, vinda do céu, abateu-se sobre seu corpo. Seu
trabalho estendeu-se de 1141 a 1151 e sua primeira
obra chama-se “Scivias” e compreende três livros, o
primeiro descreve seis visões de Hildegarda, o
Revista História - 130
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
segundo sete visões e o terceiro treze visões (Pernoud,
1996).
Em uma de suas visões ela descreve
uma cidade quadrada, cercada por três muros,
referência às três ordens da sociedade medieval.
Dentro destes muros ela mostra numerosos edifícios,
igrejas, palácios, colunas e casas comuns. Sua
descrição é carregada de simbolismo, a cidade é feita
de pedras preciosas. Hildegarda trabalha com essa
ambigüidade, gemma, em latim pode significar uma
jóia ou um rebento. No centro da cidade há a árvore
cósmica, cujas raízes são os profetas. É uma cidade
perfeita, provavelmente inspirada no apocalipse de
João e na “Cidade de Deus” de Santo Agostinho
(Dronke, 1991). Percebemos muitas características de
uma cidade medieval, com os elementos
correspondentes e uma cidade celestial com bastante
simbolismo.
Em outra descrição, a “Visão de
Túndalo” (século XII), o “além” ganha mais
elementos com o acréscimo das regiões de sofrimento.
Nesse caso a narrativa de sua viagem pelo “além”
teve a duração de três dias, durante os quais Túndalo
esteve aparentemente morto. A narrativa começa com
a descida de Túndalo e do anjo que o acompanha ao
interior da Terra. O que está, evidentemente, de
acordo com a concepção cristã medieval do universo:
o inferno fica no interior da Terra, portanto no centro
do
mundo.
Encontramos
vários
elementos
geográficos. Os assassinos sofrem num vale profundo,
os traidores são castigados num rio gelado e no fogo,
os orgulhosos estão mergulhados em um lago fétido,
os avarentos são atormentados num rio de enxofre,
entre outros tormentos destinados a cada tipo de
pecado. Destaca-se aqui que os sofrimentos são físicos
e não espirituais, o demonstra bem o paralelo entre o
espaço do “além” e o espaço físico.
Após passar pelas regiões do
sofrimento, Túndalo e o anjo chegam a um lugar que
podemos considerar como sendo a antecâmara do
paraíso e depois chegaram ao paraíso propriamente
dito onde, como em Hildegarda, há três muros: o de
prata, o de ouro e o de pedras preciosas. Continuando
a viagem, Túndalo vê uma árvore frondosa carregada
de frutas e onde pássaros multicoloridos cantavam
melodiosamente (Zierer, 2002). Túndalo vê ainda
coros de santos que vestiam roupas brancas e eram
belos, alegres e contentes. Há, ainda, o aroma do
campo. Mais adiante vê lírios, rosas e outras plantas
perfumadas e habitações para os que defenderam a
Igreja. Encontramos assim, novamente as imagens do
muro e da árvore (acrescentada de pássaros
coloridos), o perfume, a música, a vestimenta branca,
as habitações para os eleitos (Delumeau, 2003). Além
do apelo aos sentidos físicos, destaca-se a oposição
entre o local de sofrimento e o paraíso:
fedor/perfume, dor/cânticos, fogo/flores. Le Goff e
Schmitt resumem bem essas características:
O Paraíso é um lugar de paz e
alegria, desfrutadas pelos
eleitos através de seus
principais sentidos: flores e
luz para os olhos, cânticos
para os ouvidos, odores
suaves para o nariz, gosto de
frutos deliciosos para a boca,
panos aveludados para os
dedos (pois os pudicos eleitos
vestem, em geral, belas togas
brancas, só alguns artistas
devolvem a eles a nudez da
inocência do Paraíso terrestre
antes da Queda). Algumas
vezes, o paraíso é circundado
de altos muros de pedras
preciosas [...]. (2002, p. 28)
A Terra já era esférica, novamente,
quando Dante Alighieri escreveu a “Divina
Comédia”, em pleno século XIV. Foi uma viagem
espacial que Dante e seu guia, Virgílio, empreendem.
Não uma viagem espacial como entendemos hoje,
através de naves altamente sofisticadas, mas uma
viagem pelo espaço, por todo o espaço existente na
mente medieval. É certo que sua viagem tem um
caráter literário muitíssimo mais acentuado que as
descrições que citamos anteriormente, mas sua obra
Revista História - 131
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
retratou com maestria tanto o espaço físico como o
espiritual da Idade Média.
O universo cristão correspondia a
três regiões, o inferno, o purgatório e o paraíso. Ao
tempo de Dante o purgatório já havia se estabelecido
como existente na teologia cristã e, portanto, garantia
um espaço real para ele. Em Dante o inferno está no
subterrâneo, também dividido em círculos como o
céu é dividido em esferas. Quanto piores eram os
pecados, mais para o centro da Terra ficava a alma e
pior eram os castigos. O purgatório é representado
por uma montanha, acesso ao paraíso que fica nas
alturas. Enfim, o paraíso onde o poeta encontra sua
amada Beatriz.
A descrição do universo realizada
por Dante estava sustentada pelo conhecimento
científico da época (Wertheim, 2001). Segundo uma
das idéias dessa época, o mundo celeste era diferente
do mundo terrestre do ponto de vista qualitativo. O
mundo terreno era o lugar dos mortais, sujeitos a
degradação do corpo e das tentações do demônio, era
o reino do mutável. O domínio celeste era o reino do
imutável, composto da substância incorruptível, a
quinta essência (diferente das quatro essências
materiais, ar, terra, fogo e água), também conhecida
como éter – daí a região celeste ser chamada de
etérea, mais etérea quanto mais longe estivesse da
Terra.
Para os homens medievais o mundo
físico e o mundo espiritual eram diferentes, mas parte
de uma mesma realidade. Dante faz corresponder
exatamente cada uma das esferas celestes a uma
ordem angélica. Sua inspiração foi a obra “A
Hierarquia Celeste” do Pseudo-Dionísio, que por sua
vez cristianizou a crença antiga de que os deuses do
Olimpo governavam os sete planetas (Delumeau,
2003).
É desta época a obra de São Tomás
de Aquino, que pode ser considerada o auge do
pensamento cristão medieval. Dante e São Tomás de
Aquino escreveram suas obras justamente quando
profundas transformações na maneira como os
homens enxergavam o mundo estavam ocorrendo e
obrigariam a uma série de mudanças.
Sucessivas adaptações no modelo
proposto por Ptolomeu tornaram-no cada vez mais
complexo e ele deixou de explicar muitos fenômenos
celestes. Porém, esse modelo sobreviveu a muitas
transformações históricas e somente veio a receber o
primeiro golpe significativo em 1543, com a
publicação do livro de Copérnico, “De Revolutionibus
Orbium Coelestium”, onde defende a idéia de que é a
Terra que gira em torno do Sol; apesar dessa idéia já
ter aparecido em um texto anterior, o
“Commentariolus”, composto entre 1510 e 1514.
Nessa época, em que a esfericidade da Terra já não
podia ser simplesmente negada por qualquer um com
instrução suficiente, portugueses e espanhóis
acabaram por enterrar qualquer outra representação
da Terra.
O próximo passo na construção do
moderno sistema do mundo veio de uma aldeia alemã
próxima à Floresta Negra, onde morava a família
Kepler. Johanes Kepler (1571-1630) passou por uma
infância difícil, mas entrou para o seminário aos treze
anos. Sua vida adulta não teve menos dificuldades.
Sua mãe, por exemplo, foi acusada de bruxaria numa
região onde várias bruxas já haviam sido queimadas
entre 1614 e 1629. Além disso, viveu quase na
miséria, perdeu três filhos e sua mulher enlouqueceu.
Mergulhado no misticismo de sua
época, Kepler pretendeu descobrir no universo uma
inteligência matemática por trás dos fenômenos, ou
seja, Deus. Assim, imaginou um complexo sistema de
poliedros sobrepostos em cujo centro estava o Sol. As
esferas celestes tentavam salvar-se em forma de
poliedros. Em 1609, publicou a obra “A Astronomia
Nova”, onde estão as duas leis que revolucionaram a
astronomia: a primeira, que afirma serem as órbitas
dos planetas elipses e a segunda, que diz que os
planetas percorrem áreas iguais em tempos iguais.
Com estas duas “simples” descobertas, Kepler
eliminava dogmas que haviam dominado a
astronomia durante mais de dois mil anos, o princípio
de que as órbitas dos corpos celestes deveriam ser
circulares e que seu movimento deveria ser uniforme.
Kepler nos deu uma descrição do universo muito
mais exata do que as tentativas anteriores, mas
colocava em questão a perfeição que deveria possuir
o espaço celeste. Assim, apesar de dispensar os
Revista História - 132
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
poliedros, Kepler conseguiu uma eficiente descrição
da geometria e dos movimentos dos planetas e, por
conseqüência, eliminou mais um dos pilares que
sustentavam a crença nas esferas celestes.
As representações, no entanto, não
cedem a uma “simples” explicação racional. A
tradição não se renderia facilmente às inovações
propostas pelos pensadores que fundaram a ciência
moderna. No dia 17 de fevereiro de 1600, numa
praça de Roma, Giordano Bruno foi queimado vivo
nas fogueiras do Santo Ofício. Seu temperamento
arrogante e orgulhoso não ajudava a aceitação de
suas idéias que eram, sem dúvida, revolucionárias: o
universo é infinito e há uma infinidade de outros
mundos habitados por outras humanidades. Além
dessas idéias a respeito do universo, possuía outras
mais heréticas: duvidava da virgindade de Maria e
dos milagres do Cristo. De qualquer maneira, a idéia
de um universo infinito começava a fazer parte das
especulações filosóficas. Ficava cada vez mais difícil
imaginar a Terra cercada por finitas esferas celestes.
