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Revista História - 1 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. A Revista História tem o apoio do Laboratório de Revista História Ano 2, Volume 1, Número 1 Edição 2011 Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais. Endereço: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Departamento de História, Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João Lyra Filho Rua São Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco E - Sala 06 -Rio de Janeiro. Página do Laboratório: www.leddes.com.br Página da Revista: www.revistahistoria.com.br Revisão Verônica Maria Nascimento Tapajós Diagramação Luciano Rocha Pinto Dossiê Punição e Controle ISSN 1983-0831 Apoio: Editores Profa. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva Prof. Drdo. Luciano Rocha Pinto Prof. Drdo. Marcelo Coimbra Biar Profa. Ms. Verônica Maria Nascimento Tapajós Profa. Dra. Paula Pinto e Silva Prof. Dr. Augusto da Silva Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida Profa. Dra. Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro Profa. Dra. Selma Rinaldi de Mattos Prof. Dr. Gustavo Acioli Lopes Prof. Dr. Cristiano Wellington Noberto Ramalho Prof. Dr. Fabio Luiz da Silva Prof. Dr. Edison Bariani Junior Prof. Dr. André Porto Ancona Lopes Prof. Dr. Ozanan Vicente Carrara Prof. Dr. Geraldo Mártires Coelho Profa. Dra. Samira Adel Osman Profa. Dra. Maria Hilda Baqueiro Paraiso Profa. Dra. Eulalia Maria Aparecida M. dos Santos Profa. Dra. Terciane Ângela Luchese Profa. Dra. Hustana Maria Vargas Profa. Dra. Vanessa dos Santos Bodstein Bivar Web Master André de Carvalho *** Conselho Consultivo Prof. Dr. Antonio Filipe Pereira Caetano Profa. Dra. Antonia da Silva Mota Prof. Dr. Augusto Cesar Freitas de Oliveira Profa. Dra. Carmen Margarida Oliveira Alveal Profa. Dra. Margarida Maria Dias de Oliveira Profa. Dra. Sônia Maria dos Santos Prof. Dr. Carlos Augusto Lima Ferreira Prof. Dr. Duarcides Ferreira Mariosa Revista História - 2 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. SUMÁRIO A CULTURA DA PUNIÇÃO: O ELETRÔNICO DE PRESOS NO BRASIL Augusto Jobim do Amaral INFÂNCIA CONTROLE 3 A DISCIPLINA NOS SERTÕES: MANUEL IGNÁCIO DE SAMPAIO E UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO NO CEARÁ (1812 – 1820) João Paulo Peixoto Costa 12 ADMIRÁVEL SOCIEDADE DE CONTROLE: UM ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PODER DURANTE A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE ILHA SOLTEIRA (1965 – 1973) Tiago de Jesus Vieira 21 A DETERIORIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA E A CRISE DA CULTURA PÚBLICA. Luiza das Neves Gomes 28 CONTROLADOS E CONTROLADORES: QUANDO PRESOS SE TRANSFORMAM EM JORNALISTAS Flora Daemon 35 EM DEFESA DA SOCIEDADE: O PODER Maiara Moser 49 “DESVALIDA” E CRIMINALIDADE FEMININA DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 20 E 30 Maria Clara Pecorelli O ESCRITOR CIDADÃO CARNEIRO VILELA E 54 O ADVENTO DA PRISÃO MODERNA E O SÉCULO XIX: A EUROPA E O RIO DE JANEIRO Marcelo Coimbra Biar 64 PROSTITUTAS E “MÃES SEM MÁCULA”: ALTERIDADE E IDENTIDADE FEMININA NO BRASIL COLONIAL Kelly Cristina Benjamim Viana 71 A “LITERATURA COMO MISSÃO” Marcio Lucena Filho 112 AS RESENHAS DE LIVROS NOS JORNAIS O PAIZ E GAZETA DE NOTÍCIAS COMO ESPAÇOS DE CONSAGRAÇÃO E SOCIABILIDADE NO RIO DE JANEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX 120 Renata Rodrigues de Freitas DO ESPAÇO SAGRADO AO ESPAÇO PROFANO Fábio Luiz da Silva 125 PLENITUDE SEXUAL E EMPREGABILIDADE. O TRANSEXUAL DISCIPLINADO Marcia de Melo Martins Kuyumjian Danielly de Oliveira Grance 79 LIBERDADE GRATUITA: DO DIREITO DE PROPRIEDADE A CONCESSÃO DA MANUMISSÃO Verônica Maria Nascimento Tapajós 91 HOMO SACER, ABANDONO E ESTADO DE EXCEÇÃO: CONCEITOS DE GIORGIO AGAMBEN APLICADOS AO ESTUDO DE UMA FAVELA BRASILEIRA. Vivian Fernandes Carvalho de Almeida Patrícia Graziela Gonçalves Simone Nunes de Souza 105 CLIO SE APROXIMA DE CALÍOPE: OS TRABALHADORES DO CACAU NO PÓS-ABOLIÇÃO SOB A ÓTICA DE JORGE AMADO Ronaldo Lima da Cruz 140 POÉTICAS DO DESEJO Tânia Regina Zimmermann 149 Revista História - 3 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. A CULTURA DA PUNIÇÃO: O CONTROLE ELETRÔNICO DE PRESOS NO BRASIL Augusto Jobim do Amaral Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS), Doutorando em Altos Estudos Contemporâneos (História e Teoria das Idéias, COIMBRA – Portugal), Professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da ULBRA e da ESADE. Resumo O estudo analisa a cultura do controle penal na contemporaneidade. Lança-se mão do caso do controle eletrônico de presos no Brasil para examinar as complexas mudanças no campo do controle do delito. Se, apesar das experiências para tentar evitar a prisionalização e lidar com a falência da pena de prisão, ao longo do tempo, apenas houve um aumento vertiginoso da população carcerária, devese ter fundamentalmente claro o alargamento do controle do sistema penal sobre os cidadãos. Enfim, são as modificações nas práticas de poder de uma sociedade de controle que demonstram como operam O artigo é a versão ampliada da palestra proferida na sede da Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (FESDEP/RS). Agradeço as intervenções dos alunos e professores, razão pela qual o texto vai dedicado a eles, em especial, nas pessoas dos Defensores Públicos Lisandro Luís Wottrich e Álvaro Antanavinicius Fernandes. os novos mecanismos de sanção, e caberá surpreender os diversos mecanismos de controle que estão sendo implementados no lugar dos meios de confinamento disciplinares. Palavras-chave: Sociedade de controle, Sistema carcerário, Monitoramento eletrônico. Abstract This article analyses the culture of the criminal control in a current days. In such a way, examines the electronic monitoring of prisoners in Brazil for study the complex change in the field of the control of crime. If, throughout the experiences of the alternative to imprisonment and to try to deal with the bankruptcy of the punishment by confinement, have had a great increase of the incarceration, can be verified, doubtlessly, the widening of control of the criminal system on the citizens. Over all, at last, the modifications in the power practices in a Society of Control demonstrate how operate the new mechanisms of sanction and, necessarily, verify the diverse mechanisms of control that have been implemented in the place of the disciplinary confinements. 1. A nova ordem social do controle do delito Sancionada no dia 15 de julho último a Lei nº 12.258 que prevê a possibilidade de utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado. Em linhas gerais, alterou-se a Lei de execuções penais especificando que o juiz poderá definir a fiscalização por meio de monitoração eletrônica, cuja implementação será regulamentada pelo Poder Executivo. Monocordicamente, o argumento imposto traduz uma preocupação com a falta de vagas no sistema carcerário em geral, déficit este que alcançaria em 2009, segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional1, 139.266 vagas. Assim, o que se avizinha no horizonte punitivo brasileiro? Infrutífero achar de forma inocente ou ingênua que possa se tratar de um movimento isolado, e não de um modo exemplar da tendência estrutural que vem inundando amplamente o plano das práticas punitivas há pelo menos trinta anos. É uma mudança complexa e profunda no campo do controle do delito como um todo que ali é surpreendida como mero sintoma. De fundo, vem se redefinindo em si a postura de enfrentamento político-criminal que pontualmente podemos Keywords: Society of control, Penitentiary system, Electronic monitoring. 1 *** http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94 C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm. (População Carcerária – Sintético/2009). Acesso em agosto de 2010. Revista História - 4 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. identificar, como faz Garland1, dentro do panorama da nova cultura do controle do delito. O que pesa de maneira ímpar e acaba por produzir uma mudança significativa, para além das meras estruturas de controle, é o âmbito imediatamente ligado a elas, o aspecto intrinsecamente vinculado que as anima, significa e, de alguma forma, ordena os seus usos, que são as sensibilidades culturais envolvidas. Trata-se de um esforço perene de surpreender estes novos padrões, dimensionar as incipientes coordenadas culturais que dão novos propósitos (re)significam continuamente a importância simbólica deste campo , transformam, suma, o modo de pensar e atuar dos agentes penais frente ao delito. Assim, interessa ressaltar ao menos três linhas de fuga para analisar esta nova cultura penal.2 Por um lado, o que emerge é a mudança de ênfase dos métodos de reabilitação para o controle efetivo; da perspectiva do “bem estar” para modalidade puramente “penal”, centrada em objetivos retributivos, incapacitantes, dissuasivos, e voltada à dita segurança pública. Em especial, as leis e práticas de semi-liberdade inclinam-se a serem vistas como simples castigos à comunidade, em que se minimizam os objetivos habitual e tradicionalmente dispostos de David Garland, La Cultura del Control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea, Barcelona, Gedisa Editorial, 2005, pp. 2751 312. 2 David Garland, La Cultura del Control, pp. 286-290. reabilitação em prol da vigilância intensiva dos “liberados” confiada à polícia. Com isto, um segundo momento nos convida a verificar a própria redefinição do significado da reabilitação. O foco se desloca do “cliente” para o “delito”. As questões mais importantes atualmente, neste aspecto, dizem mais com o controle do delito que à assistência individual. Se antes a postura acentuada era a de certa preocupação com a transformação das relações sociais do indivíduo, no sentido de tentar melhorar sua auto-estima e desenvolver seu discernimento, a tendência agora é torcida para um objetivo imediato completamente diverso: circunda, pois, a imposição de restrições, sempre enfocando a conduta delitiva e seus hábitos conexos, visando à proteção do público. Inscreve-se a reabilitação no marco do risco mais que no marco do “bem-estar”. Poderão ser “tratados” os delinqüentes apenas se isto servir para proteger o público ou, quem sabe, para reduzir o custo envolvido no castigo direto e simples. Não se esqueça do argumento que não falha quando da defesa do incremento de mecanismos de controle em meio aberto, tal como as coleiras/tornozeleiras eletrônicas: não raro a fala passa pelo alto custo do detento ao sistema penal e as possíveis vantagens (para quem?) de se adotar estes mecanismos, no contraponto de se investir em mais vagas em estabelecimentos prisionais. Falsa alternativa, falacioso engodo, que não deixa escolha senão dentro do impulso de aumentar a dimensão sempre elástica da rede do controle penal . Nem mesmo, ao que parece, enfim, a reabilitação põe-se mais como mote principal do discurso de legitimação do sistema penal. O interesse primordial paira indeclinavelmente pelo “fortalecimento eficiente do controle social”.3 Se a justiça penal, no século passado, depositava algum crédito sobre os regimes de semiliberdade em seus diversos graus, o que se vem constatando nas presentes práticas punitivas, é o endurecimento do seu procedimento, e a rigidez intensificada representa o norte a ser seguido. Maximiza-se em regra o controle, nada disso sem a constante pressão governamental e mesmo da comunidade em geral que vê estes mecanismos liberatórios como deletérios a todo o corpo social. A permeabilidade ao processo político – ao estilo populista em matéria penal – não pode ser desconsiderada quando se examina a tamanha perda de autonomia da justiça penal. A vulnerabilidade aos estados de ânimo da opinião (veiculada como) pública e a simples reação política às demandas (sempre urgentes) de combate à criminalidade já tomaram acento confortável no panorama políticocriminal. Tornou-se lugar comum esta tática, principalmente querendo lograr vantagens eleitorais a curto prazo. A alta sensibilidade dos governos e legislaturas a estas preocupações, diante de 3 David Garland, La Cultura del Control, p. 289. Revista História - 5 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. indivíduos perigosos que precisam ser controlados, apenas pode ser aliviada, neste registro, com medidas punitivas que reflitam este medo massificado e tranqüilizem a indignação geral. Entre o processo político e o castigo vem havendo, sim, como alerta Christie1, uma distribuição mais eficiente da dor, quer dizer, os canais de acesso estão mais liberados entre as crescentes demandas por punição e o processo político; o incremento das penalidades está mais facilitado e acessível, podendo dar-se quase que instantaneamente. O novo clima penalógico nunca esteve tão distante da menção à assistência e amparo ao desviante e tão próximo da escala de gestão dos riscos, do controle intenso das condutas destes sujeitos para a proteção do público. O uso de pulseiras e rastreadores eletrônicos em geral é apenas um fragmento neste mosaico punitivo. O toque de fundo é dado, afinal, pela sensível metamorfose cultural na relação da sociedade com a delinqüência. Garland verifica que o enfoque do welfarismo penal fazia quase que coincidir o interesse do delinqüente com o da sociedade, no sentido de entender que o investimento no seu tratamento seria compensado pela redução futura nos índices de delito. Hoje, radicalmente, houve um descolamento desta perspectiva. Ambas afastaram-se amplamente e estão completamente desvinculadas: os Nils Christie, La Industria del Control del Delito ¿La Nueva Forma de Holocausto?, Editores dEL PUERTO s.r.l., Buenos Aires, 1993, pp. 181- interesses dos condenados, quando contemplados, são vistos como diametralmente opostos ao do público. Quer dizer, o sentido comum da maior segurança ao público é a opção que vigora, ainda que seja ao preço do desprezo de direitos dos detentos que habitualmente seriam tomados em conta. O estigma, pois, ganha valor renovado, diferente daquele aspecto danoso que tinha no complexo penal-welfare – contraproducente e que diminuía a possibilidade de reintegração –, e que durante anos foi criticado pelos estudos críticos.2 A estigmatização recobre-se agora de certa utilidade. Em realidade, é um fator duplamente útil. Além de trazer consigo a verve do próprio castigo pelo delito ao condenado, agora se configura um alerta geral à comunidade sobre o seu perigo. Ressoa nas entrelinhas do (in)consciente repressivo: por que não os controlarmos eletronicamente sob a vantagem de que, além de continuarmos punindo – rememorando a pena e fazendo-a mimese permanente do crime –, ainda teremos o acréscimo de servir de sinal útil de cuidado a toda sociedade? Com esta lógica blindada, diante do quadro de autoritarismo cínico, faria sentido se questionar sobre a tamanha estigmatização que se constrói sobre a imagem de um condenado carregando um aparelho localizador em qualquer parte de seu corpo? Certamente não. Talvez seja porque já tenhamos 1 191. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª ed.. Rio de Janeiro: LTC, 1988. 2 naturalizado que certos seres, por delinqüirem, de fato, não mais são membros do “público” e não são dignos de consideração? Ainda, quem sabe seja porque estejamos convencidos e tenhamos mesmo assumido inafastavelmente a divisão social entre nós – vítimas inocentes e sofridas – e eles – perigosos e indignos delinqüentes –, depósitos das projeções de nossos fantasmas, sob o preço do controle repressivo mais explícito possível, agora despojado de antigas aspirações benevolentes, para a nossa segurança? Assim estará montada a plataforma de pressão sob as agências da justiça penal para novos dispositivos de controle que agora compartilhem e exponham as informações de delinqüentes com os membros do público, para nos salvaguardarmos de perigos potenciais. Isto, naturalmente, se dá tendo por detrás, para além da mera esfera repressiva estigmatizante, o sinal daquilo que diz respeito ao controle de populações inteiras. O Estado penal que se agiganta e amplia sua malha, nesta miríade, também está preocupado em criar banco de dados centralizados e informatizados para controlar os ditos desviantes.3 Wacquant traz o dado estarrecedor deste impulso nos Estados Unidos, onde mais de 55 milhões de pessoas, quase um terço da população adulta do país faz parte destas “fichas criminais”. Proliferam-se de forma selvagem as práticas dos bancos de registros, já havendo naquele país mais de seiscentas empresas especializadas em “verificação de antecedentes”. Este fascínio por novas técnicas de controle tecnológicas, de fato, alarga, generaliza, prolonga sem precedentes e indefinidamente os meios de vigilância. Ainda mais quando falamos de bancos de dados infinitamente maiores e mais poderosos. Em 1994, apenas para ilustrar, 3 Revista História - 6 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. 2. Encarceramento, as penas alternativas e o engodo Características gerais de um certo tipo de organização social, conectada às condições da modernidade tardia, (re)configuram o campo do controle do delito de uma forma mais ou menos constante. O caso brasileiro, ainda que conjunturalmente diverso, estruturalmente também obedece, o fluxo que movimenta o palpitante teatro burocrático-midiático da lei e da ordem,1 tal como se o Congresso americano liberou US$ 25 milhões para facilitar a sistematização de fichários informatizados, graças à criação de um registro-fonte comum, o CODIS (Combined DNA Indez System), que contêm impressões genéticas dos indivíduos. Hoje, já praticam 48 dos 50 estados americanos o “fichamento biológico” efetuado por meio da coleta de sangue do condenado por ocasião da saída da prisão. WACQUANT, Loïc Wacquant, Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos A onda punitiva, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revan, 2007, pp. 234-249 e pp. 355-394. 1 Nos Estados Unidos, cenário mais visível desta dinâmica, ainda que a incidência das principais categorias de infração criminal não tenha mudado fundamentalmente desde meados dos anos setenta, os arautos do eldorado da lei e da ordem teimam em desconsiderar que a população encarcerada aumentou cinco vezes em vinte e cinco anos. Em 2008, estava na casa dos 2.424.279 presos, o que aproxima o índice de encarceramento da ordem de 796 presos para cada 100.000 habitantes (Levando-se em conta os dados de 2008 (como dito, 2.424.279 presos), associada à população consolidada no U.S. Census Bureau (www.census.gov) de 304.374.846 pessoas à época). Soma-se a isto o fato ainda estarrecedor que, com a extensão continuada da colocação de enorme parcela da população sob a tutela penal, em 2008, já havia 7.308.200 cidadãos, mais de 2,3% de toda a população do país (ou 1 para cada 31 adultos) sob a égide do controle penal 1 – correspondente a um homem adulto em vinte, um homem negro em dez e a um jovem negro cada três (Dados colhidos no http://bjs.ojp.usdoj.gov: Bureau of Justice Statistics, Office of Justice Programs, U.S. Department of Justice, Prisioners in 2008, Washington, Office Press, 2009, p. 08 e Bureau of Justice Statistics, Office of Justice afigura no cenário mais visível desta dinâmica que são os Estados Unidos2. No Brasil, o que não nos deixa enganar é o tamanho crescimento do contingente carcerário no país ao longo dos últimos anos. O recrudescimento dos aparelhos do sistema penal demonstra o êxito do punitivismo em terras brasileiras. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen) do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) vinculado ao Ministério da Justiça, com referência a junho de 2010, aponta que havia um total geral de presos no sistema e na polícia de 494.237 indivíduos. Os dados consolidados de 2008/2009 demonstram que, em 2003, a população total no sistema era de 308.304 presos – quer dizer, um incremento próximo de 38% em menos de sete anos.3 Curva que foi corroborada recentemente pelo relatório do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (DMF) do Conselho Nacional de Programs, U.S. Department of Justice, Probation and Parole in the United States 2008, Washington, Office Press, 2009, p. 03). 2 Nos Estados Unidos, o que se deve destacar, sobretudo, é a ampliação considerável da malha de dominação do sistema penal exatamente pela proliferação dos aparatos de bancos de dados criminais e pela multiplicação dos meios e de pontos de controle à distância (vigilância eletrônica) que eles possibilitam (Loïc Wacquant, Punir os Pobres, p. 232). Qualquer pretenso recuo nos números de encarceramentos, se ocorrer, é apenas produto transitório e, ademais, é respondido com a expansão aguda da tutela da justiça penal por estes outros processos multiformes de controle (Cf. Stanley Cohen, Visions of Social Control, Cambridge, Polity Press, 1985). 3 Dados rigorosamente retirados dos Dados Consolidados de 2008/2009 e dos Relatórios Estatísticos de junho de 2010 do InfoPen: http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94 C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm. Justiça (CNJ). Nele, o Brasil consolidou a posição de terceira maior população carcerária do mundo, com um número, ligeiramente superior ao dado anterior, de 494.598 presos, ficando atrás, em patamares absolutos, apenas dos Estados Unidos e da China.4 Correlacionado ao contingente populacional, mesmo assim, segue-se no mesmo sentido crescente. Tomada a população brasileira em número de 191.480.630 (população estimada pelo IBGE em dezembro de 2009, que o Ministério da Justiça toma como referência, mesmo sendo apenas uma estimativa, e muito otimista, visto que a população brasileira vem decrescendo nos últimos dois sensos), chega-se, pelos dados consolidados do InfoPen de dezembro de 2009, ao coeficiente de 247,35 presos/cem mil habitantes.5 Se em 2000, o senso Notícia veiculada dia 28 de setembro último no site do CNJ (https://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=articl e&id=12150:brasil-tem-terceira-maior-populacao-carceraria-domundo&catid=1:notas&Itemid=169). A China possuía, até meados de 2009, segundo o Internacional Centre for Prision Studies do School of Law do King´s College London, 1.620.000 presos (http://www.kcl.ac.uk/depsta/law/research/icps/worldbrief/wpb_co untry.php?country=91). 5 Precisamente, tendo-se como base o Relatório Estatístico de junho de 2010 do DEPEN (494.237 presos) o coeficiente saltaria para 258,11 presos/cem mil habitantes. Com os números do CNJ (494.598 presos), haveria 258,3 presos/cem mil habitantes. Para que não haja a intenção, mesmo que indireta, de se argumentar que assim, lendo desta maneira, estaríamos forçando dados a maior, captando a população brasileira dada pelo IBGE, em estimativa de dezembro de 2009, e cruzando com os dados prisionais de junho (DEPEN) e de setembro (CNJ) de 2010, se for do agrado, pode-se adotar os dados mais elásticos da Anistia Internacional do Brasil para 2010: 193,7 milhões de habitantes (ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2010 – O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Porto Alegre: Algo Mais Artes Gráficas, 2010. 4 Revista História - 7 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. demográfico do IBGE apontava 169.799.170 habitantes1 e a população carcerária no mesmo ano, por dados do InfoPen, era de 232.755 presos (137 presos/cem mil habitantes à época), houve um impactante aumento, pelos números atualizados do CNJ, de mais de 52% ao final de 10 anos. Suma, para além das variações numéricas, os indicativos são evidentes. Se este panorama já não ocupasse quase que um local comum na agenda de quem se presta minimamente a lidar com a problemática do controle penal, caberia vez mais frisar que vem havendo, há certo período, um grande crescimento da população carcerária nacional, seja em padrões absolutos ou relativos à densidade populacional. A figura toma cores mais nítidas e comprometedoras quando se agrega o dado de que nada adiantaram os mais variados substitutivos penais aplicados, ao longo do tempo, no Brasil. Desde as penas pecuniárias, passando pela suspensão condicional da pena, e chegando até o livramento condicional, sucessivos mecanismos foram aplicados na esteira da tentativa de evitar a prisionalização, fato marcante no movimento político criminal pelo mundo a partir principalmente da década de setenta. Tais substitutivos, standarts do século XX em matéria Acessível em http://thereport.amnesty.org), o que pouco ou nada de variação haveria em termos estatísticos: ficaríamos com 255,15 presos/cem mil habitantes. 1http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tab elabrasil111.shtm. Acesso em setembro 2010. de controle penal, viriam sumariamente para se enfrentar a dita “crise da prisão”, sobretudo a da sua superlotação. Talvez não haja circunstância mais saliente a representar o fracasso no Brasil de evitar a pena privativa de liberdade que o resultado das práticas das ditas genericamente “penas alternativas” (aqui entendidas também as medidas alternativas advindas dos Juizados Especiais Criminais). Não há como negar que, dentre outros objetivos, de alguma parte, vieram a seu tempo para tentar suprir o perene déficit de vagas no sistema prisional nacional, ou diminuir o impacto sobre ele. Penas e medidas alternativas que visavam, ao menos, esvaziar ou ajudar a atenuar as condições prisionais catastróficas no país2. Se, como visto, em terras americanas, a malha foi estendida independente da adoção de medidas outras em meio aberto a curva crescente do encarceramento é acompanhada por aquela da aplicação de outras medidas, ambas tomam parelha carreira, ou seja, a ampliação do manancial de controle do sistema penal sobre os cidadãos foi acompanhada pelo aumento vertiginoso da população carcerária nada havendo de minoração ou enxugamento do controle penal; contra o desperdício da experiência, talvez não fosse preciso demonstrar – sabendo-se da pulsão expansiva Cf. CARVALHO, Salo de. Substitutos penais na era do grande encarceramento. In: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos II. GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Porto Alegre: EDIPUCRS [recurso eletrônico], 2010, pp. 158-162. 2 contida em todo sistema penal, independente do local – aquilo que veio a ocorrer no Brasil.3 A evolução da relação comparativa entre prisões e penas/medidas alternativas continua gritantemente crescente.4 Não é demais reafirmar que 3Se, de 1984, quando da edição da Lei 7210 com a inserção na reforma da parte geral do código penal das penas restritivas de direito, até 1987, havia um número pífio de 197 condenados cumprindo penas alternativas (na cidade de Porto Alegre, na época, único núcleo deste tipo de execução no país), na década de noventa, ocorreu um novo impulso determinante para se acompanhar esta nova dinâmica supostamente descarcerizante. O primeiro vetor normativo foi a criação dos Juizados Especiais Criminais pela Lei 9099/95. Ali se trouxe a possibilidade da composição civil (com a vítima) e/ou a transação penal (com o Ministério Público) nos chamados casos de crimes de menor potencial ofensivo (delitos cuja pena máxima não fosse fixada acima de dois anos3). Trazida ainda a possibilidade da suspensão condicional do processo, extensiva a todo o sistema processual penal, nos ditos delitos de médio potencial ofensivo, aqueles cuja pena mínima não ultrapassasse um ano. O outro braço fora a edição da Lei 9714/98, que deu novo fôlego às penas restritivas de direito e veio ampliar as possibilidades de sua aplicação aos crimes com penas fixadas até quatro anos de reclusão. Considerando que em 95, primeiro ano de vigência dos juizados especiais criminais, já houve (além dos 1.692 cumprimentos de penas alternativas – penas restritivas de direito) o registro de 78.672 casos de medidas alternativas (composição civil, transação penal ou suspensão condicional do processo), os dados de 2002 – após um curto período de implementação da Lei 9714/98, bem como passada a redefinição dos critérios da Lei 9099/95 pela 10.259/01 – já demonstravam um substancial aumento: 21.560 cumprimentos de penas alternativas somados aos 80.843 casos de execução de medidas alternativas. Assim, a linha evolutiva do controle punitivo formal não carcerário não cessou de se exprimir de maneira aguda. Em 2009, os índices já apontavam para 126.273 o número de cumpridores de penas alternativas e de 544.795 a quantidade de pessoas cumprindo medidas alternativas, chegando-se num total de 671.078 indivíduos sob a tutela do controle penal descarcerizado. – Nem por isso os níveis de encarcerados diminuíram –. 4 DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. Evolução Histórica das Penas e Medidas Alternativas (PMAS) no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, 2008. Veiculados em: Revista História - 8 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. chegamos, em 2009, somados aos 473.626 presos, à amplitude da teia penal no Brasil na casa de 1.144.704 pessoas envolvidas. Que se diga sem muita parcela de erro: a institucionalização das penas e medidas alternativas não diminuiu os níveis de encarceramento no Brasil, ao contrário, a curva permanece crescente, gradual e constante, o que bem pode retratar a falácia do discurso que mantém firme, até com belas intenções, a defesa dos instrumentos substitutivos com vista a diminuir o impacto das políticas punitivistas. Questão mais atenta poderia ser aposta para tencionar quase que ao extremo o raciocínio: a situação não poderia ser ainda pior sem este tipo de política alternativa? Os níveis de prisões não seriam mais amplificados sem a possibilidade de medidas alheias à privação da liberdade? Estariam estas práticas na esteira do que se poderia chamar de redução de danos? Muito aquém do que a exploração do tema demanda, cabe por certo não arredar pé, para se encontrar uma posição firme, da premissa básica extenuantemente vista até agora: os substitutos penais não respondem à atenuação da prisionalização e não servem de válvula de escape para o número de vagas no sistema ou outro efeito análogo. Carece de importância ficar se fazendo conjecturas do que poderia ter ocorrido. Se a pedra de toque é salvar o http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ47E6462CITEMID38622B1FFD 6142648AD402215F6598F2PTBRNN.htm). número máximo de vidas possível desde a limitação do poder punitivo, pouco cabimento guarda saber se hoje poderia ser ainda pior. Indubitável, pois – e é sobre isto que se deve trabalhar –, que o resultado destas práticas foi o alargamento da dimensão do tecido penal que, de uma forma ou de outra, também acabou sendo viabilizada por estes mecanismos. Mais importante talvez à reflexão seja enfrentar estas questões para além da mera comprovabilidade empírica, para tocar exatamente aquilo que de nuclear há para se perceber. Pontualmente, se estivermos falando de dispositivos eletrônicos que, em tese, num primeiro momento, aliviariam o acesso às vagas na esfera da execução da pena em meio aberto, o que haveria, não tarde no momento seguinte, seria um novo déficit de vagas, igual ou maior do que o anterior, tanto no âmbito dos regimes de semiliberdade quanto agora na nova esfera destes novos dispositivos eletrônicos. Não se esqueça que, depois, além disso, não deixaríamos de ter um produto agregado, um outro preço a ser pago: não ganharíamos a possibilidade de reduzir o âmbito da prisão e, noutro patamar, teríamos como síntese inarredável a inflação exponencial do controle penal. Isto nada teria a ver com uma política do “menos pior”, muito menos seria condizente com uma espécie de política redutora de danos, ao menos na perspectiva comum. Aquilo que a uma primeira vista mais açodada poderia ser associado a um conjunto de mecanismos voltados a limitar a estrutural propensão ao excesso do poder punitivo – quer dizer, à minimização do Estado de polícia implícito em cada modelo de Estado de direito historicamente considerado – esconde verdadeiramente uma veia propulsora deste mesmo poder. Afirma-se isso, não porque se esteja fazendo um exercício de futurologia, mas apenas porque não merece ficar incólume e intocado o que há de central no funcionamento do sistema penal e do poder punitivo como um todo: a sua expansividade. A história do sistema penal, em alguma medida, sempre foi a história da sua própria metamorfose. A sua reconfiguração é da sua própria lógica. A própria prisão, em particular, já nos alertava Foucault1, sempre utilizou-se desta propriedade de forma magistral: nasceu com o objetivo pautado pela sua perene reforma, ela é como que seu programa, e não tardará em dar-se conta do momento de se “flexibilizar” para não perder sua centralidade. Ignorar a dinâmica expansiva do poder punitivo, menosprezar que algum dispositivo que for lançado nestas engrenagens, ainda que dotado das melhores intenções, incorporará e não ficará privado de suas propriedades estruturais, é ficar afeito a um delírio infrutífero. A perda é enorme ao não se atentar para cada nova cena da economia da punição. Tão importante quanto à necessidade de opor obstáculos aos mecanismos que tendem à ampliação da rede penal é FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 19ª ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 1987, p. 197. 1 Revista História - 9 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. surpreender inclusive os próprios discursos que, aparentemente, quando não de face ingênua, pretendem-se dotados da potência de diminuir os enormes danos que o poder punitivo vem produzindo. Como que a face do Angelus Novus da pintura de Klee, vista por Benjamin1, que de olhos escancarados, boca aberta e as asas desfraldadas, com o seu rosto voltado para o passado, tendo diante de si até o céu o acúmulo de ruínas, vislumbra um amontoar delas no que parece uma cadeia de acontecimentos. Que tenhamos força para não voltarmos às costas para o futuro como o anjo da história, e não acabemos seduzidos pelos auspícios da tempestade chamada progresso. 3. Controle e confinamento: entre serpentes e toupeiras Parece difícil, ao menos se quisermos tocar mais profundamente a questão, não enveredarmos para uma retomada no estudo das práticas de poder. Talvez se tenha depositado sobre isto pouca atenção, principalmente nos meios jurídicos oficiais. Deleuze, especialmente em entrevista televisiva célebre, tornada clássica e amplamente difundida pelos atuais meios digitais, dada ao Institut National de l´Audiovisuel (I.N.A.), mas sobretudo no seu livro sobre Foucault2, ressaltava a análise de três práticas do poder: o Soberano, o Disciplinar e, sobretudo, o de Controle. Não que a sociedade disciplinar tenha acabado, por certo, mas que já não somos exatamente isto, e a própria entrada em cena de novos mecanismos de sanção, educação e tratamento não nos deixa enganar. O alvorecer desta nova configuração de sociedade não é novidade alguma. Se respiramos uma sociedade de controle contínuo e de comunicação instantânea, talvez importe então realizar um estudo, alçar questionamentos, surpreender os diversos mecanismos de controle que estão (em vias de serem) implementados, no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise se anuncia ao menos desde o último quarto do século passado. Vivenciadas já as sociedades de soberania, onde interessava mais decidir sobre a morte do que gerir a vida3, certamente também não estamos mais apenas fixados nos meios de confinamentos tradicionais de uma sociedade disciplinar. Sociedades estas característica dos séculos XVIII e XIX, com o apogeu no início do XX, dotada exatamente pela passagem do indivíduo por moldes como a família, a escola, a caserna, a fábrica, de vez em quando o hospital e, notadamente hoje em dia, não eventualmente, a prisão instituições totais, como quer Goffman4 estas formas sociais, são dispostas a concentrar e distribuir o espaço, ordenar o tempo, maximizando a força produtiva de sujeitos disciplinados. Como visto, à crise destas formas não cansa de se dar alarde. O que não se acode normalmente é, afinal, o fato de que apenas um olhar próximo da ingenuidade não perceberia que são exatamente elas, como eixos modelares de um tipo social, as primeiras a se darem conta da sua situação crítica. Noutros termos, diga-se melhor, é a perversa inflexão do “centro”, captada por Martins, pois conscientes de sua própria crise de centralidade, tais espaços fechados se dirigem agora a zonas potenciais de ensaio5. É a própria crítica aposta que faz despertar nestes locais o pressentimento de sua ruína, acarretando, em algum nível, antecipações, metamorfoses, à sua perda de domínio. Não por outro motivo, vivemos em certa medida uma era de crise, retratada na sempre premente necessidade de “reforma das instituições”: reforma dos hospitais, da educação, da indústria, da prisão etc. Portanto, ao que parece, a lógica foi transformada em alto grau. As sociedades disciplinares têm dois pólos amplamente explorados e de fácil identificação: o binômio indivíduo/massa. O Erving Goffman, Manicômios, Prisões e Conventos, São Paulo, Perspectiva, 1999, pp. 13-108. 5 Cf. Rui Cunha Martins, O Método da Fronteira: Radiografia Histórica de um Dispositivo Contemporâneo (Matrizes Ibéricas e Americanas), Coimbra, Almedina, 2008, pp. 194-195. 4 BENJAMIN, Walter Benjamin, “Teses sobre a Filosofia da História”, Sobre arte, técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio D´Água, 1992, p.162. 2 Gilles Deleuze, Foucault, São Paulo, Brasiliense, 2006, pp. 78-100. 1 Michel Foucault, História da Sexualidade 1: a vontade de saber, 10ª ed., Rio de Janeiro, Graal, s/d, pp. 125 ss. 3 Revista História - 10 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. poder aqui é massificante e simultaneamente individualizante, ou seja, molda a individualidade de cada membro do corpo, assim como assinala sua posição numa massa – é o poder do pastor, segundo Foucault, regulado por palavras de ordem sobre o rebanho e sobre cada um dos animais.1 Segundo Deleuze, adiante, nas sociedades de controle, o essencial não será mais a assinatura que identifica o indivíduo ou número de matrícula que o posiciona numa massa, mas o que o regulará será uma linguagem numérica. Falamos aqui de uma cifra, mais propriamente de senhas que marcam nosso cotidiano pelo acesso ou rejeição à informação. Em considerável medida, apenas acessamos e, sobretudo, somos acessá(í)veis desta maneira. Cartões eletrônicos de todas as espécies: de crédito, para ligar o automóvel, para entrar em casa, no trabalho, apenas para ficarmos em exemplos fugazes. Acessamos bancos de dados e, sobretudo, fazemos parte de milhões deles, dos mais diversos multiplicados ao infinito, que demandam suas devidas senhas ou registro, óptico ou digital – demonstrando como os indivíduos podem se tornar “divisíveis” como meras amostras de mercado – capazes de antecipar quiçá nossos próprios desejos. Por isso, vemo-nos falando em “trocas flutuantes”, necessariamente “surfando” freneticamente na rede, “em órbita” nesta diferente maneira de viver as relações com outrem. 1 Michel Foucault, Vigiar e Punir, pp. 117-161. Para dar as tintas desse novo contorno que se deve aprender a lidar, arremata Deleuze: a velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle.2 Certamente, o poder que comporá estes dispositivos Foucault disse que ele se exerce a partir de inúmeros pontos e vem de baixo3 , se considerado abstratamente, não vê e não fala: é uma toupeira que se orienta apenas em sua rede de galerias, em sua toca múltipla.4 Metaforicamente, diferente da serpente, sinuosa em seus movimentos, sagaz e surpreendente no bote, que se esgueira maliciosamente nos recônditos do controle absoluto.5 Como ressaltado, encontramo-nos naquilo que se poderia chamar de crise generalizada de todos os meios de confinamento, alguns chamarão de “crise das instituições”. Indaga-se: sendo assim a lógica que se anuncia, não devemos parar para analisar as formas ultra-rápidas de controle ao ar livre que 2 substituem as antigas disciplinas? Como não conectar isto à constante metamorfose que vem se operando no próprio capitalismo? De que maneira abrir mão da análise de um sistema imanente que não pára de expandir seus próprios limites, que se (re)encontra ampliado e entregue ao seu limite, que é o próprio Capital? Será tão árduo assim perceber que os arcaicos confinamentos como a prisão, verdadeiros moldes, estão ficando démodé? Não será porque os emergentes controles são muito mais condizentes com este ambiente, já que são modulações em si, quer dizer, moldagens maleáveis, reconfiguráveis 6 continuamente? Por certo, sobretudo, trata-se a rigor, de uma radical mudança da dinâmica do capitalismo. Não mais existe radicalmente aquele modelo de capitalismo do século XIX centrado na fábrica, fundado na concentração de capital e voltado para a produção, onde o mercado era conquistado pela colonização, pela redução dos custos ou ainda pela Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, Conversações, São Paulo, Ed. 34, 1992, p. 222. 3 Michel Foucault, História da Sexualidade 1, p. 90. 4 Gilles Deleuze, Foucault, p. 89. 5 Por outro lado, as máquinas que cada tipo de sociedade faz corresponder são outras. Aquelas que exprimiam formas peculiares simples das antigas sociedades de soberania poderiam ser vistas nos relógios, nas alavancas e roldanas; passadas depois, nas sociedades disciplinares recentes, para as máquinas energéticas, em que o perigo se depositava na sabotagem. Atualmente, operam máquinas de terceira espécie, máquinas informáticas, em que o perigo ativo está na pirataria e na introdução de um vírus. Mas elas em si pouco nos dizem, senão quando perquirimos sobre os agenciamentos coletivos que fazem parte (Gilles Deleuze, “Controle e Devir”, Conversações. São Paulo, Ed. 34, 1992, p. 216). Não será por acaso que, nas sociedades de controle, o desdobramento da fábrica é a sua substituição pela empresa, principalmente quando se verifica profundamente, nesta perspectiva, a transformação da forma salário. É a modulação permanente do salário por um “sistema de prêmios” (bônus por produtividade) que agora importa frisar. Aprofundam-se desafios, tarefas, metas e todo novo jargão “empreendedor” exatamente para reforçar a rivalidade. Introduz-se a competição como emulador central e inexpiável neste novo contexto. Sobre a massa da fábrica que servia para a vigilância do patrão ou para a mobilização do sindicato é instaurado um modulador, o “salário por mérito”, que surge para excitar e contrapor os indivíduos. Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p. 221. 6 Revista História - 11 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. especialização. Se aquele capitalismo era dirigido para a produção, a atual performance do capital é voltada para a sobre-produção. O que se vende são serviços e o que se compra são ações, como diz Deleuze1. Compram-se produtos acabados ou montam-se peças destacadas. O produto impera, não a produção, agora relegada a algum país de terceiro mundo. Os mercados são conquistados, assim, por fixação de cotações e transformações do produto. Por isso, não mais a fábrica concentrada, mas a dispersa empresa. Os antigos confinamentos são agora figuras cifradas deformáveis de uma mesma empresa que só necessita de meros gestores.2 Enfim, os antigos espaços analógicos que convergiam para algum proprietário, público ou privado, parecem ser agora figuras de uma mesma entidade que dispensa um corpo e necessita de simples gestores.3 Sintetizará Deleuze: do homem confinado para uma espécie de homem endividado. É óbvio – diversos horizontes já se afiguram para confirmar esta expectativa – que neste processo agônico dos meios disciplinares – não se diga que eles tenham se Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p. 224. 2 Em substituição, emerge um gigantesco agenciamento anônimo em escala planetária. Um mercado global homogeneizante cujos Estados e Bolsas são meramente suas sedes. Não existirá, pois, um “Estado Universal”, justamente porque universal no capitalismo apenas o mercado. Enganam-se alguns a não verem os Estados democráticos, sim, formidavelmente, comprometidos com a fabricação da miséria humana (Gilles Deleuze, “Controle e Devir”, p. 213). 3 Cf. Slavoj Žižek. Órganos sin Cuerpo: sobre Deleuze y consecuencias, Valencia, Pre-Textos, 2006. 1 findado – as novas forças que se instalam deverão enfrentar a explosão dos guetos e favelas, quer dizer, controlar aqueles que, de certa forma, são pobres demais para alguma dívida ou numerosos demais para o confinamento.4 4. Conclusão Implementam-se, às cegas, novos tipos de sanções. Dirá vez mais o filósofo francês: “face às formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros nos pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente”5. Enfim, é da crise generalizada dos meios de confinamento, das candentes e sempre urgentes “reformas”, que nascem as novas configurações de controle. Pouco importará perguntar o que é pior – devendo-se temer ou esperar –, mas se impõe buscar novas ferramentas e surpreender, a todo momento, estes incipientes agenciamentos coletivos6. Alguns, açodada ou ingenuamente, ainda que de boa-fé, podem enxergar neste movimento um abrandamento no ideal repressivo e, numa política do “mal menor”, até uma certa conquista de migalhas de liberdades, mas, retumbantemente, não raro, ignoram que passamos a integrar outros inúmeros mecanismos de controle Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p. 224. 5 Gilles Deleuze, Controle e Devir, p. 216. 6 Gilles Deleuze, “´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle”, p. 220. 4 que acabam por se agregar aos mais duros tipos de confinamentos disciplinares. O alerta já fora dado em 1990 por Deleuze. O olhar com ares de profecia, hoje completamente confirmada realidade concreta em tão curto espaço de tempo. A longa citação se justifica: “Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que consta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal. O estudo sócio-técnico dos Revista História - 12 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No ´regime das prisões´: a busca de penas ´substitutivas´, ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. (...) No ´regime de empresa´: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. (...) Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? (...) Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.”1 Sejamos menos afeitos à cegueira toupeiras e mais atentos ao bote da serpente. das DELEUZE, Gilles. ´Post-scriptum´ sobre as sociedades de controle, p. 224-226. 1 A DISCIPLINA NOS SERTÕES: MANUEL IGNÁCIO DE SAMPAIO E UM PROJETO DE CIVILIZAÇÃO NO CEARÁ (1812 – 1820) João Paulo Peixoto Costa Mestrando em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí Bolsista do programa Reuni de assistência ao ensino Resumo A partir da chegada de Manuel Ignácio de Sampaio no Ceará em 1812, para ocupar o cargo de governador da Capitania, diversa ações foram executadas com o objetivo de transformar aquela região periférica do império português. Tendo diante de si um povo disperso pelo território, ainda “pouco civilizado” – no olhar da elite político-intelectual – e comandado por potentados locais, pôs em prática um plano de monitoramento populacional, onde controle, punição e disciplina agiam de forma marcante. Dessa forma, a partir da documentação produzida por este governo, este artigo pretende analisar de que maneira se efetuou essa política de centralização do poder (inclusive dos atos de punir) e de gerenciamento dos habitantes. Palavras chave: Ceará, controle, punição. Revista História - 13 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Resumé Depuis l'arrivée de Manuel Ignacio de Sampaio dans Ceará en 1812, pour occuper le poste de gouverneur de la province, plusieurs actions ont été effectuer dans le but de transformer cette région périphérique de l'empire portugais. Et devant lui un peuple dispersé sur tout le territoire, encore «non civilisés» pour l'élite politique et intellectuelle - et gouverné par des potentats locaux, a mis en place un plan de surveillance de la population, où le contrôle, la discipline et la punition a agi de façon marquée. Ainsi, à partir de la documentation produit par cette administration, cet article vise à analyser la façon dont cette politique de centralisation du pouvoir (y compris les actes de punicion) et de gestion des habitants s’a effectuée. Mots clé: Ceará, contrôle, punicion. *** Introdução Se a importância de uma pessoa para a história se revelasse a partir de uma rua homônima, poderíamos concluir que a passagem de Manuel Ignácio de Sampaio pelo Ceará teria sido, se não irrelevante, quase imperceptível. Localizada no centro de Fortaleza, a Rua Governador Sampaio se esconde em meio a nomes bem mais conhecidos, como Floriano Peixoto, Conde D’Eu, Pinto Madeira ou até mesmo Santos Dumont. Uma provável explicação para esse fato é que esse militar português, que governou o Ceará entre os anos de 1812 e 1820, foi uma das grandes forças que contribuíram para o fim da chamada Revolução Pernambucana de 1817. Logo, para a memória daqueles que pretendiam construir a história de um Brasil independente, era muito mais edificante lembrar-se de nomes como Tristão Gonçalves ou Bárbara de Alencar (que além de terem sido protagonistas dos movimentos de independência no Ceará, no século XIX, dão nome a vias importantes da capital cearense). Por sua vez, a figura do governador em questão permanece ainda hoje desconhecida por muitos, e o esforço para o apagamento de sua memória vem de muito tempo. Exemplo disso é o relato do então monsenhor Francisco Muniz Tavares, participante dos conflitos em Pernambuco de 1817, e que anos depois escreve a história dessa revolução. Partidário das causas pela independência da região, lutou ao lado dos revolucionários, e posteriormente, dedicou-se a narrar a “sanguinolenta luta” que, segundo ele, Pernambuco “sustentara contra huma das mais poderosas nações maritimas da Europa, defendendo sua honra, seu território” 1. Em sua obra, cita os embates que ocorreram no Ceará, e a forma como foi sufocado o movimento pela independência que teve lugar na vila do Crato. Liderando o governo Francisco Muniz Tavares, História da revolução de Pernambuco em 1817, 3ª edição, Recife, Imprensa Industrial, 1917, p. 76. cearense nesse momento, Tavares coloca-o como o grande responsável por esta derrota, cuja atividade teria redobrado “com a noticia da visinha conflagração”. De acordo com o autor, mesmo sabendo que de nada precisava temer do povo desta capitania... ...seu espirito era sempre agitado, como são os que não obrão rectamente. Hum pequeno traficante da Capital, só por ser Pernambucano, era hum súbdito tão perigoso, quanto o ouvidor da Commarca João Antônio de Carvalho [...]. Não tendo a sua disposição força sufficiente para marchar contra as Provincias insurgidas contentou-se de assegurar a que governava, exercitando os poucos soldados, prescrevendo ordens severas a todos os capitães mores, e desfigurando com as mais negras cores os actos praticados em 2 Pernambuco . 1 2 Francisco Muniz Tavares, 1917, p. 141 e 142. Revista História - 14 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Não é nossa intenção confirmar as palavras de Tavares, para quem o governador em questão teria sido uma espécie de tirano, muito menos colocá-lo na posição de um herói injustiçado pela historiografia. Para além da legitimidade de suas ações, percebemos que, através da análise do extenso acervo documental deixado por ele e presente no Arquivo Público do Estado do Ceará, Manuel Ignácio de Sampaio, futuro visconde de Lançada1, teve participação fundamental no desenvolvimento econômico e do ordenamento populacional desta capitania que era considerada à época um dos confins mais precários do Império português. Nas palavras de João Alfredo Montenegro, Sampaio seria uma “pessoa de profundas convicções absolutistas-monárquicas. Desde jovem já se apresentava austero, amante da disciplina e da ordem”, características que ficaram marcadas tanto em sua luta contra os revolucionários em 1817, como no seu projeto de civilizar o povo do Ceará 2. Como alguns exemplos de realizações deste governador, nas quais não pretendemos nos alongar, podemos citar obras de engenharia importantes, lideradas pelo engenheiro Silva Paulet como a construção do mercado público e a reforma da Fortaleza de Nossa Senhora da Assumpção3, que até então, era apenas uma paliçada de madeira, enquanto 1 Administração Manuel Ignácio de Sampaio (1º visconde de Lançada), Revista do Instituto do Ceará, ano 30, Fortaleza, 1916, p. 201. 2 João Alfredo de Souza Montenegro, O trono e o altar: as vicissitudes do tradicionalismo no Ceará (1817-1978), Fortaleza, BNB, 1992, p.22. 3 Administração Manuel Ignácio de Sampaio, 1916, p. 202. as outras fortificações nas capitais do Nordeste já eram de pedra e cal. No âmbito econômico, o governo Sampaio teria sido “aquele em que a economia algodoeira atingiu seu auge”, acompanhado de forma inseparável “por um forte processo repressivo, principalmente sobre os povos indígenas” 4. É possível perceber que, juntamente com seu projeto que visava impulsionar a produção, foi traçado pelo governador todo um plano complexo e minucioso de controle, disciplinamento e civilização da população do Ceará, que além de manter hábitos “bárbaros” para os conceitos ocidentais – como a dispersão populacional – seria extremamente violenta, praticamente independente do gerenciamento real5 e, conseqüentemente, a causa do atraso desta capitania6. Partindo da análise documental produzida por Sampaio, este trabalho, que faz parte de uma pesquisa desenvolvida no Mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí, tem como objetivo mapear as áreas de atuação dessa política civilizatória desenvolvidas pelo governador, e perceber de que maneira se construiu essas práticas disciplinares num dos confins mais periféricos do império português. Francisco José Pinheiro. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820, Fortaleza, Fundação Ana Lima, 2008, p. 319. 5 José Eudes Arrais Barroso Gomes, Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência (século XVIII), Monografia de bacharelado, Universidade Federal do Ceará, 2006. 6 João da Silva Feijó. Memória escrita sobre a Capitania do Ceará, Revista do Instituto do Ceará, ano 03, Fortaleza, 1889, pág. 03 – 27. 4 Controle populacional Um lugar sem lei, sem marcos no chão. Terra de vagabundos e ladrões, tendo uma sociedade marcada pela constante presença da violência convivendo com a debilidade das instituições policiais e judiciárias7. Esse parece ser o quadro social do Ceará que Manoel Ignácio de Sampaio visualizou em 1812, quando assumiu o governo da Capitania. Além dele próprio, os viajantes que aí estiveram na primeira metade do século XIX expressaram comumente em seus relatos impressões como essas frente à situação social que encontravam: um sertão “brabo” em pleno solo do reino de Portugal, e que por isso mesmo precisava ser transformado. Como exemplo, basta lembrarmo-nos da “Memória sobre a Capitania do Ceará”, de João da Silva Feijó, onde procurou passar em detalhes as suas principais observações sobre diversos aspectos – naturais e sociais – da referida capitania. De acordo com o autor, a terra em si seria bastante promissora, sendo “necessario ter muito pouco conhecimento do fizico da Capitania do Ceará para duvidar das immensas vantagens que Ella pode produzir” 8; logo, o problema estaria na sua composição social. Formada de uma “desfalecida população”, era “de maior parte 7 8 José Eudes Gomes, 2006, p. 127. João da Silva Feijó, 1889, p. 03. Revista História - 15 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. de pessima qualidade” 1, inviabilizando seu desenvolvimento. Por isso, percebemos que a população desta capitania, “hum Povo ainda pouco civilisado” nas palavras de Sampaio2, passou a ser motivo de forte preocupação deste governo. A confecção de mapas populacionais em cada vila, a renovação da “política de passaportes” (que permitia o deslocamento de um indivíduo para fora da capitania, ou mesmo de sua vila, somente através de autorização), o crescimento dos recrutamentos em companhias locais de ordenanças e a chamada “caça à vadiagem” são exemplos de ações governamentais desenvolvidas nesse período que tinham como objetivo acabar com o já citado problema da dispersão populacional. Esta situação, tão combatida pelos governantes, teria como decorrência não só o atraso econômico, mas também a proliferação de costumes bárbaros e poucos civilizados. Ou seja, era somente através de uma constante vigilância, e do recrudescimento das práticas disciplinares, que esta população poderia ser gerida, controlada e, conseqüentemente, civilizada. Em um ofício dirigido ao comandante do destacamento de Sobral em abril de 1814, por exemplo, o governador ordena que se em sua “ronda tornar a prender alguns pretos q’ estejão em batuques, será bom insinuar a os Senhores q’ lhes dem algum castigo publico” 3, demonstrando a sua preocupação em acabar com certos costumes bárbaros, como os batuques, e ainda em expor as punições dos culpados, com o objetivo de servir de exemplo a outras pessoas. Os choques entre as pretensões do governo e as reações da população diante de seus projetos se deram em vários setores desta sociedade, inclusive com a elite econômica, e pudemos encontrar alguns registros neste sentido nos documentos relativos à instalação do chamado Correio do Norte do Brasil. Esta “ferramenta sistemática de comunicação”, “fundamental para a fluidez de relações comerciais entre as vilas do Ceará e mesmo entre outras capitanias” 4, não teria sido bem recebida inicialmente por eles. Em carta encaminhada ao Chanceler do Maranhão, acerca da criação de uma agência dos correios nesta capitania, Sampaio o alerta, dizendo estar certo de que nos “primeiros seis ou oito meses” o funcionamento do correio “poderá ter algûas irregularidades, porque os Povos do sertão não gostam de novidades, como succedeo daqui até Idem, p. 22. 2 Abril 15. Registro de hum officio dirigido ao Ex. mo Sn’ Dom Miguel Pereira Forjaz [...] pedindo-lhe socorros. In: Livro 23, p. 124V. Congresso internacional de história e patrimônio cultural / Encontro regional de história do Piauí, Simpósio 16: “Memória, sociedade e 1 Abril 30. Rego do officio ao Teme Comde do destacamto do Sobral, dando varias ordens sobre o mmo destacamto. In: Livro 34, p. 183. Grifo nosso. 4 João Paulo Peixoto Costa. Os filhinhos do governador: o “Correio do Norte do Brasil” e os índios correio no Ceará (1812 – 1820), Anais do Pernambuco” 5. Com este trecho, percebemos não só a dificuldade da população sertaneja em aderir a certos projetos modernizadores, como também certa visão de menosprezo do governador perante dos habitantes do Ceará. Diante dessa situação de atraso social, no olhar do governador Sampaio, percebemos que as atitudes relativas ao controle e monitoramento da população passaram a ter uma preocupação especial, não somente em relação aos habitantes que pretendiam circular dentro ou fora do território, mas também àqueles que chegavam de outros lugares. Isso ficou marcante durante os conflitos em Pernambuco de 1817, já que o medo de que aquele povo “pouco civilizado” aderisse às idéias revolucionárias fez com que o monitoramento recrudescesse ainda mais, como nos diz os escritos já citados de Muniz Tavares. Outro exemplo desse controle minucioso em relação às pessoas que circulavam no Ceará, e do receio em relação às suas ações, está registrado no ofício expedido ao escrivão de Granja em setembro de 1818, sobre a chegada de um frei franciscano na capitania: Na Sumaca Estrella do Norte foi para essa Villa hum 3 movimentos sociais”, Teresina, Educar: artes e ofícios, 2010, p. 01. Setembro 17. Registo de hûa carta dirigida ao Chanceller do Maranhão, agradecendo-lhe ter concorrido pa o =convenio= do General, em quanto a ampliação do Correio, e sobre mais objectos do mesmo Correio. In: Livro 23, p. 63V. 5 Revista História - 16 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Religioso da Ordem de Sto Antonio por nome Fr. Alexandre dotado de grandes talentos e que apesar de trazer todos os seus papeis Correntes, e mui claros he de grande disconfiança. Ordeno portanto a vme que com o seu Costumado Criterio haja de Observar attentamente todas as acções do dito Religioso assim como tambem as opiniões, e ideias que elle publicar dando-me de tudo parte a fim de eu poder providenciar, e evitar a tempo qualquer funesto acontecimento1. Observemos que, mesmo trazendo todos os documentos necessários em ordem, e de forma clara, esse frade despertou grande desconfiança por parte do governador, ainda mais por ser “dotado de grandes talentos”, cuja natureza é difícil saber. Porém, podemos supor que, pela proximidade temporal dos conflitos em Pernambuco – que ocorreram um ano antes e com fortes envolvimentos Setembro 15. Officio ao Escrmor da Granja Jose de Almeida Fortuna pa Observar os passos de 1 Frade q’ ahi chegou. In: Livro 28, p. 103. Grifos nossos. 1 de religiosos – sua presença tenha provocado em Sampaio a preocupação em se monitorar não só suas ações, mas também opiniões e idéias, que dependendo do conteúdo, poderiam causar algum “funesto acontecimento”, como por exemplo, a renovação dos ideais revolucionários. Como já expomos anteriormente, estas práticas de controle populacional, tanto em seus deslocamentos como em seus cotidianos, sempre estiveram acompanhadas de intenções relativas ao crescimento econômico e à civilização dos habitantes. Para ilustrarmos este quadro, damos como exemplo a ordenação das atividades de pesca marítima na Prainha, em Fortaleza, que mandou executar logo no seu primeiro ano de governo, em 1812. Para isso, além de instituir uma autoridade militar sob a qual os pescadores deveriam obediência, tratou no seu ofício de abril deste ano, enviado ao ajudante de milícias da capital, sobre questões relativas ao comércio de pescados. Colocou Agostinho Cardozo Batalha como comandante e Antonio Raimundo como cabo, cujas obrigações seriam a de “vigiar sobre o trabalho de todos os Pescadores da Prainha, e obrigalos a ir ao mar todos os dias que o tempo permitir”, atividade esta que seria “em utilidade, tanto dos habitantes desta Villa como dos mesmos Pescadores”. Caso houvesse desobediência ou desrespeito por parte dos pescadores, estes deveriam ser severamente castigados, já que as ordens do comandante e do cabo deveriam ser executadas “como se ellas emanassem propriamente da minha boca”. Por fim, disse ainda que criaria uma casa que serviria de praça para a venda e compra dos peixes, tentando por essa maneira deixar os trabalhadores “livres dos atravessadores que se locupletão [enriquecem] a custa do suor, e fadiga dos mesmos Pescadores”, como também de “roubos, e desordens a que estavão sujeitos vendendo o peixe em confuzão no meio da Praia”. Nessa ocasião, podemos observar que interesses econômicos estão estreitamente atrelados ao ordenamento do trabalho e dos costumes daqueles pescadores. Se antigamente vendiam os seus peixes de forma desordenada na praia, agora passariam a trabalhar em uma casa própria para isso, livres de atravessadores e roubos. Para que isso acontecesse, a vigilância constante se fazia necessária, não só para que trabalhassem de forma regular e disciplinada, mas também para garantir o abastecimento de Fortaleza e dos próprios pescadores. Na visão de Sampaio, o controle das autoridades, a obediências desses subordinados e as ameaças de castigos para os rebeldes, agindo de forma combinada, seria extremamente vantajoso até para os pescadores, tanto que, para o governador, aqueles que infringissem a lei estariam “esquecidos dos seus próprios interesses” 2. A disciplina, e todas as práticas relacionadas a essa Abril 27. Registo de hûa Ordem dirigida ao Ajudante de Milicias Francisco Xavier da Camera para a fazer publicar aos Pescadores da Prainha desta Villa. In: Livro 26, p. 6. 2 Revista História - 17 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. forma de governo e poder, seriam o caminho para a civilização do Ceará, e isso é visível neste exemplo de ordenamento do trabalho. Centralização das decisões e o controle das punições Outras ações que foram fundamentais para a política de Sampaio de controle dos habitantes, constantes durante todo seu governo, estiveram ligadas à centralização das decisões políticas e a retomada do poder sobre o gerenciamento populacional. Como nos conta o trabalho de José Eudes Gomes, os potentados nos sertões acabaram se desenvolvendo praticamente independentes dos governos da capitania, seja em termos de decisões ou no sentido da subordinação às ordens superiores1. Indo de frente com essa realidade, encontramos nas fontes registros variados de repreensões do governador dirigidas a autoridades locais que não respeitavam tal hierarquia, ou agiam de forma autônoma. Em julho de 1813, Sampaio escreve ao capitão mor do Icó recriminando a atitude do tenente Ferreira, que “Seguindo talves hum Antigo costume que aqui havia de todos darem Ordens com nome do Governador lembrouse de escrever a VMe como se fosse meu Ajudante d’Ordens”, indo por essa maneira “contra o Sistema geral do meu Governo” 2. Num ambiente onde seria costumeiro produzir documentos oficiais sem a autorização devida, e ainda usando o nome do governador, pode-se deduzir a falta de controle político e o pouco alcance de certas decisões centrais. Era impossível gerir de forma satisfatória o povo sem que houvesse de maneira efetiva a subordinação das autoridades locais em relação à hierarquia e às ordens governamentais, e de acordo com os registros, observamos que essa situação foi atacada firmemente pela ação de Sampaio. Em dezembro de 1813, o governador recrimina o coronel de cavalaria miliciana de Sobral por este não ter obedecido a sua ordem sobre o “fornecimento de Soldados para guarnecerem os quatro Presidios da Costa do Termo dessa Villa” nos meses de fevereiro, maio, agosto e novembro em todos os anos, e ainda manda castigar outros militares culpados pela ausência de homens nas guarnições de Itapajé e Almofala “cada hum conforme a sua graduação e a proporção de sua culpa de que me dará parte” 3. No caso das decisões que demonstrassem fidelidade e respeito à ordem central, elas não deixavam de ser parabenizadas pelo governador. No Julho 6. Registo de hum Officio ao Capmor do Ico com Resposta ao seu Offo de 26 de Março sobre o castigo q’ deu ao preso Escro de Joaqm Jose de Carvalho. In: Livro 17, p. 102. 3 Dezembro 29. Rego do Officio ao Corel de Cavallaria do Sobral a respto dos Presidios no mmo espreçados. In: Livro 34, p. 130V. mês de julho do ano anterior, Sampaio escreve ao agente do recém criado Correio do Norte do Brasil no Aracati, dizendo-lhe que fazia “muito bem em não alterar em coisa algûa o arranjo do estabelecimento do Correio, só pelo dito de algûas pessoas” 4. No mesmo mês, com conteúdo semelhante, expede ofício ao agente do Icó, insistindo-lhe que, “apesar do melindre do seu Capitam Mor não deve VMce por motivo nenhum alterar o que determinão as instruções que lhe tenho dado para o arranjo do Correio” 5. Notemos a difícil situação em que se encontrava o responsável pelo correio: se de um lado tinha uma instrução do governador, do outro havia os pitacos da autoridade local, mostrando o quanto era comum o poder de mando desses militares espalhados pelo sertão. A força desses capitães mores em suas vilas se expressava também na sua liberdade em punir, da forma que bem entendessem, qualquer pessoa que infringisse as suas próprias leis, sem que para isso precisassem pedir autorização do governador. Esse costume também foi combatido por Sampaio, que pretendia centralizar todas as decisões nesse sentido, fosse ao âmbito militar ou não. Em novembro de 1813, escreve ao diretor da vila de índios de Monte mor Velho (atual Pacajús), dizendo-lhe que “fes 2 1 José Eudes Arrais Barroso Gomes, 2006, p. 29 e 30. Julho 16. Rego de hum Officio dirigido ao Agente do Aracati Manoel Joze Rebello. In: Livro 26, p. 84. 