DESGRAÇADAMENTE NENHUMA NOVIDADE - Portal

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DESGRAÇADAMENTE NENHUMA NOVIDADE - Portal
MAIS UM LINCHAMENTO NO BRASIL - DESGRAÇADAMENTE NENHUMA
NOVIDADE 1
“Pode-se mesmo dizer que o progresso da
cultura humana, que anda pari passu com o da
vida jurídica, obedece a esta lei fundamental:
verifica-se uma passagem gradual na solução dos
conflitos do plano da força bruta para o plano da
força jurídica. Nas sociedades primitivas tudo se
resolve em termos de vingança, prevalecendo a
força, quer do indivíduo, quer da tribo a que ele
pertence.” (Miguel Reale) 2
“Les esprits une fois émus ne s'arrêtent
point.” (“Uma vez excitados, os espíritos não mais
se detêm”) 3
Segundo o jornalista Leonardo Sakamoto, "um
homem de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís
(MA). Segundo a polícia civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido,
amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e
garrafadas. Um jovem de 16 anos que seria seu cúmplice também foi espancado, mas
1
Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia.
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pósgraduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato
sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo
pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos).
Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de
Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de
Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para
ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Autor das obras “Curso Temático de
Direito Processual Penal” e “Comentários à Lei Maria da Penha” (este em coautoria com Issac
Guimarães), ambas editadas pela Editora Juruá, 2010 e 2014, respectivamente (Curitiba); “A Prisão
Processual, a Fiança, a Liberdade Provisória e as demais Medidas Cautelares” (2011), “Juizados
Especiais Criminais – O Procedimento Sumaríssimo” (2013), "Uma Crítica à Teoria Geral do Processo" e
“A Nova Lei de Organização Criminosa”, publicadas pela Editora LexMagister, (Porto Alegre), "O
Procedimento Comum: Ordinário, Sumário e Sumaríssimo", Florianópolis, Editora Empório do Direito",
2015, além de coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal” (Editora
JusPodivm, 2008). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no
Brasil.
2
Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, São Paulo: Saraiva, 19o. ed., 1991, p. 75.
3
Voltaire, Tratado Sobre a Tolerância, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 6.
sobreviveu.Fiz questão de postar a imagem. Alguns leitores psicopatas sentirão
orgasmo com ela. Para esses, há pouco a ser feito fora da medicina. Contudo, não
acredito que a maioria de vocês ache normal uma turba de moradores fazer justiça com
as próprias mãos – e com requintes de crueldade.Ou indo direto ao ponto: a Lei Áurea
completou 127 anos, mas a sociedade ainda coloca negros no pelourinho. Por raiva,
por vingança, para servir de exemplo.Desde que jornalistas fizeram apologia ao fato de
um jovem ter sido preso a um poste e espancado, como punição por um suposto crime,
no ano passado, no Rio de Janeiro, a moda parece ter pegado. Pois, depois disso,
outros casos pipocaram pelo país.Parabéns, colegas. Parabéns a todos os
envolvidos.Teoricamente em algum momento da história humana, nós abrimos mão de
resolver as coisas por conta própria para impedir que nos devoremos. Sei que parte da
população, cansada de esperar que o poder público cumpra seu papel e garanta
condições mínimas de segurança, ressuscita seus instintos mais primitivos. O sistema
que criamos para isso não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje.O Brasil
não tem pena de morte. Oficialmente, é claro. Porque muitos governos e suas polícias
fingem que não sabem disso. E, não raro, turbas processam, julgam e executam
também.Ao criticar linchamentos públicos de “culpados'' ou “inocentes'' não defendo
“bandido'' ou “impunidade'', mas sim esse pacto que os membros da sociedade fizeram
entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia.Se algo causa impacto, é
claro que será copiado. Não estou jogando a culpa no mensageiro ou dizendo que o
mimetismo é a causa, mas nós jornalistas temos certa parcela de responsabilidade. E
não falo apenas por conta da banalização da violência. É a sua transmissão acrítica,
como se notícias fossem neutras, não houvesse contexto social e todos os receptores da
informação compartilhassem dos mesmos valores.As pessoas veem, as pessoas copiam.
E a sociedade vai indo da barbárie para a decadência sem passar pela civilização."
(http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2015/07/07/mais-uma-pessoa-amarradaem-poste-mais-um-linchamento/, acessado dia 08 de julho de 2015).