Mas, como já dissemos, a tradição
não cede facilmente e, poucos anos depois da
execução de Giordano Bruno, Galileu Galilei (15641642) também foi julgado e ameaçado com as
mesmas chamas inclementes das fogueiras do Santo
Ofício. Mesmo assim, Galileu ajudou a demolir a
física aristotélica. Sua grande contribuição foi o
método experimental e de observação, desde a famosa
experiência na torre de Piza até o uso da luneta para
conhecer o céu. A descoberta das imperfeições da
Lua, de estrelas que não podiam ser vistas a olho nu,
as luas de Júpiter e as manchas solares, demonstrava
que o céu não era tão perfeito. Era o mesmo que dizer
que o mundo celeste era da mesma natureza no
mundo terrestre. Nada de esferas ou coros de anjos,
apenas crateras na Lua e luas em outros planetas.
As novidades não foram aceitas com
facilidade por todos. O próprio uso de instrumentos
para observar o céu era motivo de crítica: não seria
ele causa de alguma deformação na imagem
observada? Para nós, que estamos acostumados a
utilizar instrumentos para “ver” melhor a natureza, é
estranho pensar que tais instrumentos possam ser
acusados justamente de deformá-la. Essa foi uma
ruptura importante entre o pensamento medieval e o
moderno.
Apesar de existirem defensores das
idéias de Galileu dentro da Igreja, ele acabou sendo
alvo de inúmeras críticas. Diante da insistência
dessas, Galileu acabou por abjurar, amaldiçoar e
deplorar publicamente as idéias de Copérnico, em
1633. Dessa maneira, no início do século XVII, o
sistema de Ptolomeu continuava sendo ensinado,
apesar da semente da moderna astronomia já ter sido
lançada. Uma prova disso eram as cópias de obras de
Galileu, que podiam ser encontradas com facilidade
por toda a Europa (Gleiser, 2003).
Não nos enganemos, porém, ainda
estava longe uma concepção do universo
propriamente materialista. Copérnico, por exemplo,
chegou mesmo a comparar o universo a um templo
magnífico (Delumeau, 2003). Jean Delumeau sugere
que a descoberta das órbitas elípticas dos planetas
tenha influenciado uma nova forma de construir
igrejas, que também passaram a utilizar a forma
elíptica ou oval (2003). Ainda, segundo ele, os
séculos XVI e XVII foram férteis em visionários, como
Santa Tereza D’Ávila que descreve o inferno como
um lugar bem material, com rua, fedor, muralha1.
Não foi apenas entre os místicos que
a religião esteve presente. Essa época que, sem
dúvida, começava uma revolução na astronomia,
deve ser entendida sem a “higienização” que a
posteridade promoveu na biografia de seus
personagens. Copérnico, Bruno, Galileu, Kepler
estavam imersos numa época em que a astronomia se
conjugava com a astrologia e com a magia. O
estudioso Rheticus, defensor do heliocentrismo de
Copérnico, não hesitou em procurar harmonizar esse
sistema com a magia dos números:
Podemos encontrar tais descrições em: D’ÁVILA, Santa Tereza. Textes
de references: apocryphes - pères de l'église - auteurs chrétiens 1
auteurs antiques. Disponível em: <http://sophie.md.chezalice.fr/NouvOMond/biblioapo.htm> Acesso em: 29 jan. 2006.
Também pode ser encontrado em: <http//www.carmel.asso.fr/visionde-enfer-et-fondation-de-.htm>. Acesso em: 21 dez.. 2006 ou ainda
em: <http//www.christroi.net/index.php/Mgr_de_S%C3%A9gvr,_L’enfer,_1876>. Acesso em:
21 dez. 2006.
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Seria possível escolher um
número mais apropriado que
o número seis? Através de
que outro número se poderia
mais facilmente persuadir a
humanidade que o Universo
foi dividido em esferas por
Deus, autor e criador do
Mundo? Pois o número seis é
superior a todos os outros nas
profecias sagradas de Deus,
tanto
quanto
para
os
pitagóricos e os filósofos. O
que
poderia
ser
mais
conveniente à obra de Deus
do que o fato de a primeira e
mais bela de suas obras poder
ser resumida no primeiro e
mais perfeito dos números?
(Rheiticus apud Woortmann,
1997, p.113)
Como a história é sempre seletiva,
nem sempre nos lembramos desse lado místico dos
fundadores da ciência moderna dos quais
acreditamos descender. Desta forma seria ingênuo
acreditar numa evolução linear que começaria com
os erros medievais e terminaria com a nossa própria
visão do universo.
De
qualquer
forma,
as
conseqüências teológicas do sistema heliocêntrico
levaram a Igreja Católica a combatê-lo e a tardar sua
aceitação, o que é um fato histórico amplamente
aceito. Porém, as implicações científicas dos trabalhos
de Copérnico, Bruno, Galileu e Kepler vão muito além
do Vaticano. Uma melhor compreensão do
movimento dos planetas abriu o caminho para
formulação da lei da gravitação universal, que
significou a unificação da mecânica com a
astronomia. A compreensão da mecânica celeste
trouxe importantes instrumentos mentais para uma
nova visão de mundo e acabou abalando o “além” da
forma como era imaginado pelos homens medievais.
Kepler já havia compreendido que
as marés eram causadas pela força da Lua e sugeriu
que, se essa força da Lua podia chegar até a Terra, a
força da Terra também chegaria até a Lua. Esta idéia
era o gérmen do princípio da gravitação universal,
problema que, após a morte de Kepler em 1630,
receberia as atenções de Isaac Newton.
Isaac Newton, filho de camponeses
de pouquíssima instrução, estudou de graça no
Trinity College, em troca de fazer atividades braçais,
como carregar lenha e esvaziar os urinóis. Seu
reconhecimento científico veio quando inventou um
telescópio que utilizava espelho, menor e mais
eficiente que o telescópio de Galileu. Mas aquilo que
o deixou famoso foi a demonstração da Lei da
Gravidade.
A idéia de uma força que atuaria
nos corpos celestes já existia, como dissemos, em
Kepler, mas o caminho entre a força motora de
Kepler e a Lei da Gravitação Universal foi bastante
longo. No fim desse percurso, Newton formulou a
famosa Lei que afirma: matéria atrai matéria, na
razão direta das massas e na razão inversa do
quadrado das distâncias, publicada em 1687, na sua
obra “Principia”. O importante para nós é destacar
que esta lei é válida tanto para o movimento dos
astros como para a queda de uma maçã, ou seja, a
terra e o céu obedecem às mesmas leis, a mesma força
que sustenta os planetas em torno do sol mantém
nossos pés presos no chão (Wertheim, 2001). A
representação do céu dividido em esferas perfeitas e
de natureza diferente do mundo sublunar deixava de
ser sustentável.
Apesar de Newton ser muito
religioso, era adepto do arianismo, e praticante da
alquimia, a conseqüência necessária de suas idéias foi
a transformação o céu em um lugar profano. Isso
também é conseqüência de outro aspecto de sua
descoberta, se a força da gravidade funciona na terra
como no céu e a terra é matéria, então, também deve
ser matéria os corpos celestes. A matéria passou a
reinar em todo o espaço e o céu cristão, habitado
pelos anjos e eleitos, teve de buscar morada em outro
lugar e foi esse fato que levou Delumeau a afirmar
que o paraíso, hoje, somente poderia ser concebido
como um não-lugar.
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Isto não impediu, é claro, que a
maioria das pessoas continuasse a acreditar no céu,
no purgatório e no inferno. O “além” apenas perdeu
seu lugar no espaço físico, ou seja, ele não estava
mais acima de nós. Visionários modernos como
Emanuel Swedenborg não especificam onde fica o
mundo espiritual que descrevem. É um mundo
distinto e de localização imprecisa, apesar de estar em
contato com o mundo físico. Assim, o mundo
espiritual passou a ser imaginado em algum lugar
não definido.
Em seu livro “O Céu e o Inferno”,
que foi escrito “segundo o que foi ouvido e visto” pelo
autor, Swedenborg descreve o mundo do “além”
enquanto demonstra sua teologia. Segundo ele, há
uma correspondência entre as coisas do céu e o
homem, ou seja, o microcosmo representa o
macrocosmo. Existem três céus e eles são diferentes
entre si: o terceiro, o segundo e o primeiro, tal qual o
homem possui uma parte superior chamada cabeça,
uma parte mediana chamada corpo e uma terceira
parte chamada pés. Assim, o homem se assemelha ao
céu.
Também Swedenborg trabalha com
a oposição entre interno e externo. O que fica claro
na passagem: “Como todos recebem o céu que está
fora deles segundo a qualidade do céu que está dentro
deles, todos recebem, pois, igualmente o Senhor,
porque o Divino do Senhor faz o céu” (Swedenborg,
1987, p.31). Desta maneira, os indivíduos perceberão
Deus segundo suas qualidades internas, isto é, reais.
Dentro
desta
lógica
de
correspondência entre o céu e a terra, Swedenborg
nos informa sobre a vida dos anjos. Primeiro, a
comunicação “lá no outro lado” é realizada pelo
pensamento. Há uma hierarquia entre os anjos e eles
estão reunidos em sociedades diferentes entre si. Estas
sociedades de anjos são maiores ou menores e
formam-se pela semelhança do bem que cada anjo
possui. Mas, numa mesma sociedade há distinção
entre os anjos, os que possuem mais amor, sabedoria
e inteligência estão no centro, os demais dividem-se
do centro para a periferia. Os anjos têm a forma
humana, Swedenborg enfatiza esta informação
algumas vezes em seu livro.