5 Julho 27. Registo de hum Officio dirigido a Manoel do Espirito Santo da Paz, Agente do Correio da Villa do Icó. In: Idem, p. 88V. 4 Revista História - 18 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. muito bem em não mandar castigar com palmatoada os tres Indios Pai, filho, e genro que maltrataram outro Indio tambem dessa Direcção” 1. No mês seguinte, manda ao comandante de Sobral que repreenda “mui Asperamente” ao comandante da Barra do Acaracu (atual Acaraú) “por ter levantando tronco sem Ordem minha”, e diz ainda que “não deve por motivo nenhum Conservar presos no tronco [...] mas unicamente mandalos para Cadeia dessa Villa” 2. Já em janeiro do ano posterior, compondo suas ações que buscavam impor entre as autoridades locais o respeito à hierarquia e aos deveres militares, Sampaio chega a agir em defesa de um soldado, Manuel Joaquim Estremos, que havia se queixado do capitão mor Antônio Francisco da Silva. Para isso, escreve um ofício ao coronel do regimento da infantaria miliciana do Ceará e Jaguaribe, Pedro José da Costa Barros, relatando que, além do dito capitão ter passado uma ordem ao soldado que estava fora de sua escala de serviços, teria o “ultrajado [...] com palavras picantes e desattenciozas improprias do capricho e honra Militar”, como também tentado “dar no Supe com hum pau (tendo previamte pa este fim fechado a porta da sua Caza)”, e ainda tê-lo “prendido a minha ordem não contente com aquelles Novembro 16. Registo de hum Officio ao Director de Monte Mor o Velho pa remetter huns Indios presos pa esta Capal. In: Livro 18, p. 6V. Grifos nossos. 2 Desembro 15. Registo de hum Officio ao mmo Sargmor Commde Sobre Varios Objectos. In: Idem, p. 29. Grifo nosso. 1 recolher as Cadeias publicas presos a minha Ordem, ou do seu respectivo Coronel, e dando te immediatam parte desta prizão...3 desatinos”. Diante disso, o governador passou ao coronel Costa Barros as seguintes instruções: Ordeno a VSa, que [...] na prezença de todos reprehenda o sobredito Capm Antonio Franco da Silva pr tudo quanto praticou com o mencionado Soldado Manoel Joaqm Estremos, [...] fazendo ver ao mmo Capm ter faltado essencialmte Militar, q’ á disciplina assim como estabelece a mais rigorosa subordinação aos Superiores, prohibe igualmte a estes o uso de palavras injuriozas, e de todo o procedimto q’ for indecorozo aos inferiores, e q’ só tenderia a diminuir [?] o brio e capricho Militar [...]. O mmo Sargto Mór fará conhecer ao mencionado Capmor, assim como tambem aos outros Officiaes [...] q’ [...] nenhum Official de Milicias desta Capitania poderá castigar os offes de Patente, offes Inferiores e Soldados que lhes forem subordinados se não fazendo- os Em nome desse brio e capricho militar, Sampaio expede essa ordem que pode nos oferecer muitos elementos para a análise de sua política de controle e disciplinamento da população e dos variados setores desta sociedade. Percebemos que estas ações autoritárias do capitão mor – assim como a do comandante da Barra do Acaracu, citado anteriormente – espelham algo que deveria ser tendência na região: a liberdade de ação dessas lideranças e a forma truculenta de lidar com seus subordinados. Reforçando mais uma vez as suas tentativas de centralizar as decisões, o governador ordena que a punição não seja feita com agressão física – tanto através de uma paulada ou com a utilização do tronco – mas apenas com a prisão, e somente com a sua ordem. Podemos ver que, dessa forma, a punição “não visa [...] exatamente a repressão” 4; o castigo que deve ser imposto “tem a Janro 5. Rego do Offo ao Coronel de Infanta Miliciana do Ceará e Jagoaribe sobre serto objecto relativo ao Capm Anto Franco da Sa. In: Livro 34, p. 142. Grifos nossos. 4 Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão, 34ª edição, Petrópolis, Vozes, 2007, p. 152. 3 Revista História - 19 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. função de reduzir os desvios. Deve portanto ser essencialmente corretivo” 1. Já que a punição continha um intuito disciplinar, que visava a formação do desviante, e não apenas o castigo por ele mesmo, as atitudes de Sampaio neste sentido tinham também certa flexibilidade, dependendo da situação. Exemplo disso está registrado em ofício dirigido ao capitão mor do Icó, por ocasião da seca que assolava o Ceará em 1816. Segundo o governador, pelos estragos que as condições climáticas têm causado, “tanto no termo dessa Villa como em todo o resto da Capitania”, serem tão grandes, os furtos seriam “huma consequencia necessaria desta Calamidade publica”. Por isso, “á vista das Circunstancias do Certão”, não seria “possivel reprimilos nesta estação se não em mui pequena parte, alias correr-se-hia o risco de augmentar a Calamidade em lugar de diminuir”. Dessa forma, só se poderia “punir esses crimes com a moderação e prudencia necessarias”, mas em relação a qualquer indivíduo que se aproveitasse da “presente Calamidade publica para dar livre exercicio ao Antigo e arreigado vicio de se appropriar os bens alheios, o mandará prender” 2. Aqui encontramos um bom exemplo de exceção, onde a punição a um crime evidente, que era o furto, deveria ser avaliada pela autoridade por conta da situação calamitosa que se Idem, p. 150. Outubro 9. Officio ao Capmor do Ico accuzando huns Officios, e Outros Objectos. In: Livro 21, p. 42V. encontrava o Ceará. Era preciso, na opinião do governador, moderação e bom senso no tratamento desses episódios, além de discernimento para concluir se se tratava de uma conseqüência do desespero diante da seca ou de mais um caso do que ele chama de “antigo e arraigado vício” da população, que era a prática do roubo (outro costume dos sertões que, para a elite político-intelectual da época, precisava ser combatido). Mesmo assim, a busca de Sampaio em ir de encontro aos autoritarismos dos potentados locais continuou até o fim de seu mandato, e já fevereiro de 1819, escreve um ofício a Jerônimo José Figueira de Melo, condenando suas irregularidades. Diz que, se o antigo governador João Carlos Augusto de Oyenhasen o tivesse castigado como deveria, ele não teria “a ousadia de pertender desacretidar as authoridades constituídas”, além de ter sido, segundo consta em documentos antigos, “hum dos maiores Regulos no Certão comettendo delitos sobre delitos e abusando constantemente da authoridade temporária dos empregos que exerceo”. Nesse momento, o seu crime teria sido conseguir ser eleito como juiz de órfãos de sua vila “tão somente por suborno, e outros indignos meios”, e diante desta situação, o governador o ameaça: “eu jamais deixarei de faser punir com a justa e rigorosa severidade das Leis se VMce não deixar de dar uso ao seu genio revoltoso” 3. Ao buscar subordinar esses potentados locais à hierarquia instituída no reino, Sampaio não pretende apenas centralizar o poder por si só, mas fazer com que ele funcione de forma mais ordenada e regular nos variados setores desta sociedade, ou seja, construir uma “vigilância penal mais atenta do corpo social” 4. Somente submetendo essas autoridades, o governador teria condições de gerir a população de forma mais eficaz, pois caso contrário, seria impossível que suas ações tivessem o alcance desejado, e muito menos que a tão necessária civilização do povo fosse realizada, já que este estaria submisso diante das vontades de capitães mores e de outros poderosos, que nem sempre estavam engajados nesse projeto. Quando pensamos nas práticas punitivas, elas se mostram como exemplares para pensarmos nesse sentido: práticas como pauladas e açoite público no tronco pareciam ser, de certa forma, comuns naquela região, e feitas de formas independentes e arbitrárias. Partindo de pensamentos modernos, a disciplina pretendida por Sampaio também encontrava lugar numa “nova ‘economia política’ do poder de punir”, que buscava “assegurar uma melhor distribuição dele”, fazendo com que não ficasse “concentrado demais em alguns pontos privilegiados”, e sim executado de forma mais inteligente e homogenia. Essa nova tomada de rumo se configurou como um Fevro 13. Offo a Jeronimo Joze Figueira de Mello sobre a sua irregular conduta. In: Livro 28, p. 149V. 4 1 2 3 Michel Foucault, 2007, p. 66. Revista História - 20 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. “remanejamento do poder de punir, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos” 1, onde o que se buscava não era apenas a criação de autoridades locais cada vez mais independentes e fortes, e sim, o estabelecimento de um poder disciplinar nestes sertões, cujo objetivo estava no ordenamento social, no controle cotidiano dos povos e dos poderes e, sobretudo, na civilização deste vasto confim do império português. Fontes: Arquivo Público do Estado do Ceará / fundo “Governo da Capitania” Série “Registro de ofícios aos capitães mores, comandantes de distrito e diretores de índios”. Livros: 17 (1814), 18 (1813 – 1814) e 21 (1816 – 1817). Série “Registro de ofícios às autoridades fora da capitania”. Livro: 23 (1812 – 1817). Série “Registro de ofícios ao escrivão deputado, intendente da marinha, juiz da alfândega, agentes de correios e pessoas particulares da capitania”. Livros: 26 (1812 – 1813) e 28 (1816 – 1819). Série “Registro de ofícios do governo do Ceará aos militares desta capitania”. Livro: 34 (1813 – 1814). 1 Idem, p. 68 e 69. Bibliografia Anexo Administração Manuel Ignácio de Sampaio (1º visconde de Lançada), Revista do Instituto do Ceará, ano 30, Fortaleza, 1916, pp 201 – 247. Francisco José Pinheiro. Notas sobre a formação social do Ceará: 1680 – 1820, Fortaleza, Fundação Ana Lima, 2008. Francisco Muniz Tavares, História da revolução de Pernambuco em 1817, 3ª edição, Recife, Imprensa Industrial, 1917. João Alfredo de Souza Montenegro, O trono e o altar: as vicissitudes do tradicionalismo no Ceará (18171978), Fortaleza, BNB, 1992. João Paulo Peixoto Costa. Os filhinhos do governador: o “Correio do Norte do Brasil” e os índios correio no Ceará (1812 – 1820), Anais do Congresso internacional de história e patrimônio cultural / Encontro regional de história do Piauí, Simpósio 16: “Memória, sociedade e movimentos sociais”, Teresina, Educar: artes e ofícios, 2010. João da Silva Feijó. Memória escrita sobre a Capitania do Ceará, Revista do Instituto do Ceará, ano 03, Fortaleza, 1889, pp 03 – 27. José Eudes Arrais Barroso Gomes, Um escandaloso theatro de horrores: a capitania do Ceará sob o espectro da violência (século XVIII), Monografia de bacharelado, Universidade Federal do Ceará, 2006. Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão, 34ª edição, Petrópolis, Vozes, 2007. Manuel Ignácio de Sampaio. In: CHAGAS, Manuel Pinheiro. História de Portugal. Popular e ilustrada. Lisboa: Empresa da História de Portugal – Sociedade Editora, oitavo volume, 1901, p. 281. Revista História - 21 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. ADMIRÁVEL SOCIEDADE DE CONTROLE: UM ESTUDO DAS RELAÇÕES DE PODER DURANTE A CONSTRUÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE ILHA SOLTEIRA (1965 – 1973) Tiago de Jesus Vieira Mestrando em História Universidade Federal de Mato Grosso RESUMO Partindo de estranhas coincidências, entre o livro “Admirável Mundo Novo” e a documentação encontrada sobre a construção da usina hidrelétrica de Ilha Solteira. Este trabalho expõe como numa localidade, em que vivem e viveram pessoas de verdade, as relações de poder se desenvolveram tal como numa ficção. Com demasiada assimetria nestas relações, que envolvem empresa construtora da usina e os indivíduos sujeitos a esta relação, que fora mantida através da utilização de instrumentos que Michel Foucault denominou como biopoder, que agrega práticas de gestão da vida da população, com disciplina e vigilância. A forma como se desenvolveu estas práticas garantiram a empresa, constituir uma sociedade do controle, quase como no livro de Aldous Huxley. centrale hydroélectrique Ilha Solteira. Cet article explique comment une localité dans laquelle ils vivent et les vrais gens vivaient, les relations de pouvoir ont mis au point comme une fiction. Trop asymétrie dans ces relations, impliquant la société de construction de centrales et les personnes assujetties à cette relation, qui a été maintenue grâce à l'utilisation d'outils tels que Michel Foucault a appelé biopouvoir, qui regroupe les pratiques de gestion de la vie des gens, la discipline et la surveillance. La façon dont ils ont développé ces pratiques a assuré la société, être une société de contrôle, presque comme le livre de Aldous Huxley. Palavras Chave: Relações de Poder; Bio Poder; Sociedade de Controle. *** Este texto nasce das estranhas coincidências, entre um dos principais livros do século XX, “Admirável Mundo Novo1”, obra de ficção científica escrita em 1932, por Aldous Huxley, e a documentação encontrada sobre a construção da usina hidrelétrica de Ilha Solteira, entre os anos de 1965 e 19732, na região da divisa entre os estados de HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Globo: Rio de Janeiro. 12 ed., 1984 2 As obras da construção da usina hidrelétrica de Ilha Solteira, começaram no ano de 1965, embora o documento de início das obras da usina, data de 03 de abril de 1966, e fora assinado pelo então presidente da república Umberto de Alencar Castelo Branco, 1 RÉSUMÉ De étranges coïncidences entre le livre "Brave New World" et des documents sur la construction de la São Paulo e onde se encontra hoje o Mato Grosso do Sul3. O livro narra à história de uma sociedade num futuro distante, onde hipoteticamente prevalece o controle total sobre as pessoas, que são précondicionadas biologicamente, e seguem uma linhagem classificatória de acordo com suas castas, além de serem condicionadas psicologicamente desde a infância, por métodos que garantem o desapego à natureza e livros, para garantir que estas não representem riscos para ordem, os outros questionamentos ou dúvidas, dos cidadãos eram dissipados com o uso da droga “soma”, que não causava efeitos colaterais. Aliado a este modo de atuação sobre a mente, a prática de estimulação sexual garantia a domesticação do corpo. Mas quais podem ser estas coincidências entre uma documentação histórica, que envolve pessoas considerada uma obra de interesse nacional, quando entrou em funcionamento em 1973 era considerada a sexta maior hidrelétrica do mundo. O plano gestor da obra de construção do complexo urbanístico estimava, que durante o período de obras, a população prevista seria, entre 40 e 50 mil habitantes, constituindo o maior acampamento já projetado para uma única obra, “acampamentos anteriores – Paulo Afonso, Furnas ou Três Marias – apresentavam populações de número muito inferior ou, como Brasília, diversos acampamentos descentralizados”, cf. PLANO gestor de construção do complexo urbano de Ilha Solteira. (s./l.), [1965-7?]. p.24. Documento encontra-se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. Cabe destacar que no período de 1965 e 1973, ao qual trata a documentação selecionada, o estado de São Paulo fazia fronteira com o estado de Mato Grosso. Uma vez, que a divisão dos estados só acontece em 1977. 3 Revista História - 22 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. que viveram de verdade, com uma sociedade estritamente ficcional, como a do livro Admirável Mundo Novo? Realmente não se trata de uma das tarefas mais fáceis, pois no livro uma série de elementos ficcionais é apresentada, que a imaginação análoga de historiador estanca, tornando inatingível qualquer comparação racional, com uma sociedade de pessoas de suor e sangue. E realmente não se trata de uma comparação, mas apenas da necessidade de fazer um relato sobre este livro, que se dá muito mais por um “grito” silencioso das fontes que impõem esta associação, do que por um estudo sistemático da obra. O que se procurou fazer não é algo brilhante, é apenas demonstrar como numa dada localidade, os indivíduos podem ser sujeitados a relação de poder, praticamente imperceptível para aqueles que estão nelas envolvidos, sendo atingidos por relações de poder em esfera molecular, na qual somente com auxílio de um microscópio podem ser perceptíveis. Se no livro, a docilidade das pessoas era garantida pelo controle do conhecimento e uso de drogas que inibiam as indagações. Nas sociedades que envolvem pessoas reais, a atuação que permite transformar os seres humanos em sujeitos controlados, são ações de biopoder, que podem condicionar uma sociedade, a fim de obter benefícios para um grupo, - no caso em questão uma empresa -, sem que seja usado, drogas como a “soma”, e nem utilizados tratamentos de choque com livros e flores. Trata-se de algo bem mais simples, mas nem por isso menos eficientes, através de intervenções sobre as necessidades básicas da população, gerindo aspectos da vida como habitação, saúde, educação e lazer. Estas intervenções minúsculas sobre a vida das pessoas, que recebem o título de biopoder, são formadas pela junção de práticas disciplinares que já existiam desde o século XVII, com elementos de preocupação com a gestão da vida, que vão surgir cerca de cinqüenta anos depois, já no século XVII. Mesmo sendo criadas em distintos momentos, estas práticas vão ser somadas e cristalizadas pela ação de instituições. Para Peter Pál Pelbart, “embora separados no início, a disciplinalização dos corpos e a regulação da população acabam confluindo1”, a disciplina é essencial, pois se dirige ao corpo, como possibilidade de reger o homem enquanto indivíduo, por meio de instrumentos de vigilância, treino e punição. Já ações de gestão da vida, dirigem ao homem enquanto pertencente a uma massa global, afetada por elementos próprios da vida, como a própria morte, ou a ameaça de uma doença. Portanto, o objetivo deste trabalho é compreender as minúcias, das relações que envolvem a utilização de mecanismos de biopoder pela empresa responsável pela implantação da usina hidrelétrica de Ilha Solteira, para observar estas relações em escala molecular, é necessário a utilização de um “microscópio”, este que será tomado de empréstimo PELBART, Peter Pal. A vida capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. 1 de Michel Foucault2, trata-se de um método para análise de relações de poder, este por sua vez considera que estas relações se dão em função de 05 elementos principais: sistema das diferenciações; tipo de objetivos; modalidades instrumentais; formas de institucionalização; graus de racionalização. Antes desta análise cabe destacar que como toda teoria esta classificação é provisória, parcial e inacabada. Ainda mais, se tratando da complexidade que envolve relações de poder, que são “virtuais, instáveis, não localizáveis, não estratificadas, potenciais, e definem apenas possibilidades de interação3”. O que Michel Foucault classifica como sistema de diferenciações, é a forma desigual com que indivíduos, se apresentam diante de outros indivíduos, estas diferenças podem ser da ordem jurídica, econômica, profissional, lingüística, cultural, de habilidade ou competência e etc.. Desta forma, toda relação de poder passa por algum tipo de diferenciação. No caso de Ilha Solteira, a empresa que edificou a usina e como suporte para sua implantação, também edificou um perímetro urbano que seria capaz de abrigar até 50 mil trabalhadores. Entretanto, valeu-se de um método de divisão sócioprofissional, na qual as outras diferenças, eram FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert. E RABINOW, Paul. Michel Foucault – Uma Trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.231-49. 3 LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do Capitalismo: A política no Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 65 2 Revista História - 23 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. praticamente agregadas à classificação da CELUSA (Centrais Elétricas do Urubupunga S.A.), empresa que depois foi incorporada a CESP (Centrais Energéticas de São Paulo), manteve o sistema de classificação, que não era por seleção genética seguindo castas, como no livro, mas também separava os sujeitos que eram separados por níveis de 1 a 6, sendo que remuneração, habitação, lazer estavam diretamente articuladas a este sistema de classificação, que seguiam uma ordem crescente. Este modelo fora sugerido, a fim de sanar uma preocupação que está presente no plano gestor de construção do perímetro urbano de Ilha Solteira, que era garantir um tratamento diferenciado para os funcionários com maior grau de instrução. Desta forma, este sistema possibilitava atrair, para a região “inóspita”, engenheiros e médicos. Já aos trabalhadores de estratos menores (1 e 2), não se deveria preocupar pois tudo em Ilha Solteira, seria um “Admirável Mundo Novo1”. O fato de ter uma casa, e poder desfrutar de um clube, ter hospital por perto e acesso à escola para os filhos, significaria muito para estes trabalhadores de origem regional. Michel Foucault2, por vezes chamou a atenção, para o fato de que as relações de poder, não somente devem ser associadas a aspectos negativos, é justamente neste ponto que os mecanismos pautados na gestão da vida, podem ser visíveis. Pois, atuam de forma dupla, se pelo lado positivo garantiu acesso a casa, saúde, educação e lazer, que boa parte dos moradores da região realmente não tinha acesso anteriormente. Em contrapartida compartilhavam de uma situação visivelmente assimétrica de poder. O tipo de objetivo é o modo como uns agem sobre os outros, neste caso, os benefícios desfrutados pelos funcionários de níveis menores, eram ínfimos se comparados ao dos estratos mais elevados. Além de garantir a manutenção dos privilégios, permitia a operacionalidade da autoridade estática. A existência de um hospital que pudesse atender os mais necessitados, é uma tática que pode ser enquadrada, como aquela de cordão sanitária, que graças ao tratamento dos pobres, e que garantia aos ricos não se vitimarem pelas doenças dos pobres3. Ao construírem um clube para os níveis 1 e 2, e outro para os 3 e 4, garantia aos níveis 5 e 6, não compartilharem do mesmo espaço, que seus subordinados. Se por um lado, proporcionou educação básica aqueles que jamais haviam frequentado uma sala de aula, por outro, supriu uma demanda da empresa na formação de engenheiros elétricos, mecânicos e civis, com a implantação em 1976 da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ao garantir uma habitação para os trabalhadores, deixou aqueles que tinham a classificação mais baixa, no extremo oposto dos com estratos mais elevados, este esquadrinhamento disciplinar do espaço da cidade, permitiu uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos nos primeiros anos 4. Quando a CESP faz questão de destacar, em seu álbum a respeito da história do município, que os padrões “culturais” da cidade sempre foram bem diversificados se comparados aos demais municípios da região, se tornando “parâmetro”. Pois, o poder aquisitivo de quem trabalhava na construção da usina era elevado, e isto “influenciou a cultura FOUCAULT, Michel. Micro-física do Poder. Tradução Roberto Machado. Edições Graal: Rio de Janeiro. 23 ed., 2007, passin. 3 Idem, p. 263 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. PLANO gestor de construção do complexo urbano de Ilha Solteira. (s./l.), [1965-7?]. p.34. Documento encontra-se na caixa arquivo 1 nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. 2 Havia uma distinção nítida entre os bairros – passeios - de chefes e os de subordinados. Em 1973, Ilha Solteira contava com 5.144 residências, distribuídas da seguinte forma: 370 casas do tipo 1; 2.894 casas do tipo 2; 1.032 casas do tipo 3; 504 casas do tipo 4; 108 casas do tipo 5; 164 casas do tipo 6. As casas dos trabalhadores de classificação profissional menor, como os de nível 1, 2 e 3 em sua grande maioria encontram-se na parte norte da cidade, e os passeios que fazem menção as regiões norte e nordeste do Brasil. Já as casas dos níveis 4, 5, 6 estavam alocadas no sul da cidade, e os passeios recebiam nome das regiões mais “desenvolvidas” do país, como Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. Mesmo com elevação a município em 1989, pouco modificou nesta situação, continuando havendo uma nítida separação entre as regiões de pobres e ricos, pois as pessoas continuaram morando em suas casas, e carregando uma herança de superioridade ou na maioria dos casos de inferioridade. Cf. CESP. A cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco primeiros anos da área urbana. (s./l.),1974. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 4 Revista História - 24 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. regional, que passou inclusive a cultivar novos hábitos de convívio social, tais como bailes, apresentação dos artistas mais populares da época e o consumo de produtos até então pouco usuais na região1”. Esta influência na cultura regional, com novos hábitos é uma forma sutil de destacar que a população regional supostamente “não tinha cultura”, e que graças ao intermédio da CESP, a região conhecera um auto padrão cultural, como destaca outro trecho, “artistas populares da época que dificilmente se deslocavam para pequenas cidades do interior, apresentaram-se nos clubes da cidade. Elis Regina, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, Toquinho e Vinicius de Moraes2”. A análise destes trechos permite evidenciar uma defesa ao padrão cultural, que fora instituído na cidade, ligado a MPB (Música Popular Brasileira), fato que também pode ser constato com a criação do festival nacional de MPB de Ilha Solteira3 na década de 1970. A respeito do trechos acima uma indagação se faz necessária. A quem interessava a realização de festivais nacionais e a ida de artistas renomados da MPB para Ilha Solteira? Os trabalhadores de níveis mais baixos - de origem regional - ou aos CESP, Ilha Solteira: A cidade e a usina. Fascículos da História da Energia Elétrica em São Paulo, São Paulo, 1988. 2 Idem, p. 33 3 Sobre os festivais Nacionais de Musica Popular de Ilha Solteira, pode se ler melhor em SILVA, Patrícia Garcia da. Representação do Brasil no Festival Nacional de MPB de Ilha Solteira: 1997 a 2004. Monografia (Licenciatura em História) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas – MS, 2004. 1 funcionários de auto nível – originários dos grandes centros? Não parece que estes shows eram realizados para agradar os funcionários dos níveis mais baixos, até porque estes não tinham “voz” para escolher. O que parece é que uma minoria privilegiada, funcionários de alto escalão da CESP, intermediava estes eventos, e tentando instaurar um novo “padrão cultural regional”, e atribuir a este padrão como típico da região, que de certa forma é um modo de normalizar as identidades culturais, processo este que “significa eleger – arbitrariamente – uma identidade especifica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas4”. Isto demonstra, que as estas relações de poder em Ilha Solteira, vão além da lógica puramente disciplinar, pois estão inseridos muitos elementos biopoliticos na prática governamental da CESP. Esta preocupação com a gestão da vida, difere de uma sociedade estritamente disciplinar, sendo que o modelo de administração lembra o de uma sociedade de controle. Gilles Deleuze5 aborda que mecanismos de poder calcados apenas na disciplina, seguem a lógica da fábrica, na qual o trabalhador é um produtor inconstante de força de trabalho, submetido a um trabalho exaustivo, em troca de um pequeno SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.73-10.(p. 83) 5 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 1992. salário. Já nas sociedades de controle, este modelo da fábrica é substituído pela empresa, que se vale de táticas como prêmios para estimular a concorrência entre os trabalhadores, em vez do salário homogêneo como acontecia numa fábrica, passa-se a estimular “uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo6”, atribuindo assim o princípio do salário por mérito. Neste sentido “o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não supliciá-lo, multilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo7”. As relações de poder também passam por modalidades instrumentais, são estas que fazem com que o poder, permita a manutenção de uma dada situação. No caso de Ilha Solteira, levantamentos estáticos realizados de forma sistemática, tinham por finalidade mapear todos os aspectos da vida dos funcionários da empresa, por meio de extensos questionários que interrogavam sobre saúde, educação, lazer, habitação e etc. Com base nos dados fornecidos por estas pesquisas, era possível ter uma melhor gestão da população, evitando assim que estes, interferissem no andamento da obra. 4 Idem, p. 221-3 MACHADO, Roberto. Introdução: Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. op. cit., p. XVI 6 7 Revista História - 25 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Cabe destacar que este modelo de classificação desenvolvido pela CELUSA, e que depois foi mantido, quando a empresa foi incorporada pela CESP, que foi utilizado na distribuição espacial das casas e dos clubes, favoreceu o aparato de vigilância dos perturbadores da ordem, como revela o relatório anual de 19701, que destaca que nos primeiros 5 anos já haviam sido catálogados cerca de mil desordeiros. O serviço de vigilância e catalogação dos perturbadores da ordem era feito pela AEIS (Administração Especial de Ilha Solteira), entidade que estava sob a tutela da CESP. Desta forma, qualquer constrangimento causado por um funcionário mesmo fora de seu expediente, poderia ser utilizado pela empresa, para mapear os que precisavam ser demitidos, que não foram poucos, nos anos que seguiram a construção da usina. Segundo dados da própria CESP a população de Ilha Solteira, no início de 1972, era de 32.111 habitantes. No final do ano seguinte a população tinha sido reduzida a 25.949, e no final de 1977 a população havia se reduzido a 22.752. Estas, drástica redução de quase 10 mil habitantes em pouco mais de cinco anos, se dá em decorrência do término da construção da usina2. CESP. Relatório anual de atividades de 1970. (s./l.), [1971?]. Documento encontra-se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. 2 CESP. A cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco primeiros anos da área urbana. (s./l.),1974. Documento encontra-se na caixa arquivo 1 nº135 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. O sistema de dispensa do pessoal que mora em Ilha Solteira tende ainda mais a agravar os problemas acima citados: Aos dispensados não se dá aviso prévio, paga-se somente o mês de aviso prévio. Uma vez dispensado, o chefe de família tem praticamente o prazo de uma semana para deixar a casa, tirar os filhos da escola, providenciar a mudança (para onde?) e encontrar um novo emprego, inexistente na região, encontrar uma nova casa, uma nova escola para os filhos. Para a maioria dentre eles, que veio da zona rural, o retorno à terra é impossível3. Isto porque em função do processo de construção das usinas de Jupiá em (Três Lagoas-MS) e de Ilha Solteira, segundo o levantamento, houve um Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. INTTITUTO PAULISTA DE PROMOÇAO HUMANA: Pesquisa sócio – econômica: Ilha Solteira e região de Urubupunga. Lins-SP. 1983. p.04. 3 Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. processo de urbanização da regional, que modificou a “estrutura fundiária da região em Pereira Barreto, as 3.039 propriedades rurais de 1960, tornaram-se somente 976, isto é, menos 2.063, em 10 anos e em virtude da transformação das terras, e em virtude da transformação das terras4”. A população dispensada das obras da usina de Ilha Solteira, geralmente eram os trabalhadores de nível profissional mais baixo, em sua maioria constituída por pessoas originarias de um raio de 100 km. Em função desta transformação na estrutura fundiária, retornar ao campo era praticamente impossível, a saída era dirigir a região da grande São Paulo5 e agravar ainda mais o problema do desemprego na capital do estado. Este sistema de correlação entre AEIS, órgão responsável pela gestão do perímetro urbano de Ilha Solteira, e a CESP encarregada da construção da usina, demonstra uma outra modalidade, pela qual passa uma relação de poder, as formas de institucionalização que legitimam e garantem a manutenção de uma dada situação, no caso em questão a inexistência de uma prefeitura municipal, permitiu a empresa responsável pela usina, o pleno Idem, p.3 Esta informação são apontadas num levantamento feito pelo I.P.P.H, sob encomenda da CESP. Cf. Instituto Paulista de Promoção Humana: Pesquisa sócio – econômica: Ilha Solteira e região de Urubupunga. LinsSP. 1983. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo 4 5 de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. Revista História - 26 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. direito sobre o perímetro urbano e intervenção na vida de seus mais de 30 mil habitantes no auge da edificação, era de responsabilidade da AEIS, além do serviço de segurança pública, saúde, educação e até mesmo coleta de lixo. O quinto e último ponto estabelecido por Foucault, para análise de uma relação de poder, trata dos graus de racionalização, empreendidos numa dada situação, afim de garantir eficácia dos instrumentos e a certeza de resultado. As outras quatro formas de atuação do poder, expostas anteriormente demonstram claramente a forma racional, com que a CESP lidou com os mecanismos de biopoder, aliando ação disciplinadora e de vigilância, com práticas de gestão da vida, por meio de uma estrutura hospitalar e escolar, até o então momento não muito acessível na região. Cabe destacar, que a eficácia da utilização destes mecanismos de biopoder pela CESP, durante a edificação de Ilha Solteira, trouxe resultados extremamente positivos para empresa, uma vez que o prazo estimado para a conclusão das obras da usina era de 10 anos, e fora concluída dois anos. Se neste período a tática fora um sucesso para empresa, nas décadas seguintes, com a emancipação do município, pouco a pouco todo este aparato de controle entraria em ruínas, e os trabalhadores começariam a questionar este sistema de controle, como pode ser observado neste documento do início da década de 1990, da (Comissão Pró Manutenção de Empregos): “hoje em nossa cidade mais de 06 ônibus percorrem tanto a Av. Brasil quanto os passeios no recolher funcionários que poderiam se deslocar até a Av. Brasil minimizando custos e tempo. Como são servidos os setores das Oficinas, Laboratórios, Almoxarifado, zoológico e viveiro, envolvendo um nº bastante significativo de pessoas que moram a margem da Av. Central se é possível prever uma redução imediata de pelo menos 50% das atuais despesas com os ônibus que deixariam de traçar pelos passeios. Por outro lado, caso a CESP resolva, educativamente, investir no fim da discriminação, ela poderá eliminar os ônibus que transportam funcionários de alto nível, que parecem não estar dispostos a reduzir custos e despesas além de não querem se solidarizar com outros colegas de trabalho. Talvez, somente com o ato de eliminação da discriminação a Cia ganhe mais de 20% do que hoje esta faltando: dinheiro.1 Além deste processo de descontentamento dos trabalhadores, em resposta a herança da forte estratificação social, deste sistema de classificação sócio-profissional. Alguns jovens nos próximos anos questionariam toda e qualquer forma de hierarquização da sociedade, gritando “se nós aceitarmos as suas leis, vamos se tornar como vocês, vá se ferrar com suas leis, estamos cansados queremos violar2”. Processo que Gilles Deleuze, chamaria de explosão dos guetos3, mas está já é outra estranha coincidência4, que as fontes impõem ao COMISSÃO PRÓ-MANUTENÇÃO DE EMPREGOS: Carta á presidência da empresa. Ilha Solteira –SP [1990-3?]. Documento encontra-se na 1 caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. Extraído da música: GAROTOS PODRES. Rock de Sub Extraído da música: CÓLERA. Violar suas leis. Interprete: Cólera. In: Cólera 20 anos ao vivo. São Paulo, faixa 02, 1 CD, 2002. . 3 DELEUZE, Gilles, op. cit., 224 4 Esta outra coincidência refere-se ao fanzine confeccionado a partir de 1994 em Ilha Solteira, por um grupo punk. Sob o título de Gueto Zine, em que estes jovens expunham nas páginas do fanzine, temas como à repressão e cotidiano juvenil, em Ilha Solteira na década de 1990. A consolidação do movimento punk em Ilha Solteira -SP é estuda na pesquisa de mestrado em desenvolvimento pelo Programa de PósGraudaçao em História da Universidade Federal de Mato Grosso. Com título provisório de (O Punk do Interior: um estudo da construção de uma identidade em Ilha Solteira -SP) 2 Revista História - 27 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. historiador e assim de coincidência em coincidência, se faz à história. administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. FONTES COMISSÃO PRÓ-MANUTENÇÃO DE EMPREGOS: Carta á presidência da empresa. Ilha Solteira –SP [1990-3?]. Documento encontra-se na caixa arquivo Livro CESP, Ilha Solteira: A cidade e a usina. Fascículos da História da Energia Elétrica em São Paulo, São Paulo, 1988. Documentos CESP. A cidade de Ilha Solteira: relatório dos cinco primeiros anos da área urbana. (s./l.),1974. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. CESP. Relatório anual de atividades de 1970. (s./l.), [1971?]. Documento encontra-se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. CESP. Relatório anual de atividades de 1983. (s./l.), [1984?]. Documento encontra-se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. INTTITUTO PAULISTA DE PROMOÇAO HUMANA: Pesquisa sócio – econômica: Ilha Solteira e região de Urubupunga. Lins-SP. 1983. Documento encontra-se na caixa arquivo nº135 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. PLANO gestor de construção do complexo urbano de Ilha Solteira. (s./l.), [1965-7?]. Documento encontra- se na caixa arquivo nº136 do Núcleo de Documentação Histórica da UFMS – Três Lagoas. Referente aos relatórios administrativos, da administração especial de Ilha Solteira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: editora 34, 1992. FOUCAULT, Michel. Micro-física do Poder. Tradução Roberto Machado. Edições Graal: Rio de Janeiro. 23 ed., 2007 _________. O Sujeito e o Poder. In: DREYFUS, Hubert. E RABINOW, Paul. Michel Foucault – Uma Trajetória Filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p.231-49. HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. Globo: Rio de Janeiro. 12 ed., 1984 LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do Capitalismo: A política no Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. PELBART, Peter Pal. A vida capital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. SILVA, Patrícia Garcia da. Representação do Brasil no Festival Nacional de MPB de Ilha Solteira: 1997 a 2004. Monografia (Licenciatura em História) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas – MS, 2004. SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p.73-10. Revista História - 28 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. A DETERIORIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA E A CRISE DA CULTURA PÚBLICA. Luiza das Neves Gomes Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGH/UERJ. Resumo O ensaio proposto tem como objetivo elucidar criticamente os elementos constitutivos da relação entre o espaço público e privado, visando dar subsídios para pensarmos alguns problemas e tensões presentes no cotidiano da sociedade urbana contemporânea. Vamos destacar a partir das transformações vinculadas aos processos de mudança estrutural da esfera pública, ao alargamento do espaço privado sob os imperativos do mercado, à institucionalização acadêmica e o avanço dos poderes midiáticos, os novos dilemas e desafios colocados à cultura pública dos dias atuais. Palavras-chave: esfera pública, cultura pública, espaço público e privado Abstract The proposed test aims to elucidate the critical elements of the relationship between public and private space in order to provide subsidies to think some problems and tensions in the daily life of contemporary urban society. We will highlight the transformations linked to processes of structural change in the public sphere, the extension of private space under the imperatives of the market, and the advancement of academic institutionalization media powers, new dilemmas and challenges facing the public culture of today. Keywords: public sphere, public culture, public and private space *** A necessidade de distinguir o público do privado, passa pelas mudanças que os espaços públicos estão sofrendo, resultado das alterações nas formas de consumo, onde estão necessariamente implícitos os centros comerciais que de algum modo se prendem com a privatização. O que cabe analisar é como as políticas urbanas de intervenção vão influenciar nas mudanças estruturais da dimensão social do espaço público e também do que chamamos de cultura pública. Novos tipos de espaços semiprivados ou semi-públicos aparecem como o cenário por excelência da vida urbana familiar e profissional: shopping, espaços de lazer de condomínios privados, casa de recepções, etc. Isso significa a privatização da vida pública? Ou a publicização da vida privada? O debate sobre a questão do espaço público vem sendo discutida por especialistas de diversas áreas, desde os anos 60. Dada a variedade de sentidos expressa nos diferentes significados atribuídos à idéia de “público” e seus efeitos, procuraremos nos fundamentar em alguns autores que desenvolveram trabalhos que se tornaram clássicos na filosofia política, na sociologia e na história sobre o tratamento da questão, dentre eles, Richard Sennett e Jürgen Habermas e Russell Jacoby. É bom deixar claro também que, embora o nosso alvo seja uma reflexão sobre as atuais transformações daquilo que convencionamos chamar de “espaço público” – na arquitetura, no urbanismo, no planejamento urbano, na geografia e em alguns campos da sociologia – nenhum desses autores mencionados a cima define explicitamente espaço público ou propõe uma teoria sobre o mesmo. As expressões mais correntes utilizadas, e por vezes tomadas como sinônimas de espaço público, são a de “esfera pública” e de “domínio público”. Para definir o que vem a ser uma esfera pública vamos nos basear na obra de Habermas, A Mudança estrutural da Esfera Pública, no qual faz uma apreciação histórico-filosófica da transformação da esfera pública e da política na era moderna. Este autor ao buscar a definição de esfera pública faz uma conceituação do que vem a ser “público” e coloca: “Chamamos de ‘públicos’ certos eventos quando eles, em contraposição às sociedades, são acessíveis a qualquer um – assim como falamos de locais públicos ou de casas públicas1”. Portanto, quando nos referimos a qualquer termo como ele sendo público, HABERMAS, J. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1984.p.14 1 Revista História - 29 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. significa que tal termo, que pode ser uma praça, um café ou um jornal. Quanto ao termo “esfera pública", muitas vezes ele aparece simplesmente como a esfera da opinião púbica, em contraposição ao poder público. Segundo Habermas de acordo com algumas situações, inclui-se entre os órgãos de esfera pública os órgãos estatais ou as mídias que, com a imprensa, servem para que o público se comunique.1 A obra de Habermas será de grande importância para demonstrar como se construiu passo a passo o modelo de esfera pública, a partir da formação e desenvolvimento do Estado Moderno burguês. O autor percorre o processo histórico que possibilitou o aparecimento de uma esfera pública, cujos primórdios identificavam-se como um espaço selecionado e de livre discussão. Na Antiguidade e na Pré-Modernidade, era fundamental atuar na esfera pública o que significava “status”, reconhecimento e utilidade. Onde apenas as questões de interesse coletivo para o bem de todo um povo eram de interesse público e onde a vida pessoal de cada um estava remetida para casa, para a família, enfim para a esfera privada. O que percebemos é que houve uma inversão do conceito de vida ativa conforme avança a Modernidade. Já no século XVI, com o surgimento do capitalismo mercantil, surge uma nova esfera pública 1 Idem, p.15 na Europa. Segundo Habermas, a esfera pública moderna está ancorada ao surgimento da sociedade burguesa, do desenvolvimento do modo de produção capitalista industrial, e da superação de sua fase mercantilista. É no Estado moderno que surge uma nova “casta” social que se amolda em torno desse mercado capitalista: a sociedade burguesa. É nesse momento que vai se construindo nitidamente uma esfera pública separada de uma esfera privada, como nos colocou Habermas.2 O fortalecimento da burguesia e o desenvolvimento das cidades foram assegurados por novas instituições, que assumiram na Europa, do século XVIII, funções sociais semelhantes: formaramse lugares como os cafés e salões, considerados centros de uma crítica, na qual objetivavam a efetivação de uma espécie de parceria entre os homens da sociedade aristocrática e os da intelectualidade burguesa. A esfera pública burguesa, originalmente uma esfera literária, constituída por um público leitor que discutia arte e literatura. Ampliaram-se, assim, no âmbito da esfera pública burguesa, os debates de interesse geral – igualdade, liberdade, publicidade, arte, ciência, filosofia, moral, direito e política. Na esfera pública as pessoas podiam discutir, avaliar e 2 Idem, p.48 analisar suas idéias sem se comprometerem com as instituições políticas. Segundo Habermas, grupos seletos de pessoas encontravam-se nos salões e cafés da Inglaterra, Alemanha e França por volta do século XVII para conversar, trocar idéias e discutir assuntos diversos. Tais debates aconteciam na cidade, centro da atividade econômica e cultural, em lugares considerados focos de agitação no final do século XVII e início do século XIX. Ainda que seja formada por um público privado, e em lugares restritos, a esfera pública não se reduz ao interesse de classe, pois pressupõe a idéia de acesso livre e universal ao espaço público. Pode-se dizer que a função deste espaço era permitir ao indivíduo a expressão de sua capacidade racional diante do grande público letrado e, assim fazer o uso público da razão. Desta forma, estabeleceu-se a esfera pública, mais reconhecidamente, uma esfera pública política. Porém, quando finalmente a burguesia conquista o poder político, já não há mais o interesse em formar uma opinião pública orientada pela a racionalidade, mas sim, voltada para os ideais consumistas. Os meios de comunicação não mais eram portadores de artigos que faziam com que a população entendesse sua própria realidade, mas sim, um alvo a ser atingido pelo mercado. Foi este momento que Habermas caracterizou como a decadência da esfera pública burguesa e da Revista História - 30 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. conseqüente refeudalização da esfera pública, remetendo a momentos anteriores ao crescimento da burguesia, a época feudal caracterizada pela esfera pública representativa, na qual a nobreza delimitava o que era interessante ser publicizado. Assim, Habermas afirma que a partir do advento do capitalismo do estado de bem estar social ocorreu novamente uma transformações na esfera pública burguesa a partir de mudanças estruturais presentes, principalmente nos meios de comunicação de massa e no papel regulador do Estado. Com o capitalismo, as leis de mercado passam a penetrar a esfera reservada às pessoas privadas enquanto público, divulgando informações sob a ótica de seus interesses. Com isso, o pensamento crítico cede lugar ao discurso sedutor do mercado. Sob essa lógica, há nitidamente a diluição das fronteiras entre as esferas públicas e privadas. Neste sentido, o Estado encetou um papel mais presente no domínio do privado, apagando-se assim a diferença entre Estado e sociedade civil, entre esfera pública e esfera privada. Quando a esfera pública entrou em declínio, os cidadãos transformaram-se em consumidores, dedicando-se eles próprios mais ao consumo passivo e aos assuntos privados do que aos assuntos do bem comum e da participação democrática. Enquanto que na esfera pública burguesa, a opinião pública era formada através do debate político e do consenso, na degradada esfera pública do “estado de bem-estar” capitalista, a opinião pública é administrada pelas elites políticas e econômicas.1 Manipulada pelas mídias, encontra-se hoje reduzida a pouco mais do que parte integrante do sistema de controle e domínio social. A opinião pública, formada no debate político, esfuma-se no estádio contemporâneo do capitalismo, sendo agora formada pelas elites dominantes, em prol dos seus interesses particulares. Em síntese a degeneração da esfera pública para Habermas deve-se, fundamentalmente, de um lado, à crescente intromissão do Estado na regulação da vida social e, por outro lado, ao crescimento da influência dos meios de comunicação de massa, que teriam desvirtuado o processo de formação da opinião pública e conseqüentemente da cultura pública. Outro autor que também faz uma crítica a sociedade contemporânea e o declínio da esfera pública é o Richard Sennett na obra O Declínio do Homem Público. Porém, diferentemente de Habermans, Sennet acusa o esvaziamento da esfera pública baseada na hipervalorização da intimidade, da privacidade, do retraimento e do silêncio. Este autor afirma que tudo isso não começou no século XX, como se pensa, mas surgiu a partir de uma série de mudanças ocorridas nas sociedades dos séculos XVIII e XIX. 1 Idem.p68 Para dar apoio para sua crítica à modernidade, Sennett recorre ao período do Antigo Regime, momento no qual se encontra uma sociedade que construiu relações em que a vida privada e a vida pública estavam claramente definidas e equilibradas. À medida que chega ao fim o Império de Augusto os romanos passaram a tratar a vida pública como obrigação, justamente como é na idade moderna. Ou seja, o espaço público romano ganhou outro significado, pois já não é mais o espaço da discussão sobre a vida em comum, mas uma questão de obrigação formal. Sennett, relaciona a platéia dos teatros da época do Antigo Regime com a forma das pessoas agirem nos demais espaços públicos. Teatro e platéia se refletiam ao criarem um mundo em que as pessoas poderiam ser estranhas umas as outras e poderiam conviver com essa diversidade. Para o autor, isso favorecia o enriquecimento das relações públicas facilitando o desenvolvimento de uma política propriamente pública, reforçando, assim, os laços sociais e as interações interpessoais. Porém, a vida pública espetacularizada, corresponde à apatia na idade contemporânea. As cerimônias públicas, as necessidades militares do imperialismo, os contatos rituais com outros romanos fora do círculo familiar tornaram-se deveres em que o romano participava com espírito cada vez mais passivo, conformando-se às regras da Revista História - 31 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. res publica e investindo cada vez menos paixão em seus em seus atos de conformidade. 1 Sennett, assim como Habermas, aponta que os fatores históricos que caracterizaram esses novos parâmetros entre vida pública e vida privada estão na emergência do capitalismo industrial, à decadência do Antigo Regime, e a conseqüente relação que a burguesia veio a ter com a vida pública nas grandes cidades, como espaços privilegiados de sua afirmação econômica, social e política como classe. Para Sennett, a vida pública e o homem público estariam hoje em franco declínio, cedendo cada vez mais lugar para uma supremacia do privado. Este autor descreve as modificações das relações no espaço público como um crescente esvaziamento de sentido do mesmo, através de um paradoxo do isolamento em meio à visibilidade que se reflete inclusive nas configurações urbanas e nas edificações das principais cidades do século XIX. Esse fenômeno pode ser entendido, pois na medida em que todos se vigiam, em que há um interesse pela intimidade como revelação da identidade, diminui a sociabilidade, e o silêncio passa a ser a única forma de proteção. O desenvolvimento das cidades e o constante aumento de “estranhos” favoreceu um sentimento de temor entre as pessoas desconhecidas, que procuravam, então, passar despercebidas umas das SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p15. 1 outras como uma forma de se autoprotegerem. Esses fatores contribuíram para que as pessoas se voltassem para dentro de si mesmas, abrigando-se no refúgio da intimidade. Daí a necessidade das pessoas de terem um local específico, em público, para se reunirem e ao mesmo tempo manterem certa distância da observação íntima dos outros, para se socializarem e para sentirem-se em grupo. Assim, os projetos arquitetônicos dos séculos XIX e XX são cada vez mais voltados para o refúgio na intimidade. Porém, ao mesmo tempo em que se constroem espaços privados amplos e protegidos do burburinho das ruas, estes são apenas áreas de passagem, não de permanência e convivência. O espaço público morre, torna-se somente uma derivação do movimento e as ruas se transformam para permitir a livre movimentação. Nesse sentido, o espaço público perde sua função pública ou de reconhecimento público na sociedade e torna-se sem sentido e impessoal. Assim, a verdadeira função da cidade como local de encontro e sociabilidade entre estranhos é descartada nos centros urbanos. Para Sennett: “A cidade deveria ser [...] o fórum no qual se torna significativo unir-se a outras pessoas sem a compulsão de conhecê-las enquanto pessoas. Não creio que esse sonho seja inútil; a cidade surgiu como foco para vida social ativa, para o conflito e o jogo de interesses, para a experiência das possibilidades humanas, durante a maior parte da história do homem civilizado. Mas hoje em dia essa possibilidade civilizada está adormecida.”2 Para analisar melhor essa transformação do espaço público e suas conseqüências para o homem público no século XX, vamos nos debruçar na obra Os últimos intelectuaisde Russell Jacoby. Para este autor, a era industrial destruiu ou diminuiu consideravelmente a importância dos antigos centros (como as praças) transformando os espaços urbanos que agora vão ser construídos para atender o mercado com objetivo de dinamizar a circulação3. Esses espaços, por sua vez, se tornam ameaçados frente ao novo modelo de urbanização inspirados nos subúrbios e nas auto-estradas, que desfiguram o tecido urbano e remetem os moradores para longe dos centros urbanos. 2 3 Idem, p.414 JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: A cultura americana na era da academia. Tradutora: Magda Lopes. São Paulo: Trajetória/Edusp, 1990 Revista História - 32 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Diz Russell Jacoby que um dos erros fatais na sociedade contemporânea para o fim do espaço público foi sacrificar todo o transporte coletivo em prol do automóvel particular. Ele previu um futuro em que a cidade seria um “vazio mecanizado”, uma “massa confusa de vias expressas, viadutos e pátios de estacionamento”. Para o autor, tudo isso contribui para a deteriorização da esfera pública no que tange as possibilidades de interação social. Na nossa realidade, mas especificamente na Barra da Tijuca, encontramos vários complexos arquitetônicos que são planejados como ambientes inteiramente voltados para o interior, as paredes externas são vazias e sem janelas, mostrando para rua uma face quase maciça de concreto e tijolo. Para os pedestres eles são pouco convidativos, até impenetráveis, com entradas e estacionamentos subterrâneos, atraindo somente automóveis. Sennett ao analisar a realidade dos centros financeiros em Nova York também aponta a existência de “espaços públicos mortos”, por estarem sujeitos à lógica do fluxo e da circulação. Para Sennett as empresas criam certos espaços que aparentam ser de uso público, mas destinam-se, sobretudo, para serem vistos, e não utilizados, através dos artifícios arquitetônicos. Para exemplificar essa questão Sennett aponta que o prédio da Lever House, em Park Avenue, possui uma praça ao ar livre no andar térreo, que serve de passagem para a rua , constituindo um espaço morto já que: “...uma praça pública em miniatura é formalmente declarada, mas a função destrói a natureza de uma praça pública, que é a de mesclar pessoas e diversificar atividades.”1 Como podemos perceber os logradouros públicos (avenidas, ruas, praças, parques e jardins) têm se tornado, muitas vezes, simples lugares do consumo e/ou de passagem. Toda essa deteriorização da esfera pública constituiu também uma crise da cultura pública como afirma Jacoby e como já vimos com Sennett e Habermas. Em seu livro “Os últimos intelectuais”, Jacoby, ao analisar as novas gerações de intelectuais norte-americanos aponta a escassez ou até mesmo a inexistência de uma “cultura pública” após a segunda guerra, em função da reestruturação urbana que criou a vida segregada dos grandes subúrbios, das transformações havidas no campo acadêmico e na própria lógica do mercado presente em boa parcela da produção dos trabalhos. De uma maneira simplificada este autor afirma que o desaparecimento dos intelectuais ocorreu devido a três fatores: a reestruturação das cidades, o desaparecimento da boemia e a expansão das universidades. Para ele a cultura pública perdeu sua força quando os intelectuais autônomos se transferiram para da vida boêmia das cidades para as universidades e afirma que “com poucas restrições, no fim da década de 1950,os intelectuais americanos escaparam das cidades para os campi, dos cafés para a cafeteria.” 2 Jacoby asssinala que até esse período “ser intelectual antes de mais nada, era mudar para Nova York ou Chicago, e escrever livros e artigos.”3Os intelectuais clássicos americanos tinham grande audiência, pois se dirigiam ao grande público com muita facilidade sem a linguagem rebuscada tão comum nos textos acadêmicos. A essa cultura pública Jacoby denominou “inteligência urbana” em função de sua riqueza estar intimamente relacionada ao tipo de vida que só os centros urbanos propiciam. Em suas palavras: “a vida cultural compõem-se das atividades de intelectuais que não se limitam simplesmente a escrever ou pensar ou pintar, mas que vivem e trabalham em ambientes específicos4”. Jacoby afirma que a saída dessa intelectualidade dos espaços urbanos terá como conseqüência a perca de sua qualidade nos ambientes estéreis dos campus universitários, ao passo que a inteligência crítica era fertilizadas nos ambientes urbanos que continham diversidade, em especial nos recantos boêmios criativos que proliferam em meios urbanos precários, com ruas movimentadas, restaurantes baratos e aluguéis razoáveis. Dessa forma, a partir da década de 50 o “intelectual se tornou mais solidamente classe média, um homem da JACOBY. Op.cit.p.27 Idem, p.29 4 Idem, p.34 2 3 1 SENNET,op.cit. p.26 Revista História - 33 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. escrivaninha, casado, com filhos, vivendo em um subúrbio respeitável.”1 Jacoby entende em seu livro que a necessidade da sobrevivência dos intelectuais, a garantia de uma aposentadoria, a certeza das férias prolongadas atraíram jovens e aqueles que, por motivos os mais díspares, buscavam a segurança. O número cada vez menor de grandes pensadores e a crescente proeminência das universidades estão relacionados entre si. A ausência de intelectuais plurivalentes significa a formação de especialistas que refletem somente as questões das universidades deixando de lado as necessidades do público. A institucionalização acadêmica está diretamente relacionada à especialização cada vez maior dos intelectuais em decorrência das exigências do mercado o que contribuiu de maneira decisiva para o afastamento dos intelectuais da esfera pública. O resultado, segundo Jacoby, é que a esquerda não produziu uma geração de pensadores interessados nas políticas públicas e abandonou o mundo das idéias. Jacoby diz que o intelectual de hoje para obter seu brilhantismo precisa ter contatos e conexões com universidades e pessoas respeitáveis e não mais dar contribuições públicas. O alargamento do espaço privado sob os imperativos do mercado tem levado o 1 Idem, p.130 intelectual a afastar-se cada vez mais da esfera pública. “Os intelectuais mais jovens não mais necessitam ou desejam, um público amplo; eles são exclusivamente professores; os campi são seu lares, os colegas sua audiências; as monografias e os jornais especializados, seu meio de comunicação"2. A profissionalização da vida intelectual nos limites do campus universitário conduziria à privatização ou à despolitização, à transferência da energia intelectual de um domínio mais amplo para uma disciplina mais restrita, em que as pressões da carreira e da publicação intensificariam a fragmentação do conhecimento. Assim, entrincheirados nas universidades, não importa quanto estes intelectuais produzissem: para o grande público, eles se tornaram invisíveis. Por optarem pela segurança de uma carreira eles mantêm uma relação de dependência com as instituições que os sustentam e escrevem somente para seus pares. Esse processo intensificou ainda mais o declínio do intelectual público e também do espaço público que estes se comunicavam. 2 Idem, p.98 O espaço jornalístico para os intelectuais se restringiu constantemente, em contraste com a expansão das universidades. Predominou na imprensa o esforço intenso de atrair leitores através de uma cobertura "leve" e "cotidiana". Até mesmo na esfera intelectual os temas discutidos refletem cautela com os assuntos abordados. Jacoby diz que os cientistas políticos parecem de modo sistemático ignorar os problemas mais urgentes, numa época de grandes agitações políticas com a guerra do Vietnã e da Guerra Fria. Este autor constatou, por exemplo, que nos dez anos situados entre 1959 e 1969, as três principais publicações de ciência política editaram apenas um artigo sobre o Vietnã, de um total de 924 trabalhos3. Nesse mesmo período, o principal órgão acadêmico publicou um único estudo sobre a pobreza e três sobre crises urbanas. Nota-se que o jovem, ao entrar na carreira universitária, mostra-se prudente e distancia-se de textos polêmicos, visando à estabilidade. De acordo com Habermas, com o crescimento da sociedade midiática ocorre uma nova mudança estrutural da esfera pública, que provoca transformações fundamentais na figura clássica do intelectual. É preciso que se relacione essa crise com o crescimento da cultura da mídia, que contribuiu para o surgimento de novos “líderes de opinião”. Cada especialista é chamado para falar sobre o nicho que 3 Idem, p.101 Revista História - 34 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. lhe apetece e os intelectuais passam a atuar apenas no interior de determinadas redes, que requerem somente aquele conhecimento específico. Assim, a sociedade midiática opera no sentido de uniformizar o tempo da produção do conhecimento, o que acaba por restringir e limitar a capacidade de reflexão por parte da intelectualidade. Tornou-se impossível sobreviver com as críticas de livros, o telefone suplantou as cartas, os cafés foram substituídos pelas conferências e assim declinou a vida boêmia sob a pressão das universidades. A decadência das grandes cidades e das universidade, a expansão da televisão como forma de lazer e a diminuição do número de jornais reduziu o papel dos meios impressos como espaço público para o debate político e cultural. Para Habermas o jornalismo crítico, partidário e político é substituído pelo manipulativo, consumista e mercadológico. Neste ensaio vimos que a dicotomia entre espaço público e espaço privado se transformou no transcurso histórico, sendo que, na contemporaneidade, verifica-se um estreitamento do seu significado. Na atualidade, público e privado tendem a se confundir de modo crescente ao mesmo tempo em que os significados e anseios comuns compartilhados pelos membros da sociedade são cada vez mais esquecidos. Ao analisarmos as mudanças que ocorreram entre as esferas da vida pública e da vida privada vimos em que medida o esvaziamento de uma vida pública traz problemas ao homem moderno e contribui para mudanças significativas no meio urbano e no meio cultural. A partir de tudo isso podemos observar que, atualmente, o próprio desenho urbano das cidades como se inscreveu fez com que se instaurasse uma erosão da dimensão pública. As modificações na esfera pública e na própria política levam à extinção da racionalidade, do pensamento crítico e contestador em relação às ações políticas. Encerramos este ensaio com o seguinte trecho do texto de Habermas que apesar de publicado em 1984 define bem os dias atuais: “De modo geral, o que se encontra nos espaços deliberativos, sejam virtuais ou não, é uma pseudoracionalidade instrumental baseada num pensamento mercadológico, controlado pelo marketing político. O próprio espaço deliberativo transfigurou-se em apolítico. Há nele um público de cidadãos, desintegrado enquanto público, e “[...] de tal maneira mediatizado por meios publicitários que, por um lado, pode ser chamado a legitimar acordos políticos sem que, por outro lado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas ou até mesmo de participar” 1 Bibliografia: 1 HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984 JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: A cultura americana na era da academia. Tradutora: Magda Lopes. São Paulo: Trajetória/Edusp, 1990 SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 . HABERMAS, op.cit. p. 258 Revista História - 35 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. CONTROLADOS E CONTROLADORES: QUANDO PRESOS SE TRANSFORMAM EM JORNALISTAS Flora Daemon Mestre e Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Resumo Este artigo investiga gestos de criação de uma experiência jornalística no cárcere. Será cenário do estudo o presídio Evaristo de Moraes, maior unidade penal do estado do Rio de Janeiro no que se refere à quantidade de internos. A idéia é observar a materialização dessas vozes num ambiente no qual as relações de poder invariavelmente transformam e reconfiguram tanto o dizer, quanto os gestos de apropriação midiática por sujeitos encarcerados. A partir desse olhar, pretende-se discutir em que medida a reprodução no universo intramuros do que se entende como fazer jornalístico pode significar algo além da apropriação de técnicas de redação, para se converter em uma espécie de revide ao “controle midiático” a partir das mesmas ferramentas. Abstract This paper aims to investigate the gestures of creation of a journalistic experience in prison. The study concentrates on Evaristo de Moraes, the biggest prison in the state of Rio de Janeiro in number of prisioners. The idea is to observe how the prisioners' voices can materialize themselves in a place where power relations change and recreate the way of saying something and the gestures of media appropriation by them. From this point of view, this study intents to discuss how in the confinement the reproduction of the way of making journalismcan signify something beyond the appropriation of writing technique, to become a response to the media control using the same tools. *** 1) Uma cartografia política do cárcere O presídio Evaristo de Moraes é a maior1 unidade penal do estado no que se refere à quantidade de presos e opera no regime de tranca dura: seus internos permanecem 24 horas por dia em celas, podendo sair somente durante a hora semanal de banho de sol ou quando recebem visitas. Atualmente, cerca de sessenta homens habitam as vinte e cinco celas distribuídas entre quatro galerias (A, B, C, D) de um pavilhão construído originalmente para ser um galpão da Secretaria de Transportes e Obras do Estado2. Conhecido como “‘prisão dentro da prisão” em decorrência de ser um local com mais restrições do que os demais” (Dias, 2007: 230-231), o presídio de Seguro é uma alternativa aos presos que se encontram em risco dentro do Sistema, geralmente solicitado por pessoas que cometeram Crimes Contra os Costumes, como Estupro e Atentado Violento ao Pudor, ou que estejam envolvidos em conflitos internos graves. Marques, em seu estudo sobre o Proceder3 dentro das prisões a partir da análise de uma penitenciária paulista, explica que em unidades penais mistas (que abrigam presos comuns e possuem apenas galerias e celas destinadas ao Seguro) solicitam o recurso “indivíduos que devem droga para traficantes do “convívio”, indivíduos que se envolvem em “quiaca” (briga) e não estão dispostos a matar ou morrer, enfim, indivíduos infratores de alguma regra do “proceder” que não pode ser relevada pelos demais detentos” (2006: 26). O Estado do Rio de Janeiro, nesse sentido, foi o pioneiro no estabelecimento de unidades penais específicas para internos do Seguro com destaque A esse respeito ver: VASCONCELOS, Ana Silvia Furtado. A Saúde sob Custódia: um estudo sobre agentes de Segurança Penitenciária no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado defendida na ENSP/ CESTEH – 2 Cerca de 1400 homens cumprem pena atualmente no Evaristo de Moraes. 