Antes deste lamentável acontecimento, como foi
amplamente divulgado pela mídia (com direito a foto de capa do pasquim Veja), no dia
31 de janeiro de 2015, no bairro carioca do Flamengo, um jovem negro, suspeito de
praticar roubos, foi barbaramente espancado por várias pessoas (tendo, inclusive,
arrancada uma parte de sua orelha); depois das agressões, prenderam-no a um poste pelo
pescoço, com uma tranca de bicicleta e completamente despido. Os bombeiros
precisaram usar um maçarico para libertá-lo.
O Datafolha, instituto de pesquisa, indicou que
79% dos cariocas repudiaram o fato. A pesquisa também mostrou que o apoio ao
espancamento foi maior entre os mais ricos, a classe média e escolarizados. Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1412865-acao-de-justiceiros-ereprovada-por-79-no-rio.shtml).
Sobre o assunto, escreveu Luiz Flávio Gomes, no
Boletim nº. 256 (março/2015), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
("Campanha da Sheherazade: adote um bandido!"):
"O termômetro da radicalização da violência no
nosso país está subindo. “Adote um bandido” é o mote da campanha lançada pela
infeliz jornalista Raquel Sheherazade (SBT), depois que um grupo de bandidos de
classe média, no Rio de Janeiro, chamados “Bairro do Flamengo”, prenderam,
espancaram e amarraram em um poste um jovem negro “criminoso” ou “possível
criminoso” (O Globo 05.02.2014, p. 8). Justificativa: o Estado é omisso, a Justiça é
falha e a polícia não funciona. Tudo isso é verdade, mas o Estado Democrático de
Direito não permite a “solução” encontrada: justiça com as próprias mãos! Quem faz
isso é um bandido violador do contrato social. Quem se entrega lascivamente à
apologia do crime e da violência (da tortura e do linchamento) também é um bandido
criminoso (apologia é crime). Se isso é feito pela mídia, trata-se de um pernicioso
bandido midiático apologético. Logo que identificados, pela Polícia Civil do Rio de
Janeiro, os dois primeiros suspeitos de terem torturado e amarrado o jovem negro, no
Flamengo, descobriu-se que ambos, presumidos inocentes, claro, apresentam extensa
folha de registros criminais. J.V. é acusado de estupro, lesão corporal, furto em um
condomínio e ameaça. R. responde por uso de drogas e por recusa ao serviço eleitoral.
Na sua linguagem chula e apologeticamente criminosa, Sheherazade diria que “estão
mais sujos do que pau de galinheiro”. Seriam, portanto, segundo seu padrão aético e
imoral de ver o mundo, “marginais” que estariam prontos para serem “adotados”.
Testemunhas afirmam que o espancamento foi feito por 30 pessoas. Todos seriam,
conforme Sheherazade, “cidadãos de bem”, “desarmados” (coitadinhos indefesos!),
que estariam apenas cumprindo a lei e se defendendo na condição de “legítimos
representantes da sociedade civilizada”. Não há falar em excesso porque esse tipo de
vingança e de violência dos “justiceiros de classe média”, como ela sublinhou, “é
compreensível”. Por força da evolução histórica e da espécie (Darwin), sabe-se que o
Brasil (um dia) ainda vai descobrir a civilização. Estamos fazendo muita coisa
fantástica nesse sentido, mas o progresso tem sido muito lento. Nossa herança maldita
(colonialista) nos persegue diariamente. É preciso mergulhar no passado e estudar a
dinâmica histórica de cada sociedade para se compreender o seu grau de desigualdade
[e de violência] (Acemoglu/Robinson: Por que as nações fracassam). Com 27,1
assassinatos para cada 100 mil pessoas (em 2011), somos o 16.º mais violento do
planeta. Isso significa não só uma epidemia, como muita barbárie. A propósito, em que
fase estamos? Vingança privada, vingança divina ou vingança pública? Depois de 514
anos de construção extremamente violenta (selvagerismo), somente a vingança divina
(repressão ao crime para satisfazer as vontades dos deuses) praticamente desapareceu.