Que os anjos são formas
humanas ou homens, é o que
vi mil vezes, pois conversei
com eles como um indivíduo
conversa com outro; ora com
um só, ora com muitos em
conjunto, e nada vi neles que
diferisse do homem quanto à
forma. Fiquei até admirado,
algumas vezes, que assim
fosse. E para que não se diga
que era falácia ou visão da
fantasia, me foi dado vê-los
em plena vigília, ou quando
estava em todo sentido do
corpo em estado de clara
percepção.
Eu
também
contei-lhes muitas vezes que,
no mundo cristão, os homens
se acham em tão cega
ignorância a respeito dos
anjos e espíritos, que eles
crêem que são mentes sem
forma e puros pensamentos
de que eles não têm idéia
alguma, senão como de
alguma coisa de etéreo tendo
em si o vital. (1987, p.38)
Notamos a importância que o autor
dá à visão. Ele reitera a certeza de suas informações
com expressões: “vi mil vezes”, “nada vi”, “fiquei
admirado”, “visão da fantasia”, “vê-los em plena
vigília”, “clara percepção”, “cega ignorância”. Talvez
a preocupação com o ver para crer esteja ligada à sua
própria condição de vidente, que faz questão de
enfatizar que viu até quando estava em vigília, ou
seja, dotado das faculdades racionais. É como se
precisasse algo mais que apenas o relato das visões
para dar credibilidade às suas informações.
O céu, formado pelos anjos em
forma humana, tem como cenários elementos bem
“materiais”, o que é conseqüência natural do sistema
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
de correspondência que Swedenborg defende. Assim,
ele afirma que muitas vezes examinou as árvores, os
frutos, as flores e os legumes do céu. Em outro
momento do texto ele descreve árvores plantadas em
belíssima ordem, combinadas para formarem passeios
cobertos, por onde passeiam os habitantes do lugar,
colhendo flores para fazer grinaldas para enfeitar as
crianças. Há também árvores de espécies
desconhecidas do homem.
Outra conseqüência da forma
humana dos anjos é a necessidade de vestimentas e
domicílios. Mas, são de ordem mais perfeita e de
acordo com a inteligência de cada anjo. Os mais
inteligentes têm vestimentas mais brilhantes, outros
menos inteligentes têm vestimentas deslumbrantes e
brancas, mas sem lustro, há ainda os que são menos
inteligentes e possuem vestimentas de diversas cores.
E são roupas mesmo, pois Swedenborg nos informa
que os anjos as trocam e pode-se tocá-las.
Se o vestuário varia segundo a
inteligência do anjo, as residências também.
Magníficas para os que são mais dignos e menos
magníficas para os outros. Emanuel afirma ter estado
nas habitações dos anjos e conversado com seus
moradores. Nelas há um grande número de salas,
gabinetes e quartos de dormir; pátios, jardins e
canteiros. As casas estão dispostas em forma de
cidade, com praças, ruas e mercados “absolutamente
à semelhança das cidades em nosso mundo”
(Swedenborg, 1987, p.85). Mas não somente casas
ele viu no céu. Palácios tão magníficos que não pode
descrever. No alto brilhavam como se fossem de ouro
puro, em baixo como se fossem de pedras preciosas.
O interior era decorado de tal forma que não havia
expressões ou arte capazes de descrevê-los. Jardins
paradisíacos também existem no céu, evidentemente.
As plantas tinham folhas como se fossem de prata e os
frutos como ouro, as flores se apresentavam como
íris. Monumentos arquitetônicos do céu demonstram
que a arte mesma procede do céu.
Há também templos nos céus e
Swedenborg pode assistir suas assembléias. O
pregador em pé, no púlpito colocado no oriente, em
frente a ele e mais próximos, aqueles que estão mais
do que os outros na sabedoria; ao lado desses os que
possuem menos luz. A assembléia tem a forma de
círculo, para que todos possam estar à vista do
pregador. Ninguém fica atrás do púlpito.
Os anjos têm uma linguagem e uma
escrita. Swedenborg pode ver manuscritos e
impressos, mais do que isto foi permitido que ele lesse
alguns trechos destes escritos. E escritos em hebraico,
mas também com números – cada um com
significados diferentes.
E como não poderia deixar de ser
em um religioso proveniente dos povos “bárbaros”,
Swedenborg afirma que a salvação é para todos,
mesmo os gentios. Pois ninguém foi criado para o
inferno. Os não-cristãos, ou gentios que tiveram uma
vida moral e se conservaram na obediência,
praticando caridade mútua, são aceitos na outra vida
e passam a ser instruídos pelos anjos.
Aqueles que morrem ainda crianças,
independentemente do batismo, são levadas ao céu
onde são instruídas e educadas e se tornam anjos. Pois
as crianças que morrem são crianças ainda e não
anjos. São cuidadas por uma educadora
primeiramente e à medida que vão progredindo
recebem orientação de diferentes mestres. De todo
modo, elas vivem em estado paradisíaco, como num
maravilhoso jardim de infância.
Foi-me também mostrado
como tudo lhes é insinuado
por via de prazeres e de
deleites adequados ao seu
gênio: foi-me permitido ver
crianças vestidas com a maior
elegância; tinham ao redor do
peito grinaldas de flores que
brilhavam
de
cores
agradabilíssimas e celestes, e
também ao redor de seus
ternos braços. Foi-me uma
vez concedido ver também
crianças com suas aias, na
companhia das virgens, em
um
jardim
paradisíaco
Revista História - 136
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
ornado não simplesmente de
árvores, mas de berços
cobertos de louros, formando
pórticos com alamedas que se
dirigiam para os interiores; e
as próprias crianças estavam
então vestidas do mesmo
modo; e, quando entravam, as
flores por cima da entrada
resplandeciam de modo mais
encantador. Tudo isso mostra
quais são as suas delícias, e
como por deleites e prazeres
elas são introduzidas nos bens
da inocência e da caridade,
bens que o Senhor insinua
continuamente
nesses
prazeres
e
deleites.
(Swedenborg, 1987, p.155156)
Como o céu é composto pelo gênero
humano1, há dos dois sexos lá também. Existem,
portanto, casamentos no céu como na terra. No céu o
casamento é a conjunção de dois em uma única
mente. O marido é o entendimento e a mulher a
Para a historiadora Eliane Moura Silva (1997), Swedenborg
contribuiu para a antropomorfização do “além”, fora do espaço do
catolicismo.
1
vontade. O homem nasce para ser intelectual e a
mulher para ser voluntária. O homem age pela razão
e a mulher pela afeição. O homem tem a face mais
rude, menos bela, o corpo mais duro; a mulher tem a
face mais delicada e bela, a palavra mais terna e o
corpo mais macio.
Segundo Delumeau, Swedenborg
teria reativado ou mesmo reforçado a representação
do “além” como semelhante ao nosso, onde os anjos
são dotados de um corpo com cinco sentidos, que
“conserva características materiais, com casas,
avenidas, jardins e montanhas” (Delumeau, 2003,
p.469-470), ou seja, um “além” acessível à
experiência dos sentidos.
É justamente a questão da
experiência dos sentidos que levou Kant a fazer uma
das mais contundentes críticas a Swedenborg. Em seu
ensaio “Sonhos de um Vidente”, Kant critica os
sonhadores da razão, ou seja, aqueles que acreditam
ter visões e também os sonhadores dos sentidos, por
acharem que podem ter qualquer conhecimento além
da experiência (Perez, 2004, p.73). É a própria
crítica iluminista ao que seus representantes
chamariam de misticismo. Para Kant, o conceito de
espírito e, por extensão, de mundo espiritual, não
pode ser obtido pela experiência. Portanto, somente
pode ter origem em algum defeito cerebral. Um dos
argumentos utilizados por Kant para demonstrar a
impossibilidade da existência do mundo espiritual
parte do princípio de que dois corpos não podem
ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo.
Tomai, por exemplo, um
espaço de um pé cúbico e
suponde existir algo que
preenche este espaço, isto é,
que se opõe à penetração de
qualquer outra coisa: ninguém
chamará espiritual o ser que
se encontra deste modo no
espaço.
Seria
chamado
obviamente material, porque é
extenso, impenetrável e, como
todo corpóreo, submetido à
divisibilidade e às leis do
choque.
Até
ali
nos
encontramos ainda no trilho
batido de outros filósofos. Mas
pensai um ser simples de dailhe ao mesmo tempo razão:
será que isto preenche
diretamente o significado da
palavra espírito? A fim de
descobrir isto, quero deixar ao
dito simples a razão como
uma propriedade interna, mas
por agora considerá-lo apenas
em relações externas. E agora
pergunto: caso eu queira pôr
essa
substância
simples
Revista História - 137
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
naquele espaço de um pé
cúbico cheio de matéria, terá
então um elemento simples
dele de desocupar o espaço,
para este espírito o preencha?
Sois de opinião que sim? Pois
bem, então o mencionado
espaço, para admitir um
segundo espírito, terá de
perder uma segunda partícula
elementar,
e
assim,
finalmente, se se prosseguir,
um pé cúbico de espaço será
preenchido por espíritos, cujo
amontoado resistirá
por
impenetrabilidade tão bem
quanto se estivesse cheio de
matéria e Tanto quanto esta
terá de ser capaz das leis do
choque. [...] Está, pois fora de
dúvida
que
substâncias
simples dessa espécie não se
chamariam seres espirituais,
dos quais se poderia fazer
amontoados. (Kant, 2005,
p.147-148)
avançava sobre o sagrado, agora impulsionado pelas
luzes da razão. No entanto, também devemos admitir
que as representações do “além” não aceitaram a
derrota facilmente e foram buscar fundamentos,
muitas vezes, na própria ciência.
