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Línguas e instrumentos linguísticos 35 / Campinas: CNPq Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2015:
Unicamp, 1997-2015
Semestral.
ISSN 1519-4906
1. Linguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos
3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade
Estadual de Campinas
CDD - 410.05
- 412.05
- 900
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com exclusividade para publicação em língua portuguesa para o Projeto História das
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2015
Impresso no Brasil
LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS
Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil
Editora RG
Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi
Comitê Editorial: Ana Maria Di Renzo (Unemat), Bethania Sampaio Mariani
(UFF),Carolina Zucolillo Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp),
Carlos Luis (Argentina), Charlotte Galves (Unicamp), Débora Massmann
(Univás), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo Guimarães (Unicamp)
Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P. Orlandi (Unicamp), Francine
Mazière (França), Francis Henry Aubert (USP), Freda Indursky (UFRGS),
Jean-Claude Zancarini (França), José Horta Nunes (Unicamp), José Luiz
Fiorin (USP), Lauro Baldini (Unicamp), Luiz Francisco Dias (UFMG), Maria
Filomena Gonçalves (Portugal), Marlon Leal Rodrigues (UEMS), Mónica
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Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira
(Unicamp), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França),
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(Unemat)
Comitê de Redação: Claudia Reis, Cristiane Dias e Sheila Elias de Oliveira
Secretaria de Redação: Anderson Braga do Carmo, Danilo Ricardo de
Oliveira, Renata Ortiz Brandão e Vinícius Massad Castro
Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se
os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica,
qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia.
Mês e ano do fascículo: janeiro a junho 2015
Periodicidade de circulação: semestral
ISSN: 1519-4906
Número sequencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página
de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página
número sete até o final.
SUMÁRIO
Apresentação ....................................................................................... 7
A "descoberta": história de uma invenção semântica (primeiros
elementos)
Romain Descendre .............................................................................. 11
A reinvenção da “hipótese Sapir-Whorf”
Isadora Machado................................................................................ 29
Ideologías lingüísticas en un debate del siglo XIX chileno: los
comentaristas del Diccionario de chilenismos de Zorobabel
Rodríguez
Darío Rojas e Tania Avilés ................................................................. 53
CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS
Saussure e os estudos saussurianos no sul: algumas reflexões
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins .............. 73
DOSSIÊ: ENUNCIAÇÃO E SINTAXE
Luiz Francisco Dias............................................................................ 95
Acontecimento enunciativo e formação sintática
Luiz Francisco Dias............................................................................ 99
Entre o material e o simbólico: a conformação da referência no
lugar de adjunto adverbial
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda................................................... 139
Condições de sustentação do fato gramatical “objeto verbal” – por
uma sintaxe de base semântica
Luciani Dalmaschio.......................................................................... 163
Memória, acontecimento e ensino de sintaxe: o exemplo-colmeia
Elke Beatriz Felix Pena .................................................................... 193
A frase como unidade de discurso. (N)as teorizações de Émile
Benveniste
Cármen Agustini e Flávia Santos da Silva ....................................... 217
RESENHA
WEIL, Henri. Da ordem das palavras nas línguas antigas
comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2015, 128 pp.
Igor Caixeta Trindade Guimarães........................................... 237
APRESENTAÇÃO
O número 35 da revista Línguas e Instrumentos Linguísticos
compreende um conjunto de dez textos incluídos em seus quatro
núcleos de publicação: Seção Aberta, Crônicas e Controvérsias,
Dossiê e Resenha.
A seção Aberta abrange três artigos que tratam da invenção ou
propagação de conceitos fundamentais das ciências, por meio da
análise de textualidades produzidas tanto pelos criadores quanto pelos
críticos e comentadores de determinadas ideias.
Em A “descoberta”: história de uma invenção semântica, Romain
Descendre busca interrogar a semântica da palavra descoberta na sua
instituição, como conceito e como relato historiográfico edificante.
Assim, a partir de uma perspectiva filológica aplicada ao texto, o autor
parte do sentido dessa palavra concernente às explorações e
navegações ibéricas dos séculos XV e XVI para traçar uma genealogia
da ideia de descoberta, que se tornou paradigmática para pensar o
conhecimento, a pesquisa e o progresso científico na época moderna.
Isadora Machado, em A reinvenção da “hipótese Sapir-Whorf”,
analisa a circulação das definições do que seria a hipótese SapirWhorf em diferentes comentadores do tema. Por conseguinte, a autora
irrompe o efeito de evidência que tradicionalmente sustenta este
enunciado-termo, inventariado pelas tensões entre os autores da
hipótese, o nome para designá-la e o seu conteúdo, para nos mostrar
uma nova direção de sentido e a equivocidade com que a referida
hipótese se constituiu na História das Ideias Linguísticas.
Em Ideologías lingüísticas en un debate del siglo XIX chileno: los
comentaristas del Diccionario de chilenismos de Zorobabel
Rodríguez, Darío Rojas e Tania Avilés descrevem e analisam as
críticas que Fidelis del Solar propõe sobre o Diccionario de
chilenismos, de Zorobabel Rodrigues, e a resposta a essas críticas,
firmada por Fernando Paulsen. Os autores sugerem que, apesar das
posturas antagônicas dos autores estudados, há uma confluência de
crenças normativas, em seus escritos, que pode ser observada dada a
presença da ideologia da língua padrão (estándar), o que marca, na
verdade, a identidade desta comunidade discursiva, que compartilha
interesses, objetivos e crenças.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Apresentação
A seção Crônicas e Controvérsias traz o texto de Amanda
Scherer, Caroline Schneiders e Taís Martins: Saussure e os estudos
saussurianos no sul: algumas reflexões. Objetivando compreender os
processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no
Sul do Brasil, as autoras nos mostram, em três momentos distintos,
como as condições de produção de cada época afetam e determinam a
institucionalização da Linguística no estado do Rio Grande do Sul.
Para tanto, destacam alguns programas de disciplinas em que se pode
evidenciar, por meio de filiações teóricas, nomeações e
reescriturações, a construção de um saber, uma identidade disciplinar
e como a (de)marcação de um domínio/teoria se configura a partir de
condições sócio-históricas e ideológicas específicas.
A seção Dossiê traz como tema a articulação entre Enunciação e
Sintaxe, e reúne trabalhos voltados para a exploração de aspectos da
sintaxe a partir de uma análise semântica de linha enunciativa.
Cinco textos tratam dessa articulação: Acontecimento enunciativo e
formação sintática, de Luiz Francisco Dias; Entre o material e o
simbólico: a conformação da referência no lugar de adjunto
adverbial, de Priscila Brasil Gonçalves Lacerda; Condições de
sustentação do fato gramatical “objeto verbal” – por uma sintaxe de
base semântica, de Luciani Dalmaschio; Memória, acontecimento e
ensino de sintaxe: o exemplo-colmeia, de Elke Beatriz Felix Pena; e A
frase como unidade de discurso: (n)as teorizações de Émile
Benveniste, de Cármen Agustini e Flávia Santos da Silva.
Conforme elucida Luiz Francisco Dias, os textos que compõem o
dossiê apresentam “uma amostra da potencialidade dos estudos
semânticos constituídos na perspectiva da enunciação no Brasil”,
esperando que esses trabalhos “contribuam para a compreensão da
sintaxe da língua portuguesa a partir de um olhar ainda não explorado
no âmbito dos estudos sintáticos atualmente em nosso país”, o que
justifica o acolhimento do tema pela revista, que espera assim
contribuir com a área dos estudos da linguagem publicando esse
dossiê.
A seção Resenha, por fim, traz o texto de Igor Caixeta Trindade
Guimarães, sobre a obra Da ordem das palavras nas línguas antigas
comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral, de
Henri Weil. O autor resenha importantes ideias do livro/tese de Weil,
com destaque para a colocação das palavras na sentença motivada por
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Os editores
fatores relativos à enunciação. O filólogo alemão, conforme nos
explicita o resenhista, apresentou isso em um momento em que a
Linguística ainda não havia se constituído propriamente como ciência,
e suas ideias influenciaram autores como Michel Bréal e Georges
Perrot, o que nos mostra a importância das ideias de Weil para uma
compreensão do percurso dos estudos enunciativos e da Linguística de
modo geral.
O número 35 de Línguas e Instrumentos Linguísticos marca o
início do 17º ano de publicação da revista, e busca mais uma vez
contribuir para a circulação do conhecimento sobre a linguagem
convidando seus leitores e autores a percorrer esse conjunto de textos
interconexos sobre questões, objetos, conceitos, fatos e domínios
elementares no âmbito científico dos Estudos Linguísticos.
Os Editores
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA
INVENÇÃO SEMÂNTICA (PRIMEIROS
ELEMENTOS)1
Romain Descendre
ENS de Lyon - UMR Triangle - Labex Comod
Resumo: Considerado um projeto em várias etapas, este ensaio
apresenta um primeiro momento, no qual se busca interrogar a
semântica da palavra descoberta na sua instituição, como conceito e
como relato historiográfico edificante. Dessa forma, tendo como base
uma perspectiva filológica aplicada ao texto, parte-se do sentido
desta palavra concernente às explorações e navegações ibéricas dos
séculos XV e XVI, presentes nos relatos dos primeiros autores, para
uma genealogia da ideia de descoberta, que se tornou paradigmática
para pensar o conhecimento, a pesquisa e o progresso científico na
época moderna. Assim, neste estudo, os usos da palavra descoberta
permitem tirar dois ensinamentos: por razões ao mesmo tempo
semânticas e históricas, descobrir não serve para significar que se
encontraram terras desconhecidas, e quando o verbo adquire esse
sentido é de certo modo por acréscimo, enquanto efeito da
exploração; e que é preciso também tomar consciência do fato de que
um dos efeitos das políticas e dos empreendimentos voluntaristas de
navegações de longo alcance e de busca de novas rotas em direção às
terras asiáticas foi justamente o de modificar, de início
insensivelmente e depois, a longo prazo, de modo decisivo, o que vem
a ser designado como descoberta – a saber, um resultado,
particularmente importante do ponto de vista cognitivo e
epistemológico, atingido no decorrer de um processo de busca.
Abstract: Considered a project of many stages, this essay presents the
first stage in which we question the semantics of the word discovery in
its institution as a concept and as an edifying historiographical
report. Based on a philological perspective applied to the text, we
conceive the meaning of this word concerned to the Iberian
explorations and navigations during the 15th and 16th century
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
described in the first authors reports, to a genealogy of the ideia of
discovery that became a paradigm to think about knowledge, research
and scientific progress in the modern ages. The uses of the word
discovery give us two lessons: for semantics and historical reasons, to
discover is not used to mean that unknown lands were found: when the
verb acquires this meaning, it is somehow by an adding process, as an
effect of the exploration; it is also necessary to understand that one of
the effects of voluntary politics and endeavours of long distance
navigations and search for new routes towards Asian lands was the
modification, insensible at the beginning, but decisive afterwards, of
what is designated as discovery – a result, particularly important in a
cognitive and epistemological point of view, obtained in a process of
searching.
A mais recente historiografia dos inícios da Idade Moderna efetuou
uma revisão radical da noção tradicional das “Descobertas” ou
“Grandes Descobertas”, esse cronônimo2 que por muito tempo serviu
para designar o período de explorações e conquistas de amplos
territórios extraeuropeus, aberto pelas monarquias ibéricas no século
XV. Sob o efeito dos estudos pós-coloniais, a world history e a
“história conectada” esforçaram-se para proporcionar uma visão mais
exata, porque menos eurocêntrica, dessa sequência importante: a
Europa deixa de ser o único sujeito de um processo de expansão cujo
relato por muito tempo reduziu o resto do mundo somente ao estatuto
de objeto. Se acreditamos no autor de uma obra recente, “ninguém
acredita mais na ladainha lenitiva das ‘Grandes Descobertas’
realizadas sem participação asiática ou ameríndia por visionários
solitários3”.
Um dos historiadores que contribuíram para modificar nosso olhar
sobre a história do mundo nos inícios da Idade Moderna, Sanjay
Subrahmanyam mostrou – especialmente na esteira dos trabalhos de
Jean Aubin e de Luís Filipe F. R. Thomaz4 – como a chegada dos
portugueses no Oceano Índico não fez outra coisa senão adicionar um
poder comercial e militar suplementar em uma região em que, desde
há muito tempo, haviam se constituído rotas sulcadas por diversas
populações. Tal perspectiva coloca em cheque a própria ideia de
Descoberta de que os europeus se serviram para afirmar sua
preeminência moderna. Pour en finir avec les Grandes Découvertes
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
[Para acabar com as Grandes descobertas]: este é o subtítulo eloquente
que S. Subrahmanyam e Claude Markovits deram a um artigo de
síntese cujo título principal é constituído pela tríade mais neutra
navegação, exploração, colonização5. Tal injunção faz lembrar que
essa noção foi imposta no século XIX pelos historiadores
contemporâneos de uma nova era colonial, para nomear a primeira
fase das conquistas e colonizações europeias no ultra-mar. É verdade
que ela era duplamente vantajosa: permitia valorizar a ação dos
colonizadores, escondendo por meio de um eufemismo os aspectos
mais nocivos de suas conquistas.
Um fato, no entanto, continua digno de atenção: apesar desse
cuidado hoje dedicado a uma categoria volta e meia utilizada para
justificar as colonizações, para mascarar o fato político-militar das
conquistas e assentar esse etnocentrismo que por muito tempo
distorceu uma história do mundo escrita por seus “vencedores”, nem o
próprio sentido da palavra descoberta, nem seus usos pelos primeiros
atores concernidos foram interrogados.
Não foi sempre assim. Entre os anos 1940 e 1960, foi
especialmente a partir de uma atenção renovada ao sentido que as
palavras apresentavam nos contextos em que apareciam que foi
possível moderar as controvérsias às vezes violentas e estéreis que por
muito tempo opuseram os historiadores do século XIX e do XX, dos
dois lados do Atlântico, a respeito da paternidade da “Descoberta da
América”. Assim, posições tão cerradas quanto as de Henry Vignaud,
Roberto Levillier ou Edmundo O’Gormann puderam ser revistas de
ponta a ponta por textos de Marcel Bataillon ou Wilcomb E.
Washburn sobre a “ideia” ou a “significação” da descoberta. São
trabalhos que evidenciaram os falsos problemas devidos
essencialmente ao fato de que os historiadores, como dizia Washburn,
“tentaram resolver um problema sem saber previamente sobre o que
eles falavam”, quer dizer, qual era o sentido preciso dessas palavras
da descoberta que eles não paravam de empregar6.