Os sacerdotes eram os encarregados dos castigos, para aplacar a ira da divindade
(supostamente) descontente. Aplicavam os castigos mais cruéis e desumanos, até
porque o “bode expiatório” precisava lavar a alma de todos os pecadores da nação. As
demais vinganças (a pública e a privada) continuam e se rivalizam. A vingança privada
conduz a vítima ou parcela da população (da tribo) a agir contra o criminoso ou
suposto criminoso, sem qualquer tipo de interferência do Estado, ou seja, o agressor
faz justiça com as próprias mãos, sempre de forma desproporcional; a origem dessa
vingança privada está na emotividade ou passionalidade que o crime (ou o clima de
medo) gera na população (na tribo) (veja Durkheim). Os povos bárbaros praticavam
frequentemente a vingança privada e muitos deles foram desaparecendo, em razão da
guerra de todos contra todos (de que falava mesmo que vagamente Hobbes, no século
XVII).A vingança pública é praticada pelos agentes do Estado, contra as populações
selecionadas. Por força da dinâmica da nossa história colonial, aqui a vingança
pública é normalmente praticada contra as populações segregadas (marginalizadas).
Nosso conflito é, acima de tudo, étnico e social. A militarização do policiamento
converte o ódio e o preconceito étnico, social e racial das classes burguesas
dominantes em violência contra os “irracionais, os perversos, os desumanizados, as
bestas selvagens que perambulam pela cidade”. Também são alvos os “inimigos”
assemelhados, ou seja, são bestialmente atacados inclusive os inocentes que possuem
as mesmas características dos animais não domesticados. Nenhum país do mundo
jamais alcançou a civilização pela vingança (veja N. Elias). A vingança privada não é
a solução, porque a violência só gera violência (veja as milícias, os linchamentos e os
esquadrões da morte).O que Sheherazade pretende com esse discurso maluco,
criminoso e aloprado? Para além de ganhar audiência, da forma mais irracional
possível (que falta lhe faz a leitura dos racionalistas do Iluminismo), o que ela e tantos
outros adeptos da bandidagem midiática ou social querem é a nossa cumplicidade.
Como explica Calligaris (Todos os reis estão nus), “gritam o seu ódio na nossa frente
para que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo [imbecil] que eles
representariam: nós, que não matamos [nem roubamos, nem furtamos, nem
estupramos, nem nos drogamos], nós, que amamos e respeitamos as leis e as pessoas de
bem, nós que somos diferentes desses outros [desses “negrinhos”], nós temos que
linchar os culpados”.Esses agitadores e bandidos, tanto sociais como midiáticos,
querem nos levar de arrastão para a dança da violência identitária, tal como faziam
“os americanos da pequena classe média, no sul dos EUA, no século XIX, que saíam
para linchar os negros procurando uma só certeza: a de eles mesmos não serem
negros, ou seja, a certeza da diferença social” (Calligaris, cit.). Sheherazade faz na TV
a mesma inescrupulosa apologia dos alemães que saíram pelas ruas para saquear os
comércios dos indefesos judeus na Noite dos Cristais. O que ela, os justiceiros da
classe média, os alemães saqueadores e os pequenos burgueses americanos querem ou
queriam? Afirmar a sua diferença. Mais: eles representam uma coisa que
desgraçadamente está dentro de nós, que não é justiça, sim, vingança. A necessidade
tresloucada de nos diferenciar dos outros nos leva mentecaptamente a massacrá-los,
dando ensejo a uma violência infinita. Barbárie ou civilização: eis o dilema do humano
no século XXI!Fácil é perceber que a insanidade coletiva, incluindo os setores radicais
da mídia, está subindo, paralelamente à violência desbragada. Onde falta ética e
educação de qualidade, ou seja, um bom IDH (índice de desenvolvimento humano),
sobra a marcha tribal da insensatez. Em ano eleitoral, é de se imaginar que o clima
quente da reação emotiva contra a violência, tal qual o do verão, vai bem longe. O
Brasil, que não está conseguindo se desvencilhar da sua herança colonialista
extrativista, continua na contramão da história civilizatória.Está chegando a conta dos
514 anos de colonialismo teocrático (herança maldita), autoritarismo (arquétipo do
Pai), parasitismo dos dominadores (escravidão, corrupção e neoescravidão),
selvagerismo (violência epidêmica), ignorantismo (3/4 da população é analfabeta ou
semialfabetizada – ver Inaf) e segregacionismo (apartheid sócio-étnico-econômico).