Assim, uma nova possibilidade para
o “além” surgiu com a “quarta dimensão”. Esse
conceito poderia salvar a idéia de mundo espiritual
da crítica kantiana. A idéia de quarta dimensão, que
ficou vinculada ao nome de Albert Einstein, já existia
muito tempo antes. Na verdade, ela é conseqüência
dos estudos de geometria não-euclidiana do século
XIX.
objetos de uma gaveta sem abri-la, pode aparecer
repentinamente e desaparecer logo em seguida, fazer
coisas que são milagres para os seres de apenas três
dimensões.
A historiadora Eliane Moura Silva
faz uma referência a essa possibilidade de entender o
“mundo espiritual” como uma quarta dimensão.
Hipótese que, segundo ela, seria bastante atrativa
para explicar uma série de fenômenos associados ao
sobrenatural. Ela cita o historiador Ioan P. Coulliano,
Hinton2 creia firmemente que
la cuarta dimensión era la
explicación definitiva del
misticismo y, por lo tanto,
creía que las doutrinas
místicas eran ciertas y los
estados y logros místicos eran
reales.
Por
razones
desconocidas tambien creía
que
existia
un
alma
(separable del cuerpo) capaz
de experimentar la cuarta
dimensión, y también creía en
la bondade fundamental de
los seres cuatridimensionales.
(apud Silva, 1997, p.21)
Em 1854, este novo modo de pensar
geometria foi apresentado Bernhard Riemann. As
idéias de Bernhard Riemann fizeram com que muitas
pessoas começassem a pensar sobre a existência
outras dimensões espaciais1. Poincaré explica a
possibilidade de uma geometria não-euclidiana e
expõe a idéia do tempo como uma quarta dimensão
em seu livro “A Ciência e Hipótese”, de 1902.
As conseqüências disso são bastante
interessantes para nosso propósito. Um ser que esteja
numa quarta dimensão certamente possui poderes
incríveis: é capaz de atravessar paredes, pode retirar
Conforme nos esclarece Pataki: “Sabemos, também, que EINSTEIN
(1879-1955) empregou as idéias de RIEMANN na sua Teoria da
Relatividade. Para o cientista, o Universo não é Euclidiano e sim curvo,
portanto, riemanniano, com quatro dimensões, sendo o tempo a quarta
dimensão.” (2003, p.30).
1
Como vemos, apesar de construções
mentais como a de Swedenborg, o espaço profano
2
Charles Howard Hinton, matemático inglês (1853-1907).
Revista História - 138
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
A melhor maneira para entender
essa idéia é imaginar um mundo com apenas duas
dimensões, como uma folha de papel. Um ser de três
dimensões pode aparecer neste mundo e desaparecer
de modo inexplicável para os seres bidimensionais.
Poderíamos fazer um objeto “desaparecer” do mundo
de duas dimensões apenas “descolando” este objeto
de seu mundo. Mais impressionante ainda para os
pobres habitantes do mundo bidimensional,
poderíamos recolocar este objeto em outro lugar. Esta
ação, que é corriqueira no mundo de três dimensões,
seria considerada um fenômeno paranormal no
mundo de duas dimensões, porque ninguém no
mundo bidimensional compreende o significado de
“para cima”. Seria possível, também, para nós, seres
de três dimensões, fazer previsões sobre o mundo
bidimensional. Os habitantes deste mundo não podem
esconder nada de nós, poderíamos ler seus
pensamentos, como se acredita possam fazer os
espíritos em relação a nós.
No final do século XIX, a idéia da
existência de uma quarta dimensão popularizou-se
muito. Em 1884, Edwin A. Abbott (1838-1926)
publicou um livro chamado “Planolândia: um
romance de muitas dimensões” (2002). Abbott viveu
durante a era vitoriana e fez muito sucesso como
escritor, educador e teólogo. Foi diretor de uma escola
e autor de um importante livro sobre a gramática da
língua inglesa.
A história é narrada pelo
personagem chamado Quadrado, que nasceu em
Planolândia (Terraplana seria uma tradução que
soaria melhor), um mundo de apenas duas
dimensões: largura e comprimento. Quadrado
descreve um mundo habitado por diversas formas
geométricas que formam uma sociedade de rígida
hierarquia, baseada na quantidade de lados de cada
indivíduo. Assim, quanto mais lados um indivíduo de
Planolândia possuísse, mais alta seria a sua classe
social. Os triângulos com apenas dois lados iguais
pertenciam à classe mais baixa. Os círculos, que
possuem infinitos números de lados, formavam a
classe dominante. Entre eles estão as outras figuras
geométricas: triângulos eqüiláteros, quadrados e
demais polígonos regulares. A sociedade em
Planolândia reservava para as mulheres uma posição
social ainda mais inferior que a dos triângulos
isósceles: seriam apenas segmentos de reta.
Quadrado chegou a visitar “outros
mundos”, como Pontolândia e Linhalândia, mas nos
importa aqui é a sua relação com o mundo de três
dimensões. Em certa noite o personagem de Abbott,
recebeu a visita de um ser do mundo das três
dimensões: uma Esfera, ou seja, um círculo em três
dimensões. O Senhor Esfera levou o Quadrado para o
mundo tridimensional onde ele ficou maravilhado
com tudo o que viu, em especial os cubos, seres que
representam a perfeição dele mesmo. Voltando ao seu
próprio mundo, Quadrado transformou-se em uma
espécie de visionário que fala de outros mundos e
acabou preso por suas idéias heréticas.
Apesar de ser uma história de
ficção, permite verificarmos novas formas de
conceber outros mundos, já que as antigas esferas
celestes não existiam mais. É possível, ainda,
considerar expressões artísticas como o cubismo e o
expressionismo manifestações do desagrado dos
artistas com um mundo de apenas três dimensões. Tal
idéia, é claro, não deixou de chegar ao cinema.
Muitos filmes de ficção científica tiveram como tema
uma quarta ou mais dimensões.
Conclusão
Alguns afirmam que o céu cristão já
não é possível de existir. Margaret Wertheim (2001),
por exemplo, chega a afirmar que a nossa idéia sobre
o espaço não permite qualquer lugar para os espíritos
ou as almas habitarem. Para essa autora, o espaço
físico preenche tudo, não sobrando lugar para o
“além”. Evidente, se o espaço físico ocupa todo o
universo não há um limite após o qual o “além”
pudesse estar. A autora, no entanto, está ciente de que
a cultura não possui rupturas assim tão bruscas e
percebe que as esperanças do homem voltam-se para
Revista História - 139
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
o ciberespaço1, onde, segundo ela, os antigos sonhos
do paraíso e da imortalidade poderiam, enfim, ser
alcançados.
Seguindo outro caminho, mas
chegando a conclusão semelhante, Jean Delumeau
também vê uma laicização da crença no paraíso –
portanto no “além”. Para ele, como para Margaret
Wertheim, o avanço da ciência destruiu qualquer
possibilidade de acreditar em um “além”, pois o céu e
a terra pertencem, hoje, ao mesmo universo. O céu
não é, segundo ele, o lugar de Deus, ou ainda, o
paraíso não poderia estar no além da morte – agora
totalmente vazio de representações -, mas poderia
estar nas utopias laicas.
Podemos concluir, concordando
com ambos os autores, que, com as transformações da
revolução científica da era moderna, alterou-se a
imagem que os homens têm do mundo. Houve
realmente um avanço do profano sobre o sagrado e
isto correspondeu a uma hegemonia da ciência como
forma de explicar o mundo. Mas devemos relativizar
essa afirmação, o próprio esforço de Richard Dawkins
em pregar que Deus não existe é sintoma de que o
conflito entre ciência e religião está longe do fim.
É interessante ver como temos a mesma necessidade de dar forma ao
espaço virtual que temos em definir o espaço sagrado, o além, o céu.
Pierre Lévy, por exemplo, em seu livro “O Que é o virtual?” (1996),
defende a necessidade de uma cartografia do virtual.
1
Além disso, a idéia de que as únicas
esperanças que nos restam são as utopias políticas e o
espaço virtual parece chocar-se com a crença de
milhões de pessoas para as quais o espaço sagrado,
povoado de espíritos, ou almas dos mortos, continua
existindo. A luta pela conquista do espaço continua.
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CLIO SE APROXIMA DE CALÍOPE: OS
TRABALHADORES DO CACAU NO PÓS-ABOLIÇÃO
SOB A ÓTICA DE JORGE AMADO
Ronaldo Lima da Cruz
Mestrando em história da UNESP
Bolsista IFP - International Fellowships Program/Brasil.
RESUMO
O presente artigo consiste em fazer uma análise do
pós-abolição no sul da Bahia, a partir do romance São
Jorge dos Ilhéus (1944) de Jorge Amado, em paralelo
com as evidências históricas disponíveis sobre a
região. Jorge Amado foi um dos escritores que se
destacaram romanceando as terras sul baianas; além
disso, vivenciou como expectador o auge do preço do
cacau a partir da década de 1920 e a exploração
ativa do trabalhador rural naquele período. Portanto,
como foi retratada a figura do trabalhador de cacau?
Como Jorge Amado auscultava as reminiscências do
escravismo brasileiro ainda permeando as relações
sociais na cidade de Ilhéus no início do século XX?
Foram essas indagações que permearam a sucinta
análise do assunto a partir da obra São Jorge dos
Ilhéus.
Palavras-Chave: Literatura – História – Sul da Bahia –
Cacau – Trabalhadores.