1 FIOCRUZ, 2000. 3 De acordo com Marques, o Proceder se refere às regras produzidas pela própria população encarcerada. Revista História - 36 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. para o presídio Hélio Gomes e, em seguida, o Evaristo de Moraes. Sendo este último, atualmente, a única prisão com esse fim para homens que cumprem pena em regime fechado no estado. Situado no bairro de São Cristóvão, zona norte do Rio de Janeiro, o Evaristo de Moraes é conhecido no Sistema Penitenciário como Galpão da Quinta e, entre os internos, como “o patinho feio” das unidades penais por conta do mau estado de conservação em que se encontra sua estrutura física. No início da década, a unidade era lembrada pelas péssimas condições de salubridade e higiene, conforme descreveu Vasconcelos: “presos e guardas convivem em instalações precárias, com uma extensa população de roedores que passeiam livremente pelo interior da unidade” (2000: 53). Nessa época, o Evaristo de Moraes rotineiramente ocupava as páginas de jornais com reportagens que o apelidavam de “Central da Extorsão” em referência aos falsos seqüestros comunicados por telefones celulares. A nomeação do atual diretor do presídio acarretou em algumas mudanças estruturais. De acordo com ele, o grupo de internos que praticava o crime foi desmembrado e transferido para outras unidades, bem como agentes penitenciários que não se adequavam à nova gestão. A estratégia adotada pelo diretor se baseou na criação de uma rede de informações estruturada pela prática da delação com o intuito de controlar a unidade e torná-la, nas palavras dos internos, uma “cadeia rendida”. Não é pretensão deste estudo mapear todos os perfis dos internos que hoje habitam o Evaristo de Moraes. A proposta é elencar os principais atores que participam dessa trama cotidiana e que, para essa investigação, se apresentam determinantes. Nesta análise serão apresentados os grupos compostos por Faxinas que trabalham na unidade estudada, religiosos com predominância evangélica, os “filiados” à “facção” Povo de Israel e os Frentes de Cadeia. Ressalta-se, no entanto, que em alguns casos os referidos sujeitos podem ocupar mais de uma organização ou função no cenário prisional, conforme veremos adiante. Ainda assim, cabe registrar a relevância de outros personagens desse cenário que não serão detalhados nessa análise para que, futuramente, seja possível estabelecer um olhar mais aprofundado a respeito das relações que se travam intramuros. Este é o caso dos agentes penitenciários e professores do Colégio Estadual Anacleto de Medeiros. Aparentemente ocupantes de lugares antagônicos, esses profissionais se relacionam diariamente com os internos que desenvolvem a experiência jornalística no cárcere. Os limites cercados da escola, no entanto, estabelecem a restrição da atuação desses atores, salvo em casos de segurança da unidade. A natureza da relação entre profissionais da educação e da segurança carrega a questão de origem institucional. Concursados para atuar em secretarias diferentes e executar seus ofícios em uma unidade penal, esses atores parecem conviver numa espécie de tranqüilidade vigiada que, de um modo geral, se restringe aos comentários irônicos sobre a chamada mamãezada1. 1.1 - Os Faxinas: entre o dever e a dívida no espaço de trabalho Todos os internos que trabalham em unidades penais recebem a alcunha de faxina, independentemente das suas funções. Lotados em áreas como Divisão de Disciplina, Cozinha, Limpeza, Enfermaria, Esportes e Escola, esses presos são reconhecidamente capazes de realizar tarefas mais elaboradas do que os demais e redimem pena por meio do cálculo que estabelece que a cada três dias de trabalho, um dia de reclusão será remido, proposição que se enquadraria no que Goffman chamou de sistema de pagamentos secundários. Para compreender a complexidade do cenário em que estão inseridos estes homens, é necessário considerar a imbricação de atividades e funções de natureza distintas operacionalizadas em um mesmo ambiente. As esferas trabalho e moradia passam a ser administradas, nesse contexto, como parte integrante de um padrão único de conduta estabelecido por meio da avaliação de uma espécie de prontuário Expressão bastante utilizada na prisão para designar os gestos de preocupação excessiva dos professores com os alunos presos. Seriam considerados mimos. 1 Revista História - 37 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. extra-oficial que depende do cumprimento de quesitos diversos que, normalmente, não estariam relacionados. Goffman investiga em seu estudo sobre as instituições totais esses atravessamentos com vistas a fatores outros envolvidos na trama que materializariam o desmantelamento do fora: “qualquer que seja o incentivo dado ao trabalho, esse incentivo não terá significação estrutural que tem no mundo externo. Haverá diferentes motivos para o trabalho e diferentes atitudes com relação a ele” (2001: 21) O sociólogo complexifica o cenário explicando que “nas instituições totais, as esferas da vida são integradas de forma que a conduta do internado numa área de atividade é lançada contra ele, pela equipe dirigente, como comentário e verificação de sua conduta em outro contexto” (2001: 41) Os faxinas são considerados “a espinha dorsal da cadeia” (VARELLA, 1999: 99), pois transitam entre os olhares dos guardas e dos outros encarcerados. Ocupantes de um lugar simbólico ambíguo, essas figuras parecem ser o elo entre a comunidade carcerária e o poder oficial da prisão. A complexidade desse papel está relacionada ao desejo de obtenção de uma certa proximidade com os agentes da disciplina ou, minimamente, com a interpretação, por parte do coletivo, do que seria uma postura adequada aos “ressocializandos”: “Ao ser ‘enquadrado’, o novato admite ser conformado e codificado num objeto que pode ser colocado na máquina administrativa do estabelecimento, modelado suavemente pelas operações de rotina” (GOFFMAN, 2001: 26). É necessário ressaltar, no entanto, que essa internalização não significa adaptar-se, de forma alienada, ao referido enquadramento. Analisando as posturas que os internados utilizam nas instituições totais, o sociólogo propõe um quadro esquemático que contempla quatro possibilidades de táticas. Para o caso dos faxinas, é interessante refletir particularmente a respeito da conversão, um modo de adaptação traçado pelo autor: “O internado parece aceitar a interpretação oficial e tenta representar o papel de internado perfeito. Se o internado ‘colonizado’ constitui, na medida do possível, uma comunidade livre para si mesmo, ao usar os limitados recursos disponíveis, o convertido aceita uma tática mais disciplinada, moralista e monocromática, apresentando-se como alguém cujo entusiasmo pela instituição está sempre à disposição da equipe dirigente”. (GOFFMAN, 2001: 61) Fazer parte deste seleto quadro, no entanto, significa estar exposto à desconfiança de alguns agentes penitenciários que enxergam o faxina como mais um preso a vigiar, com autorizações que lhe garantem certos benefícios, e à estranheza de outros detentos que, diferentemente deles, não podem circular na unidade, se dirigir aos chefes de setor e remir pena. Essa proximidade com o poder oficial, no entanto, é um dos pontos de tensão entre os faxinas e o coletivo. A internalização da postura do delator, conhecido como X9, parece ser uma das principais acusações sobre a conduta desses presos trabalhadores. Aparentemente, “em contraste com esse ambiente rígido, apresenta-se um pequeno número de prêmios ou privilégios claramente definidos, obtidos em troca de obediência, em ação e espírito, à equipe dirigente” (GOFFMAN, 2001: 50). Dessa forma, a acusação de cumplicidade entre pessoas que, a princípio, são comprometidas com lados antagônicos versaria sobre a implementação de uma rede de informação a respeito da posse indevida de dinheiro, de celulares, entorpecentes, além de possíveis conflitos que poderiam se transformar em rebeliões. Por conta disso, a seleção de quais internos devem atuar como faxinas durante o cumprimento de pena parece ser um elemento importante para a Revista História - 38 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. presente análise. Particularmente interessam a essa pesquisa os faxinas da escola que, dentre outras funções, também atuam no jornal. Aparentemente, esses homens são selecionados a partir de indicações que garantam que têm o perfil necessário para desempenhar determinadas atividades. Em conseqüência desse cenário, uma nova questão se apresenta: a partir de quais características se concebe a construção de um perfil ideal para o cargo de faxina da escola? A hipótese que se oferece, resultado da observação de campo, pretende complexificar a importância do fator religioso nessa construção. A maior parte dos presos que participaram do movimento de retomada do periódico era evangélica e, não de forma coincidente, também trabalhava na escola1. Quando questionados a esse respeito, alguns deles justificaram a presença massiva dos religiosos a partir de discursos que pregavam o destino e a responsabilidade moral com a comunidade carcerária. 1.2 - Os Religiosos e o monopólio do discurso do bem É bastante comum na cadeia, sobretudo quando a unidade abriga internos que cometeram crimes violentos com grande repercussão midiática, a Dos treze internos que iniciaram o trabalho do jornal, sete estavam lotados como Faxinas. Dentre esses, dois atuavam especificamente na Liga de Esportes do Evaristo de Moraes. 1 conversão religiosa dos novos cativos. Além da garantia de proteção, se transformar em um “novo homem”, como se costuma dizer no cárcere, significa optar por um caminho estrategicamente deslocado da lógica das facções. Velho irá ressaltar que essa “a adesão vigorosa e militante a uma ordem de valores, religiosa ou não, é uma alternativa possível, dentro de uma trajetória de vida, podendo ser provisória ou definitiva”. (1999: 98). O crescimento das experiências religiosas no cárcere é objeto de estudo de Quiroga que observa especialmente a ocupação desses espaços e a conseqüente autorização para desempenho de funções, a priori, do Estado. A antropóloga parte da premissa de que essa atuação passa a ser legitimada pela sociedade na medida em que os trabalhos religiosos são estruturados em valores como a confiabilidade. De acordo com a autora, “o que se observa é uma certa aprovação (e freqüentemente, incentivo) à presença dos agentes [religiosos], por suas contribuições no apoio social aos presos e pela colaboração no próprio processo de disciplinarização, uma vez que ‘preso convertido é preso mais calmo’” (QUIROGA, 2005: 16). Aparentemente todas as unidades contam com a presença de igrejas e congregações variadas. No Evaristo de Moraes destaca-se a abrangência do trabalho da Pastoral Carcerária (Igreja Católica), da Igreja Universal do Reino de Deus, da Igreja Batista e do grupo Kardecista. Ao contrário do que geralmente se supõe a respeito do discurso dos condenados sobre a culpa, a pesquisa de campo que gerou o presente estudo permitiu observar que a maior parte dos relatos dos internos não pretende negar a acusação e a responsabilidade por seus atos criminosos. Em outras palavras, são raros os que se declaram inocentes. Nesse sentido, um dos elementos fundantes da conversão religiosa se torna parte de um processo maior que pretende, por vias próprias, a expiação do dolo. O testemunho da conversão religiosa passa a ser, nesse cenário, um importante gesto de redenção pela fé a um Deus que perdoaria aqueles que se arrependem e desviam seus caminhos em direção do bem. Ao contrário de todos processos que respaldam a permanência desses homens no sistema penitenciário, o ritual de conversão é o único que, por meio da individualização, permite uma experiência de um julgamento teoricamente superior que, ao final, a todos redime e absolve. O testemunho, necessário à conversão, pressupõe o registro oral das experiências passadas (da vida e do desvio) a partir de uma fala auto-referencial que também estará presente na construção do discurso jornalístico no cárcere, como veremos no terceiro capítulo deste estudo. Nesse sentido, propõe-se um paralelo com a percepção desenvolvida por Michel Foucault a respeito das práticas punitivas no contexto europeu do Antigo Regime na qual o gesto confessional era Revista História - 39 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. parte fundamental das cerimônias de suplício, tanto por meio da ratificação da culpa, quanto por meio da alegação da inocência que, nesse cenário, surtia o efeito de blasfêmia interpretada como dupla responsabilidade. As últimas palavras do condenado que compunham o discurso de cadafalso eram extremamente importantes à cerimônia pública que o filósofo chama de dupla ambigüidade da confissão a respeito da extorsão da verdade: “O juramento que se pede ao acusado antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e diante da de Deus; e ao mesmo tempo, ato ritual de compromisso); a tortura (violência física para arrancar uma verdade que, de qualquer maneira, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juízes, a título de confissão ‘espontânea’).(FOUCAULT, 1987: 35) Ainda assim, fazer parte do grupo dos internos religiosos nas unidades penais não parece ser simplesmente uma adesão cômoda e estratégica. Mais do que isso, esses homens necessitam seguir um código de conduta rígido monitorado constantemente por seus irmãos de crença. Os evangélicos, foco dessa etapa da pesquisa, estão proibidos de assistir televisão, principal passa-tempo entre os presos, ou ouvir músicas “mundanas”. A eles são indicadas as composições evangélicas e consumo de publicações impressas da congregação. O não cumprimento desses imperativos implica, como ressalta Quiroga (2005: 20), em penalidades rigorosas. No presídio Evaristo de Moraes, somente presos evangélicos possuem celas próprias que, entre outras coisas, garantem um convívio distanciado com internos de outras crenças ou ateus. Atualmente estes homens ocupam uma galeria inteira da unidade. Mesmo assim, é possível identificar outra distinção: entre estas celas evangélicas há, ainda, uma destinada especificamente aos faxinas adeptos da religião. Nela convive a maior parte dos internos que produzem o jornal. A vigilância entre os evangélicos conta também com outro elemento raro na unidade: luz. Ao contrário das demais celas, essas possuem iluminação1 artificial durante todo dia facilitando a leitura dos textos religiosos e, também, a observação entre os internos. Marques analisa esse controle constante e explica que “entre os habitantes da ‘cela dos evangélicos’ há aqueles que ‘se escondem atrás da De acordo com relatos dos presos evangélicos, as lâmpadas utilizadas para iluminar essas celas são compradas pelos próprios internos que habitam esses espaços. 1 bíblia’ – que são punidos quando descobertos praticando atos proibidos segundo o ‘proceder’ para os evangélicos – e aqueles que se mantêm na condição de ‘ter proceder’. (2006: 28) Ao estudar a cultura prisional, Carvalho desenvolve uma proposta de tipologia social com foco em determinados sujeitos desse espaço. A pesquisadora os divide e denomina como Intocáveis funcionais e Intocáveis disfuncionais. A última classificação parece ser adequada ao perfil dos internos evangélicos que vivem e, principalmente, atuam no jornal desenvolvido no presídio Evaristo de Moraes. Mais adiante, será possível propor uma aplicação da primeira categoria na apresentação de outra peça-chave desse cenário: os Frentes de Cadeia que, observados a partir desse olhar, se encontram integrados à “orgânica sistêmica da prisão”. De acordo com a autora, o histórico criminal de sujeitos enquadrados como intocáveis funcionais “perdura durante sua estadia na prisão, assumindo novas formas criminógenas, reformuladas e adaptadas ao caráter do espaço-tempo do sistema social de ação informal” (2003: 12). A socióloga explica que esses indivíduos tipificados como Intocáveis disfuncionais operam na lógica da auto-guetização marginalizadora e assumem “uma postura de auto-diferenciação, dentro da sociedade informal, em relação à comunidade prisional. Além disso, auto-destacam-se pela sua diferenciação relacional radical em relação aos Revista História - 40 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. sujeitos reclusos com quem estabelecem as suas relações” (2003: 10). A partir da aparente exclusão estratégica do convívio com o coletivo, esses internos parecem compor um cenário que abarca o fenômeno descrito por Segato como superioridade moral estruturada pelo monopólio do bem. Convertendo o espaço prisional em um espaço do discurso a respeito do “novo homem”, a igreja media os conflitos por meio da dogmatização do evento da morte metafórica do criminoso que, agora cristão, realiza o efeito que a pesquisadora chama de “mimese regressiva”: “é exatamente a imitação que o preso faz do discurso do ‘bem’, copiando um discurso cristão, com seus valores familiares e suas fórmulas de boas maneiras e repetindo o mesmo, ad infinitum. O que impressiona é a forma mecânica em que são aplicadas as fórmulas discursivas, sem introduzirlhes comentários alusivos à situação específica vivida pelo preso ou suas famílias” (SEGATO, 2005: 44). Ainda a respeito da referida análise, é preciso ainda ressaltar a complexidade dos sujeitos envolvidos nesse cenário sem torná-los irremediavelmente vitimas ou vilões dos discursos identitários. Esses homens, convertidos pela religião e herdeiros do jornal, são elementos fundamentais para a compreensão do espaço prisional do Evaristo de Moraes. Sua influência será analisada, mais à frente, no desenvolvimento das reportagens, disputas e embates que compõem o cotidiano da equipe de redação do periódico Em Prol da Liberdade, bem como nas redes de informação que movimentam o coletivo de internos, produtores e consumidores do “Jornal a serviço dos cativos”1. 1.3 - O Povo de Israel: uma facção invisível Ao contrário da maior parte das unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro, o presídio Evaristo de Moraes não pertence a nenhuma facção oriunda do universo extramuros. Atualmente ele é classificado pela Secretaria de Administração Penitenciária como uma instituição neutra por não abrigar internos pertencentes a nenhum grupo criminoso. A rigor, o fato do Galpão ser destinado a internos que solicitaram o Seguro ao Estado já explicaria, de antemão, a ausência desse tipo de organização entre os presos que, numa situação como essa, pretenderiam simplesmente cumprir suas penas sem transtornos ou comprometimentos significativos. A referida frase funciona como uma espécie de lema do jornal Em Prol da Liberdade é apresentada no cabeçalho do periódico. 1 Ainda assim, como se costuma dizer no espaço intramuros, não é possível passar pelo Sistema impunemente. Sobretudo quando essa “passagem” for resultado de uma prática criminosa contra os costumes, como no caso da maior parte dos presos da unidade estudada. Os relatos2 sobre a prisão de pessoas que cometeram os crimes de estupro e pedofilia geralmente são sucedidos por uma fala a respeito de outra punição comumente apoiada pela sociedade. Durante o Antigo Regime os condenados eram oficialmente submetidos ao sofrimento físico condizente com os crimes a que eram acusados: “Fura-se a língua dos blasfemadores, queimam-se os impuros, corta-se o punho de quem matou” (FOUCAULT, 1987: 39). Nos dias atuais, a prática punitiva justificada por meio de uma sentença paralela3 agrega ainda maior sofrimento à pena restritiva de liberdade. De acordo com alguns relatos, em algumas circunstâncias, homens condenados pelo crime de estupro foram forçados a manter relações sexuais com companheiros de prisão e, eventualmente, com agentes penitenciários. Também os jornalísticos. Como no caso da reportagem “Estupradores sofrem ameaças nos presídios”, de Roberta Soares, publicada em 06/09/1998 no Jornal do Commercio de Recife, Pernambuco. 3 Para informações sobre tatuagens que condenados pelo crime de estupro são obrigados a fazer ver: Rodrigo Toffolli: Corpos tatuados: preliminares a uma abordagem semiótica, disponível da Revista Estudos Semióticos – No 1: 2005. 2 Revista História - 41 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Esses relatos1 remontam uma história que tem início em 2005, no presídio Ary Franco, no bairro de Água Santa, zona norte da cidade. Desde essa época, internos recém condenados são transferidos para a referida unidade que cumpre a função de triagem dentro do Sistema. A Secretaria de Administração Penitenciária adota a política de separar presos a partir das organizações criminosas a que eram vinculados do lado de fora da prisão ou, como no caso do presídio pesquisado, por meio da tipificação do crime com o intuito de mantê-los sob um risco menor de conflito2, conforme aponta Quiroga: “O possível pertencimento a uma facção (que muitas vezes é definido pelo local de origem ou moradia do interno) é hoje um critério seletivo e classificatório básico para o envio dos apenados às diferentes unidades prisionais. Estes passam a ser considerados, e controlados, como membros das facções que, não apenas As informações apresentadas nesse breve histórico são resultado de conversas com internos de várias unidades penais do Sistema Penitenciário fluminense. 2 Experiências anteriores atestaram que abrigar homens de facções rivais na mesma unidade pode ser uma política inadequada, como no caso da penitenciária Dr. Serrano Neves, conhecida como Bangu 3, que em dezembro de 2003 teve grande parte destruída em uma rebelião praticada por membros das facções Comando Vermelho e Terceiro Comando. Após o motim, a Seap dividiu a unidade em duas com o propósito de separar os integrantes dessas organizações. Com uma enorme chapa de de aço entre elas, surgiam, em abril de 2004, as novas Bangu 3A e Bangu 3B. orientam comportamentos individuais, como os disciplinam no sentido da manutenção de compromissos normativos coletivos” (QUIROGA, 2005: 14). Mesmo assim, é praticamente inevitável o convívio entre presos condenados por crimes contra os costumes com aqueles que cumprem pena por terem praticados os chamados crimes sociais3. Ainda que esse contato seja muitas vezes breve, não são raros os relatos sobre os abusos sexuais promovidos por outros cativos. Por conta disso, um grupo de presos do artigo4 resolveu se unir com o objetivo oficial de proteger aqueles que, assim como eles, sofriam toda sorte de violências físicas. De acordo com depoimentos de internos de algumas unidades penais, a idéia essencial desses homens era proteção: “Eles estavam acuados. Essa é a verdade. Viram que iam morrer. Eles não tinham outra escolha: ou matavam ou morriam. Por isso se uniram. E essa união dura até hoje, 1 Estamos nos referindo às práticas criminosas voltadas à obtenção de bens materiais. 4 A política dentro do Sistema é não explicitar o artigo 213 referente ao estupro quando se quer destacá-lo. Basta usar a expressão “o artigo” para informar que está se falando sobre o crime de estupro. Os demais crimes são nomeados como números: “Fulano é 157”, por exemplo, para explicar que uma pessoa cometeu o crime de roubo. mesmo com os conflitos e as brigas. Hoje ninguém fala mais em PVI. Hoje dividiu em PVI e 0015”.6 O surgimento dessa organização que pretendia agir estritamente dentro das unidades penais desencadeou uma rebelião no interior do presídio Ary Franco que foi retratada pela grande imprensa como mais um motim pela melhoria das condições do espaço prisional para os internos. Aparentemente não houve, por parte da Seap ou dos meios de comunicação, associação do evento com a criação de uma facção formada por eminentemente por estupradores. O curioso nome da facção não possui histórico confirmado. De acordo com alguns internos, a denominação é resultado de alusão à problemática do reconhecimento do país na comunidade internacional. A justificativa é baseada nos constantes conflitos geográficos que pretendiam fixar um território judaico à sua comunidade. A proposta de nomeação do grupo de internos que tomou como referência uma crença religiosa sem relatos de 3 Durante a pesquisa a respeito do surgimento do Povo de Israel, descobriu-se que o grupo originalmente formado havia se divido em outra facção auto-intitulada 001, em alusão ao número do recurso solicitado por aqueles que estão no Seguro. Por hora, não pretendemos nos ater a essa organização. 6 Relato de um egresso do Sistema Penitenciário. 5 Revista História - 42 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. praticantes no Sistema aparentemente associava a situação das disputas do espaço e de seus praticantes. Existem, ainda, outras versões para o surgimento da alcunha da facção. Uma delas remonta uma cena em que leitura da bíblia pelo recém formado grupo se une para encontrar palavras de força antes do início da rebelião. E foi assim que o capítulo 111 do livro de Salmos se tornou o lema de fé para esses homens. Outro aspecto parece importante para compreender o surgimento da organização. Ao contrário dos delitos que normalmente unem os integrantes de facções como o Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigo dos Amigos, esse movimento é fruto de uma mobilização que tem início dentro do Sistema Penitenciário e permanece somente durante o cumprimento da pena. Além disso, salvo em casos pouco comuns em que homens praticam o estupro com parceiros, a natureza desse tipo de delito parte de uma conduta criminosa individual. O fenômeno de fundação do Povo de “O reinado da duplicidade: 2. Salvai-nos, Senhor, pois desapareceram os homens piedosos, E a lealdade se extingue entre os homens. 3. Uns não têm para com os outros senão palavras mentirosas; Adulação na boca, duplicidade no coração. 4. Que o Senhor extirpe os lábios hipócritas E a língua insolente. 5. Aqueles que dizem: ‘Dominaremos pela nossa língua, nossos lábios trabalham para nós, que nos será senhor? 6. Responde, porém, o Senhor: ‘Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, levantar-me-ei para lhes dar a salvação que desejam’. 7. As palavras do Senhor são palavras sinceras; Puras como a prata acrisolada, isenta de ganga, sete vezes depurada. 8. Vós, Senhor, haveis de nos guardar. Defender-nos-ei sempre dessa raça maléfica. 9. Porque os ímpios andam de todos os lados. Enquanto a vileza se ergue entre os homens”. 1 Israel, nesse sentido, parece ser um gesto oposto ao isolamento natural que os condenados por esses crimes optam dentro da prisão para sua própria segurança. Normalmente, as práticas de arregimentação promovidas pelas outras organizações criminosas conseguem aumentar sua força dentro da prisão com a cooptação de internos originalmente distantes do crime organizado que, em troca de segurança e bens materiais, aceitariam participar da facção. O caso do Povo de Israel possui mais uma questão que merece especial observação: ainda que nem todos os presos que cumprem pena no presídio Evaristo de Moraes tenham sido condenados por crimes contra os costumes, estes, ao solicitarem o Seguro e a transferência para a referida unidade, automaticamente são enquadrados como “filiados” à facção Povo de Israel, mesmo que não obtenham ganhos2 diretos com isso: “Todos aqui são Seguro. Todos são Povão de Israel. Gostando ou não disso aqui estamos protegidos”3. Dessa forma é possível pensar que os 1400 homens que hoje vivem no Galpão da Quinta e, por isso, compõem a facção Povo de Israel, mesmo involuntariamente, disputam uma legitimidade, por meio de um discurso autorizado, também em oposição às demais unidades penais estruturadas por meio de facções criminosas que atuam no universo extramuros e que, de certa forma, legitimam as práticas violentas contra aqueles que cometeram o estupro. Mesmo que silenciosos dentro do próprio sistema, esses embates se encerram também nos limites murados: “É uma organização de proteção para quem está no Seguro, principalmente para estupradores. Ela não existe do lado de fora. É uma organização interna e que luta pela vida desses internos. Quando ele sai e volta à vida ele deixa de existir pra gente e a gente pra ele”.4 1.4 - Os Frentes de Cadeia Outra organização interna do coletivo, também estruturada a partir das idéias de autoridade e representação, surge por meio de uma figura conhecida na prisão como frente de cadeia.5 No Evaristo de Moraes, dois homens desempenhavam esse papel durante o desenvolvimento do presente estudo, fato incomum em unidades penais. Um deles, estrategicamente, ocupa um cargo importante no expediente do jornal Em Prol da Liberdade. Alguns internos descrevem os frentes como administradores de conflito ou como uma espécie de “juiz que tem que ser imparcial, tem que ser uma Relato de um dos internos que compõe o jornal. Relatos sobre “frentes de cadeia” são dificilmente obtidos no presídio. Raros são os internos que mencionam essa expressão e, quando perguntados, dedicam poucas palavras para descrever a atuação dessa figura. 4 5 Estamos nos referindo às práticas de extorsão citadas no início do presente capítulo. 3 Relato de um interno do presídio Evaristo de Moraes. 2 Revista História - 43 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. constante no desenrolo da cadeia”1. Para tanto, é necessário que essa mediação seja pautada por uma regra publicizada internamente que possa legislar sobre questões cotidianas tal como descreve Becker: “O mais típico é que as regras sejam impostas somente quando algo provoca sua imposição. A imposição, portanto, requer explicação” (2008: 129) O autor do manuscrito Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do Sistema e das DPs é um preso que cumpre pena no Evaristo de Moraes. Com o intuito de facilitar a compreensão2 de algumas palavras que eram citadas durante a pesquisa que possibilitou a presente reflexão, ele resolveu escrever esse documento que destaca questões que podem ilustrar a presente análise. Esse é o caso do uso da palavra etapa. Além de defini-la como “a porção que cabe a cada um do que tiver para todos”, esse interno acrescentou imediatamente ao lado uma observação que ultrapassa o simples entendimento da expressão idiomática. Aparentemente, essa ressalva parece querer comunicar que não basta compreender o significado das palavras dentro da prisão, é necessário entender, sobretudo, as regras dessas palavras praticadas cotidianamente no espaço prisional pois “(é falta grave comer a etapa do outro)”3. Relato de um interno que compõe a equipe do jornal. Ressalto que esse documento foi entregue a mim e a proposta era facilitar o meu entendimento. 3 Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do 1 2 Sistema e das DPs. É o que Becker chama de cultura desviante determinada a partir de “um conjunto de perspectivas e entendimentos sobre como é o mundo e como se deve lidar com ele” (2008: 48). A partir da idéia de rotina compartilhada e destino comum, esses homens constituem a trajetória que o sociólogo chama de profecia auto-realizadora (idem: 44) a partir do seu enquadramento prioritário como ator social desviante. Dessa forma, vale mais uma vez recorrer à sua definição de desvio: “é antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento. O mesmo comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não no outro; pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra. (...) Em suma, se um dado ato é desviante ou não, depende em parte da natureza do ato (isto é, se ele viola ou não alguma regra) e em parte do que outras pessoas fazem acerca dele” (2008: 26) Assim, é possível estabelecer um questionamento a respeito desses homens que podem, a princípio, também se deslocar de sua condição de desviante. É Becker quem propõe uma reflexão: “As pessoas pertencem a muitos grupos ao mesmo tempo. Uma pessoa pode infringir as regras de um grupo pelo próprio fato de ater-se às regras de outro. Nesse caso, ela é desviante?” (2008: 21) A deontologia do coletivo é estudada por Dias que destaca a importância da observação do processo de julgamento nesse cenário. “O regulamento interno da prisão, que desconhece, em certa medida, as leis oficiais e cria todo um sistema normativo e um minitribunal próprio, a fim de que as regras sejam cumpridas – tanto as regras da administração quanto àquelas da massa carcerária –, prevê uma série de punições para os infratores” (DIAS, 2007: 222). Dessa forma, é possível propor um enquadramento dos frentes de cadeia na categoria proposta por Segato de forma complementar à classificação sugerida a respeito dos faxinas. De acordo com a socióloga, o papel dos Intocáveis funcionais “tem por base uma forma de organização, suportada por uma ‘liderança informal’, operada no cerne da sociedade reclusa” (2005: 13). Ela salienta que “o estatuto social destes indivíduos é construído com base no seu poder relacional. São conhecidos pelo temor respeitoso através do qual são encarados, não só pelos outros internos, mas também pela autoridade institucional” (Idem: 12). Ainda observando o Glossário desenvolvido por um interno do Galpão, é possível encontrar outra alusão emblemática. Ao definir a expressão “Vou na direção”, o autor do texto explica tratar-se de um Revista História - 44 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. “modo de dizer que uma situação vai ser resolvida ou conversada com alguém que fala (geralmente comentários ou fofocas a respeito de outrem)”1. Notase que em nenhum momento o dono do manuscrito determina quem é a direção citada. Ainda assim, por reconhecer as práticas internas de resolução de conflitos conhecidas como desenrolo2, parece pertinente pensar que essa é mais uma referência ao frente de cadeia que, aparentemente, tem a função de estabelecer a Última forma3 como “determinação do coletivo para encerrar um conflito”. Além de mediar conflitos ocorridos no interior do coletivo, esses homens justificam seus papéis por meio da idéia de representatividade dos presos junto à direção do presídio. Essa proximidade com o poder oficial da prisão, por sua vez, acaba por gerar tensões diversas por conta do duplo lugar ocupado pelos frentes: se de um lado eles são a voz instituída de uma massa anônima que reivindica, por outro eles não conseguem abdicar de sua condição de encarcerados em negociações com a direção, chefias de segurança ou de disciplina, ficando, por isso, suscetíveis a tratos silenciosos e à eventual incorporação do papel do delator. Nesse sentido, é possível propor uma reflexão a respeito da autorização para o desempenho das atividades como frentes de cadeia, mesmo que de forma extra-oficial. A rigor eles têm o dever de representar o maior contingente de cativos do estado, mas parecem estimular, mesmo que involuntariamente, o fator incerteza que, de certa forma, alimenta as práticas cotidianas do coletivo e amplia a rede de vigilantes anônimos4 no cárcere. Em outras palavras, o fato de dois homens atuarem nesse cenário e estarem publicamente ligados tanto à parcelas diferentes da massa carcerária, quanto à direção da unidade que enfatiza sua gestão baseada nas práticas de delação, parece ser um aspecto importante quando se pretende obter e, sobretudo, confirmar as informações que circulam no presídio Evaristo de Moraes. A descrição desenvolvida por Becker, nesse sentido, parece oportuna: “Quando uma organização que contém dois grupos que competem pelo poder (...) o conflito pode ser crônico. No entanto, precisamente por ser um traço persistente da organização, talvez o conflito nunca se torne declarado. Em vez disso, os dois grupos, enredados numa situação que aprisiona a ambos, vêem Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do Sistema e das DPs. 1 A esse respeito, podemos indicar a pesquisa que vem sendo desenvolvida por Mário Miranda Neto, mestrando do Programa de PósGraduação em Antropologia, da Universidade Federal Fluminense. 3 Trecho do Glossário de Expressões e Palavras usadas por internos do 2 Sistema e das DPs. Estamos nos referindo aos informantes não identificados que prestam serviços ao poder oficial da prisão. 4 vantagem em permitir que o outro cometa certas infrações e não as denunciam”. (BECKER, 2008: 132) É o que Ludemir pretende complexificar a respeito da função política da figura do frente no cenário prisional. Mais do que representar a massa e mediar conflitos, esses atores desempenham o papel de um controle que prescinde agentes penitenciários e câmeras de vigilância. Esse poder definitivamente atravessa os corpos condenados: “ter uma liderança nas cadeias no fundo é mais vantajoso para a direção do que para o coletivo. Conceder privilégios às castas que se autodenominam frentes de cadeia é a melhor estratégia para que não haja fugas e rebeliões, o tendão de Aquiles das direções de unidade”5. 2 – Metamorfoseados em jornalistas “Eu já vi comerciante, professor, padre e bandido ser torturado. Jornalista não pode. Quando é, todo mundo grita e acha absurdo! Jornalista não se censura ou tortura e aqui no presídio eu quero ser um”6. A referida frase é resultado da leitura de um texto jornalístico por um interno que compõe a LUDEMIR, Julio. O choque de gestão nos presídios. Disponível em: http://odia.terra.com.br/blog/blogdaseguranca/200806archive001.as p . Acessado em fevereiro de 2009. 6 Tal evento aconteceu em maio de 2008. 5 Revista História - 45 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. equipe do Em Prol da Liberdade. Tal produção tratava da tortura de uma equipe de reportagem do jornal O Dia que havia se infiltrado na comunidade do Batan, em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, para fazer apurações a respeito da vida em regiões dominadas pelas Milícias. A indignação desses repórteres do cárcere parece apontar para alguns elementos interessantes à compreensão de um ethos jornalístico que, a rigor, poderia ser reproduzido intramuros. Entre várias construções possíveis, é razoável pensar na liberdade do dizer como valor atribuído à prática jornalística e que, automaticamente, remete à censura, materializada, no caso do jornal O Dia e na projeção dos periodistas leigos, na punição física de quem ousa. A tortura, tal como citado no capítulo anterior, faz parte do universo penitenciário tanto quanto o interdito da palavra. Mais do que isso, a exclamação desses presos aponta também para eternos fantasmas da prática jornalística que remontam um passado em que a censura prévia dos meios de comunicação era uma realidade, inclusive com a colaboração de jornalistas censores (KUSHNIR, 2004). A discussão a respeito da liberdade de expressão é rotineiramente pautada pela própria imprensa, sobretudo em ocasiões em que se propôs a regulamentação da prática profissional, como no caso do debate a respeito da Lei de Imprensa e da criação de um Conselho Federal de Jornalismo. Neste momento, porém, pretende-se focar a atenção na interpretação de que ser jornalista significa deslocar-se hierarquicamente do seu público seja no universo extra ou intramuros. A partir da apresentação de alguns breves exemplos empíricos, pretende-se lançar algumas hipóteses acerca dessa experiência jornalística desenvolvida no cárcere e avaliar os gestos de apropriação do dizer da grande imprensa e seus múltiplos efeitos nesse contexto. Foi assim que durante as discussões sobre a pretensa necessidade de conduta imparcial deste profissional, um dos internos apresentou um relato bastante emblemático: “Não sei por que tanta preocupação com essa coisa de ser imparcial. Eu entendo que o jornalista julgue, que ele tenha opinião. Talvez a gente até se pareça mais do que eles gostariam: somos espertos, sagazes e manipulamos a verdade. A diferença é que nós estamos presos”1. Assim, propomos a interpretação a respeito do engajamento em um projeto jornalístico no cárcere como um gesto de filiação consciente a uma experiência panóptica midiatizada. Ao desenvolver um veículo de comunicação em uma unidade penal, estes homens automaticamente invocam para si, com intenções diversas, o direcionamento dos holofotes de vigilância que pretendem capturar, sob o argumento da garantia da segurança, informações que parecem transbordar os limites dos conteúdos veiculáveis, para se converter num palco de controle e verificações de intenções distintas. 1 2.1 - A voz no papel: o jornal dos presos do Evaristo de Moraes Durante a reunião para determinar quais seriam as pautas que mereciam ser desenvolvidas na primeira edição do jornal definiu-se que todos os integrantes do periódico deveriam sugerir assuntos para, ao final, serem votados pela equipe. Os eleitos seriam trabalhados pelos repórteres responsáveis pelas editorias. Para o primeiro número de Em Prol da Liberdade foram desenvolvidas dez reportagens, duas charges, um artigo2 e uma coluna. Além disso, criaram-se também os espaços Alma Gêmea e Pensamentos e Poesias voltados especificamente para publicação de textos de internos leitores. Ainda que o propósito do presente estudo não seja o de realizar uma análise de conteúdo dos jornais produzidos pelos internos, mas pesquisar o fenômeno de interpretação e apropriação do ethos jornalístico para além da simples aplicação dos preceitos técnicos, optou-se por dedicar atenção a determinados aspectos da substância desses textos interessantes à compreensão da prática de imprensa no cárcere. De antemão é possível perceber certo flerte com o que se costuma enquadrar como aquele jornalismo em que as sensações “mesclam os dramas cotidianos – os melodramas – em estruturas narrativas que apelam Frase de um dos internos que compõe a equipe do jornal Em Prol da Liberdade. 2 Intitulado Auto-estima ou Punição? Revista História - 46 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. ao imaginário que navega entre o sonho e a realidade”. (BARBOSA, 2007: 123) Ao apurar o olhar sobre os títulos da primeira edição do Em Prol da Liberdade é possível notar, por exemplo, o caso da reportagem sobre a história de um ex-interno do Evaristo de Moraes, bolsista de um projeto financiado pela agência de fomento à pesquisa do estado do Rio de Janeiro, que deixou o cárcere e hoje freqüenta grupos de pesquisa em uma universidade pública. Ao construir um texto a respeito de uma trajetória atípica para egressos do Sistema Penitenciário, o repórter optou por um título que flerta com as matrizes sensacionais do chamado jornalismo popular, direcionando o sentido interpretativo para uma ação transgressora teoricamente familiar para aqueles que cumprem pena restritiva de liberdade: a invasão. literária, pela malícia dos dados em jogo, pela intimidade com que falam ao leitor [grifo meu]” (MEDINA, 1988: 120). No referido exemplo, porém, é necessário mencionar que o uso das aspas foi uma indicação1 da Assessoria de Comunicação da Secretaria de Administração Penitenciária como forma de enfraquecer o apelo às sensações originalmente proposto pelo título. Noutro caso, na manchete do jornal, é possível notar a presença do imperativo esclarecedor ocupando o espaço de uma margem à outra do papel: IMAGEM 32 IMAGEM 2 A utilização do recurso da ironia, neste caso, parece querer surtir efeito de piscadela ao leitor prioritário que, deslocado ao lugar do sujeito habituado às práticas infratoras, certamente não se sentiria ofendido com a utilização de uma expressão como recurso textual: “os títulos chamam atenção do consumidor pela diagramação, pela forma verbal Ainda no presente capítulo trataremos das indicações de mudança e censuras da Assessoria de Comunicação da Secretaria de Administração Penitenciária. 2 A referida imagem é apresentada aqui de forma reduzida. Originalmente esta ocupa metade da página do jornal. Analisando este que seria o primeiro contato do público leitor com o periódico identificam-se alguns elementos interessantes. O primeiro deles se refere especificamente à opção pelo contraste entre as fontes brancas, em negrito, com o box negro que ocupa 50% da página: “os sinais de pontuação, os números, os artigos, os contornos das letras – tudo entra em jogo na diagramação, onde menos importam os critérios de feio/belo e mais os critérios de valorização visual do que se deve saltar aos olhos” (MEDINA, 1988: 120). Cabe, então, observar novamente a referida manchete atentando, também, ao conteúdo do texto principal e seus subtítulos inseridos nessa imagem. A primeira frase já sentencia: “Chega de Boatos”. De antemão, é necessário considerar o boato como justa oposição à proposta de criação de um veículo informativo que se pretende oficial. No contexto prisional os rumores fazem parte de uma forte rede de informações que se materializa, também, a partir da atuação de dois elementos-chave. O primeiro deles nos é apresentado por um interno que desenvolve uma pesquisa3 sobre a realidade da prisão: “Logo na porta das comarcas ficavam dois indivíduos que são chamados de Ligação [grifo meu], responsáveis por passar tudo o que acontecia do lado de fora para o coletivo”. Esse sujeito, peça importante na difusão de 1 Trata-se de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, desenvolvida no âmbito do projeto Cerrando Saberes, Serrando as Grades do Saber. 3 Revista História - 47 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. informações, sobretudo em unidades penais como o Evaristo de Moraes em que os presos não podem deixar as celas, conta também com o auxílio de um instrumento chamado Tereza. Fabricado com tecidos, esse artefato serve como meio de comunicação1, quando transmitido entre celas, e como ferramenta de fuga, quando lançado sobre os muros da unidade penal. Darnton desenvolveu uma hipótese sobre as primeiras experiências com meios de comunicação de massa que, de acordo com sua perspectiva, teriam surgido na França do século XVIII por meio de um elemento normalmente considerado “menor”, no que se refere à confiabilidade, na construção da informação: a fofoca. A forma de disseminação de notícias, ainda sem o advento da imprensa, era particularmente interessante. No primeiro momento, o cenário conhecido como “a paróquia”, de propriedade de uma senhora parisiense, contava com freqüentadores que se relacionavam com a corte e o parlamento de Paris. “Quando entravam no salão, encontravam dois livros de registro numa mesa próxima à porta. Um deles continha notícias dadas como dignas de crédito, e o outro, fofocas. Juntos, os dois compunham o cardápio da discussão do dia” (DARNTON, 2000: 4). Assim, de acordo com o historiador, surgiu o primeiro repórter, criado da O mesmo interno desenvolve ainda uma reflexão sobre outro uso dessa corda que liga as celas: o Shopping Tereza: “tido como uma feira de negócios, com produtos diversos e presos convidativos”. 1 proprietária do salão, que perambulava pelas casas em busca de novidades. As ruas, a corte, os mercados, tabernas e jardins públicos eram, segundo Darnton, o cenário ideal para disseminação de informações através de uma densa rede de comunicação formada por meios que “se entrelaçavam e sobrepunham tão intensamente, que temos dificuldade em imaginar seu funcionamento” (2003: 50). Nesta França do Antigo Regime a polarização entre o desejo da informação e a “necessidade” de controlar esses dados estabeleceu um cenário em que de um lado se encontrava “o público com sua fome de notícias, e do outro, o estado com suas formas absolutistas de poder” (2003: 49). Mais tarde, o anseio pelo consumo dessas notícias impulsionou o surgimento de uma pequena de indústria fornecedora de gazetas manuscritas a assinantes. Ao pensar o impacto dos rumores no cotidiano da referida unidade penal, é possível crer que quando a equipe do jornal anuncia, em sua primeira edição, o fim dos boatos como narrativas orais e perecíveis (IASBECK, 2000: 12) por meio de uma reportagem que irá esclarecer assuntos de interesse de grande parte do coletivo, este grupo está dialogando diretamente com interlocutores idealizados inseridos num contexto em que a informação é extremamente relevante. Avançando, propõe-se a hipótese de que ao proclamar oposição às notícias pouco confiáveis, muitas vezes sem autoria explícita, esses homens negociam sua legitimidade como repórteres da prisão ao garantir acesso a informações consideradas seguras em um cenário em que, até então, somente existiam rumores. A rede de informações do Evaristo de Moraes pareceu bastante eficiente na divulgação de que a equipe do Em Prol da Liberdade estava desenvolvendo uma reportagem a respeito de benefícios legais a que grande parte dos internos teria direito. Idealizada a partir da idéia de jornalismo de serviço, esta matéria contou com uma entrevista exclusiva com o coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública que respondeu a todos os questionamentos do periódico. Ainda durante a finalização da referida edição, essa matéria “vazou” entre os presos que seriam o público-alvo de uma publicação que ainda não havia sido autorizada pela Secretaria de Administração Penitenciária para impressão e circulação. Ao justificar o gesto de vazamentismo, o interno responsável pela liberação do conteúdo explicou que era impossível negar acesso àqueles assuntos de interesse público. “Antes de ser jornalista eu sou preso também. Sei o que aquelas informações significam pros meus companheiros”2. 2 Fala de um dos internos que compõe a equipe do jornal. Revista História - 48 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Referências Bibliográficas BARBOSA, Marialva Carlos. Percursos do olhar: Comunicação, narrativa e memória. Niterói: EdUFF, 2007. BECKER, Howard. Outsiders – Estudos de Sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. BÍBLIA Sagrada. Livro de Salmos. 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FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. São Paulo: Graal, 2003. _____. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1986. _____. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes: 1977. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2008. _____. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva: 2005. IASBECK, Luiz Carlos A. Os boatos – Além e aquém da notícia: versões não autorizadas da realidade. In: Lumina, v. 3, n˚2. UFJF: 2000. KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004. MARQUES, Adalton. “Proceder”: “o certo pelo certo” no mundo prisional. Monografia de Conclusão do Curso de Sociologia e Política da USP, 2006. MEDINA, Cremilda. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. São Paulo: Summus, 1988. MENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência: um estudo do Linha Direta. 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Tem-se como objetivo neste artigo, uma compreensão mais clara e mais objetiva do que para Foucault é o poder. Palavras-chave: Poder, relações de força, discursos da verdade. Abstract This article aims to analyze the power, based on the study of certain classes reading the book In Defense of the Society of Michel Foucault. His book is divided into classes and for the preparation of this article were obtained from two of these classes, the class of January 7, 1976 and the class of January 14, 1976. Foucault opens the door and invites us to attempt to know a little of that in his research concluded about power. It has the objective of this article, a clearer understanding and more objective than to Foucault's power. Keywords: Power, power relations, discourses of truth. *** Introdução O livro Em Defesa da Sociedade é o volume que inaugura a edição dos cursos de Michel Foucault, no Collège de France, sendo que esta edição reproduz a palavra proferida publicamente por Foucault. As aulas de Foucault foram gravadas, e depois passadas para o escrito. Refere-se ao curso dos anos de 19751976. Michel Foucault foi um grande pensador, nasceu em Poitiers, na França, em 15 de outubro de 1926. Seu pai era médico, mas Foucault não seguiu a carreira do pai. Michel Foucault se graduou em Filosofia, e em 1949 se diplomou em psicologia. Escreveu grandes obras como História da Loucura, Vigiar e Punir, História da Sexualidade e outros. Morreu no dia 25 de junho de 1984, com 57 anos. Neste trabalho pretendo apresentar com o estudo das duas primeiras aulas do livro Em Defesa da Sociedade, um breve entendimento do que para Foucault é o poder. Em relação ao poder, Foucault nos traz muita coisa. Você já se perguntou o que é o poder? Pois então, esta é uma das interrogações que Foucault nos faz durante seu texto. Inicialmente, Foucault nos fala em relação às genealogias, que são anticiências, e que são contra os efeitos centralizadores de poder impostos aos discursos científicos. Mais adiante, Foucautl trata do marxismo, onde diz que o marxismo subordinou o poder à economia, Foucault discorda totalmente disto, pois para ele o poder não depende da economia. Seguindo se refere aos mecanismos de poder, aos discursos verdadeiros a que somos submetidos, ao poder como exercício, e finalizando se refere ao surgimento de uma nova mecânica de poder. Em defesa da Sociedade: Poder. Foucault nos fala da genealogia, nos fala que as genealogias são anticiências, não se tratando da recusa do saber, mas da insurreição dos saberes. A genealogia não é contra os conceitos de uma ciência, mas é contra os efeitos centralizados de poder que são impostos à instituição e ao funcionamento dos discursos científicos, que são organizados em sociedades como a nossa. “É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar o combate.” 1. FOUCAULT, Michel, Em Defesa da Sociedade, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2002, p. 14. 1 Revista História - 50 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. As pessoas se questionam sobre o que é ou não é ciência, como é o caso do marxismo, citado no texto por Foucault, que há anos vem sendo questionado o fato de o marxismo ter sido ou não uma ciência, essa mesma pergunta foi feita em relação à psicanálise e a semiologia dos textos literários. A crítica que a genealogia faria a nós, é o fato de sermos nós mesmos quem fazemos do marxismo ou de qualquer outra coisa, uma ciência. Foucault nos fala que antes de querer saber se uma coisa como o discurso marxista por exemplo, é ou não científico, devemos pensar na ambição de poder que o fato de ser ciência traz consigo. Ele ainda nos fala que quando vê pessoas tentando fazer do marxismo uma ciência, elas não demonstram que o marxismo tem uma estrutura racional, ou que suas propostas, sua tese, dependem de procedimentos de verificação, mas o que ele percebe é que há uma certa imposição ao discurso marxista. “Eu os vejo vinculando ao discurso marxista, e eu os vejo atribuindo aos que fazem esse discurso, efeitos de poder que o Ocidente, desde a idade Média, atribuiu à ciência e reservou aos que fazem um discurso científico”. 1. Dentre todas as genealogias o que está em jogo é o poder. Foucault interroga sobre o que é o poder, com a pretensão de determinar quais são os diferentes mecanismos de poder que são exercidos em níveis diferentes da sociedade. “... a análise do poder, ou a 1 Idem. p. 15. análise dos poderes, pode, de uma maneira ou de outra, ser deduzida da economia?”.2. Com essa pergunta Foucault quer nos dizer o seguinte: Não quero de modo algum suprimir diferenças inumeráveis, gigantescas, mas, apesar e através dessas diferenças, parece-me que há um certo ponto em comum entre a concepção jurídica e, digamos, liberal do poder político – a que encontramos nos filósofos do século XVIII – e também a concepção marxista, ou, em todo caso, uma certa concepção corrente que vale como sendo a concepção do marxismo. Esse ponto comum seria aquilo que eu chamaria de ‘economismo’ na teoria do poder. E, com 2 Ibidem p. 19. isso quero dizer o seguinte: no caso da teoria jurídica clássica do poder, o poder é considerado um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e que se poderia, em conseqüência, transferir ou alienar, de uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador de direito... No outro caso, claro, eu penso na concepção marxista geral do poder: nada disso, é evidente. Mas vocês tem nessa concepção marxista algo diferente, que se poderia chamar de ‘funcionalidade econômica’ do poder. 3. Quando Foucault fala do poder relacionado à concepção jurídica, fala que neste caso o poder é algo concreto, que todos detém, mas viriam a ceder, para 3 Ibidem. p.19,20. Revista História - 51 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. assim constituir um poder, uma soberania política. Em relação a concepção marxista de poder, quando Foucault nos fala de funcionalidade econômica, ele se refere que para os marxistas o poder seria uma questão de economia, e que o marxismo subordinou o poder a economia, Foucault não concorda com essa concepção marxista, pois para ele o poder não depende da economia. “Para fazer uma análise não econômica do poder, de que, atualmente, dispomos?” 1. segundo Foucault dispomos de muita pouca coisa, diz que primeiramente, dispomos da afirmação de que o poder existe somente em ato, e que o poder não é trocado, ou retomado, mas que ele é exercido, e há uma outra afirmação que diz que o poder não é manutenção ou recondução das relações econômicas, mas, em si, é uma relação de forças. Foucault nos fala que desde 1940-1971 ele buscou tentar entender o “como” do poder, ou seja, aprender seus mecanismos, entre os seus dois limites: as regras de direito que delimitavam formalmente o poder e o outro lado que seriam os efeitos de verdade que o poder produz. Para esclarecer o que Foucault está buscando ele nos faz a seguinte interrogação: “... qual é o tipo de poder capaz de produzir discursos de verdade que são, numa sociedade como a nossa, dotados de efeitos tão potentes?” 2. 1 2 Ibidem. p. 21. Ibidem. p. 28. Em qualquer sociedade, seja como a nossa, ou qualquer outra, várias relações de poder formam o corpo social, essas relações não podem se estabelecer ou nem mesmo funcionar sem uma produção, sem um funcionamento do discurso verdadeiro. Foucault nos fala que não há exercício do poder, sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam através dele. Foucault ainda nos fala que somos submetidos pelo poder à produção da verdade e que só podemos exercer o poder por meio da produção da verdade. Em todas as sociedades isso é fato, mas para o autor a relação entre poder, direito e verdade, na nossa sociedade é organizado de um modo particular. Para assinar a intensidade e constância disto ele nos fala que: ... somos forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou a encontrála. O poder não pára de questionar, de nos questionar; não pára de inquirir, de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, ele a profissionaliza, ele a recompensa. Temos de produzir a verdade como, afinal de contas, temos de produzir riquezas, e temos de produzir a verdade para poder produzir riquezas. E, de outro lado, somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder. 3 Segundo Foucault, nós somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, temos que seguir uma maneira certa de viver ou até mesmo a uma maneira certa de morrer, e isso tudo é em função dos discursos verdadeiros, que trazem efeitos específicos de poder. 3 Ibidem. p. 29. Revista História - 52 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Quando Foucault fala da relação entre poder e direito ele menciona as sociedades ocidentais, que desde a idade Média, a elaboração do pensamento jurídico se fez em torno do poder do rei. A pedido do poder régio que se elaborou o edifício jurídico. A personagem principal desse edifício jurídico é o rei. O imperialismo romano, remete em partes a isso de que Foucault nos fala, era o imperador romano quem criava as leis, os direitos, sendo que ele tinha também que se submeter as próprias leis que criava. Mas acima de tudo, o poder do imperador era o mais absoluto, não existia nada que superasse o poder do imperador, pois ele tinha em mãos o poder de todo o império. A soberania era o principal problema do direito, pois o discurso e a técnica do direito tiveram a função de disfarçar, o fato da dominação, para que no lugar dessa dominação aparecesse os direitos legítimos da soberania e a obrigação legal da obediência. Foucault, quando fala em dominação quer dizer, as diversas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade, não se referindo ao rei, mas aos súditos. “Não, portanto, o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas: não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social.” 1. 1 .Ibidem. p. 32. Para Foucault devemos ter em mente que o poder não é algo que se partilhe com aqueles que o têm, ou o detêm, e aqueles que não o tem e são submetidos a ele. Para ele, o poder deve ser analisado como uma coisa que circula, ele nunca está localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, e nunca é apossado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também exerce-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em outras palavras o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles. 2 Foucault nos fala da importância de não se fazer uma dedução do poder partindo do centro a que tentaria ver até onde ele chega, como se reproduz, 2 Ibidem. p. 35. como se reconduz até a sociedade. Mas que seria preciso se fazer uma análise ascendente isso significa: Partir dos mecanismos infinitesimais, os quais têm sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de poder, que têm, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados, inflectidos, transformados, deslocados entendidos, etc., por mecanismos cada vez mais gerais e por formas de 3 dominação global. Foucault, usa um exemplo para deixar um pouco mais de clareza em relação a análise ascendente e a dedução. Como exemplo ele usa a loucura, através de uma análise descendente da qual ele discorda e se refere a dedução também. “... a burguesia tornou-se, a partir do fim do século XVI e 3 Ibidem. p. 36. Revista História - 53 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. no século XVII, a classe dominante. Dito isto, como se pode deduzir daí o internamento dos loucos?”. 1. A partir disto, surgirá uma dedução de nossa parte. Foucault diz que deduzir, é sempre fácil, e é isso exatamente que ele reprova. Diz que é fácil para nós dizer que o louco, aquele que é visto como o inútil na produção industrial, deva ser descartado. Mas, como Foucault não concorda com isso, ele fala que o que se deve fazer é ver, como historicamente, partindo do começo, os mecanismos de controle interviram na exclusão dos loucos. Pois assim, Foucault acredita que se mostrar que, no fundo, o que a burguesia necessitava, não era que os loucos fossem excluídos, mas que o que lhes interessava e que a mobilizava, não era o fato dos loucos serem excluídos, mas a técnica e o próprio procedimento da exclusão, os mecanismos de exclusão. Sendo assim não havia a burguesia pensando que a loucura deveria ser excluída, mas os mecanismos de exclusão da loucura, que a partir de algum momento, teriam com isso algum lucro econômico ou político. “A burguesia não se interessa pelos loucos, mas pelo poder que incide sobre os loucos.” 2. Isso pode ser visto como uma técnica de poder. Foucault nos fala de uma nova mecânica de poder, que surgiu nos séculos XVII e XVIII, diz ele que essa nova mecânica de poder incide sobre os 1 2 Ibidem. p. 36. . Ibidem. p. 39. corpos e sobre o que eles fazem, é um mecanismo de poder que se exerce através da vigilância. Esse novo tipo de poder, que já não é, pois, de modo algum transcritível nos termos de soberania, é acho eu, uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um dos instrumentos fundamentais da implantação do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correlativo. Esse poder não soberano, alheio portanto à forma da soberania é poder ‘disciplinar’”.3 As disciplinas, segundo Foucault, tem o seu discurso próprio, o discurso da disciplina é o da regra, o discurso da regra natural, sendo assim a norma. “Elas definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização, e elas se referirão necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas o campo das ciências humanas.” 4. Para Foucault o que tornou possível o discurso das ciências humanas, foi o enfrentamento de dois mecanismos e de dois tipos de discurso muito diferentes, de um lado, a organização do direito em torno da soberania, de outro, a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas. “De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade.” 5. Foucault diz que para lutarmos contra o poder disciplinar, buscando um poder não disciplinar, não devemos ir em direção ao antigo direito da soberania, mas deveríamos ir em direção a um novo direito, sendo assim antidisciplinar. Conclusão. Ao final deste estudo, pode-se compreender o que Foucault pensa em relação ao poder. Primeiramente é necessário entender que para Foucault, o poder por si só não existe, o poder só existe em exercício, ele é uma relação de forças, onde o mais forte vence, para Foucault não é necessariamente o poder que submete algo ou alguém a alguma coisa, mas o que realmente submete são as 4 3 . Ibidem. p. 43. 5 Ibidem. p.45. . Ibidem. p. 47. Revista História - 54 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. relações de força, as técnicas e os discursos da verdade. Os discursos da verdade para Foucault, nada mais são do que as verdades a que as relações de força, ou as técnicas de poder nos submetem. São verdades que nos fazem acreditar em várias coisas, e por mais que essas verdades possam ser comprovadas, isto não significa que não poderia ser diferente. Quando Foucault se refere à concepção marxista de poder, ele demonstra o quanto discorda da mesma. Pois para os marxistas o poder é uma questão econômica, mas Foucault não segue e nem se quer concorda com isto, pois para ele o poder não depende da economia, não está ligado a ela. Enfim, o que deve ficar claro é que o poder só existe em exercício, e que ele é uma relação de forças, de técnicas, de ações, de discursos da verdade que atuam em nós, no nosso comportamento, tudo isso podemos chamar de mecanismos de poder. Como exemplo de poder que se exerce, podemos citar o poder que o professor exerce sobre seus alunos. Concluindo o poder não é algo que existe por si só, mas é um exercício, ele só existe enquanto se exerce, é também uma relação de forças, onde o mais forte é que tem o poder de submeter. INFÂNCIA “DESVALIDA” E CRIMINALIDADE FEMININA DO RIO DE JANEIRO DOS ANOS 20 E 30 Maria Clara Pecorelli Mestre em História Social/UFRJ Resumo O contexto deste artigo é o da "modernização autoritária" brasileira do início do séc. XX, cujos propósitos de racionalidade e eficiência estariam acima da política e dos anseios (contraditórios?) da população (mas em nome do seu "bem-estar"). Iniciase o processo de construção da “Cidade Maravilhosa”, tendo como efeito paralelo (e indesejado) a intensificação da “favelização” que instaurou marcas profundas na modelagem física e simbólica da cidade. Assim, fomos buscar dentro do movimento reformista políticas de promoção social voltadas à infância das camadas populares: ao invés da escola, encontramos uma política de tutela e estigmatização dos segmentos menos favorecidos. Refletindo a então dominante criminologia positivista, as fontes criminais utilizadas permitiram uma análise da vida e das práticas cotidianas das jovens pobres e sua criminalização. Abstract The context of this article is the "authoritarian modernization" in Brazil in the early 20th century, whose purposes of rationality and efficiency would be above politics and the (conflicting?) desires of the population (but in the name of its "welfare"). The process of building the "Marvelous City" had begun, with the side (and unwanted) effect in the intensification of "slums" that brought deep marks in the physical and symbolic modeling of the city. Thus, we searched within the reform movement social promotion policies aimed at children from lower classes: instead of the school, we found a policy for patronizing and stigmatizing the disadvantaged segments. Reflecting the then dominant positivist criminology, criminal sources used allowed an analysis of life and daily practices of poor youth and its criminalization. *** Entre os Fenômenos mais apavorantes dos tempos d'agora, derivando por uma parte da dissolução familiar vigente e por outro lado oriundo da crise econômica que assinala a transformação do regime capitalístico - o abandono da infância aparece a moralistas, a sociólogos e a criminólogos como digno de toda a atenção, pelas relações diretas que tem com a criminalidade urbana" (Evaristo de Revista História - 55 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Morais, "Crianças Abandonadas e Crianças Criminosas", apud: RIZZINI, Irene, in RIZZINI & PILOTTI, 1995: 111; grifos nossos). Apresentação do tema Escolhemos iniciar este texto1 pela voz de um observador contemporâneo bastante atento a uma questão que, no período eleito pelo recorte temporal da nossa pesquisa (anos 20 e 30), já terá se convertido no que se chamou então de "problema do menor". Trata-se de uma declaração do jurista Evaristo de Morais, em obra datada de 1900, e que nos pareceu de uma abrangência representativa ao tocar, num mesmo parágrafo, em aspectos que apareceram de maneira recorrente (mas poucas vezes relacionados) nos debates reformistas do primeiro período republicano, em especial nos discursos médicos e jurídicos. Vinculando "criminalidade urbana" com "abandono da infância", e esta com "dissolução familiar" e "crise econômica", proveniente de um novo regime ("capitalístico") ainda em processo de instalação, o autor exemplifica o entrelaçamento de ambos os discursos em que os pressupostos e propostas do primeiro abriram caminho para a atuação do segundo na efetivação de O presente artigo baseia-se em nossa dissertação de Mestrado, defendida na UFRJ com o título: Crianças “Desvalidas”, Criminalidade e Trabalho no Rio de Janeiro dos anos 20 e 30, da qual foram extraídos alguns trechos, além da redação inédita para o texto corrente. 