Ao contrário, ainda que se questione a pertinência historiográfica
da ideia de “descoberta”, os historiadores parecem hoje tomar sua
significação como dada e sublinhar que seu emprego não tem nada de
anacrônico7. Assim, o defeito da descoberta não residiria tanto na
própria categoria quanto no uso que por muito tempo se fez dela. Não
é sua significação que traria problema, mas sua instituição como
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
conceito e como relato historiográfico edificante. Eu sustento de
minha parte que se quisermos compreender quais foram os caminhos e
as escamoteações que conduziram a erigi-la como um universal
historiográfico, é bem a própria categoria, suas acepções e seus
empregos nos discursos dos atores que é preciso interrogar.
Antes de simplesmente rejeitar uma categoria historiográfica que
se manteve por muito tempo dominante, é preciso retornar a sua
origem para compreender dois aspectos de sua história. Em primeiro
lugar, quais eram os usos e as significações da palavra em questão nas
fontes da época? Em seguida, a partir de quando e em direção de quais
processos essa palavra pôde adquirir a significação que continuamos a
lhe atribuir hoje, uma significação da qual permanece geralmente
indissociável o cronônimo (Grandes) Descobertas? Tal esforço
implica, no entanto, um atento olhar filológico aos textos. Nenhuma
revisão pode ignorar a questão – para dizer com as velhas palavras de
Marcel Bataillon - “de saber que sentido tinha um acontecimento para
os homens que o viveram, que sentido porventura diferente ele tomou
para os homens das épocas seguintes” 8. Isso é tão verdadeiro hoje,
que a chamada história “conectada” ou “igualitária” baseia-se na
comparação e na conexão não dos fatos, mas do sentido que eles
adquiriram para uns ou para outros. Mas ainda hoje tal perspectiva
implica necessariamente “interpretar os textos como um bom
filólogo9”. Veremos que, se a descoberta considerada aqui concerne
essencialmente às explorações e navegações ibéricas dos séculos XV e
XVI, a abordagem que propomos pode também levar, para além
dessas últimas, a uma genealogia da ideia de descoberta, que se
tornou paradigmática para pensar o conhecimento, a pesquisa e o
progresso científico na época moderna.
Um projeto em várias etapas, então, das quais abordarei aqui
somente a primeira: a semântica da descoberta nos relatos dos
primeiros autores. Quanto à segunda – a identificação e a
interpretação das fontes, contextos e processos de constituição do
sentido moderno da descoberta – vou ater-me somente a hipóteses que
procurarei verificar em um estudo posterior. Distanciando-se da
vulgata das “Grandes Descobertas” - mas também do contra-relato
que a deslegitima facilmente, sem interrogar a palavra descoberta –
uma melhor compreensão do que significaram esses acontecimentos
pode ser alcançada, bem como uma reflexão mais nuançada sobre as
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Romain Descendre
categorias a que elas deram origem, desde que consideremos esse fato
semântico tão frequentemente ignorado: não é no sentido hoje comum
de descoberta que a palavra era empregada pelos primeiros autores
concernidos, os exploradores e os que os enviavam à vastidão.
*
1. Comecemos por uma das fontes mais célebres da história das
navegações portuguesas, o Diário da Viagem de Vasco de Gama10,
texto anônimo redigido por um dos membros da primeira frota que
conseguiu chegar à Índia contornando a África.
Em nome de Deus, Amém. Na era de 1497 mandou el-rei D.
Manuel, o primeiro deste nome em Portugal, a descobrir, quatro
navios, os quais iam em busca de especiarias, destes navios ia
por capitão-mor Vasco da Gama, e dos outros: dum deles Paulo
da Gama, seu irmão, e do outro Nicolau Coelho.11
O autor faz recurso de um emprego intransitivo surpreendente do
verbo descobrir. Em razão de tal emprego, foi dito a respeito desse
parágrafo que ele era “tortuoso”, “caótico”, “enigmático”12. No
entanto, ainda que hoje em desuso, esse emprego intransitivo é
frequente em nossas fontes. Convém interrogar seu alcance
examinando outros textos da época.
Encontra-se exatamente a mesma expressão, mandar a descobrir,
nos escritos do próprio rei Dom Manuel, na carta que ele escreve em
12 de julho de 1499 aos Reis Católicos para lhes anunciar a novidade:
“Sabeem vossas altezas como tínhamos mandado a descobrir vasquo
dagama fidallguo de nosa casa, e com elle paullo dagama ssuo irmaão
com quatro navios pello oçeano”13. Descobrir, entendido de modo
estrito, é a missão confiada ao navegador por ordem do rei (tínhamos
mandado). Outras fontes confirmam que esse uso era igualmente
frequente nos navegadores castelhanos e italianos. Assim, Américo
Vespúcio, em sua primeira carta manuscrita (29 de julho de 1500), de
retorno da viagem que o leva pela primeira vez às costas setentrionais
da América do Sul, à custa dos soberanos espanhóis, escreve o
seguinte a seu mestre Lorenzo di Pierfrancesco de Medici:
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
Vossa Magnificência deve ter sabido que, por meio de uma
comissão recebida de Sua Alteza, o rei da Espanha, parti com
duas caravelas, em 19 de maio de 1499, para ir descobrir, pelo
oceano a oeste.14
Esse uso intransitivo não é exclusivo: o emprego transitivo aparece
algumas folhas adiante15. Mas ele não tem nada de isolado e retorna
frequentemente16, sobretudo nas cartas escritas no retorno da viagem
que Vespúcio faz, dessa vez à custa de Portugal, em 1501-1502, a fim
de reconhecer as costas da “Terra da Vera-Cruz”, o litoral brasileiro
assim nomeado por Pedro Álvares Cabral, que aí havia acostado um
ano antes. Descobrir é uma atividade adequada para definir e justificar
um certo tipo de navegação:
Porque partimos a fim de descobrir [i.nome di discoprire], e
essa era nossa missão ao deixar Lisboa, e não ir em busca de
algum proveito, não nos preocupamos em ir em busca da terra
nem de algum proveito.17
Também aí discoprire, utilizado de modo restrito, tem uma
dimensão oficial, que corresponde ao mandato com o qual o soberano
encarrega o piloto Vespúcio. A expressão in nome di discoprire define
a particularidade da missão: uma atividade específica, uma das
modalidades ou funções da navegação, por oposição a outras viagens
que poderiam ter um fim político-militar ou comercial. Descobrir
significa nesse caso navegar para conhecer e reconhecer.
O emprego intransitivo de descobrir é igualmente frequente no
castelhano de Colombo, que navegava “siempre con intençión de
descubrir” e que falava da descoberta como de um “ofício”,
queixando-se de que seu navio, pesado demais, fosse mal adaptado
“para el officio de descubrir”18.
O que se pode a partir disso chamar de intransitividade da
descoberta não tem, então, nada de “tortuoso” nem de inabitual. Ela
pode aparentar isso para o historiador, se ele atribuir simplesmente ao
verbo descobrir a significação que lhe é dada em nossos dias. Para
aqueles que descobriam, o verbo tinha um sentido técnico,
proveniente do ofício da navegação, e definia as tarefas que os
patrocinadores atribuíam aos navegadores. É uma significação, então,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
que tem também um lado oficial e político: dando sequência a seu
predecessor D. João II, trata-se da escolha de uma repetição do
descobrimento que D. Manuel faz, na rota das Índias, em busca do
Preste João – conforme o nome legendário que os europeus da Idade
Média davam ao Negus da Etiópia – e outros reinos e povos cristãos.
Essa escolha tinha sido abandonada durante uma dezena de anos, após
o retorno de Bartolomeu Dias, em proveito de um desenvolvimento do
comércio da Guiné e do Mediterrâneo. Tanto que se fazia oficialmente
a distinção entre a viagem de Vasco da Gama, em 1497-1499, que não
era definida como viagem, mas como descobrimento, e a de Cabral,
em 1500, considerada como a “primeira viagem” às Índias19. No
entanto, como outras fontes confirmam, essa descoberta – ou antes,
esse descobrimento, conforme a palavra francesa do século XVI, que
traduz bem melhor, assim como em português ou em castelhano, a
dinâmica da viagem de descoberta antes do que seu resultado – não
corresponde de modo algum, na língua de seus protagonistas, à ideia
das “Grandes Descobertas” que mais tarde serviu para designar suas
explorações.
2. De modo geral, a única evocação do descobrimento da Índia, em
fontes anteriores ou contemporâneas às viagens de Cristóvão Colombo
e de Vasco da Gama, basta para demonstrar que “descobrir” não
equivale a encontrar um espaço desconhecido: ninguém duvidava da
existência dessa Índia que se tratava justamente de reencontrar depois
que outros o haviam feito por outras rotas. “Descobrir a Índia” levava
a atingi-la, por uma via nova, a fim, sobretudo, de por si mesmo
reconhecê-la20. É assim que Cristóvão Colombo havia concebido ao
mesmo tempo o objetivo e o resultado de sua missão: como ele
afirmava no Diário de sua primeira viagem, ele tinha “descubierto las
Indias”, o que não significava de modo algum a descoberta – no
sentido moderno – de um novo continente, mas a instauração de uma
nova rota para alcançar a China de Marco Polo, de uma nova “derrota
de las Indias”21. Em sua carta de outubro de 1498, aos Reis Católicos,
quando faz o levantamento das terras que conquistou em seu nome,
ele menciona notadamente “uma vasta porção de terra firme, bem
conhecida dos Antigos, e que não é ignorada, contrariamente ao que
dizem os ambiciosos ou os ignorantes22”: a seus próprios olhos, com
exceção de várias ilhas onde nenhum europeu havia navegado
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
precedentemente, Colombo não tinha descoberto nada no sentido
moderno do termo, e certamente não um novo continente.
Contrariamente ao que ousava afirmar alguns de seus
contemporâneos, o que ele fez foi somente reencontrar, explorar e
reconhecer – em resumo, descubrir – terras de que os Antigos
conheciam muito bem a existência.
Além disso, as terras reunidas no Codex Vaglienti mostram que
scoprire ou discoprire tinha na língua toscana dos mercadores
florentinos de Lisboa um sentido essencialmente naval, até mesmo
cartográfico. Após o retorno de Vasco da Gama, um deles escreve que
os portugueses, ao longo da África, “descobriram aproximadamente
1800 léguas de terra nova […] fora o que já tinham descoberto” 23: no
decorrer de suas navegações, sua ação consiste bem em descobrir uma
certa distância de terras, quer dizer, simplesmente levar mais adiante
sua navegação ao longo das costas. Os navegadores “descobrem” a
rota das especiarias, que eles medem pelo número de léguas das costas
que eles igualmente “descobrem”24. Todos têm consciência de que,
indo a Calicute, eles apenas reencontram uma rota que navegadores e
comerciantes árabes praticavam há muito tempo25.
A “descoberta da Índia” não é outra coisa senão o reconhecimento
de uma rota que já se sabia possível. Então, Vespúcio criticava
precisamente os portugueses quanto a esse ponto, por meio de uma
glosa que tratava do sentido mesmo do verbo descobrir. Em uma carta
escrita de Sevilha, em 28 de julho de 1500, de retorno de sua viagem
sob a bandeira castelhana, ele comenta nesses termos a viagem de
Vasco da Gama:
Penso que Vossa Magnificência obteve informações dessas
novas terras encontradas pela frota que o rei de Portugal, há
dois anos, enviou para descobrir pelos lados da Guiné: uma
viagem como essa eu não chamo descobrir, mas andar pelo já
descoberto; com efeito, como verás no mapa, sua navegação
segue continuamente a terra à vista, e eles contornam toda a
terra da África por sua parte austral, que é uma província de que
falam todos os autores da cosmografia.26
O florentino defende uma concepção da descoberta que já pode
parecer mais próxima daquela que vai se impor em seguida, já que o
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
desconhecido desempenha aí um papel primordial. Mas ele reivindica,
sobretudo, uma concepção da navegação que se pode qualificar de
“colombiana” ou de ítalo-castelhana, que ele opõe diretamente à
tradição marítima portuguesa: depois de Cristóvão Colombo, Américo
Vespúcio acaba de atravessar o Atlântico e de explorar várias centenas
de milhas do continente sul-americano. No entanto, também para ele,
descobrir não significa sempre encontrar terras desconhecidas. O
verbo designa ainda uma das modalidades da navegação, que consiste
em explorar mares e costas das quais se desconfia ou das quais já se
conhece a existência27. Com duas condições, entretanto: que os navios
ousem se lançar ao longe no oceano; que eles não se contentem em
seguir os mapas estabelecidos a partir das auctoritates da ciência
geográfica. Certamente, Vespúcio exagera um pouco quando afirma
que “todas as autoridades da cosmografia” evocam a circumnavegação da África28. É verdade, por outro lado, que a navegação dos
portugueses era fundamentada nas informações e nos conselhos que
eles haviam retirado da melhor cosmografia italiana do século XV: em
particular junto ao monge camaldulense de Veneza, Frei Mauro, em
1540, e depois, vinte anos mais tarde, junto ao sábio florentino Paolo
del Pozzo Toscanelli, para quem o contorno da África aparecia como
uma solução possível29. Mas Vespúcio defende, sobretudo, uma ideia
da descoberta que inverte a relação entre a experiência da navegação e
a ciência estabelecida: descobrir não é seguir as indicações dos sábios,
mas explorar novas vias que conduzem justamente para além do que
já conheciam os “altori”. Segue que descobrir, para todos,
portugueses, castelhanos ou italianos, é essencialmente explorar e
abrir uma nova via30.
3. Poder-se-ia objetar que a escolha das fontes pode apresentar um
viés e orientar unilateralmente a significação da palavra. Afinal, é
muito normal que textos que tratam das explorações utilizem
descobrir no sentido de explorar. Mas o sentido da palavra
continuaria o mesmo em documentos que reivindicam explicitamente
a descoberta de uma terra desconhecida?
Tomemos o caso dessa peça fundadora da história do Brasil, que é
a Carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita no local, entre o final de
abril e maio de 1500, por um dos membros da frota de Cabral para
anunciar a D. Manuel sua chegada às costas de uma “terra nova”. A
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
19
A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
descoberta não se diz aí descobrimento (e menos ainda descoberta, já
que o substantivo formado com particípio passado só aparece mais
tarde), mas achamento (Vaz de Caminha anuncia ao rei o “achamento
desta terra”), nome constituído a partir do verbo achar. Quanto a
descobrir, o verbo, mais uma vez, significa claramente explorar, a fim
de conhecer melhor os lugares: o texto incita o rei a enviar a essa terra
outros navios “para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do
que nós agora podíamos saber31”. Na verdade, o verbo é pouco
empregado, contrariamente a achar, que retorna incessantemente e
permanecerá também o verbo chave da carta que D. Manuel enviará
aos Reis Católicos, logo após o retorno de Cabral, para mantê-los
informados de que desta vez ele “achou” uma terra nova32.