ABSTRACT
This article is to analyze the post-abolition in
southern Bahia, from the novel Sao Jorge dos Ilhéus
(1944) by Jorge Amado, in parallel with the historical
evidence available about the region. Jorge Amado was
one of the writers who have excelled romanticizing
the lands south of Bahia, in addition, experienced as a
spectator of the peak price of cocoa from the 1920's
and active exploration of rural workers in that
period. Therefore, the figure was portrayed as the
worker's cocoa? Jorge Amado auscultated as the
reminiscences of Brazilian slavery still permeates
social relations in the city of Ilhéus in the early
twentieth century? These were questions that
permeated the succinct analysis of the subject from
the works in the Sao Jorge dos Ilhéus.
Keywords: Literature - History - Sul da Bahia - Cocoa
- Workers.
***
“Quem planta cacau sou eu,
Sou eu que colhe ligeiro,
Mas aí! mulata, mas aí,
Só eu que não vejo
dinheiro...
Do cacau que se vendeu...” 1
1
Canção do negro Florindo. AMADO, 1961. p.112.
Revista História - 141
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Jorge Amado de Faria nasceu no dia 10
de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em
Ferradas, distrito de Itabuna - Bahia. Com apenas dez
meses, viu seu pai ser ferido em uma tocaia dentro de
sua própria fazenda. Em 1932, depois de ter ido
estudar respectivamente em Salvador e no Rio de
Janeiro, retornou a Pirangi – atual cidade de Itajuípe
- e se impressionou com a vida dos trabalhadores da
região.1 A partir daí começou a escrever sobre a vida
da gente simples do sul da Bahia, conforme ele
mesmo destacara em entrevista:
“(...) Eu não posso
escrever sobre aquilo
que não conheço, que
não vivi, que não está
dentro de mim... Então
tenho um conhecimento
da vida popular baiana,
da
cultura
popular
baiana, do povo da
Bahia, realmente íntima,
porque desde muito
criança convivi de uma
forma muito íntima com
o povo da Bahia, seja na
minha infância nas
fazendas de cacau, daí
Extraído do site: http://www.releituras.com/jorgeamado_bio.asp em
13 de abril de 2010.
1
toda a parte sobre a
região cacaueira, sobre a
conquista da terra, a
vida dos trabalhadores, a
vida dos jagunços, a vida
dos coronéis, que está
distribuída em cinco
livros, né? Cacau, Terras
do Sem Fim, São Jorge
dos Ilhéus, Gabriela,
Cravo e Canela, Tocaia
Grande
e
aquele
pequeno volume de
lembranças de infância.
E também a vida do povo
das cidades da Bahia.”2
De fato, acreditamos que muito dessa
inspiração também seja motivada por razões políticopartidárias do escritor, que era simpatizante do
comunismo, e imprime à sua obra um tom de crítica
social à situação de miserabilidade em que viviam os
trabalhadores do sul da Bahia.3 De acordo com
Ceslete Maria Pacheco de Andrade, assim como o
historiador, o escritor também é um homem de seu
Extraído em “Jorge Amado: um homem feliz com a vida”. Disponível
em:
http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/jamado.htm,
acesso em 13 de abril de 2010.
3 Os romances que estou chamando de trilogia do cacau referem-se a:
Cacau (1933), Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944).
tempo que está impregnado pela conjuntura de sua
época; dessa forma, expressa, através da literatura, as
limitações da sua época e da sua cultura. Refletindo
sobre o estudo do imaginário,4 Andrade conclui que:
“É comum os escritores
buscarem,
no
acontecimento histórico,
uma
forma
de
representar uma dada
realidade, retratar uma
época e uma sociedade.
Também é frequente os
escritores utilizarem a
história como fonte de
inspiração para a sua
imaginação criadora e
como temática para os
romancistas”. 5
Por tal razão, acreditamos que muitos
dos indivíduos que viveram na região cacaueira
podem ter servido de inspiração para nosso escritor:
pessoas simples ou mesmos os grandes da terra
vivenciaram uma conjuntura onde os processos de
ocupação de terras eram forjados em cartórios da
2
O Imaginário aqui é entendido como atividade do espírito que
extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta, definindo e
qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário
representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado.
5 ANDRADE, 1996, p.9-21.
4
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Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
cidade para servirem de fundamento jurídico na
expropriação das roças já ocupadas pela gente
comum local. Isso transcorria em um momento em
que a quantidade de pés de cacau era determinante
para manter a riqueza e o poder de uma elite em
plena ascensão.
Na década de 1880, o cacau já era a
principal riqueza não somente do município de
Ilhéus, como de boa parte das vilas da região,
tornando-se, em pouco tempo, o principal produto de
exportação da Bahia. 1 Nas décadas seguintes,
verificou-se ainda mais essa tendência: de acordo
com o Recenseamento Geral de 1920, o município de
Ilhéus era o maior produtor de cacau do Brasil. Em
números isso correspondia a 41, 2% de toda a
produção de cacau do Estado.2 As fazendas de Ilhéus
estavam entre as propriedades mais caras da Bahia e
adquiria a oitava posição no ranke nacional de
acordo com o Censo.3
Nesse período em que a terra valia mais do
que a vida do ser humano,4 temos indícios de que,
Aguiar, 1979, p.263-268.
Extraído da biblioteca digital do IGBE.
Disponível em:
RecenGeraldoBrasil1920_v3_Parte2_Agricultura, acesso
no dia
21/04/2010, p.35.
3Extraído
da biblioteca digital do IGBE.
Disponível em:
RecenGeraldoBrasil1920_v2_Parte2_Agricultura_e_Industrias, acesso
no dia 21/04/2010, p.23 - 46.
4 Jorge Amado faz a seguinte referência a esse fato: “(...) Aqueles
homens que não sabiam ler nem escrever, que vinham das lutas pela
conquista da terra, muitos deles, um misto de camponeses e assassinos,
tinham certa apatia diante da miséria que os dobrava escravos. Só uma
palavra chegava a interessá-los: terra” (AMADO, 1961. p.7). Nem
1
após a abolição do trabalho escravo no Brasil, parcela
considerável dos libertos que viviam em Ilhéus
permaneceram trabalhando nas fazendas de cacau,
até porque a região não oferecia outras
oportunidades de emprego. Em depoimento a André
Luis Rosa Ribeiro, um dos descendentes da família
Lavigne relata que: “Louis Lavigne possuía escravos, o
pessoal ficou todo trabalhando com ele. Ele precisava
de pessoal para habitar, trabalhar lá”.5
Podemos desconfiar do fato exposto, até
porque em uma região em que despontava o cacau,
possuir terras significava concentrar riqueza e status
social.
Nessa
perspectiva,
questionamos
a
legitimidade da ocupação das terras: muitas
propriedades no sul da Bahia que pertenciam à União
durante o processo de expansão da lavoura cacaueira
acabaram sendo concentradas nas mãos de
fazendeiros locais, até porque os limites de
propriedades em fins do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX não estavam bem definidos;
logo, eram muito instáveis os limites demarcatórios
das propriedades particulares e de domínio da
União.6 Então, até que ponto pode-se considerar que
Louis Lavigne não cedeu um pedaço de terra que, há
muito,
já
era
consensualmente
de
uso
consuetudinário dos libertos? São ainda muito
nebulosas as razões que levaram a esse e outros
indivíduos a “doarem” parcelas de terras a seus excativos, se isso de fato aconteceu.
Sabemos que, pelo menos inicialmente, os
libertos optaram por permanecer nas propriedades
onde tinham sido escravizados, mas nessa conjuntura
do pós-abolição, procuraram estabelecer novas
relações de trabalho.7 Entretanto, intriga-nos saber
como se construíram essas relações de trabalho já que
se mudam os papeis sociais desses indivíduos - o
senhor virou patrão de uma massa de indivíduos que
até outrora eram seus escravos. Em Jorge Amado, são
notórias as inúmeras referências aos personagens de
traços negroides – servindo de indicador de que
poderiam ser libertos ou descendentes. Os homens e
mulheres geralmente aparecem descritos como
negros ou mulatos, observe o seguinte trecho da obra
São Jorge dos Ilhéus:
“Os
caminhões
penetravam pelo fundo
em marcha – a – ré,
carregadores levavam os
sacos às costas, iam
dobrados com o peso. Os
2
sempre a terra chegou a valer mais que o ser humano, no período
escravista, era o cativo que valia que qualquer bem dentro de uma
propriedade MARTINS, 1986, p.31-2.
5 RIBEIRO, 2001. p.61.
6 Segundo André Rosa Ribeiro, as propriedades negociadas possuíam
títulos de escrituras e limites estabelecidos por marcos de pedras
legitimados pelo reconhecimento mútuo, prática essa que sobreviveu na
demarcação das fazendas de cacau, sendo raros os cercamentos.
RIBEIRO, 2008, p.30.
7
CASTRO, 1995. p.292.
Revista História - 143
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
sacos caíam com um
baque
surdo
nos
caminhões, os choferes
punham os motores em
marcha,
arrancavam
pela rua, paravam no
cais. Novamente vinham
carregadores
e
novamente
curvavam
suas costas sob o peso da
carga. Corriam pela
ponte, pareciam seres
estranhos, negros de
espantosas corcundas”.1
O trabalhador de fazenda é o foco
principal nos romances de Jorge Amado, que fazem
parte da “trilogia do cacau” 3, e não são raros os
momentos em que os mesmos são comparados a
escravos. Mas será que esses indivíduos recebiam essa
alcunha somente porque exerciam um trabalho de
nível degradante? Vejamos algumas exposições do
escritor em Terras do Sem Fim:
“O comandante parou,
olhou o mulato que
sonhava. Virou-se para o
imediato...:
-Por vezes me sinto
como o comandante de
um daqueles navios
negreiros do tempo da
escravidão...
Como o imediato não o
respondesse,
ele
explicou:
-Daqueles que em vez de
mercadorias
traziam
negros
pra
serem
4
escravos....”