1 uma estratégia de combate ao "problema do menor", a que nos referimos acima, que é como passou a ser entendida desde então a política voltada para a infância. A vida social urbana, especialmente nos centros maiores e, em particular, na capital do país, em processo acelerado de crescimento (demográfico, econômico, etc.), tornava-se mais complexa e assustadora para grandes parcelas das elites governantes nas primeiras décadas da República. Era um tempo de incógnita, de transição ... que não escapou a um olhar crítico como o de Evaristo de Morais. Nos saberes científicos deste momento, colocados diante de tais desafios, destacava-se a consolidação de uma medicina do comportamento através de diversas vertentes: higienista, psicológica, psiquiátrica, etc., ao lado da implantação das especialidades médicas infantis: puericultura, pediatria, psicologia infantil. Não é difícil compreender-se como uma tal saber tangencia o outro, no campo jurídico. "A infância passa a ser o fundamento da profilaxia do mau caráter, do crime, das más tendências, maus hábitos, comportamentos defeituosos, a fim de que, a partir dela, passem a triunfar a normalidade (...) e a harmonia social, (...) dois polos da mesma esfera" (ALBERTI, 1984: 74). O foco do nosso trabalho não é a atuação da corporação médica, a qual contribuiu no balizamento dos marcos em que se pensava o controle e o disciplinamento de um setor da infância percebida como "desvalida", "perigosa" ou "em perigo de o ser", num "período profícuo da história da legislação brasileira para a infância", como constatou Irene Rizzini (Idem, Ibid). Na verdade, nosso objeto de estudo diz respeito à análise da atuação do primeiro Juízo Privativo de Menores (o da capital do país), no período inicial após a sua criação na década de 20 – regulamentado pela lei nº 16.272 de 1923 e, posteriormente, pelo Código de Menores de 1927. O estabelecimento deste órgão foi resultado de um longo debate nos meios intelectuais, principalmente médicos e jurídicos, mais intenso a partir do final do século retrasado, pretendendo-se sanar uma suposta omissão pública no atendimento a setores da sociedade vistos como deficitários ou “desvalidos”, em suma, “inferiores”, com uma política estatal “cientificamente” organizada. Embora não sem disputas ideológicas diversas, tornou-se consenso, paulatinamente, no movimento reformista do primeiro período republicano e refletido nas publicações acadêmicas e jornalísticas, ao mesmo tempo que construído por leis, a visão de que as mudanças econômicas e sociais – como a urbanização crescente, o “industrialismo”, etc. – acarretam mudanças nos valores morais da família, cuja maior vítima seria a infância, bastando observar o espetáculo degradante das ruas. Essa situação tornaria as crianças potencialmente criminosas, justificando uma “desprivatização” da família. Uma causalidade “moral” dos males sociais fundamentou a Revista História - 56 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. emergência de uma abordagem terapêutica, de base médica, de prevenção e cura – para isso reclamando um profundo esquadrinhamento das condições de vida dos segmentos da sociedade mais expostos à “desorganização” e à “anomia”. Os métodos de classificação, categorização e intervenção foram buscados na ciência do tempo, positivista e naturalista – mas a instituição que se especializou na “tecnologia do exame” foi o aparelho judiciário, locus por excelência do inquérito e da investigação do “desvio” às normas. No meio jurídico, após vários projetos de lei, tornaram-se consenso algumas idéias básicas das medidas a serem adotadas nesse campo, segundo Irene Rizzini (1995: 124): a tutela oficial do estado, o papel proeminente do juiz e do tribunal especializados, a fixação da idade penal em 14 anos, o escrutínio sobre a vida do menor e de sua família, corrente e passada, controle sobre essa última em função do pátrio poder e criação de estabelecimentos diferenciados de prevenção e reforma, segundo a avaliação de “abandonados” ou “delinqüentes” – concepções depois consagradas na lei. Consolida-se a noção, que permaneceu quase inalterada até hoje, de responsibilização da família e, de forma mais genérica, a “condenação” do meio de origem das crianças e adolescentes dos estratos mais pobres. Fontes de pesquisa No artigo 1º do Código de Menores de 27 delimitava-se a população abrangida pelas suas medidas, o “objeto e fim da lei”: “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autroidade competente às medidas de assistência e proteção contidas nesse Código”. Este é o texto completo do artigo, único do Capítulo Primeiro, para o qual parecia caber ao menor ser abandonado ou delinqüente, bastando à autoridade competente, no caso o juiz ao final da instrução processual, determinar uma das duas possibilidades para lhe providenciar o destino apropriado, auxiliado na sua decisão por “precisas informações, a respeito do estado físico, mental e moral dele [menor] e da situação social, moral e econômica dos pais, tutor ou pessoa de sua guarda”. Tais informações, fornecidas pelos funcionários do órgão – previstos na lei 10 comissários de vigilância e 1 médico – eram exigidas para os processos de ambos, abandonados ou delinqüentes, inclusive para aqueles a quem se consagrou a inimputabilidade penal absoluta, os de idade inferior a 14 anos. A investigação ampla e minuciosa1 a que eram submetidos as crianças e jovens apreendidos com base nas definições da lei, A ênfase dada a essa investigação pode ser avaliada pelo número de artigos do Código em que essa determinação aparece nos capítulos VI e VII 1 corresponde ao que foi denominado de inquérito social por Donzelot (1986), dentro dos mecanismos individualizantes de que trata a antropologia criminal, cujos paradigmas se inseriam na chamada criminologia positivista, de origem lombrosiana. Aliás, segundo as concepções desta, o que importava era antes o “deliqüente” do que o delito, mais as circunstâncias da sua vida do que as do ato praticado, este mais como valor sintomático da personalidade do indivíduo e, por decorrência, como “qualificação” do seu meio de origem. Ganhando um espaço irrefutável e cada vez mais importante, o “novo” inquérito promove a transformação da justiça do delito na “justiça do comportamento”, instância, portanto, de normalização social. São este questionários, presentes nos processos desde a fundação da Justiça de Menores, as principais fontes primárias da nossa pesquisa. Optamos pelos processos do 2º Ofício, uma vara criminal, onde o cumprimento da determinação legal de investigação dos indiciados nos pareceu mais regular, proporcionando séries mais completas do material. Por outro lado, consideramos que os processos criminais nos permitiriam o acesso aos mecanismos de apreensão de uma parcela da população considerada em situação de ameaça social. Foram Revista História - 57 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. quase 400 processos referentes aos anos de 1925, 1928 e 1932 e alguma coisa de 19371. Desde já salientamos que, tratando-se de um estudo envolvendo a criminalidade, real ou suposta, aceitamos o pressuposto geral segundo o qual “não é possível” considerar a criminalidade como um dado pré-constituído às definições legais de certos comportamentos e certos sujeitos” (BARATTA, 1986: 22). Tal abordagem, constituída em oposição ao paradigma etiológico (correcionalista) informado pelo modelo positivista, parte de uma perspectiva macro-sociológica como fator central para o estudo e a interpretação da conduta desviada, e é beneficiária das obras de autores como Foucault (1977) e Donzelot, que questionaram e desnaturalizaram a noção de delinqüência, trazendo à luz a dimensão que antes permanecia oculta: a intervenção social, fruto ela mesma da contingência histórica. O tratamento das fontes compreendeu o levantamento e cruzamento dos dados seriais constantes dos documentos, os quesitos dos questionários, preenchidos pelos técnicos judiciários. Tais quesitos abrangiam os dados pessoais e profissionais dos jovens e suas famílias, que culminavam em um texto qualitativo com o título Conceito do Comissário de Vigilância, por nós também interpretado a respeito da mentalidade Balizas cronológicas: um ano após o começo do funcionamento do Juizado, um ano após a entrada em vigor do 1ºCódigo de Menores (27) e após o início dos anos 30, período de crise. 1 vigente. Sem pretender reconstituir a fala e as representações dos jovens das camadas populares, objetivamos detectar “algumas regularidades que permitam perceber valores, representações, comportamentos e normas sociais” (B. Fausto, Crime e Cotidiano, apud RIBEIRO, 1993: 6) que circulariam na sociedade mais ampla. Os questionários pretendiam traduzir a “realidade”, contribuindo para a construção e reificação de crenças e valores sociais (relativos à infância). Mas toda essa “manipulação” de idéias e representações ou “tecnologia do saber” não se opera no vácuo. Não se pressupõe que esse exercício de controle e vigilância, ou seja, de poder possua uma “absoluta eficácia aculturante”, pois não pode prescindir de uma “sinatonia com as táticas de consumo e de utilização daqueles [que tem] por função modelar” (CHARTIER, 1990: 60). Estamos, assim, expondo resumidamente a perspectiva do fordismo gramsciano adotada, quanto à internalização dos valores burgueses pelas classes operárias junto à sua sujeição ao trabalho fabril. No nosso caso, será verificado o processo de construção das “modernas” concepções de infância, quando ocorre o confronto e a disputa pelo domínio de uma determinada concepção, envolvendo as noções de infância trabalhadora x infância delinqüente (V. ASSIS, 1997 e BRAGA, 1993, para o contexto brasileiro, e ARIÈS, 1981, sobre a história da constituição da noção de infância). Porém, não visamos o pensamento intelectual dominante, mas a apreensão de práticas, particularmente as judiciais, que emergem dos documentos através de representações que operam historicamente no interior da sociedade, construidas coletivamente. A partir do que foi exposto, iremos destacar agora a parte do material coletado que versou sobre os dados pessoais e familiares dos jovens selecionados: os perfis percebidos segundo a cor, sexo e composições familiares. A proposta se resume a apreender como eram “traduzidos”, na prática cotidiana judiciária, os conceitos de desvio/delinqüência a partir dos jovens retidos – considerando as imagens e representações mais recorrentes, além de comparar as proporções dos delitos, de acordo com os mesmos critérios, com as sentenças. Poder-se-á verificar determinados préconceitos sobre “desestruturação” familiar, cor e sexo que indicariam uma ameaça potencial à sociedade. Perfil das crianças e jovens criminalizados – Os “filtros” da Justiça de Menores A) A imagem: cor e sexo Um dos conceitos mais disseminados e de maior longevidade nas teorias e análises da criminalidade, bem como no senso comum, diz respeito à determinação de uma debilidade, biológica/racial ou cultural, aos agentes do crime, em oposição aos indivíduos “normais”, de forma a Revista História - 58 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. construir um “outro” com características distintivas dos demais integrantes da sociedade. Historicamente, tais teorias correspondem à criminologia positivista – opondo-se ao direito clássico – esboçada desde meados do século retrasado e consolidada no século passado. Nessa visão, o delito seria determinado por causas biológicas, especialmente as hereditárias. A antropologia criminal (lombrosiana), condenando a suposta “metafísica” da livre vontade individual1, propõe uma gradação de responsabilidade segundo fatores biológicos e (segundo posteriores desdobramentos da teoria) psicológicos e sociais, dedicando-se a construir uma tipologia dos criminosos2. Para essa concepção determinista da realidade, cada indivíduo é um caso, dando-se mais ênfase menos às circunstâncias dos delitos do que às características pessoais do “delinqüente” – de modo a avaliar sua suposta periculosidade “natural”. Na história penal brasileira3 do início do período republicano conviveram as duas concepções, clássica e positivista, alternando-se em cada etapa do processo – seleção, inquérito, acusação e julgamento. Segundo Ribeiro contribuíam para a escolha “provavelmente fatores de hierarquização, estigmatização e De acordo com a concepção liberal do delito como um ente jurídico, ato da livre e plena responsabilidade do indivíduo. 2 A abordagem lombrosiana foi consultada em BARATTA, 1986. 3 E dos paradoxos da nossa cultura de modernização autoritária e excludente. 1 diferenciação de caráter puramente sócio-culturais” (1993: 37). Passemos aos dados: as tabelas abaixo permitirão a caracterização de alguns aspectos da parcela da população investigada. Observando-se a Tabela 1, verifica-se que as crianças que passaram pela justiça de menores nos anos apontados são em, em sua maioria, brancas, numa proporção aproximada à indicada pelo Censo na tabela seguinte, assim como seus pais. Desse primeiro resultado, infere-se que a situação de ameaça e alarme social precebida nas primeiras décadas do séc. XX “naturalmente” associada a indivíduos negros e pardos não se justifica, a julgar pelo estudo da amostragem pesquisa na instituição pública encarregada de seu controle. Deixemos de lado os dados sobre nacionalidade, que não interferirão no foco que estamos imprimindo a esta comunicação, e passemos à cor das meninas. Em primeiro lugar, salta à vista o predomínio da população masculina no universo “criminal” estudado, ficando as meninas com cerca de 10% da amostragem dos documentos; e, entre elas a prevalência das jovens negras e pardas, especialmente as negras, o que é absolutamente o oposto do que ocorre na população masculina em estudo e na da cidade do Rio de Janeiro, segundo o Censo da época. Quanto ao primeiro ponto, não é de surpreender, visto que é notório e sabido, pelos estudos do tema (por exemplo PERROT: 1989 e ZALUAR: 1993, respectivamente França e Brasil), que as estatísticas mostram o “domínio” masculino da criminalidade. Na ausência de um maior número de pesquisas sobre a criminalidade com enfoque quanto ao genero, podemos afirmar – com nossos resultados – que a preocupação maior das agências governamentais repressivas no período em tela recaía sobre os rapazes, talvez porque olhassem com mais interesse para a formação da juventude trabalhadora – portanto, masculina. Revista História - 59 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. E, provavelmente por isso, emerge dos nossos dados uma maioria de moças não-brancas que, como será visto logo adiante, se ocupam em grande parte das atividades domésticas – aliás, independente de cor. São essas “serviçais” da casa “de boa família” que são pilhadas pelas redes policiais/judiciárias. Nessas relações e conflitos patrões/criadas, o índice maior de delitos será especialmente o dos crimes contra o patrimônio (furto), numa taxa maior do que a verificada para a totalidade dos processos analisados. "desviantes", pelas instituições policiadoras, não são destituidas de raízes familiares. Ao serem inquiridas, apontam para a existencia, em 87.4% dos casos, de um ou ambos os progenitores. O perfil familiar destes nãoórfãos aparece com maior clareza na proxima tabela, onde é discriminado o estado civil dos pais, configurando-se assim os tipos de família em função do número de cônjuges e da legalidade da união. vezes através de suas investigações nas vizinhanças ou em locais tidos como relevantes. É desnecessário dizer que não pretende retratar a "realidade" dos fatos, mas sim como estes sao "lidos" ou descritos pelas partes interessadas. B) Situação Familiar – As crianças, seus pais, seus lares Percebe-se - já nessa divisão mais simples - que as crianças recolhidas, devido a comportamentos Tendo em vista apenas o total dos individuos não-órfaos (271), observa-se que o percentual de crianças provenientes de familias completas (com ambos os progenitores) ultrapassa os 60%. Na outra ponta, as crianças que se originariam de "lares desfeitos", compreendendo um unico cônjuge nãoviúvo (separado), correspondem a 10.0% do mesmo universo. Convém ressaltar que o painel familiar está montado com base nas informações prestadas pelas próprias crianças, ou por seus progenitores, endossadas pelo Comissário de Vigilância, muitas Não é necessário alongar-se demasiadamente na análise deste quadro. Nota-se com nitidez a "desvantagem", do ponto de vista da "estabilidade", das famílias dos jovens não brancos (a referência de cor foi tomada a partir das criancas e não de seus pais). Entre os brancos, a família completa oficial entra com uma taxa de quase o dobro das famílias negras e pardas; assim como a taxa de orfandade é maior entre os últimos, sugerindo um maior índice Revista História - 60 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. de mortalidade nessa população. Outro dado “alarmante” seria o de uniões consensuais, com taxas mais altas nas famílias não-brancas. Nos três grupos de cor, os jovens resguardados pela proteção proveniente da família são maioria. Porém, também neste quadro o grupo branco apresenta dados mais "favoráveis" no que tange à "organização" familiar. C) Dos delitos e das penas Por não ser possível aprofundar a análise desse tópico demonstrando exaustivamente os dados colhidos, vamos apontar somente os resultados e interpretações que elaboramos na nossa pesquisa original. A partir do cruzamento dos dados, verificamos com mais clareza o que havíamos dito acima a respeito do peso maior do preconceito incidindo sobre os negros, o qual, contribuindo para aprofundar o estigma racial, não contribui menos para reproduzir as relações sociais da sociedade carioca e suas hierarquizações - perpassadas por seculares dicotomias de cor. Praticamente a metade dos jovens negros, ao serem confrontados com o Juízo, foram retidos para uma pena "regeneradora", que os pudesse "curar" para um futuro melhor como cidadãos e os "educar" dentro de profissões prédeterminadas, oferecidas pelos cursos dos institutos reformadores. Quanto aos jovens brancos, pertencentes ao mesmo universo social e econômico dos seus colegas de "desvio", receberam penas de internação em menos de 20.0% das vezes; já os pardos se situaram numa posição intermediária (35.0%), embora numa proporção superior à dos brancos. Sem contar que aos jovens não brancos foram designadas menos condenações que não acarretaram internação; esse tipo de condenação, aliás, às vezes ocorria por excesso de lotação dos reformatórios. É preciso, porém, que seja enfocado mais de perto o tipo de delito cometido por maioria negra, que vem a ser aquele contra a propriedade1: pudemos verificar que foi o que mais produziu internação. Os crimes sexuais e os crimes de sangue foram perpetrados por uma maioria branca (quase 80% em cada tipo, dos processos analisados), invertendo-se a teoria da suposta “sexualidade desenfreada” dos negros, bem como de sua suposta periculosidade; mas o que chama a atenção é a baixa proporção de penas imputadas aos jovens brancos, autores desses crimes – tendo em vista as metas do tribunal especializado. E investigando um pouco mais, verificamos que todos os indícios apontam para uma repressão maior (penalização) daqueles indivíduos menos “protegidos” pela família nuclear completa. Se formos nos deter na quesito de qual sexo predominou nas condenações, a surpresa cresce. Identificamos que, ao final dos processos, aproximadamente cerca de 45% das jovens receberam sentença condenatória (do total das indiciadas), ao passo que os rapazes, dentro do seu universo de gênero, ficaram retidos em 25% do total. Talvez se possa explicar este resultado pela pressão moralizadora maior sobre as moças, ocultando mais ainda as condições de pobreza. A Justiça de Menores propunha-se à “salvação” da infância, mas acabou, no período estudado, como um órgão de controle e repressão social, influenciado pela ideologia do “branqueamento” – e não por um conceito de cidadania plena e universal. Os crimes contra a propriedade alcançaram 40% dos processos que foram adiante. 2 1 Jovens domésticas na mira da lei Há que se compreender o porquê deste "zelo" excessivo com relação às jovens domésticas, e não só às da Zona Sul2, mas a todas em geral. Ser-nos-ia impossível, tendo em vista o escopo deste trabalho, Onde se localizava a maioria das residências patronais das jovens pesquisadas Revista História - 61 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. fazer uma análise aprofundada a respeito da moralidade sexual vigente e atuante, presente no discurso reformista do anos 20 e 30. Abordagens a esse respeito já vêm sendo feitas na área da historiografia de gênero, das quais as mais representativas se inserem no campo do estudo da criminalidade, tais como as de Martha Esteves (1989), Raquel Soihet (1989), Sueann Caulfield (1993 e 1994), ou da prostituição, como o trabalho de Magali Engel sobre "meretrizes e doutores" (1990), não consultado aqui. Para os fins a que nos propomos, quais sejam, delinear de forma sintética as imagens dominantes a respeito das moças pobres e criminalizáveis, nos serviremos, principalmente, do sugestivo artigo de S. Caulfield (1993), denominado Getting into Trouble: Dishonest Women, Modern Girls, and Women-Men in the Conceptual Language of "Vida Policial", 1925-1927, título que, numa tradução aproximada, ficaria: "Metendo-se em confusão: mulheres desonestas, moças modernas e a relação mulheres/homens na linguagem conceitual de 'Vida Policial', 1925-1927". Vida Policial foi uma revista de curta duração mas de intensa militância na difusão de conceitos tais como moralidade, normalidade x desvio, proteção dos valores familiares e, portanto, "da nação", etc., tendo como suporte teórico e conceitual as últimas descobertas da criminologia e da medicina legal, à serviço de uma "polícia científica": "a moldura conceitual que predominava em 'Vida Policial' combinava as teorias da depravação herdada e da inferioridade natural feminina com aquelas que destacavam os traços negativos adquiridos através da exposição a influências imorais" (CAULFIELD, 1993: 148). Dirigida por um advogado criminalista (Waldemar Figueiredo) e um capitão de polícia (Raul Ribeiro), seu público alvo era não só a própria polícia mas a população em geral; para divulgar suas prescrições a respeito das atitudes e condutas morais apropriadas, os editores lançaram mão de artigos escritos por autoridades legais proeminentes como Evaristo de Morais e Roberto Lyra, e, mais frequentemente, por especialistas acadêmicos no campo da medicina e da criminologia - em destaque a antropologia criminal lombrosiana. Pela análise do material fornecido pela revista (editoriais, reportagens criminais sensacionalistas, comentários e estórias ficcionais detetivescas, etc.), a autora pôde verificar que a noção de gênero "estruturava o sistema conceitual do conhecimento criminológico e que a sexualidade era uma preocupação básica no trabalho de imposição da lei" (Idem, Ibid.). Não são outras as conclusões de Esteves e Soihet, por exemplo; ademais, tais autoras, além da que estamos utilizando, situaram as políticas públicas relativas à repressão policial e jurídica das primeiras décadas republicanas - dentro das quais a que envolvia as mulheres, tanto no papel de ofensoras como no de vítimas, principalmente de abuso sexual - no contexto de "modernização autoritária" promovida então, de base ideológica "cientificista" e fundamentada em idéias de racionalidade e eficiência como estando acima da política e dos anseios (contraditórios?) da população (mas em nome do seu "bem-estar"). Sintonizada com o seu tempo, os objetivos da revista Vida Policial ultrapassavam os da "pedagogia" imediata quanto à moral e os bons costumes: visava angariar para a corporação que representava a simpatia e o prestígio públicos, uma vez que a mesma não gozava de boa fama no seio da sua clientela (a esse respeito, v. também Bretas, 1995) . A revista publicou, enquanto durou, incontáveis artigos sobre decoro público, sexualidade, honra pessoal e familiar, e muitos outros desse quilate, mas o que mais nos chamou a atenção - aliás, a atenção de S. Caulfield, que nós aproveitamos - foi uma seção intitulada "Eles e Elas", de periodicidade semanal como a própria revista. Todo o linguajar que associava "doença, depravação, penetração estrangeira, mulheres 'desonestas' e a ruína da família e da nação" (Idem: 154) figurava em tal seção, em reportagens cujas "estrelas" eram empregadas domésticas indiciadas por furto contra seus empregadores, inclusive ilustradas por fotos criminais. Fazia-se uma verdadeira e contínua campanha contra a ameaça dessas "criminosas" e seus parceiros, seres que colocariam em perigo a "tranquilidade do lar". Ameaça suposta e, para Caulfield, injuriosa, já que nunca eram anunciados os vereditos dos processos respectivos. Os homens eram, Revista História - 62 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. na maioria, suspeitos de vários tipos de vigarice, pequenos furtos, fraudes, falsificações e roubo. E esses indivíduos poderiam obter acesso às "casas de família" justamente por meio das "criadas". A grita era enorme, e o que mais parecia preocupante aos editores não eram os delitos em si mas o que poderiam significar, na sua visão: "deslealdade", "cinismo" e "traição" àqueles que as haviam acolhido. Com o propósito de auxiliar as "boas famílias" a reconhecer o perigo e identificar naqueles que batiam à sua porta em busca de um simples emprego doméstico os que eram criminosos em potencial ou "de fato", as reportagens abusavam de perfis apavorantes, recorrendo às categorias criminológicas conhecidas de tipos desviantes e patológicos. Além de propiciar o obscurecimento das origens do conflito social ao responsabilizar a "natureza" dos indivíduos como fonte de todos os males, a revista reforçava a construção de imagens do desvio e da respeitabilidade fundamentadas por categorias de raça e gênero. Sobre as moças com emprego doméstico (havia rapazes nesta função, ainda que poucos - 35% nos nossos dados relativos à tal ocupação) recaíam as cargas maiores da difamação calculada que a revista desenvolvia na sua empreitada "educativa". Eram facilmente tidas como prostitutas ou prostituíveis, responsáveis pelo abuso sexual de que eram habitualmente presas. No seu livro, Martha Esteves demonstrou que o recurso a noções desse tipo pelos advogados que defendiam os suspeitos como "defloradores", disseminadas na teoria e prática jurídicas, era a tônica geral. Nos processos de defloramento por nós encontrados na nossa pesquisa, invariavelmente envolvendo jovens de situação social oposta, também. Nas teorias da nova criminologia positivista, cujo pilar básico eram os "aspectos familares e hereditários do crime" (BRETAS, 1995: 206), era reservado à mulher um "poder" imenso na sociedade, responsável que era pela reprodução e educação das gerações futuras. No último capítulo de sua tese, denominado Policing Women, Bretas ressalta que um fato pouco reconhecido nos estudos criminais sobre as ocorrências envolvendo mulheres é "o importante lugar que ocupavam [esses tipos de caso] entre os deveres policiais" (Idem, Ibid.), demonstrando o quanto tais noções já estavam apropriadas pelas diversas práticas das políticas públicas, além das mais conhecidas, como as médicas e jurídicas. Sem contar que ocorrências criminais em geral eram e são tidas como "apelativas" o bastante para interessar à imprensa - e inúmeros exemplos ilustram os estudos a que já nos referimos, mas nenhum trabalho de caráter histórico trata exclusivamente da relação entre o papel da mídia na divulgação dos casos e, com estes, das noções e conceitos correntes a respeito dos papéis sociais e sexuais de mulheres, homens, crianças e adolescentes. No entanto, este papel não deve ser negligenciado, uma vez que, formadora da opinião pública, a imprensa contribuía e contribui pontualmente na criminalização de estereótipos, majoritariamente associados aos signos de classe e pobreza. A "demonização" que a imprensa tem produzido ao longo do tempo sobre determinados grupos da sociedade só varia, ao que parece, com relação aos eleitos. Tomamos emprestado de Vera Batista (1996) o termo "demonização", que ela emprega para o universo do atual tráfico de drogas no Rio de Janeiro de forma bastante sugestiva. De acordo com esta autora, na conjuntura brasileira de 1978 a 1988 houve um "deslocamento do inimigo interno, do guerrilheiro/terrorista para o bandido/traficante. A mídia se encarrega de esculpir o novo inimigo público, o traficante armado. O estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela" (BATISTA, 1996: 233). Paralela à "aceitação do consumo social e da cultura das drogas" (Idem, Ibid.), há uma "demonização" daqueles que exercem o tráfico na sua ponta menos oculta: a distribuição, efetuada pelos jovens dos morros, sujeitos, graças também (mas não só) a essa exposição, à corrupção policial e ao extermínio. Na década de 20 a demonização em voga na imprensa recaía sobre as empregadas domésticas, além de outro serviçais e subalternos, o que pode nos parecer simplório hoje mas nos leva a perguntar se era o produto, o reflexo, Revista História - 63 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. dos contrastes sociais gerados não só pela eternização de padrões econômicos excludentes, já fartamente reconhecidos, mas também pelos da urbanização elitista carioca (e brasileira), que instala a mais extremada miséria no seio da mais extremada riqueza, a "desordem" em meio à mais enganosa "ordem". BRETAS, Marcos L. A Guerra das Ruas. Povo e Polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio, IUPERJ, Dissertação de Mestrado, 1988. Idem. You can't! The daily exercise of police authority in Rio de Janeiro: 1907-1930. S/l, Department of History, Faculty or Arts, The Open University. Tese de Doutoramento, 1995. CAUFIELD, S. 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Para tal, confrontamos a realidade escravista fluminense, com a sociedade burguesa européia, em processo de consolidação, tendo individualismo e liberdade como categorias privilegiadas para nossa análise. Percebemos, com isso, que, a despeito da concepção prisional das prisões ter sido assimilada igualmente nos espaços confrontados, na Europa ela representava uma parte coerente do processo de afirmação burguesa, enquanto que no Brasil, era assimétrica à prática escravista. Palavra chave: prisão, indivíduo, liberdade Abstract This work is part of the initial investigations undertaken in the doctoral course in Social History at the Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Its goal is to compare the European and Brazilian realities, and within this the Rio de Janeiro State’s during the nineteenth century by the time of the creation of imprisonment as a penalty of deprivation of liberty. We confront to this purpose the slave life of Rio de Janeiro with the European bourgeois society in the consolidation process, with individualism and freedom as privileged categories for our analysis. We realize, therefore, that despite the design of prisons had been treated equally in the spaces confronted, in Europe it represented a coherent part of the process of affirming bourgeois, while in Brazil, was skewed toward the practice of slavery. *** O advento da prisão moderna e seu tempo Os estudos sobre as prisões ganharam vários adeptos em todo o mundo, a partir da segunda metade do século XX. Contudo, nas duas últimas décadas, com a violência ocupando um lugar de destaque no cotidiano e com o fato da população carcerária ter dobrado em todos os países (Wacquant, 2008), estes estudos se impuseram como urgentes. No presente trabalho, buscamos entender a prisão moderna, seu papel na ordem estabelecida, e seu desempenho na sociedade européia e brasileira/fluminense, para, a partir das peculiaridades percebidas, avançarmos sobre a análise de nossa sociedade e da forma como essa prisão construiu o nosso presente. A obra de Foucault pode ser dividida em empreendimentos genealógicos e arqueológicos, onde o autor se dedica a analisar a origem e o funcionamento, respectivamente, de estruturas que reproduzem relações de poder. Em Vigiar e Punir, obra que versa sobre as prisões modernas, Foucault (1987) associa diretamente o surgimento da pena por reclusão à passagem do Antigo Regime à sociedade capitalista. É na passagem do século XVIII para o XIX que, lentamente, e respeitando a dinâmica de cada país, o corpo do condenado deixa de ser o alvo da punição para que seja atingido o delito. Assim, ao invés do castigo corpóreo, passa-se a privar o criminoso daquilo que recém assume o status de bem maior – a liberdade. Até então, a reclusão, ou mesmo a prisão, eram espaços existentes onde o criminoso era recolhido até o momento efetivo do cumprimento da pena, normalmente marcada pelo suplício em público. Essa mudança, como o próprio autor nos aponta, não se afirma por uma mudança de consciência da sociedade ou aumento do aspecto humanitário. Para além dessas questões subjetivas, Revista História - 65 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. está a transformação da sociedade que agora passa a se alicerçar por valores burgueses. A naturalização do processo histórico foi um importante elemento ideológico para a construção da hegemonia da classe emergente. Apoiada em valores positivistas, e por absoluta antítese ao ideário do Antigo Regime, tal preceito defendeu o progresso natural da história como afronta ao poder do monarca que, visto por eles, era anti-natural, imposto. Afirmava-se, ainda, a necessidade de uma igualdade jurídica entre os cidadãos. Só assim, acreditavam, seria possível viabilizar tal progresso. Livres do julgo limitador do déspota, os indivíduos progrediriam naturalmente. É preciso que se perceba que a referida naturalização do processo histórico ganha em coerência ao despersonalizar as relações de dominação, com a saída de cena do monarca. Dessa forma, sem a figura direta, pessoal, do opressor, fica mais fácil crer no curso inevitável da história, já que a dominação impessoal através das relações de produção se apresenta de forma inédita e sofisticada para o olhar do cidadão senso comum. Saídos de uma relação em que o opressor tem nome, trono e coroa, o cidadão comum não consegue percebê-lo como tal em uma sociedade onde todos, juridicamente, são iguais. A desigualdade e demais agruras das relações sociais de produção, sem autor, se enquadram no hall dos feitos naturais da história. Dessa forma, saem absolvidos, não só os setores dominantes da sociedade, como, principalmente, a forma pela qual ela se organiza. Para completar tal quadro, a aceitação do processo histórico de forma acrítica gera a conseqüente idéia de anulação do homem enquanto sujeito histórico. Crendo na sua passividade, tal postura se apresentará nas ciências sociais, desenvolvendo o mito na neutralidade científica retroalimentando a idéia do homem observador passivo da sociedade (Lowi,1988). É nesse contexto, de construção de uma ordem de diferenças naturalizadas, que perceberemos a pertinência das prisões modernas. Para tal análise partiremos da exposição de Foucault sobre a prática dessas prisões, para então entendê-las como instrumentos da nova sociedade em construção. O suplício imposto ao condenado, tortura que muitas vezes levava a morte, em público, colocava o Estado em uma difícil posição. O criminoso, ao ser anunciado, recebia toda espécie de protestos daqueles que se agrupavam para ver sua desgraça. Contudo, o desenrolar da penalização, marcada por excessiva violência, acabava por gerar um sentimento de compaixão ao criminoso, elevando o Estado à condição de violento. As medidas geradas para minimizar a relação direta do Estado com o condenado, como a guilhotina, minimizando o toque no corpo da vítima e o capuz usado pelo verdugo, numa tentativa de despersonalização, não foram suficientes para eliminar a autoria da execução. O absolutismo é, por princípio, personalista. Qualquer ação do Estado era uma ação pessoal e a eliminação dessa prática só viria acompanhada de uma mudança social que, ao mesmo tempo, corroboraria a nova ordem. A troca do suplício pela supressão da liberdade significa, também, a naturalização do processo histórico. O Estado não se apresenta mais como um tirano torturador e passa a condenar não mais o indivíduo protagonista do crime, mas seu ato. Assim, ao invés de machucá-lo fisicamente, trata de seu comportamento. Essa transformação da prática tem grandes implicações. Em primeiro lugar, entendendo as relações sociais como naturais, o ato delinqüente fica restrito ao desvio pessoal. Ou seja, em uma sociedade em que, por princípio, todos são iguais, em que se venceu a tirania absolutista, ferir as regras de convivência social passa a ser visto como um erro de conduta sério, porém pessoal. O delito agride a sociedade em suas estruturas e aparelhos. Dessa forma, a penalização também não será mais personalizada, nem por parte de quem condena, nem de quem é condenado. Se as instituições é que são feridas, igualmente serão elas que cuidarão e julgarão o ato. Assim, a prisão deixa de ser um depósito temporário de degredados a espera de seu castigo, para ser ela própria o fim da execução. Destarte, não mais pela tortura, mas pela correção. As prisões no século XIX passam, gradativamente, a cumprir o papel de formadoras daquilo que Foucault chama de alma. Logo, passam a contar com psicólogos, assistentes sociais, educadores. Individualizado, o Revista História - 66 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. desvio passa a ser qualificado socialmente por esta gama de profissionais, e o elemento da loucura ganha ênfase nos diagnósticos/sentenças. Essa prática que, para muitos, abranda a punição nada mais é do que a mudança de alvo. Não é mais o indivíduo criminoso que é inaceitável, mas seu ato. Toda essa transformação absolve e reconfigura o Estado perante a sociedade. Ele não é mais um carrasco do indivíduo. Não se apresenta mais como um torturador. Pelo contrário, passa a ser visto como aquele que, tratando todos de forma igual, tem no princípio da liberdade individual e da oferta de oportunidades os alicerces do progresso natural da sociedade. Mais do que não ser visto como violento pelo cidadão, ele se apresenta como benevolente, já que, para além da oferta das benesses do progresso, se dedica a corrigir aqueles que falharam em seu papel de cidadão quanto ao convívio social. Na mesma medida em que se naturalizam as relações sociais, se absolve a sociedade de qualquer culpa quanto aos atos provocados pelos cidadãos. É um outro aspecto da mesma face do individualismo. Ou seja, o caráter correcional das prisões, hora equipadas por profissionais formadores de conduta, afirmam o caráter desviante do delinqüente, repousando sobre sua vontade ou debilidade moral ou mental, qualquer responsabilidade sobre seus atos, como se não fossem estes produtos também de uma sociedade e seus valores. Cabe destacar que diagnósticos de loucura para criminosos, embora os isentassem parcialmente da culpa dos seus atos, cumpria a importante função de associar a insubordinação à norma de convívio social a um ato irracional. Para a eficiente reforma da alma era preciso, além dos profissionais citados, a submissão a um regime de normas e horários rígidos. Assim, os apenados iriam exercitar a subordinação a uma norma de conduta, importante fator de preparação da alma para o retorno a sociedade capitalista. Melosi e Pavarini comparam a cadeia a uma fábrica pelo seu aspecto de alienação do fazer (Maia et al,2009). Ou seja, o lugar onde os sobrantes do capitalismo absorvem condições adequadas de submissão para serem absorvidos pela fábrica. Contudo, junto a este complexo aparato de normas e profissionais, era necessário implementar a consciência da vigilância. O aspecto panóptico, para isso iria ser fundamental. A prisão panóptica, idealizada em sua essência por Jeremy Bentham (Maia et al, 2009), previa uma disposição arquitetônica de modo a permitir que um guarda vigiasse muitos detentos que, por sua vez deveriam estar em celas individuais. A sala do guarda deveria, ainda, permitir a ele a plena visão de todos, tanto quanto os apenados não poderiam constatar a real presença do guarda. Mais do que refletir sobre aplicação ou não do panoptismo enquanto realidade física, é necessário, para o debate aqui proposto, perceber de que forma ele opera como torno da alma. A certeza de estar sendo vigiado se torna mais relevante do que sua efetividade. Ela constrói a real vigilância na medida em que é internalizada pelo indivíduo. Assim, numa sociedade que se baseia na naturalidade das relações e na invisibilidade do dominador, a ingerência de profissionais formadores de valores, a submissão a normas e a certeza de estar sendo controlado formam a trilogia da moderna dominação. É dessa forma, portanto, que a prisão moderna se associa à afirmação da sociedade burguesa na Europa. Dentro da lógica do progresso natural da sociedade, em que suas relações não são discutidas, a prisão surge como um aparelho que reforça o caráter benéfico da sociedade que, além de oferecer oportunidades, se esmera em corrigir aqueles que falham para com o convívio social. O indivíduo, que é levado à passividade enquanto sujeito histórico, é, contudo, e contraditoriamente, autor único do seu mau feito. A liberdade é, ainda, afirmada como valor fundamental quando sua privação se torna o castigo maior para aqueles que desviam. Tanto quando o trabalho forçado entre presos é proibido, visto que se pretende associar valores positivos ao trabalho livre assalariado, não cabendo, pois, vincular esse nobre ato a passagens negativas como a penalização de detentos, degredados da sociedade. Revista História - 67 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. A prisão moderna e os séculos XIX O terreno da análise histórica oferece armadilhas constantes e perigosas àqueles que trilham seus caminhos. As semelhanças entre processos que ocorrem em períodos ou realidades diferentes é um bom exemplo disso. Frequentemente, historiadores simplificam suas análises em função da percepção de algumas semelhanças. Contudo, há que se perceber que repousar o olhar apenas sobre as coincidências implicaria na construção de uma história inerte. Hobsbawm (1998) afirma que devemos observar as diferenças, e não as semelhanças, pois são elas que fazem mover a história. O presente se apresenta sempre mais novo do que repetido. São justamente os aspectos referentes aos padrões de mudança que levarão ao constante e dialético desenrolar da humanidade. Este problema se apresenta quando tratamos da introdução da concepção moderna de prisão, a partir do século XIX, conforme o exposto no início desse trabalho. O fato de ter havido esse mesmo processo na Europa e no Brasil leva alguns estudiosos mais afoitos a desconsiderar as diferentes realidades que marcam esses lugares. Ao dizermos que o século XIX, na Europa, é o momento em que o capitalismo se consolida, é preciso que entendamos que isso se dá através de um longo e sólido desenvolvimento da burguesia e de seus valores. Da mesma forma, quando apontamos a prisão como elemento de afirmação desta sociedade, entendemos sua atuação em total harmonia com seus princípios. Sendo essa nova modalidade de prisão um instrumento que priva de liberdade e responsabiliza o indivíduo por toda uma transgressão às normas sociais, entendemos, consequentemente, que INDIVÍDUO e LIBERDADE passam a ser conceitos fundamentais e portanto, passíveis de serem investigados mais de perto. A Idade Moderna, que para alguns é um período de transição da Idade Média à Contemporânea, se apresenta mais rica do que essa possibilidade simplista. É em seu decorrer que assistimos o indivíduo surgindo para o mundo com importância. Nesse período, há o rompimento com o holismo e, a partir de Maquiavel, percebemos o indivíduo protagonizando o processo histórico (Dumont, 1985). A trajetória de Maquiavel à Hegel, no tocante a concepção de Estado, vai nos apontar para um homem que assume pouco a pouco o domínio do mundo. Inicialmente formando uma monarquia inconteste, ele passa a questionar seus valores, na medida em que se desenvolve e consolida enquanto classe. A monarquia que é acima do homem, mas que foi construída por ele, vai sendo despida para que surja o indivíduo pleno. Assim, em exemplo mais objetivo, de Hobbes a Locke, assistimos a própria mudança do caráter monárquico em relação ao indivíduo, até que vemos o peso do Estado ser descartado por completo em Rosseau e outros (Gruppi,1985). A modernidade, portanto, seja expressa pela transição de modos de produção, seja pelas concepções de Estado, ou por outro paradigma, é o locus de uma transição que se dá ao consolidar valores que se definem de forma sólida. O indivíduo, ao assumir seu lugar no mundo, sua centralidade, expressos em Calvino e a predestinação, no renascimento, e tantos outros exemplos, transforma radicalmente a Europa. De tal monta que percebemos os juristas assumindo papel proporcional ao dos filósofos no desenvolvimento e construção do ideário da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem (Dumont, 1985). O direito, até então refém da vontade do monarca, a partir da igualdade legal entre os cidadãos, ganha teorias e cuidados afirmando esse indivíduo na nova realidade européia. Tal prática é exemplar em seu caráter antitético ao absolutismo. Se apresentamos o século XIX como o da consolidação do capitalismo, podemos também, e porque não, consequentemente, entendê-lo como o da afirmação do individualismo. Contudo, essa ligação existente entre capitalismo e individualismo não se deu de forma tão harmônica ou sincrônica como pode vir a parecer. É preciso que se destaque, e isso é fundamental para o trabalho proposto, que a consciência do indivíduo, assim como a cultura relativa a seu direito, se dá antes mesmo desse indivíduo se perceber enquanto classe (Sennett,1988). Não há dúvidas que o processo que Revista História - 68 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. consolida uma cultura individualista privilegia a prática burguesa e é item fundamental para o próprio processo revolucionário. A grande transformação gerada neste processo cria, ao mesmo tempo em que consolida uma nova ordem, contradições que, por fim, acabarão por exacerbar ainda mais o individualismo. Mesmo aqueles que estavam envoltos na consolidação da nova ordem foram surpreendidos pela grande transformação. Embora inicialmente apenas Paris e Londres tenham se configurado em grandes centros urbanos (Hobsbawm,1982), o surgimento da urbanização foi fator de espanto e desconfiança na Europa. A aproximação das pessoas, a formação de novos grupos sociais, muitas vezes configurados por imigrantes, causa estranheza entre os cidadãos (Sennett,1988). Dessa forma, a reclusão, ou intensificação no particular, devido à desconfiança para aquilo que é público, retroalimenta a tendência individual. Para além da predestinação calvinista que favorecia o individualismo, esta própria prática vai se favorecendo do estranhamento exercido pelo espaço público para reforçar o privado. Assim, a família vai se tornando o espaço sagrado na medida em que reproduz as relações isentas das aproximações mundanas, enquanto os demais convívios sofrem a promíscua influência da exposição. As praças, vias públicas e demais espaços passam a ser o locus onde os indivíduos, em exibição aos demais, afirmam seus status. Ou seja, onde exibem e confirmam sua individualidade. O espaço público, portanto, se esvazia de significado ou conteúdo, sendo o palco de exibição do privado. Um espaço de verificação dos sucessos individuais, sem que, cada vez menos, possuam, por si, relevância para a construção do processo histórico (Sennett,1988). Esse feito, ao mesmo tempo em que justifica, é o resultado da exacerbação do direito individual que, como já fora citado, se iguala em importância à própria filosofia. Ou seja, a afirmação da existência individual em suas garantias legais se consolida sobre a prática do pensar a relação do mundo com indivíduo. Cada vez menos se pensa o todo, para pensar o individual. Mais que isso, naturaliza-se o processo histórico, fixando-se no feito pessoal igualmente naturalizado. Um bom exemplo disso é a dimensão que os fatos da vida privada dos políticos assumem na avaliação do público quando do momento eleitoral (Sennett,1988). É nesse contexto de século XIX europeu que surge a prisão tal qual conhecemos hoje e Foucault nos apresenta. Um instrumento que, ao mesmo tempo em que corrobora a desigualdade, é fruto desse processo de plenitude do indivíduo. Um aparelho que pune privando do bem maior – a liberdade – aquele que erra contra instituições e sociedade que, ainda assim, investem em sua correção. Uma instituição que, respaldada pela legalidade, afirma a igualdade de todos pelo pretenso ato da isonomia perante à lei e, assim, afirma a naturalidade das relações sociais, depositando no indivíduo desviado a responsabilidade pela sua má conduta. No Brasil, contudo, e mais especificamente no Rio de Janeiro, esse século traz grandes mudanças que, ao contrário do que uma análise afoita possa inferir, não se traduzem em transformações. O Rio de Janeiro já era um grande e importante porto. O advento do ouro em Minas Gerais consolidou ainda mais tal perspectiva. Destarte, apesar do grande fluxo demográfico proveniente da extração do ouro, da conseqüente urbanização e da riqueza gerada, tudo isso confirmava a lógica mercantil. A afirmação do Rio de Janeiro, era, antes de mais nada, o sucesso mercantil (Lessa,2001). Na seqüência desse acontecimento, tivemos a vinda da Família Real em 1808, e a abertura dos portos que, a despeito de, para muitos, ser a independência de fato (Prado Junior,1986), e trazer consigo um crescimento do aspecto urbano, ilustrado inclusive pela presença da corte portuguesa, esse processo também não transforma a realidade. Toda a série de mudanças na estrutura urbana da cidade foram, em última instância, ordenações dentro da mesma lógica (Lessa, 2001). Ruas sendo nomeadas e casas numeradas, sinalizações e a expansão da cidade através da instalação dos bondes se apresentam como facetas dessa organização. Estes aspectos facilmente confundidos com aspectos da modernidade, haja vista o paralelo que pode se fazer com a Europa que também passa por um grande fluxo urbano, podem nos levar a fáceis enganos. Uma cidade que nega o rural, se aglomera e se organiza desde sua origem em Revista História - 69 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. torno do porto com intensa variedade de etnias (Cavalcante, 2004), se expande pelo bonde, e inclusive conhece o vapor, tão associado a Revolução Industrial, pode ser superficialmente vista como alinhada a um capitalismo europeu. Entretanto, se analisada mais atentamente, pode ser entendida como o êxito mercantil escravista. O acúmulo de capital gerado pela atividade portuária, seja ela ligada ao tráfico ou não, jamais gerou uma acumulação que dialeticamente viesse a transformar as relações de produção. Pelo contrário, a riqueza fora construída pela escravidão e para afirmá-la. A própria industrialização no Rio de Janeiro do século XIX foi realizada com mão de obra escrava que, quando não majoritária, se apresentava em relevante proporção a mão de obra livre (Soares,2007). A industrialização, portanto, que poderia nos levar mais uma vez ao equívoco da vulgar comparação com a Europa, não só fora feita por escravos, como gerou novos mecanismos de exploração dos mesmos já que senhores escravistas lucravam através de vários mecanismos de seção de mão de obra, como o aluguel etc. Mais uma vez, vemos que aquilo que era o moderno na Europa reafirmava o arcaico fluminense. A própria ocupação de negros em ofícios de características de trabalhadores livres como ferreiros, cocheiros, ou mesmo em trabalho informal, pode ser vista como uma negação a proletarização. Embora, como vimos acima, o vapor, o bonde e a expansão urbana possam nos aproximar, aparentemente, da Europa do século XIX, a afirmação da sociedade escravista nos afasta. A presença do escravismo como alicerce, não só no tocante à mão de obra, como cultural, afasta a possibilidade do individualismo, tal qual o modelo europeu. Não há protagonismo do indivíduo, nem tampouco a valorização do direito enquanto afirmação do sujeito. Isso porque, obviamente, não há igualdade jurídica. A afirmação dessa sociedade é justamente a da anulação de igualdades e possibilidades individuais. O trinômio INDIVÍDUO X LIBERDADE X PROPRIEDADE (Dumont, 1985) é desconstruido pela lógica da escravidão. Calcada na propriedade de um sobre o outro, a liberdade passa a ser princípio antipático, tanto quanto indivíduo, classicamente falando, inexiste. O espaço público, teatro das representações sociais e afirmação do privado no século XIX, na Europa (Sennett,1988), se apresenta, no Rio de Janeiro, promíscuo socialmente (Cavalcante, 2004), e palco da afirmação do arcaico. Eram comuns os passeios em que a família, hierarquicamente perfilada, expunha seus escravos ao final da fila como mostra de poder e status. Na antítese da prática burguesa, a ostentação da propriedade sobre o indivíduo, logo da ordem escravista, com inerente negação do trabalho, davam a tônica do período. Um período em que, contrariando determinações governamentais, proprietários de escravos reivindicavam o direito ao castigo ou qualquer deliberação sobre o destino de seus escravos. Suas propriedades. Definitivamente, o Brasil, no século XIX, não vivia a afirmação do Estado burguês em decorrência da derrota do antigo regime. Aqui, afirmava-se a escravidão. A análise da relação do Estado com o sentenciado, assim como de seus aparelhos coercitivos, pode nos revelar muito sobre ele (Maia et al, 2009). Contudo, sua descontextualização pode, também, levar o pesquisador a caminhos errôneos se seu diálogo com as fontes não se der de forma problematizada. É bem verdade que a passagem do século XVIII para o XIX marcou no Rio de Janeiro, tanto quanto na Europa, o fim do uso do preso em trabalhos forçados. Entretanto, no velho continente, esse fato se deu em um contexto de afirmação capitalista em que se precisava valorizar o trabalho. Para tal, era necessário desvincula-lo de práticas negativas. Por isso a recriminação inglesa sobre a escravidão e o fim do uso de apenados em obras públicas. No Rio de Janeiro, apesar de a medida ter o mesmo teor, ela não vem romper com a lógica vigente. Contraditoriamente, o último envolvimento de presos em obras públicas no Rio de Janeiro se deu no período joanino (Arruda, 2009), quando da grande mudança da cidade em virtude da presença da corte. Isso talvez tenha, inclusive, conduzido ao engano algumas análises, já que esse período sugestiona uma transformação, quando, na realidade, Revista História - 70 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. significa, como já foi dito, uma organização e até modernização da ordem (Lessa, 2001). Continuando nossa análise, percebemos a predominância negra no contingente apenado no início do século XIX. Dentre os 4776 presos pela Intendência Geral de Polícia da Corte, entre os anos de 1810 e 1821, 3182 eram escravos, 944 eram libertos e apenas 20 livres (Arruda, 2009). Da mesma forma, observamos como foco da repressão os escravos e ex-escravos já que, justificado pelo contingente reduzido, a polícia não permitia aglomerações de negros nas ruas, considerando-os potenciais problemas. Da mesma forma, era proibido que negros usassem chapéus, máscaras ou fantasias que escondessem sua condição étnica, cabendo, só por isso, a prisão por entender que tal fato dificultava a ação policial favorecendo ao crime. Essa norma fazia do entrudo um período de tormenta para a polícia (Arruda, 2009). No caso brasileiro, a mudança do modelo prisional não reflete a mudança da sociedade, como já vimos. A análise da prisão, que na Europa demonstra e afirma a nova ordem, confirma, particularmente no Rio de Janeiro, a ordem escravista. Holloway (1997) nos apresenta gráficos bastante detalhados de meados do século XIX, quando a presença negra se dá com bastante intensidade nas prisões do Rio de Janeiro, assim como crimes ligados à ordem cotidiana, como vadiagem, embriaguez, capoeira, vagar fora de hora, etc, são predominantes nos autos policiais, indicando a continuidade da vigilância branca sobre o perigo negro. Se a mudança da lógica punitiva não representa a transformação social, o que deseja representar, então? Considerações Finais Qualquer instituição ligada ao Estado expressa, em essência, o perfil dessa sociedade, seu momento histórico e o estágio de suas relações sociais de produção. Ao analisarmos o advento da prisão moderna, ou seja, da prisão como pena em si, pela privação da liberdade, tal como nos apresentou Foucault, pudemos entender seu vínculo direto com o momento histórico europeu – ou seja, com a afirmação do capitalismo e derrocada do Antigo Regime. Contudo, embora com semelhanças, o mesmo modelo de prisão no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, não representou a modernidade tal qual se assistia na Europa. Embora o século XIX tenha trazido uma série de mudanças no perfil da cidade desde a vinda da Família Real, percebemos que essas mudanças, apesar de dinamizar o quadro urbano e ampliar seus limites, atuou dentro da lógica vigente reforçando, assim, o caráter mercantil escravista do Rio de Janeiro. A prisão, nesse momento, a despeito de ter eliminado o castigo corpóreo e o trabalho compulsório em obras públicas, tal qual a Europa, como não poderia deixar de ser, respaldou a ação hegemônica, confirmando os resquícios coloniais em pleno Império. A privação da liberdade em uma sociedade escravista não significa o mesmo que em uma sociedade em que liberdade e individualismo são valores fundadores. A contribuição desse trabalho não está, obviamente, em perceber a relação da prisão com o Estado. Talvez, nem a própria constatação de que as realidades do Rio de Janeiro e da Europa não eram as mesmas possa se constituir na sua principal contribuição. Esta conclusão é sim importante por afastar a perspectiva de se iniciar a análise da prisão brasileira pela ótica européia, e, ao mesmo tempo, chamar atenção para as peculiaridades de nossa formação histórica. Contudo, saliento que para além das constatações, este trabalho se faz importante ao apontar para a necessidade de se aprofundar o estudo sobre os meios coercitivos no Brasil, principalmente, buscando entender de que forma se constrói essa prática em que se reforça o estigma da exclusão sobre uma parcela historicamente demarcada, assumindo a voz da modernidade européia. Para tal, entendemos que a análise do discurso sobre os depoimentos de gestores e influentes personagens do sistema possa ser um caminho interessante. Pretendemos buscar os formuladores dos códigos civis, os médicos do século XIX que atuaram sobre esse tema e, mais recentemente, de autoridades da área. Entendemos que assim poderemos verificar como se dá a construção do imaginário popular que clama pelo Revista História - 71 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. novo praticando o arcaico, favorecendo assim a modernização conservadora (Ianni, 1998) tão presente em nossa história. Bibliografia ARRUDA, Eduardo M.. Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro 1790-1821.in MAIA, Clarissa Nunes.História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro:Editora Rocco,2009. CAVALCANTE, N. O Rio de Janeiro setecentista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2004. DUMONT, Louis. O Individualismo_ Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro:Editora Rocco, 1985. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes,1987. GRUPPI, Luciano. Tudo Começou com Maquiavel. 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Palavras-chave: mulheres, identidade, colônia Abstract The present article aims at to analyze the construction of the feminine identity in colonial Brazil, around the figure of honored and vistuosa woman. This image was in its majority of the times created by a masculine and foreign speech, on the vision of the other. We look for to show as these speeches had served to create in the imaginary colonial an identity of virtue and feminine behavior and as the society Revista História - 72 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. dealt with the women whom they deviated from this standard of behavior. Keywords: women, identity, colony *** É através dos imaginários sociais que uma coletividade estabelece a distribuição dos papeis e das posições sociais1. Assim, é através de sua visão de mundo que estrangeiros que visitaram o Brasil duarante os séculos XVIII e XIX formaram seus discursos sobre o papel e o lugar da mulher na sociedade colonial. Na maioria dos casos, os compêndios e livros sobre o comportamento feminino foram escritos por homens e estrangeiros, e resumem de maneira clara sua visão sobre o “outro” e as idéias que estes possuíam sobre a conduta de tais mulheres. Segundo Isabel de Castro Henriques “ Quando os portugueses saem do espaço peninsular para ir ao encontro do Outro levam consigo a certeza da sua autonomia, que contém também a convicção de que os Outros, sejam quais forem , não podem ser senão inferiores: o que não está no nosso espaço não pode possuir qualidades positivas.”2 Assim, eles exprimiam em seus escritos crenças misógenas e dúvidas sobre a natureza feminina e sobre seu BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi. Vol: 5. Lisboa: Casa da Moeda, 1985. 2 HENRIQUES, Isabel Castro. Os pilares da diferença: relações Portugal – Àfrica, séculos XV – XIX. Lisboa: Caleidoscópio, 2004. p. 38 1 comportamento, estabelecendo regras de conduta e de relacionamento entre os sexos. Os valores morais das sociedades do século XVIII e início do XIX, baseados em preceitos judaícocristãos estabeleciam que as mulheres deveriam ser fieis e honradas, submissas aos homens independentes de sua condição social. A honra era a principal virtude feminina, era um bem semelhante a vida e na visão da sociedade da época estava diretamente ligada a questão da sexualidade, isto é, ao controle que as mulheres exerciam sobre os desejos de seu corpo. Para as mulheres solteiras a honra estava vinculada a castidade e para as casadas era revestida na fidelidade ao marido. Em função dessa visão masculina sobre o “outro”, a honra feminina se construía em relação à vida pública. Era em função do olhar do “outro” sempre presente que a sociedade determinava se a mulher era ou não horada, era em relação a esse olhar que as pessoas criavam sua auto-imagem. Para Arlette Farge é o olhar onipresente que fornece o conhecimento respeito do outro e o direito de falar dele.3 O código moral da honra feminina era então relacionado com a impressão causada nos outros, e a mulher honrada era aquela que não causava impressão nenhuma, uma vez que não era vista. Nesse aspecto, foram escritos diversos conselhos e advertências sobre a conduta feminina que mostram a visão que os homens, sobretudo os estrangeiros, tinham das mulheres na sociedade brasileira do período colonial. Essa conduta estava sempre ligada a relações de poder e ao julgamento que os homens faziam do comportamento feminino, e era através desta que os homens do período construíam sua visão do “outro”. Com relação a construção dessa imagem do “outro” Homi Bhabha nos alerta que “A imagem é apenas e sempre um acessório da autoridade e da identidade; ela não deve ser nunca lida mimeticmente como a aparência de uma realidade.”4 No estudo ora proposto, trabalharemos com a construção desta identidade feminina e com as noções de conduta e honra presentes na sociedade colonial brasileira, procurando estabelecer as relações entre esses discursos e a visão do “outro” criada em torno da mulher. Analisaremos primeiro o ideal de mulher honrada para em seguida trabalharmos com seu oposto. Afim de com isso, compreendermos o peso e o papel desempenhado por estas imagens no comportamento feminino e também masculino no período analisado. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. p. 85. 4 FARGE, Arlette. Famílias Honra e Sigilo. In: CHARTIER, R. & ARIES, P. (org). História da vida privada. Vol: 3. p. 590. 3 Revista História - 73 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. O IDEAL DE MULHER HONRADA Na sociedade do Antigo Regime a opinião social sobre o indivíduo era fundamental e perder a honra nesta estrutura social era deixar de pertencer a boa sociedade, era perder um bem comparável a vida. Assim, a honra nesta sociedade era um tesouro tão valioso que deveria ser protegido por todos os meios. Embora a noção de honra tenha adquirido significados diferentes em cada local, cultura ou tempo histórico, seu sentido sempre foi antagônico para os representantes de ambos os sexos. A honra masculina foi geralmente associada a um valor cívico, o homem honrado era o cidadão virtuoso, e a honra era a recompensa pública por sua virtude. No caso da mulher o que se nota é a apropriação de um valor moral. Assim, a mulher virtuosa era aquela pura, casta e fiel ao marido, portanto, honrada e sua honra não era um privilégio de classe e sim um bem que todas as mulheres possuíam, desde que se mantivessem castas ou fiéis. Percebemos, então, que a noção de honra feminina estava sempre ligada a sua conduta sexual. O discurso moralista dos séculos XVIII e XIX, baseados tanto em preceitos religiosos quanto culturais foram ao longo do tempo contribuindo para a construção destes discursos de mulher pura e honrada. É sobretudo a partir desta visão do “outro” que se delineia o perfil da mulher honrada e virtuosa da época colonial. Os homens de letras do período foram os principais emissores desses discursos moralizantes, cuja a intenção era valorizar as mulheres honestas, obedientes e recolhidas. As parábolas barrocas do Compêndio Narrativo do Peregrino da América1 de Nuno Marques Pereira, são uma espécie de catequese popular, que se fazia através dos casos exemplares descritos pelo peregrino. Seu autor foi um filósofo moralista que viveu no Brasil na segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII, e a obra trata de vários discursos espirituais e morais, com muitas advertências e documentos contra “os abusos que se acham introduzidos pela malícia diabólica no Estado do Brasil”, sobretudo, as Minas Gerais. Percebe-se nesta obra visão que um estrangeiro tinha da sociedade colonial mineira, e sobretudo, das mulheres. Essa visão do “outro” fica mais evidente nos conselhos e exemplos de bom comportamento dado para as mesmas: “Fujam todo o trato de conversações de homens e de lhes aparecer, ainda que sejam parentes... De nenhum modo aceitem dáctivas, nem cousa muito urgente, de homem nenhum... Também devem ser muito honestas no vestir, por PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Miguel Manescal da Costa, 1752. 