Os relatos dos exploradores reservavam, então, à descoberta um
sentido muito técnico. Estes últimos haviam recebido esse termo da
língua militar, como mostram as fontes provenientes das guerras que
os portugueses travavam contra os “mouros” em Marrocos. O texto
que ele utiliza mais frequentemente no século XV é a Crónica do
Conde D. Pedro de Meneses, do humanista e cronista real Gomes
Eanes de Zurara (1464-1468), que relata a “guerra santa” dos
portugueses na África do Norte33. Aquele que “descobre” é aí o
batedor, o soldado que se envia para reconhecer os lugares antes de
um ataque ou uma invasão34. Descobrir correspondia simplesmente a
uma das ações indispensáveis a toda conquista militar e tinha pouca
relação com uma pesquisa desinteressada do desconhecido. Pode-se
ainda ressaltar que, também em francês, descoberta foi por muito
tempo um “termo de guerra e de mar”, conforme as palavras de Littré:
“aller à la découverte, aller en avant d’une armée navale ou de terre
pour touver l’ennemi, reconnaître ses forces et savoir la route qu’il
tient” [ir à descoberta, ir à frente de uma armada naval ou terrestre
para encontrar o inimigo, reconhecer suas forças e saber a rota que ele
mantém]35. No Dictionnaire de l’ancienne langue française, elaborado
por Godefroy, o único sentido de descovrir relacionado com as
navegações é “percorrer para ver, para explorar”; quanto ao
descobridor, ele é o batedor, ou o precursor, no contexto militar.
O primado do sentido militar do verbo descobrir no português do
século XV não deve ser subestimado. Ele reflete, no domínio
linguístico, esse fato histórico de importância maior: o que se habituou
designar como as Descobertas portugueses na África foi por muito
20
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
tempo uma cruzada contra os inimigos infiéis, uma guerra santa
travada com o objetivo de conquistar Marrocos. Era o caso na época
do Infante Henrique (o Navegador); isso continuou ainda quando a
descoberta das costas africanas, sob João II e mais ainda sob Manuel
I, tinha como principal objetivo reencontrar o reino cristão do Preste
João, de maneira a tomar o mundo islâmico como refém. O objetivo
das navegações portuguesas não era explorar novas terras, nem
mesmo encontrar a rota das especiarias, mas abrir a rota que permitiria
pegar os “mouros” desprevenidos, em uma lógica que permanecia,
antes de tudo, a da cruzada, relançada especialmente para um D.
Manuel imbuído, assim como Colombo, de ideias messiânicas36.
Assim como as navegações armadas das Cruzadas se transformaram
em navegações de explorações e de conquistas das novas terras, a
palavra descoberta, que designava a localização das forças inimigas,
emancipou-se do campo único da guerra naval para designar a
exploração marítma, e enfim, somente mais tarde, o fato de se ter
encontrado – achado, hallado – e conquistado terras até então
desconhecidas.
Certamente, encontra-se ocasionalmente, nas fontes e na literatura
de viagens da virada do século XVI, esse último sentido, mais
moderno, em virtude do qual, por metonímia, o termo vem a designar
um dos resultados possíveis da atividade que ele denota em primeiro
lugar. Mas, durante muito tempo, esse último sentido permaneceu
minoritário. Assim, em um dos principais historiadores das
descobertas portuguesas, Fernão Lopes de Castanheda, o sentido
antigo continua a dominar muito claramente. Desde as duas primeiras
páginas de sua História do descobrimento e conquista da Índia pelos
Portugueses, aparecida em 1551, em não menos de onze ocorrências
de descobrimento ou descobrir, somente uma pode eventualmente
significar o que chamamos hoje descobrir37. Os reis João II e Manuel
enviaram a descobrir “a Índia”, “a costa da Guiné”, “o Preste João das
Índias”, e o conjunto desse descobrimento se faz em parte per mar, em
parte por terra; somente a menção da descoberta, por Dias, do Cabo
da Boa Esperança, aquel muyto grande e espantoso cabo dos antigos
não conhecido, permite pensar que um sentido novo aparece na
passagem – mas tratar-se-ia então de um deslizamento a partir de um
sentido primeiro, que permanece onipresente38. Alguns anos mais
tarde, o Tratado dos descobrimentos de Antonio Galvão, que aparece
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
em Lisboa, em 1563, não atribui nenhum privilégio às descobertas
portuguesas e espanholas e estabelece, pelo contrário, uma
continuidade, na longa duração, das viagens, navegações e
explorações de todas as ordens – tal é o sentido particularmente amplo
que ele dá à palavra descobrimentos – efetuadas desde a mais alta
Antiguidade até em 155039. É aí uma tomada de partido que tinha sido
de algum modo preparada pelo veneziano Giovan Battista Ramusio
em suas Navigazioni e viaggi publicadas de 1550 a 1559: nessa suma
que, como seu título indica, valorizava mais os empreendimentos de
exploração de todos os gêneros do que somente as descobertas no
sentido moderno do termo, um interesse particular era dedicado tanto
aos gregos ou cartagineses dos tempos antigos quanto aos venezianos
da Idade Média que, por muito tempo, antes dos portugueses e dos
espanhóis, haviam feito discoprimenti igualmente dignos de
interesse40. Trata-se aí de um texto em que o verbo descobrir,
regularmente empregado em um sentido já moderno, guarda uma
amplitude semântica particularmente extensa, recobrindo o conjunto
das experiências das navegações e viagens.
*
O estudo dos usos das palavras da descoberta nos permite de agora
em diante tirar dois ensinamentos úteis. Onipresente nas fontes, o
verbo descobrir designa aí o ofício dos exploradores e as missões que
lhes confiam os soberanos que decidiram fazer de tudo para atingirem
as Índias por uma via que lhes será própria. Por razões ao mesmo
tempo semânticas e históricas, descobrir não serve para significar que
se encontraram terras desconhecidas, e quando o verbo adquire esse
sentido é de certo modo por acréscimo, enquanto efeito da exploração.
Falar de uma era das descobertas é mais do que legítimo se
conservarmos no termo esse sentido próprio e o reservarmos para as
políticas voluntaristas de navegações de longo alcance e de busca de
novas rotas em direção às terras asiáticas.
Mas – segundo ensinamento – é preciso também tomar consciência
do fato de que um dos efeitos dessas políticas e desses
empreendimentos foi justamente o de modificar, de início
insensivelmente e depois, a longo prazo, de modo decisivo, o que vem
a ser designado como descoberta – a saber, um resultado,
22
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
particularmente importante do ponto de vista cognitivo e
epistemológico, atingido no decorrer de um processo de busca. Se esse
for o caso, é preciso convir que as famosas Grandes Descobertas se
encontram em parte fortalecidas enquanto marcadoras da
“modernidade” europeia e que por muito tempo continuará difícil
“acabar” com elas, a despeito do etnocentrismo que elas testemunham.
Resta, no entanto, precisar quando e, sobretudo, em que textos e
contextos o sentido moderno do verbo descobrir adquire uma
importância tal que chega a suplantar o sentido antigo.
A hipótese que procurarei sustentar na próxima etapa deste
trabalho é a seguinte: esse sentido moderno começa a surgir com os
contenciosos que opunham, a partir do último terço do século XV, as
coroas de Portugal e de Castilha a respeito de suas respectivas
navegações, particularmente nos textos que têm vocação a regulá-los.
É com efeito nesse quadro preciso que a descoberta como atividade
cede espaço à descoberta como título de propriedade e de conquista –
quer dizer, a palavra que finalmente traduziu a noção jurídica de
inventio. Dito de outro modo, tanto o uso, quanto o sentido tomado em
seguida pela palavra, somente foram fixados após os acontecimentos
dos quais ela se torna a antonomásia, mas tal evolução teria sido
particularmente favorizada pelos processos político-jurídicos que eles
desencadearam. Uma origem política, então, da fixação do sentido
moderno da descoberta. Se for justa, tal hipótese poderia ter alguma
incidência na história dos saberes e da epistemologia modernas.
Tradução: José Horta Nunes
Universidade Estadual de Campinas
Palavras-chave: Descoberta; Relatos dos primeiros autores;
Filologia.
Keywords: Discovery; First authors reports; Philology.
Notas
Este texto é o resultado de pesquisas realizadas no âmbito da “Cátedra francesa em
São Paulo”, da qual fui o titular em 2014 e que me permitiu efetuar uma estadia de
quatro meses no Instituto de Estudos da linguagem (IEL) da Unicamp. Agradeço a
1
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
23
A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
Eduardo Guimarães, que me acolheu em seu seminário, bem como aos estudantes e
colegas que o assistiram, cujas observações me foram muito úteis.
2 Sobre essa noção, ver o dossiê “Chrononymes. La politisation du temps” na revista
Mots. Les langages de la politique, 87, 2008. Disponível em:
<http://mots.revues.org/11532>. Acesso em 31 ago. 2015.
3 R. Bertrand, L’Histoire à parts égales. Récits d’une rencontre Orient-Occident
(XVIe-XVIIe siècle). Paris: Éditions du Seuil, 2011, p. 13. Dentre outros títulos,
citemos especialmente S. Subrahmanyam. Vasco de Gama. Légende et tribulations du
vice-roi des Indes. Paris: Alma, 2012 (ed. or. 1997); D. Chakrabarty, Provincialiser
l’Europe. La pensée postcoloniale et la différence historique. Paris: Éditions
Amsterdam, 2009 (ed. or. 2000); S. Gruzinski. Les Quatre parties du monde. Histoire
d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004; S. Subrahmanyam. Explorations in
Connected History, 2 vol., Oxford: Oxford University Press, 2005; P. Boucheron
(org.). Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard, 2009.
4 Ver os trabalhos de J. Aubin reunidos nos três volumes Le Latin et l’Astrolabe.
Recherches sur le Portugal de la Renaissance, son expansion en Asie et les relations
internationales (I et II. Lisboa-Paris, 1996 e 2002) e Le Latin et l’Astrolabe. Études
inédites sur le règne de D. Manuel (1495-1521) (III. Paris, 2006), assim como os de
L. F. F. R. Thomaz agrupados no De Ceuta a Timor. Algés: Difel, 1994.
5 C. Markovits; S. Subrahmanyam. Navigation, exploration, colonisation. Pour en
finir avec les Grandes Découvertes. In P. Boucheron (Org.). Histoire du monde au
XVe siècle, cit., p. 603-618.
6 W. E. Washburn. The Meaning of ‘Discovery’ in the Fifteenth and Sixteenth
Centuries. The American Historical Review, 68, 1, 1962, p. 1-21 (11). O artigo de M.
Bataillon, L’idée de la découverte de l’Amérique chez les Espagnols du XVI e siècle
(d’après un livre récent). Bulletin Hispanique, 55, 1, 1953, p. 23-55, discute o livro de
E. O’Gormann. La idea del descubrimiento de América. Historia de esa
interpretación y crítica de sus fundamentos. México: Centro de Estudios Filosóficos,
1951, e tem continuidade em M. Bataillon; E. O’Gormann. Dos concepciones de la
tarea histórica con motivo de La idea del descubrimiento de América. México: Centro
de Estudios Filosóficos, 1955. Ver também H. Vignaud. Histoire critique de la
grande entreprise de Christophe Colomb. Paris: Welter, 1911 e R. Levillier. America
la bien llamada. 2 vol.. Buenos Aires: G. Kraft, 1948.
7 P. Boucheron lembra com razão que “le terme de descubrimiento apparaît déjà sous
la plume de Christophe Colomb” [o termo descobrimento aparece já nos escritos de
Cristóvão Colombo] e avalia que “l’idée de ‘découverte’ n’est en rien un
anachronisme” [a ideia de 'descoberta' não é de modo algum um anacronismo]: P.
Boucheron. Qui a inventé les Grandes Découvertes? 355, L’Histoire, dossiê “Les
Grandes Découvertes”, julho de 2010, p. 8.
8 M. Bataillon, art. citado, p. 23.
9 Ibid., p. 36.
10 Surgido em 1834, o texto foi editado pela primeira vez em 1838. Sobre a história de
sua edição, ver S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit., p. 111-114.
11 Diário da viagem de Vasco da Gama. A. Baião; A. de Magalhães Basto; D. Peres
(Orgs.). Porto: Livraria Civilização, 1945.
12 S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit., p. 115.
24
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
13
Carta original del rey D. Manuel de Portugal á los Reyes Católicos participándoles
el descubrimiento de las Indias orientales por Vasco de Gama. Biblioteca de la Real
Academia de la Historia, colección de Salazar A 10, fol. 15r.-v., in Alguns
documentos do Archivo nacional da Torre do Tombo acerca das navegações e
conquistas portuguezas publicados por ordem do Governo da Sua Majestade
Fidelissima ao celebrar-se a commemoração quadricentaria do descobrimento da
America. Lisboa, 1892, p. 95-96.
14 “Arà inteso, Vostra Magnificenza, come per comesione della Alteza di questo re di
Spagna mi parti’ con duo carovelle a dì 18 di maggio 1499 per andare a discoprire alle
parte de l’ocidente per via del mare Oceano”; cito o texto manuscrito das miscelâneas
de Piero Vaglienti, a mais rica fonte de informações sobre as descobertas na época,
produzidas pelos florentinos presentes na península ibérica. Iddio ci dia buon viaggio
e guadagno: Firenze, Biblioteca Riccardiana, ms. 1910 (Codice Vaglienti), ed. critica
organizada por L. Formisano. Firenze: Polistampa, 2006, p. 106 (f. 41ra-41rb). Citado
daqui em diante como Codice Vaglienti, seguido dos números das folhas e das
páginas.
15 “E stemo in questo viaggio 13 mesi, corendo grandissimi pericoli e discoprendo
infinitissima tera de l’Asia e gran copia d’isole”. Codice Vaglienti, f. 46rb (p. 113).
16 Assim, sempre na mesma carta: “Qui m’armano questi re 3 navili perché
nuovamente vada a discoprire, e credo che saranno presto a ½ setenbre”. Ibid., f. 46vb
(p. 114).