Guerra de todos contra todos (Hobbes), que esquenta mais ainda quando bandidos das
classes de cima passionalmente (Durkheim) se igualam à violência dos marginalizados
perversos (por meio da justiça com as próprias mãos ou dos linchamentos, não
autorizados pelo “contrato social”). De acordo com os indicadores socioeconômicos
do Brasil, há um exército de milhões de jovens sem trabalho, sem estudo e sem
estrutura familiar ou social solidificada (nem, nem, nem). São rejeitados por todos, até
mesmo pela “ralé”, que é a classe D. Nosso estágio de desigualdade socioeconômica (a
melhora dos últimos anos foi totalmente insuficiente) e de degeneração moral coletiva
chegou ao fundo do poço. Enquanto não rompermos a herança maldita da nossa
estúpida, corrupta e violenta colonização, não vamos nunca sair desse atoleiro
sanguinário e parasitário comandado pelas elites burguesas do capitalismo extrativista
e selvagem. Só existe um caminho para a ruptura: ética e educação de qualidade para
todos, tal como fizeram, depois de muita luta do povo, os países do elogiável
capitalismo evoluído e distributivo (Dinamarca, Noruega, Suécia, Japão, Coreia do Sul
etc.). Educação civilizatória obrigatória, em período integral, promovendo-se assim,
finalmente, nossa primeira grande revolução! Temos todos, ricos e pobres, o dever
imperativo categórico (Kant) de levantar essa bandeira. Os 47 países com melhores
IDH do mundo têm 1,8 assassinatos para cada 100 mil pessoas. O Brasil, com IDH
ridículo para sua riqueza, é o 16.º país mais violento do planeta, com 27,1 assassinatos,
por 100 mil habitantes, em 2011. Enquanto não radicalizarmos no sentido da educação
universal e da melhora substancial da renda per capita do povo que trabalha
duramente, só resta ir contabilizando os “cadáveres antecipados”, a ira, o ódio, a
insatisfação e a indignação massiva (que são os ingredientes de uma estrondosa
revolução que ainda não ocorreu). Por que o Brasil é um dos países mais violentos do
planeta? Há muitos fatores que explicam isso. Um deles passa seguramente pela
seguinte tese que se sugere: quanto mais elevado o desenvolvimento humano (IDH)
menos desigualdade existe e quanto menos desigualdade menos violência acontece (e
vice-versa: quanto menos desenvolvimento humano mais desigualdade e quanto mais
desigualdade mais violência). O Indíce de Desenvolvimento Humano da ONU (IDH)
serve de parâmetro para se aferir o grau de desenvolvimento (de tendencial civilização)
de cada país, levando em conta os indicadores da educação (alfabetização e taxa de
matrícula), da longevidade (esperança de vida ao nascer) e da renda individual (PIB
per capita). Quatro são os grupos: (a) desenvolvimento humano muito elevado, (b)
elevado, (c) médio e (d) baixo. Os quatro grupos contam, respectivamente, com a
seguinte taxa média de homicídios: 1,8 mortes no primeiro grupo, 10,7 no segundo,
11,7 no terceiro e 13,9 no quarto. Para a OMS trata-se de violência epidêmica a que é
igual ou superior a 10 mortes para cada 100 mil pessoas. Ou seja: apenas o primeiro
grupo não conta com violência epidêmica. O Brasil, só para recordar, está no segundo
grupo e é um dos cinco campeões em violência dentro deste grupo (27,1 assassinatos
para cada 100 mil pessoas, em 2011). Vejamos: pelas elites burguesas do capitalismo
extrativista e selvagem. Só existe um caminho para a ruptura: ética e educação de
qualidade para todos, tal como fizeram, depois de muita luta do povo, os países do
elogiável capitalismo evoluído e distributivo (Dinamarca, Noruega, Suécia, Japão,
Coreia do Sul etc.). Educação civilizatória obrigatória, em período integral,
promovendo-se assim, finalmente, nossa primeira grande revolução! Temos todos, ricos
e pobres, o dever imperativo categórico (Kant) de levantar essa bandeira. Os 47 países
com melhores IDH do mundo têm 1,8 assassinatos para cada 100 mil pessoas. O Brasil,
com IDH ridículo para sua riqueza, é o 16.º país mais violento do planeta, com 27,1
assassinatos, por 100 mil habitantes, em 2011. Enquanto não radicalizarmos no sentido
da educação universal e da melhora substancial da renda per capita do povo que
trabalha duramente, só resta ir contabilizando os “cadáveres antecipados”, a ira, o
ódio, a insatisfação e a indignação massiva (que são os ingredientes de uma estrondosa
revolução que ainda não ocorreu. Esses números, considerados globalmente, nos
autoriza estabelecer uma relação direta entre IDH, desigualdades e homicídios.