São esses seres estranhos que faziam os
serviços braçais, tanto na zona urbana da cidade
quanto nas fazendas de cacau, em geral são negros
carregadores,
mulatas
prostitutas,
alugados,
tropeiros, trabalhadores da fábrica de cacau2 e
encarregados de fazenda. Se parcela considerável
veio de outros estados e de outras cidades da Bahia,
quase todos estavam fadados a permanecerem nos
trabalhos que envolviam a produção, ensacamento,
beneficiamento e transporte do cacau para o exterior.
AMADO, 1961. p. 18.
A fábrica de cacau aqui é uma sutil referência à Usina Vitória que
iniciou suas atividades em 1927 e que pertenceu a Hugo Kaufmann.
Guia Turístico do Cacau, 1964, p. 79; AMADO, 1961. p.71.
Juridicamente, esses homens e mulheres
pobres do romance são livres, mas devido à
conjuntura política em que se construíram as bases
republicanas no país, podemos considerar que as
camadas menos abastadas da sociedade estavam
política e socialmente excluídas. De acordo com José
Murilo de Carvalho, a Constituição Republicana “(...)
Era uma ordem liberal, mas profundamente
antidemocrática e resistente a esforços de
democratização”.5 É, nesse contexto, que se dava a
usurpação da terra: indivíduos pobres sem o título de
propriedade foram marginalmente expulsos de suas
propriedades e, não foram raros os momentos em que
o uso da força, coerção e violência eram aplicados no
Brasil e, particularmente, no sul da Bahia onde os
grupos privilegiados constituíram suas riquezas a
partir da apropriação de terras produtivas.6
É mister ressaltar que, durante o final do
século XIX e início do século XX, houve conflitos
entre fazendeiros e pequenos roceiros sobre a posse
da terra. Muitos desses roceiros foram descendentes
ou mesmo poderiam ter sido ex-escravos nas
fazendas que, durante o pós-abolição, vieram a
perder suas pequenas propriedades devido ao fato de
não possuírem o título das terras. Soma-se a isso a
ausência de apoio da justiça local ou estadual. Em São
Jorge dos Ilhéus, encontramos o seguinte trecho
1
2
Ver a tríade de livros: Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos
Ilhéus. Destaques do autor.
4 AMADO, 1957. p.44.
3
CARVALHO, 2004. p.45.
Para uma melhor discussão sobre o assunto consultar: FRANCO, 1969.
p.143
5
6
Revista História - 144
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
alusivo ao período: “Eu era menino no tempo da
escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe
também... Mas não era mais ruim que hoje... A coisa
não mudou, foi tudo palavras...” 1
Jorge Amado ao inferir essa e outras
referências sobre ao trabalho cativo ou mesmo sobre
as relações trabalhistas envolvendo patrão e
empregados, poderia ter-se utilizado da memória
familiar ou mesmo local que, de tempos em tempos,
traziam à baila temas tidos como ofensivos à moral
das autoridades municipais e a de algumas famílias
integradas aos círculos de poder local; como exemplo,
matéria publicada na Gazeta de Ilhéus, no dia 21 de
junho de 1903.
“Muita
gente,
aqui
recém chegada ignora
que o Sr. Ernesto Sá
opozera-se a extração do
barro para concluir-se a
grandiosa obra do cais
da cidade, que está
prestando os melhores
serviços. Muitos não o
suporiam tão mesquinho
e tão inimigo desta terra,
onde
se
não
enriqueceram,
foi
certamente
por
preguiça,
pois
até
escravos, em grande
número,
não
lhe
faltaram, daqueles do tal
barco que deu á costa do
Itahype, em 1851, se
não me falha a memória,
e que foram quase todos
divididos pelo Ernesto,
seus
parentes
e
autoridades da comarca,
que não devim consentir
na
vergonhosa
distribuição, em virtude
da
lei
vigente
prohibitoria do tráfico.”
2
Poucos relatos documentais semelhantes
a esse sobreviveram às ações do tempo, mas não
podemos nos esquecer de que muito dentre os fatos,
acima publicados, podem ter sido utilizados no
discurso oral dos grupos oposicionistas locais e
serviram de inspiração para a literatura “negra” de
Jorge Amado. Contudo, é na experiência vivida, que
Jorge Amado nos coloca a par de seu olhar
Gazeta de Ilhéos, Folha 1. Matéria intitulada “Indirectas”. 21 de junho
de 1903. Ed. N° 216. Autor: Philaréte.
2
1
AMADO, 1957, p.104.
romancista para entendermos as relações sociais
arraigadas nas fazendas de cacau.
A conotação que o autor confere às obras
remete sempre o leitor ao pátio da “casa-grande”. É
fato que essa nomenclatura era usada para as
residências onde viviam fazendeiros abastados no
período escravista, Jorge Amado não se faz de rogado
e continua a usar a mesma designação para a
composição arquitetônica que existia nas fazendas de
cacau. Entretanto, ao fazer referências à habitação
dos trabalhadores expõe a rusticidade daqueles
lugares que serviam de residência para um grupo de
três ou quatro pessoas: geralmente eram casas de
palha com poucos móveis enquanto o “senhor”
residia na “casa-grande” que se despontava na
paisagem bucólica das fazendas do interior baiano.
Posicionamento díspar ao de Jorge Amado, consta em
um relatório de 14 de junho 1926, no qual o chefe do
executivo municipal - na época, Mário Pessoa da
Costa e Silva – remetera para um funcionário do
governo estadual, demonstrando as facilidades que
tinham os trabalhadores agrícolas:
“A diária do trabalhador
é de Rs 4$000....Os
administradores ganham
de 200$000 a 300$000
mensais...As
fazendas
ficam à margem da
Estrada de ferro são
Revista História - 145
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
servidas de luz elétrica,
telefone,
médico,
farmácia, tendo, a pouca
distância, cinemas e
outras diversões. – Em
muitas fazendas já há
casas mais ou menos
confortáveis
para
trabalhadores,
e
possuem
estufas
e
instalações regulares.”
(CAMPOS, 2006. p.608)
Se a abolição não provocou o distanciamento
dos libertos de seus antigos senhores, nenhuma ou
muito pouco foram as oportunidades conquistadas
após esse período; pois, segundo Florestan Fernandes,
“só o vício e o crime ofereciam saídas realmente
brilhantes ou sedutoras de carreiras rápidas,
compensadoras e satisfatórias”.1 Em resumo, as
oportunidades oferecidas para os afro-descendentes
após a abolição estavam longe de oferecer dignidade
e oportunidades de ascensão social.
Pelo relatório, as condições de vida dos
trabalhadores rurais eram relativamente boas. Desse
ponto de vista, poderíamos sugerir que as relações de
trabalho seguiam o mesmo padrão? Num país onde
até a década de 1930 não tínhamos uma legislação
1
FERNANDES, 1978. p.146.
trabalhista e nem sindicatos potencialmente capazes
de minimizar as atrocidades cometidas pelo
patronato, até que ponto podemos confiar no
conteúdo desse relatório tendencioso? É característico
das primeiras décadas do século XX um rearranjo do
tecido social: o povo pobre expropriado continuava a
lutar pela ampliação dos direitos civis, enquanto os
grupos elitistas da sociedade delineavam uma política
de manutenção a partir de suas prerrogativas.
O liberto que se encontrava expropriado do
capital resistia à ação burguesa e capitalista, mas de
acordo com Sidney Chalhoub, acabou sendo forçado
a se inserir na “(...) construção de uma nova
ideologia do trabalho e à vigilância e repressão
contínuas exercidas pelas autoridades policiais e
judiciárias”.2 Além do controle policial3, existia no
interior das fazendas o poder simbólico4 do coronel e
de seus encarregados. Esses últimos, apesar de serem
empregados comuns que tiveram a sorte e/ou a
oportunidade de galgar uma posição melhor,
mantinham-se indiferentes ao ritmo de trabalho e às
condições em que estavam submetidos os outros
CHALHOUB, 2001. p. 47.
3 Cito aqui a título de exemplo o trabalho de GUIMARÃES, 2006.
4 O conceito de poder simbólico utilizado neste texto é o de Pierre
Bourdieu do qual a classe dominante impõe sua legitimidade pelo uso
da força que “(...) é esse poder invisível o qual só pode ser exercido com
a cumplicidade daqueles que não saber que lhe estão sujeitos ou mesmo
que o exercem”. BOURDIEU, 2007, p.7-8. Para Raymundo Faoro, o
coronel, não manda porque tem riqueza, mas manda porque se lhe
reconhece esse poder, num pacto não escrito. FAORO, 1991. p.622
trabalhadores. Observe a referência encontrada na
obra do Escritor:
“Sempre mais depressa,
essa é a lei dos ‘alugados’
nas fazendas de cacau.
‘Mais depressa ‘, grita
Tibúrcio do alto de seu
cavalo, o relho na mão, o
relho que por vezes
desvia das ancas do
animal para as costas de
um
homem
que
5
protesta”.
O relho que, outrora servira para o castigo dos
cativos, estava servindo como instrumento de
opressão dos libertos. Temos fortes indícios para
acreditar na versão do romancista até porque era
prática corrente na época utilizar a força contra os
empregados rurais. Em entrevista a um neto de
escravos de Juiz de Fora, Elione Silva Guimarães,
menciona o seguinte fato:
“O
sr.
Francisco
também informou que
os negros eram sempre
chamados
pelos
2
5
AMADO, 1961, p. 109.