17 “Perché andamo i.nome di discoprire, e con tal comesione ci partimo di Lisbona, e
non di cercare alcuno profitto, non c’inpaciamo di cercare la terra né in essa cercare
alcuno profitto”. Terceira carta manuscrita de Vespúcio, 1502, ibid., f. 55rb (p. 125).
18 C. Colón. Los cuatro viajes. Testamento. C. Varela (Org.). Madri: Alianza
Editorial, 2004, p. 152 (primer viaje, Miércoles, 26 de Diziembre [1492]).
19 J. Aubin. Le Latin et l’Astrolabe. III. Op. cit., p. 255-304.
20 Na carta de janeiro de 1500, por meio da qual Manuel I outorga a Vasco de Gama o
título de Almirante das Índias, parece que a novidade do “descobrimento” reside no
fato de se ter chegado à Índia contornando a África, “pays qui n’avait jamais été
atteint par là” [país que nunca havia sido alcançado por ali”. Arquivos Nacionais
Torre do Tombo, Lisboa. Livro dos Místicos, I, f. 204. In A. C. Teixeira de Aragão.
Vasco da Gama e a Vidigueira: estudo historico. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898,
doc. 14, p. 224-225. Sobre esse texto, ver S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit.,
p. 214-217.
21
C. Colón. Op. cit., p. 187 (Lunes, 18 de hebrero [1493]).
22 “[…] tanta parte de la tierra firme, de los antiguos muy cognosçida, y no ignota,
com quieren dezir los embidiosos, ó ignorantes”. Raccolta di documenti e studi
pubblicati dalla R. Commissione colombiana pel quarto centenario dalla scoperta
dell’America. Roma: 1894, I, II, p. 47.
23 Girolamo Sernigi. Carta de Lisboa, 10 de julho de 1499. Codice Vaglienti, f. 61rb
(p. 131): “Scoprino di terra nuova circa di leghe 1800 […] fuora a quelo che avevano
scoperto”.
24 Guido Detti escreve em 10 de agosto de 1499: “ò trovato arivato qui una nave di
questo re di Portogallo che fu a discoprire le spezierie in conserva di tre altre navi di
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
25
A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
questo medesimo re, le qua’ partinno, tute di conserva, già sono valichi 2 anni e ànno
discoperto di nuovo paese circa a leghe 4000”. Ibid., f. 68rb (p. 141-142).
25 Como mostram estas informações transmitidas por G. Detti: “Èvi infinite navi, e
quivi è la propia fonda di tute le spezierie le qua’ vengono di Levante. Le quali
spezierie conducono con esse nave a uno stretto del cavo della Arabia dove mete
i.mare uno ramo del Mare Rosso […]”. Ibid., ff. 68rb-68va (p. 142). Os florentinos
estão diretamente interessados por essa nova rota, enquanto mercadores instalados em
Lisboa; eles contribuem em primeiro lugar para armar as frotas, financiar as viagens e
participar dos comércios controlados pelos portugueses há várias décadas. Esse
intreresse econômico é também político, ou melhor, geopolítico: os florentinos
percebem imediatamente tudo o que os venezianos têm a perder com esse negócio,
assim como seus fornecedores mamelucos. É o que diz ainda, dentre outros, Detti, que
imagina que, após essa viagem de Vasco da Gama, os venezianos não têm outra
alternativa senão “voltarem a ser pescadores”: “faciàn conto el soldano n’abi una
cativa nuova e che e’ Veniziani, per perdersi e’ trafichi di Levante, abino a tornare
pescatori, perché veranno a pregio le spezierie per questa via, che loro non ne
potranno condurre.”, f. 69vb (p. 144). Aquilo que os venezianos perderão, pensa Detti,
os florentinos poderão recuperar, desde que consigam retomar Pisa e seu porto:
“Stimasi, riavendosi Pixa, questo re farebe stapola in Porto Pisano, per eser la
migliore scala d’Italia e a lui più comoda” (ibidem). A observação é ainda mais
incisiva na medida em que nessa época (agosto de 1499) Veneza é o principal apoio
dos pisanos em sua resistência contra os florentinos que os assediam.
26 “Credo Vostra Magnificenza arà inteso delle nuove terre ch’à trovato l’armata che
due anni fa mandò e.re di Portogallo a discoprire alle parte di Ghinea: tal viaggio
come quello, non lo chiamo io discoprire ma andare pel discoperto, perché, come
vedrete per la figura, la loro navicazione è di continovo a vista di tera, e volgono tutta
la terra de l’Africa e parte de l’austro, perch’è provincia dela quale parlano tutti li
altori della cosmogrofia.”. Codice Vaglienti, f. 47ra (p. 114).
27 São raros os especialistas que sublinham que o sentido antigo do verbo residia no
esforço de exploração. Citemos, todavia, João Franco Machado, que havia ressaltado
que “Descobrir não significava apenas achar por acaso. Era, antes, resultado de
calculado esfôrço de busca de uma terra de cuja existência havia conhecimento
prévio, ainda que vago ou erróneo”. F. Machado. O conhecimento dos arquipélagos
atlânticos no século XIV. In História da expansão portuguesa no Mundo. A. Baião;
H. Cidade; M. Múrias (Org.). vol. I. Lisboa: Editorial Atica, 1937, p. 272-273; assim
como Ilaria Luzzana Caraci, que mais recentemente assinalou que o verbo indicava
nos textos dessa época “toute expérience à caractère exploratoire” [toda experiência
de caráter exploratório]: I. Luzzana Caraci. “Per lasciare di me qualche fama”. Vita e
viaggi di Amerigo Vespucci. Roma: Viella, 2007, p. 142.
28 Acrescentemos que isso é injusto em relação aos portugueses. O contorno do Cabo
da Boa Esperança era efetuado ao custo da volta do largo, que consistia em se
distanciar muito em direção ao oeste pelo oceano para evitar a bonança do golfo da
Guiné e reencontrar ventos muito mais favoráveis em direção à África meridional: é
essa manobra, tornada tradicional, que está provavelmente na origem da primeira
acostagem portuguesa nas costas do Brasil.
26
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Romain Descendre
29
Sobre o mapa do mundo que ele elaborou a pedido do rei D. Afonso, em 1455, Frei
Mauro havia claramente colocado em evidência a possibilidade de chegar à Ásia por
meio do contorno da África. A carta de Paolo del Pozzo Toscanelli era uma resposta
às informações que o mesmo Afonso V, em 1474, lhe havia solicitado a respeito da
melhor rota para chegar às Índias. Se, como se sabe, ele aconselhou pegar a via
ocidental, que ele considerava mais direta e sobretudo mais curta que a rota africana,
ele também considerava esta última – “pela Guiné” – como uma possibilidade
evidente. Ver H. Vignaud. La lettre et la carte de Toscanelli sur la route des Indes
par l’ouest adressées en 1474 au Portugais Fernam Martins et transmises plus tard à
Christophe Colomb. Étude critique sur l’authenticité et la valeur de ces documents et
sur les sources des idées cosmographiques de Colomb, suivie des divers textes de la
lettre de 1474 avec traductions, annotations et fac-similé. Paris: Leroux, 1901, p. 264.
30 É exatamente essa concepção que se encontra em uma outra passagem da carta já
citada de Guido Detti, quando ele sublinha a decisão de D. Manuel de manter secretos
os mapas náuticos estabelecidos graças à navegação de Vasco da Gama. “Questo re à
fato tôrre tutte le carte da navicare sotto pena la vita e confiscazione de’ loro beni,
cioè tutte quelle che dànno lume di questa costa, perché non si sappi quella gita overo
l’andare a camino per quelle bande, acciò non vi si meta altra gente. Credo potrà ben
fare, ma tuto s’à a sapere e àvisi a metere ad andare de li altri navili”, Codice
Vaglienti, ff. 70va - 70vb. Impedir que o trajeto seja divulgado: a rota descoberta deve
certamente ser anunciada, mas certamente não traçada, descrita ou mostrada. Detti
expressa todo o seu ceticismo na medida em que essa navegação será necessariamente
adotada por muitos outros navios.
31 “Senhor, posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim igualmente os outros
capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do achamento desta Vossa terra
nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha
conta disso a Vossa Alteza […] E então o Capitão perguntou a todos e nos parecia
bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos
mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora
podíamos saber, por irmos adiante na nossa viagem […]”, A carta de Pêro Vaz de
Caminha: o descobrimento do Brasil. Silvio Castro (introdução, atualização e notas).
Porto Alegre: L&PM, 1996, p. 76 e 85 (os itálicos são meus).
32 “O dito meu capitão com treze naos partio de Lixboa a ix de Março do anno
passado e nas outavas de Páscoa seguinte chegou a üa terra que novamente descobrio,
a que pôs nome Sancta Cruz; em que achou as gentes nuas como na primeira
inocência, mansas e pacíficas; a qual pareceo que Nosso Senhor milagrosamente quis
que se achasse, porque é mui conviniente e necessária à navegação da Índia, porque
ali corregeo suas naos e tomou água; e polo caminho grande que tinha pera andar nom
se deteve pera se enformar das cousas da dita terra, somente dali me enviou um navio
a me notificar como a achara, e fez-se a caminho, via do Cabo de Boa Esperança”.
Carta citada por L. F. F. R. Thomaz. D. Manuel a Índia e o Brasil. Revista de História,
161, 2009, p. 44.
33
O
aplicativo
online
“Corpus
do
português”
(disponível
em:
<http://www.corpusdoportugues.org>. Acesso em: 31 ago. 2015), permite buscas
lexicográficas e comparações de ocorrências de obras portuguesas antigas, que
deixam poucas dúvidas sobre o sentido dominante que o termo tinha no século XV.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
27
A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA
(PRIMEIROS ELEMENTOS)
34
Somente o verbo parece de uso frequente. O termo descobrimento é quase
inexistente no século XV, ao passo que se tornará de uso massivo no século seguinte.
Observemos, aliás, que uma outra crônica importante de Zurara, a pretensa Crónica
do Descobrimento e Conquista da Guiné – principal documento que retraça os gestos
do infante Dom Henrique (o Navegador) – só recebeu esse título tardiamente e se
intitulava na realidade Crónica na qual som scriptos todollos feitos notavees que se
passarom na conquista de Guinee (1453).
35 E. Littré. Dictionnaire de la langue française. s. v. “découverte”.
36 Sobre o conjunto dessas questões, ver sobretudo os trabalhos de J. Aubin e de L. F.
F. R. Thomaz; deste último, particularmente: Le Portugal et l’Afrique au XV e siècle:
les débuts de l’expansion. Arquivos do Centro Cultural Português, 26, 1989, p. 61256, bem como os textos reunidos em De Ceuta a Timor, op. cit.
37 F. L. de Castanheda. História do descobrimento e conquista da Índia pelos
Portugueses. Livro I e II. P. de Azevedo (Org.). Coimbra, 1924, p. 5-6.
38 Dessa única ocorrência, isolada entre tantas outras, S. E. Morison, citando o texto
de Castanheda, deduzia que o sentido moderno existia tal qual no século XVI: parecenos, ao contrário, bem mais surpreendente que essa acepção ainda continue
minoritária em 1551. (S. E. Morison, Portuguese Voyages to America in the Fifteenth
Century. Cambridge: Harvard University Press, 1940, pp. 9-10).
39 A. Galvão, Tratado dos Descobrimentos. Visconde de Lagoa (Org.). Porto: Livraria
Civilização editora, 1944. Observemos que o título original não era aquele que se
impôs mais tarde: Tratado […] dos diversos & desvayrados caminhos por onde nos
tempos passados a pimenta & especearia veyo da India às nossa partes, & assi de
todos os descobrimentos antigos & modernos, que são feitos até a era de mil &
quinhentos & cincoenta, onde se vê que descobrimentos apenas completa caminhos.
40 G. B. Ramusio. Navigazioni e viaggi. M. Milanesi (Org.). 6 vol.. Torino: Einaudi,
1978-88. Ver R. Descendre e F. Lejosne. Giovanni Battista Ramusio et la
‘conférence’ des récits: Anciens et Modernes dans les Navigationi e viaggi. In Le
présent fabriqué (Espagne-Italie, XVe-XVIIe siècles). F. Crémoux; J. L. Fournel; C.
Lucas (Orgs.). Paris: Classiques-Garnier, no prelo.
28
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIRWHORF”1
Isadora Machado2
Resumo: Objetiva-se demonstrar a equivocidade dos sentidos em
torno do que ficou conhecido, no século XX, como Hipótese SapirWhorf. Para tanto, analisam-se os diferentes processos de construção
da autoria em Edward Sapir e em Benjamin Whorf, bem como a
circulação das diferentes definições da Hipótese. Demonstra-se que,
na história das ideias linguísticas, a Hipótese Sapir-Whorf se constitui
em um desacordo entre: quem seriam seus autores, qual seria a
melhor maneira de designá-la e, ainda, a que conceito ela refere. A
partir disso, insta-se a refletir sobre uma prática científica
perspectivista, que faz trabalhar as possibilidades de uma poética do
comum.
Abstract: The objective is to demonstrate the equivocality of meanings
around what became known as Sapir-Whorf Hypothesis, in the
twentieth century. Therefore it analyses the different authorship
construction processes in Edward Sapir and Benjamin Whorf, and
also the movement of different hypothesis settings. It demonstrates
that in the history of linguistic ideas, the Sapir-Whorf Hypothesis is
done in the disagreement between who would be their authors, what
would be the best way to designate it and also which is the subject of
it. From this, it urges to reflect on a scientific perspective practice,
which does work the possibilities of a “poetic of mutual”.
Tudo o que não invento é falso.
Manoel de Barros
Agis dans ton lieu, pense avec le monde.
Édouard Glissant
1. Palavras iniciais
As teorias e os métodos linguísticos circulam, de um modo geral,
como se houvesse obviedade ou mesmo homogeneidade em suas
questões, propósitos, objetos – como se houvesse um acordo sobre
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
29
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
quais seriam os problemas pelos quais as Ciências da Linguagem são
responsáveis. Cada ponto dessa rede de saberes, entretanto, é algo
bem mais complexo do que costuma parecer. Na medida em que
vamos desenrolando o novelo de uma ideia, descobrimos diferentes
caminhos do sentido, por vezes contraditórios. Uma ideia é um
amálgama, de modo que é preciso dissolvê-la para compreender sua
história.
O objetivo deste artigo é dissolver a evidência com a qual tem sido
lida a “Hipótese Sapir-Whorf” (HSW). Para tanto, demonstramos que
o processo de constituição da autoria em Edward Sapir (1884-1939) e
em Benjamin Whorf (1887-1941) é bastante diferente. Os dois
autores, inclusive, não formularam a hipótese que recebe o nome
deles. Ela só foi inventada em 1954, em uma conferência proferida
por Harry Hoijer (1904-1976), intitulada Sapir-Whorf Hypothesis.