Segunda correlação possível: eles também nos permitem diferenciar, dentro de cada
grupo, os países que praticam o capitalismo avançado e redistributivo (Dinamarca,
Suécia, Suíça, Noruega, Finlândia, Canadá, Japão, Coréia do Sul, Alemanha, Áustria
etc.) daqueles que seguem o capitalismo retrógrado e desumanamente desigual
(estacionário), como é o caso dos EUA. O Brasil, em suma, na 85.ª posição do IDH e
contando com a taxa anual de 27,1 assassinatos para cada 100 mil pessoas (2011), não
é o 16.º país mais violento do planeta por acaso. O caminho sensato para enfrentar o
problema da segurança e da delinquência já foi descoberto pelos países que acabam de
ser citados. Nos países atrasados ou exageradamente desiguais é que se vê a apelação
midiática desastrada como a da Seherazade. Mas para toda essa apologia criminosa
desavergonhada e mentecapta a criminologia crítica humanista prega a
ressocialização, pela ética e pela educação. A ressocialização dos jovens bandidos de
classe média que saem pelas ruas fazendo justiça com as próprias mãos se daria por
meio de uma marcha da sensatez, em todo país, quebrando tudo quanto é resistência da
elite burguesa estúpida, adepta do capitalismo selvagem, extrativista e colonialista, que
é a grande responsável pelo parasitismo escravagista assim como pelo ignorantismo do
povo brasileiro. A ressocialização desta casta burguesa retrógrada passa pelo ensino
do elogiável capitalismo evoluído e distributivo, fundado na educação de qualidade
para todos, praticado por Dinamarca, Suécia, Suíça, Holanda, Japão, Coreia do Sul,
Noruega, Canadá, Áustria etc. Quanto aos jovens marginalizados temos que distinguir:
os violentos perversos, que representam concreto perigo para a sociedade, só podem
ser ressocializados dentro da cadeia, que por sua vez e previamente também precisa ser
ressocializada, depois de um arrastão ético em toda sociedade brasileira que, nessa
área, encontra-se em estágio avançadíssimo de degeneração moral. Em relação aos
jovens não violentos, a solução é a educação de qualidade obrigatória, em período
integral e em regime de internação, quando o caso. Nenhuma sociedade moralmente sã
admite uma só criança abandonada nas ruas! E quanto à jornalista da bandidagem
apologética? Eu proponho que ela seja adotada por uns seis meses para aprender ética
iluminista, de Montesquieu a Voltaire, de Diderot a Beccaria, de John Locke a
Rousseau e por aí vai. O que está faltando para toda essa apologia difusa da violência
é a emancipação intelectual e moral de que falava Kant, que hoje exige uma revolução
(da qual todos deveríamos participar) ética e educacional. Temos que romper
radicalmente com nossa tradição colonialista, teocrática, selvagem e parasitária, ou
nunca teremos progresso (veja Acemoglu/Robinson, Por que as nações fracassam).
Essa é a solução. O resto que está aí tem muito de bandidagem."
Pois bem.
É assustador como a cada dia se multiplicam nos
noticiários de nossa imprensa as informações acerca de um fenômeno social que se vem
tornando perigosamente contumaz em nossa sociedade, alastrando-se por todo o Brasil,
tendo o Estado da Bahia, indiscutivelmente, a primazia triste de estar ocupando lugar de
destaque: falamos do linchamento.
A mídia, cotidianamente, traz-nos a visão da brutal
e covarde prática do linchamento, consumado por um sem número de pessoas
transformadas, por instantes, em verdadeiras “bestas humanas”. O que resta, via de
regra, é um corpo dilacerado pela brutalidade selvagem do grupo agressor.
Ainda se ocultam em nossa memória as cenas
chocantes trazidas pelos noticiários televisivos, tais como as que ocorreram há alguns
anos quando uma presidiária de 35 anos foi agredida por outros detentos no interior do
presídio onde se encontrava, sob a acusação de homicídio. Nada obstante já sujeita ao
sistema penal, foi julgada e condenada à morte por outras presidiárias; à época, uma
revista semanal assim se reportou ao fato: “A presa foi assassinada a pontapés, golpes
de ferro elétrico, teve seus olhos perfurados a unha e foi escalpelada como uma vítima
de índios comanches num filme de faroeste – seus cabelos foram arrancados à força
junto com pedaços do couro cabeludo” 4
4
Revista Veja, 09 de maio de 1990, p. 63.