1 que as galas desonestas estão indicando corpo lascivo”.2 Além de visar domesticar a existência pecadora das mulheres, o Peregrino ainda ditava regras do obediência e observância ao marido: “nem os cabelos da cabeça pode cortar sem a licença e autoridade do marido”3. Desta forma além de submeter-se às regras morais as mulheres deveriam se preocupar com a aparência, onde o vestir, o olhar e o falar, eram indicativos de bom ou mal comportamento. As parábolas do Peregrino estavam em perfeita sintonia com a visão que os homens tinham do “outro”, ou seja, das mulheres na realidade colonial. Assim, seja através de exemplos ou de conselhos Nuno Marques visava criar um padrão de conduta e comportamento para as mulheres, e nos deixa conhecer um pouco do pensamento masculino a respeito delas. O casamento funcionava também como uma forma de adestramento feminino, assim como o estado de religiosa, o casamento aparecia ao olhar da sociedade como um meio de preservar a honra feminina, afastando o estigma de solteirona e os riscos de desonra das jovens. Este adestramento no interior do matrimônio, fazia-se não apenas pela fervorosa pregação religiosa contra os famosos “tratos ilícitos”, mas também através da divulgação na colônia dos 2 3 Idem. p. 299. PEREIRA, Nuno Marques. Op. Cit. p. 150. Revista História - 74 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. manuais de casamento que aconselhavam a escolha da esposa ideal. Essa imagem de mulher iria ser amplamente divulgada na sociedade colonial como forma de adestrá-las e de divulgar o próprio casamento. Ângela Mendes de Almeida1 ao trabalhar com os “Manuais Portugueses de Casamento” os analisa como textos escritos por leigos e dirigidos aos homens, para indicar os defeitos que deviam ser evitados na escolha da esposa, ou reprimidos depois do casamento. Fica evidente ao ler essas condutas que mesmo se tratando de um escrito feito por leigos, o pano de fundo é sempre a visão masculina e acima de tudo os ditames da Igreja Católica. Os manuais visavam facilitar a escolha da esposa certa, e assim evitar o adultério e a ruptura do matrimônio. Para D. Francisco Manuel de Mello autor de Carta Guia dos Casados, o que garantia o equilíbrio do matrimônio era a subalternidade, a hulmildade, a honra e o recolhimento da mulher. Ele ainda orientava ao homem como criar em sua esposa essa identidade de mulher honrada e virtuosa: “Dês-se-lhes a entender à mulher que a coisa que mais deve querer é a seu marido. Tenha o marido para si que a coisa que a coisa que mais deve querer é a sua honra, e logo sua mulher”2 mulher virtuosa poderia sair do lar durante toda sua vida: “para se batizar, para se casar e para ser enterrada.”4 Os romances escritos no século XVIII também contribuiram para criar essa identidade de mulher virtuosa. Leila Mezan Algranti3 ao trabalhar com a honra feminina, analisa o romance setecentista Pamela ou a virtude recompensada, de Samuel Richardson. O livro trata da jovem Pamela empregada na casa de um membro da nobreza, onde o jovem nobre apaixonado por Pamela, tenta de todos os meios seduzi-la. Pamela resiste sempre em defesa de sua honra, assim, seu senhor reconhece a virtude da moça e termina por desposá-la. O romance trata de um modelo de mulher, de um ideal a ser perseguido. Leila Algranti afirma que o romance teve ampla divulagação no Brasil colonial, e o grande sucesso da obra junto ao público, acaba por confirmar como essas imagens de mulher, criadas por homens e estrangeiros, sensibilizavam o imaginário da época. Mesmo quando iletrados os colonos também partilhavam dessa visão de mulher ideal uma vez que esta também era difundida nos sermões religiosos, nas confissões e mesmo nos ditos populares. Isso fica evidente no provérbio popular da época que asseverava haver apenas três ocasiões em que a MELLO, D. francisco Manuel de. Apud: ALMEIDA, Ângela Mendes de. Op. Cit. p. 171. 3 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. Outro ponto importante a ressaltar é que a preservação da honra feminina não era um assunto que se referisse apenas às mulheres. Um homem poderia ser considerado desonrado se viesse à público as atividades sexuais de sua filha ou esposa, que não fossem legitimadas pelos códigos morais da sociedade colonial. Percebemos que, por ser responsabilidade também masculina, a preservação da honra feminina foi amplamente priorizda pelos homens. Em várias sociedades, tanto a legislação como os costumes garantiam a punição às mulheres adúlteras. Em Portugal, assim como no Brasil, as Ordenações Filipinas tratam prolongadamente das penas impostas as mulheres que agem fora das normas de conduta. No título 38 “Do que matou sua mulher por a achar em adultério” é reafirmado o direito do marido de matar a esposa adúltera bem como seu amante, desde que esse fosse socialmente inferior.5 Também o nosso já citado Peregrino da América recomendava que em relação ao adultério feminino devia-se: 2 ALMEIDA, Ângela Mendes de. Os manuais portugueses de casamento dos séculos XVI e XVII. Revista Brasileira de História. Vol:17. São Paulo: fevereiro, 1989. 1 ARAÙJO, Emanuel. O teatro dos vícios: trangressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. 194. 4 ORDENAÇÕES FILIPINAS. Livro V. Org. Silvia Hunold Lara. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 151 5 Revista História - 75 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. “Um, era obrigar a adultera a enforcar-se por suas próprias mãos e debaixo lhe punham fogo, e sob as cinzas da meserável enforcavam também o adultero. Outro, era levar a adultera a açoutar pelas ruas, aldeias e lugares circunvizinhos (...) e assim a maltratavam e deixavam 1 morta.” Percebemos, assim, que os homens sempre tiveram especial atenção em punir os desvios femininos, seja pela violência física ou pelo enclausuramento das desviantes em recolhimentos ou conventos religiosos; uma vez que a perda da honra por uma mulher acarretava também uma mancha na honra do pai ou marido. Em Minas Gerais durante o século XVIII são abundantes os casos de adúlterio e concubinato que chegam a justiça civil e eclesiástica. Os maridos ou companheiros destas mulheres vão a juízo exigir uma retratação pública pela humilhação sofrida contra sua honra: “(...) diz Joaquim Estanislao que ele se ve cazado na forma de direito com Rita Marquez com quem fez sua harmonia tal que era invejoza a suciedade. E feito tempo de maiz de seis annos, o que depois foi pervertido por Antônio Rodriguez Pereira (...) [a ré] se tratava ilicitamente com o suplicado o que se verifica por este lhe comprar cazas onde a tem tiuda e mantiuda a mulher do suplicante adulterendoa continuadamente cujo excesso fez o suplicante ciente o capelão cura e o comandante do lugar. E nem assim pode desunir aquela liga que há ente ambos que se axão vivendo como cazados sendo o cumplice tão bem cazado, e por que o cazo he de querella (...)”.2 Como se observa no caso de Joaquim Estanislao o suplicante quer algo mais que a separação de sua esposa Rita Marquez do suposto amante, ele quer uma retratação pública pela desonra sofrida. Isso fica mais evidente ao final do processo 2IPHAN 1 PEREIRA, Nuno Marques. Op. cit. p. 299. – Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livros de Autos de Querela. 1810.fl. 72v quando o suplicante pede ao juiz que a querela seja afixada nos lugares públicos da Vila. Assim, dessa forma, além de conseguir uma retratação pela injúria sofrida Joaquim Estanislao conseguiu ainda desmoralizar sua esposa, que a partir de então passa a ser vista pela sociedade como uma mulher sem honra. Neste caso a marca da justiça é uma mácula definitiva, e a pena vem manchar vergonhosamente a honra de Rita Marquez por ter ousado transgredir as normas da civilidade e da boa conduta. Não só o adúlterio ou comcubinato podia manchar a honra de uma mulher na sociedade colonial, muitas vezes um comportamento desregrado e violento era causa de exclusão desta da boa sociedade. Isto fica mais claro ao analisarmos a querela movida em vinte e sete de janeiro de 1816, por Maria Izabel de Sampaio contra Maria Felisberta, ambas moradoras na Vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. “Diz Maria Izabel de Sampaio moradora na rua da Lagoa desta Villa que vindo ella de sua caza para a Igreja do Carmo, ao terço senão sete para outo oras pouco mais os menos da noite e chegando a dita Igreja lhe sahio ao encontro huã forra de nome Maria Felizberta também moradora nesta Villa, de modo Revista História - 76 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. próprio e cazo pensado, avançouse a suplinante, e lhe foi dando logo inúmeras pancadas com um porrete(...)que quase a matou tendo feito tal delicto pelo fato de haver a suplicada se envolvido com o marido da suplicante e por ciúmes e maldade há queria morta(...) e cujos dezatinos he a suplicada uzeira e vezeira e muito inimiga da paz, e inquietadora do sosego publico tanto assim que sendo cazada a anos, não existe em companhia do marido de cuja companhia se auzentou e veio para esta Villa aonde vive escandalozamente com os procedimentos referidos e porque o cazo he de Querella ”.1 A querela de Maria Izabel nos oferece indícios de como uma comunidade colonial conhecia grande parte de seus moradores e sabia identificá-los, particularmente, neste caso, se tratando de uma “uzeira e vezeira e muito inimiga da paz, e inquietadora do sosego publico”. Outra imagem criada neste período em torno da figura feminina, é a de “santa mãezinha” como definiu Mary Del Priore2, a construção dessa maternidade idealizada foi um desejo tanto da Igreja Católica quanto do Estado Português afim de adequar a mulher a uma vida matrimonial desejada por ambos. Em todos os discursos do período, oficiais, médicos ou religiosos o que se pode notar é uma condenação sistemática da mulher que tinha seus filhos fora da instituição do casamento. Uma vez que o principal papel da mulher na vida conjugal era e maternidade. Para ser essa mãe ideal as mulheres tinham que seguir outras normas e leis. A mãe exemplar deveria ser abnegada, devota, obediente ao marido, observadora das leis de Deus e da Igreja e antes de tudo, dedicada a doutrinação de sua prole. A adequação ou não das mulheres a este quadro normativo acabava por distingui-las, por serpará-las entre modelares e não-adequadas. Na fabricação dessa imagem de “mãe sem mácula” foi o resultado de um pensamento misógeno em relação as mulheres no período colonial. A “santa mãezinha” surgia então, para transmitir as suas filhas que o casamento deveria ser uma relação cujo equilíbrio repousava na dominação do homem e na submissão consentida da mulher. No entanto resta-nos responder uma questão se a fabricação de uma identidade de mulher ideal, honrada e virtuosa acabou realmente por se sobrepor as histórias de vida complexas e perpassadas por conflitos e preconceitos? A MULHER SEM QUALIDADES Na colônia a honra feminina destacava-se como elemento primordial nas relações entre os sexos. No entanto, o ideal de mulher honrada não se aplicava a todas elas, uma vez que na sociedade colonial a escravidão permeava todas as relações sociais fazendo alterar estas padrões entre indivíduos livres e escravos. A honra era, obviamente, um valor atribuído apenas a homens e mulheres brancos e livres. Desta forma, percebemos que “a imagem das mulheres[negras] (...)como nativos de segunda categoria, comtém elementos emprestados do conceito de gênero oriundo da metrópole, mas tambpem dos seus vairantes endógenos.”3 Assim, escravas e forras eram consideradas a priori mulheres sem honra, com as quais os homens brancos podiam se relacionar sexualmente sem levar HAVIK, Philip J. Dinãmicas e Assimetrias Afro-Atlânticas: a Agência feminina e representações em mudança na Guiné (séculos XIX e XX). In: PANTOJA, Selma (org). Identidades, memórias e histórias em terras africanas. Brasília: LGE editora, Luanda: Nzila, 2006. p. 74. 3 IPHAN – Museu do Ouro. Casa de Borba Gato. Livro de Autos de Querela. Ano: 1808. Folhas: 70v/71v. 1 DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil colonial. São Paulo; Editora UNESP, 2009. 2 Revista História - 77 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. em conta qualquer norma de conduta ou preceito religioso. Estas eram então tratadas como meretrizes, sendo consideradas mais desonradas que estas, pois, além de “mulheres públicas” eram também “de cor”. O aspecto racial se sobrepunha na maioria dos casos a condição legal, uma vez que as mulheres negras mesmo sendo forras ou escravas eram vistas pelos homens como socialmente desqualificadas, e sem honra a ser preservada. Nos arquivos criminais do período colonial encontramos vários crimes de abusos sexuais praticados contra escravas por seus senhores, ou mesmo por qualquer outro homem branco. Na mentalidade dominante deste período negras, escravas e índias não eram mulheres cuja honra merecesse qualquer atenção. Diferente do que acontecia com as mulheres brancas e livres, as escravas não possuíam qualquer dos privilégios que a sociedade colonial atribuísse ao sexo feminino, mesmo em casos de estupro elas dificilmente conseguiam apelar legalmente. Segundo Ronaldo Vainfas1 com ralação as escravas qualquer restrição de conduta imposta pela sociedade ou pela Igreja era ignorada pelos homens da colônia: “Fernão Cabral, por sua vez, (...) conhecido sedutor, não hesitou em confessar que aprovava os pecados de um falecido vizinho alegando que o homem ‘nunca os fizera com mulheres brancas e honradas, senão com negras’. E o lavrador Crespar Gonçalves, português de 60 anos, negou que fosse pecado dormir com negras, mesmo se casadas.”2 Este alargamento da moral masculina não se restringia somente as negras, mas estendia-se também a prostitutas ou mulheres solteiras que não contassem com uma proteção masculina. Assim, na colônia, celibatária era a mulher que não se casava mas se mantinha pura, enquanto solteira era sinônimo de mulher disponível para “tratos ilícitos”. As autoridades civis e eclesiásticas pareciam tolerar estas mulheres, pois segundo o próprio clero elas prestavam um serviço a comunidade, uma vez que garantiam aos homens um espaço para exercer sua sexualidade, sem que para isso precisassem trangredir algumas regras sociais ou desonrar aguma mulher até então considerada virtuosa. Esta tolerância das autoridades demonstra o papel exercido pela prostituição na sociedade colonial, enquanto instância preservadora da honra das demais mulheres como também como pacificadora da violência sexual. Em seu trabalho sobre as Minas Gerais no século XVIII, Laura de Mello e Souza3, destacou que um grande número de mulheres casadas, amaseadas ou mães se dirigiam para a prostituição como forma de sobreviver a miséria. Tais mulheres na maioria das vezes tinham a permissão de seus pais e maridos para tal atividade pois, através da prostituição sustentavam seus domicílios bem como filhos, dependentes, agregados e mesmo maridos e amantes, sem qualquer constrangimento senão aquele dado pela pobreza. O secretário de governo das Minas Gerais, Manuel Afonseca de Azevedo encaminha em 1732 uma representação ao Rei de Portugal tratando desse assunto. Segundo o secretário a pobreza de muitas mulheres fazia com que a prostituição lhes servisse de atividade complementar, exemplifica ainda que “muitas vezes sucedem retirarem-se os senhores das casas das vendas, dando passeios,(...)para darem lugar a que as negras fiquem mais desembareçadas para o uso de seus apetites”.4 Diante da situação de pobreza em que vivia grande parte da população da Capitania a prostituição se constituiu como um caminho quase obrigatório para muitas mulheres. Assim, não SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do ouro: pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. 3 Representação do secretário de governo de Minas, Manuel A. de Azevedo ao Rei, em 1732. In: BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas Gerais. Belo Horizonte: s. Ed, 1972. p. 54-57. 4 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989. 1 2 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. p. 64 Revista História - 78 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. faltaram mulheres que formaram prostíbulos conhecidos como “casas de alcouce” e sobreviveram graças a sua administração. Exemplar é o caso de Rosa Pereira da Costa, moradora no Arraial do Tijuco, que oferecia casa de alcouce, “nela se ajuntavam todas as noites quase todas as mulheres-damas que há neste arraial e quantidade de homens de toda a qualidade, e na dita casa estão todas as noites até fora de horas conversando e tratando uns com outros descompostamente, fazendo saraus e galhofas.”1 lhe estes desaforos para que se sustentasse e vestisse pelo pecado da dita sua filha”.2 Muitas prostitutas atuavam no domicílio que partilhavam com parentes. Pais e mães também consentiam na prostituição de sua prole, como Inácia conecida na sede do Bispado de Mariana como “a Enforcada” que de 1745 a 1753 promoveu a prostituição de sua filha “que é metetriz (...) sempre a mãe morou com ela na mesma casa, vendo entrar homens para tratarem torpemente com a dita sua filha sem que lhe proibisse, antes permitindo- Outro ponto importante a ressaltar, é que a vigilância às mulheres de “vida duvidosa” não era feita apenas pelas autoridades civis e eclesiásticas, mas toda a vizinhança se encarregava de viagiar suas práticas sexuais, evitando que sua presença ferisse a honra e a imagem da vizinhança. Caso isso ocorresse elas eram denunciadas as autoridades. Para uma comunidade pequena como era o caso das vilas mineiras a idéia de contaminar-se com a venalidade ou de manchar sua imagem era imensamente temida e racharçada. As mulheres “venais” do período colonial tinham estatuto específico, e contribuíam para reforçar o discurso masculino da sexualidade regulada no matrimônio, pois eram seu contraponto. Assim, estas mulheres foram úteis para a construção e valorização da imagem de mulher honrada e mãe exemplar que os discursos masculinos pretendiam criar no período colonial. Também o fruto destas relações ilícitas, a criação de filhos bastardos, era considerado um fator que privava a mulheres de certa dose de dignidade. Além de ser uma constante preocupação das autoridades locais limitar a expansão dos enjeitados. AEAM. Livro de Devassas, Comarca do Serro Frio, 1734. fl. 73v, 74v e 75. Cit. por SOUZA, Laura de Mello. Op. Cit. p. 184. 2 1 AEAM. Livro de Devassas, maio-dezembro de 1753. fl. 139. Na Comarca de Mariana as autoridades obrigavam que “notifique a toda mulher desta cidade que não for casada em face da Igreja que se ache pejada, para que depois do parto a vinte dias venha dar parte a este Senado do feto que teve com a cominação de que não fazendo assim a dita pejada, e não dando conta do dito termo da sua barriga [sic], pagar cinquenta oitavas de ouro para a criação do mesmo enjeitado.”3 As filhas bastardas, ilegitimas ou naturais, não eram especificamente mulheres sem honra, mas sob o jugo da sociedade mineira colonial, estavam localizadas na tênue fronteira entre a honra e a desonra, pois, traziam em si a marca do pecado, a suspeita e o desconhecimento sobre sua origem e por conseguinte a vergonha. Assim, escravas, prostitutas, mulheres de cor, solteira e bastardas eram mulheres que no período colonial misturavam-se numa rede de preconceitos Edital de 26 de setembro de 1748. AHCMM. Registro de Editais, liv. 152. Cit. por FIGUEIREDO, Luciano. Mulheres nas Minas Gerais. In: DEL PRIORE, Mary(org). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto: Ed. Da UNESP, 1997. p. 158. 3 Revista História - 79 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. morais de uma sociedade onde raça, condição legal e legitimidade de nascimento distinguiam e categorizavam indivíduos de acordo com a moral dominante, concedendo ou megando-lhes o status e a imagem de mulher honrada e virtuosa. PLENITUDE SEXUAL E EMPREGABILIDADE. TRANSEXUAL DISCIPLINADO1 O Marcia de Melo Martins Kuyumjian Historiadora e Doutora em Sociologia Departamento de História Universidade de Brasília Danielly de Oliveira Grance Assistente Social Resumo Este texto está dedicado à compreensão do trabalho na contemporaneidade na perspectiva da históricocultural. Localiza um objeto muito particular, a transexualidade e sua interferência na formação e ocupação profissional. O foco está no efeito da cirurgia para a inserção social do indivíduo pelo trabalho e pelo reconhecimento da nova sexualidade. O lócus de investigação foi o Programa de Transgenitalização da Promotoria de Defesa dos O texto é resultado de pesquisa realizada, nos anos de 2002 e 2003 como parte do projeto de pesquisa da 1ª. Autora do artigo e orientadora da 2ª. Autora. A pesquisa resultou na elaboração de Monografia (Da Identidade Sexual à Identidade Social) apresentada no Departamento de Serviço Social da UnB, para requisito para a conclusão do curso de graduação e a titulação de Assistente Social de Danielly de Oliveira Grance, no ano de 2003. A pesquisa foi realizada no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, mais especificamente na Promotoria de Defesa dos Direitos dos usuários dos Serviços de Saúde – Pró-Vida. O presente texto refere-se a uma releitura da monografia, tendo sido atualizada com novos dados e fontes principalmente extraídos de sites científicos da internet, e foi complementado com novas referências teóricas do campo da História Cultural. 1 Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde (PróVida) do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), nos anos de 2002 e 2003. O problema da relação trabalho/ transexualidade refere-se à representação dominante da “inadequação” físico-psicológico do indivíduo para o desempenho de funções relevantes ao desenvolvimento social e econômico. A cirurgia compatibilizaria corpo e psicológico. Mas fica a polêmica: se trabalhar é um bem social, um estatuto de reconhecimento das qualidades produtivas dos indivíduos, o que aguardar de alguém visto e com uma auto-referência de anormal? Palavras-chave: Trabalho, transexual, controle social Abstract This text is devoted to understanding the work in the contemporary view of cultural history. Finds a very special object, transsexuality and its interference in the formation and profissional occupation. The focus is on the effect of surgery for the social integration of the individual at work and the recognition of his/hers new sexuality. The locus of the research program was Transgenitalization Prosecutor's Defense of the Rights of Users of Health Services (ProLife) of the Public Ministry of the Federal District and Territories (MPDFT) in the years 2002 and 2003. The problem of work / transsexual refers to the dominant representation of the "inadequacy" of the individual physical and psychological performance for assume Revista História - 80 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. functions relevant to the social and economic development. Surgery reconcile body and psychological. But the controversy is: if work is a social good, a status of recognition of the qualities of productive individuals, what to expect of someone seeing and self-reporting of abnormal? Keywords: work, transsexual, social control *** Reconheço sem ilusão a natureza do fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Paira no espírito. Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vários desta espécie, pela história abaixo – pela história artística sobre tudo. Shakespeare e Rousseau são dois exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito – radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu – completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.1 Introdução Falar de sexualidade significa falar de concepções arraigadas no homem moderno, como verdades produzidas nos três últimos séculos na sociedade ocidental. Refere-se a representações sociais elaboradas sobre repressão, poder, preconceito, interdição do corpo, desejo, paixão, prazer, controle, gênero, pecado, opção sexual, construção de papéis sexuais e sociais, doenças e ocupações laborais.2 Assim, a sexualidade é geralmente apresentada como um assunto pessoal de adequação aos padrões socialmente aceitos, da representação de si mesmo perante o público. A questão dos sexualmente “diferentes” está, portanto, no realinhamento de seus papéis sociais como homem ou mulher. Essa questão ocupa lugar de destaque no discurso social, seja pela oferta de postos de trabalho, de serviços disponibilizados no mercado, seja pelo apelo à recomposição moral da sociedade, seja pelo destaque que os boletins informativos existentes sobre comportamento, saúde, beleza, educação, trabalho, etc, dão à questão da feminilidade e masculinidade.3 Nesse contexto, os chamados sexualmente diferentes modo geral se encontram diante de um público, ora curioso, ora revoltado com essas “figuras com algo de diferente”, com algo de constrangedor no que se refere à (des) harmonização, em si mesmas, da esperada representação social do masculino e do feminino. Tematiza-se, assim, a sexualidade. No entanto, no que compete à localização desses indivíduos no mercado de trabalho formal e até mesmo no informal4, o debate se escasseia. Não nos deteremos aqui em apresentar as atividades ocupacionais nas quais se inserem os sexualmente “diferentes”, mas em refletir a respeito dos parâmetros sociais que definem prioridades até em termos do que é relevante ou não Palavras de Fernando Pessoa copiladas do Parecer 39/97do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (BRASIL. Conselho Federal de Medicina, 1997, p.8) 1 MOSCOVICI, Serge. “The phenomenon of social representations”. In: FARR, Robert M. & MOSCOVICI, S. Social Representations. Cambridge, Cambridge University Press. 1984;SENNETT, Richard. A ética do trabalho: a corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. 2 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 10. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998. 4 LAUTIER, Bruno. Trabalho ou labor? Dimensões históricas e culturais. In: Ser Social, Brasília, UnB, nº 5, jul./dez./1999. 3 Revista História - 81 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. para ser objeto de atenção de políticas públicas para a empregabilidade.1 Para tanto, a pergunta que se estabelece é: qual não é a dificuldade dos transexuais para encontrar postos de trabalho que aceitem sua imagem “desviante” e de se preparar profissionalmente para assumir ocupações de relevância para a economia e a sociedade? Uma possível resposta estaria na análise da tendência desse grupo social de tentar compatibilizar atividade ocupacional com opção sexual ou de esconder e/ou omitir sua sexualidade, principalmente pelo fato de a diferença ainda ser tratada de forma preconceituosa, moralista, conformadora e estereotipada na sociedade brasileira. Embora não disponhamos de dados estatísticos sobre o assunto, sabe-se que, em sua maioria, os sexualmente “diferentes” atuam como “prostitutos”, dançarinos e stripers, ou como maquiadores e cabeleireiros. Há, ainda, certa regionalização ocupacional como efeito dos dispositivos disciplinares implementados socialmente por discursos proferidos como vontade de verdade.2 Situa-se a leitura desta problemática, portanto, na abordagem foucaultiana sobre a sexualidade na modernidade. O processo de entendimento da HENRIQUE, Wilnês. Questão social e políticas sociais no Brasil. In: OLIVEIRA, Marco Antonio de (org.). Economia e trabalho: textos básicos. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1998. 2 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 1 sexualidade como uma questão de cidadania abrange toda a sociedade e convida a todos os envolvidos e interessados na temática a refletirem sobre os modos como a sociedade controla as práticas sexuais e promove, no âmbito dos micropoderes, estigmas detratores do caráter dos sexualmente indefinidos e seus efeitos para a inserção desses sujeitos sexualmente diferentes no mercado de trabalho e na construção da sua autonomia como cidadãos. 3 1 Transexualidade4 Segundo Stuart Hall, reações defensivas e ações ameaçadoras são movimentos que vão fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. A identidade torna-se politizada, sendo descrita como constituindo uma mudança política de identidade (de classe) para uma política de diferença. 5 Essa política da diferença sugere a noção de representação social, expressa nas ciências, nas religiões e também nas ideologias. É na tentativa de tornar o desconhecido, familiar, ou de construir uma objetivação do mundo que os seres humanos elaboram representações que modelam comportamentos, pensamentos, enfim, a vida cultural e social.6 A elaboração e a fixação dessas representações são, portanto, o mote para compreender a interferência da indefinição sexual na construção da identidade social e como essa indefinição é responsável pela participação dos chamados sexualmente diferentes em trabalhos periféricos, sem chances de ascensão social e profissional. É nesse contexto que o transtorno na identidade de gênero, na inadequação psicológica ao sexo somático, informa uma situação de transexualidade,7 na qual ocorre a não conciliação entre sexo biológico e identificação psicológica sexual MOSCOVICI, Serge. “ Notes towards a description of Social Representations”. In: European Journal of Social Psychology. Vol 18, Issue Nº3, July 1988. 6 OLIVEIRA, Manfredo A. A nova problemática do trabalho e a ética. In: TEIXEIRA, Francisco J. S.; OLIVEIRA, Manfredo A. (org.). Neoliberalismo e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez; Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 1996. 4 Este item do texto está fortemente ancorado na monografia de final de curso em Serviço Social, de Danielly de Oliveira Grance, intitulada O trabalho no fio da navalha: da identidade sexual à identidade social. Monografia (Graduação em Serviço Social) Universidade de Brasília, Departamento de Serviço Social, Brasília, 2003. 5 HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002, p.21. 3 Transexualismo é diferente de homossexualismo, de transvestismo e de hermafroditismo. Homens homossexuais, mulheres lésbicas e transvestidos não têm dúvidas ou desconforto quanto ao seu gênero ou sexo; apenas têm orientação sexual por pessoas do mesmo sexo. O transexual, por outro lado, não se sente jamais em uma posição homossexual quando mantém relações com parceiros do mesmo sexo. Também não se considera um travesti quando se veste de mulher, no caso do transexual masculino, ou de homem, no caso do transexual feminino. O hermafrodita apresenta duas genitálias (feminina e masculina) e é um caso diferente dos demais. 7 Revista História - 82 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. no mesmo indivíduo.1 Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), o transexualismo enquadra-se no âmbito das intersexualidades não orgânicas, tomando por referência as classificações elaboradas por Klebs em 1876.2 de seu sexo. O mesmo sucede à mulher transexual, que e sente um homem em um corpo feminino. coloca-lhes uma séria barreira à sua condição humana conforme as “leis da natureza”. As falas dos participantes do Programa de Transgenitalização salientam essa insustentabilidade psicológica, moral e social de sua indefinição sexual: Além disso, a certeza do transexual de pertencer ao sexo oposto é embaraçosa para a família. As pressões sociais tornam a vida muito difícil. Por isso, as tentativas de suicídio e de automutilação são comuns, pois esses indivíduos salientam a vergonha que sentem do próprio corpo, vivendo o terror ao se olhar ou serem olhados; tocar ou serem tocados. Explicam suas atitudes, em relação à tentativa de mutilação ou suicídio, enfatizando o nojo que sentem de si próprios. Logo, um transexual masculino ou feminino tem uma crença profunda de que sua identidade de gênero não é a mesma do sexo atribuído em seu registro de nascimento. Identifica-se psicologicamente com o sexo oposto, embora biologicamente não possua qualquer anomalia. O transexual possui a genitália externa e a interna perfeitas e de um único sexo, mas recebe estímulos psicológicos do sexo oposto. O transexual do sexo masculino quer, de qualquer forma, transformar-se em mulher, porque se sente mulher, porque acha que é mulher, sendolhe insuportável seu aspecto viril e a sujeição que lhe é imposta de se conduzir segundo os padrões de masculinidade. Vem, daí, sua obsessão em se submeter a tratamentos clínicos e cirúrgicos que ponham fim a esse antagonismo psicofísico e dissipem sua angústia, reinserindo-o, social e juridicamente, naquilo que considera a legitimidade SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo – aspectos médicos-legais. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 1993. 2 Informação retirada do Parecer e Proposta de Resolução sobre Cirurgia Transgenital de abril de 1997, anexo à monografia mencionada e referência para a elaboração desse texto. 1 Na adolescência, eu tive uma gravidez psicológica mesmo sem ter relacionamento sexual. Sempre tive vontade de ter um filho! Eu tinha esperança de que as pessoas, em breve, me aceitariam como mulher! Depois da cirurgia, eu não vou ter que tentar esconder nada. Vou, naturalmente, sem me preocupar, viver o meu ser! Teria aceitação maior na sociedade, porque ninguém ia me ver como homem, ou como metade homem, metade mulher. Uma vez, dei uma entrevista dizendo que eu via meu órgão como um câncer. Que não era parte de mim. O hábito de tomar banho era difícil, um sofrimento! Eu odiava ‘aquilo’! Muitas vezes, quis cortar ‘aquilo’ ali, mas não o fiz porque lia muito e sabia que ia precisar ‘dele’ para a cirurgia. 4 A cirurgia resolveria, com certeza, toda minha vida.[...] A minha vida social, afetiva e no trabalho melhoraria. (sic) (informações verbais).3 Assim, vê-se que alguns desses sujeitos sociais chegam a se imaginar mães. Outros incorporam a ideia de deformação humana: meio homem, meio besta. O que há de comum em seus discursos é a afirmação de que todos vivem atormentados por seu desajuste psicossocial. É firme sua consciência de que não são aceitos socialmente. A dificuldade de se inserir, de assumir uma identidade sexual diferente Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de Grance. 3 Estes sujeitos discriminados encontram grande dificuldade em serem aceitos, perdem empregos e são marginalizados. Sofrem uma das mais perversas formas de exclusão social. O preconceito reverbera, sorrateiramente, no encalço das diferenças. Os acuados deixam escola, emprego, amigos e família. Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de Grance. 4 Revista História - 83 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Já passei por várias situações difíceis na escola e no trabalho. Já levei até cuspida e chute! Eu estudava à noite, porque trabalhava de dia para pagar os estudos. Na sala do lado, tinha um rapaz que vivia me agredindo e gritava coisas horríveis para mim! Eu estava saindo um dia para pegar o ônibus e ele jogou o carro em cima de mim. Me machuquei bastante! (sic).1 Mesmo a aprovação do projeto do Deputado José de Castro Coimbra2 pela Comissão de Justiça da Câmara Federal, projeto este que trata do reconhecimento do transexualismo nas várias esferas sociais, não foi suficiente para impedir manifestações de repúdio como essas e acusações de amoralidade contra os transexuais nem mesmo nas altas esferas políticas. Este fato causa espécie, além de sustentar atitudes de desrespeito, segregação, chacota e violência contra os transexuais por parte de outras esferas da sociedade. Nesse sentido, a própria existência de procedimentos de ordenamento jurídico nacional, baseados em princípios constitucionais e éticos, Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de Grance. 2 No direito internacional, existe uma forte corrente favorável ao reconhecimento do transexualismo administrativa, judicial ou legislativamente. Na doutrina nacional, que se tem manifestado favoravelmente a esse reconhecimento tem-se, aprovado pelo Congresso Nacional, o Projeto de Lei n. 70, de 1995, de autoria do deputado paulista José de Castro Coimbra, propondo alterações no art. 129 do Cód. Penal e no art. 58 da lei de Registros Públicos, que tratam do assunto. 1 informa-nos sobre o infortúnio físico e psicológico de transexuais e seus efeitos no convívio social. São pessoas que passam longos períodos de suas vidas aguardando a chance de uma cirurgia de redesignação de sexo. Enquanto isso, insultos, agressões, isolamento, carências afetivas, dificuldades econômicas vão devastando a integridade social e moral desses sujeitos, destruindo sua condição humana e reforçando, nesses sujeitos, o desejo de se redefinirem sexualmente Eu tenho essa cirurgia como a maior vitória da minha vida. Eu vou poder viver a partir daí, porque, hoje, eu vivo, mas vivo escondendo. Vou nascer de novo!. [...] Gostaria muito de fazer a cirurgia, retirar os seios, engrossar a voz e ter barba. Ser o que realmente sou. (sic) 3 A maior expectativa do transexual é, portanto, a de adaptar sua aparência ao seu sexo psicológico. Entretanto, sua transfiguração requer cirurgia genital, ablação de mamas e histerectomia, no caso de transexual feminino, ou cirurgia plástica para formação de mamas, se transexual masculino. Exige também acompanhamento médico para que dosagens hormonais sejam ministradas, objetivando o Depoimentos fornecidos durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citados na monografia de Grance. 3 aparecimento das características secundárias do sexo que deseja assumir. 4 Como parte desse processo de transfiguração há, ainda, as técnicas psicoterápicas de readequação do transexual a seu sexo biológico. Tais técnicas, entretanto, vêm se apresentando completamente ineficazes, principalmente porque não há colaboração do paciente. Por isso, o CFM divulgou nova diretriz de autorização, aos médicos, de realização do tratamento cirúrgico de transexuais. Essas novas diretrizes seguem normas de saúde internacionalmente conhecidas, que incluem um mínimo de dois anos de acompanhamento terapêutico, por uma equipe multidisciplinar, antes de autorizada a cirurgia.5 Com base nessas definições do CFM, o MPDFT acompanha, cautelosamente, todas as etapas do procedimento de transfiguração para assegurar os limites legais da terapia. O foco das providências judiciais ou extrajudiciais, civis, criminais ou SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo – aspectos médicos-legais. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 1993. 5Conforme consta no Parecer do CFM já citado: “nesses casos, temos os sete níveis de diferenciação sexual concordantes, excetuado o sexo psíquico, funcional e cerebral. O indivíduo só se identifica com o sexo oposto, não aceitando em nenhuma hipótese manter-se na condição disfórica; não tem absolutamente funcionalidade sexual ativa, apresenta ereção insuficiente, masturbação ausente e repulsa ou desejo de castração do próprio genital, além de busca desesperada por auxílio científico. Seu hipotálamo induz ao comportamento e aparência física do outro sexo”. (BRASIL. Conselho Federal de Medicina, 1997, p.3). 4 Revista História - 84 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. administrativas decorre, entre outras coisas, da necessidade de se garantir, à equipe médica, a segurança jurídica necessária para que a cirurgia não seja confundida com lesão corporal grave. Retira-se, desta medida protetora, os cuidados com a validação jurídica da medicina. O objeto transexualidade é, portanto, um procedimento médico-jurídico que resguarda os aspectos legais e assegura proteção aos médicos, mais do que ao paciente.1 As condições para se submeter à cirurgia, por sua vez, impõem que o paciente atenda a dez critérios bem definidos pelo CFM2. A prioridade é não ferir os Dos fundamentos para efetivar a cirurgia corretiva, justifica-se ser uma “proposta ética conciliatória entre a possibilidade plástica e os impedimentos legais que vedam a mutilação do ser humano, vista como a simples supressão de órgão ou funções, conforme o artigo 129 do Código Penal: ‘Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: perda ou inutilização de membro, sentido ou função’”. Então, a proposta é reconhecer a prática médica como “opção terapêutica [da] cirurgia que se dispõe a remodelar a genitália externa de acordo com o sexo psíquico.” (BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo, Brasília, DF, p 4). 2 Esses critérios são:1 – capacidade civil plena; 2 – estar em dia com as obrigações militares; 3 –estado civil solteiro(a), viúvo (a) ou divorciado(a); 4 – não ter a guarda de filhos menores, salvo casos excepcionais; 5 – Não ter antecedentes criminais; 6 – diagnóstico médico e psicológico de transexualidade definido após acompanhamento multidisciplinar por prazo superior a dois anos;7 – capacidade mental para receber informações gerais e prestar consentimento esclarecido; 8 –capacidade física para ser submetido à cirurgia; 9 – risco cirúrgico normal; e 10 – consentimento esclarecido por escrito em todas as fases da habilitação. Brasil, Ministério Público da Uniâo, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Habilitação para cirurgia de Transgenitalização. Processo no. 001045/016, R.R.F., In: GRANCE, Danielly de Oliveira. Da Identidade Sexual à Identidade Social. Monografia de conclusão de graduação apresentada no Departamento de Serviço Social da UnB , 2003, p.44. 1 interesses do paciente e/ou dos médicos. Daí o caráter cauteloso do MPDFT em evitar risco ao tratamento e controlar gastos de recursos públicos, evitando ações indenizatórias de pacientes insatisfeitos com os resultados da cirurgia. A questão que se estabelece é: em que medida essa correspondência psicológica corrobora com sua imagem física, externada socialmente? Sabem estas pessoas que há riscos a correr, como, por exemplo, o resultado insatisfatório da cirurgia, a perda da libido, do prazer, a não corporificação das características secundárias da sexualidade desejada. Não se pode negar que a euforia com a possibilidade de realizar um procedimento por muito tempo esperado possa confundir as expectativas dos pacientes com as consequências reais. Logo, e acertadamente, o consentimento e as informações detalhadas do paciente para esse procedimento amplo e moroso são elucidativos para a compreensão do que significa esse processo, por parte do próprio candidato, assim como para sua decisão sobre permanecer, ou não, no Programa de Transgenitalização. Apesar do risco, é exatamente no imperativo existencial da busca da felicidade que se ampara o argumento da legitimidade da cirurgia.3 Portanto, não é por acaso que estas questões interpelam por demais os que se Ver BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo, Brasília, DF, p.6. sentem excluídos da possibilidade de se apresentar socialmente como se percebem. Em todo esse processo, há o entendimento do CFM de que a execução da cirurgia de redesignação de sexo “visa democratizar o acesso à intervenção cirúrgica para as minorias sexuais oprimidas e discriminadas”. (BRASIL, 1997: 7). No que diz respeito ao MPDFT, sua intervenção nessa “luta social” se norteia em direção à redução do preconceito religioso, moral e social nos seguintes termos: A intervenção do Ministério Público tem a finalidade de afastar o enorme preconceito religioso e moral que ainda classifica o transexual como um depravado perante Deus e os homens, o que não tem sustentação jurídica num país laico em que a separação entre o Estado e a Igreja é básica para que, no exercício das funções que lhe são típicas, esse mesmo Estado assegure a cada indivíduo ou cidadão a liberdade religiosa, incluindo, aí, a garantia do direito de não ser submetido a decisões judiciais, ministeriais ou de qualquer outro agente político ou administrativo, embasadas em princípios religiosos, filosóficos ou ideológicos de quaisquer espécies.4 Assim, a indefinição sexual de homens e mulheres que não se reconhecem na forma sexual 3 4 RIBEIRO, Diaulas. Transexualismo: a abolição da escravatura. Correio Braziliense. Brasília, Cidades, 21 set 2000, p.21. Revista História - 85 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. anatômica com a qual nasceram não apenas isola o indivíduo, mas o condena e o marginaliza socialmente porque, nos papéis sociais previstos, ele ou ela não se encaixam. O raciocínio é simples: se não está clara sua situação de gênero, não há como cobrar deveres sociais nem garantir direitos. Sua cidadania fica comprometida e sua habilidade social corrompida pela pequena margem de ação que lhe é oferecida: “Para a sociedade, não é tão importante que você seja bonito ou feio, mas é fundamental que você se defina como homem ou como mulher.” 1 Tem-se, até aqui, um relato dramático da situação de pessoas que acreditam fortemente que a mudança de sexo representará uma mudança de vida. Elas poderão assumir, no modo de vestir, nos gestos, na voz e nos hábitos comportamentos característicos do sexo com qual se identificam internamente. Embora a revolução sexual dos anos 60 tenha aberto caminho para a conquista de muitos direitos femininos, para a aceitação da homossexualidade e do lesbianismo, esses temas ainda são tabu nas sociedades contemporâneas. Filmes comerciais passaram a retratar a temática, mas ainda com algumas restrições. Embora cenas de comportamento homossexual sejam insinuadas, elas jamais foram Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de Grance. 1 mostradas de forma tão explícita quanto as de casais heterossexuais. Assim, compreensivelmente, está registrado na mentalidade coletiva um padrão de comportamento previsível para homens e para mulheres. Portanto, alguma uniformização está assente na nossa cultura. Apesar da citada revolução, ainda se exige que os homens sejam fortes, desportivos, lutadores, racionais, que tomem a iniciativa e que se responsabilizem pelas finanças do lar. Das mulheres, espera-se que, em vez da força, usem o artifício e a astúcia, que ajam com a intuição, discrição e emotividade, que prefiram atividades menos violentas, que contribuam com uma parcela menor para o orçamento do lar, onde executarão a maioria das tarefas. Bem demarcados os territórios masculinos e femininos, entende-se, mais facilmente, o drama do transexual, que vive, dia após dia, o terrível conflito de identidade sexual; vive, cotidianamente, o dilema entre o que é cobrado com base em sua compleição física e o que ele próprio expressa como concepção de si mesmo no mundo sexual e, por consequência, no social. Nessa ambiguidade, esses sujeitos denunciam, em suas falas que, ao mesmo tempo em que são discriminados na vivência familiar, nas brincadeiras infantis, na escola e nas amizades da juventude pelo fato de serem “diferentes”, também se sentem diferentes e se comportam de modo a reforçar a discriminação e a segregação social que sofrem. Interiorizam, assim, uma postura defensiva de si mesmos e do ataque do outro, num duplo jogo de violência simbólica que se alterna e torna a situação do transexual mais vulnerável e mais instável psicológica e socialmente. Essa situação é marcante no mundo do trabalho, porque é ali que o indivíduo se expõe como profissional, concorre por cargos, procura novas habilidades, sofre as conseqüências das suas decisões, dos seus acertos e erros. As transformações no mundo do trabalho que se operaram a partir da década de 70 centralizaram o processo produtivo na ciência e na tecnologia, desequilibrando as relações trabalhistas e desqualificando trabalhadores, submetidos a formas de trabalhos precários e instáveis. Se esta situação não é sinal de bons tempos para os indivíduos que se enquadram no padrão do “bom cidadão”, certamente não o será para os transexuais, que vivem em constante tensão com seu próprio corpo e com a “normalidade” social Inevitavelmente, encontraremos, no mercado de trabalho, em diferentes setores de produção, serviços e comunicação, pessoas que se beneficiaram da sua própria indefinição sexual e obtiveram sucesso e reconhecimento social. Mas estes são casos raros. A massa desviante está nas classes populares, sem recursos financeiros para ajustar desejo pessoal e Revista História - 86 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. demanda social, para maquiar um problema desta natureza como excentricidade temporária, como fazem os mais favorecidos.1 Isto não quer dizer que os transexuais de classes mais abastadas não sofram com os dilemas sociais e psicológicos que a transexualidade implica. Entretanto, eles encontram meios e recursos para diluir os efeitos negativos e tirar proveito social e econômico da situação. No entanto, isto não coincide com as experiências da maioria dos transexuais. Até a escolha do trabalho é periférica. Para a maioria deles, a melhor das hipóteses é tornar-se cabeleireiro. Meu primeiro emprego foi numa padaria, mas eu me vestia como ‘mocinha’. Por isso, fui procurar emprego em casa de família. Eu sabia que em casa de família eu ia ser aceita e tratada como uma pessoa normal (sic).3 Sinto dificuldade de conseguir um emprego por causa da minha situação. Acredito que a saída seria um concurso público, pois os outros trabalhos que faço, como aulas particulares e trabalhos de digitação não têm muito retorno [...] Acredito que a cirurgia me fará mais segura para competir mais e entrar no mercado de trabalho (sic).4 Vejamos o que dizem alguns desses sujeitos: Quando cheguei aqui, trabalhei de tudo para me manter. Trabalhei de empregado de supermercado, de empacotador. Em padaria, como balconista. Depois, trabalhei em hospital público. Então, nessa época, pensei em fazer o curso profissionalizante de cabeleireiro, pois quando se é homem e tem aparência de homem, é mais fácil arrumar emprego. Mas, para gente que muda, mais por causa da aparência, o único emprego que se encaixava era cabeleireira (sic).2 Segundo preceitos estabelecidos no BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo, Brasília, DF, p. 6-7, o CFM dispõe:”a justiça porque envolve a cidadania, o direito da pessoa não ser discriminada no pleito à cirurgia, já acessível à população de classe média e média alta.” 2 Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de Grance 1 Destaca-se, desses depoimentos, o fato de essas pessoas não se sentirem seguras quanto à compatibilidade de sua indefinição sexual com o trabalho a desempenhar.5 Chama a atenção, por outro lado, o fato de esses sujeitos procurarem Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de Grance. 4 Depoimento fornecido durante entrevista com participantes do Programa de Transgenitalização do Pró-Vida, citado na monografia de Grance. 5 Embora o mercado esteja cobrando mais habilidades, mais conhecimentos, mais treinamentos e mais competência no desempenho de atividades profissionais; embora esteja procurando um trabalhador com perfil mais polivalente, que circule por diversas áreas do conhecimento e com familiaridade em diferentes tecnologias, nada é mencionado, nos depoimentos colhidos, sobre a competência profissional desses transexuais. Ver: LARANGEIRA, Sônia M. G., Realidade do trabalho ao final do século XX. In: Ser Social, Brasília, UnB, nº 5, jul./dez./1999. 3 funções nas quais a condição de transexual não seja uma barreira: cabeleireiro, doméstico, digitador ou, em última instância, funcionário público. Certamente, o conforto do serviço público está no regimento geral, conduzido por forte noção de ética. Além disso, os critérios de seleção e convívio no espaço de trabalho são embasados em princípios legais de legitimidade do ser humano, respeito à diferença e criminalização da discriminação. Mesmo assim, nada garante que os transexuais não sejam submetidos a situações de constrangimento nas relações subjetivas no local de trabalho.6 Há de se ressaltar o posicionamento, que cada um dos entrevistados demonstra, de se estar vivendo na anormalidade.7 A questão, portanto, está na DOMINGUES, J. M. A estratificação social, o capitalismo e o futuro do trabalho. In: DOMINGUES, J. M. A. Sociologia e modernidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. 7Este termo deriva da noção de comportamento normal, e “normal” refere-se à falta de desvio significante da média. A não normalidade refere-se a situação imprópria, doença. Por outro lado, a palavra “anormal” varia enormemente em relação ao grau de satisfação ou não com que uma situação se apresenta para outra pessoa. É por isso que, no inglês, alguém engraçado é denominado de “pleasantly disturbed”. No DICIONÁRIO OXFORD, “normal’ quer dizer conforme o padrão. Isto é, pessoa que se comporta conforme o comportamento predominante da sociedade. Imitar comportamento deliberada ou inconscientemente está, portanto, intimamente ligado ao medo da humilhação ou rejeição. No dicionário AULETE CALDAS, “normal” significa: 1 – pessoa mental e fisicamente saudável; 2 – que não foge, em termos de comportamento, à regra da maioria das pessoas; 3 – que é social ou moralmente aceitável; 4 – que é usual, comum, habitual, corriqueiro; 5 – que tem reação natural ou habitual; 6 – que é segundo a norma ou padrão. Neste e em outros dicionários, a palavra está associada à ideia de um padrão e de normas específicas para avaliar o 6 Revista História - 87 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. ratificação dos testemunhos sobre a anormalidade. Em suas falas, os transexuais se consideram anormais. Isto quer dizer que concordam com a norma, com os papéis sociais distribuídos por gênero. Então, o antagonismo entre forma e conteúdo não é percebido como uma possibilidade, como um fenômeno da natureza humana, pois já está escrutinado como anormalidade, monstruoso e inaceitável; refere-se a um distúrbio de identidade sexual que o MPDFT, em parceria com o CFM, tenta corrigir, posto que anormal. A antagônica condição do transexual não se restringe, então, à sua própria vontade de corrigir e recompor sua unidade biopsicomorfológica. O poder das normas sociais percorre sinuosamente os quarteirões da cidade, os quartos de dormir e, finalmente, invade a mente humana. É ali que se instala a noção do perigo e da culpa. A vontade do indivíduo em situação de transexualidade está fortemente estereotipada por normas e valores sociais. As sociedades “julgam” que o desencontro entre sexo físico e sexo psíquico não é um problema individual, mas uma questão social, das linhas divisórias na sociedade entre o legítimo e ilegítimo, o normal e o anormal. comportamento dos membros de determinada sociedade. Não é por acaso a presteza do dito popular que, em socorro ao incerto, avisa: “de perto, ninguém é normal”. 2 A Sexualidade Ilegítima Interessado pela constituição da ordem social, Foucault analisa a sexualidade ocidental como resultado de uma rede de discurso que toma forma a partir do século XVII. Para ele, não é a repressão que está em foco, mas a prática do falar sobre, do revelar-se. Falou-se, e muito, sobre sexo. Marcada por um código de moralidade e polidez profundamente destoante da franqueza medieval, quando não se guardava segredos, vigorando a tolerância com o ilícito, com a obscenidade e as grosserias, a história da sexualidade, na modernidade, articula interdição e conhecimento. A sexualidade é cuidadosamente encerrada na casa, na família, em que o casal legítimo e procriador é o modelo. É na repressão ao sexo que a burguesia contabiliza seu poder, oferece um discurso pretensamente verdadeiro e procura “modificar sua economia real”.1 Os mecanismos de poder são ativados pela vontade de se instituir a cidade normal, onde a autoridade, a centralidade e a repressão são da competência do Estado, mas não se reduz a ele. A sexualidade é assistida e legitimada por um poder jurídico-discursivo, que atua como um micropoder, como demonstração da onipresença do poder que se acha em todos os lugares. FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol1. 10ª. Ed.,Rio de Janeiro: Graal: 13 1 Assim, constitui-se uma ciência da sexualidade, pela vontade de saber e pela proliferação de discursos sobre o sexo. Descreve-se e classifica-se o “anormal” pelo discurso, de modo a regulamentá-lo e, finalmente, dominá-lo. A explosão discursiva estabeleceu regras de decência e vocabulários autorizados e delimitou lugares e regiões onde o ilegítimo se encontrava. Assim, nova prática se funda pelo policiamento dos enunciados, demarcando regiões de silêncio, outras de traquejo ao falar e outras de profunda discrição. O deslize na fala ou no gesto pode ser um sinal de perigo, e a vigilância solicita diagnósticos emitidos pela ciência da sexualidade. Ciência da sexualidade, psiquiatria e justiça penal proferem discursos, diagnósticos, terapias, relatórios, em prol da manutenção do controle social pelo filtro da sexualidade normal ou não. A excitação com que o objeto é tratado nos diferentes espaços profiláticos conduz Foucault a identificar certa erotização do discursivo, pois se criaram, em todo canto e em toda parte, dispositivos para ouvir e registrar, procedimentos para observar, interrogar e formular. Talvez nenhum outro tipo de sociedade jamais tenha acumulado, num período histórico relativamente tão curto, tal quantidade de discurso sobre o sexo.2A polícia vai agir para regular o sexo com discursos informativos; áreas da ciência médica vão eliminar os FOUCAULT, M. História da sexualidade. A vontade de saber. Vol1. 10ª. Ed.,Rio de Janeiro: Graal: 34 2 Revista História - 88 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. estereótipos característicos da Idade Média e substituí-lo por discursos analíticos e intervencionistas nas condutas sexuais da população. O Estado se interessa sobre o sexo dos cidadãos, bem como sobre seus usos, para controlar suas práticas. Nos séculos XIX e XX, os dispositivos de controle se ampliaram. Inicia-se, na mesma época, o tempo das heterogeneidades sexuais. O marco legítimo continua sendo o casal monogâmico e heterossexual. Ao mesmo tempo, inicia-se a caça às sexualidades periféricas. Interroga-se a sexualidade das crianças, dos loucos e dos criminosos; incrementa-se o cuidado com os devaneios, as obsessões, as pequenas manias e as grandes raivas. O reconhecimento dessa heterogeneidade sexual institui, no século XX, mecanismos de “cura” em sintonia com os de controle. Assim, a barreira entre legítimo e ilegítimo se estreita, porque são dados, aos sexualmente “diferentes”, atenção e tratamento discriminado positivamente, para tentar corrigir uma “anormalidade” física. Isto é feito sob a mais severa vigilância institucional, médica e jurídica, com o rigor discursivo e o controle sobre as práticas sexuais. Os prontuários dos transexuais atendidos no Programa de Transgenitalização, do Pró-Vida, tornam-se objeto da mais minuciosa investigação. A vida do indivíduo é exaustivamente descrita, seu corpo é documentado por registros fotográficos, sua situação física é submetida a demarcações. Juristas, assistentes sociais, psicólogos e médicos são os agentes autorizados e legítimos para proferir pareceres sobre o caso e definir seu destino. A técnica médica e a mecânica do corpo passam a controlar o rigor discursivo, que deve atender a requisitos protocolares rigorosos. Além disso, mais que conhecer, a preocupação das instituições se estende a procedimentos de “cura” e à correção cirúrgica, instruída pelo entendimento de que a unidade biopsicomorfológica está acima da função reprodutora. Nos termos do Parecer 39/97:1 Essa dicotomia não foi provocada pela mão do homem, nem por caprichos de índole sexual das minorias oprimidas, mas pela própria natureza em sua infortunística fisiológica de má formação. E pode, no caso, corrigir o homem aquilo que a natureza, por descuido, deformou. (BRASIL, 1997:6) Para entender este procedimento, Foucault considera os elementos que constituem o grupo dos anormais e elaboramos um breve resumo sobre os três tipos: o monstro humano que combina o impossível e o interdito: é um domínio jurídicobiológico. Sucessivamente, as figuras do ser meio homem, meio bicho, as individualidades duplas, os hermafroditas representaram essa dupla infração. O 1. Ver BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer n. 39/97. Dispõe sobre Cirurgia Transgenital.Comissão de Estudos sobre Transexualismo, Brasília, DF, p.6. 1 que faz com que um monstro humano seja um monstro não é tão-só a exceção em relação à forma da espécie, mas o distúrbio que traz às regularidades jurídicas. Como desdobramentos, inúmeros equívocos continuam a rondar a análise e o estatuo do anormal, porque há um enorme descompasso entre as noções de natural e de natureza, que embora modifique os efeitos jurídicos da transgressão, não os apaga; 2. o indivíduo a corrigir: personagem mais recente é submetido às técnicas de disciplinamento, a partir dos séculos XVII e XVIII, no exército, nas escolas, nas oficinas e, finalmente, nas próprias famílias contra práticas de adultérios, incestos, sodomia, bestialidade. São procedimentos de disciplinamento do corpo, do comportamento, cuja normatividade não é mais a soberania da lei, mas uma interdição social, que desqualifica o indivíduo como sujeito de direito e utiliza, como medida de correção, o internamento; 3. o masturbador: figura nova ainda no século XVIII, tem como campo de aparecimento a família com a ação da criança masturbadora. Refere-se à posição da criança no meio do grupo parental, e ao espaço do quarto, da cama e do corpo. Passa-se a reconhecer o corpo sexual da criança que precisa ser controlado contra o abuso sexual que a criança comete com seu próprio corpo. A correção é um ato se de desfere sobre os pais, agentes responsáveis que negligenciaram na vigilância e se Revista História - 89 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. desinteressaram pela conduta dos filhos. A palavra de acusação agora é depravação, responsável pela reprimenda às babás, empregados, pais e parentes. A nova economia das relações intrafamiliares é controlada pelo médico, que arbitra e regula as relações e a vigilância familiares. Entra em cena a sexualidade da criança e suas anomalias como novo dispositivo. 1 Curioso é que as declarações dos transexuais sobre a percepção da diferença demonstram que a descoberta de sua “anormalidade” ocorreu geralmente na infância. É no seio da família que se arbitra sobre comportamento e vestimenta apesar de o menino preferir a boneca, ao carrinho, e o vestido da irmã. Sob coação e longas reprovações, vão-se desenvolvendo mecanismos de a criança se conformar com o exigido. O mesmo ocorre com a menina que prefere o short e o futebol. Essa obsessão infantil em preferir aparentar-se e comportar-se como o sexo oposto é exaustivamente recriminada também fora do espaço familiar. Medidas disciplinares localizadas são adotadas, mas parece que sem se dar muita importância para a diferença que desponta como uma teimosia de criança. Parece que são poucos os familiares que procuram ajuda psicossocial. Será, então, que o procedimento adequado é o de reforçar a divisão sexual feminino/masculino?3 Fica incógnita a natureza da transgressão na criança e no adolescente. De todo modo, já algo se Cena do Filme Flewless (Ninguém é perfeito) 2 FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.69-94. 2 Fonte: http://www.interfilmes.com/filme_14016_Ninguem.e.Perfeito(Flawless).html Filme do diretor Joel Schumacher dirige uma história em que Robert De Niro é ex-policial italiano linha dura, aposentado, conservador, orgulhoso que vive na Cidade de Nova York. Um dia bandidos atacam o cortiço onde ele vive. Um vizinho seu estava envolvido com negócios escusos, ao tentar ajudá-lo, recebe um golpe do destino sendo 1 acometido por um derrame, que o deixa com paralisia parcial do corpo, precisamente o seu lado direito. Recusando-se a deixar o apartamento em que vive, Walter (Robert De Niro) concorda com um programa de reabilitação que inclui aulas de canto com um artista que mora no apartamento de cima: uma drag queen chamada Rusty, interpretada por Philip Seymour Hoffman. 3 Supõe-se, logo, que a desqualificação do indivíduo começa ainda na infância. Exames médico-psicológico geram relatórios denunciatórios de práticas consideradas ilegítimas, cujo efeito é colocar o indivíduo em condição de infração às normas e sob a suspeita, de acordo com o discurso legal que se constitui, de representar perigo para a sociedade. configura em termos da plasticidade física e gestual que denunciam a “anormalidade” o tempo todo. Assim, a desqualificação não se dá apenas pela incompatibilidade sexo externo/interno, mas também, e talvez mais aviltantemente, com a seleção de trajes, gestos, ornamentos, comportamento, preferências que conferem, ao corpo, algo de grotesco, infame e ridículo. 4 Eis, aí, a descrição de uma conduta rotulada como delito contra a moral e a ordem pública. As presunções estatutárias de verdades ancoradas em descrições psiquiátricas têm valor de lei, podem aumentar a infração do indivíduo apenas pela avaliação da disposição de seu caráter. Assim sendo, pelo perigo social aludido à sua figura, é-lhe, já de antemão, conferido o título de “criminoso por propensão”. A isto Foucault denomina de parapatologia, um defeito moral, próximo da doença. No entanto, a prova de um comportamento considerado moralmente defeituoso não é uma patologia, tampouco infração criminosa, porque a lei não impede ninguém de ser o que é, mas é suficiente para transformar o indivíduo sob suspeita em réu. Situação irremediável na base social cujas representações sexuais e sociais são, como referência, por demais confinadas no padrão do heterossexual e monogâmico. É exatamente por essa condição de réu, FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.16 e seguintes. 4 Revista História - 90 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. isto é, do sujeito perigoso para a sociedade pela disposição de seu caráter e pelo defeito moral, que o Programa de Transgenitalização disponibiliza procedimento clínico cirúrgico-corretivo aos transexuais. Enfim, os agentes envolvidos no processo de redesignação sexual salientam a importância do exame psiquiátrico. É ali que se descreve o caráter delinquente, as condutas criminosas, enfim, instrui o processo em termos da culpa real, para que o juiz afiance o julgamento psiquiátrico para concluir pela anormalidade que precisa ser curada. Só então o transexual será submetido à cirurgia reparadora. Este diálogo com Foucault conduz à força da frase: “O duro ofício de punir vê-se assim alterado para o belo ofício de curar”.1 Vale ressaltar que, na virada do século XX para o XXI, os avanços nas técnicas médicas tornaram-se um dispositivo que não apenas cura, mas corrige, transforma imperfeições e defeitos em obras de arte. Dá nova forma, altera a fisionomia, remodelando nariz, olhos e boca; adéqua o tamanho e forma do seio ao estilo do corpo, afina cinturas, implanta cabelos e dentes e tantos outros milagres que a medicina oferece na busca do corpo perfeito. São práticas que funcionam também como dispositivos para atuar sobre o corpo anormal como relevância social. No parecer inúmeras vezes citado, o FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (19741975). (Coleção Tópicos).São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.29. 1 corpo deixa de ser o cativeiro do indivíduo. O princípio e o fim da condição humana estão na busca de prazer, e o corpo deve ser um instrumento de realização dessa vontade. O corpo se justifica, então, como fonte de beleza e hedonismo. 2 Mas o problema dos transexuais não é a imperfeição ou o defeito físico, mas, sim, a “inadequação” físico-psicológico. O trauma está na não correspondência do físico com o comportamento. A aberração é a negação do seu próprio sexo e o desejo pelo sexo do outro. A cirurgia tem, então, a missão de transformar a “anormalidade psicológica” em reassentamento civil; de adequar o indivíduo a uma conformação corporal compatível com seu comportamento e retirá-lo da suspeita ou da quase criminalidade. Atrás desse procedimento está a autoculpabilização, o não reconhecimento de si mesmo como normal. Não é apenas a sociedade que expõe os transexuais a situação de anormalidade, mas eles mesmos se identificam como anormais. Deste modo, não há o que queixar no que se refere à sua inserção no mundo do trabalho. Se trabalhar é um bem social, um estatuto de reconhecimento das A partir desta reflexão sobre a relação punição/cura, Foucault se dedica à análise da loucura, como uma anomalia mental. A instituição médica nesse caso toma o lugar da instituição jurídica, porque a loucura apaga o crime. Os indivíduos em acompanhamento pelo PróVida não são questionados pela anomalia mental, mas pela anomalia físico-psicológica de reconhecimento da sua sexualidade. Deste modo, consideraremos a discussão de Foucault sobre perversão e discriminação social. qualidades produtivas dos indivíduos, o que aguardar de alguém que sequer reconhece seu próprio sexo? A voz surda da ineptidão se instala como dispositivo para limitar a participação dessas pessoas no mercado de trabalho. O reassentamento civil não garante o reassentamento social. Sua imagem de inepto prossegue. Trabalhar em quê? Vive-se uma farsa, apresenta-se, nomeia-se, veste-se e gesticula-se como o que não se é. Como confiar em alguém com estas características? Como confiar-lhe um ofício, uma responsabilidade se é a imagem da própria negação? Vê-se como negação, como bestial, no limite do humano. Cruel processo de apreensão de si, triste imagem que projeta de si, infeliz sociedade que recusa seu cidadão sob o pretexto da diferença que o torna desconhecido, estrangeiro e ameaçador à regra social. Não serve para o convívio social, nem para o trabalho, a não ser os periféricos, quando não, os ilegais. A transexualidade está, portanto, no paradigma da ilegitimidade, da recusa social. Emsituação com mais desvantagens do que as que apresentam os autores que se dedicam no debate sobre a reestruturação do mercado de trabalho no século XX. 3 2 SABOIA, João. Tendências do mercado de trabalho metropolitano: des(assalariamento) da mão-de-obra e precarização das relações de trabalho. In: GOUVEA, Ronaldo Guimarães. Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; MATTOSO, Jorge Eduardo Levi. Transformações econômicas recentes e mudanças no mundo do 3 Revista História - 91 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Consome o pesquisador a inquietação dos limites do conhecimento e da imensidão da realidade. Realidade que se apresenta de tão variadas formas e com tantos artifícios para contrapor ou contrabalancear a multiplicidade de vozes e práticas sociais. É como se a grande questão desses transexuais pudesse ser solucionada na cirurgia em si, na compatibilização corpo e alma. Mas as mazelas da natureza e do humano são maiores e incontáveis porque, atrás deste gesto de conciliação individuo/sociedade, persevera um universo marcado pelo rigor normativo, no qual a aparelhagem mental, a apropriação simbólica e a estrutura imaginária imputam, a esses indivíduos, uma representação de si mesmos e do sistema social no qual estão inseridos. A cirurgia é um passo, mas há outros dispositivos sociopolíticos nos quais essa conciliação esbarra. A discriminação tem seus próprios dispositivos e vai buscar, nas cavernas mais obscuras do social, os elementos detratores dos indesejáveis. Deste modo, é a partir da conduta da sociedade e do indivíduo, face à discriminação, que poderemos entender os canais abertos à inserção social dos transexuais. trabalho. In: OLIVEIRA, Marco Antonio de (org.). Economia e trabalho: textos básicos. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 1998. LIBERDADE GRATUITA: DO DIREITO DE PROPRIEDADE A CONCESSÃO DA MANUMISSÃO Verônica Maria Nascimento Tapajós Mestre em História Política (UERJ) SME-Rio e SEE-Rio Resumo As cartas de alforria nos permitem contemplar em parte a relação senhor-escravo. Mesmo sendo um direito senhorial, a alforria foi perseguida e conquistada pelos escravos que se utilizaram de diversas táticas para conseguirem-na. Nos diversos tipos de alforria existentes – gratuitas, onerosas, testamentárias e condicionais – os escravos se utilizaram de diversos modos para convencerem seus senhores de que eram merecedores da manumissão. Ao trabalharmos com as alforrias gratuitas nesse artigo, evidenciamos este tipo de libertação como uma concessão senhorial, já que o escravo era considerado propriedade, e o direito de propriedade era amplamente preservado pela sociedade na primeira metade do século XIX. Contudo, um senhor jamais libertaria um escravo que não fizesse por merecer, logo, mesmo nas alforrias gratuitas, percebermos a participação ativa dos cativos no processo de libertação. Palavras-chave: Escravidão, Alforria, estratégia e tática Résumé Les lettres de manumission nous permet de répondre en partie à La relationmaître-esclave. Même en tant que droit de maîtrise, l'affranchissement a été poursuivi et capturé par des esclaves qui ont utilisé diverses tactiques pour y parvenir. Différents types d'affranchissement disponibles - gratuitement, coûteux, lês legs et les contingents-les esclaves étaient utilisés de diverses manières de convaincre leurs maîtres qui ont été dignes d'affranchissement. Em travaillant avec l'affranchissement gratuit cet article, nous prouvons ce type de libération comme le prix d'une maîtrise, que les esclavesétaient considérés comme des biens et droits de propriété a été conservé en grande partie par la société dans la première moitié du XIXe siècle. Toutefois, un gentilhommene libérerait un esclave qui ne le méritait pas, de sorte que même dans la musiqueaffranchissement, la réalisation de la participation active des détenus dans leprocessus de libération. Mots-clés: l'esclavage, l'émancipation, la stratégie et les tactiques *** As manumissões pautadas no acordo entre senhor e escravo, apresentam uma grande diversidade de casos e muitas peculiaridades, já que uma libertação nunca seria igual à outra. Estas cartas iluminam e tipificam as complexas relações entre dominadores e dominados. Revista História - 92 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. nomeadas e assignadas, perante as quaes me dice que servindo-a como até aqui tem feito seu escravo Manoel Crioulo que ela comprara em pequeno, até o seu falecimento, logo do dia dele em diante, ficará livre de todo cativeiro podendo, de então, avaliar-se como tal e conduzi-se por onde e como lhe convier por bem desta liberdade, que lhe confere de agora e para esse tempo, de sua livre vontade pelo beneficiar e por isso roga a Justiça de Sua Alteza Real lhe fação cumprir e a mim Tabelião lhe dou fé nesta Nota e sendolhe lida a aceitou por estar a seu gosto; e eu Tabelião como pessoa pública a aceito em nome do liberto; e de tudo dou fé e de por esses distribuído pelo bilhete seguinte: Eva Gomes dá Escritura de Liberdade a Manoel Crioulo; Rio de Janeiro, vinte e seis de abril de mil oito centos e oito. Em dous dias Monteiro Diniz assignou a rogo da libertante por ela não saber escrever [assinaturas das testemunhas e do tabelião].1 Identificamos quatro tipos de cartas de alforria classificadas a partir dos motivos que justificaram a carta para a concessão da liberdade. São elas: gratuita, onerosa, testamentária e condicional. Neste artigo, optamos por trabalhar com as alforrias gratuitas, bem como a principal questão que perpassa este tipo de libertação: o direito de propriedade, já que era um direito senhorial alforriar ou não aquele que era considerado sua propriedade pela lei. Antes de começarmos a análise das alforrias gratuitas, optamos por transcrever duas cartas integralmente, para que possamos ter a dimensão do documento completo. Notemos que a estrutura das cartas é a mesma (o que está sublinhado), só diferenciando uma da outra no que diz respeito às informações concedidas pelos senhores. Escriptura de liberdade condicional que dá Eva Gomes a seu escravo Manoel crioulo. Saibam quantos este público instrumento de Escriptura de Liberdade virem que no ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oito centos e oito aos vinte e seis dias de abril nesta cidade do Rio de Janeiro em meu cartório apareceu prezente Eva Gomes, solteira, moradora na Freguesia do Pilar, reconhecida das testemunhas adiante 1 AN, 1o Ofício de Notas, Livro 199, Folha 64. Escriptura de liberdade condicional q dá o Tenente Francisco Antônio Medeiros a seu escravo Iora Congo. Saibam quantos este público instrumento de Escriptura de liberdade condicional virem que no anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oito centos e nove aos seis dias de maio nesta cidade do Rio de Janeiro, em meu cartório apareceu presente o Tenente Francisco Antônio Medeiros, morador na freguesia da Alfândega, com negócio reconhecido por mim Tabelião, e me disse perante as testemunhas adiante nomeadas e assignadas que possue hum escravo por nome Iora de nação Congo que comprara ainda pequeno, o qual o havia instado [sic] era que lhe desse liberdade sugeitando-se a servi-lo por tempo de seis meses, data desta para neste tempo lhe ensinar outro escravo novo afazer-lhe as comprar necessárias para casa, servir e ir as casas dos seus fregueses e amigos como elle fazia, e atendo mais que necessita saber para o serviço [sic]; e tão bem sugeitando-se a forrar a sua mulher pela quantia de dez doblas, dar o Revista História - 93 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. mesmo escravo por si, como de facto deu neste acto outra tanta importância, por cuja causa queria ele outorgante debaixo das condições acima referidas; e por ter recebido aquela quantia de dez doblas condesconder com a vontade do dito escravo dando-lhe, como lhe dá, debaixo das mesmas condições que por ônus lhe impõem, liberdade desde já para se poder tratar como livre, e passados os seis meses poderá conduzir-se por onde e como lhe convier, por bem desta carta; que roga a Justiça de Sua Alteza Real fação cumprir e a mim Tabelião, lhe dou fé nesta Nota, sendo-lhe lida a aceitou por estar a seu gosto; e eu Tabelião como pessoa pública a aceito em nome do liberto e de tudo dou fé e de por esses distribuído pelo bilhete seguinte: Francisco Antônio Medeiros dá liberdade a seu escravo de nação Congo em seis de maio de mil oito centos e nove. [assinaturas das testemunhas, do senhor e do tabelião].1 2.1. Escravidão:Condição do homem que é propriedade de outro homem. 2. Estado ou condição de escravo; escravatura, escravaria, cativeiro, servidão. 3. Falta de liberdade, sujeição, dependência, submissão. 4. Regime social de sujeição do homem e utilização de sua força, explorada para fins econômicos, como propriedade privada. A escravidão é uma instituição que envolve um grau de dominação/subordinação entre pessoas, abrangendo desde o direito do possuidor sobre a vida e a morte do escravo, até disposições legais cuidadosamente detalhadas quanto aos direitos e privilégios mútuos; o elemento essencial do acordo é o direito de forçar o escravo a trabalhar ou prestar outros serviços em proveito do senhor.2 Ser escravo significava pertencer a alguém. O fato de uma pessoa não pertencer a si mesma, não ter poder de mando sobre sua própria vida, indica a falta de liberdade que era a característica mais marcante da escravidão. Vemos então, na escravidão à SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1997, p. 138 2 1 AN, 3o Ofício de Notas, Livro 201, Folha 32. O direito de propriedade existência da relação dominação/subordinação, onde quem escravizava exercia o poder dominante e quem era escravizado tinha que se conformar (pelo menos deveria) com a sua condição de subordinado, aquele que era submetido a um poder maior que o seu. Seria simplista demais falar em uma relação entre dominador e dominado, como sendo dominador o senhor e dominado o escravo. Sabemos que essa relação era bem mais complexa, pois ao mesmo tempo em que o senhor era aquele quem dominava era também um alguém dominado, no sentido de que era dependente de um sistema que a princípio, o privilegiava: o sistema escravista. O que seria dos senhores sem os escravos? Essa é a primeira pergunta que devemos fazer para tentarmos compreender a questão da dependência. Quem dependia de quem? Que o escravo era por lei dependente do senhor era algo meio óbvio, na lógica escravista, mais não podemos perder de vista que, nessa mesma lógica, o senhor é dependente do escravo e de sua mão-deobra. No Brasil, juridicamente o escravo era considerado propriedade de seu senhor. Isso significa dizer que o escravo era uma mercadoria, da qual o senhor tinha o direito de “alugar, emprestar, vender, doar, alienar, legar, hipotecar e dá-lo em usufruto”.3 A única obrigação do senhor para com o escravo seria alimentá-lo, vesti-lo e cuidar dele, caso MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 182. 3 Revista História - 94 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. adoecesse. Com direitos tão amplos, ficava difícil pensar no escravo sem a figura do senhor ao lado, que o controlava e o dava ordens a todo o momento. Olhando por essa lógica, parece-nos até que o escravo era como um fantoche nas mãos do senhor, mas, como já dissemos, devemos tomar cuidado com tais afirmações simplistas, pois, embora fosse considerado mercadoria, na verdade eram seres humanos, tolidos pelo sistema que os oprimia, mas com todas as faculdades e capacidades próprias dos seres humanos. Daí a grande dificuldade nessa relação patrimonial. O escravo possuía iniciativa e era dotado de razão. Logo, as negociações faziam parte da relação entre senhor e escravo. Será que um senhor que possuísse um escravo poderia fazer o que quisesse com ele pelo fato de ser sua propriedade? Sidney Chalhoub afirma que não, pois existia muito bem definido entre os escravos aquilo que ele chamou de “autonomia escrava”. O autor afirma não conseguir imaginar que os escravos não produzissem valores próprios, ou que pensassem e agissem segundo significados que lhes eram inteiramente impostos.1 A violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação autonômica”, nem em passivos receptores de valores senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis.2 Ao trabalharmos com as cartas de alforria identificamos elementos dessa autonomia escrava. Ainda que o senhor não libertasse escravo algum sem a sua vontade, na maioria das vezes os escravos que conseguiam suas alforrias souberam negociar com seus senhores. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2 1 1990, p. 38 Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnizado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá lograr esta única excepção, e dará as regras para se determinar a indemnização.3 (grifo nosso) plenitude”. Por ser o escravo considerado uma mercadoria, logo, ainda que o Código não legislasse claramente sobre a escravidão, era entendido que os direitos senhoriais eram amplos. Para Eduardo Pena, tal artigo demonstrava plenamente seu “caráter escravista”, uma vez que os escravos eram reconhecidos como “objeto de propriedade”.4 Essa relação de plenitude do direito senhorial foi, de certa forma, alterada com a escravidão urbana, onde temos a presença mais visível de um Estado que, por vezes, interferia na relação de poder senhorial. A Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, em 1838, lança mão de um conjunto de Posturas, que estabelecia regras para o bom convívio social. Tais posturas visam regular uma cidade escravista, onde os escravos estão “soltos” pelas ruas em busca de serviços, a mando de seus senhores. A partir do momento que os escravos “ganhavam” as ruas da cidade era de se esperar que eles fugissem do âmbito privado, devendo ser fiscalizados pelo poder público. Reconhecendo a questão da propriedade e dos amplos direitos que o senhor tem sobre o cativo, analisaremos as alforrias, como sendo uma concessão senhorial. A Constituição do Império definia em seu artigo 179 o “direito de propriedade em toda a sua Ibidem., p. 42 Constituição do Império de 1824, Título 8o, artigo 179, parágrafo XXII. 3 PENA. Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2001, 4 nota 6. Revista História - 95 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. 2.2. Alforriar é um direito senhorial Como vimos, a lei garantia o direito de propriedade em sua plenitude aos senhores de escravos. Logo, sendo o escravo propriedade do senhor, somente este poderia decidir sobre a vida daquele e, isso incluia, o ato de alforriar. Alforriar era um direito senhorial, pois por fazer parte de seu patrimônio, o senhor detinha o poder de negociar os seus bens, bem como, no caso das alforrias gratuitas, abrir mão deles. Alforriar um escravo era um ato que só dependia do senhor. Contudo, libertar um escravo era uma decisão um tanto quanto complexa para a época, pois envolvia tanto questões de consciência individual quanto percepções e avaliações críticas da sociedade na qual participavam.1 O escravo era visto socialmente como um “alguém” representado por seu senhor, não possuindo personalidade jurídica. Logo, quem respondia pelo escravo e pelos seus atos era o senhor. Quando analisamos as posturas de 1838, vemos que logo após a lei, vem escrita a sanção em caso de descumprimento da mesma. A punição era dirigida tanto para os senhores – que poderiam responder através de multas ou retenção – quanto para os escravos – que deveriam ser punidos com castigos físicos e prisão. Logo, se o senhor possui essa responsabilidade perante a sociedade, ele só poderia 1 CHALHOUB, Sidney. Op. cit., p. 98. alforriar escravos que, bem ou mal, soubessem se comportar diante dos “brancos”. Aquele escravo que fosse rebelde, que não aceitasse as estruturas de poder, este jamais receberia a alforria de seu senhor. Um dos pilares da política de controle social da escravidão era o fato de que alforriar se constituía num privilégio exclusivo dos senhores. Ou seja, os escravos sabiam perfeitamente que se quisessem conquistar de seus senhores suas manumissões deveriam trilhar o caminho da obediência e da fidelidade. Assim como a escravidão foi uma instituição baseada na produção de dependentes, a alforria – por ser um direito exclusivo do senhor – manteve essa característica, transformando escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos donos. A alforria não “cortava” os laços existentes entre senhores e escravos, continuando a existir uma relação de subordinação/fidelidade dos escravos para com seus antigos donos. Prova disso, era que caso o senhor se sentisse desrespeitado por um antigo escravo, poderia – e isso era um direito garantido por lei – reescravizá-lo. A revogação de alforria por motivo de ingratidão estava prevista no título 13 do artigo 4 das Ordenações Filipinas do século XVII.2 Tal dispositivo tornava possível ao senhor anular o documento de alforria com a mesma facilidade com que o assinou. Essa situação só foi alterada a partir da 2 MATTOSO, Kátia. Op. cit., p. 180. lei assinada em 28 de setembro de 1871, que estabeleceu em um dos seus artigos a alforria forçada por indenização de valor. A partir desta data, os escravos que apresentassem, como indenização, a “quantia” justa a seus senhores pelas suas libertações, deveriam receber destes suas alforrias, mesmo contra a vontade dos mesmos. É claro que essa história de “alforria forçada” rendeu muitas dores de cabeça para os magistrados da época, pois várias foram às batalhas judiciais travadas entre senhores e escravos sobre esse assunto. Contudo, não podemos perder de vista nosso corte temporal, que se insere na primeira metade do século XIX, onde nem se sonhava pensar em alforria forçada e o direito de propriedade era garantido em sua plenitude. Logo, alforriar era uma decisão que só cabia ao senhor. 2.3. Cartas de Alforria Gratuitas A liberdade gratuita seria aquela na qual o senhor ao conceder a carta de alforria não cobrava ônus do escravo. A princípio, quando o senhor não exigia pagamento do escravo, ao libertá-lo, sendo este um direito seu já que estava se desfazendo de parte de sua propriedade, causa-nos a impressão de que este senhor era uma pessoa caridosa e generosa. Contudo, devemos ter cuidado ao julgar este tipo de ato. Dizer que alguns senhores, por vários motivos, geralmente expressos na própria carta de alforria, como por Revista História - 96 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. exemplo, “o amor de criação”, libertaram gratuitamente seus escravos por um gesto de “caridade e bondade” para com aqueles que os serviram com fidelidade por anos, é uma coisa. Agora dizer que todos os senhores que libertaram seus escravos de forma gratuita foram “caridosos e bondosos” é outra coisa completamente diferente, pois a liberdade, mesmo que gratuita, pode representar para o escravo abandono e desamparo. Mas o que estaria por trás da alforria gratuita? Seria esta um ato de verdadeira caridade dos senhores ou estariam eles simplesmente se livrando de um estorvo, como por exemplo, um escravo velho, doente ou aleijado?1 Passemos para a análise de algumas cartas de alforria gratuitas: Escritura de liberdade, concedida por Antônio José de Moura a sua escrava Ângela crioula e seus filhos Felíssimo e Antônio pardos. Em meu Cartório, apareceu prezente Antônio José de Moura, Mestre Carpinteiro, morador na Freguesia do Santíssimo Sacramento de Cantagalo [...] me disse que era senhor e possuidor de huma crioula chamada Embora não seja objeto dessa pesquisa, vale destacar as denúncias feitas a Câmara Municipal sobre o abandono e a condição de forros nas ruas da cidade. Ângela q comprara do Capitão Francisco Ferreira Cunha e mais dois filhos da mesma [...] chamados Felíssimo e Antônio, ambos pardos, aos quaes todos elles, mãe e filhos, confere elle outorgante pura liberdade para que desde já se possão tratar como livres que ficão sendo e conduzir-se por onde e como lhe convier... Antônio José de Moura dá liberdade a sua escrava Ângela crioula e filhos em 12 de maio de 1809.2 (grifos nossos) Na maioria das cartas analisadas, os senhores deixam bem claro o motivo da libertação, principalmente quando esta se dava de forma gratuita. Nesta carta, contudo, o senhor ocultou a sua gratuidade, não aparecendo o termo “gratuito” em momento algum no documento. Sabemos que esta alforria é gratuita, pelo fato do proprietário do escravo, no caso dos escravos, não ter exigido nenhuma espécie de pagamento ou condição para que a liberdade acontecesse. Esta carta pode também ser classificada como uma liberdade coletiva, ou em conjunto, visto que mais de um escravo adquire a alforria em um mesmo documento. No caso específico, temos uma mãe e seus 1 2 AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 38. dois filhos conquistando sua alforria de forma gratuita. O procedimento é datado de 12 de maio de 1809, momento em que a cidade crescia e a escravidão estava no seu auge. Por que este senhor alforria de forma gratuita escravos em idade produtiva, como por exemplo Felíssimo e Antônio? Bem, poderíamos justificar o ato por uma possível paternidade (o que podia ser plausível, mas no caso específico, impossível de provar já que não foi revelado na carta). Entretanto, as relações de dependência e fidelidade fizeram parte das táticas utilizadas por esses escravos na consecução de suas alforrias. Escritura de liberdade que dá Luis Antônio Tavares a seu escravo Mariano mulatinho. Em meu Cartório apareceu prezente Luis Antônio Tavares, morador na freguesia de São Gonçalo, e vive de rosa [roça], [...] e me disse que por este instrumento e na melhor forma de Direito, dá pura e irrevogável liberdade ao seu escravo Mariano Pardo [mulatinho] de idade de seis anos, filho de sua escrava já falecida chamada Gertrudes Angola, para que se possa o dito mulatinho tratar desde já como livre que he, podendo conduzir-se por onde e como lhe Revista História - 97 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. convier por bem desta liberdade, que lhe confere gratuitamente... Luis Antônio Tavares dá liberdade a seu escravo Mariano mulatinho em 31 de maio de 1809.1 (grifos nossos) Também nesta carta de alforria não temos motivos para duvidar da “boa vontade” deste senhor, afinal de contas, ele está se desfazendo de um bem que lhe pertence, e na qual ainda poderia lhe ser fonte de grandes recursos, já que se trata de uma criança de seis anos. Acaba sendo difícil para nós, olharmos um caso como este e não desconfiarmos de uma paternidade não revelada. A questão foi amplamente discutida por estudiosos da escravidão no Brasil, o quanto era comum o relacionamento “extraconjugal” entre senhores e escravas. Muitas se “deitavam” com seus senhores a contragosto, porque eram forçadas e para não serem punidas. Outras viam neste gesto de maior intimidade com seu senhor, uma maneira de conseguirem “arrancar” deles alguns benefícios, como por exemplo, a alforria. As chances aumentavam ainda mais, quando a escrava engravidava de seu senhor, embora isso não fosse garantia de nada. Mas, seja como for, vários senhores concederam, abertamente, alforria para seus filhos, sendo tal informação expressa na própria 1 AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 57. carta. Outros, não querendo assumir seu “pecado” publicamente, mas impulsionados a libertar seus filhos – o que não quer dizer reconhecer como filho, logo como herdeiro – alforriavam gratuitamente, alegando “carinho, afinidade, amor”, mas sem reconhecer a paternidade. Talvez o caso de Luis Antônio Tavares e Mariano seja este. O fato de o senhor ter citado o nome da mãe de Mariano, Gertrudes, que já havia falecido, pode ser mais um indício de que Luis Antônio tinha alguma consideração por Mariano e sua mãe. Mas seja como for, por não estar expresso no documento, são apenas especulações. Neste tipo de alforria – gratuita – muitos senhores afirmavam que estavam alforriando seus escravos por “amor de criação”. Analisamos várias cartas onde à justificativa para a alforria dada pelos senhores, estava ligada a esse sentimento. Contudo, devemos tomar um certo cuidado ao falar de um sentimento como “amor” na relação senhor-escravo. Qual seria o grau de carinho numa relação que estava baseada na dominação? Debret, ao comentar uma de suas pranchas que retratava uma família jantando e crianças escravas sentadas ao chão comendo o que sua senhora lhes dava, comparou essas crianças a animais de estimação. No Rio, como em outras cidades do Brasil, é costume, durante o “tête-àtête” de um jantar conjugal, que o marido se ocupe silenciosamente com seus negócios e a mulher se distraia com os negrinhos, que substituem os doguezinhos, hoje quase completamente desaparecidos da Europa. Esses molecotes, mimados até a idade de cinco ou seis anos, são em seguida entregues a tirania dos outros escravos, que os domam a chicotadas e os habituam, assim, a compartilhar com eles das fadigas e dissabores do trabalho. Essas pobres crianças, revoltadas por não mais receberem das mãos carinhosas de suas donas manjares suculentos e doces, procuram compensar a falta roubando as frutas do jardim ou disputando aos animais domésticos os restos de comida que sua gulodice, repentinamente contrariada, leva a saborear com verdadeira sofreguidão.2 (grifos nossos) Citaremos agora, algumas cartas de alforria gratuitas, onde os senhores alegaram estar libertando seus escravos por terem por eles “amor de criação”, ou pelo fato deles serem suas crias. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. Volume I, p. 172. 2 Revista História - 98 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Escritura de liberdade gratuita que dá Felipa de Oliveira a sua escrava Lauriana cabrinha. Em meu Cartório apareceu prezente, Felipa de Oliveira, mulher preta livre, que se conserva solteira1, moradora na freguesia de Engenho Velho, [...] que me dice que por esta escritura confere pura e irrevogável liberdade gratuitamente a sua escrava Lauriana cabrinha, filha de outra sua escrava chamada Maria Benguela, para que de hoje por diante se possa tratar como livre que fica sendo para lhe conduzir como lhe convier por bem desta liberdade, que lhe confere de sua livre vontade, por quere-la beneficiar em razão de ser sua cria. Felipa de Oliveira dá liberdade a sua escrava Lauriana cabrinha em 19 de julho de 1808.2 (grifos nossos) Em todas as cartas de alforria que analisamos, quando quem estava alforriando era uma mulher, após o seu nome, vinha seu estado civil (solteira ou viúva). A mulher que fosse casada não podia alforriar escravos, devendo o marido desta tomar os procedimentos para a libertação. Uma outra peculiaridade verificada era quando o senhor (a) que estava alforriando era negro (a). Sempre após seu nome, vinha uma qualificação que fazia referência a sua raça: “preto livre”, “crioula livre” ou “negro forro”. 2 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 150. 1 Nesta carta vemos que a senhora liberta uma escrava criança, alegando possuir amor pela mesma. Contudo, a mãe de Lauriana, Maria Benguela, continua na condição de escrava. Essa situação faz com que a perspectiva de vida desta criança não se modifique, pois mesmo sendo considerada forra pela sociedade, muito provavelmente Lauriana continuou levando a mesma vida já que permaneceu na casa da senhora de sua mãe, onde, com toda certeza, sofria as interferências da mesma. A carta transcrita abaixo, parece-nos ser da mesma natureza. Não sabemos a idade de Joaquina, mas se esta fosse criança, pelo fato de sua mãe continuar escrava, ela também fatalmente continuou ligada ao cativeiro mesmo após a sua libertação. Escritura de liberdade que dá Quitéria da Luz a sua escrava Joaquina Crioula. Em meu Cartório apareceu prezente, Quitéria da Luz viúva de Manoel dos Santos Pinheiro, moradora na rua dos Latueiros, [...] que me dice que por este instrumento confere pura e irrevogável liberdade desde já a sua escrava Joaquina Crioula, filha de outra escrava chamada Maria, para que possa de hoje em diante tratar-se como livre que fica sendo, e ir por onde lhe convier, por bem desta liberdade que lhe confere gratuitamente, por quere-la beneficiar em razão de ser sua cria. Quitéria da Luz dá liberdade a sua escrava Joaquina Crioula em 04 de agosto de 1808.3 (grifos nossos) Em uma outra carta por nós analisada, o reverendo Manoel Gomes Souto, confere liberdade de forma gratuita, ao menino Luís pardo, de 7 anos. O padre confere a alforria em nome de seus pais: o Capitão Domingos Pinto de Miranda e Maria de Jesus que já havia falecido quando seu filho registrou a libertação da criança, alegando estar conferindo esta liberdade gratuitamente “em razão do menino ser cria de sua caza”.4 A carta abaixo é mais uma das várias analisadas, dentro dessa perspectiva de alforria gratuita por “amor de criação”. Parece-nos que existia uma tendência entre os senhores em alforriar crianças, mas sem estender à liberdade a mãe, o que, como já discutimos, não modificava muito a condição da mesma. Muito interessante, porém, é o termo utilizado por Antônia ao conceder a alforria à Emerenciana. A senhora afirma que por bem desta escritura passada por ela, a menina Emerenciana deveria passar a ser respeitada como livre que ficava sendo. A carta de alforria era um instrumento de 3 4 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 169/169v. AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 19v. Revista História - 99 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. poder do senhor reconhecido e valorizado pelos escravos. Para a sociedade da época, esta deveria ser a forma pela qual o escravo deixava de ser coisa, tornando-se pessoa. Assim sendo, pouco deve ter importado para as mães que tiveram seus filhos alforriados, o fato deles continuarem, “presos” ao cativeiro, pois o valor estava no fato deles agora serem considerados livres e ter a possibilidade de uma vida melhor que a que seus pais tiveram. Escritura de liberdade que dá Antônia Maria Rangel a sua escrava Emerenciana parda. Em meu Cartório apareceu prezente, Antônia Maria Rangel, moradora no Lugar do Baldeador na Freguesia de São Gonçalo, e vive solteira [...] que me dice que por este instrumento confere pura e irrevogável liberdade a sua escrava Emerenciana parda, de menor idade, filha de outra sua escrava parda chamada Maria, para que desde já seja respeitada por livre, como de facto fica sendo por bem desta escriptura, que lhe passa de sua livre vontade gratuitamente, por quere-la beneficiar em razão de ser sua cria. Antônia Maria Rangel dá liberdade a sua escrava Emerenciana parda em 20 de outubro de 1807.1 Joaquim Correa dá liberdade a Claudiana Cabra em 30 de julho de 1808.2 (grifos nossos) (grifos nossos) Identificamos outra carta de alforria que poderia ser classificada como gratuita, mas que na verdade não foi. Segue abaixo sua transcrição e logo após, uma breve análise. Escritura de liberdade que dá Joaquim Correa a Claudiana Cabra. Em meu Cartório apareceu prezente, Joaquim Correa, homem preto, morador na Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Aguassu onde he arraes de barcos [...] que me dice que sendo casado com a escrava de dona Joana Teles de Menezes, chamada Maria Crioula, teve sua filha chamada Claudiana Cabra, ao qual ele outorgante depois comprara à referida Dona Joana, e queria conferir como de facto confere a mesma sua filha Claudiana pura e irrevogável liberdade que ficará gozando desde já como se livre nascesse, para assim se poder tratar izenta de mais cativeiro em razão de ser sua filha. 1 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 111/111v. Vemos que nesta libertação, existe uma terceira pessoa envolvida além de senhor e escravo. Temos um homem, Joaquim, que pela própria descrição do tabelião, era um homem preto, logo, provavelmente já foi escravo e conseguiu, não sabemos de que forma, sua carta de alforria. Este homem era casado com uma escrava, Maria crioula, que pertencia a Joana Teles de Menezes, e com sua esposa teve uma filha de nome Claudiana. Joaquim travou uma luta pela libertação de sua esposa e filha. Joaquim provavelmente negociou com Joana a libertação de sua família. E passou a trabalhar com o intuito de juntar dinheiro para oferecer a esta senhora em troca da liberdade das mesmas. Assim que conseguiu o valor estipulado por dona Joana comprou sua filha, para então, como proprietário da mesma, conceder-lhe a tão esperada liberdade. Devemos fazer alguns apontamentos: Primeiro, diz respeito ao fato de dona Joana ter concordado em se desfazer de sua propriedade pela venda, pois se ela firmasse que não venderia sua escrava para Joaquim, este não poderia fazer absolutamente nada. Segundo, diz respeito à própria relação em si. Parece-nos que houve um acordo entre 2 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 161v. Revista História - 100 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Joaquim e Joana, que concordou em vender Claudiana por uma quantia por ela estipulada (que não sabemos, por não ser divulgado na carta de alforria). Muito interessante também foi como o processo transcorreu. Joaquim poderia ter pagado a quantia estipulada por Joana, e esta mesma conceder a Claudiana uma carta de alforria, que classificaríamos como onerosa. Contudo, não foi o que aconteceu. O pai precisou comprar a filha, para então lhe conceder sua libertação. Por isso que falamos que esta é uma carta classificada como gratuita, mas que de fato não foi. Ela foi comprada por Joaquim, o pai de Claudiana. Possivelmente após a liberdade da filha, Joaquim começou a trabalhar para comprar sua mulher. Contudo, não sabemos se ele conseguiu. Muitos senhores alforriavam seus escravos, como um reconhecimento pelos bons serviços prestados. Como em toda alforria, este tipo de libertação era fruto de um acordo feito entre senhores e escravos, onde o escravo deveria ser obediente, fiel, companheiro de seu senhor, que para recompensá-lo conferia-lhe a carta de alforria. Quanto mais um escravo caísse “nas graças” de seu dono, maior era a probabilidade deste facilitar a sua libertação, podendo até mesmo concedê-la de forma gratuita. Lembramos que esta “submissão” exigida dos escravos para que fossem alforriados pode ser interpretada como sendo uma tática adotada por estes, e que fez parte das negociações em torno da seos bens [...] me disse que mandara comprar em Benguela huma escrava chamada Ana á qual pelos bons serviços que lhe tem feito quer conferir, como de fato confere, pura e irrevogável liberdade, desde já possa se tratar como livre que fica sendo, e conduzi-se por onde e como lhe convier por bem desta carta que lhe passa gratuitamente. Manoel José dos Santos dá liberdade a sua escrava Ana de Gentio da Guiné em 16 de junho de 1809.2 liberdade. Vejamos agora algumas cartas de alforria, cujos senhores justificaram a libertação dos seus escravos de forma gratuita pelos bons serviços prestados. Escritura de liberdade gratuita que dá Francisco de Souza a sua escrava Marta parda. Em meu Cartório apareceu prezente, Francisco de Souza morador na paragem chamada Baldeador, Freguesia de São Gonçalo, onde vive de lavouras [...] me dice que dá pura e irrevogável liberdade a sua escrava Marta parda gratuitamente por quer beneficiar em razão de ser sua cria e dos bons serviços que lhe tem prestado. Francisco de Souza dá liberdade a sua escrava Marta parda em 11 de maio de 1808.1 (grifos nossos) (grifos nossos) Escritura de liberdade que dá o Capitão João José Coelho a sua escrava Catharina Angola. Em meu Cartório apareceu prezente, o Capitão João José Coelho morador na rua chamada da Quitanda, e negociante nesta Cidade [...] me disse que era senhor e possuidor de uma escrava de nação Angola chamada Catharina que comprara ainda nova, e que em razão dos bons serviços que a mesma lhe tem prestado e querela [querer-lhe] ele outorgante beneficiar, Escritura de liberdade que dá Manoel José dos Santos a sua escrava Ana de Gentio da Guiné. Em meu Cartório apareceu prezente, Manoel José dos Santos morador no morro da Conceição no lugar chamado Mato Groço, e vive de 1 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 80/80v. 2 AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 201, folha 76v. Revista História - 101 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. lhe confere pura e irrevogável liberdade. Capitão João José Coelho dá liberdade a sua escrava Catharina Angola em 24 de maio de 1808.1 (grifos nossos) Nessas três cartas de alforria, vemos que os senhores alegaram estar libertando as suas escravas pelo mesmo motivo: “em razão dos bons serviços prestados”. Na primeira carta, além dos bons serviços o senhor também alegou “amor de criação” pela escrava, o que nos leva a pensar que esta cativa era relativamente jovem ou adulta. Estamos dizendo isso, porque nas duas outras alforrias o registro foi bastante econômico em informações, mas como se tratam de alforrias gratuitas, temos que nos perguntar suas motivações. Se estas escravas, libertas gratuitamente, fossem relativamente jovens, suas alforrias realmente poderiam ser consideradas um gesto de “gratidão” desses senhores que quiseram recompensá-las pela fidelidade com que os serviram por anos. Contudo, se essas escravas já forem idosas ou talvez portadoras de alguma doença que pudessem prejudicar os seus serviços, esse quadro seria bem diferente. Esses senhores ao invés de “bondosos e caridosos” estariam sendo “insensíveis” e até mesmo “cruéis” com suas escravas, que não prestando mais 1 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 199, folha 94. para o trabalho estariam sendo colocadas de lado. Neste caso, o sentido da alforria dessas escravas estaria totalmente deturpado, pois ao invés de desfrutarem suas liberdades estariam elas numa situação de desamparo. Lembremos que embora o escravo fosse considerado uma “coisa”, uma mercadoria na qual o senhor podia alugar, hipotecar, vender, alienar,... este mesmo senhor tinha uma responsabilidade moral, social e, porque não dizer, legal de zelar por seu escravo, alimentando-o, vestindo-o e cuidando dele caso adoecesse. Quando os senhores concediam cartas de alforria a escravos idosos e doentes estavam simplesmente se eximindo da responsabilidade, se livrando de um “peso morto”. Ao que nos parece, mesmo que esses senhores tivessem essa intenção “nada nobre” ao libertar seus escravos, essa intencionalidade não costumava estar explícita nas cartas, pois não foi encontrada por nós nenhuma carta gratuita, onde fosse evidenciado o fato do escravo estar idoso ou doente. Vale a pena fazermos uma referência a obra de Kátia Matoso, onde a autora citou uma alforria concedida “gratuitamente” por uma senhora “insensível e cruel”, que não teve o menor constrangimento em dizer o porquê estava alforriando seu escravo. ... Maria Madalena Álvares de Jesus, que, em agosto de 1805, liberta gratuitamente o pobre negro Antonio Villela, velho de mais de 70 anos, ao qual se refere, com uma crueldade sem rebuços, como “cheio de doenças e por isso quem o veja não dará por ele um tostão”.2 (grifos nossos) Sabemos que não devemos fazer julgamento sobre o passado, pois definitivamente esta não é a tarefa do historiador. Contudo, não dá para classificarmos todas as cartas de alforria – no caso gratuitas – como se estas tivessem sido concedidas da mesma forma por todos os senhores, ou tivessem a mesma intencionalidade. Uma alforria concedida gratuitamente a um escravo jovem, que tem todas as condições de refazer sua vida como pessoa livre não pode ser colocada como sendo igual a uma carta como esta que acabamos de ver. Por isso, nos utilizamos de algumas qualificações, como por exemplo: senhores insensíveis e cruéis, ou caridosos e bondosos. A intenção não é julgar, mas apresentar as diferentes intencionalidades deste instrumento de poder. Transcreveremos a seguir mais uma carta gratuita selecionada. Escritura de liberdade que dá o Coronel Manoel Alvarez da Fonseca Costa como Síndico dos Religiosos 2 MATTOSO, Kátia. Op. cit., p. 196. Revista História - 102 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Capuchinhos a João escravo do mesmo Hospício. Em meu Cartório apareceu prezente, o Coronel Manoel Alvarez da Fonseca Costa, [...] que me dice que tendo em consideração o Reverendo Frei Luiz de Balistrino, prefeito do Hospício dos Religiosos Capuchinhos, a boa conduta, zelo e fidelidade com que sempre serviram no mesmo Hospício o escravo João do Rozário, e tendo-lhe este pedido a sua liberdade consultara com ele outorgante a este respeito, acertando de comum acordo de lha conferirem; e que por esta razão, ele como síndico dos sobreditos Religiosos confere pura e irrevogável liberdade gratuita ao mencionado escravo do dito Hospício chamado João do Rozário para que desde já se possa tratar como livre que fica sendo. Coronel Manoel Alvarez da Fonseca Costa dá liberdade ao escravo João do Rozário em 04 de setembro de 1807.1 (grifos nossos) Nesta alforria o escravo conseguiu sua liberdade gratuitamente, por ter desempenhado bem 1 AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 76/76v. o seu serviço no hospício dos religiosos capuchinhos. Parece-nos que este escravo pertencia à ordem religiosa, e por isso, o frei Luis, mesmo na condição de prefeito do dito hospício, não tinha autonomia para libertar o escravo João. Para tal, teve que consultar o síndico dos religiosos, o coronel Manoel Álvares, que deveria ser uma espécie de administrador dos bens da ordem. Manifestando seu desejo de ver seu bom escravo livre, o coronel não tardou para organizar os tramites para a alforria de João. Encerrando a análise sobre as alforrias gratuitas, seguem dois documentos que datam de 1834 e 1835, respectivamente. Escriptura de liberdade gratuita que dá Joaquim José da Rocha a seu escravo José de nasção Benguella. Em meu Cartório apareceu perante mim, Joaquim José da Rocha [...] e me foi dito que he senhor e possuidor de um escravo de nome José de nasção Benguella, ao qual pelos bons serviços que lhe tem feito disse elle outorgante que por este instrumento na melhor forma e via de Direito lhe dá pura e irrevogável liberdade gratuita, para que como se de ventre livre houvesse nascido se possa conduzir para onde bem lhe parecer. Joaquim José da Rocha dá liberdade ao escravo José de nasção Benguella, em 14 de novembro de 1834.2 (grifos nossos) Neste documento, assim como nas demais cartas de alforria gratuita, percebemos que o senhor faz questão de exaltar seu gesto de generosidade ao conceder a liberdade a seu escravo. Afirmou que estava alforriando José por causa dos bons serviços que este havia lhe prestado, e percebemos com certa clareza que esta alforria só ocorreu por que o escravo foi merecedor dela, na percepção de seu senhor. Poderíamos nesse momento aprofundar um pouco mais a nossa análise. Existiu uma estratégia senhorial em deixar claro para os cativos que o ato de alforriar dependia exclusivamente de sua vontade, logo o escravo que quisesse sonhar em ser liberto, deveria agradar em tudo ao seu proprietário. Ao que nos parece o escravo José foi bem sucedido nesta tarefa, pois conquistou sua liberdade. A “auto-exaltação”, também pode ser considerada uma estratégia senhorial, pois ao deixar claro para o escravo que o alforria porque quer, quando quer e, de forma gratuita, isso levava o cativo a ter um sentimento de agradecimento para com o seu antigo senhor, não cortando os laços com ele após sua libertação. É a chamada produção de dependentes, estratégia 2 AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 171, folha 21v/22. Revista História - 103 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. largamente utilizada pelos senhores ao concederem a alforria a seus escravos, transformando-os em agregados e clientes. Olhando esta carta só pelo ponto de vista da estratégia senhorial, causa-nos a impressão de que o escravo era um ser totalmente passivo nesta história. Contudo, podemos perceber que os escravos se utilizaram de táticas, pois mesmo conseguindo suas liberdades gratuitamente, as conquistaram de seus senhores. Logo, mesmo através da submissão, da fidelidade, da obediência desses cativos percebemos nestes gestos, táticas utilizadas por estes na conquista de suas libertações, já que souberam “arrancar” de seus proprietários suas alforrias. Escriptura de liberdade gratuita que dá José Miguel de Banon a Rita de nação Moçambique. Em meu Cartório apareceu perante mim, José Miguel de Banon [...] e me foi dito que falecendo sua May [mãe] Dona Florinda Maria da Conceição [...] dos escravos que possui há huma por nome Rita de nação Moçambique, ao qual pelos bons serviços a que prestou a sua May, elle outorgante por este instrumento lhe dá liberdade gratuita, para que como se de ventre livre houvesse nascido se possa conduzir para onde bem lhe parecer. José Miguel de Banon dá liberdade a Rita de nação Moçambique, em 23 de abril de 1835.1 (grifos nossos) Darrigue, que vive solteira, moradora no Beco chamado de João Baptista, [...] me dice que em razão dos bons serviços que havia prestado sua escrava Bárbara crioula, que fora sua cria, e pela fidelidade que sempre lhe guardou era contente de lhe dar, como lhe dá, pura e irrevogável liberdade desde já; e que em contemplação a mesma escrava, também confere a mesma liberdade ao marido desta chamado João, também crioulo, que houve por título de compra; e igualmente a sua filha por nome Modesta, os quaes todos poderão desde já tratar-se como livre que ficão sendo para se poderem conduzir como e por onde lhe convier por bem desta liberdade que lhes confere de livre vontade gratuitamente, na esperança de que a acompanharão pelo tempo de sua vida com o mesmo amor que até aqui tem mostrado. Dona Francisca Romana Darrigue dá liberdade a seus escravos Bárbara, João e Modesta crioulos, em 03 de agosto de 1807.2 (grifos nossos) Neste documento podemos inferir que a tática de Rita para conseguir conquistar sua carta de alforria foi ser fiel e obediente a sua senhora até a sua morte. Seu filho, José Miguel, num gesto de gratidão (talvez até atendendo um último pedido de sua mãe) decidiu libertar Rita, concedendo-lhe alforria gratuita. Para encerrarmos este artigo, gostaríamos de comentar um último documento, que é uma carta que chamou muito a nossa atenção. Em diversas pesquisas, analisamos vários tipos de manumissões – gratuitas, onerosas, testamentárias e condicionais – e tivemos a oportunidade de perceber semelhanças e diferenças deste instrumento de libertação. Contudo, este documento possui uma incrível peculiaridade. Esta carta de alforria é, sem dúvida, atípica. Escritura de liberdade que dá Francisca Romana Darrigue a seus escravos Bárbara, João e Modesta crioulos. Em meu Cartório apareceu prezente, dona Francisca Romana 2 1 AN, 3o Ofício de Notas, Livro no 171, folha 157/157v. AN, 1o Ofício de Notas, Livro no 198, folha 42v/43. Revista História - 104 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Temos diante de nós uma alforria gratuita e coletiva pelo fato desta carta ser o registro de liberdade de uma família. Contudo, mais do que em qualquer outra carta analisada, esta alforria nos tocou por sua sensibilidade. Parece-nos que dona Francisca já era uma senhora, uma vez que Bárbara, que fora sua cria, já estava com uma família constituída. O mais comum que temos observado em nossas análises, era que nesses casos, por mais que existisse um sentimento que envolvesse senhores e escravos, os senhores (mais as senhoras) como uma forma de ser protegerem da solidão e do desamparo, procuravam dar liberdade condicional para seus escravos preferidos, com o intuito de não ficarem desamparados em sua velhice, e, ao mesmo tempo, “proteger” o escravo do cativeiro após a sua morte. Dona Francisca não agiu dessa maneira. Na contra-mão da lógica escravista, concedeu “pura e irrevogável liberdade gratuitamente” a sua cria, Bárbara, e, “em contemplação a mesma escrava” também concedeu liberdade a seu marido e filha; afirmando que fazia isso “contente”, e que eles na qualidade de livres poderiam conduzir-se por onde lhes conviesse. Tais palavras caracterizam a liberdade gratuita, onde nada foi cobrado pela manumissão e, nem tampouco, foi imposto alguma condição para tal. Esta alforria nos chamou a atenção, pois o comum seria que dona Francisca concedesse liberdade condicional a seus três escravos, liberdade esta que só seria plena após a sua morte. Contrariando essa lógica, optou por conceder liberdade plena à família, afirmando ter “esperança de que a acompanharão pelo tempo de sua vida com o mesmo amor que até aqui tem mostrado”. Não temos como adentrar na mentalidade nem na intencionalidade desta senhora. Contudo, comparando esta alforria com as demais, não podemos negar que esta carta representou um gesto de confiança desta senhora em seus escravos. Fontes Impressas CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO de 1824, Título 8o, artigo 179, parágrafo XXII. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro. Volume I. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras visões do Rio de Janeiro Colonial: Antologia de Textos (1582-1808). Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. Referências Bibliográficas CALÓGERAS, Pandiá J. 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Em função dessa situação, essa comunidade encontra-se em estado de exceção, a partir do qual se auto-organiza, com o apoio dos próprios criminosos, para tentar manter a ordem. Revista História - 106 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. PALAVRAS-CHAVE: Favela, estigmatização, autoorganização. autor percebe a relação entre o Estado e os segmentos excluídos. ABSTRACT Para explicar a ligação do poder do Estado sobre o homem em sua vida comum, Agamben utiliza vários conceitos, pois acredita que existe em determinadas situações, ambigüidades nessa relação. Aqui, apresentaremos os conceitos de bando/abandono e homo sacer, segundo os quais o indivíduo possui sua inclusão no Estado através da exclusão a qual é submetido e, em função de sua situação indiscernível, se encontra em estado de exceção. The philosopher’s Giorgio Agamben concepts, homo to sacer, abandonment and exception state are used in this paper to analyze a brazilian slum in which the community is in an abandonment state through the State view, so the citizens there are becoming stigmatized as criminal by the Police institution. In this situation then, this community is in an exception state, in an self-organization mode, with the support of the local criminals, trying, this way, to keep the order. KEYWORDS: slum, stigmatization, self-organization. *** INTRODUÇÃO O presente texto traz a reflexão em torno da exclusão de determinados segmentos sociais pelo Estado, demonstrando como esses grupos são estigmatizados pelas instituições. São fundamentais em nossa discussão os conceitos do filósofo do direito, o italiano Giorgio Agamben, os quais serão apresentados no texto. Para tal discussão nos propomos, primeiramente, a demonstrar como o Segundo o autor, em italiano o termo abandono pode significar “a mercê de...” ou “a seu talante livremente” e bandido pode ser entendido como “excluído, banido” ou “aberto a todos, livre”. Nota-se que ambos podem representar-se com significados opostos. Diante dessa ambigüidade, os conceitos se aplicam para aqueles que não pertencem a lugar algum, estando livres, como também, para aqueles que foram abandonados, banidos ou excluídos (AGAMBEN, 2002, p. 117). Sua intenção, porém, é abordar uma situação onde não se consegue determinar em qual das condições o indivíduo se encontra, sendo entendida como uma zona de indeterminação. Para explicar a idéia, o autor faz a seguinte colocação: “A relação de abandono é, de fato, tão ambígua, que nada é mais difícil do que desligar-se dela. O bando é essencialmente o poder de remeter algo para si mesmo, ou seja, o poder de manter-se em relação com um irrelato pressuposto. O que foi posto pelo bando é remetido à própria separação e, juntamente, entregues a mercê de quem o abandona ao mesmo tempo excluso e incluso, dispensado e simultaneamente capturado” (AGAMBEN, 2002, P. 116). A idéia exposta é que para ser abandonado é necessário, primeiramente, pertencer a algum lugar. Esse lugar é o bando, seu lugar de origem. Deste modo, o abandonado sempre estará ligado ao bando pela sua exclusão, pois, apesar de ter sido posto “fora” de seu bando, sempre vai pertencer ao mesmo, estando a “mercê de quem o abandonou” ou excluiu, porque aquele, por sua vez, também não pode abrir mão da relação que tem sobre quem baniu. Assim, o abandonado jamais será livre e ao mesmo tempo não pertencerá a lugar nenhum, estando em uma condição de indeterminação quanto a sua relação ao seu bando, a sua origem. Revista História - 107 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Diante dessa confusa relação, o abandonado se inclui ao bando através de sua própria exclusão, pois não basta abandonar, já que o abandonado continuará a existir. O bando, portanto, se manterá ligado pela exclusão que o expôs e, por isso, o inclui, o “dispensa e simultaneamente captura”. A liberdade, portanto, apesar de ser inerente a condição de não pertencimento, jamais será plena, pois sua exclusão não a permite. Mas por que foi abandonado? Se este fazia parte de uma sociedade, de um bando, qual o motivos que levou a seu exílio? A resposta está em seu valor na sociedade. Não se abandona aqueles que são importantes e valorosos para o grupo, mas, pelo contrário, os que não possuem valor algum, o homo sacer (AGAMBEN, 2002, p. 81). Este termo era utilizado na antiguidade para definir pessoas postas fora da condição humana, como se o indivíduo não existisse. Agamben explica que se um indivíduo nessa condição fosse morto, não haveria punição para o assassino, na verdade, não se poderia se quer classificar aquele que matou como assassino (AGAMBEN, 2002, p. 90). Trata-se da posição mais baixa a que podemos classificar um indivíduo em relação à sociedade ou seu bando, pois ele é o matável, insacrificável no sentido de não ter valor para um sacrifício (AGAMBEN, 2002, p. 90). Ou seja, ele não poderia ser oferecido como sacrifício, porque não é sacrifício tirá-lo do convívio. Assim como o abandonado, o homo sacer também tem sua ligação com a sociedade através de sua exclusão, onde a mesma exclusão que o inferioriza também o incluí. Ambos podem ser, portanto, o mesmo indivíduo incluído pela exclusão, exilado, mas capturado ao mesmo tempo. Para entender melhor os conceitos, é necessário que façamos a relação do bando com o Estado e o homo sacer abandonado, com os segmentos sociais que se encontram a margem da sociedade (AGAMBEN, 2002, p. 112). Percebe-se que esses dois conceitos se explicam e se completam. No entanto, temos uma última relação a esclarecer, quanto à condição de indeterminação que ambos se encontram, tanto sendo entendidos como o mesmo indivíduo como os aplicando separadamente. Tal situação explica-se pelo estado de exceção (AGAMBEN, 2004), outro conceito fundamental, pois se aplica as indeterminações jurídicas. Entendemos que condicionar certos grupos na perspectiva desses conceitos é como afirmar que a cidadania não é aplicada a todos. Assim, a partir do momento que indivíduos são excluídos, a idéia de cidadania como pressuposto de igualdade é anulada. Nessa percepção, colocamos homo sacers e abandonados como cidadãos com o direito a igualdade suspensos, não por determinação jurídica, mas pela impossibilidade do Estado e suas instituições fazê-lo cumprir. Sobre a aplicação jurídica do estado de exceção, Agamben coloca: “A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua realidade, à possibilidade mesma de aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchido pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspendida, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor” (AGAMBEN, 2002, p. 4849). As leis e/ou direitos, como explicado, não deixam de existir, mas em função da deficiência em fazer-se aplicar, elas são suspensas ou ignoradas, como veremos posteriormente nos exemplos. Para explicar a aplicação dos conceitos, o autor cita a situação dos judeus durante o Holocausto (AGAMBEN, 2002, 2004). Sendo posto fora da condição humana em função da indiferença com sua vida, eram homo sacers. Além disso, o local para onde eram enviados representa a inexistência dos direitos Revista História - 108 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. humanos, pois toda atrocidade contra a vida foi cometida neles. Deste modo, tanto o judeu como o campo de concentração eram “estados de exceção”, porque ambos representaram uma suspensão de direitos (AGAMBEN, 2002, p. 173). O campo de refugiados também é um estado de exceção, podendo ser identificado à presença de homo sacers e abandonados, pois anulam o conceito de cidadania e nação. Um último exemplo do autor são as cobaias humanas para experimentos científicos, presentes nos campos do Reich, mas que já existia nas prisões dos Estados Unidos, com prisioneiros condenados a morte (AGAMBEN, 2002, p. 162-163). Todas essas situações são exemplos para a aplicação dos conceitos pelo abandono estatal, indiferença humana e direitos jurídicos suspensos ou ignorados. Apesar de exporem a realidade em que os conceitos são encontrados, esses exemplos, nos dão a sensação de que, não são situações comuns e próximas, por isso a partir de agora traremos dois exemplos da existência dessas condições demonstrando que, esses conceitos são sim aplicados em qualquer situação de exclusão ou desigualdade. ESTIGMATIZADOS Então, quem são esses excluídos na nossa atualidade? Segundo Agamben, eles se encontram em uma situação de não pertencimento, matáveis, sem valor para a sociedade, um estado de exceção que encontra espaços nas lacunas e fraturas do direito. Se pensarmos esses conceitos baseando-se no que o direito apresenta-se, veremos apenas contrariedades. Mas se o inserimos na ação diária das instituições, percebemos a aplicabilidade da idéia. Em resumo, sabemos que a sociedade nunca foi homogenia, pelo contrário, são minorias que se encontram no controle, de forma direta, nas decisões políticas, jurídicas, econômicas, etc, enquanto que outra muito maior é excluída ou, como Agamben coloca, é incluída através da exclusão. Sabemos que a desigualdade social sempre esteve presente nas sociedades e que o Brasil possui altos índices, não sendo nossa intenção discutir-las no plano econômico, mas sim aquela imposta a determinados grupos em certas situações, por instituições. Para isso, trazemos discussões de autores sobre as instituições jurídicas e de controle social que estigmatizam determinados grupos na busca do controle da criminalidade. Michel Misse coloca que desigualdade proporciona mais desigualdades, mas, que por outro lado, apenas a desigualdade social não explica a priorização de determinados segmentos na busca dos responsáveis pela criminalidade (MISSIE,1997, p. 1718). Para Alessandro Baratta, desigualdade no sistema penal não se refere à distribuição dos bens, mas às respostas desiguais que o sistema aplica as situações negativas e a problemas sociais homólogos (BARATA, 2006, p. 105). Ou seja, os autores concordam que existe, por parte de instituições, a priorização ou estigmatização de determinados grupos, não importando se o crime deste é o mesmo cometido por um indivíduo de outro grupo, a aplicação da pena é diferenciada. O sistema penal, segundo Baratta (2006), já tem definido os grupos e perfis dos delinqüentes, os quais se encontram no proletariado urbano. Nessa perspectiva, esse tipo de pré-julgamento só desvia a possibilidade de identificação de outros comportamentos socialmente negativos. Para o autor, o sistema penal parte da idéia de que a tendência à “desviação” criminológica é uma característica natural, quando deveria também se levar em conta os aspectos culturais das respectivas sociedades. Tanto Baratta como Misse acreditam, assim, que o sistema penal deve ampliar seus métodos através de reformas, para alcançar uma relativa igualdade nas decisões jurídicas. Vale destacar que, essa perspectiva estendese às instituições que contribuem para o sistema penal, como o direito e a polícia. Podemos concluir, diante dessas colocações, que provem do próprio sistema penal a estigmatização dos criminosos e a própria definição do que é o crime, e a partir de uma criminologia tradicional se define os grupos considerados de risco (BARATA, 2006, p. 93). Este, então, deve ser Revista História - 109 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. percebido como um exemplo da classificação de cidadãos de segunda classe pela própria instituição, os quais se encontram no proletariado urbano. Os métodos tradicionais da instituição, segundo o autor, são os responsáveis pela distinção aplicada à sociedade. Podemos entender, portanto, que apesar de teoricamente o Estado afirmar que todos devem ser tratados igualmente, o mesmo não possibilita as reformas necessárias às instituições para o alcance desse objetivo. Porém, não questionamos as mudanças e imposições necessárias que devem ser feitas nos sistemas e/ou instituições. Nem tampouco queremos condenar policiais como responsáveis pelas falhas. Nossa intenção é demonstrar a dificuldade que o sistema jurídico encontra para aplicar o conceito de cidadania e igualdade proposta. Entendemos através dos conceitos de Agamben a origem dessas distinções. A estigmatização apresentada aqui deve ser percebida da mesma forma que a relação colocada anteriormente. Assim, a inclusão desses estigmatizados é feita através da exclusão a qual estão submetidos. Esses segmentos, apesar de serem abandonados pelos direitos que o próprio Estado lhe propõe, continuam ligados ao bando, através de sua responsabilização pelo crime. Sem respeitar suas singularidades e relações culturais, o sistema penal não considera sua posição na sociedade, ou considera e por isso os excluem. Isto porque, como coloca Agamben (2002, p. 186), “onde existe vida nua um Povo deverá existir”, “onde existe um Povo, lá uma vida nua existirá” 1. Deste modo, podemos classificar os estigmatizados das instituições jurídicas, citados por Alessandro Baratta e Michel Misse como homo sacers, cidadãos que, não tem valor algum e que podem ser responsabilizados sem a devida valorização pelos seus direitos à igualdade. Como também, são abandonados, porque no momento que foram classificados como responsáveis pelo crime, o Estado permitiu as condições para que seus direitos fossem ainda mais desrespeitados, como será demonstrado no próximo exemplo. UMA COMUNIDADE “BANDIDA” É comum afirmar-se que “as favelas são sinônimo de violência e abandono social”. No entanto, pretendemos demonstrar, a partir de uma pesquisa, que a situação dessas comunidades é bem mais complexa. Entendemos que esta situação tornou-se crítica pelo desrespeito a cidadania de seus moradores. Isto porque, a indiferença com os direitos que lhes foram “garantidos” pelo Estado, suspendeu a possibilidade de ter uma segurança priorizada como Para entender o sentido da frase é necessário fazer a relação de “povo”, com políticos, ou grupos que economicamente tem influência na sociedade. Em quanto que, “vida nua” é a expressão da vida de um homem comum, as margens da vida política. Uma introdução em torno da “vida nua”, pode ser encontrada nas p.15-16. 