Diante disso, somos instados a investigar quais os sentidos da HSW
que circulam em diferentes comentadores do tema.
Primeiramente, trazemos o problema geral da autoria, para em
seguida compreender de que maneira ela se coloca em Sapir e em
Whorf. A partir disso, analisamos diferentes artigos de diferentes
épocas produzidos por comentadores da hipótese, com vistas a
perceber os efeitos da tentativa de definir uma ideia que só existe em
sua equivocidade. Esperamos, nesse percurso, contribuir para a
interpretação e constituição da História das Ideias Linguísticas, de
maneira que a prática científica possa ser pensada como uma poética
do comum.
2. A questão da autoria
Michel Foucault (1969), ao golpear o corolário do sujeito
metafísico, questiona a evidência com que tomamos as “categorias” de
escrita, de obra e de autor. Afirma que a questão “o que é um nome de
autor” apresenta uma série de complicadores, dentre eles o fato de que
o nome de autor é um nome próprio e, dessa maneira, tem outras
funções que não apenas as indicadoras, pois está situado entre os polos
da descrição e da designação (nem totalmente uma, nem totalmente
outra). O nome de autor não seria apenas um “nome de discurso”, já
que exerceria um determinado papel – “o nome de autor não transita,
como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real
e exterior que o produziu, mas que, de algum modo, bordeja os textos,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
recortando-os, delimitando-os, tornando-lhes manifesto o seu modo de
ser ou, pelo menos, caracterizando-lhes” (FOUCAULT, 1969/2006,
p.46-47). Este lugar de origem ao qual poderia ser remetido um
determinado discurso, e que Foucault denomina função-autor, é
passível de penalização no interior de uma sociedade, bem como não
se exerce de forma universal em todos os discursos, na medida em que
nem sempre os mesmos textos pedem autoria nas mesmas épocas
(houve um tempo em que dos textos literários, por exemplo, não se
perguntava sobre o autor, o que seria impensável nos dias de hoje).
Além disso, a função-autor é a construção de “um certo ser racional”,
com poder profundo de criação, e em cuja escrita certos conjuntos de
signos remetem ao locutor real. Dessa maneira,
a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que
encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se
exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os
discursos, em todas as épocas e em todas as formas de
civilização; não se define pela atribuição espontânea de um
discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações
específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para
um indivíduo real, podendo dar lugar a vários “eus” em
simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de
indivíduos podem ocupar. (FOUCAULT, 1969/2006, p.57)
Orlandi (1988), entretanto, produz outro entendimento da funçãoautor. Retoma Ducrot (1985), para em seguida deslocar-se, ao dizer
que o locutor e o enunciador são funções enunciativas do sujeito, mas
que o “autor” também é uma dessas funções (no que então se desloca
da ideia ducrotiana). Locutor, enunciador e autor seriam, portanto,
funções enunciativas do sujeito –
nossa proposta é, então, a de colocar a função (discursiva) autor
junto às outras e na ordem (hierarquia) estabelecida: locutor,
enunciador e autor. Nessa ordem, teríamos uma variedade de
funções que vão em direção ao social. Dessa forma, esta última,
a de autor, é aquela (em nossa concepção) em que o sujeito
falante está mais afetado com o social e suas coerções.
(ORLANDI, 1988/2007, p.77)
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
Assim, o autor, enquanto a função em que o eu se coloca como
origem do que diz, é a “dimensão discursiva do sujeito que está mais
determinada pela relação com a exterioridade (contexto sóciohistórico)” (ORLANDI, 1988/2007, p.77) e, portanto, está mais
coagido pelas regras da instituição, fazendo com que sejam mais
visíveis os procedimentos disciplinares. Se para Foucault a funçãoautor não vale em todos os discursos, Orlandi atribui um outro alcance
para esta função pensando-a como uma função discursiva, para dizer
que o princípio de autoria é necessário a qualquer discurso, pois são
justamente os efeitos dessa autoria que produzem o efeito de unidade
da textualidade e do discurso: o sujeito necessita transitar “da
multiplicidade de representações possíveis para a organização dessa
dispersão num todo coerente, apresentado-se como autor, responsável
pela unidade e coerência do que diz” (ORLANDI, 1988/2007, p.76).
Há, nesses termos, uma “assunção de autoria”, pois “o autor é o
sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos,
representa, pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito,
na posição em que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que
diz, como diz etc.” (ORLANDI, 1988/2007, p.76).
Nesses termos, portanto, caracterizaremos a seguir as diferentes
formas como a autoria, nesse sentido orlandiano, é construída em
Sapir e em Whorf.
3. Edward Sapir
Edward Sapir (1884–1939) nasceu na Pomerânia, antigo território
da Prússia, hoje território da Alemanha. Emigrou para os Estados
Unidos da América em 1889 e lá realizou todos os seus estudos.
Obteve o bacharelado e o mestrado em filologia germânica pela
Columbia University e o P.h.d. em Antropologia pela mesma
universidade, sob a orientação de Franz Boas (1858–1942). Sapir,
desde o bacharelado, sempre se interessou pelas línguas ameríndias e
chegou a descrever várias delas, principalmente línguas indígenas nos
Estados Unidos da América e no Canadá. A maior parte de seus
trabalhos foi dedicada a este tema e, em decorrência do contato com
diversas línguas estrangeiras, oriundas de culturas que ele classificou
como exóticas, é que formulou diversas de suas ideias a respeito da
linguagem.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
Antes de publicar Language3 (1921), uma de suas obras mais
conhecidas, Sapir publicou uma série de artigos e livros que
descreviam e analisavam diversas línguas ameríndias. Entretanto,
diferenciando-se da Linguística feita na Europa, essa “descrição” tinha
um cunho antropológico, a tal ponto que Boas, que é tido com um dos
clássicos da antropologia, trabalhava junto ao linguista, pois descrever
uma cultura era, inevitavelmente, descrever sua língua.
Sapir, enquanto “nome de autor”, estava individualizado em uma
instituição acadêmica. Desde seus estudos de formação em
universidades tradicionais dos EUA, até sua atuação enquanto
pesquisador e professor na University of Chicago e na University of
Yale, seu nome passa a definir um certo domínio de pesquisa e a
descrever uma prática. Dessa maneira, em 1921 ele lança Language
com o objetivo específico de sistematizar o que é, de sua perspectiva,
a linguagem. Segundo Sapir (1921/2004, p.03), esta obra serviria
“para fornecer uma certa perspectiva sobre a linguagem, e não para
reunir fatos sobre ela”4 e também “para mostrar o que eu entendo ser a
linguagem, qual é sua variabilidade no tempo e no espaço e qual é sua
relação com outros interesses humanos fundamentais – o problema do
pensamento, a natureza dos processos históricos, raça, cultura, arte”5.
Identificamos em sintagmas como “uma certa perspectiva”, “o que eu
entendo ser a linguagem” e a definição do que seriam “interesses
humanos fundamentais” marcas da “assunção de autoria” (ORLANDI,
1988), já que aqui o sujeito se coloca marcadamente como
responsável e instaurador de um determinado discurso. Além disso,
outra marca muito comum na construção de autoria é recortar um
memorável como passado do que se diz. Neste prefácio, Sapir se filia
a Benedetto Croce e se diz em débito com Croce por este ter colocado
o problema da linguagem em relação à arte.
Language é uma obra que procura definir não apenas o que é a
linguagem, mas coloca seu autor como lugar de origem dessa
definição. Se considerarmos que um título é sempre reescrito pelo
conteúdo da obra,6 vemos na separação dos capítulos tudo aquilo que
seria a linguagem e o que a afetaria. O trabalho dessa autoria está
representado, por exemplo, na divisão dos capítulos, que apresenta,
como foi anunciado no prefácio, tanto os elementos que compõem a
língua (os sons, as formas, os processos gramaticais etc.), quanto os
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
fatores que a afetam (história, leis fonéticas, raça, cultura, literatura
etc.).
O lugar-autor de Sapir era de tal modo constituído que, quando de
sua morte, diversos intelectuais da época publicaram artigos sobre ele.
Linguista dinamarquês de grande projeção, Louis Hjelmslev (18991965) afirmou na ocasião que “quando ele [Hjelmslev] leu o trabalho
[de Sapir], foi para ele como uma revelação e uma confirmação de
suas vagas intuições a respeito de uma linguística geral comparativa
que poderia ir além do tipo de abordagem feita até então”78. Dessa
maneira, Sapir, enquanto nome-de-autor, entra para a história de uma
Linguística não-saussureana feita na América.
4. Benjamin Whorf
A trajetória de Whorf é bastante diferente da de Sapir. Benjamin
Lee Whorf (1897-1941) nasceu em Massachusetts, nos Estados
Unidos da América. Iniciou o curso de química no MIT e trabalhou
como inspetor de incêndio em uma firma de seguros. Segundo John
Bissell Carroll (1916-2003), organizador da obra de Whorf, Whorf
mantinha seu emprego como inspetor químico e, paralelamente,
durante suas viagens de trabalho, mantinha seus estudos sobre outras
áreas, como trabalhos sobre a escrita Maia. Desse modo, os
conhecimentos que adquiriu em linguística geral e em metodologia
linguística foram em grande parte por conta própria. Seu
conhecimento, segundo Carroll (1956), provavelmente nunca tivesse
amadurecido se ele não tivesse encontrado Sapir, que, na época, era
uma das maiores autoridades não só em línguas ameríndias, como
também em linguística geral.
O primeiro encontro de Whorf com Sapir se deu em setembro de
1928, no Congresso Internacional de Americanistas, e depois em 1929
e 1930, no mesmo Congresso. O contato mais próximo com Sapir,
entretanto, só se deu de modo definitivo em 1931, quando Whorf foi
para Yale assumir seu posto de professor de Antropologia para ensinar
linguística.
Whorf ficou conhecido pelo estudo da língua Hopi e, em 1932,
conheceu um falante nativo dessa língua que morava em Nova Iorque.
Com instruções de Sapir, Whorf passa a desenvolver uma análise
linguística do Hopi para, em 1938, passar um breve período no
Arizona, em uma reserva Hopi. Whorf acreditava que seria impossível
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
popularizar a Linguística se ela não tivesse um apelo popular: “essa
mensagem, acreditava Whorf, era que a Linguística tem muito a dizer
sobre como e o que pensamos” (CARROLL, 1956, p.18) 9. Desse
modo, é um dado importante o desejo de Whorf de popularizar a
Linguística por meio de um assunto específico: o pensamento, já que
encontramos em seus artigos este forte apelo. O estudo do
“pensamento” entra em cena, portanto, não por razões teóricas e
analíticas, mas fundamentalmente para cumprir a necessidade, sentida
por Whorf, de popularizar a Linguística. Isso demonstra uma
construção particular do conhecimento, qual seja: sobrepor ao material
de trabalho e de análise um interesse e um assunto bastante definidos
– nesse caso, o interesse de popularizar a Linguística, falando do
pensamento (o que quer que isso signifique).
Quando tomamos a única obra publicada com autoria injungida a
Whorf, o primeiro a se notar é que se trata de uma organização,
editada por John B. Carroll. Aqui começam as diferenças do processo
de autoria entre Sapir e Whorf, pois quem dá “unidade” aos textos de
Whorf é um editor, que não somente escolheu os textos que
comporiam a obra, como deu título a artigos inacabados, completou
trechos não finalizados e deu nome ao conjunto: Language, Thought
and Reality10. O editor indica em todos os textos a natureza das
alterações e alguma explicação, no caso de textos que não foram
publicados por Whorf. Se tomamos o primeiro texto da obra, “On the
connections of ideas”11, temos um bom exemplo de como Carroll
produz a unidade que é imputada ao autor-Whorf: o texto nunca foi
publicado por Whorf, foi encontrado “parcialmente datilografado,
parcialmente escrito à mão” como um “projeto de carta” (CARROLL,
1956, p.35) que não se sabe ao certo se foi terminada e enviada, e nela
o editor afirma que fez “algumas emendas editoriais e alterações
quando necessário”. Vale lembrar que Carroll chama esse texto de
“ensaio não publicado”. Dessa forma, um fragmento de carta, em
parte manuscrita em parte datilografada, é alterado, emendado e
transformado em ensaio que possui um título.
Esse gesto de editoria se repete em outros artigos. O editor afirma
que alguns “textos” foram encontrados no meio de outros, alguns
muito rabiscados, e que ainda podem ser parte de outros textos. No
caso dessa obra de Whorf, aquele que cumpre a função-autor, no
sentido de selecionar, dar unidade, etc., não “coincide” com o nome
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
ao qual é imputada a responsabilidade jurídica do texto, mas com o
editor.
Chase (1956), no Prefácio da obra, afirma que, tal como Einstein
encontrou a relação entre elementos aparentemente divergentes –
tempo e espaço – e deu nova dimensão ao conhecimento humano,
assim também Whorf estabeleceu a relação entre a linguagem humana
e o pensamento humano. Afirma ainda que a razão que encontra para
alguém como Whorf, profundamente estudioso da linguagem, ter
permanecido na “escuridão” durante tanto tempo é o fato de não ter
formação na área específica de Linguística, mas na de Engenharia
Química12. Com essa afirmação, provoca o efeito, que será muito
comum em outros comentadores, de evocar Sapir, que teve essa
formação específica, de modo silenciado13. As análises que
apresentamos a seguir indicam justamente essa tensão, entre o nome
de Whorf e o nome de Sapir.
5. A invenção da Hipótese Sapir-Whorf
É no mínimo intrigante o fato de dois autores tão diferentes, que
nem sequer tiveram uma relação profissional estreita, nomearem uma
hipótese que nunca definiram. Carroll (1956, p.27) faz uma curiosa
construção: “O princípio whorfiano de relatividade linguística, ou,
mais rigorosamente, a hipótese Sapir-Whorf (uma vez que Sapir
certamente contribuiu para o desenvolvimento da ideia) atraiu,
evidentemente, bastante atenção”14. A Hipótese Sapir-Whorf é a
deriva de “Princípio da Relatividade Linguística de Whorf”, o que
significa o trabalho de Sapir como “colaborador” no desenvolvimento
da ideia e significa o trabalho de Whorf como principal, estabelecendo
assim uma hierarquia entre as duas obras.