Meses depois fato semelhante ocorreu na cidade de
Matupá, em Mato Grosso, oportunidade em que três homens acusados de roubo foram
espancados até a morte por uma multidão, sendo, ao final, queimados vivos como
registrou um impassível cinegrafista amador da cidade. O detalhe: entre os responsáveis
pela chacina estavam, possivelmente, um próspero comerciante local e um vereador do
mesmo Município.
Em março do ano de 1994 uma outra, mas
igualmente feroz multidão, invadiu a Delegacia de Polícia da cidade de Salto do Lontra,
no Paraná, matando um médico de 44 anos e mais dois presos, todos recolhidos sob a
suspeita, sequer formalizada, de participação na morte de uma enfermeira. Tudo, mais
uma vez, filtrado por uma câmera. Aliás, nesta região do sul do País, segundo o veículo
jornalístico já referido, até aquela data oito linchamentos tinham ocorrido nos últimos
onze anos.
Veja a seguinte notícia publicada no Jornal A Tarde,
edição do dia 11 de fevereiro de 2008: “Em pouco mais de 24 horas, e a menos de 200
metros, um terceiro caso de linchamento foi registrado no bairro do Parque São
Cristovão, bairro da periferia na zona norte de Salvador. Nos três casos os motivos
foram casos de roubo e a ausência de policiamento nas ruas. Na manhã deste domingo,
10, por volta das 11h20, um homem, aparentando menos de 30 anos, de identidade
ignorada, foi perseguido por um grupo de mais de 30 pessoas, que o acusavam de ter
roubado uma casa e levado um aparelho de televisão.O acusado (sic) foi alcançado
pela multidão enfurecida quando tentava subir as escadarias do Caminho 40, que liga
o bairro de Mussurunga à Estrada Velha do Aeroporto, e ali mesmo, apesar dos gritos
de socorro, recebeu várias pedradas e pauladas, morrendo no local. No dia anterior,
por volta das 6h30, dois outros acusados de roubos às residências do Parque São
Cristovão, E. O. S., de 18 anos, e M. N. S. I., de 20 anos, também foram linchados por
mais de 30 pessoas. Em ambos os casos, a Lei do Silêncio impera entre os moradores e
quem dá algumas informações evita qualquer identificação.”
No Estado da Bahia, principalmente na Capital, os
linchamentos transformaram-se em notícias corriqueiras das páginas policiais, infensos
até a maiores comoções. Segundo o jornal O Globo 5 doze pessoas, nove das quais em
Salvador, “já foram espancadas até a morte este ano na Bahia”, informando, ainda, que
“há três anos o número de linchamentos vem aumentando”, sendo que “em alguns
casos as vítimas eram suspeitas de pequenos furtos”.
O fenômeno continua repetindo-se e de forma mais
constante, bastando uma aligeirada pesquisa nas páginas policiais dos nossos jornais
diários. A cifra impressiona...
Feitas estas primeiras considerações, muito mais
ilustrativas, diríamos que o linchamento envolve três aspectos principais: a crueldade, a
covardia e a inutilidade de sua prática.
É cruel porque se mata lentamente, minando as
forças do agredido com golpes sucessivos e nos diversos órgãos do corpo, utilizando-se
dos mais diferentes instrumentos, arruinando a vítima paulatinamente e deixando-lhe
5
Edição do dia 10 de julho do ano de 1995.
sentir vagarosamente a dor e a morte. Por vezes, o espetáculo aterrador finda-se com a
cremação do que sobrou da matéria, como uma láurea aos vencedores. Nada mais
pungente, portanto.
Já a covardia se traduz no fato de que se reúnem
vários homens e atacam um, dois ou, no máximo, três, atitude absolutamente
pusilânime. A falta de coragem salta aos olhos quando atentamos para o fato de que o
linchamento é sempre precedido pela reunião dos executores, nunca se agindo
isoladamente. Não que preguemos, em absoluto, intrepidez no agir ou bravura em fazer
“justiça com as próprias mãos”, posto que tal procedimento, solitariamente ou em
grupo, é sempre detestável, além de defeso pelo nosso ordenamento jurídico, salvante
casos especialíssimos, permitidos pela lei, entre os quais não se encontra a execução
sumária de indivíduos indefesos. Assim, é lógico que numericamente inferiorizada a
vítima do linchamento chance nenhuma possui de defesa fato este, inclusive, também
qualificador do homicídio cometido, ao lado da torpeza e da crueldade.