1 em outras regiões. Sobre a segurança nas favelas e a relação com os policiais, Robert Shirley faz a seguinte reflexão: “As organizações policiais não protegem os cidadãos da classe média e abandonam os moradores pobres das favelas. A polícia trata a Vila como território hostil o que de certa forma é real e cujo resultado é um estado de guerra quase declarada entre policiais e moradores ... Por não conhecer bem essa população a polícia termina por tratar todos como inimigos, em especial os jovens, negros e pobres...” (SHIRLEY, 1997, p. 218) Essa é comumente a realidade dos moradores dessas comunidades. Chama atenção que o autor ao se referir à “classe média” qualifica-os como cidadãos, enquanto que os “moradores pobres das favelas” são abandonados. Como já demonstramos, os abandonados para Agamben podem ser classificados como exilados, banidos ou bandidos, que, por sua vez, classificam-se como homo sacers, mantendo uma relação de inclusão/exclusiva com seu bando/Estado. Revista História - 110 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Shirley afirma que a polícia, por inúmeros fatores, acaba tratando todos os moradores como inimigos, Nesse sentido, veremos que a exposição da comunidade a essa relação com a instituição é visível quando assume a posição em que são colocados. Para melhor compreensão desse contexto, apresentaremos, a partir de agora, uma pesquisa realizada entre 1985 e 1988, por antropólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na comunidade do Morro da Cruz, periferia de Porto Alegre. Essa comunidade teve origem na década de cinqüenta, quando o governo estadual transferiu várias famílias pobres, a maioria negra, do centro para a periferia, sem estrutura nem apoio social, que levou anos para chegar. Sobre a comunidade, é interessante colocar que: “... população de 35 a 40.000 habitantes. Por quase duas décadas, a vila foi dominada pela gangue mais poderosa da cidade (tráfico de drogas), (...) a comunidade também era ilegal pois tinha sido construída a partir de uma invasão de terras e porque estava legalmente separada da sociedade urbana que a cercava. O mito em Porto Alegre, ... , é de que lá no Morro existe uma guerra Hobbesiana de todos contra todos, provocada pela atomização e apatia fruto da pobreza. Apesar disso, entretanto, o Morro é considerado a comunidade mais organizada da cidade ...” (SHIRLEY, 1997. p. 216). Durante o período na favela, os pesquisadores perceberam que tanto a gangue como a comunidade procuravam evitar a vinda da instituição policial para o morro, tentando, para isso, resolver os problemas existentes em conjunto. Mas os eleitos como responsáveis pela comunidade há vários anos eram líderes da gangue. Isso ocasionou uma baixa criminalidade dentro da localidade e uma sensação de segurança entre os moradores, mesmo tendo de conviver com grupos armados presentes por toda parte. Em contra partida, notou-se que o que deixava os moradores incomodados era a presença dos policiais na região. Apesar do clima de violência provocado pelas armas, a comunidade afirmava se sentir mais segura vivendo entre os traficantes do que na cidade, na qual o controle era realizado pela própria polícia. Portanto, mais que ausentes, os policiais eram indesejados por todos nessa comunidade. Essa condição chamou a atenção dos antropólogos que não entendiam o motivo de tamanha contrariedade. A explicação para esse fenômeno, entre outros motivos, estava nos procedimentos policiais no Morro. Os integrantes da gangue não exerciam uma coerção violenta sobre a comunidade, sendo alguns líderes reconhecidos como verdadeiros heróis, ao contrário dos policiais que, por não identificarem entre os moradores os verdadeiros criminosos, tratavam todos com violência, causando, com isso, muito mais transtornos e perdas para a comunidade. A condição do Morro, portanto, foi uma resposta à ausência da instituição no local. Shirley afirma que, nos três anos da pesquisa, a polícia entrou formalmente na comunidade apenas uma vez e teve uma atuação frustrada (SHIRLEY, 1997, p. 218). Ou seja, pela falta de segurança oferecida pelo Estado, os integrantes da comunidade se organizaram com o que tinham, compilando no bem geral da comunidade e dos criminosos. Essa situação é um exemplo da ausência dos direitos propostos, onde a comunidade, como qualquer outra região, deveria ter recebido o apoio e presença policial, desde a transferência das primeiras famílias para o Morro, o que não ocorreu. A favela também não foi desvinculada do município, apesar de seu abandono quanto às suas necessidades sociais. Pela falta da assistência, os moradores foram obrigados a se organizar, elegendo os traficantes que, por sua vez, realizavam o trabalho do aparato policial. Com isso, nota-se uma transferência da relação que a comunidade deveria ter com a polícia para com os traficantes. Além disso, Revista História - 111 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. como citado por Shirley, não havia distinção para a polícia entre moradores e traficantes, todos eram inimigos. Isso obrigou os moradores a assumir a posição que lhe era mais favorável. Porém, apesar da comunidade fazer o possível para as blitz não entrarem na favela, não era vedada a polícia tal possibilidade. Notamos aqui a aplicação dos conceitos de bando/abandono, já que o Estado e a instituição policial, apesar de terem abandonado aquelas pessoas, demonstraram que as mesmas ainda estavam sobre sua tutela, existindo um atrelamento dos abandonados em relação a aquele que os abandonaram. Além desse abandono evidente por parte das autoridades, podemos entender que o motivo da transferência das famílias para o morro estava na condição social do grupo. O autor coloca que tratavase de “várias famílias pobres com maioria negra”, ou seja, tratava-se de um grupo bem definido. Diante dessa característica são homo sacers que, por não terem valor algum, podiam ser colocados em qualquer lugar, sem a mínima estrutura. Notamos também que a relação policia/moradores não era comum, uma vez que os moradores se identificaram com os traficantes. O motivo dessa situação está na forma de tratamento policial. Fica clara nessa relação, a estigmatização da instituição sobre o local e com agravante de determinados grupos, como visto na citação acima, “em especial jovens, negros e pobres”. Diante desse exemplo, se no item anterior confirmamos a existência de uma classificação dos grupos considerados criminosos, aqui, percebemos sua aplicação e resultados. Foi a estigmatização sofrida pelos moradores que os impulsionou a assumirem de vez a condição de bandidos diante das batidas policiais, defendendo aqueles que, para eles, eram os verdadeiros “heróis” (SHIRLEY, 1997. p. 219). Assim, entendemos os motivos das criticas realizadas por Alessandro Baratta e Michel Misse quanto à necessidade de reformas nos métodos criminológicos e penais. Pois, ao classificar superficialmente segmentos como responsáveis pela criminalidade, trazem mais problemas à sociedade do que resultados. É diante de todas essas exceções da favela do Morro da Cruz que podemos também aplicar o conceitos de estado de exceção, porque fica claro que as condições jurídicas daqueles moradores não são diferentes das de qualquer outra região, cidade, ou estado no Brasil, mas, não são aplicadas em diversos setores da comunidade. CONSIDERAÇÔES FINAIS Problemas são inerentes à nossa realidade, como eram nas mais antigas civilizações. A origem dos conceitos utilizados por Giorgio Agamben é situada numa realidade muito diferente da nossa. No entanto, é lastimável que, ainda hoje, consigamos fazer comparações da desigualdade da antiguidade com a nossa atualidade. Mas são percepções como essas que nos possibilitam condições para compreendermos e resolvermos os problemas existentes. A obra de Agamben, nessa perspectiva, nos deu condições de trabalharmos a existência das distinções sociais, camufladas pela direito à cidadania. Além disso, apesar de privilegiar situações fora da vida cotidiana o autor aponta as origens dessas relações desiguais e demonstra em suas considerações como não encontraremos as soluções para essas distinções. E, enquanto não surgir uma política que realmente resolva os problemas fundamentais da sociedade, não haverá realmente espaço para o fim dessas relações milenares, que no “povo” a exclusão/inclusiva eminente: “...O povo carrega, assim desde sempre, em si, a fratura biopolítica fundamental. Ele é aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte, e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído. Daí as contradições e as aporias às quais ele dá lugar toda vez que é evocado e posto em jogo na cena política. Ele é aquilo Revista História - 112 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. que já é desde sempre, e que deve todavia, realizar-se, é a fonte para toda identidade, e deve, porém, continuamente redefinirse e purificar-se através da exclusão, da língua, do sangue, do território...” (AGAMBEN, 2002, p. 183-184). REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer e o poder soberano e a vida nua I. – Belo Horizonte: UFMG, 2002. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. – São Paulo: Boitempo, 2004. BARATTA, Alessandro. Criminologia y ciências penales. In Criminologia y sistema penal. IBdeF. 2006. BRESCIANE, Maria Estélla M. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 2008 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento das prisões. Petrópolis, Vozes, 1987. RUSCHE, Georg e KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Revan. 2004 MISSE, Michel. Cidadania e criminalização no Brasil: o problema da contabilidade oficial do crime. IN: Misse, Michel (org.). O crime violento no Rio: o problema das fontes. Rio de Janeiro: IFCS. Série "Iniciação Científica", 1997, n.9. SHIRLEY, Robert W. Atitudes com relação a policia em uma favela do sul de Brasil. Tempo Social: revista sociológica. USP, São Paulo. 9(1): 215-231, maio de 1997. O ESCRITOR CIDADÃO CARNEIRO VILELA E A “LITERATURA COMO MISSÃO” Marcio Lucena Filho Especialista em literatura brasileira (FAFIRE) e Mestre em história (UFPE) RESUMO Este trabalho realiza algumas considerações críticas sobre o romance A Emparedada da rua Nova do escritor Joaquim Maria Carneiro Vilela (1846-1913). A pesquisa procurou reconstruir as lutas de um ativo intelectual que viveu as tensões e os dilemas da modernização do Brasil. Defendemos que o folhetim vileliano pode ser lido como um texto de intervenção no debate político da época. Por meio da Emparedada o escritor-cidadão Carneiro Vilela vocalizou algumas das suas insatisfações, criticando práticas, valores e Instituições (Igreja, Polícia, Justiça) do Brasil oitocentista. Palavras-chave: Literatura Brasileira. Joaquim Maria Carneiro Vilela. Geração de 1870. ABSTRACT This paper is a critical review of the “A Emparedada da Rua Nova” novel, by Joaquim Maria Carneiro Vilela (1846-1913). The research intended to rebuild the academic struggle of a man, considered at the time as an intellectual asset, which experienced the tensions and dilemmas of the industrializing process Revista História - 113 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. period in Brazil. In this work, we argue that the Vilela’s feuilletons can be read as part of the political debate of that time in Brazil. Through the “A Emparedada” the citizen-writer Carneiro Vilela expressed some of his dissatisfactions, criticizing political practices, social values, and institutions such as the Church, the Police and the Justice Courts in Brazil during the 18th Century. Key words: Brazilian literature. Joaquim Maria Carneiro Vilela. Generation of 1870 in Brazil. *** 1. Introdução Este trabalho realiza algumas considerações críticas sobre o romance A Emparedada da rua Nova do escritor Joaquim Maria Carneiro Vilela (18461913). Intelectual multifacetado, ele foi juiz, jornalista, poeta, romancista, dramaturgo, ilustrador, epigramista, pintor, cenógrafo e um dos fundadores da Academia Pernambucana de Letras. Carneiro Vilela viveu em um período de forte efervescência intelectual. Podemos considerá-lo como integrante da geração de 1870, grupo heterogêneo que produziu diversas críticas ao status quo Imperial. Os integrantes de tal geração foram intelectuais atuantes que pensaram o Brasil e propuseram mudanças nas instituições políticas, no sistema eleitoral, nas práticas educacionais e teceram críticas à forte ligação Estado-Igreja e à centralização política presentes na sociedade brasileira daquele período. Para Ângela Alonso, os textos publicados por estes intelectuais “podem ser interpretados como intervenção no debate político da época”1 . As suas “interpretações desembocam num diagnóstico da contemporaneidade como período de crise e na proposição de um programa de reformas” 2. Segundo esta autora a geração de 1870 produziu programas completos de reformas modernizadoras. A tese de Alonso nos inspirou a realizar uma leitura da Emparedada a partir dos seguintes pressupostos: 1) o romance de Carneiro Vilela pode ser lido como um texto de intervenção no debate político da época; 2) Vilela utilizou-se do seu folhetim mais famoso para vocalizar algumas das suas insatisfações com os rumos do Brasil oitocentista; 3) Ele enfeixou na sua literatura um conjunto de críticas aos valores, práticas e Instituições (Igreja, Polícia, Justiça) do Brasil oitocentista. Nicolau Sevcenko também nos ajudou a pensar e problematizar o romance vileliano. Para este autor, o texto literário fornece ao estudioso da ciência social “um ângulo estratégico notável, para a avaliação das forças e dos níveis de tensão existentes no seio de determinada estrutura social” 3. Para ele, ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento - a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra. 2002. p. 166 2 Idem. p. 178 3 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 28 1 “a literatura se presta como um índice admirável para o estudo da história social” 4. No seu livro, A literatura como missão, ele analisa a obra de dois grandes escritores brasileiros: Lima Barreto e Euclides da Cunha. Para Sevcenko estes intelectuais são “escritores-cidadãos”, que representam “uma minoria de consciência íntegra, animada pelo anseio de justiça e pela inteligência crítica, clamando corajosamente, embora em vão, por uma sociedade equilibrada” 5. A tese do escritor-cidadão defendida por Nicolau Sevcenko contribuiu para a construção de uma interpretação da Emparedada da rua Nova. Defendemos que Carneiro Vilela pode ser considerado um “escritor-cidadão”, que desejou transformar o Brasil e esteve engajado em causas sociais e políticas. Revisitar a sua literatura nos ajudou a entender um momento crucial da nossa história quando ocorreu um acelerado processo de transformação política, econômica, social, religiosa, cultural, mental. O escritor-cidadão Carneiro Vilela teve forte envolvimento com as questões do seu tempo, não ficou alheio à grande crise que marcou a entrada do Brasil na modernidade. A Emparedada guarda uma interpretação crítica acerca dos principais dilemas vivenciados pelo Brasil. Nela o autor desfere duros golpes aos modos de pensar e de agir da sociedade do 4 5 Idem. p. 31 Idem. p. 30 Revista História - 114 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Recife oitocentista. A literatura vileliana está imbuída de uma missão. Na ótica vileliana a contemporaneidade é um período de crise. Ele pensou a sociedade brasileira da época e inseriu na sua produção literária críticas a valores e práticas vigentes no Brasil do século XIX. 2. Carneiro Vilela: Argos do Recife oitocentista O romance A Emparedada da rua Nova, publicado em 1886, possui um enredo cativante e intrigante. Ao longo das suas 485 páginas o leitor é arrastado por uma história de sedução e crime. A trama, extremamente bem narrada, desenrola-se sobretudo pelas ruas do Recife, entre os anos de 1862 a 1864. O romance de Vilela possui todos os ingredientes de um bom enredo: exposição clara, complicação da trama de tirar o fôlego do leitor, clímax e um desfecho que no caso da Emparedada é extremamente trágico. A existência de um enredo tão bem tramado recheado de diversos conflitos acentua a tensão da trama, prendendo a atenção do leitor. A Emparedada é um romance in media res dividido em duas partes (I - “O cadáver Suaçuna” e II - “O segredo de família”) e um epílogo (“As vítimas de amor”). O livro apresenta 80 capítulos. Adultério, ciúme, vingança, ambição, chantagem, imoralidade, corrupção são ingredientes encontrados na trama. A história narrada foi relatada por uma escrava que trabalhou no sobrado da família Favais e presenciou os fatos aterradores que ocorreram na província de Pernambuco. A escrava é a fiadora verossimilhança, pois ela “viveu” os fatos que são contados em “segunda mão” pelo narrador. Este afirma a todo momento que o romance é verídico: “é um dos muitos episódios verdadeiros e misteriosos da história secreta da nossa província”. O romance “A Emparedada da rua Nova, do escritor-cidadão Carneiro Vilela, pode ser lido como um texto de intervenção no debate político, como um diagnóstico pessimista do mergulho do Recife na modernidade. A literatura foi a arma encontrada pelo escritor para denunciar uma sociedade incapaz de absorver plenamente os valores do mundo moderno. Defendemos a tese que a Emparedada pode ser lida como um texto de “crítica às instituições, aos valores e às práticas fundamentais da ordem imperial” 1. O narrador da Emparedada - crítico, ácido e irônico - constrói um bem acabado painel da sociedade recifense oitocentista. Ele apresenta, com sua “língua” extremamente ferina, uma sociedade decadente e corrupta. O narrador se comporta como um “demolidor” das mais representativas “instituições”, atacando a Igreja Católica, o governo, a imprensa, a polícia, a justiça, a educação religiosa, a relação arcaica entre o poder privado e o poder público, etc. Enfim, o texto vileliano denuncia as contradições da sociedade recifense, e também brasileira, que contribuem para retardar o ingresso do Brasil no mundo moderno. Em seu romance, Vilela se mostra pessimista em relação às possibilidades de mudança na sociedade recifense do século XIX, que seria, ao seu olhar, cronicamente inviável. A Emparedada apresenta um narrador intruso e onisciente que se nomeia, apropriadamente, como um “argos diabólico e abelhudo”. 2 Argos, personagem mitológica, possuía cem olhos dos quais cinqüenta continuavam abertos mesmo quando dormia. Os seus olhos enxergavam, de maneira perspicaz, o mundo a sua volta. Da mesma forma, o narrador, lança os seus olhares sobre o Recife oitocentista e denuncia, com uma voz firme, as práticas arcaicas que marcam o funcionamento da capital da província de Pernambuco, cidade que se pretendia moderna. O narrador, navegante ousado e abelhudo, singra os mares do Recife e faz um diagnóstico da contemporaneidade como um período de crise. 2.1. Ataques vilelianos à imprensa, à polícia, à justiça patrimonialista e à igreja A trama vileliana se inicia com a descoberta de um cadáver nas matas do engenho Suaçuna. Paira inicialmente uma dúvida sobre a identidade do VILELA, Carneiro. A emparedada da rua Nova. Coleção: Os velhos mestres do romance pernambucano. Recife: Ed. do Organizador. 2005. p. 21 2 1 ALONSO. Op. Cit. p. 43 Revista História - 115 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. morto, bem com a causa da sua morte. Suicídio ou assassinato? As opiniões na cidade se dividem: (...) cada qual estabelecia um certo número de argumentos e daí tirava as conclusões mais absurdas, prognosticava os fatos mais aterradores ou comprometia as pessoas mais gradas e mais respeitáveis da cidade, conforme a face sob que encarava o fato em questão, ou segundo a importância e o crédito que dava aos esclarecimentos da polícia e da folha do governo, habituados, como estamos todos, a ser mistificados por esses dois poderes – imprensa e polícia – quando lhes convém não dizer a verdade ou deixar que a dúvida paire sobre qualquer 1 acontecimento. O folhetim vileliano não possui apenas a função de entretenimento. Se assim fosse poderia ser suprimida da narrativa a fala sobre a imprensa e a polícia como poderes que mistificam, mentem, logram. O narrador continua a sua cruzada de 1 Idem. p. 20 denuncia afirmando: “a polícia ou fora inepta ou contemporizara com o crime, não querendo expor ao rigor da lei pessoas altamente colocadas”2. Estúpida ou corrupta, eis a visão do ‘argos abelhudo’ sobre a polícia do Recife do século XIX que não deseja fazer valer a lei e prender indivíduos de posição social elevada. Vilela, em outro momento da narrativa, continua fustigando a polícia e denunciando as suas práticas arcaicas. No romance, o morto encontrado no engenho Suaçuna foi assassinado a mando de Jaime Favais que contratou um certo Zarolho para realizar o intento. O plano de Zarolho consistia em matar Leandro e fazê-lo passar por Alabama, estrangeiro que aceitou abandonar o Recife com o nome de Leandro e para tanto recebeu polpuda soma em dinheiro. O plano de Zarolho, entretanto, não foi perfeito, pois a carta de Josefina (Esposa de Jaime Favais), usada como isca para atrair Leandro ao Engenho Suaçuna, foi encontrada no bolso do cadáver, o que desfez a tese de que o morto seria Alabama. A carta foi enviada ao chefe de polícia do Recife, Dr. Bernardes, que convocou o comendador Antônio Braga, um dos homens mais ricos da província e sogro de Jaime Favais, a comparecer na delegacia. Antônio Braga ao chegar à delegacia “foi imediatamente recebido, e apenas o viu, correu o 2 Idem. p. 21 chefe de polícia ao seu encontro com essa lhaneza e deferência que as nossas autoridades essencialmente políticas, costumam dispensar aos amigos e às pessoas de posição e influência monetária” 3. Dr. Bernardes iniciou o diálogo com o comendador e o informou sobre a carta encontrada no Engenho Suaçuna afirmando que ela estava assinada por Josefina. A carta é a prova cabal do adultério da filha do comendador e aponta como principal suspeito do crime o genro dele. Ela desmascara um crime e poderia levar Jaime e seus comparsas à Casa de Detenção do Recife. Dr. Bernardes entretanto não pretendia fazer justiça, pois a (...) verdade ia ferir em cheio pessoas solidamente colocadas no comércio e dignamente recebidas na sociedade. (...) Havia-se já formado, a propósito daquele acontecimento e em torno do assassinato, uma opinião, que seria fácil de destruir, é certo; mas que já estava arraigada e podia muito bem continuar de pé com toda a verossimilhança, e sem que acarretasse conseqüências perigosas e 3 Idem. p. 402 Revista História - 116 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. fatais. Com efeito, o polaco não tinha ninguém por si, e a sua morte era equivalente à morte de um cão vadio que obstruísse as ruas por aí. 1 Na visão do Dr. Bernardes Restabelecendo a verdade, pois, a autoridade ia não só entrar num luta, como também ferir reputações bem firmadas e incomodar pessoas pertencentes à poderosíssima colônia portuguesa e ao comércio. Para que isso, portanto? Qual o interesse próprio que tirava a autoridade com essa prova de zelo social e autoritário?...Indispor-se com alguns poderosos e criar mais alguns inimigos. Ele não fora investido daquele cargo para fazer justiça nem punir os criminosos, não! Fora-o para fazer política e para servir os amigos. Portanto era inútil, ridículo até, o representar de Catão 2. O chefe de polícia abafou o crime e entregou a carta ao comendador, pois não viu vantagem nenhuma em agir como o censor romano (Catão), figura conhecida pela sua integridade. Ao contrário, dr. Bernardes enxergou, ao abafar o crime do Engenho Suaçuna, uma boa possibilidade de lucro, pois dava ao abastado português “uma prova exuberante de amizade, segurava a gratidão do velho capitalista e habilitava-se a, em qualquer tempo, poder exigir dele o que fosse conveniente ou necessário. Era o que se chama matar de uma cajadada dois coelhos”.3 Vilela é implacável e utiliza esse momento da narrativa para empreender mais um ‘ataque’ às autoridades policiais recifenses, denunciando a falta de impessoalidade na relação entre autoridades e pessoas abastadas, bem como a corrupção no alto escalão policial da capital da província. O trecho do texto que afirma que o chefe de polícia ‘não fora investido no cargo para fazer justiça nem punir os criminosos, mas para fazer política e para servir os amigos’ representa uma corajosa denúncia das práticas patrimonialistas que marcavam o Brasil 2 1 Idem. p. 403 querer 3 Idem. p. 403 Idem. p. 404 oitocentista. O Argos diabólico denuncia a existência de fronteiras não nítidas e definidas entre o poder público e o poder privado, pois sabe que essas práticas dificultavam o nascimento de uma sociedade moderna baseada na impessoalidade das leis. Esse ‘ataque’ à polícia, presente em várias passagens da trama ficcional, representa a exposição de uma faceta arcaica que marca a sociedade recifense. Essa questão da justiça é reforçada em outra passagem do texto vileliano. Jaime Favais participou da exumação do cadáver do Suaçuna e manteve contatos com o delegado e o escrivão de Jaboatão, pois desejava influenciar na construção da tese de que o morto era o Polaco Alabama e que este havia cometido suicídio. Na beira da cova, Jaime, Zarolho e Bigode de Arame afirmam que o morto é o polaco. O delegado retruca com o seguinte desabafo: O Sr. tirou-me um peso de dez arrobas de cima de mim! Imagine que não se descobria essa trabalhada toda, que trabalhão ia eu ter para desencavar o assassino desse sujeito!...tinha que ver! Tinha de deixar todos os dias as minhas lavouras, os meus trabalhos, os meus cômodos, para me ocupar com esse inquérito que não me rende nada, ou só me rende intrigas e Revista História - 117 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. inimizades. Nada! Ainda se no fim a gente se deparasse com algum guabiru rabudo e pudesse por esse meio machucar um adversário político...ainda vá: mas se a gente, no fim de contas, topasse com um correligionário...hein?...não era uma dos diabos?...Assim foi bom o senhor aparecer. Foi Deus quem o trouxe por aqui. 1 A fala do delegado é muito clara. Ele não foi investido no cargo para fazer justiça, mas para perseguir adversários políticos 2. O narrador não se conforma com as práticas do delegado e protesta: “se ele fosse autoridade, longe de aquela insistência e conseqüente explicação lhe tranqüilizasse ou lhe destruísse os escrúpulos, tê-los-iam aumentado, e desde então o negociante e os dois acólitos teriam ficado sob uma vigilância rigorosa, porém disfarçada e inteligente”.3 No dia seguinte à exumação, o delegado, o escrivão e Jaime esperavam ansiosos por Zarolho e 1 Bigode de Arame que iriam, formalmente, depor e afirmar que o cadáver encontrado era do Polaco Alabama. Entretanto, eles não apareceram. O escrivão, percebendo a contrariedade de Jaime, afirmou que poderia resolver esse problema e contratar testemunhas para construir a versão desejada por Jaime: “- Ora, estão vocês aí a malucar por uma ninharia? (...) que é que falta? As testemunhas?...isso arranja-se”.4 O escrivão completa a sua fala afirmando: “ou a gente é autoridade, ou não é: se é, é justamente para servir aos amigos. Não é assim comendador ?”. 5 A voz de Vilela é implacável ao denunciar a precariedade da justiça brasileira vinculada a práticas patrimonialistas. O seu folhetim é ficcional, mas o escritor- cidadão aproveita-se dele para intervir no debate político e denunciar práticas atrasadas. Vilela não concentra sua ‘artilharia’ apenas no binômio justiça e polícia. Ele fustiga também a educação ministrada por instituições vinculadas à Igreja Católica, afirmando que essas instituições não formam cidadãos aptos para exercerem uma postura crítica diante do mundo, ao contrário reforçam vícios, pois os educadores asfixiam o coração dos educandos. Sobre a formação educacional de Clotilde, o narrador protesta: Idem. p. 124 Em Pernambuco, Guabiru é o apelido depreciativo dos membros do Partido Conservador 3 VILELA. Op cit. p. 403 2 4 5 Idem. p. 174 Idem. p. 175 Para a mulher – para a futura mãe de família, para a verdadeira base da sociedade moderna, - estreitavam-se os horizontes intelectuais e morais, proibiam-lhe a liberdade de pensar e de sentir, entregavam-na aos corvos do fanatismo e da hipocrisia, asfixiavam-lhe o coração, envenenavam-lhe o espírito e, em vez de procurarem formar uma esposa e uma mãe com todas as aptidões para procriar cidadãos e homens de espírito, preparavam uma beata inútil e estúpida, apta apenas para dissertar sobre as problemáticas virtudes do rosário ou para engrolar ladainhas depois de indigestos e perniciosos sermões jesuíticos”. 6 As palavras do narrador são muito duras sobre os efeitos negativos da educação ministrada por setores ligados à Igreja; na sua visão esse tipo de educação estreitava os horizontes intelectuais e 6 Idem. p. 36 Revista História - 118 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. morais e preparava para a vida uma mulher beatificada, fanática, sem senso crítico, inútil. O narrador finaliza a sua fala sobre Clotilde afirmando que ela saiu do colégio “revoltada pela asfixia intolerante daquela atmosfera de beatério”. 1 A formação educacional da mãe de Clotilde, Josefina, não foi diferente. Ela estudou no mesmo colégio da filha. A educação do Colégio das Irmãs Caridades era “eivada desses preconceitos piegas, cheia dessas crendices estultas, imbuídas dessa fé falsificadora e embrutecedora”. 2 Os padres que ministravam as aulas eram sacerdotes sem idéias, sem princípios, sem moral, sem crenças, sem estudo (...) sacerdotes que fazem da religião um fanatismo; da moral, um enigma; da verdade, um mito; da consciência, uma futilidade; da razão, um monstro; do coração, uma besta; de Cristo, um mercador do templo, e de Deus, um capadócio!”. 3 Idem. p. 36 Idem. p. 188 3 Idem. p. 188 Na visão do narrador, a educação recebida por Josefina deixou o seu coração “mal educado, em cujo fundo dormitavam esquecidos todos os vícios aprendidos e adquiridos no colégio e todas as corrupções insinuadas nos confessionários”. 4 Celeste Cavalcanti, amiga de Josefina e amante de Leandro Dantas, estudou também no Colégio das Irmãs Caridades. Segundo o narrador ela possuía um “temperamento ardentíssimo, de mais a mais desenvolvido largamente pela estrumeira da educação colegial”. 5 Na nossa visão, as falas do narrador sobre os ‘vícios aprendidos e adquiridos no colégio’ e a ‘estrumeira da educação colegial’ fazem parte da estratégia do escritor-cidadão que procurou ao longo da narrativa denunciar práticas arcaicas que retardavam o nascimento efetivo de uma sociedade moderna. A educação religiosa nesse particular contribuía sobremaneira para inviabilizar uma sociedade mais moderna, pois incapaz de formar cidadãos mais críticos e preparados intelectualmente e moralmente. Além de atacar as escolas vinculadas à Igreja, o narrador denuncia a ambição desmedida da Igreja por recursos pecuniários. Jaime, que desejava casar às pressas a sua filha com o seu sobrinho, pois descobriu que ela estava grávida de Leandro, afirma criticando a Igreja: “o que não se consegue da igreja católica por meio do dinheiro? - pretendia conseguir e 1 2 conseguiria do bispado todas as dispensas e faria celebrar o casamento à capucha, porém com a maior brevidade”. 6 Para finalizar nosso argumento sobre o ataque do escritor cidadão à Igreja, lembramos que ao final do texto vileliano, o narrador afirma que Calu, prostituta e mãe de Leandro, integrou-se à Sociedade São Vicente de Paula, e dessa maneira “caira, pois na maior das misérias: na exploração da hipocrisia e na corretagem da religião e (...) Maroca, filha de Calu e também prostituta, contraiu sífilis e ficou entre a falta de caridade do médico materialista e ignorante, e a estúpida carolice das irmãs de caridade”7. Enfim, o escritor-cidadão acredita que a Igreja, com suas práticas atrasadas, contribuiu para retardar o nascimento de uma nova ordem social. Considerações finais A Emparedada dialoga com a historicidade e denuncia práticas arcaicas que marcam a capital da província. O Argos diabólico, narrador do texto estudado, esmiúça o funcionamento nefasto da sociedade recifense oitocentista, e com seus cem olhos enxerga e denuncia as práticas não modernas que ocorrem no interior da urbe. O texto vileliano denuncia o caráter predatório e patrimonialista da 6 Idem. p. 255 5 Idem. p. 190 4 7 Idem. p. 462 Idem. p. 475 e 476 Revista História - 119 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. justiça, o atraso da educação vinculada à Igreja católica, a presença da desonestidade nos negócios, a ambição desmedida e a relação promiscua entre homens ricos e indivíduos que ocupam cargos públicos, como delegado, escrivão e chefe de polícia. A obra estudada reproduz o estado social e mental do Brasil da segunda metade do século XIX, quando um acelerado processo de modernização econômica marcou os principais núcleos urbanos do país. Apesar do desejo reformista, ela transpira um tom pessimista, pois na visão do narrador não há possibilidade de mudanças sociais, econômicas, educacionais, políticas e mentais, uma vez que a sociedade recifense do século XIX, porque não a brasileira, está condenada a relações sociais extremamente arcaicas e predatórias. Tanto a elite econômica quanto as camadas populares desrespeitam a lei e agem seguindo a máxima maquiavélica: “os fins justificam os meios”. A lei, nessa sociedade, é apenas para os inimigos. O narrador flagra o processo de aburguesamento de alguns setores sociais do Recife oitocentista, e constata que novos valores foram construídos. A modernização da cidade nesse período trouxe um apego maior ao dinheiro e à aparência. O narrador não tem esperanças pois esse processo de modernização predatória é avassalador e veio para ficar, veio para depreciar ainda mais os valores da sociedade senhorial e escravista pernambucana, ou seja, na sua visão melhorar não poderia, mas piorar sim. A modernização não trouxe valores modernos (igualdade perante a lei, impessoalidade, democratização da política e da educação, justiça isenta...) mas ressignificou as predatórias relações escravistas tão presentes na sociedade brasileira. A lucidez do “narrador-sociólogo” é desesperançosa e desconcertante. A única e rarefeita esperança curiosamente veio de uma mulher quase cega, mãe do pedreiro que foi obrigado, numa madrugada, a emparedar Clodilde. O pedreiro quando chegou em casa narrou o fato a mãe que exigiu que ele denunciasse o hediondo crime. Ele dirigiu-se ao chefe de polícia e contou o ocorrido. O chefe de polícia, entretanto, não acreditou e achou que ele estava louco. A mãe do pedreiro talvez represente o único e pequeno fio de esperança numa “sociedade apodrecida”. Ela deseja justiça, quase cega não vê distinção de riqueza e de classe, o nó é que o chefe de polícia tem os olhos bem abertos, e essa abertura retarda o nascimento efetivo de uma sociedade moderna, ancorada numa justiça isenta e “cega” (metaforizada pela mãe do pedreiro), num sistema educacional não obscurantista, na igualdade de todos perante a lei e na constituição de um governo não voltado aos interesses privados. O emparedamento de Clotilde e a impunidade de Jaime metaforizam o emparedamento desses valores modernos. A pesar do tom pessimista imprimido ao texto. É possível que ao destruir a imagem da sociedade da época representando-a como algo cronicamente inviável, o autor deseje na verdade um pacto de refundação dessa sociedade que precisava urgentemente de reformas. O reformismo vileliano seria coroado com a abolição da escravatura e pela implantação do ‘passo agigantado’ da democracia. Carneiro Vilela foi um escritor-cidadão que clamou corajosamente por uma reforma social profunda, que alargaria significativamente os direitos de cidadania. Referências ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento - a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra. 2002. ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: A formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo. Humanitas/FFLCH/USP. 2004. CHALHOUB, S. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. NASCIMENTO, L. A Imprensa em Pernambuco: 18211954. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1969. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 310. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Revista História - 120 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. VILELA, Joaquim Maria Carneiro. A emparedada da rua Nova. Coleção: Os velhos mestres do romance pernambucano. Recife: Ed. do Organizador. 2005. AS RESENHAS DE LIVROS NOS JORNAIS O PAIZ E GAZETA DE NOTÍCIAS COMO ESPAÇOS DE CONSAGRAÇÃO E SOCIABILIDADE NO RIO DE JANEIRO NO FINAL DO SÉCULO XIX Renata Rodrigues de Freitas Mestranda do PPGH-UERJ e bolsista FAPERJ Resumo Este artigo procura discutir as representações dos livros resenhados pelos jornais O Paiz e Gazeta de Notícias, a partir das implicações destas no espaço cultural do Rio de Janeiro no final do século XIX, onde estavam inseridos indivíduos que procuravam adentrar na República das letras, mas que nesse período não conseguiam viver apenas da venda dos seus bens simbólicos, ou seja, das obras que produziam. Desta forma, consideramos o jornal como um espaço de consagração para esses homens que almejavam notoriedade e reconhecimento profissional posto que servia como um meio de divulgação das obras através das resenhas dos livros publicados. Palavras Chave: Campo Literário, Rio de Janeiro, século XIX. Abstract This article discusses the representations of the books reviewed by the newspaper Gazeta de Notícias e O Paiz, from the implications in the cultural space of Rio de Janeiro in the late nineteenth century, where they were placed individuals who sought to enter the Republic of letters, but in this period could not live just from the sale of their symbolic goods, ie the works they produced. Thus, we regard the newspaper as a place of consecration for those men who craved notoriety and professional recognition since it served as a means of disseminating works through reviews of published books. Keywords: Literary Field, Rio de Janiero,19th century. *** O espaço público1 do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX era constituído por homens de letras, que buscavam um espaço de notoriedade na República das letras em formação. Grande parte desses indivíduos construíam redes sociais de grande importância em lugares como bares e cafés localizados nas principais ruas da capital que A expressão espaço público é utilizada levando em conta as reflexões do prof° Marco Morel em sua obra: “As Transformações dos Espaços Públicos”. O autor leva em consideração a polissemia da expressão indicando em seu trabalho três possibilidades: “espaço público como cena ou esfera publica, onde interagem diferentes autores, e que não se confunde com o Estado; a esfera literária e cultural, que não é isolada do restante da sociedade e resulta da expressão letrada ou oral de agentes históricos diversificados; e os espaços físicos ou locais onde se configuram estas cenas e esferas.” Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), Rio de Janeiro, Hucitec, 2006. 1 Revista História - 121 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. naquela época possuíam as mais diversas livrarias e um crescente comércio de livros. Nesse período esses homens de letras publicavam as mais diversas obras de cunho literário e científico, de forma que a divulgação de tais publicações era algo fundamental para estes indivíduos conseguirem um locus no meio literário. Os jornais O Paiz e Gazeta de Notícias possuíam espaços dedicados a publicidade dessas obras através de resenhas críticas elaboradas pelos seus respectivos redatores. Tais representações dos livros resenhados nesses periódicos, de grande circulação no espaço cultural do Rio de Janeiro no final do século XIX, serviam como espaço de consagração para os homens de letras, ou seja, indivíduos que procuravam adentrar na República das letras, mas que nesse período não conseguiam viver apenas da venda dos seus bens simbólicos, ou seja, das obras que produziam. Desta forma, consideramos o jornal como um meio de inserção desses indivíduos no campo literário, já que almejavam notoriedade e reconhecimento profissional, servindo assim como um espaço de divulgação das obras através das resenhas dos livros publicados. Durante a década de 1880 foram significativas as transformações qualitativas e quantitativas no que tange ao fornecimento de livros, à importação de obras com pluralidade de temas bem como uma ampliação do número de anúncios de livros publicados nos principais periódicos do Rio de Janeiro. Nas resenhas analisadas foram encontrados um leque de opções para pensar as diversas formas de interação entre os autores (os homens de letras que almejavam um lugar no campo literário em formação), os leitores e a sociedade, que, na segunda metade do século XIX, passaram por transformações políticas consideráveis. Conforme esses homens foram garantindo seu espaço não somente nos jornais através da publicação de suas obras, mas também nos bares, cafés, livrarias e outros locais, tornou-se possível a construção de uma rede social fundamental para a consolidação desses intelectuais que foram responsáveis pela a formação de uma opinião pública influente no final do século XIX. Tendo em vista a análise do livro como objeto cultural e histórico por excelência e como um meio de transmissão de cultura no qual estão em jogo relações de poder é de extrema importância situar essa discussão dentro de uma perspectiva da história política e cultural. Assim, ao ser abordada a questão da recepção dos impressos bem como dos livros que circulavam no “espaço público” do Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XIX, foi levado em conta que ao longo deste século, “a cidade do Rio de Janeiro assumiu de forma hegemônica o papel de capital cultural além de ser centro das decisões econômicas e político-administrativas”1. Tais escritos Tânia Maria Bessone, Palácio de destinos cruzados: bibliotecas, homens e livros no Rio de Janeiro, 1870-1920, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1999, p. 85. 1 são considerados tanto como instrumentos de poder daqueles que detinham o privilégio da escrita quanto espaços de consagração para os indivíduos que buscavam um locus na boa sociedade. Levando em consideração que durante a segunda metade do século XIX ocorreu uma significativa ampliação do número de resenhas, comentários, artigos e anúncios referentes às publicações de livros, nossa análise voltou-se para as resenhas de livros publicados em seções específicas dos periódicos O Paiz e Gazeta de Notícias, intituladas respectivamente de “Publicações” e “Registro de Entradas”, dedicadas a “publicizar” com detalhes, através destes comentários, as obras nos jornais, sendo estes de grande importância para a “elevação” dos homens de letras à categoria de intelectuais. Além destes dois espaços específicos no jornal dedicados à divulgação das publicações, as resenhas foram gradualmente ocupando um espaço significativo no jornal com o surgimento de várias seções como as do “Salão de O Paiz” e a seção de “Livros Novos” (ambas encontradas em O Paiz) e “Livros de Graça”, “Livros Baratíssimos” e “Livros Novos” encontradas na Gazeta de Notícias. Algumas obras eram divulgadas sob o título “sahiu à luz” (impresso em destaque), outras também, dependendo da sua importância e popularidade, possuíam um espaço exclusivo como, por exemplo, o Almanack Laemmert. Revista História - 122 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Grande parte das resenhas analisadas diziam respeito a publicações de caráter literário, científico ou jurídico. Diversos anúncios e resenhas destas obras procuravam divulgá-las utilizando-se de uma linguagem bem simples e didática recorrendo muitas vezes a gravuras e símbolos com o intuito de divulgar leituras e assim atrair um público leitor significativo Um outro aspecto a destacar é o espaço dedicado à opinião de outros órgãos da imprensa com relação a uma determinada obra que tenha conseguido um público leitor considerável1: “ O Manual Mercantil Nenhuma outra obra conhecemos que mais satisfaça àquelles que querem aprender o mecanismo commercial, já na sua theoria, já na sua prática. Com bastante clareza e methodo são expostas noções completas acerca do commercio terrestre e marítimo, da escripturação mercantil e dos diversos títulos e termos comerciais. (...) Esta obra é um importante serviço prestado à classe comercial, a que pertence o Sr. Verediano Carvalho, que tanto a tem honrado. Ela está em 1ª edição, o que mostra a jus aceitação que tem tido” .2 A partir deste trecho, é possível observar que além de anúncios e resenhas acerca de diversas obras, o jornal passou a reservar um local para críticas e resenhas referentes a publicações que tenham se destacado pelo sucesso de público leitor e por seu conteúdo de caráter utilitário e informativo. A publicação de resenhas de outros jornais por parte de O Paiz demonstra a formação de um campo editorial, pois observamos que tal iniciativa torna evidente o fato de que diversos periódicos estavam preocupados em divulgar livros e impressos no final do século XIX. Os anúncios sobre a publicação de impressos – diferentemente das resenhas – apresentavam tanto um aspecto informativo, quanto comercial e tinham lugar nas últimas páginas do jornal, em sua maioria, dando informações sobre as obras publicadas – para isso recorrendo muitas vezes a gravuras e símbolos – ou aquelas que se encontravam à venda em determinado local – principalmente livreiros e outros locais que se dedicavam a venda de livros e em muitos casos a outros ramos dos negócios. Opinião da imprensa do Jornal Gazeta de Notícias. O Paiz, 10 de fevereiro de 1889. 2 1 Optamos por manter a ortografia utilizada nos periódicos analisados. Tendo em vista que tanto os impressos como os livros no decorrer do século XIX eram tidos como espaços de consagração para os homens de letras, devemos levar em consideração a existência do “espaço público”3 constituído na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Marco Morel, a diversidade do Rio de Janeiro como cidade – com atores sociais e vida urbana – e como Corte, ou seja, como sede da monarquia, marca o surgimento de uma opinião pública decorrente da reflexão dos “letrados”. A partir da análise de anúncios e resenhas de livros publicadas nos jornais O Paiz e Gazeta de Notícias, ao longo da década de 1880, foi possível encontrar a recepção inscrita nessas representações. Sabe-se que nesse momento apenas uma pequena parte da população do Rio de Janeiro era alfabetizada4. o que nos leva a acreditar que a leitura era um fator de distinção econômico e social. Contudo, pode-se inferir também que se tratava de um elemento de diferenciação cultural e, a partir da nossa análise, até mesmo profissional. Diversas resenhas analisavam livros voltados para um público Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840), Rio de Janeiro, Hucitec, 2006. 3 De acordo com censo de 1872, a região do Rio de Janeiro contava com 29,8% de “instruídos”. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História Privada do Brasil. Companhia das Letras. São Paulo: 1997. v. 02. pp. 150-151. 4 Revista História - 123 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. especifico já que tais publicações eram destinadas a diferentes categorias de profissionais como comerciantes, advogados e médicos. Tal análise nos leva a questionar a idéia de que a leitura está vinculada a uma determinada classe social, quando na verdade o que vemos é a existência de publicações pautadas em outros critérios que não apenas o econômico, conforme podemos notar em um fragmento das resenhas publicadas: O Sr° Veridiano de Carvalho acaba de publicar a 10ª edição do seu Manual Mercantil ou Encyclopedia elementar do Commercio Brazileiro. É um importante trabalho que recommendamos como o primeiro no gênero. Em 314 paginas tractou o autor, com grande proficiência, de tudo quanto diz respeito à contabilidade commercial (...) impressa nas officinas dos Srs. Laemmert & C.1 necessidade do manual para o público profissional específico, neste caso, os profissionais do comércio. Tal exemplo nos remete a um outro aspecto relevante para a compreensão do campo literário no período estudado: a questão da recepção. O próprio material analisado, permite refletir sobre as apropriações que eram realizadas das obras resenhadas, no entanto uma análise mais atenta nos permite inferir acerca da recepção das próprias resenhas, pois consideramos haver sinais de recepção inscritos na própria produção do objeto pesquisado. Roger Chartier discute questão semelhante ao afirmar que ao Compreender como a recepção particular e inventiva de um leitor singular (ou de um ouvinte ou de um espectador) está encerrada em uma série de determinações complexas e entrecruzadas: os efeitos de sentido buscados pelos próprios dispositivos da escrita, os usos e apropriações impostas pelas formas de “representação” do texto (no escrito ou no oral, no volume ou no codex, no manuscrito ou no impresso, sobre a cena ou na leitura, no livro ou na tela, etc) [...].2 Percebe-se na citação acima não somente o caráter utilitário da obra, mas também o interesse por parte dos editores em ressaltar as qualidades e a Escribir las prácticas: Foucault, de Certeau, Marin, Buenos Aires: Manancial. 1996, p.50. 2 1 Gazeta de Notícias, 10 de janeiro de 1889. A essa lista de formas de apropriação impostas pela “representação” do texto, é possível pensar também as resenhas de livros em periódicos a partir das particularidades que esse registro escrito possui. Dessa forma, a analise das resenhas de livros presentes nestes órgãos da imprensa no final do século XIX, não fica restrita apenas à publicação e circulação de impressos, mas também às implicações que estes possuíam nas relações de poder estabelecidas no espaço público do Rio de Janeiro da década de 1880, como por exemplo, no fato de em 1889 o jornal O Paiz passar a publicar resenhas de obras de caráter republicano, além de alguns dos autores dos livros resenhados ocuparem importantes cargos, como no caso de Alfredo d'Escragnolle Taunay (visconde de Taunay), que teve o seu livro “Visconde de Rio Branco” comentado em uma edição de O Paiz do mês de outubro de 1884. Em sua obra “Boemia Literária e Revolução” Robert Darnton analisa a pesquisa de Daniel Mornet acerca dos catálogos das bibliotecas particulares, que em sua maioria haviam sido impressas para a venda em leilões nos arredores de Paris no século XVIII3. Mornet constatou em seu trabalho que os livros de autores considerados clássicos do Iluminismo não estavam presentes nestas bibliotecas. Darnton observou uma série de objeções à teoria de Mornet, Robert Darnton, O iluminismo como negócio, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 168-169. 3 Revista História - 124 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. contudo, algumas questões levantadas por este autor tornaram-se relevantes às pesquisas posteriores acerca da História do livro. Em relação a análise sobre as resenhas de obras publicadas em jornais na cidade do Rio de Janeiro no século XIX, uma pergunta levantada por Mornet que nos cabe destacar é: “o que liam esses homens?”. Tal questão é importante pois diz respeito ao nosso objeto de trabalho que são os comentários dos livros nesse período. Dessa forma, pode-se depreender de tal questão que é possível discutir não apenas o que liam, mas também “como liam esses homens?”, ou seja, quais dispositivos de leitura1 estão presentes nas fontes encontradas. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. (Ed.). Nation and narration. London; New York: Routledge, 1990. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. Referências Bibliográficas _____. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. ABREU, Marcia (org.). Leitura, história e história da leitura. 2ª reimpressão. Campinas/São Paulo: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2002. _____. O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand, 1989. ARAÚJO, Rita de Cássia Lamino de. As Crônicas de D. João da Câmara na Gazeta de Notícias (19011905): Coletânea Comentada. 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Neste artigo, a palavra espaço é entendida em dois sentidos que avançaram paralelos na história do conflito entre Ciência e Religião: espaço geográfico e espaço simbólico. O espaço profano ganhou terreno à medida que a ciência aumentava o conhecimento dos homens a respeito da natureza, ou seja, conquistava maior espaço simbólico. No entanto, longe estamos do final dessa disputa pelo espaço simbólico e geográfico. Palavras-chave: Ciência, Religião, Espaço Sagrado, Espaço Profano HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Abstract There was a time when the holy space was fulfilled by the totality of the human experience. The social and Revista História - 126 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. cultural changes that devised the modern society represented the birth of a way of seeing that progressively excluded the religious explanations of the world. In this article, the word space is understood in two meanings that advanced in parallels in the history of the conflict between Science and Religion: the geographic space and the symbolic space. The profane space gained importance as science raised man’s knowledge over nature, therefore, conquering a greater symbolic space. However, we’re far from the end of this dispute for the symbolic and geographic space. Keywords: Science, Religion, Sacred Space, Profane Space *** Introdução As relações entre ciência e religião geralmente são conflituosas. Costumeiramente sabemos de investidas dos criacionistas contra a idéia da evolução das espécies e recentemente o cientista Richard Dawkins1 vem publicando livros que deliberadamente atacam a idéia da existência de Deus (McGrath, 2005). Ao que parece, portanto, ciência e religião ainda disputam espaço como formas explicativas da realidade. Em certo sentido, o Autor de livros abertamente anti-religiosos como “Deus - um delírio” (2007) e “O Relojoeiro cego” (2001) e também do excelente “A Grande história da evolução” (2009). Datas das edições brasileiras. 1 pensamento científico tem mantido a hegemonia que conquistou a partir do início da era moderna. O aumento do espaço simbólico2 ocupado pela ciência significou uma diminuição do espaço ocupado pela religião. Esse fenômeno foi paralelo a outro: o avanço do espaço profano sobre o espaço sagrado. A primeira era a esfera sublunar, que continha todas as substâncias sujeitas à corrupção, devido à contrariedade natural existente entre os quatro elementos constitutivos dos corpos (fogo, ar, terra e água) e suas qualidades (quente, seco, frio e úmido). A segunda, a esfera supralunar (ou celeste), era povoada pelos astros, pelos santos que estão na Glória Eterna, os anjos e Deus. Acreditava-se que o mundo supralunar emitia fluidos, influxos invisíveis que influenciavam as coisas do mundo sublunar [...]. (Costa, 1996, p. 487) Uma das formas de representação do espaço sagrado é a idéia de “além”. O lugar onde está o “além”, ou “mundo espiritual”, pode ser uma questão problemática para muitos de nós, mas não era para as pessoas que viveram antes que o pensamento científico passasse a ditar quais eram os limites entre o real e o imaginário. Mergulhados no sagrado, o homem religioso do passado sabia que o “além” estava logo ali em cima, no céu, e se houvesse uma escada grande o bastante poderia tocá-lo. Antes da era moderna, a visão predominante dividia o mundo em duas partes: a sublunar, corruptível, imperfeita e, acima da Lua, o mundo divino e celeste3. Divisão que se consagrou durante séculos, configurando uma arquitetura cósmica que perdurou pelo menos até o século XVI4. No sentido utilizado por Pierre Bourdieu. Essa divisão entre mundo celeste e mundo sub-lunar, corresponde à divisão que o homem religioso faz do mundo como um todo. Para o homem religioso tudo o que existe pode ser considerado sagrado ou profano (Eliade, 2001). 4 Poderíamos, talvez, perceber essa mesma dicotomia quando falamos em real versus virtual. Lembrando a observação feita por Pierre Lévy (1996) de que virtual não se opõe a real, mas a atual. 2 3 Como não se podia conceber um lugar sem a presença da divindade tinha-se horror ao nada, ao vácuo, ao vazio5. Assim, o espaço acima de nós deveria ser preenchido com algo, o paraíso – um lugar para irmos após nossa morte. Jean Delumeau A dificuldade em conceber o vazio pode ser percebida pela criação e persistência da idéia do Éter, uma substância imaginada para conter os corpos celestes, que somente foi descartada no início do século XX. 5 Revista História - 127 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. estudou esse que é um dos maiores sonhos que a mente do homem ocidental produziu, isto é, a crença no paraíso e no “além” eterno repleto de felicidades, realizando uma ampla análise de textos e imagens do paraíso ao logo dos séculos e acabou por concluir que a nossa relação com o “além” modificou-se profundamente neste tempo todo. “Por muito tempo o sobrenatural e o real concreto da terra estiveram imbricados um com o outro: o sobrenatural invadia o cotidiano; inversamente, o mobiliário terrestre encontrava vasto espaço no mundo celeste”(Delumeau, 2003, p. 507). Mas, a partir do final da Idade Média o espaço profano começou a invadir o espaço sagrado. Descobriu-se que os elementos do céu têm a mesma natureza dos elementos do mundo sublunar. A distinção entre o céu e a terra se desfez paulatinamente até que a chegada o homem à Lua, no século XX, tornou-se a evidência da vitória do céu profano sobre o céu sagrado. Nas palavras de Jean Delumeau: Daí em diante, o paraíso só pôde ser definido como uma utopia, isto é, no sentido etimológico dessa palavra forjada por Thomas More, como um ‘não-lugar’ [...]. Afastando-se da tentação do maravilhoso, o crente de hoje deve aceitar o vazio das representações relativas ao além. (2003, p.507) A partir do Iluminismo, a crença em um mundo povoado pelos mortos foi sendo empurrada para o espaço das crenças populares. Seguindo esse raciocínio deveríamos chegar à conclusão de que, no mundo contemporâneo, o “além” já deveria ter desaparecido. Afinal, no lugar do ranger dos dentes encontramos, nas entranhas da terra, petróleo e no lugar dos anjos cantando e tocando harpas, achamos as pedras e poeira da Lua. Mas não foi isso que aconteceu. Percebemos que o céu sagrado continua a prender a atenção das pessoas e as representações do “além” estão longe de estarem vazias como quer Jean Delumeau. Uma das questões mais importantes para compreensão das representações do “além” se refere problema do lugar, do espaço onde está esse “além”. Jacques Le Goff já havia levantado esse aspecto em seu estudo sobre o nascimento do purgatório. Ele considera que a organização do espaço onde a sociedade existe é um aspecto importante de sua história. Organizar o espaço do seu além foi uma operação de grande alcance para a sociedade cristã. Quando se aguarda a ressurreição dos mortos, a geografia do outro mundo não é uma questão secundária. E pode esperar-se que exista uma relação entre a maneira como essa sociedade organiza o seu espaço aqui em baixo e o seu espaço no além, pois os dois espaços estão ligados através das relações que unem a sociedade dos mortos e a sociedade dos vivos. (Le Goff, 1993, p.18) Concordamos com Le Goff de que a questão do lugar do “além” não é secundária. Esperando a ressurreição dos mortos ou não, todos atribuem grande importância em saber “onde” estarão. Para compreendermos esse processo, trilharemos um caminho que nos permitirá traçar uma breve história de como o espaço profano invadiu o sagrado. A Conquista do Sagrado pelo Profano Ptolomeu, o último representante da ciência grega, produziu uma explicação do mundo Revista História - 128 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. que pode ser considerada a conclusão de todo o trabalho do intelecto grego sobre o cosmos. Sua longa influência sobre a nossa visão do universo é inegável. Sabe-se pouco sobre a vida de Ptolomeu, mas sabemos que escreveu seus trabalhos entre 127 e 141 d.C. e que viveu em Alexandria, naquela época, uma província romana e uma referência cultural. A principal obra de Ptolomeu é conhecida por Almagesto, nome dado pelos árabes e que significa “o livro muito grande”. Nessa obra, Ptolomeu descreve o sistema geocêntrico que conseguia explicar muitos fenômenos celestes com certa precisão. Ao final do período helenístico, Claudio Ptolomeu (século II d.C.), em sua Síntese Matemática utilizou intensivamente a matemática para a compreensão do movimento dos astros. [...] Foi o que fez Ptolomeu, com a ajuda da geometria, conjugando movimentos circulares de forma tal que o movimento resultante se aproximasse das órbitas aparentes. (Vargas, 1996, s/p) O modelo de Ptolomeu podia descrever os movimentos do sol da lua e dos planetas e também permitia realizar previsões de suas posições futuras com razoável exatidão (Gleiser, 2003). O sistema de Ptolomeu caracterizou-se por considerar o universo finito, a terra fixa no centro do universo, a órbita perfeitamente circular dos planetas (McGrath, 2005) e a divisão do mundo em duas partes: o sublunar e o celeste (Simaan; Fontaine, 2003). Ao mesmo tempo, é importante notar que Ptolomeu dedicou-se igualmente à astrologia, sendo o autor do livro Tetrabiblos, que trata dos signos e sua influência nos acontecimentos na Terra. A cosmologia medieval foi influenciada diretamente pelos escritos de Aristóteles (384322 a.C.) e sobretudo Ptolomeu (c.100-170) e seu Tetrabiblos. [...] Porém, devo ressaltar logo de início que os conceitos de astrologia e astronomia estavam intrincados e queriam dizer na maior parte das vezes a mesma coisa. (Costa, 2002, p. 486) Tal representação do universo estava em perfeita concordância com o imaginário religioso da época. Ptolomeu pretendia estar em contato com a divindade ao investigar os mecanismos celestes, pois considerava que esses eram obras divinas. Por exemplo, considerando que Deus só poderia obrar perfeitamente, os planetas deveriam ter suas órbitas circulares porque essa seria a forma mais perfeita. Como não poderia deixar de ser, o universo para o homem medieval era fechado tal como era fechada cidade medieval, cercada por muralhas. A cidade medieval, por sua vez, foi o protótipo de muitas cidades celestiais, é o que nos diz Delumeau, “[...] ao longo das eras os artistas muito naturalmente imaginaram a cidade celeste utilizando ou recompondo os elementos que lhes propunha a silhueta das cidades de seu tempo” (2003, p.118). No centro desse Universo estava a Terra, local da corrupção, habitada por seres passíveis da degradação moral e, por isso mesmo, de morrerem. A Terra era rodeada pelas esferas da Lua, do Sol, dos planetas e das estrelas seguindo uma ordem crescente de perfeição. Acima da esfera das estrelas fixas havia a esfera do primum mobile, e, ainda, além desta, a esfera empírea, habitação de Deus. Desta maneira, a hierarquia de valores morais refletia-se na hierarquia do espaço. Mais do que isso, a divisão primitiva do universo em apenas duas regiões, sublunar e celeste, cedeu o lugar a um número maior de subdivisões ou céus. Apesar disso, continuou existindo a diferença básica entre mundo terreno, caracterizado pela mutabilidade, e o espaço celeste, reino da Revista História - 129 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. permanência etérea e eterna. O universo, assim concebido, é dividido de tal modo que o resultado é uma escala gradual que se estende de Deus até a mais baixa forma de existência moral, ou seja, Lúcifer. Uma das descrições que retratam melhor esse “além” é, sem dúvida, a de Dante Alighieri, a qual podemos considerar o arremate das representações anteriores, ou como nos diz Jacques Le Goff (apesar do fato de estar se referindo ao purgatório, podemos estender suas observações a todo sistema cristão do “além”), “[...] através de uma obra de excepção, reuniu numa sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo rasto segui nesta obra [O Nascimento do purgatório]. Il Purgatório é uma conclusão sublime para a lenta gênese do Purgatório”(Le Goff, 1993, p.395). Muito antes de Dante, porém, descrições do “além” já eram freqüentes, principalmente em formas de viagens ao “outro mundo”, pois se o “além” é um lugar, é possível viajar até ele, ou pelo menos vê-lo e, portanto, descrever suas paisagens e seus habitantes. Assim, acreditava-se que viajar pelas esferas celestes era uma coisa totalmente possível de ser feita, desde que acompanhada por algum anjo ou santo, “Tratam-se de relatos feitos por homens a quem Deus havia dado a graça de visitar; em geral conduzidos por um anjo ou um arcanjo, o Inferno e o Paraíso [...]”(Le Goff; Schmitt, 2002, p.26). Encontra-se, por exemplo, na “Vida dos Santos Padres de Mérida”1 (Delumeau, 2003), obra datada do século VII, o caso do menino Augusto. O jovem é apresentado como simples, inocente e de muita fé. Tendo ficado doente e de cama, o menino relata o que viu durante esse período. Afirmou que esteve num lugar maravilhoso, grama verde, repleto de flores perfumadas, rosas, lírios, coroas de pedras preciosas, véus de seda e onde soprava uma leve brisa perfumada. Viu também muitas cadeiras, para a direita e para a esquerda e uma cadeira mais alta no centro. Relatou, ainda, ter visto muitos servidores bonitos e bem vestidos preparando um banquete. De repente, continua a descrição, uma multidão de santos apareceu, enfeitados com pedras preciosas, ouro e com coroas reluzentes. Entre eles, segundo o menino, havia um homem bonito, resplandecente, mais alto que os outros, mais brilhante que o sol e mais branco que a neve. Esse homem sentou-se na cadeira mais alta e todos caíram em adoração. O menino foi levado até esse homem que ordenou que fossem fornecidas bebida e comida ao menino. Após o banquete, o homem levou o menino para ver o jardim. No jardim havia uma corrente de água cristalina e ao longo dela muitas árvores e flores Podemos ver uma breve análise do imaginário ligado ao “além” contido nessa obra em: FAVARO, Germano Miguel Esteves. Algumas 1 considerações acerca do imaginário ligado ao além na hagiografia vida dos santos padres de Mérida. 2006. Disponível em: <http//www.assis.unesp.br/neam/anais2006/anais2006.htm>. Acesso em: 21 dez. 2006. perfumadas de muitas fragrâncias. Pouco tempo depois o menino morreu. Nesta descrição ainda não temos todos os elementos do “além” cristão presentes na obra de Dante, mas já vemos alguns elementos que permaneceram. É verdade que o menino não descreve uma cidade espiritual, como a Jerusalém Celeste, ficase com a sensação de um palácio cercado de jardins. A imagem do “além” muitas vezes se aproxima da representação do jardim do éden. Outra visão do “além”, agora do século XII, é a produzida por Hildegarda de Bingen. Nascida em 1098, viveu o período do avanço da vida monástica, quando Cluny, e depois Císter, foram exemplos do ardor espiritual desse momento. Era a décima filha de uma família de nobres e teve uma vida onde a doença e o sofrimento estiveram sempre presentes, aliás, como convém a uma santa. Aos oito anos, foi entregue a uma jovem de família nobre que morava num mosteiro para que fosse educada. Desde cedo tinha visões, como quando viu a cor de um bezerro antes dele ter nascido, mas as guardava em segredo. Somente aos quarenta e dois anos, suas visões vieram à luz. Ela ouviu, em 1141, uma voz que a ordenava a escrever tudo o que lhe fosse dito e mostrado. Ela escreveu que uma luz brilhante como fogo, vinda do céu, abateu-se sobre seu corpo. Seu trabalho estendeu-se de 1141 a 1151 e sua primeira obra chama-se “Scivias” e compreende três livros, o primeiro descreve seis visões de Hildegarda, o Revista História - 130 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. segundo sete visões e o terceiro treze visões (Pernoud, 1996). Em uma de suas visões ela descreve uma cidade quadrada, cercada por três muros, referência às três ordens da sociedade medieval. Dentro destes muros ela mostra numerosos edifícios, igrejas, palácios, colunas e casas comuns. Sua descrição é carregada de simbolismo, a cidade é feita de pedras preciosas. Hildegarda trabalha com essa ambigüidade, gemma, em latim pode significar uma jóia ou um rebento. No centro da cidade há a árvore cósmica, cujas raízes são os profetas. É uma cidade perfeita, provavelmente inspirada no apocalipse de João e na “Cidade de Deus” de Santo Agostinho (Dronke, 1991). Percebemos muitas características de uma cidade medieval, com os elementos correspondentes e uma cidade celestial com bastante simbolismo. Em outra descrição, a “Visão de Túndalo” (século XII), o “além” ganha mais elementos com o acréscimo das regiões de sofrimento. Nesse caso a narrativa de sua viagem pelo “além” teve a duração de três dias, durante os quais Túndalo esteve aparentemente morto. A narrativa começa com a descida de Túndalo e do anjo que o acompanha ao interior da Terra. O que está, evidentemente, de acordo com a concepção cristã medieval do universo: o inferno fica no interior da Terra, portanto no centro do mundo. Encontramos vários elementos geográficos. Os assassinos sofrem num vale profundo, os traidores são castigados num rio gelado e no fogo, os orgulhosos estão mergulhados em um lago fétido, os avarentos são atormentados num rio de enxofre, entre outros tormentos destinados a cada tipo de pecado. Destaca-se aqui que os sofrimentos são físicos e não espirituais, o demonstra bem o paralelo entre o espaço do “além” e o espaço físico. Após passar pelas regiões do sofrimento, Túndalo e o anjo chegam a um lugar que podemos considerar como sendo a antecâmara do paraíso e depois chegaram ao paraíso propriamente dito onde, como em Hildegarda, há três muros: o de prata, o de ouro e o de pedras preciosas. Continuando a viagem, Túndalo vê uma árvore frondosa carregada de frutas e onde pássaros multicoloridos cantavam melodiosamente (Zierer, 2002). Túndalo vê ainda coros de santos que vestiam roupas brancas e eram belos, alegres e contentes. Há, ainda, o aroma do campo. Mais adiante vê lírios, rosas e outras plantas perfumadas e habitações para os que defenderam a Igreja. Encontramos assim, novamente as imagens do muro e da árvore (acrescentada de pássaros coloridos), o perfume, a música, a vestimenta branca, as habitações para os eleitos (Delumeau, 2003). Além do apelo aos sentidos físicos, destaca-se a oposição entre o local de sofrimento e o paraíso: fedor/perfume, dor/cânticos, fogo/flores. Le Goff e Schmitt resumem bem essas características: O Paraíso é um lugar de paz e alegria, desfrutadas pelos eleitos através de seus principais sentidos: flores e luz para os olhos, cânticos para os ouvidos, odores suaves para o nariz, gosto de frutos deliciosos para a boca, panos aveludados para os dedos (pois os pudicos eleitos vestem, em geral, belas togas brancas, só alguns artistas devolvem a eles a nudez da inocência do Paraíso terrestre antes da Queda). Algumas vezes, o paraíso é circundado de altos muros de pedras preciosas [...]