O nome “Hipótese Sapir-Whorf” foi utilizado pela primeira vez
por Harry Hoijer, em 1954, numa conferência intitulada “Sapir-Whorf
Hyphotesis”. Entretanto, segundo Koerner (1995, p.206), as “bases”
do que seria a hipótese remontariam a Wilhelm von Humboldt (17671835) e sua haste de filiações na América15. A questão é controversa,
mas o autor aponta que a linha de filiações se daria da seguinte forma:
“Humboldt > Steinthal > Boas > Sapir > Voegelin > Hymes ->
Darnell”. Koerner afirma ainda que isso não é ponto pacífico nas
discussões, e alguns autores remontam a hipótese a Aristóteles. Outros
a Leibniz.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
A construção de Carroll (1956) é sintoma de um movimento que se
desenvolverá nas décadas seguintes: a atribuição da Hipótese a Whorf,
apesar de, nos manuais brasileiros de linguística, o nome de Whorf
não circular fora do sintagma “hipótese Sapir-Whorf”, ao passo que o
nome de Sapir figura, sozinho, em vários trabalhos brasileiros. Outra
característica nas reformulações da hipótese é, paralelamente a isso, a
compreensão da hipótese por um viés cognitivista e biologizante, que
é permitido muito mais por Whorf que por Sapir, por conta das
diferentes configurações de autoria. Whorf, como dissemos, queria
popularizar a Linguística e uma das formas de fazê-lo seria discutir
um assunto de amplo interesse, como o pensamento.
Alguns autores já mostraram as diferenças existentes entre o que
poderia ser compreendido como “relativismo linguístico” em Sapir e
em Whorf. Sapir estaria ligado à Weltanschaungtheorie16, herdeira de
Leibniz, Herder, Vico, Humboldt, etc.; enquanto Whorf falaria de
relatividade a partir da física e da teoria da relatividade, de Einstein. A
apropriação de uma determinada linguística cognitivista de viés
biológico da “obra” de Whorf, determinando assim a significação dos
textos, fica explicada pelas diferentes, não apenas autorias, mas
também filiações que Sapir e Whorf produzem.
Demonstraremos a seguir aspectos significativos da circulação das
formulações em torno do que os manuais de Linguística chamam de
Hipótese Sapir-Whorf. Para tanto, tomamos seis artigos de estudiosos
emblemáticos do tema, e que foram escritos em diferentes décadas.17
Analisamos, nos recortes que ora trazemos, o processo de deriva dos
sentidos18 que é produzido quando se trata de definir uma hipótese.
[A] “Linguistic Relativity: the views of Benjamin Lee Whorf”19, Max
Black, 1959.
[a1] O objetivo de interpretar o que Whorf chamou de “relatividade
linguística”, de modo minimamente preciso para ser testado e
criticado, encontra enormes obstáculos em seus escritos: formulações
variáveis dos pontos principais são frequentemente inconsistentes, há
muito exagero e um misticismo vaporoso obnubila perspectivas já
bastante indefinidas. O pensamento dominante está felizmente
expresso em uma citação que o próprio Whorf faz de Sapir na epígrafe
de seu melhor ensaio: “os seres humanos não vivem sozinhos no
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
mundo objetivo, nem no mundo da atividade social tal como é
ordinariamente compreendido, mas estão isto sim à mercê de uma
língua particular que se tornou o meio de expressão da sociedade
humana. É uma grande ilusão imaginar que alguém se ajusta
substancialmente à realidade sem usar a língua ou que a língua é uma
maneira fortuita de resolver problemas específicos da comunicação e
da reflexão. O fato é que o “mundo real” é em grande medida
construído inconscientemente sobre os hábitos linguísticos do grupo.”
Isso tem sido chamado de “Hipótese Sapir-Whorf”.20
Nesse trecho, de início é imputada a Whorf a criação do conceito
de “relatividade linguística”, mas este é significado como
inconsistente, exagerado e repleto de misticismos. A “ideia
dominante”, segundo o Black, está expressa em uma citação de Sapir.
Há a presença de um advérbio significando a possibilidade de se
compreender as ideias de Whorf – felizmente – porque, estabelece-se
uma relação de causa, ele próprio citou Sapir, que resume a ideia.
Toda a citação de Sapir é, em seguida, retomada pelo pronome “isso”
e então “Sapir-Whorf Hypothesis” passa a ser significada por uma
definição. Hipótese Sapir-Whorf é/diz que “seres humanos não vivem
no mundo objetivo sozinhos [...]”. Dessa maneira, Whorf cunhou o
conceito de relatividade linguística21, e a definição desse conceito é
um trecho de um texto de Sapir.
[a2] É bastante óbvio que uma língua impõe a seus usuários um
vocabulário e uma gramática herdados; mas é claro que Whorf quer
dizer algo além disso. A “experiência” precisa ser um subsistema
composto por “padrões” que são significativos tanto para o falante
nativo quanto para o linguista que o investiga.22
Já aqui, a ideia de que a “linguagem impõe uma gramática e um
vocabulário herdados a seus usuários”, que poderia ser uma das
formulações da HSW, “é muito óbvio para ser mencionado”. O autor
afirma então que Whorf, e não Sapir-Whorf, dizia mais que
simplesmente isso. Percebe-se então o jogo entre o recorte anterior e
este, já que as ideias de Whorf podem ser resumidas com uma citação
de Sapir, e então a “relatividade linguística” de Whorf é a citação de
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
Sapir e tudo isso é a HSW, mas, em seguida, é apenas Whorf que diz
mais que “a linguagem...”.
De imediato fica claro que há um deslize constante entre a) quem
“fabricou” a Hipótese e b) o que a hipótese afirma.
[B] “Penguins Don't Care, but Women Do: A Social Identity Analysis
of a Whorfian Problem”23, Fatemeh Khosroshahi, 1989.
[b1] Em várias ocasiões, a hipótese Sapir-Whorf é tomada como
verdadeira independente de sua natureza empírica. As tentativas
feministas para eliminar o “ele” genérico devem supor que de alguma
maneira a linguagem afeta o pensamento, uma vez que não há uma
ofensa intrínseca no uso da própria palavra. As pesquisas, até hoje, de
alguma maneira tem mostrado que o “ele” genérico tende a sugerir um
referente masculino na cabeça do leitor. Este estudo pergunta se a
interpretação das pessoas a respeito de uma sentença genérica varia
dependendo se elas seguem ou não propostas feministas e corrigiram a
própria linguagem.24
Neste estudo de caso, a hipótese é definida implicitamente. A
justaposição das frases mostra que “The Sapir-Whorf hypothesis” é
compreendida como o fato de “a linguagem afetar o pensamento”.
[b2] A reivindicação de que as palavras genéricas masculinas auxiliam
a perpetuar a visão de mundo androcêntrica supõe, de modo mais ou
menos explícito, a validade da hipótese Sapir-Whorf, segundo a qual a
estrutura da língua que falamos afeta a maneira como pensamos (cf.
Whorf, 1956). Para muitos de nós, é uma experiência atrativa que
línguas diferentes nos fazem pensar e sentir diferentemente.25
Nesse outro trecho, a Hipótese é significada pela mesma relação,
mas de modo mais específico, já que não é meramente a “linguagem”,
mas a “estrutura da linguagem” que afeta, não o pensamento de um
momento geral, mas “o modo como pensamos”. Já na frase que segue,
é acrescido ao par “línguas diferentes”–“pensar diferente” outro
verbo: sentir. Esse trecho dá a ver ainda que, se no artigo anterior a
definição do que Whorf criou, a “relatividade linguística”, era uma
citação de Sapir, nesse trecho há uma definição do que seria a
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
“hipótese Sapir-Whorf” no aposto, e em seguida a remissão é ao texto
de Whorf em que ele cita Sapir.
[b3] Dessa maneira, se consideramos a forma fraca26 da hipótese
Sapir-Whorf, que postula que diferenças na língua são correlatas com
diferenças no pensamento, podemos reapresentar nossa conclusão
dessa maneira: todos os grupos conformam a tese de Whorf, exceto os
homens que corrigiram suas linguagens.27
Nesse trecho, a hipótese aparece adjetivada por “forma fraca”, de
maneira que existiria uma “versão mais fraca” e, por conseguinte,
apesar de isso não estar dito aqui, uma “versão mais forte” da
hipótese. A versão mais fraca utiliza o adjetivo “correlatas”, ou seja,
há uma “ligação” entre linguagem e pensamento, e não uma
“determinação” ou uma “relação direta” entre linguagem e
pensamento.
[b4] Apesar de estarmos longe da especulação de Whorf (1956), de
que a estrutura da língua afeta a ideologia de natureza de alguém, esse
achado [do artigo] é um caso em que a língua tem consequências
cognitivas.28
Nesse recorte há outro deslize notável: HSW é dita como “Whorf’s
speculation”, e o “conteúdo” da Hipótese passa a ser a relação entre a
linguagem e a ideologia (no sentido de conjunto de concepções), que,
por sua vez, é afetada pelo sentido de “consequências cognitivas”.
[b5] Assim como Whorf especulou dizendo que a linguagem afeta o
pensamento, alguns pesquisadores têm defendido que uma mudança
na ação produz mudança cognitiva, tal como no conselho de Pascal:
“Reze, e a fé vem em seguida” (...). Na verdade, há um pouco de
fundamentação empírica nessa ideia (...), e trata-se de uma ideia com
implicações sociais de grande importância. De fato, a noção de que
uma mudança no que as pessoas fazem pode conduzir a uma mudança
no que elas pensam tem sido parte da lógica usada para importantes
programas de mudança social, tal como os programas de
dessegregação racial nos Estados Unidos (...). No entanto, como
mencionamos anteriormente, o modelo desse estudo não permite
40
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
inferir que a mudança da linguagem das mulheres resulta na mudança
do pensamento delas. Desse modo, não podemos dizer muito sobre a
“formulação dura” da hipótese de Whorf ou sobre o efeito da ação no
pensamento.
Nesse trecho que encaminha a conclusão do artigo, novamente as
ideias de Whorf são significadas como especulação e novamente
aparece a divisão da hipótese (de Whorf) como forte ou fraca.
[C] “Does Language Embody a Philosophical Point of View?”29,
Charles Landesman, 1961.
[c1] Não foi muito depois de os antropologistas descobrirem que as
culturas primitivas se comportam de maneira diferente de civilizações
mais avançadas que o relativismo moral se tornou um ponto de vista
popular na Ética. Novamente, foi a combinação do trabalho de
antropologistas com estudantes da linguagem que deu origem a outro
tipo de doutrina relativista: a relatividade linguística. Essa doutrina,
algumas vezes chamada de hipótese Sapir-Whorf, desafia a visão do
senso comum, que alega que falando, escrevendo ou pensando com
palavras estamos simplesmente fazendo afirmações sobre um mundo
previamente inteligível. Ao invés disso, argumenta que “o ‘mundo
real’ é em grande medida construído com base nos hábitos linguísticos
de um grupo” e que portanto cada concepção da realidade é relativa à
língua nativa de cada um. “Somos dessa maneira iniciados”, diz
Whorf, “em um novo princípio de relatividade, segundo o qual os
observadores não são induzidos pelas mesmas evidências físicas para
a mesma visão do universo, mesmo que o plano de fundo linguístico
seja similar, ou que possa ser nivelado”.30
A “relatividade linguística” é aqui significada pelo paradigma
estabelecido com “relativismo moral”, que é definido como um
postulado da ética elaborado a partir da “descoberta” das diferenças
entre os comportamentos de culturas diferentes (etnocentricamente,
mais ou menos civilizadas). Em seguida, Sapir e Whorf aparecem
como implícito de “antropologistas em combinação com estudantes da
linguagem”. A “relatividade linguística” é colocada no conjunto de
“outro tipo de doutrina relativista”, e dessa maneira doutrina passa a
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
41
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
agir nos sentidos do que seria a hipótese. O aposto que é feito em
“Esta doutrina [do relativismo], em alguns momentos chamada de
Hipótese Sapir-Whorf” produz uma espécie de hiponímia, como se a
doutrina do relativismo fosse algo mais genérico que em alguns
momentos é especificada por HSW. O nome dos autores aqui funciona
então como uma espécie de etiqueta, como se o sintagma Sapir-Whorf
fosse um nome só, e não nome de autores. Outro movimento que
constrói os sentidos da hipótese é a oposição estabelecida entre o que
seria o senso comum sobre a linguagem – que diria ser esta que
produz afirmações sobre um mundo estabelecido anteriormente, e a
doutrina da relatividade, que diria ser o mundo construído depois da
linguagem. Essa oposição, na estrutura X ao invés de Y, retoma uma
longa discussão estabelecida na Filosofia sobre “quem veio primeiro”,
mas apresenta este debate como se ele se desse no “senso comum”.
[c2] A hipótese Sapir-Whorf explora um conceito popularizado pela
psicologia freudiana, o dos processos mentais inconscientes. Assim
como Freud alegou que vários dos produtos atribuídos ao raciocínio
consciente são na verdade criados por eventos fora do controle
consciente, Whorf também postula um inconsciente linguístico
constituído por um arsenal de hábitos linguísticos31. 32
A hipótese aqui é apresentada por um verbo muito marcado no
inglês, explorar, que significa explorar no sentido de tirar partido, e
ela tiraria partido de um conceito popularizado pela psicologia
freudiana. A estrutura linguística que marca a construção é “assim
como...também”. Esse movimento coloca a hipótese no conjunto de
conceitos popularizados, e é interessante notar que, se na primeira
frase aparece a hipótese Sapir-Whorf, na segunda só aparece o nome
de Whorf (em paralelo ao de Freud).
[c3] Duas perguntas. A primeira é: A linguagem afeta nossa
percepção? A segunda: as categorias gramaticais isoladas pelos
linguistas afetam as categorias ou conceitos por meio dos quais
entendemos o mundo? E assim posso especificar o sentido “fraco” no
qual a hipótese Sapir-Whorf é correta.
42
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
Ao estabelecer as perguntas a que responderá, o autor da crítica
coloca como problema para a Hipótese o questionamento da relação
entre linguagem e percepção (e não realidade, e não pensamento, e
não cultura), e da relação entre as categorias gramaticais isoladas
pelos linguistas (e não apenas as categorias gramaticais) e a forma
como compreendemos o mundo (e não a realidade etc.). Novamente
aqui aparece a divisão entre o que seria a HSW em sentido forte e
fraco.