Pensamos, outrossim, que o linchamento é um
exercício inócuo, tendo em vista que apenas na aparência solucionaria a questão da
violência urbana. A ideia de que se matando um indivíduo, sumariamente ou não,
caminha-se para a solução da delinquência, é tacanho, falacioso e está superado (é como
imaginar, inocentemente, que a transposição das águas do Velho Chico resolveria o
problema da seca no Nordeste).
A questão, para nós, deve ser encarada sob um
outro aspecto, haja vista que consideramos tremendamente nocivo em um estado
democrático de direito que a sociedade dissemine o jus puniendi como um direito posto
à disposição dos cidadãos quando, na verdade, ele pertence tão-somente ao Estado.
Estes fatos apenas geram uma descrença progressiva nos poderes constituídos (o que, de
mais a mais, já ocorre) a ensejar um perigoso processo de “cada um por si”,
aumentando, sem dúvidas, o grau de violência no País. Assim, visto também por esse
prisma, infrutuoso é o linchamento.
Na presente análise há algo que não pode ser
olvidado: a causa da contumácia dos linchamentos. Temos para nós, a priori, que o
aumento da violência, aliado à falta de confiança da população na punição dos
infratores, motiva atos dessa natureza. A crença de que a polícia não pode dar cabo da
violência (o que, diga-se de passagem, é verdade, em decorrência do estado de miséria
em que vive a nossa população) nem, ao menos, reduzi-la a níveis suportáveis (esta sim,
circunstância perfeitamente factível diante dos mecanismos postos à disposição da
organização estatal), acarreta a revolta e o desejo de dizer o Direito motu proprio, sem
aguardar que o faça o Estado.
Nesse ponto resulta exatamente o maior erro de
quem participa de um linchamento (e de quem o aplaude ou o aceita): o mesmo órgão (o
grupo agressor) acusa, defende, julga e executa, tal como na Inquisição, sem que seja
dado ao “réu”, por si próprio ou por terceiro, ensejo em defender-se, expurgando-se do
Estado a possibilidade de aplicar o devido processo legal (art. 5º, LIV da Constituição
Federal), princípio, aliás, existente desde a Constituição Americana de 1791 (due
process of law) e segundo o qual é vedado o julgamento de um cidadão sem que lhe
seja assegurado um processo legalmente constituído, garantindo-se, absoluta e
inarredavelmente, o seu direito à mais ampla e irrestrita defesa com todos os seus
corolários (contraditório, duplo grau de jurisdição, não autoincriminação, etc.). Sem o
devido processo legal qualquer julgamento será execrável; todo processo que diga
respeito à liberdade, ao patrimônio ou à vida de uma pessoa deve observá-lo,
dissociando-se claramente acusador, defensor e julgador (sistema acusatório), sob pena
de não se legitimar constitucionalmente.
A socióloga Jacqueline Sinhoretto define os
linchamentos como “práticas coletivas de execução sumária de pessoas consideradas
criminosas. Sua característica diferenciadora de outros tipos de execução sumária é o
seu caráter de ação única, ou seja, o grupo linchador se forma em torno de uma vítima,
ou grupos de vítimas, e após a ação, se dissolve. Por isso, diz-se dos linchamentos que
são ações espontâneas e sem prévia organização.” Em excelente monografia, ela
informa, inclusive, que “a literatura internacional a respeito de linchamentos é
basicamente de origem norte-americana e está referida ao período das últimas décadas
do século XIX e primeiras do século XX, momento em que ocorreram muitos
linchamentos nos Estados Unidos, especialmente vitimando negros. Por estar referida a
este contexto específico, essa literatura remete o leitor muito mais às diferenças entre
os fenômenos brasileiro e americano, do que às suas semelhanças.” 6
Fragoso já afirmava que “o Estado detém o
monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo
ofendido (ação penal privada)”, o que significa que o indivíduo, ainda que o bem
jurídico atingido seja próprio, não pode, por si só, querer dizer o Direito, sob pena de
ingerência indevida nas coisas específicas do Estado. 7 No linchamento, contraria-se este
princípio jurídico, visto que, tal como o concebeu o norte-americano Willian Lynch
(1742-1820), linchar é execução sumária, sem prerrogativas de alguma espécie para o
indivíduo.