Revista História - 146
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
‘brancos’
de
‘crioulinhos’, ‘macacos’ e
‘bicho
da
orelha
redonda’; que eles não
tinham a quem reclamar
contra os maus-tratos e
quando se queixavam
nas
fazendas,
do
tratamento que recebiam
dos
administradores,
apanhavam”.1
punham crianças para
trabalhar nos campos e
nas
barcaças
de
secagem. Cada braço era
tão valioso que os
plantadores
tratavam
estas crianças como
mão-de-obra
cativa,
mesmo
após
a
promulgação da Lei do
Ventre Livre (...)”.2
Apesar
de
ser
um
universo
predominantemente masculino, crianças e mulheres
também faziam parte do cenário em uma lavoura de
cacau, ambos geralmente trabalhavam para
complementar a renda da família. O uso da mão-deobra de crianças era utilizado em Ilhéus desde o
tempo da escravidão e chegou a gerar, em vários
momentos, disputa pela sua força de trabalho.
Ainda no pós-abolição, temos indícios de que
as crianças eram utilizadas como mão-de-obra nas
fazendas de Ilhéus e, muito pouco essa situação
modificaria nas próximas décadas do período
republicano. Segundo Kátia Mattoso, durante o
período escravista, uma criança começava a trabalhar
a partir dos 8 anos de idade3. Presumimos que foi,
nessa faixa etária, que as crianças “livres” eram
exploradas nas lavoras de cacau. Nosso romancista
assim descreve o trabalho infantil nas fazendas:
“Os plantadores de
Ilhéus
estavam
tão
desesperados por mãode-obra, e o cacau
tornava tão útil cada ser
humano
numa
plantação,
que
eles
“[Dona Auricidia] Ela
diz que todos viram anjo
no céu , de assas de
beija-flor. Os que não
viram
anjos,
viram
2
1
GUIMARÃES, 2006, p.315.
3
MAHONY, 2001. p.114.
MATTOSO, 1988. p.39-43.
trabalhadores, comem o
sol do meio-dia nas
costas nuas, é como um
chicote. (...) os frutos
caem das árvores, os
meninos
levam,
correndo, as mulheres
partem com um golpe
seco de facão. Às vezes
uma corta a mão, um
golpe mal calculado,
cobre o talho de terra,
derrama visgo de cacau
em cima”.4
Também aqui não cabe a primazia do uso da
mão-de-obra infantil somente ao sul da Bahia. Elione
Silva Guimarães destacou que, no pós-abolição, a
tutela de menores fora um dos mecanismos mais
usados, principalmente, pelos ex-senhores de
escravos como alternativa para a falta de braços. Em
geral, utilizava-se do argumento de pobreza ou do
padrão comportamental dos pais das crianças para
conseguirem a guarda provisória e, em muitos casos,
o que era para ser provisório acabava sendo
definitivo até que os tutelados pudessem dirigir suas
próprias vidas.
4
AMADO, 1961, p.113.
Revista História - 147
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Essas “crias de casa” serviam nos mais
diversos afazeres; conforme relato do memorialista
Pedro Nava: “Elas carregavam menino, traziam água,
varriam aqui, espanavam ali, serviam mesa,
apanhavam fruta, lavavam roupa, quebravam louça
(...) E continuavam a ser sexualmente exploradas”.1
Infelizmente, não temos pesquisas que tenham
investigado o uso de crianças na lavoura de cacau.
Jorge Amado também faz referências às
mulheres da fazenda, em muitos casos, depois de
defloradas pelos sinhôs acabavam se tornando as
prostitutas que invadiam a orla próximo ao porto de
Ilhéus ou nos subúrbios de Itabuna. Mas em relação
às mulheres dos trabalhadores não mais que “(...)
molambos; sim, molambos negros, molambos
mulatos, de seios flácidos, e pele batendo no umbigo,
de rostos feios, de pernas sujas e feridas, de sexo
malcheiroso. Mas, ah! São mulheres! (...)”.2
Não raro eram as presenças de crianças e
mulheres na agricultura do sul da Bahia que os
mesmos não passaram despercebidos pelos
funcionários do precário Censo de 1920, conforme
quadro abaixo:
Recenseamento Geral do Brasil 1920 –
População de Ilhéus3
GUIMARÃES, 2006, p. 133.
AMADO, 1961. p. 115.
3 Extraído em: RecenGeraldoBrasil1920_v4_Parte5_tomo1_Populacao
no dia 26 de abril de 2010.
O número de crianças e adolescentes4 é
bastante considerável se levarmos em consideração
que são braços auxiliares na fazenda de cacau,
principalmente quando usadas nas pequenas tarefas
da plantação, tais como: transporte de pequenos
cestos de cacau, etc.. O vai-vem de crianças nas
lavouras de cacau era prática corrente desde o
período escravista, de acordo com Isabel Cristina
Ferreira dos Reis, entre 1874 a 1886 foi registrado
pelo Fundo de Emancipação de Escravos em Ilhéus
um número considerável de crianças, muitas delas
consideradas aptas para o serviço da lavoura com 12
anos de idade. “Entre os 62 menores de 15 anos,
observamos que, no item “profissão”, 43 (69,3%)
aparecem como trabalhadores de lavoura (20
meninas e 23 meninos) e 17 (27,4%) eram do serviço
doméstico (15 meninas e 2 meninos); um era
carpina”.5
Já quando se trata das mulheres, podemos
questionar o quantitativo expresso no Censo:
1
2
Não podemos deixar de lembrar que no Brasil a maioridade “plena”
até pouco tempo só era conquistada aos 21 anos.
5 REIS, 2007. p.266.
4
praticamente, não chegam a 1/3 da mão-de-obra.
Será que a participação fora tão insignificante assim?
Ambos, crianças e mulheres eram partes integrantes
do cotidiano de uma fazenda, pois em última
instância, representavam melhorias da condição de
vida para suas famílias.
Por fim, colocamos no quadro acima números
que expressam profissões “mal definidas”, mas
consideramos que essa classificação deva refletir as
inúmeras pessoas que não tinham um emprego fixo
nas propriedades agrícolas do município. Apesar de
ser uma mão-de-obra flutuante, eram utilizadas
principalmente, nas épocas de colheita e,
consideramo-las de igual importância para a
dinâmica da fazenda. Para tanto, utilizaremos o
estudo da Angelina Nobre Rolim Garcez que, apesar
de não conceitualizar os tipos de trabalhadores das
fazendas de cacau, faz uma breve análise da situação
da mão-de-obra empregada nas fazendas:
“O uso de determinada
quantidade de mão-deobra durante a safra e a
redução
de
pessoal
empregado
após
a
mesma,
foi
prática
corrente na lavoura
cacaueira.
O
aproveitamento de mãode-obra de baixo custo
Revista História - 148
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
durante
a
safra
beneficiou largamente o
empregador, assim como
influiu para diluir o
poder de força de
trabalho no cacau, pelo
seu caráter transitório”.1
sofrer
passivamente
todas as vicissitudes da
exploração
do
seu
trabalho.
Logo
as
primeiras dificuldades o
abandonará em busca de
situação mais favorável.
(...) e, portanto de
poucas disponibilidades
de mão-de-obra, forçará
a adoção de um sistema
de relações de trabalho
que
obrigasse
o
empregado,
embora
juridicamente livre, a
conserva-se
no
seu
lugar. O processo que
mais se difundiu no
Brasil será o de reter o
trabalhador
por
2
dividas.”
A guisa de conclusão...
Fosse homem, mulher, criança, jovem ou
adulto, todos estavam aptos para o trabalho regular
nas plantações de cacau. As relações de trabalho se
ajustavam em uma época em que ainda eram
evidentes os resquícios de um passado escravista de
natureza patriarcal e socialmente excludente.
Momento em que inexistiam as associações de classe
que lutassem pela melhoria das condições de vida e
de trabalho da população rural iletrada, despossuída
da cidadania e arraigada a meios sócio-culturais
quando o desnivelamento social estava presente diaa-dia. São sobre esses trabalhadores que Caio Prado
comenta:
“O trabalhador livre não
estará, como escravo,
preso a seu empregador
e obrigado, por isso, a
1
GARCEZ, 1975. p.52.
Jorge Amado pode não ter convivido com
os libertos ou seus filhos, mas soube retratar, na
forma de narrativa literária, as vivências dos
trabalhadores do cacau do sul da Bahia; enfim,
através da literatura amadiana foi possível fazer um
paralelo com fragmentos da realidade histórica. Nesse
2
PRADO JUNIOR, 1998. p.212.
sentido, supomos que a massa de trabalhadores
cativos advindos do tráfico de escravos em meados do
século XIX, contribuiu significativamente para a
expansão da monocultura cacaueira, sendo que,
durante as décadas posteriores ao pós-abolição
mantiveram em ritmo acelerado a produtividade
agrícola regional, onde nem sempre as condições de
vida e trabalho eram condizentes com a conjuntura
nacional.
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Documentos:
Gazeta de Ilhéos, Folha 1. Matéria intitulada
“Indirectas”. 21 de junho de 1903. Ed. N° 216. Autor:
Philaréte.
Recenseamento Geral do Brasil, disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/colecao_digital_publica
coes_multiplo.php?link=Censode1920&titulo=Recen
seamento%20Geral%20de%201920, acesso em 0807-2010.
POÉTICAS DO DESEJO
Tânia Regina Zimmermann
Professora da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul
Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de
Santa Catarina.
Resumo
Nesta resenha apresenta-se um conjunto de artigos de
pesquisadores da literatura e da história cujo tema
central é o desejo e as análises pautam-se em
problemáticas contemporâneas em torno dos corpos e
da forma como eles nos têm sido produzidos e
apresentados. A grande maioria dos textos almeja a
desconstrução de um ideal heteronormativo para os
seres humanos vislumbrando outras possibilidades
para as existências corporais.