. (2002, p. 28) A Terra já era esférica, novamente, quando Dante Alighieri escreveu a “Divina Comédia”, em pleno século XIV. Foi uma viagem espacial que Dante e seu guia, Virgílio, empreendem. Não uma viagem espacial como entendemos hoje, através de naves altamente sofisticadas, mas uma viagem pelo espaço, por todo o espaço existente na mente medieval. É certo que sua viagem tem um caráter literário muitíssimo mais acentuado que as descrições que citamos anteriormente, mas sua obra Revista História - 131 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. retratou com maestria tanto o espaço físico como o espiritual da Idade Média. O universo cristão correspondia a três regiões, o inferno, o purgatório e o paraíso. Ao tempo de Dante o purgatório já havia se estabelecido como existente na teologia cristã e, portanto, garantia um espaço real para ele. Em Dante o inferno está no subterrâneo, também dividido em círculos como o céu é dividido em esferas. Quanto piores eram os pecados, mais para o centro da Terra ficava a alma e pior eram os castigos. O purgatório é representado por uma montanha, acesso ao paraíso que fica nas alturas. Enfim, o paraíso onde o poeta encontra sua amada Beatriz. A descrição do universo realizada por Dante estava sustentada pelo conhecimento científico da época (Wertheim, 2001). Segundo uma das idéias dessa época, o mundo celeste era diferente do mundo terrestre do ponto de vista qualitativo. O mundo terreno era o lugar dos mortais, sujeitos a degradação do corpo e das tentações do demônio, era o reino do mutável. O domínio celeste era o reino do imutável, composto da substância incorruptível, a quinta essência (diferente das quatro essências materiais, ar, terra, fogo e água), também conhecida como éter – daí a região celeste ser chamada de etérea, mais etérea quanto mais longe estivesse da Terra. Para os homens medievais o mundo físico e o mundo espiritual eram diferentes, mas parte de uma mesma realidade. Dante faz corresponder exatamente cada uma das esferas celestes a uma ordem angélica. Sua inspiração foi a obra “A Hierarquia Celeste” do Pseudo-Dionísio, que por sua vez cristianizou a crença antiga de que os deuses do Olimpo governavam os sete planetas (Delumeau, 2003). É desta época a obra de São Tomás de Aquino, que pode ser considerada o auge do pensamento cristão medieval. Dante e São Tomás de Aquino escreveram suas obras justamente quando profundas transformações na maneira como os homens enxergavam o mundo estavam ocorrendo e obrigariam a uma série de mudanças. Sucessivas adaptações no modelo proposto por Ptolomeu tornaram-no cada vez mais complexo e ele deixou de explicar muitos fenômenos celestes. Porém, esse modelo sobreviveu a muitas transformações históricas e somente veio a receber o primeiro golpe significativo em 1543, com a publicação do livro de Copérnico, “De Revolutionibus Orbium Coelestium”, onde defende a idéia de que é a Terra que gira em torno do Sol; apesar dessa idéia já ter aparecido em um texto anterior, o “Commentariolus”, composto entre 1510 e 1514. Nessa época, em que a esfericidade da Terra já não podia ser simplesmente negada por qualquer um com instrução suficiente, portugueses e espanhóis acabaram por enterrar qualquer outra representação da Terra. O próximo passo na construção do moderno sistema do mundo veio de uma aldeia alemã próxima à Floresta Negra, onde morava a família Kepler. Johanes Kepler (1571-1630) passou por uma infância difícil, mas entrou para o seminário aos treze anos. Sua vida adulta não teve menos dificuldades. Sua mãe, por exemplo, foi acusada de bruxaria numa região onde várias bruxas já haviam sido queimadas entre 1614 e 1629. Além disso, viveu quase na miséria, perdeu três filhos e sua mulher enlouqueceu. Mergulhado no misticismo de sua época, Kepler pretendeu descobrir no universo uma inteligência matemática por trás dos fenômenos, ou seja, Deus. Assim, imaginou um complexo sistema de poliedros sobrepostos em cujo centro estava o Sol. As esferas celestes tentavam salvar-se em forma de poliedros. Em 1609, publicou a obra “A Astronomia Nova”, onde estão as duas leis que revolucionaram a astronomia: a primeira, que afirma serem as órbitas dos planetas elipses e a segunda, que diz que os planetas percorrem áreas iguais em tempos iguais. Com estas duas “simples” descobertas, Kepler eliminava dogmas que haviam dominado a astronomia durante mais de dois mil anos, o princípio de que as órbitas dos corpos celestes deveriam ser circulares e que seu movimento deveria ser uniforme. Kepler nos deu uma descrição do universo muito mais exata do que as tentativas anteriores, mas colocava em questão a perfeição que deveria possuir o espaço celeste. Assim, apesar de dispensar os Revista História - 132 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. poliedros, Kepler conseguiu uma eficiente descrição da geometria e dos movimentos dos planetas e, por conseqüência, eliminou mais um dos pilares que sustentavam a crença nas esferas celestes. As representações, no entanto, não cedem a uma “simples” explicação racional. A tradição não se renderia facilmente às inovações propostas pelos pensadores que fundaram a ciência moderna. No dia 17 de fevereiro de 1600, numa praça de Roma, Giordano Bruno foi queimado vivo nas fogueiras do Santo Ofício. Seu temperamento arrogante e orgulhoso não ajudava a aceitação de suas idéias que eram, sem dúvida, revolucionárias: o universo é infinito e há uma infinidade de outros mundos habitados por outras humanidades. Além dessas idéias a respeito do universo, possuía outras mais heréticas: duvidava da virgindade de Maria e dos milagres do Cristo. De qualquer maneira, a idéia de um universo infinito começava a fazer parte das especulações filosóficas. Ficava cada vez mais difícil imaginar a Terra cercada por finitas esferas celestes. Mas, como já dissemos, a tradição não cede facilmente e, poucos anos depois da execução de Giordano Bruno, Galileu Galilei (15641642) também foi julgado e ameaçado com as mesmas chamas inclementes das fogueiras do Santo Ofício. Mesmo assim, Galileu ajudou a demolir a física aristotélica. Sua grande contribuição foi o método experimental e de observação, desde a famosa experiência na torre de Piza até o uso da luneta para conhecer o céu. A descoberta das imperfeições da Lua, de estrelas que não podiam ser vistas a olho nu, as luas de Júpiter e as manchas solares, demonstrava que o céu não era tão perfeito. Era o mesmo que dizer que o mundo celeste era da mesma natureza no mundo terrestre. Nada de esferas ou coros de anjos, apenas crateras na Lua e luas em outros planetas. As novidades não foram aceitas com facilidade por todos. O próprio uso de instrumentos para observar o céu era motivo de crítica: não seria ele causa de alguma deformação na imagem observada? Para nós, que estamos acostumados a utilizar instrumentos para “ver” melhor a natureza, é estranho pensar que tais instrumentos possam ser acusados justamente de deformá-la. Essa foi uma ruptura importante entre o pensamento medieval e o moderno. Apesar de existirem defensores das idéias de Galileu dentro da Igreja, ele acabou sendo alvo de inúmeras críticas. Diante da insistência dessas, Galileu acabou por abjurar, amaldiçoar e deplorar publicamente as idéias de Copérnico, em 1633. Dessa maneira, no início do século XVII, o sistema de Ptolomeu continuava sendo ensinado, apesar da semente da moderna astronomia já ter sido lançada. Uma prova disso eram as cópias de obras de Galileu, que podiam ser encontradas com facilidade por toda a Europa (Gleiser, 2003). Não nos enganemos, porém, ainda estava longe uma concepção do universo propriamente materialista. Copérnico, por exemplo, chegou mesmo a comparar o universo a um templo magnífico (Delumeau, 2003). Jean Delumeau sugere que a descoberta das órbitas elípticas dos planetas tenha influenciado uma nova forma de construir igrejas, que também passaram a utilizar a forma elíptica ou oval (2003). Ainda, segundo ele, os séculos XVI e XVII foram férteis em visionários, como Santa Tereza D’Ávila que descreve o inferno como um lugar bem material, com rua, fedor, muralha1. Não foi apenas entre os místicos que a religião esteve presente. Essa época que, sem dúvida, começava uma revolução na astronomia, deve ser entendida sem a “higienização” que a posteridade promoveu na biografia de seus personagens. Copérnico, Bruno, Galileu, Kepler estavam imersos numa época em que a astronomia se conjugava com a astrologia e com a magia. O estudioso Rheticus, defensor do heliocentrismo de Copérnico, não hesitou em procurar harmonizar esse sistema com a magia dos números: Podemos encontrar tais descrições em: D’ÁVILA, Santa Tereza. Textes de references: apocryphes - pères de l'église - auteurs chrétiens 1 auteurs antiques. Disponível em: <http://sophie.md.chezalice.fr/NouvOMond/biblioapo.htm> Acesso em: 29 jan. 2006. Também pode ser encontrado em: <http//www.carmel.asso.fr/visionde-enfer-et-fondation-de-.htm>. Acesso em: 21 dez.. 2006 ou ainda em: <http//www.christroi.net/index.php/Mgr_de_S%C3%A9gvr,_L’enfer,_1876>. Acesso em: 21 dez. 2006. Revista História - 133 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Seria possível escolher um número mais apropriado que o número seis? Através de que outro número se poderia mais facilmente persuadir a humanidade que o Universo foi dividido em esferas por Deus, autor e criador do Mundo? Pois o número seis é superior a todos os outros nas profecias sagradas de Deus, tanto quanto para os pitagóricos e os filósofos. O que poderia ser mais conveniente à obra de Deus do que o fato de a primeira e mais bela de suas obras poder ser resumida no primeiro e mais perfeito dos números? (Rheiticus apud Woortmann, 1997, p.113) Como a história é sempre seletiva, nem sempre nos lembramos desse lado místico dos fundadores da ciência moderna dos quais acreditamos descender. Desta forma seria ingênuo acreditar numa evolução linear que começaria com os erros medievais e terminaria com a nossa própria visão do universo. De qualquer forma, as conseqüências teológicas do sistema heliocêntrico levaram a Igreja Católica a combatê-lo e a tardar sua aceitação, o que é um fato histórico amplamente aceito. Porém, as implicações científicas dos trabalhos de Copérnico, Bruno, Galileu e Kepler vão muito além do Vaticano. Uma melhor compreensão do movimento dos planetas abriu o caminho para formulação da lei da gravitação universal, que significou a unificação da mecânica com a astronomia. A compreensão da mecânica celeste trouxe importantes instrumentos mentais para uma nova visão de mundo e acabou abalando o “além” da forma como era imaginado pelos homens medievais. Kepler já havia compreendido que as marés eram causadas pela força da Lua e sugeriu que, se essa força da Lua podia chegar até a Terra, a força da Terra também chegaria até a Lua. Esta idéia era o gérmen do princípio da gravitação universal, problema que, após a morte de Kepler em 1630, receberia as atenções de Isaac Newton. Isaac Newton, filho de camponeses de pouquíssima instrução, estudou de graça no Trinity College, em troca de fazer atividades braçais, como carregar lenha e esvaziar os urinóis. Seu reconhecimento científico veio quando inventou um telescópio que utilizava espelho, menor e mais eficiente que o telescópio de Galileu. Mas aquilo que o deixou famoso foi a demonstração da Lei da Gravidade. A idéia de uma força que atuaria nos corpos celestes já existia, como dissemos, em Kepler, mas o caminho entre a força motora de Kepler e a Lei da Gravitação Universal foi bastante longo. No fim desse percurso, Newton formulou a famosa Lei que afirma: matéria atrai matéria, na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, publicada em 1687, na sua obra “Principia”. O importante para nós é destacar que esta lei é válida tanto para o movimento dos astros como para a queda de uma maçã, ou seja, a terra e o céu obedecem às mesmas leis, a mesma força que sustenta os planetas em torno do sol mantém nossos pés presos no chão (Wertheim, 2001). A representação do céu dividido em esferas perfeitas e de natureza diferente do mundo sublunar deixava de ser sustentável. Apesar de Newton ser muito religioso, era adepto do arianismo, e praticante da alquimia, a conseqüência necessária de suas idéias foi a transformação o céu em um lugar profano. Isso também é conseqüência de outro aspecto de sua descoberta, se a força da gravidade funciona na terra como no céu e a terra é matéria, então, também deve ser matéria os corpos celestes. A matéria passou a reinar em todo o espaço e o céu cristão, habitado pelos anjos e eleitos, teve de buscar morada em outro lugar e foi esse fato que levou Delumeau a afirmar que o paraíso, hoje, somente poderia ser concebido como um não-lugar. Revista História - 134 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Isto não impediu, é claro, que a maioria das pessoas continuasse a acreditar no céu, no purgatório e no inferno. O “além” apenas perdeu seu lugar no espaço físico, ou seja, ele não estava mais acima de nós. Visionários modernos como Emanuel Swedenborg não especificam onde fica o mundo espiritual que descrevem. É um mundo distinto e de localização imprecisa, apesar de estar em contato com o mundo físico. Assim, o mundo espiritual passou a ser imaginado em algum lugar não definido. Em seu livro “O Céu e o Inferno”, que foi escrito “segundo o que foi ouvido e visto” pelo autor, Swedenborg descreve o mundo do “além” enquanto demonstra sua teologia. Segundo ele, há uma correspondência entre as coisas do céu e o homem, ou seja, o microcosmo representa o macrocosmo. Existem três céus e eles são diferentes entre si: o terceiro, o segundo e o primeiro, tal qual o homem possui uma parte superior chamada cabeça, uma parte mediana chamada corpo e uma terceira parte chamada pés. Assim, o homem se assemelha ao céu. Também Swedenborg trabalha com a oposição entre interno e externo. O que fica claro na passagem: “Como todos recebem o céu que está fora deles segundo a qualidade do céu que está dentro deles, todos recebem, pois, igualmente o Senhor, porque o Divino do Senhor faz o céu” (Swedenborg, 1987, p.31). Desta maneira, os indivíduos perceberão Deus segundo suas qualidades internas, isto é, reais. Dentro desta lógica de correspondência entre o céu e a terra, Swedenborg nos informa sobre a vida dos anjos. Primeiro, a comunicação “lá no outro lado” é realizada pelo pensamento. Há uma hierarquia entre os anjos e eles estão reunidos em sociedades diferentes entre si. Estas sociedades de anjos são maiores ou menores e formam-se pela semelhança do bem que cada anjo possui. Mas, numa mesma sociedade há distinção entre os anjos, os que possuem mais amor, sabedoria e inteligência estão no centro, os demais dividem-se do centro para a periferia. Os anjos têm a forma humana, Swedenborg enfatiza esta informação algumas vezes em seu livro. Que os anjos são formas humanas ou homens, é o que vi mil vezes, pois conversei com eles como um indivíduo conversa com outro; ora com um só, ora com muitos em conjunto, e nada vi neles que diferisse do homem quanto à forma. Fiquei até admirado, algumas vezes, que assim fosse. E para que não se diga que era falácia ou visão da fantasia, me foi dado vê-los em plena vigília, ou quando estava em todo sentido do corpo em estado de clara percepção. Eu também contei-lhes muitas vezes que, no mundo cristão, os homens se acham em tão cega ignorância a respeito dos anjos e espíritos, que eles crêem que são mentes sem forma e puros pensamentos de que eles não têm idéia alguma, senão como de alguma coisa de etéreo tendo em si o vital. (1987, p.38) Notamos a importância que o autor dá à visão. Ele reitera a certeza de suas informações com expressões: “vi mil vezes”, “nada vi”, “fiquei admirado”, “visão da fantasia”, “vê-los em plena vigília”, “clara percepção”, “cega ignorância”. Talvez a preocupação com o ver para crer esteja ligada à sua própria condição de vidente, que faz questão de enfatizar que viu até quando estava em vigília, ou seja, dotado das faculdades racionais. É como se precisasse algo mais que apenas o relato das visões para dar credibilidade às suas informações. O céu, formado pelos anjos em forma humana, tem como cenários elementos bem “materiais”, o que é conseqüência natural do sistema Revista História - 135 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. de correspondência que Swedenborg defende. Assim, ele afirma que muitas vezes examinou as árvores, os frutos, as flores e os legumes do céu. Em outro momento do texto ele descreve árvores plantadas em belíssima ordem, combinadas para formarem passeios cobertos, por onde passeiam os habitantes do lugar, colhendo flores para fazer grinaldas para enfeitar as crianças. Há também árvores de espécies desconhecidas do homem. Outra conseqüência da forma humana dos anjos é a necessidade de vestimentas e domicílios. Mas, são de ordem mais perfeita e de acordo com a inteligência de cada anjo. Os mais inteligentes têm vestimentas mais brilhantes, outros menos inteligentes têm vestimentas deslumbrantes e brancas, mas sem lustro, há ainda os que são menos inteligentes e possuem vestimentas de diversas cores. E são roupas mesmo, pois Swedenborg nos informa que os anjos as trocam e pode-se tocá-las. Se o vestuário varia segundo a inteligência do anjo, as residências também. Magníficas para os que são mais dignos e menos magníficas para os outros. Emanuel afirma ter estado nas habitações dos anjos e conversado com seus moradores. Nelas há um grande número de salas, gabinetes e quartos de dormir; pátios, jardins e canteiros. As casas estão dispostas em forma de cidade, com praças, ruas e mercados “absolutamente à semelhança das cidades em nosso mundo” (Swedenborg, 1987, p.85). Mas não somente casas ele viu no céu. Palácios tão magníficos que não pode descrever. No alto brilhavam como se fossem de ouro puro, em baixo como se fossem de pedras preciosas. O interior era decorado de tal forma que não havia expressões ou arte capazes de descrevê-los. Jardins paradisíacos também existem no céu, evidentemente. As plantas tinham folhas como se fossem de prata e os frutos como ouro, as flores se apresentavam como íris. Monumentos arquitetônicos do céu demonstram que a arte mesma procede do céu. Há também templos nos céus e Swedenborg pode assistir suas assembléias. O pregador em pé, no púlpito colocado no oriente, em frente a ele e mais próximos, aqueles que estão mais do que os outros na sabedoria; ao lado desses os que possuem menos luz. A assembléia tem a forma de círculo, para que todos possam estar à vista do pregador. Ninguém fica atrás do púlpito. Os anjos têm uma linguagem e uma escrita. Swedenborg pode ver manuscritos e impressos, mais do que isto foi permitido que ele lesse alguns trechos destes escritos. E escritos em hebraico, mas também com números – cada um com significados diferentes. E como não poderia deixar de ser em um religioso proveniente dos povos “bárbaros”, Swedenborg afirma que a salvação é para todos, mesmo os gentios. Pois ninguém foi criado para o inferno. Os não-cristãos, ou gentios que tiveram uma vida moral e se conservaram na obediência, praticando caridade mútua, são aceitos na outra vida e passam a ser instruídos pelos anjos. Aqueles que morrem ainda crianças, independentemente do batismo, são levadas ao céu onde são instruídas e educadas e se tornam anjos. Pois as crianças que morrem são crianças ainda e não anjos. São cuidadas por uma educadora primeiramente e à medida que vão progredindo recebem orientação de diferentes mestres. De todo modo, elas vivem em estado paradisíaco, como num maravilhoso jardim de infância. Foi-me também mostrado como tudo lhes é insinuado por via de prazeres e de deleites adequados ao seu gênio: foi-me permitido ver crianças vestidas com a maior elegância; tinham ao redor do peito grinaldas de flores que brilhavam de cores agradabilíssimas e celestes, e também ao redor de seus ternos braços. Foi-me uma vez concedido ver também crianças com suas aias, na companhia das virgens, em um jardim paradisíaco Revista História - 136 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. ornado não simplesmente de árvores, mas de berços cobertos de louros, formando pórticos com alamedas que se dirigiam para os interiores; e as próprias crianças estavam então vestidas do mesmo modo; e, quando entravam, as flores por cima da entrada resplandeciam de modo mais encantador. Tudo isso mostra quais são as suas delícias, e como por deleites e prazeres elas são introduzidas nos bens da inocência e da caridade, bens que o Senhor insinua continuamente nesses prazeres e deleites. (Swedenborg, 1987, p.155156) Como o céu é composto pelo gênero humano1, há dos dois sexos lá também. Existem, portanto, casamentos no céu como na terra. No céu o casamento é a conjunção de dois em uma única mente. O marido é o entendimento e a mulher a Para a historiadora Eliane Moura Silva (1997), Swedenborg contribuiu para a antropomorfização do “além”, fora do espaço do catolicismo. 1 vontade. O homem nasce para ser intelectual e a mulher para ser voluntária. O homem age pela razão e a mulher pela afeição. O homem tem a face mais rude, menos bela, o corpo mais duro; a mulher tem a face mais delicada e bela, a palavra mais terna e o corpo mais macio. Segundo Delumeau, Swedenborg teria reativado ou mesmo reforçado a representação do “além” como semelhante ao nosso, onde os anjos são dotados de um corpo com cinco sentidos, que “conserva características materiais, com casas, avenidas, jardins e montanhas” (Delumeau, 2003, p.469-470), ou seja, um “além” acessível à experiência dos sentidos. É justamente a questão da experiência dos sentidos que levou Kant a fazer uma das mais contundentes críticas a Swedenborg. Em seu ensaio “Sonhos de um Vidente”, Kant critica os sonhadores da razão, ou seja, aqueles que acreditam ter visões e também os sonhadores dos sentidos, por acharem que podem ter qualquer conhecimento além da experiência (Perez, 2004, p.73). É a própria crítica iluminista ao que seus representantes chamariam de misticismo. Para Kant, o conceito de espírito e, por extensão, de mundo espiritual, não pode ser obtido pela experiência. Portanto, somente pode ter origem em algum defeito cerebral. Um dos argumentos utilizados por Kant para demonstrar a impossibilidade da existência do mundo espiritual parte do princípio de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Tomai, por exemplo, um espaço de um pé cúbico e suponde existir algo que preenche este espaço, isto é, que se opõe à penetração de qualquer outra coisa: ninguém chamará espiritual o ser que se encontra deste modo no espaço. Seria chamado obviamente material, porque é extenso, impenetrável e, como todo corpóreo, submetido à divisibilidade e às leis do choque. Até ali nos encontramos ainda no trilho batido de outros filósofos. Mas pensai um ser simples de dailhe ao mesmo tempo razão: será que isto preenche diretamente o significado da palavra espírito? A fim de descobrir isto, quero deixar ao dito simples a razão como uma propriedade interna, mas por agora considerá-lo apenas em relações externas. E agora pergunto: caso eu queira pôr essa substância simples Revista História - 137 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. naquele espaço de um pé cúbico cheio de matéria, terá então um elemento simples dele de desocupar o espaço, para este espírito o preencha? Sois de opinião que sim? Pois bem, então o mencionado espaço, para admitir um segundo espírito, terá de perder uma segunda partícula elementar, e assim, finalmente, se se prosseguir, um pé cúbico de espaço será preenchido por espíritos, cujo amontoado resistirá por impenetrabilidade tão bem quanto se estivesse cheio de matéria e Tanto quanto esta terá de ser capaz das leis do choque. [...] Está, pois fora de dúvida que substâncias simples dessa espécie não se chamariam seres espirituais, dos quais se poderia fazer amontoados. (Kant, 2005, p.147-148) avançava sobre o sagrado, agora impulsionado pelas luzes da razão. No entanto, também devemos admitir que as representações do “além” não aceitaram a derrota facilmente e foram buscar fundamentos, muitas vezes, na própria ciência. Assim, uma nova possibilidade para o “além” surgiu com a “quarta dimensão”. Esse conceito poderia salvar a idéia de mundo espiritual da crítica kantiana. A idéia de quarta dimensão, que ficou vinculada ao nome de Albert Einstein, já existia muito tempo antes. Na verdade, ela é conseqüência dos estudos de geometria não-euclidiana do século XIX. objetos de uma gaveta sem abri-la, pode aparecer repentinamente e desaparecer logo em seguida, fazer coisas que são milagres para os seres de apenas três dimensões. A historiadora Eliane Moura Silva faz uma referência a essa possibilidade de entender o “mundo espiritual” como uma quarta dimensão. Hipótese que, segundo ela, seria bastante atrativa para explicar uma série de fenômenos associados ao sobrenatural. Ela cita o historiador Ioan P. Coulliano, Hinton2 creia firmemente que la cuarta dimensión era la explicación definitiva del misticismo y, por lo tanto, creía que las doutrinas místicas eran ciertas y los estados y logros místicos eran reales. Por razones desconocidas tambien creía que existia un alma (separable del cuerpo) capaz de experimentar la cuarta dimensión, y también creía en la bondade fundamental de los seres cuatridimensionales. (apud Silva, 1997, p.21) Em 1854, este novo modo de pensar geometria foi apresentado Bernhard Riemann. As idéias de Bernhard Riemann fizeram com que muitas pessoas começassem a pensar sobre a existência outras dimensões espaciais1. Poincaré explica a possibilidade de uma geometria não-euclidiana e expõe a idéia do tempo como uma quarta dimensão em seu livro “A Ciência e Hipótese”, de 1902. As conseqüências disso são bastante interessantes para nosso propósito. Um ser que esteja numa quarta dimensão certamente possui poderes incríveis: é capaz de atravessar paredes, pode retirar Conforme nos esclarece Pataki: “Sabemos, também, que EINSTEIN (1879-1955) empregou as idéias de RIEMANN na sua Teoria da Relatividade. Para o cientista, o Universo não é Euclidiano e sim curvo, portanto, riemanniano, com quatro dimensões, sendo o tempo a quarta dimensão.” (2003, p.30). 1 Como vemos, apesar de construções mentais como a de Swedenborg, o espaço profano 2 Charles Howard Hinton, matemático inglês (1853-1907). Revista História - 138 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. A melhor maneira para entender essa idéia é imaginar um mundo com apenas duas dimensões, como uma folha de papel. Um ser de três dimensões pode aparecer neste mundo e desaparecer de modo inexplicável para os seres bidimensionais. Poderíamos fazer um objeto “desaparecer” do mundo de duas dimensões apenas “descolando” este objeto de seu mundo. Mais impressionante ainda para os pobres habitantes do mundo bidimensional, poderíamos recolocar este objeto em outro lugar. Esta ação, que é corriqueira no mundo de três dimensões, seria considerada um fenômeno paranormal no mundo de duas dimensões, porque ninguém no mundo bidimensional compreende o significado de “para cima”. Seria possível, também, para nós, seres de três dimensões, fazer previsões sobre o mundo bidimensional. Os habitantes deste mundo não podem esconder nada de nós, poderíamos ler seus pensamentos, como se acredita possam fazer os espíritos em relação a nós. No final do século XIX, a idéia da existência de uma quarta dimensão popularizou-se muito. Em 1884, Edwin A. Abbott (1838-1926) publicou um livro chamado “Planolândia: um romance de muitas dimensões” (2002). Abbott viveu durante a era vitoriana e fez muito sucesso como escritor, educador e teólogo. Foi diretor de uma escola e autor de um importante livro sobre a gramática da língua inglesa. A história é narrada pelo personagem chamado Quadrado, que nasceu em Planolândia (Terraplana seria uma tradução que soaria melhor), um mundo de apenas duas dimensões: largura e comprimento. Quadrado descreve um mundo habitado por diversas formas geométricas que formam uma sociedade de rígida hierarquia, baseada na quantidade de lados de cada indivíduo. Assim, quanto mais lados um indivíduo de Planolândia possuísse, mais alta seria a sua classe social. Os triângulos com apenas dois lados iguais pertenciam à classe mais baixa. Os círculos, que possuem infinitos números de lados, formavam a classe dominante. Entre eles estão as outras figuras geométricas: triângulos eqüiláteros, quadrados e demais polígonos regulares. A sociedade em Planolândia reservava para as mulheres uma posição social ainda mais inferior que a dos triângulos isósceles: seriam apenas segmentos de reta. Quadrado chegou a visitar “outros mundos”, como Pontolândia e Linhalândia, mas nos importa aqui é a sua relação com o mundo de três dimensões. Em certa noite o personagem de Abbott, recebeu a visita de um ser do mundo das três dimensões: uma Esfera, ou seja, um círculo em três dimensões. O Senhor Esfera levou o Quadrado para o mundo tridimensional onde ele ficou maravilhado com tudo o que viu, em especial os cubos, seres que representam a perfeição dele mesmo. Voltando ao seu próprio mundo, Quadrado transformou-se em uma espécie de visionário que fala de outros mundos e acabou preso por suas idéias heréticas. Apesar de ser uma história de ficção, permite verificarmos novas formas de conceber outros mundos, já que as antigas esferas celestes não existiam mais. É possível, ainda, considerar expressões artísticas como o cubismo e o expressionismo manifestações do desagrado dos artistas com um mundo de apenas três dimensões. Tal idéia, é claro, não deixou de chegar ao cinema. Muitos filmes de ficção científica tiveram como tema uma quarta ou mais dimensões. Conclusão Alguns afirmam que o céu cristão já não é possível de existir. Margaret Wertheim (2001), por exemplo, chega a afirmar que a nossa idéia sobre o espaço não permite qualquer lugar para os espíritos ou as almas habitarem. Para essa autora, o espaço físico preenche tudo, não sobrando lugar para o “além”. Evidente, se o espaço físico ocupa todo o universo não há um limite após o qual o “além” pudesse estar. A autora, no entanto, está ciente de que a cultura não possui rupturas assim tão bruscas e percebe que as esperanças do homem voltam-se para Revista História - 139 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. o ciberespaço1, onde, segundo ela, os antigos sonhos do paraíso e da imortalidade poderiam, enfim, ser alcançados. Seguindo outro caminho, mas chegando a conclusão semelhante, Jean Delumeau também vê uma laicização da crença no paraíso – portanto no “além”. Para ele, como para Margaret Wertheim, o avanço da ciência destruiu qualquer possibilidade de acreditar em um “além”, pois o céu e a terra pertencem, hoje, ao mesmo universo. O céu não é, segundo ele, o lugar de Deus, ou ainda, o paraíso não poderia estar no além da morte – agora totalmente vazio de representações -, mas poderia estar nas utopias laicas. Podemos concluir, concordando com ambos os autores, que, com as transformações da revolução científica da era moderna, alterou-se a imagem que os homens têm do mundo. Houve realmente um avanço do profano sobre o sagrado e isto correspondeu a uma hegemonia da ciência como forma de explicar o mundo. Mas devemos relativizar essa afirmação, o próprio esforço de Richard Dawkins em pregar que Deus não existe é sintoma de que o conflito entre ciência e religião está longe do fim. É interessante ver como temos a mesma necessidade de dar forma ao espaço virtual que temos em definir o espaço sagrado, o além, o céu. Pierre Lévy, por exemplo, em seu livro “O Que é o virtual?” (1996), defende a necessidade de uma cartografia do virtual. 1 Além disso, a idéia de que as únicas esperanças que nos restam são as utopias políticas e o espaço virtual parece chocar-se com a crença de milhões de pessoas para as quais o espaço sagrado, povoado de espíritos, ou almas dos mortos, continua existindo. A luta pela conquista do espaço continua. Referências ABBOTT, Edwin A. Planolândia: um romance de muitas dimensões. São Paulo: Conrad, 2002. COSTA, Ricardo. “Olhando para as estrelas, a fronteira imaginária final: astronomia e astrologia na idade média e a visão medieval do cosmo”. Dimensões, v. 14: 481-501, 2002. Disponível em: <http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Di mensoes14_RicardodaCosta.pdf >. Acesso em: 09 jun. 2010. D’ÁVILA, Santa Tereza. Textes de references: apocryphes - pères de l'église - auteurs chrétiens auteurs antiques. Disponível em: http://sophie.md.chezalice.fr/NouvOMond/biblioapo.htm. 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Jorge Amado foi um dos escritores que se destacaram romanceando as terras sul baianas; além disso, vivenciou como expectador o auge do preço do cacau a partir da década de 1920 e a exploração ativa do trabalhador rural naquele período. Portanto, como foi retratada a figura do trabalhador de cacau? Como Jorge Amado auscultava as reminiscências do escravismo brasileiro ainda permeando as relações sociais na cidade de Ilhéus no início do século XX? Foram essas indagações que permearam a sucinta análise do assunto a partir da obra São Jorge dos Ilhéus. Palavras-Chave: Literatura – História – Sul da Bahia – Cacau – Trabalhadores. ABSTRACT This article is to analyze the post-abolition in southern Bahia, from the novel Sao Jorge dos Ilhéus (1944) by Jorge Amado, in parallel with the historical evidence available about the region. Jorge Amado was one of the writers who have excelled romanticizing the lands south of Bahia, in addition, experienced as a spectator of the peak price of cocoa from the 1920's and active exploration of rural workers in that period. Therefore, the figure was portrayed as the worker's cocoa? Jorge Amado auscultated as the reminiscences of Brazilian slavery still permeates social relations in the city of Ilhéus in the early twentieth century? These were questions that permeated the succinct analysis of the subject from the works in the Sao Jorge dos Ilhéus. Keywords: Literature - History - Sul da Bahia - Cocoa - Workers. *** “Quem planta cacau sou eu, Sou eu que colhe ligeiro, Mas aí! mulata, mas aí, Só eu que não vejo dinheiro... Do cacau que se vendeu...” 1 1 Canção do negro Florindo. AMADO, 1961. p.112. Revista História - 141 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Jorge Amado de Faria nasceu no dia 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna - Bahia. Com apenas dez meses, viu seu pai ser ferido em uma tocaia dentro de sua própria fazenda. Em 1932, depois de ter ido estudar respectivamente em Salvador e no Rio de Janeiro, retornou a Pirangi – atual cidade de Itajuípe - e se impressionou com a vida dos trabalhadores da região.1 A partir daí começou a escrever sobre a vida da gente simples do sul da Bahia, conforme ele mesmo destacara em entrevista: “(...) Eu não posso escrever sobre aquilo que não conheço, que não vivi, que não está dentro de mim... Então tenho um conhecimento da vida popular baiana, da cultura popular baiana, do povo da Bahia, realmente íntima, porque desde muito criança convivi de uma forma muito íntima com o povo da Bahia, seja na minha infância nas fazendas de cacau, daí Extraído do site: http://www.releituras.com/jorgeamado_bio.asp em 13 de abril de 2010. 1 toda a parte sobre a região cacaueira, sobre a conquista da terra, a vida dos trabalhadores, a vida dos jagunços, a vida dos coronéis, que está distribuída em cinco livros, né? Cacau, Terras do Sem Fim, São Jorge dos Ilhéus, Gabriela, Cravo e Canela, Tocaia Grande e aquele pequeno volume de lembranças de infância. E também a vida do povo das cidades da Bahia.”2 De fato, acreditamos que muito dessa inspiração também seja motivada por razões políticopartidárias do escritor, que era simpatizante do comunismo, e imprime à sua obra um tom de crítica social à situação de miserabilidade em que viviam os trabalhadores do sul da Bahia.3 De acordo com Ceslete Maria Pacheco de Andrade, assim como o historiador, o escritor também é um homem de seu Extraído em “Jorge Amado: um homem feliz com a vida”. Disponível em: http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/jamado.htm, acesso em 13 de abril de 2010. 3 Os romances que estou chamando de trilogia do cacau referem-se a: Cacau (1933), Terras do Sem Fim (1943) e São Jorge dos Ilhéus (1944). tempo que está impregnado pela conjuntura de sua época; dessa forma, expressa, através da literatura, as limitações da sua época e da sua cultura. Refletindo sobre o estudo do imaginário,4 Andrade conclui que: “É comum os escritores buscarem, no acontecimento histórico, uma forma de representar uma dada realidade, retratar uma época e uma sociedade. Também é frequente os escritores utilizarem a história como fonte de inspiração para a sua imaginação criadora e como temática para os romancistas”. 5 Por tal razão, acreditamos que muitos dos indivíduos que viveram na região cacaueira podem ter servido de inspiração para nosso escritor: pessoas simples ou mesmos os grandes da terra vivenciaram uma conjuntura onde os processos de ocupação de terras eram forjados em cartórios da 2 O Imaginário aqui é entendido como atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta, definindo e qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário representa também o abstrato, o não-visto e não-experimentado. 5 ANDRADE, 1996, p.9-21. 4 Revista História - 142 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. cidade para servirem de fundamento jurídico na expropriação das roças já ocupadas pela gente comum local. Isso transcorria em um momento em que a quantidade de pés de cacau era determinante para manter a riqueza e o poder de uma elite em plena ascensão. Na década de 1880, o cacau já era a principal riqueza não somente do município de Ilhéus, como de boa parte das vilas da região, tornando-se, em pouco tempo, o principal produto de exportação da Bahia. 1 Nas décadas seguintes, verificou-se ainda mais essa tendência: de acordo com o Recenseamento Geral de 1920, o município de Ilhéus era o maior produtor de cacau do Brasil. Em números isso correspondia a 41, 2% de toda a produção de cacau do Estado.2 As fazendas de Ilhéus estavam entre as propriedades mais caras da Bahia e adquiria a oitava posição no ranke nacional de acordo com o Censo.3 Nesse período em que a terra valia mais do que a vida do ser humano,4 temos indícios de que, Aguiar, 1979, p.263-268. Extraído da biblioteca digital do IGBE. Disponível em: RecenGeraldoBrasil1920_v3_Parte2_Agricultura, acesso no dia 21/04/2010, p.35. 3Extraído da biblioteca digital do IGBE. Disponível em: RecenGeraldoBrasil1920_v2_Parte2_Agricultura_e_Industrias, acesso no dia 21/04/2010, p.23 - 46. 4 Jorge Amado faz a seguinte referência a esse fato: “(...) Aqueles homens que não sabiam ler nem escrever, que vinham das lutas pela conquista da terra, muitos deles, um misto de camponeses e assassinos, tinham certa apatia diante da miséria que os dobrava escravos. Só uma palavra chegava a interessá-los: terra” (AMADO, 1961. p.7). Nem 1 após a abolição do trabalho escravo no Brasil, parcela considerável dos libertos que viviam em Ilhéus permaneceram trabalhando nas fazendas de cacau, até porque a região não oferecia outras oportunidades de emprego. Em depoimento a André Luis Rosa Ribeiro, um dos descendentes da família Lavigne relata que: “Louis Lavigne possuía escravos, o pessoal ficou todo trabalhando com ele. Ele precisava de pessoal para habitar, trabalhar lá”.5 Podemos desconfiar do fato exposto, até porque em uma região em que despontava o cacau, possuir terras significava concentrar riqueza e status social. Nessa perspectiva, questionamos a legitimidade da ocupação das terras: muitas propriedades no sul da Bahia que pertenciam à União durante o processo de expansão da lavoura cacaueira acabaram sendo concentradas nas mãos de fazendeiros locais, até porque os limites de propriedades em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX não estavam bem definidos; logo, eram muito instáveis os limites demarcatórios das propriedades particulares e de domínio da União.6 Então, até que ponto pode-se considerar que Louis Lavigne não cedeu um pedaço de terra que, há muito, já era consensualmente de uso consuetudinário dos libertos? São ainda muito nebulosas as razões que levaram a esse e outros indivíduos a “doarem” parcelas de terras a seus excativos, se isso de fato aconteceu. Sabemos que, pelo menos inicialmente, os libertos optaram por permanecer nas propriedades onde tinham sido escravizados, mas nessa conjuntura do pós-abolição, procuraram estabelecer novas relações de trabalho.7 Entretanto, intriga-nos saber como se construíram essas relações de trabalho já que se mudam os papeis sociais desses indivíduos - o senhor virou patrão de uma massa de indivíduos que até outrora eram seus escravos. Em Jorge Amado, são notórias as inúmeras referências aos personagens de traços negroides – servindo de indicador de que poderiam ser libertos ou descendentes. Os homens e mulheres geralmente aparecem descritos como negros ou mulatos, observe o seguinte trecho da obra São Jorge dos Ilhéus: “Os caminhões penetravam pelo fundo em marcha – a – ré, carregadores levavam os sacos às costas, iam dobrados com o peso. Os 2 sempre a terra chegou a valer mais que o ser humano, no período escravista, era o cativo que valia que qualquer bem dentro de uma propriedade MARTINS, 1986, p.31-2. 5 RIBEIRO, 2001. p.61. 6 Segundo André Rosa Ribeiro, as propriedades negociadas possuíam títulos de escrituras e limites estabelecidos por marcos de pedras legitimados pelo reconhecimento mútuo, prática essa que sobreviveu na demarcação das fazendas de cacau, sendo raros os cercamentos. RIBEIRO, 2008, p.30. 7 CASTRO, 1995. p.292. Revista História - 143 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. sacos caíam com um baque surdo nos caminhões, os choferes punham os motores em marcha, arrancavam pela rua, paravam no cais. Novamente vinham carregadores e novamente curvavam suas costas sob o peso da carga. Corriam pela ponte, pareciam seres estranhos, negros de espantosas corcundas”.1 O trabalhador de fazenda é o foco principal nos romances de Jorge Amado, que fazem parte da “trilogia do cacau” 3, e não são raros os momentos em que os mesmos são comparados a escravos. Mas será que esses indivíduos recebiam essa alcunha somente porque exerciam um trabalho de nível degradante? Vejamos algumas exposições do escritor em Terras do Sem Fim: “O comandante parou, olhou o mulato que sonhava. Virou-se para o imediato...: -Por vezes me sinto como o comandante de um daqueles navios negreiros do tempo da escravidão... Como o imediato não o respondesse, ele explicou: -Daqueles que em vez de mercadorias traziam negros pra serem 4 escravos....” São esses seres estranhos que faziam os serviços braçais, tanto na zona urbana da cidade quanto nas fazendas de cacau, em geral são negros carregadores, mulatas prostitutas, alugados, tropeiros, trabalhadores da fábrica de cacau2 e encarregados de fazenda. Se parcela considerável veio de outros estados e de outras cidades da Bahia, quase todos estavam fadados a permanecerem nos trabalhos que envolviam a produção, ensacamento, beneficiamento e transporte do cacau para o exterior. AMADO, 1961. p. 18. A fábrica de cacau aqui é uma sutil referência à Usina Vitória que iniciou suas atividades em 1927 e que pertenceu a Hugo Kaufmann. Guia Turístico do Cacau, 1964, p. 79; AMADO, 1961. p.71. Juridicamente, esses homens e mulheres pobres do romance são livres, mas devido à conjuntura política em que se construíram as bases republicanas no país, podemos considerar que as camadas menos abastadas da sociedade estavam política e socialmente excluídas. De acordo com José Murilo de Carvalho, a Constituição Republicana “(...) Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemocrática e resistente a esforços de democratização”.5 É, nesse contexto, que se dava a usurpação da terra: indivíduos pobres sem o título de propriedade foram marginalmente expulsos de suas propriedades e, não foram raros os momentos em que o uso da força, coerção e violência eram aplicados no Brasil e, particularmente, no sul da Bahia onde os grupos privilegiados constituíram suas riquezas a partir da apropriação de terras produtivas.6 É mister ressaltar que, durante o final do século XIX e início do século XX, houve conflitos entre fazendeiros e pequenos roceiros sobre a posse da terra. Muitos desses roceiros foram descendentes ou mesmo poderiam ter sido ex-escravos nas fazendas que, durante o pós-abolição, vieram a perder suas pequenas propriedades devido ao fato de não possuírem o título das terras. Soma-se a isso a ausência de apoio da justiça local ou estadual. Em São Jorge dos Ilhéus, encontramos o seguinte trecho 1 2 Ver a tríade de livros: Cacau, Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus. Destaques do autor. 4 AMADO, 1957. p.44. 3 CARVALHO, 2004. p.45. Para uma melhor discussão sobre o assunto consultar: FRANCO, 1969. p.143 5 6 Revista História - 144 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. alusivo ao período: “Eu era menino no tempo da escravidão... Meu pai foi escravo, minha mãe também... Mas não era mais ruim que hoje... A coisa não mudou, foi tudo palavras...” 1 Jorge Amado ao inferir essa e outras referências sobre ao trabalho cativo ou mesmo sobre as relações trabalhistas envolvendo patrão e empregados, poderia ter-se utilizado da memória familiar ou mesmo local que, de tempos em tempos, traziam à baila temas tidos como ofensivos à moral das autoridades municipais e a de algumas famílias integradas aos círculos de poder local; como exemplo, matéria publicada na Gazeta de Ilhéus, no dia 21 de junho de 1903. “Muita gente, aqui recém chegada ignora que o Sr. Ernesto Sá opozera-se a extração do barro para concluir-se a grandiosa obra do cais da cidade, que está prestando os melhores serviços. Muitos não o suporiam tão mesquinho e tão inimigo desta terra, onde se não enriqueceram, foi certamente por preguiça, pois até escravos, em grande número, não lhe faltaram, daqueles do tal barco que deu á costa do Itahype, em 1851, se não me falha a memória, e que foram quase todos divididos pelo Ernesto, seus parentes e autoridades da comarca, que não devim consentir na vergonhosa distribuição, em virtude da lei vigente prohibitoria do tráfico.” 2 Poucos relatos documentais semelhantes a esse sobreviveram às ações do tempo, mas não podemos nos esquecer de que muito dentre os fatos, acima publicados, podem ter sido utilizados no discurso oral dos grupos oposicionistas locais e serviram de inspiração para a literatura “negra” de Jorge Amado. Contudo, é na experiência vivida, que Jorge Amado nos coloca a par de seu olhar Gazeta de Ilhéos, Folha 1. Matéria intitulada “Indirectas”. 21 de junho de 1903. Ed. N° 216. Autor: Philaréte. 2 1 AMADO, 1957, p.104. romancista para entendermos as relações sociais arraigadas nas fazendas de cacau. A conotação que o autor confere às obras remete sempre o leitor ao pátio da “casa-grande”. É fato que essa nomenclatura era usada para as residências onde viviam fazendeiros abastados no período escravista, Jorge Amado não se faz de rogado e continua a usar a mesma designação para a composição arquitetônica que existia nas fazendas de cacau. Entretanto, ao fazer referências à habitação dos trabalhadores expõe a rusticidade daqueles lugares que serviam de residência para um grupo de três ou quatro pessoas: geralmente eram casas de palha com poucos móveis enquanto o “senhor” residia na “casa-grande” que se despontava na paisagem bucólica das fazendas do interior baiano. Posicionamento díspar ao de Jorge Amado, consta em um relatório de 14 de junho 1926, no qual o chefe do executivo municipal - na época, Mário Pessoa da Costa e Silva – remetera para um funcionário do governo estadual, demonstrando as facilidades que tinham os trabalhadores agrícolas: “A diária do trabalhador é de Rs 4$000....Os administradores ganham de 200$000 a 300$000 mensais...As fazendas ficam à margem da Estrada de ferro são Revista História - 145 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. servidas de luz elétrica, telefone, médico, farmácia, tendo, a pouca distância, cinemas e outras diversões. – Em muitas fazendas já há casas mais ou menos confortáveis para trabalhadores, e possuem estufas e instalações regulares.” (CAMPOS, 2006. p.608) Se a abolição não provocou o distanciamento dos libertos de seus antigos senhores, nenhuma ou muito pouco foram as oportunidades conquistadas após esse período; pois, segundo Florestan Fernandes, “só o vício e o crime ofereciam saídas realmente brilhantes ou sedutoras de carreiras rápidas, compensadoras e satisfatórias”.1 Em resumo, as oportunidades oferecidas para os afro-descendentes após a abolição estavam longe de oferecer dignidade e oportunidades de ascensão social. Pelo relatório, as condições de vida dos trabalhadores rurais eram relativamente boas. Desse ponto de vista, poderíamos sugerir que as relações de trabalho seguiam o mesmo padrão? Num país onde até a década de 1930 não tínhamos uma legislação 1 FERNANDES, 1978. p.146. trabalhista e nem sindicatos potencialmente capazes de minimizar as atrocidades cometidas pelo patronato, até que ponto podemos confiar no conteúdo desse relatório tendencioso? É característico das primeiras décadas do século XX um rearranjo do tecido social: o povo pobre expropriado continuava a lutar pela ampliação dos direitos civis, enquanto os grupos elitistas da sociedade delineavam uma política de manutenção a partir de suas prerrogativas. O liberto que se encontrava expropriado do capital resistia à ação burguesa e capitalista, mas de acordo com Sidney Chalhoub, acabou sendo forçado a se inserir na “(...) construção de uma nova ideologia do trabalho e à vigilância e repressão contínuas exercidas pelas autoridades policiais e judiciárias”.2 Além do controle policial3, existia no interior das fazendas o poder simbólico4 do coronel e de seus encarregados. Esses últimos, apesar de serem empregados comuns que tiveram a sorte e/ou a oportunidade de galgar uma posição melhor, mantinham-se indiferentes ao ritmo de trabalho e às condições em que estavam submetidos os outros CHALHOUB, 2001. p. 47. 3 Cito aqui a título de exemplo o trabalho de GUIMARÃES, 2006. 4 O conceito de poder simbólico utilizado neste texto é o de Pierre Bourdieu do qual a classe dominante impõe sua legitimidade pelo uso da força que “(...) é esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. BOURDIEU, 2007, p.7-8. Para Raymundo Faoro, o coronel, não manda porque tem riqueza, mas manda porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não escrito. FAORO, 1991. p.622 trabalhadores. Observe a referência encontrada na obra do Escritor: “Sempre mais depressa, essa é a lei dos ‘alugados’ nas fazendas de cacau. ‘Mais depressa ‘, grita Tibúrcio do alto de seu cavalo, o relho na mão, o relho que por vezes desvia das ancas do animal para as costas de um homem que 5 protesta”. O relho que, outrora servira para o castigo dos cativos, estava servindo como instrumento de opressão dos libertos. Temos fortes indícios para acreditar na versão do romancista até porque era prática corrente na época utilizar a força contra os empregados rurais. Em entrevista a um neto de escravos de Juiz de Fora, Elione Silva Guimarães, menciona o seguinte fato: “O sr. Francisco também informou que os negros eram sempre chamados pelos 2 5 AMADO, 1961, p. 109. Revista História - 146 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. ‘brancos’ de ‘crioulinhos’, ‘macacos’ e ‘bicho da orelha redonda’; que eles não tinham a quem reclamar contra os maus-tratos e quando se queixavam nas fazendas, do tratamento que recebiam dos administradores, apanhavam”.1 punham crianças para trabalhar nos campos e nas barcaças de secagem. Cada braço era tão valioso que os plantadores tratavam estas crianças como mão-de-obra cativa, mesmo após a promulgação da Lei do Ventre Livre (...)”.2 Apesar de ser um universo predominantemente masculino, crianças e mulheres também faziam parte do cenário em uma lavoura de cacau, ambos geralmente trabalhavam para complementar a renda da família. O uso da mão-deobra de crianças era utilizado em Ilhéus desde o tempo da escravidão e chegou a gerar, em vários momentos, disputa pela sua força de trabalho. Ainda no pós-abolição, temos indícios de que as crianças eram utilizadas como mão-de-obra nas fazendas de Ilhéus e, muito pouco essa situação modificaria nas próximas décadas do período republicano. Segundo Kátia Mattoso, durante o período escravista, uma criança começava a trabalhar a partir dos 8 anos de idade3. Presumimos que foi, nessa faixa etária, que as crianças “livres” eram exploradas nas lavoras de cacau. Nosso romancista assim descreve o trabalho infantil nas fazendas: “Os plantadores de Ilhéus estavam tão desesperados por mãode-obra, e o cacau tornava tão útil cada ser humano numa plantação, que eles “[Dona Auricidia] Ela diz que todos viram anjo no céu , de assas de beija-flor. Os que não viram anjos, viram 2 1 GUIMARÃES, 2006, p.315. 3 MAHONY, 2001. p.114. MATTOSO, 1988. p.39-43. trabalhadores, comem o sol do meio-dia nas costas nuas, é como um chicote. (...) os frutos caem das árvores, os meninos levam, correndo, as mulheres partem com um golpe seco de facão. Às vezes uma corta a mão, um golpe mal calculado, cobre o talho de terra, derrama visgo de cacau em cima”.4 Também aqui não cabe a primazia do uso da mão-de-obra infantil somente ao sul da Bahia. Elione Silva Guimarães destacou que, no pós-abolição, a tutela de menores fora um dos mecanismos mais usados, principalmente, pelos ex-senhores de escravos como alternativa para a falta de braços. Em geral, utilizava-se do argumento de pobreza ou do padrão comportamental dos pais das crianças para conseguirem a guarda provisória e, em muitos casos, o que era para ser provisório acabava sendo definitivo até que os tutelados pudessem dirigir suas próprias vidas. 4 AMADO, 1961, p.113. Revista História - 147 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Essas “crias de casa” serviam nos mais diversos afazeres; conforme relato do memorialista Pedro Nava: “Elas carregavam menino, traziam água, varriam aqui, espanavam ali, serviam mesa, apanhavam fruta, lavavam roupa, quebravam louça (...) E continuavam a ser sexualmente exploradas”.1 Infelizmente, não temos pesquisas que tenham investigado o uso de crianças na lavoura de cacau. Jorge Amado também faz referências às mulheres da fazenda, em muitos casos, depois de defloradas pelos sinhôs acabavam se tornando as prostitutas que invadiam a orla próximo ao porto de Ilhéus ou nos subúrbios de Itabuna. Mas em relação às mulheres dos trabalhadores não mais que “(...) molambos; sim, molambos negros, molambos mulatos, de seios flácidos, e pele batendo no umbigo, de rostos feios, de pernas sujas e feridas, de sexo malcheiroso. Mas, ah! São mulheres! (...)”.2 Não raro eram as presenças de crianças e mulheres na agricultura do sul da Bahia que os mesmos não passaram despercebidos pelos funcionários do precário Censo de 1920, conforme quadro abaixo: Recenseamento Geral do Brasil 1920 – População de Ilhéus3 GUIMARÃES, 2006, p. 133. AMADO, 1961. p. 115. 3 Extraído em: RecenGeraldoBrasil1920_v4_Parte5_tomo1_Populacao no dia 26 de abril de 2010. O número de crianças e adolescentes4 é bastante considerável se levarmos em consideração que são braços auxiliares na fazenda de cacau, principalmente quando usadas nas pequenas tarefas da plantação, tais como: transporte de pequenos cestos de cacau, etc.. O vai-vem de crianças nas lavouras de cacau era prática corrente desde o período escravista, de acordo com Isabel Cristina Ferreira dos Reis, entre 1874 a 1886 foi registrado pelo Fundo de Emancipação de Escravos em Ilhéus um número considerável de crianças, muitas delas consideradas aptas para o serviço da lavoura com 12 anos de idade. “Entre os 62 menores de 15 anos, observamos que, no item “profissão”, 43 (69,3%) aparecem como trabalhadores de lavoura (20 meninas e 23 meninos) e 17 (27,4%) eram do serviço doméstico (15 meninas e 2 meninos); um era carpina”.5 Já quando se trata das mulheres, podemos questionar o quantitativo expresso no Censo: 1 2 Não podemos deixar de lembrar que no Brasil a maioridade “plena” até pouco tempo só era conquistada aos 21 anos. 5 REIS, 2007. p.266. 4 praticamente, não chegam a 1/3 da mão-de-obra. Será que a participação fora tão insignificante assim? Ambos, crianças e mulheres eram partes integrantes do cotidiano de uma fazenda, pois em última instância, representavam melhorias da condição de vida para suas famílias. Por fim, colocamos no quadro acima números que expressam profissões “mal definidas”, mas consideramos que essa classificação deva refletir as inúmeras pessoas que não tinham um emprego fixo nas propriedades agrícolas do município. Apesar de ser uma mão-de-obra flutuante, eram utilizadas principalmente, nas épocas de colheita e, consideramo-las de igual importância para a dinâmica da fazenda. Para tanto, utilizaremos o estudo da Angelina Nobre Rolim Garcez que, apesar de não conceitualizar os tipos de trabalhadores das fazendas de cacau, faz uma breve análise da situação da mão-de-obra empregada nas fazendas: “O uso de determinada quantidade de mão-deobra durante a safra e a redução de pessoal empregado após a mesma, foi prática corrente na lavoura cacaueira. O aproveitamento de mãode-obra de baixo custo Revista História - 148 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. durante a safra beneficiou largamente o empregador, assim como influiu para diluir o poder de força de trabalho no cacau, pelo seu caráter transitório”.1 sofrer passivamente todas as vicissitudes da exploração do seu trabalho. Logo as primeiras dificuldades o abandonará em busca de situação mais favorável. (...) e, portanto de poucas disponibilidades de mão-de-obra, forçará a adoção de um sistema de relações de trabalho que obrigasse o empregado, embora juridicamente livre, a conserva-se no seu lugar. O processo que mais se difundiu no Brasil será o de reter o trabalhador por 2 dividas.” A guisa de conclusão... Fosse homem, mulher, criança, jovem ou adulto, todos estavam aptos para o trabalho regular nas plantações de cacau. As relações de trabalho se ajustavam em uma época em que ainda eram evidentes os resquícios de um passado escravista de natureza patriarcal e socialmente excludente. Momento em que inexistiam as associações de classe que lutassem pela melhoria das condições de vida e de trabalho da população rural iletrada, despossuída da cidadania e arraigada a meios sócio-culturais quando o desnivelamento social estava presente diaa-dia. São sobre esses trabalhadores que Caio Prado comenta: “O trabalhador livre não estará, como escravo, preso a seu empregador e obrigado, por isso, a 1 GARCEZ, 1975. p.52. Jorge Amado pode não ter convivido com os libertos ou seus filhos, mas soube retratar, na forma de narrativa literária, as vivências dos trabalhadores do cacau do sul da Bahia; enfim, através da literatura amadiana foi possível fazer um paralelo com fragmentos da realidade histórica. Nesse 2 PRADO JUNIOR, 1998. p.212. sentido, supomos que a massa de trabalhadores cativos advindos do tráfico de escravos em meados do século XIX, contribuiu significativamente para a expansão da monocultura cacaueira, sendo que, durante as décadas posteriores ao pós-abolição mantiveram em ritmo acelerado a produtividade agrícola regional, onde nem sempre as condições de vida e trabalho eram condizentes com a conjuntura nacional. Bibliografia: AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições práticas da província da Bahia: com declaração de todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979. AMADO, Jorge. Terras do sem fim. 8. ed. São Paulo: Martins, 1957. _____________. São Jorge dos Ilhéus: romance. São Paulo: Liv. Martins Ed. 1961. ANDRADE, Ceslete Maria Pacheco de. A literatura no ensino de história da Bahia: a obra de Jorge Amado. Sitientibus, nº 14, Feira de Santana, 1996. p.9-21. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 11. ed. 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Resumo Nesta resenha apresenta-se um conjunto de artigos de pesquisadores da literatura e da história cujo tema central é o desejo e as análises pautam-se em problemáticas contemporâneas em torno dos corpos e da forma como eles nos têm sido produzidos e apresentados. A grande maioria dos textos almeja a desconstrução de um ideal heteronormativo para os seres humanos vislumbrando outras possibilidades para as existências corporais. Abstract This review presents a series of articles by researchers of literature and history whose central theme is the desire and analysis are guided in contemporary issues around bodies and in the way they have been produced and presented. The vast majority of texts aims at deconstructing a heteronormative ideal for human beings glimpse other possibilities for the stock body. Revista História - 150 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. Esta coletânea de artigos1 reúne pesquisas interdisciplinares que transitam pela literatura e a história. As análises são tomadas por conceitos como poder, desejo e sexualidade. Outras categorias não menos revelantes como sexo e gênero povoam grande parte das análises. O conjunto da obra é composto por oito textos que nos revelam problemáticas contemporâneas em torno dos corpos e da forma como eles nos têm sido produzidos e apresentados. Os textos em sua maioria almejam a desconstrução de um ideal heteronormativo para os seres humanos vislumbrando outras possibilidades para as existências corporais. No primeiro texto, Aguinaldo Rodrigues Gomes “Representações e Práticas Sexuais na Antiguidade” discorre sobre a obra “Ilíada” de Homero, a luz de teoria pós-feminista do tempo presente. O autor ora fundamenta-se nas construções heteronormativas ora nos dados biológicos para analisar a constituição de corpos e possibilidades para o desejo. O enfoque literário pauta-se nas relações afetivas entre homens na Antiguidade Clássica. Essas práticas, segundo Gomes, remetem a entender aqueles corpos como abjetos porque não se enquadravam no modelo ideal de materialização dos corpos e, portanto nos defrontam com o limite porque oferecem o exterior ainda tão necessário para GOMES, Aguinaldo Rodrigues; NETTO, Miguel Rodrigues de Souza (orgs.) Poéticas do Desejo. Campo Grande: Editora Life, 2010, 192 p. 1 estabelecer as fronteiras entre os corpos que importam e aquelas aos quais não se atribui nenhuma significância. O texto que segue “O Sexo Proibido e Prostituição na Cidade de Baudelaire” é de Marcos Antonio de Menezes e tem por pretensão expor as representações do poeta francês sobre as relações afetivas e sexuais com e entre mulheres prostitutas na cidade moderna. Na cidade de Baudelaire os sonhos proliferam, o fantasma da liberdade gruda no transeunte e os sentidos vão se embaralhando. Eis que surge um novo imperativo na vida de muitas pessoas: o mercado e assim quase tudo esta transformado em mercadoria inclusive a literatura de Baudelaire. Nesta situação o poeta se compara às mulheres prostitutas que também vendem a si próprias disputando também espaços de sobrevivência. A prostituição em um sentido amplo simboliza esta nova cidade. É o escárnio da vida moderna onde os “sujos” da história tem visibilidade no trabalho de Baudelaire. Conforme o autor, este poeta trouxe a tona aqueles corpos que a modernidade capitalista varria para debaixo do tapete. “Magistrados e Homossexuais: saber jurídico e homossexualidade no Brasil da Belle Époque” é o tema desenvolvido por Carlos Martins. O autor desenvolve uma acurada análise sobre as transformações no espaço urbano do Brasil no final do século XIX e início do século XX. Neste período, emergem nos discursos pessoas perigosas entre os quais os trabalhadores radicais, as prostitutas e os homossexuais. O crime sexual estava na ordem do dia e deveria ser punido exemplarmente quer seja os crimes contra a honra da mulher e os atentados ao pudor. O autor analisa algumas produções brasileiras de juristas do período que remontavam ao clássico estudo lombrosiano sobre a caracterização biológica do criminoso. Assim a homossexualidade foi considerada pelo saber médico como aberração, uma doença e, portanto foi criminalizada pelo saber jurídico conforme estudos de caso apontados pelo autor no seu texto. O autor ainda destaca que os saberes médicos ao enquadrar as práticas “desviantes” como uma doença a ser erradicada colocavam-se como os salvadores dos homossexuais e dos loucos. Edelberto Pauli Junior nos presenteia nesta obra com o texto “Arte de ornar e de dar prazer: Uma leitura do conto Fugados de Lezama Lima”. Segundo o autor, o escritor cubano Jose Lezama Lima delineia neste conto o mecanismo da dobra cuja característica é a desaceleração da narrativa permitindo ao leitor uma atitude mais contemplativa, ou seja, os objetos são considerados em sua simultaneidade e vistos como uma espécie de espetáculo. No conto relata-se o encontro de dois amigos que decidem passear ao invés de freqüentar a escola. Na trama chega mais um personagem masculino e retira um dos amigos da cena. Na cena seguinte cria-se o sentimento da perda, do vazio deixado pelo amigo o qual será preenchido Revista História - 151 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. por arriscadas aventuras amorosas que misturam práticas de orgias e de dor. Para Pauli Junior, a metamorfose de um dos personagens traz a tona a dobra da qual emergem as descrições narrativas sobre o desejo pelo desconhecido, instável e imprevisível. O quinto capítulo discorre sobre o tema: “O Inominável do Desejo: uma visão discursiva do homoerotismo” e é de autoria de Peterson José de Oliveira. Neste texto, o autor elegeu a canção “Sussuarana” e o conto “O Companheiro de Quarto” para discutir as identificações homoeróticas e o ideal normativo heterossexual a partir da teoria da recepção, a construção do sujeito e das subjetividades. Embora a canção não possua marcas textuais que indiquem o sujeito masculino ou feminino o texto pode ser lido como uma relação proibida entre homossexuais. Já no conto aborda-se a solidão, o isolamento e o silopsismo do sujeito na modernidade tardia. No conto, dois jovens dividem um quarto e a narrativa centra-se em um período de estranhamento cultural entre ambos. Esta situação é reforçada pela presença de um vaso no quarto com uma planta, a qual pertence ao personagem de descendência oriental. Esta planta simbolicamente será o objeto de intriga, de desejo e de encantamento pelo narrador do conto, que é também um dos moradores do quarto. Para José de Oliveira, a planta tinha um papel metonímico, ou seja, representava o próprio oriental com seus cheiros e sua beleza e o insuportável desejo do narrador pelo corpo deste jovem. Por fim, o narrador destrói o vaso para se livrar da sedução exercida pela planta. Para Oliveira, ambos os textos nos revelam sujeitos em trânsitos de identificação e esse desejo inominável e silencioso deveria ser dito, ouvido, expressado para dar voz ao sujeito do desejo. No próximo capítulo “ A Princesa e a Serpente: uma leitura do conto Uma Carta, de Sérgio Sant’anna”, Cesar Mota Teixeira nos apresenta uma análise de uma carta longa e minuciosa escrita por uma mulher para seu amante depois de um único encontro casual em uma cidade do interior. Nesta carta há uma profunda ironia ao tempo vivido na modernidade, ou seja, o tempo da pressa, do acaso e da contingência e aos velozes meios de comunicação como a internet. Para o autor, a escolha de um gênero narrativo antigo, considerado anacrônico no tempo presente e escrito por uma mulher, resgata a riqueza de detalhes da experiência cotidiana. Segundo Teixeira, a carta-conto é um dos poucos lugares da arte para a reflexão sobre a condição humana. Esta carta permite a liberdade para expressar os desejos e para aguçar a imaginação e a fantasia da narradora e dos seus leitores. O sétimo capítulo “O Desejo Revelado” escrito por Miguel Rodrigues de Sousa Netto revela parte do contexto histórico vivido por João Silvério Trevisan através de uma breve biografia, cuja ênfase recai sobre sua ida ao EUA e o movimento da contracultura. A partir das vivências e percepções de Trevisan, Netto analisa então o conto “Cruel Revelação” no qual um jovem revela ao irmão mais novo que é homossexual. A partir da revelação o irmão reage através da vergonha, busca consolo em um muro e com uma amiga. Na narrativa de Trevisan enfatiza-se o sofrimento advindo com a revelação. Este sofrimento pode representar uma ruptura na forma como percebemos o desejo e como historicamente o modelo binário homem/mulher naturalizou as coisas ditas, mas nem sempre as sentidas. O último artigo do livro “Gênero e Participação Política Feminina no final do Século XIX” foi escrito por Claudia Graziela Ferreira Lemes no qual constrói relações dos movimentos de mulheres e feministas no Brasil com outros países do Ocidente. As reivindicações em torno do voto, o direito à educação, profissionalização, herança, a casamentos não arranjados e ao trabalho remunerado eram pauta destas lutas. Uma das formas de disseminação destas idéias no Brasil foi através da criação da imprensa feminina. Os jornais tornam-se então os porta-vozes dos anseios das mulheres, nos quais inicialmente busca-se o sufrágio feminino. Além dos jornais feministas, Lemes observa a grande relevância do movimento de mulheres organizados por Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura. Elas criam a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e partir desta, várias organizações feministas espalham-se pelo país. Para Lemes, a Revista História - 152 Ano 2, Vol. 1, Núm. 1 – ISSN 1983-0831 – Edição 2011. constituição de 1934 registrou o direito ao voto conquistado incansavelmente pelas mulheres brasileiras em 1932. A partir daí novas conquistas gradualmente inseridas na política brasileira mostravam que a luta feminina persistia. Este é o conjunto da obra, cujos textos em sua maioria têm o desejo na centralidade do debate que clama por uma historicidade e por significações. Estas análises almejam um campo de possibilidade de reflexões e de vivências aberto a escolhas com sujeitos que possam reinventar-se a si próprios sem privações e sofrimentos.