Retorna-se, então, aos primórdios da Roma Antiga
(753 a.C.), onde “o transgressor era considerado execrável ou maldito (sacer esto),
sujeito à vingança dos deuses ou de qualquer pessoa, que poderia matá-lo
impunemente”, como nos lembra Fragoso. 8 Relembra Tornaghi que o “homo sacer era
aquele que, por haver praticado ato nefasto era amaldiçoado. Quase todos os autores
sustentam que o sacer homo perdia a proteção do Direito, era abandonado á própria
sorte e podia até ser morto por qualquer pessoa.” Segundo o mestre, na Alemanha
dava-se o mesmo, pois “o profanador, privado da paz (friedensloss) embrenhava-se
pelas florestas para escapar ao castigo. Quando aparecia esquálido, barbado, tinha o
aspecto de um lobo (wolf), donde o nome de wolfmensch (homem lobo ou lobisomem).
Alguns estudiosos sustentam que a denominação provém do fato de o criminoso ser
rebaixado à condição de animal que, por ser daninho, devia ser morto (BrunnerSchwerin, História del Derecho Germânico, p. 22).” E, finalizando, compara o
inesquecível processualista brasileiro: “Por mais estranho que pareça esse costume,
dele não difere o linchamento americano.” 9
Observa-se que este fenômeno, além de nefasto por
tudo quanto já dito, também o é pela real possibilidade, não de matar-se um culpado (o
que bastaria para sê-lo), mas de se eliminar um inocente, fato bastante provável à vista
6
Os Justiçadores e sua Justiça, São Paulo: IBCCrim, 2002, pp. 40 e 84.
Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 9ª. ed., p. 02.
8
Ob. cit. p. 24.
9
Compêndio de Processo Penal, Tomo I, Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1967, p. 7 (em nota de
rodapé).
7
da precipitação e rapidez em que ocorre o massacre. 10 Ora, se erros judiciários
acontecem nada obstante o referido due process of law, suponha-se em sentenças
sumárias? Note-se que no erro cometido por um Magistrado, acena-se para o
sentenciado a possibilidade, até, de uma reparação civil, sem falar na devolução da
liberdade física (se ainda for possível, evidentemente). Aqui, ao contrário, no erro
perpetrado pelos linchadores, vislumbra-se para o ofendido, tão-somente, a morte ou,
em hipótese melhor, a marca indelével da tortura.
Na canção “O Cu do Mundo”, Caetano Veloso
escreveu: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/O fétido sequestro/O adjetivo esdrúxulo
em U/Onde o cujo faz a curva (O cu do mundo, esse nosso sítio)/O crime estúpido, o
criminoso só/Substantivo, comum/O fruto espúrio reluz/À subsombra desumana dos
linchadores/A mais triste nação/Na época mais podre/Compõe-se de possíveis/Grupos
de linchadores.”
Outro dado de arrepiar em todos os linchamentos é
a falta de punição dos agentes, seja por ser difícil a identificação, seja pela falta de
testemunhas disponíveis ou, ainda, pelo pouco interesse na apuração do delito, pois, ao
que parece, a morte de um suposto autor de um crime é muito mais cômoda do que o
trabalho em averiguar a responsabilidade penal dos responsáveis. A falta de punição,
como é lógico, leva à repetição dos atos ilícitos.
Ao final das considerações acima expostas, fica a
nossa expectativa de que o Brasil suplante a crise social em que está mergulhado desde
há muito, originada de indisfarçável desnível social que leva, por sua vez, à maioria da
população a um estado de miséria total, proporcionando, induvidosamente, este
alarmante índice de violência do qual o linchamento é mais uma vertente, dentre tantas
outras. É inquestionável que este triste fenômeno, cada vez mais crescente, provém da
questão socioeconômica. Resolvida esta, certamente morrer linchado será tão raro e
estranho quanto, por exemplo, morrer de fome...
Para que finalizemos com letras mais insignes,
transcrevemos, mais uma vez, a lição de um grande jurista brasileiro, um homem que
dedicou a sua vida ao Direito e à ordem jurídica:
“Matar alguém é um ato que fere tanto um
mandamento ético-religioso como um dispositivo penal. A diferença está em que, no
plano jurídico, a sociedade se organiza contra o homicida, através do aparelhamento
policial e o Poder Judiciário”. 11
10
Indicamos, a propósito, um filme do cineasta Rodrigo Pla, ambientado na cidade do México, “Zona do
Crime”, em espanhol “La Zona”, produção de 2007. Um filme que vale a pena asistir!
11
Ob. cit., p. 74.

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