[c4] O idealismo linguístico que, representado pelas visões de Whorf,
Urban e Cassirer, se apresenta como uma teoria não apenas da gênese
dos conceitos de objetos da percepção, mas também da existência e
diferenciação dos próprios objetos, é contrariado por alguns resultados
da Gestalt, especialmente pela hipótese gestáltica de que a
organização da percepção é pré-linguística.33
O autor opõe o idealismo linguístico, novo deslize para HSW, e a
escola gestaltiana. O nome de Sapir é novamente apagado e Whorf é
colocado ao lado de Urban e Cassirer. A HSW, lida como idealismo
linguístico, é definida como não apenas X (gênese dos conceitos de
objetivos perceptíveis), mas também Y (existência e diferenciação dos
objetos eles-mesmos).
[c5] Enquanto Cassirer almejava enfatizar a influência do vocabulário
na percepção, Whorf, apesar de não negligenciar esse aspecto da
questão, formulou sua concepção sobre a influência da linguagem
sobre a percepção e o pensamento primordialmente com referência às
categorias gramaticais.34
O nome de Sapir novamente não aparece, e, em contrapartida a
Whorf, aparece mais uma vez Cassirer. A hipótese desliza para
“concepção”, e trata da influência da linguagem na percepção e
pensamento primeiramente pela referência a categorias gramaticais.
Essa especificação da hipótese relativa às categorias gramaticais é
uma ideia nietzscheana que Sapir retoma, mas que não está
desenvolvida em Whorf. Essa conclusão, no caso do artigo, está
relacionada a Whorf.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
[c6] Existem ambiguidades na concepção de Whorf sobre a relação
entre a linguagem e a experiência.35
A regularidade quanto ao apagamento do nome de Sapir mais uma
vez se mantém, além de “concepção” aparecer novamente
significando a Hipótese, que agora desliza mais uma vez para a
relação entre linguagem e experiência (e não pensamento, e não
cultura, e não realidade).
[D] “The Whorf Hypothesis as a Critique of Western Science and
Technology”36, Peter C. Rollins, 1972
[d1] O nome de Benjamin Lee Whorf está associado a uma teoria da
relatividade linguística que é conhecida por vários títulos – “a hipótese
Sapir-Whorf”, “a hipótese Whorf”, “a hipótese Whorf-Lee”. A
relatividade cultural simples afirma que todo ser humano nasce em um
meio cultural que determina quais elementos do mundo serão
importantes para o indivíduo por meio de seus métodos de educação
infantil e de reforço cultural. O acréscimo particular de Whorf a esse
princípio da relatividade cultural foi sua afirmação da primazia da
língua nesse processo de seleção.37
O nome de Whorf escrito por extenso procura remeter ao autor. A
este autor, é associada uma teoria (e não doutrina, e não concepção),
que é a teoria da relatividade linguística. Esta teoria é que seria
conhecida por vários nomes: Hipótese Sapir-Whorf, Hipótese Whorf,
Hipótese Whorf-Lee. Esses outros nomes são grafados como títulos
para a teoria da relatividade linguística, fazendo-os coincidir. A
relação é estabelecida entre o relativismo cultural e a relatividade
linguística, mas o primeiro é dito como o relativismo cultural simples.
Dessa maneira, a relatividade linguística é dita como um tipo de
relativismo cultural. Whorf adiciona a primazia da linguagem nesse
processo de seleção. A relação aqui passa a ser entre a linguagem e
alguns elementos do mundo, e não simplesmente com o pensamento
ou a realidade.
[E] “Is Language a Prisonhouse?”38, Bradd Shore, 1987.
44
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
[e1] O entendimento da linguagem como uma prisão surge em
Antropologia na assim chamada Hipótese Sapir-Whorf. Diferenças
culturais, especialmente aquelas de visão de mundo, são atribuídas a
diferenças linguísticas.39
Nesse trecho, o nome da Hipótese passa a ser responsabilidade de
outros: assim chamada Hipótese Sapir-Whorf, e é definida como a
compreensão da linguagem como uma prisão. A relação que ela
estabeleceria é entre as diferenças culturais e as diferenças
linguísticas.
[F] “Whorf and His Critics: Linguistic and Nonlinguistic Influences
on Color Memory”40, John Lucy e Richard A. Shweder, 1979.
[f1] Resta-nos reavaliar a relação entre a investigação sobre as cores e
a concepção inicial de Whorf sobre a relação entre linguagem,
pensamento e estímulos externos.
Nos textos de Lucy, um dos nomes mais citados quando se trata de
falar sobre a relatividade linguística, o nome de Sapir praticamente
não aparece. A hipótese é dita como a original concepção de Whorf
sobre a relação entre linguagem, pensamento e estímulos externos.
Além do apagamento de Sapir, a relação com a cultura não aparece, e
o que poderia ser considerado uma exterioridade aparece como
estímulos externos.
6. Conclusão
Nos artigos que brevemente analisamos, encontramos alguns
funcionamentos regulares: o apagamento do nome de Edward Sapir; o
deslize entre concepção, ideia, doutrina e teoria; o deslize entre a
relação que a Hipótese estabeleceria (linguagem e pensamento;
linguagem e realidade; linguagem e cultura; linguagem e estímulos
etc.). São nessas tensões entre os autores da hipótese, o nome para
designá-la e seu “conteúdo” que a “Hipótese Sapir-Whorf” se
constitui na História das Ideias Linguísticas. As diferentes retomadas
da Hipótese, seja para se dizer a favor ou contra, explicitam a
retomada privilegiada de Whorf em detrimento de Sapir, ligando o
primeiro à tradição do relativismo linguístico ao mesmo tempo em que
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
45
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
atribui a ele sua origem. O estudo das condições de produção da
Hipótese, que remonta ao processo de confecção de autoria de Sapir e
de Whorf, nos mostra que a confecção do Whorf-autor é póstuma e
empreendida por um trabalho de edição. Com isso queremos dizer que
essa figura da função-autor, tal como a define Eni Orlandi, ou seja, o
trabalho de dar limites, definir posições e agir no imaginário da
completude do texto, no caso do que é atribuído a Whorf, só existiu
por conta de um trabalho editorial.
No caso da chamada hipótese Sapir-Whorf, é digno de nota a
própria circulação do enunciado já estabilizado dentro das Ciências da
Linguagem, ao menos no Brasil: “hipótese Sapir-Whorf”, conferindo à
hipótese dureza de sentido e fazendo com que o enunciado circule
como se o conceito ao qual ela refere fosse homogêneo. O efeito de
evidência na circulação do termo provoca uma espécie de fechamento
interpretativo. Isso quer dizer que, como o termo ‘hipótese SapirWhorf’ circula como se fosse um conceito evidente, qualquer tentativa
de atribuir a ele outra direção de sentido é dificultada pela tradição de
seu uso. Esta tradição se constitui, em grande medida, a partir do
trabalho de diversos comentadores e “continuadores” de Edward Sapir
e de Benjamin Lee Whorf.
É essencial nesse ponto uma ressalva: apesar de demonstrarmos
que a HSW foi reinventada posteriormente aos autores que dão nome
a ela, isso não quer dizer que ela não produziu seus efeitos na História
das Ideias Linguísticas. Não se trata, de forma alguma, de instaurar
um debate como o da autoria do Curso de Linguística Geral, em que
se argumenta pelo Saussure dos Escritos e o Saussure do Curso. Ou
como a polêmica que diz respeito às traduções para o francês de
Bakhtin, que por vezes significam que, se a tradução circulou
equivocada durante tanto tempo, o passado a partir da revelação da
tradução correta é completamente descartável. Nesse sentido, não se
trata de advogar aqui em favor de interpretações como essas. Não se
trata de dizer que, se a HSW foi inventada pela posteridade, então que
isso seria o mesmo que dizer que ela deve ser abandonada por quem a
estuda. Muito menos de colocar em xeque todo o conhecimento que se
produziu sobre ela e por meio dela. O objetivo desse trabalho é, na
contramão disso, demonstrar que o conhecimento não é linear, nem
objetivo, nem unívoco. E que isso não é, definitivamente, uma objeção
a ele.
46
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
Há algum tempo Michel Foucault (1971) identificou no comentário
um procedimento interno de exclusão dos discursos, pois o comentário
provocaria desnivelamentos em discursos que são familiares entre si e
agiria limitando o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade da
repetição e do mesmo. Assim, por mais que a prática do comentário
incite a produção de discursos, não se pode deixar de reconhecer nela
um mecanismo de apagamento e de exclusão de outras possibilidades
de dizer (condição mesma do dizer, afirma Michel Pêcheux).
Toda a equivocidade de sentidos em torno da HSW, que nosso
trabalho demonstra, só adquire alguma validade se for utilizada para
potencializar a reflexão sobre nossas práticas acadêmicas. Quando nos
colocamos em locais de disputa pela fundação e fundador de uma
disciplina, estamos de fato em um terreno de conflito, de confrontos –
lugar da contradição na ciência, demonstrada por meio da análise
linguística da história. Reivindicar o lugar de “fundadores” de um
domínio do conhecimento é sempre incorrer no risco de se perder
nesses confrontos políticos, que são em certa medida inevitáveis.
Acreditamos, entretanto, que enquanto linguistas devemos nos
perguntar constantemente para quem nosso trabalho trabalha. Com
isso estamos dizendo que estar na linguagem é estar nas relações de
disputa, e nesse sentido, para utilizar uma fórmula de Nietzsche,
vontade quer se afirmar sobre vontade. Fazer trabalhar as
contradições disso é, ademais frutífero, ético.
Refletir sobre a HSW inevitavelmente nos coloca, a nós mesmos,
nesse terreno acidentado da nomeação – por que nosso trabalho
privilegia o nome “hipótese Sapir-whorf” e não outras denominações?
Em grande medida, essa entrada de análise procura dialogar com a
tradição dos estudos linguísticos no Brasil. Ou seja, é esse nome que
encontramos nos manuais brasileiros de Linguística, e que também
circula academicamente em nosso imaginário científico. Novamente,
vale pouco identificar em nossa análise que os sentidos são equívocos
– substantivos: hipótese, concepção, doutrina, ideia; nomes adjetivos:
Sapir, Sapir-Whorf, Whorf, Whorf-Lee; designação: relatividade,
relativismo, afetação, influência, determinação. Vale pouco porque
apenas identifica um processo. Vale mais quando percebemos que não
se trata de um processo singular. Facilmente pode ser generalizado,
pois é disso que a linguagem é feita – equivocidade, e é no simbólico
que estamos imersos por conta da linguagem.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
Isso nos leva a defender uma prática científica plural, que não seja
feita em busca da Verdade, mas que, na contramão disso, esteja ciente
de que a atividade científica produz verdades, no plural. Defender a
pluralidade não é defender o relativismo: “tudo é válido”. Trata-se de
contemplar as possibilidades do perspectivismo, para usar um conceito
de Nietzsche: o que há são versões, afirma Eni Orlandi. Versões,
perspectivas, diferentes pontos de vista que não se subsumem e nem
se apartam totalmente. Uma prática científica perspectivista é um
convite à prática da criação dos lugares em comum, onde possamos
circular sem fascismo e sem proselitismo: é preciso lutar por uma poética do comum.
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WHORF, B. (1956). Language, thought, and reality: selected writings
of Benjamin Lee Whorf. Cambridge: MIT.
Palavras-chave: Ideias linguísticas (História); Sapir, Edward, 18841939; Whorf, Benjamin Lee, 1897-1941.
Keywords: Linguistics ideas (History); Sapir, Edward, 1884-1939;
Whorf, Benjamin Lee, 1897-1941.
Notas
1
Trata-se de uma versão modificada de um subcapítulo de minha tese de doutorado,
intitulada Nietzsche, o destino singular da linguagem, defendida em fevereiro de
2015.
2 Licenciada em Letras-Português (Ufes), mestre e doutora em Linguística (Unicamp).
Atua principalmente nas áreas de História das Ideias Linguísticas, Semântica da
Enunciação e Filosofia da Linguagem. E-mail: [email protected]
3 A tradução brasileira data de 1954 e foi realizada por Mattoso Câmara Jr. Segue:
SAPIR,
Edward;
CÂMARA
JUNIOR,
J.
Mattoso
(Coaut.
de). A
linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro, RJ: INL, 1954. É
interessante ainda investigar de que maneira essa arenga teórica a respeito da Hipótese
Sapir-Whorf chega ao Brasil.
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49
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
“to give a certain perspective on the subject of language rather to assemble facts
about it” (SAPIR, 1921/2004, p.iii, grifo nosso)
5 “o show what I conceive language to be, what is its variability in place and time, and
what are its relations to other fundamental human interests – the problem of thought,
the nature of the historical process, race, culture, art (p.iii, grifo nosso).
6 Cf. Guimarães, 2002, 2007, por exemplo.
7 “when he first read the work, it was to him a revelation and a confirmation of his
own vague anticipations of establishing a comparative general linguistics that would
supersede the previous kind of approach”, citado em Mandelbaum, 1985, p.xi.
8 Durante o texto, apresentamos nossas traduções dos textos em inglês. O excerto
original figurará nas notas de fim.
9 Nisso talvez antecipando o gerativismo. Curiosamente, Chomsky retoma Wilhelm
Von Humboldt em Cartesian Linguistics...
10 Não temos notícia de uma tradução para o português. A edição americana é de
1956: WHORF, Benjamin Lee; CARROLL, John Bissell (Coaut. de). Language,
thought, and reality: selected writings of Benjamin Lee Whorf. Cambridge, MA:
MIT, 1956.
11 Sem tradução oficial para o português. Tradução: “Sobre as conexões de ideias”.
Todos os demais casos sem tradução oficial serão apenas apresentados entre aspas.
12 É no mínimo curioso então que, mesmo sem uma “formação específica”, como diz
Chase, ainda assim foi Whorf nomeado professor de linguística no curso de
Antropologia.
13
Se Whorf não foi lido porque não tinha formação em linguística, quem teve
formação e foi lido? Falamos de silêncio então como uma materialidade, no sentido
que Eni Orlandi conceitua silêncio, na obra fundadora As formas do silêncio (1992).
14 Whorf’s principle of linguistic relativity, or, more strictly, the Sapir-Whorf
hypothesis (since Sapir most certainly shared in the development of the idea) has, it
goes without saying, attracted a great deal of attention.
15 Curiosamente, Noam Chomsky retoma Humboldt como precursor de sua linguística
gerativa e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do que se tornou a retomada de
Whorf no século XX segue caminhos semelhantes ao gerativismo, que é o de colocar
a Linguística como uma área da biologia. O trabalho de Sapir não tem esse destino,
apesar de o nome de Whorf e de Sapir terem se consolidado nesse par, Sapir-Whorf.