Abstract
This review presents a series of articles by researchers
of literature and history whose central theme is the
desire and analysis are guided in contemporary issues
around bodies and in the way they have been
produced and presented. The vast majority of texts
aims at deconstructing a heteronormative ideal for
human beings glimpse other possibilities for the stock
body.
Revista História - 150
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
Esta coletânea de artigos1 reúne pesquisas
interdisciplinares que transitam pela literatura e a
história. As análises são tomadas por conceitos como
poder, desejo e sexualidade. Outras categorias não
menos revelantes como sexo e gênero povoam grande
parte das análises. O conjunto da obra é composto
por oito textos que nos revelam problemáticas
contemporâneas em torno dos corpos e da forma
como eles nos têm sido produzidos e apresentados. Os
textos em sua maioria almejam a desconstrução de
um ideal heteronormativo para os seres humanos
vislumbrando outras possibilidades para as
existências corporais.
No primeiro texto, Aguinaldo Rodrigues
Gomes “Representações e Práticas Sexuais na
Antiguidade” discorre sobre a obra “Ilíada” de
Homero, a luz de teoria pós-feminista do tempo
presente. O autor ora fundamenta-se nas construções
heteronormativas ora nos dados biológicos para
analisar a constituição de corpos e possibilidades para
o desejo. O enfoque literário pauta-se nas relações
afetivas entre homens na Antiguidade Clássica. Essas
práticas, segundo Gomes, remetem a entender
aqueles corpos como abjetos porque não se
enquadravam no modelo ideal de materialização dos
corpos e, portanto nos defrontam com o limite porque
oferecem o exterior ainda tão necessário para
GOMES, Aguinaldo Rodrigues; NETTO, Miguel Rodrigues de Souza
(orgs.) Poéticas do Desejo. Campo Grande: Editora Life, 2010, 192 p.
1
estabelecer as fronteiras entre os corpos que
importam e aquelas aos quais não se atribui nenhuma
significância.
O texto que segue “O Sexo Proibido e
Prostituição na Cidade de Baudelaire” é de Marcos
Antonio de Menezes e tem por pretensão expor as
representações do poeta francês sobre as relações
afetivas e sexuais com e entre mulheres prostitutas na
cidade moderna. Na cidade de Baudelaire os sonhos
proliferam, o fantasma da liberdade gruda no
transeunte e os sentidos vão se embaralhando. Eis que
surge um novo imperativo na vida de muitas pessoas:
o mercado e assim quase tudo esta transformado em
mercadoria inclusive a literatura de Baudelaire. Nesta
situação o poeta se compara às mulheres prostitutas
que também vendem a si próprias disputando
também espaços de sobrevivência. A prostituição em
um sentido amplo simboliza esta nova cidade. É o
escárnio da vida moderna onde os “sujos” da história
tem visibilidade no trabalho de Baudelaire. Conforme
o autor, este poeta trouxe a tona aqueles corpos que a
modernidade capitalista varria para debaixo do
tapete.
“Magistrados e Homossexuais: saber jurídico e
homossexualidade no Brasil da Belle Époque” é o
tema desenvolvido por Carlos Martins. O autor
desenvolve uma acurada análise sobre as
transformações no espaço urbano do Brasil no final
do século XIX e início do século XX. Neste período,
emergem nos discursos pessoas perigosas entre os
quais os trabalhadores radicais, as prostitutas e os
homossexuais. O crime sexual estava na ordem do dia
e deveria ser punido exemplarmente quer seja os
crimes contra a honra da mulher e os atentados ao
pudor. O autor analisa algumas produções brasileiras
de juristas do período que remontavam ao clássico
estudo lombrosiano sobre a caracterização biológica
do criminoso.
Assim a homossexualidade foi
considerada pelo saber médico como aberração, uma
doença e, portanto foi criminalizada pelo saber
jurídico conforme estudos de caso apontados pelo
autor no seu texto. O autor ainda destaca que os
saberes médicos ao enquadrar as práticas
“desviantes” como uma doença a ser erradicada
colocavam-se como os salvadores dos homossexuais e
dos loucos.
Edelberto Pauli Junior nos presenteia nesta
obra com o texto “Arte de ornar e de dar prazer: Uma
leitura do conto Fugados de Lezama Lima”. Segundo o
autor, o escritor cubano Jose Lezama Lima delineia
neste conto o mecanismo da dobra cuja característica
é a desaceleração da narrativa permitindo ao leitor
uma atitude mais contemplativa, ou seja, os objetos
são considerados em sua simultaneidade e vistos
como uma espécie de espetáculo. No conto relata-se o
encontro de dois amigos que decidem passear ao
invés de freqüentar a escola. Na trama chega mais
um personagem masculino e retira um dos amigos da
cena. Na cena seguinte cria-se o sentimento da perda,
do vazio deixado pelo amigo o qual será preenchido
Revista História - 151
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
por arriscadas aventuras amorosas que misturam
práticas de orgias e de dor. Para Pauli Junior, a
metamorfose de um dos personagens traz a tona a
dobra da qual emergem as descrições narrativas
sobre o desejo pelo desconhecido,
instável e
imprevisível.
O quinto capítulo discorre sobre o tema: “O
Inominável do Desejo: uma visão discursiva do
homoerotismo” e é de autoria de Peterson José de
Oliveira. Neste texto, o autor elegeu a canção
“Sussuarana” e o conto “O Companheiro de Quarto”
para discutir as identificações homoeróticas e o ideal
normativo heterossexual a partir da teoria da
recepção, a construção do sujeito e das subjetividades.
Embora a canção não possua marcas textuais que
indiquem o sujeito masculino ou feminino o texto
pode ser lido como uma relação proibida entre
homossexuais. Já no conto aborda-se a solidão, o
isolamento e o silopsismo do sujeito na modernidade
tardia. No conto, dois jovens dividem um quarto e a
narrativa centra-se em um período de estranhamento
cultural entre ambos. Esta situação é reforçada pela
presença de um vaso no quarto com uma planta, a
qual pertence ao personagem de descendência
oriental. Esta planta simbolicamente será o objeto de
intriga, de desejo e de encantamento pelo narrador do
conto, que é também um dos moradores do quarto.
Para José de Oliveira, a planta tinha um papel
metonímico, ou seja, representava o próprio oriental
com seus cheiros e sua beleza e o insuportável desejo
do narrador pelo corpo deste jovem. Por fim, o
narrador destrói o vaso para se livrar da sedução
exercida pela planta. Para Oliveira, ambos os textos
nos revelam sujeitos em trânsitos de identificação e
esse desejo inominável e silencioso deveria ser dito,
ouvido, expressado para dar voz ao sujeito do desejo.
No próximo capítulo “ A Princesa e a
Serpente: uma leitura do conto Uma Carta, de Sérgio
Sant’anna”, Cesar Mota Teixeira nos apresenta uma
análise de uma carta longa e minuciosa escrita por
uma mulher para seu amante depois de um único
encontro casual em uma cidade do interior. Nesta
carta há uma profunda ironia ao tempo vivido na
modernidade, ou seja, o tempo da pressa, do acaso e
da contingência e aos velozes meios de comunicação
como a internet. Para o autor, a escolha de um
gênero narrativo antigo, considerado anacrônico no
tempo presente e escrito por uma mulher, resgata a
riqueza de detalhes da experiência cotidiana.
Segundo Teixeira, a carta-conto é um dos poucos
lugares da arte para a reflexão sobre a condição
humana.
Esta carta permite a liberdade para
expressar os desejos e para aguçar a imaginação e a
fantasia da narradora e dos seus leitores.
O sétimo capítulo “O Desejo Revelado” escrito
por Miguel Rodrigues de Sousa Netto revela parte do
contexto histórico vivido por João Silvério Trevisan
através de uma breve biografia, cuja ênfase recai
sobre sua ida ao EUA e o movimento da
contracultura. A partir das vivências e percepções de
Trevisan, Netto analisa então o conto “Cruel
Revelação” no qual um jovem revela ao irmão mais
novo que é homossexual. A partir da revelação o
irmão reage através da vergonha, busca consolo em
um muro e com uma amiga. Na narrativa de Trevisan
enfatiza-se o sofrimento advindo com a revelação.
Este sofrimento pode representar uma ruptura na
forma como percebemos o desejo e como
historicamente o modelo binário homem/mulher
naturalizou as coisas ditas, mas nem sempre as
sentidas.
O último artigo do livro “Gênero e
Participação Política Feminina no final do Século
XIX” foi escrito por Claudia Graziela Ferreira Lemes
no qual constrói relações dos movimentos de
mulheres e feministas no Brasil com outros países do
Ocidente. As reivindicações em torno do voto, o
direito à educação, profissionalização, herança, a
casamentos não arranjados e ao trabalho remunerado
eram pauta destas lutas. Uma das formas de
disseminação destas idéias no Brasil foi através da
criação da imprensa feminina. Os jornais tornam-se
então os porta-vozes dos anseios das mulheres, nos
quais inicialmente busca-se o sufrágio feminino.
Além dos jornais feministas, Lemes observa a grande
relevância do movimento de mulheres organizados
por Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura. Elas
criam a Federação Brasileira para o Progresso
Feminino (FBPF) e partir desta, várias organizações
feministas espalham-se pelo país. Para Lemes, a
Revista História - 152
Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011.
constituição de 1934 registrou o direito ao voto
conquistado incansavelmente pelas mulheres
brasileiras em 1932. A partir daí novas conquistas
gradualmente inseridas na política brasileira
mostravam que a luta feminina persistia.
Este é o conjunto da obra, cujos textos em sua
maioria têm o desejo na centralidade do debate que
clama por uma historicidade e por significações. Estas
análises almejam um campo de possibilidade de
reflexões e de vivências aberto a escolhas com sujeitos
que possam reinventar-se a si próprios sem privações
e sofrimentos.

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