16 Sem tradução exata para o português, trata-se de um conceito fundamental para a
filosofia e epistemologia alemãs, e diz de uma percepção do mundo. Refere-se ao
quadro de ideias e crenças que formam uma descrição global através do qual um
indivíduo, grupo ou cultura regula e interpreta o mundo e interage com ele.
17 Os artigos citados não foram traduzidos para o português. Apresento, no corpo do
texto, minhas traduções, seguidas do original em inglês, nas notas.
18 Cf. Orlandi, 2005.
19 “Relatividade linguística: as visões de Benjamin Lee Whorf”.
20 The aim of rendering what Whorf called "linguistic relativity" sufficiently precise to
be tested and criticized encounters formidable obstacles in his writings: variant
formulations of the main points are often inconsistent, there is much exaggeration,
and a vaporous mysticism blurs perspectives already sufficiently elusive. The
4
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Isadora Machado
dominating thought is happily expressed in the quotation from Sapir that Whorf
himself used as an epigraph for his best essay: “Human beings do not live in the
objective world alone, nor alone in the world of social activity as ordinarily
understood, but are very much at the mercy of the particular language which has
become the medium of expression for their society. It is quite an illusion to imagine
that one adjusts to reality essentially without the use of language and that language is
merely an incidental means of solving specific problems of communication and
reflection. The fact of the matter is that the "real world" is to a large extent
unconsciously built up on the language habits of the group.” This has been called the
"Sapir-Whorf hypothesis.
21 O termo “linguistic relativity” é o mais frequente nos textos de Whorf. Em
português, consolidou-se o termo “relativismo linguístico”. Estamos trabalhando em
outro artigo para discutir essa questão específica.
22 That a given language imposes an inherited vocabulary and grammar upon its users
is too obvious to require mention; but of course Whorf means more than this. The
"background" has to be a subsystem composed of "patterns" that are meaningful to the
native speaker no less than to the investigating linguist.
23 “Pinguins não se importam, mas mulheres sim: uma análise da identidade social de
um problema whorfiano”
24 “The Sapir-Whorf hypothesis is often implicitly assumed to be true independent of
its empirical status. Feminist attempts to eliminate the generic he must assume that
language somehow affects thought, since there is no intrinsic harm in the word itself.
Research to date has, in fact, shown that generic he tends to suggest a male referent in
the mind of the reader. This study asks whether people's interpretation of a generic
sentence varies depending on whether or not they have followed feminist proposals
and reformed their own language."
25 The claim that masculine generic words help to perpetuate an androcentric world
view assumes more or less explicitly the validity of the Sapir-Whorf hypothesis,
according to which the structure of the language we speak affects the way we think
(e.g., Whorf, I956). That different languages make us think and feel differently is a
compelling experience for many of us.
26 Muitos textos que tratam da HSW apresentam uma diferenciação entre o que seria a
interpretação forte e fraca da Hipótese. Com isso, os autores afirmam que algumas
interpretações levam a questão ao pé da letra (a língua determina o pensamento de
forma direta) – essa seria a forma forte da hipótese, e outras consideram a hipótese de
maneira moderada (a língua causa alguma influência no pensamento).
27 Thus, if we consider the weak form of the Sapir-Whorf hypothesis, which states
that differences in language are correlated with differences in thought (Brown, 1958),
we can restate our conclusion in this form: all groups conformed to Whorf's thesis
except the men who had reformed their language.
28 Although we are far from Whorf's (1956) speculation that the structure of language
affects one's "ideology of nature”, this finding is one case where language has
cognitive consequences.
29 “A linguagem encarna um ponto de vista filosófico?”.
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51
A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”
30
It was not long after anthropologists discovered that people behave differently in
primitive cultures from the way they behave in more developed civilizations that
moral relativism became a popular standpoint in ethics. Again, it was the work of
anthropologists in combination with students of language which has given birth to
another kind of relativity doctrine: linguistic relativity. This doctrine, sometimes
known as the Sapir-Whorf hypothesis, challenges the common sense view that in
speaking or writing or thinking with words we are merely making statements about an
antecedently intelligible world, and, instead, contends that "the 'real world' is to a
large extent built upon the language habits of the group" and that therefore one's
conception of reality is relative to one's native language. "We are thus introduced,"
says Whorf, "to a new principle of relativity, which holds that all observers are not led
by the same physical evidence to the same picture of the universe, unless their
linguistic backgrounds are similar, or can in some way be calibrated."
31 A expressão “hábitos linguísticos” é uma expressão nietzscheana retomada por
Sapir em vários textos. Nesse caso, os autores a atribuem a Whorf.
32 The Sapir-Whorf hypothesis exploits a concept popularized by Freudian
psychology, that of unconscious mental processes. For, just as Freud argued that many
of the products attributed to conscious ratiocination are really created by events
outside conscious control, so Whorf posits a linguistic unconscious constituted by the
set of learned linguistic habits.
33 Linguistic idealism, which, as represented by the views of Whorf, Urban, and
Cassirer, presents itself as a theory not merely of the genesis of the concepts of
perceptual objects, but also of the existence and differentiation of the objects
themselves, is contradicted by some of the results of Gestalt psychology, especially by
the Gestalt hypothesis that perceptual organization is prelinguistic.
34 Whereas Cassirer was anxious to stress the influence of vocabulary upon
perception, Whorf, though not neglecting this aspect of the matter, formulated his
conception of the influence of language upon perception and thought primarily by
reference to grammatical categories.
35 There are ambiguities in Whorf s conception of the relation between language and
experience.
36 “A hipótese de Whorf como uma crítica à ciência e tecnologia ocidentais”.
37 Benjamin Lee Whorf’s name is associated with a theory of linguistic relativity
which is known by various titles -"the Sapir-Whorf Hypothesis", "the Whorf
Hypothesis", "the Whorf-Lee Hypothesis". Simple cultural relativity states that every
human being is born into a cultural milieu which determines what elements of the
world will be important to the individual by its methods of child rearing and cultural
reinforcement. Whorf's particular addition to this principle of cultural relativity was
his assertion of the primacy of language in this process of selection.
38 “É a linguagem uma prisão?”.
39 The understanding of language as a prisonhouse merges in anthropology in the socalled Sapir-Whorf hypothesis. Cultural differences, especially those in worldview,
are attributed to language differences.
40 “Whorf e seus críticos: influências linguísticas e não-linguísticas na memória das
cores”.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE
DEL SIGLO XIX CHILENO: LOS
COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE
CHILENISMOS DE ZOROBABEL RODRÍGUEZ
Darío Rojas
Universidad de Chile - Santiago, Chile
Tania Avilés
Universidad de Chile - Santiago, Chile
Resumen: El proceso de estandarización por el que pasó el español
de Chile durante el siglo XIX no solo se manifestó en propuestas
normativas originales de diversos autores, sino que también en
reparos o contrapropuestas de otros tantos estudiosos, generándose
así varios debates lingüístico-ideológicos. En el presente artículo
describimos y analizamos los reparos planteados Fidelis del Solar, en
1876, al Diccionario de chilenismos (1875) de Zorobabel Rodríguez,
junto con la respuesta a dichos reparos firmada por Fernando
Paulsen, colaborador de Rodríguez. Centramos nuestro análisis en la
identificación de las creencias normativas sobre las que los autores
construyen su argumentación, creencias que dan cuenta de sus
ideologías lingüísticas. Concluimos que, a pesar del carácter
polémico de las intervenciones, el sistema ideológico de los autores es
bastante similar y confluye en torno a la ideología de la lengua
estándar.
Resumo: O processo de padronização pelo qual passou o espanhol do
Chile durante o século XIX não apenas se manifestou em propostas
normativas originais de diversos autores, como também em críticas e
contrapropostas de outros tantos estudiosos, gerando assim vários
debates linguístico-ideológicos. No presente artigo, descrevemos e
analisamos as críticas propostas por Fidelis del Solar, em 1876, ao
Diccionario de chilenismos (1875) de Zorobabel Rodríguez, junto
com a resposta a estas críticas, firmada por Fernando Paulsen,
colaborador de Rodríguez. Concentramos nossa análise na
identificação de crenças normativas sobre as quais os autores
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
constroem sua argumentação, crenças que revelam suas ideologias
linguísticas. Concluímos que, apesar do caráter polêmico das
intervenções, o sistema ideológico dos autores é bastante similar e
gira em torno da ideologia da língua padrão.
Abstract: The standardization process that Chilean Spanish
underwent during the 19th century is manifested not only through
normative proposals from Chilean scholars, but also through the
reparos or counter-proposals made by a number of other scholars,
which originated many language ideological debates. Our paper
describes and analyzes the reparos by Fidelis del Solar, which
commented extensively on Zorobabel Rodríguez’s Diccionario de
chilenismos (1875), and the response to Del Solar criticisms by
Fernando Paulsen. The main focus of our paper corresponds to the
normative beliefs of the authors, as these beliefs play a central role in
their argumentation and reveal their language ideology. We conclude
that the authors’ ideologies are much similar, despite their polemic
stance, and that standard language ideology is pervasive in their
beliefs.
1. Introducción
En el presente trabajo nos proponemos analizar el debate
lingüístico-ideológico desplegado en torno al Diccionario de
chilenismos de Zorobabel Rodríguez (1875). Este debate se manifiesta
en dos textos: Reparos al Diccionario de Chilenismos de don
Zorobabel Rodríguez, de Fidelis del Solar (1876), y Reparo de
reparos, o sea lijero exámen de los Reparos al Diccionario de
Chilenismos de don Zorobabel Rodríguez, por Fidélis Pastor del
Solar, de autoría de Fernando Paulsen (1876). Estos no son los únicos
comentaristas de Rodríguez, por cierto, pero los consideramos
ejemplares por entretejerse directamente en una red dialógica con la
obra que suscita el comentario.
Estudiamos dicho debate, en particular, por la importancia que
tuvo en su momento y la influencia que ejerció más tarde el
Diccionario de chilenismos en los estudios del lenguaje en Chile y en
la conformación de ciertas ideas acerca de la lengua, primero entre las
élites y más tarde entre el resto de la población. Por otra parte, es uno
de los casos menos conocidos de los varios debates lingüístico-
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
ideológicos que se dieron en el Chile decimonónico. Es nuestra
intención destacar el carácter dialógico y argumentativo que adopta
esta negociación de normas, para lo cual pondremos el foco en las
creencias normativas que funcionan a manera de topoi (según la
denominación de ANSCOMBRE y DUCROT, 1994) o garantías
(según TOULMIN, [1958] 2007) en la argumentación desplegada en
los textos que estudiamos.
2. Diccionarios y debates lingüístico-ideológicos en el siglo XIX
chileno
En estudios recientes sobre la constitución de normas lingüísticas1,
se ha puesto de relieve que la selección de variantes para la
conformación y actualización de una variedad ejemplar puede ocurrir
no solo mediante la imposición unidireccional de conductas
idiomáticas por parte de agentes premunidos de autoridad (tales como
una academia o una sociedad científica), sino también mediante la
negociación, implícita o explícita, entre los propios miembros de una
comunidad idiomática. Andersen (1999) denomina a este proceso
negociación de normas lingüísticas, y Bilaniuk (2005) negociación de
corrección (cit. en PAULSEN, 2009, p.37-38). Este consiste en el
despliegue dialógico de estructuras argumentativas con el fin de
determinar cuáles son los usos lingüísticos considerados normativos y
cuáles son excluidos de la norma en proceso de constitución. Al
participar en la negociación de normas lingüísticas, los hablantes
plantean sus propias propuestas o evalúan propuestas efectuadas por
otros hablantes respecto de la adecuación o legitimidad social de un
rasgo lingüístico en particular.
El concepto de negociación de normas, específicamente la
negociación de tipo explícito, según nuestro parecer, merece ser
puesto en relación con el de debate lingüístico-ideológico
(BLOMMAERT, 1999). Los discursos metalingüísticos del siglo XIX
chileno tienen por contexto un proceso de estandarización local,
iniciado en Chile durante las primeras décadas del siglo (MATUS,
DARGHAM y SAMANIEGO, 1992). En este proceso participan
diversos agentes: autoridades idiomáticas, hablantes/escritores
profesionales, expertos científicos y autores de códigos lingüísticos,
entre otros (AMMON, 2003). Lo importante, para nosotros, es que no
siempre existe consenso entre estos actores, por su diversidad de
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
intereses políticos y culturales en general, lo cual conlleva el
surgimiento de polémicas y disputas por el control discursivo de las
representaciones sociales acerca del lenguaje. Blommaert (1999)
califica a estas polémicas en torno a las lenguas de debates
lingüístico-ideológicos, y destaca su importancia para comprender
cómo las ideologías lingüísticas se transmiten, transforman y originan
en escenarios históricos concretos, en relación con asuntos más
generales tales como la formación de las naciones o la cristalización
de relaciones de poder. Blommaert entiende los debates como
“patrones de actividades discursivas interrelacionadas”, “de naturaleza
textual”, en síntesis: “episodios históricos de textualización, historias
de textos en que se desarrolla una lucha entre textos y metatextos”
(1999, p.09; traducción nuestra). Su estudio, por tanto, requiere el
análisis histórico de los textos en que los discursos metalingüísticos se
manifiestan, tal como haremos en nuestro estudio.
Las ideologías lingüísticas son entendidas en la antropología
lingüística como conjuntos de creencias acerca del lenguaje, en sus
distintas dimensiones (la lengua, los hablantes, la comunicación, etc.),
que normalmente constituyen proyecciones de imaginarios políticos,
morales, en fin, culturales sobre el telón de fondo del lenguaje, y que
por lo mismo responden a los intereses extralingüísticos de uno o más
grupos de una comunidad (KROSKRITY, 2010). Son, por lo tanto,
potenciales espacios de debate y lucha por el dominio de las
representaciones sociales.
En Chile, tras el proceso de independencia (1810-1823), los
debates lingüístico-ideológicos encontraron un terreno muy fértil.
Valga como ejemplo la llamada “controversia filológica de 1842”
(PINILLA, 1945), en que Andrés Bello, Domingo F. Sarmiento y
otros debatieron en la prensa acerca de lenguaje y educación. Otro
ejemplo es el largo debate en torno a la reforma ortográfica, que
alcanzó su cúspide a mediados del siglo XIX y se prolongó hasta bien
entrado el XX (CONTRERAS, 1993). Finalmente, en especial a partir
del último cuarto del XIX, se discutió bastante acerca de qué usos
léxicos debían formar parte de la lengua española estándar, y este
interés dio origen a la mayoría de los primeros diccionarios dedicados
a la variedad dialectal chilena, los llamados diccionarios de
provincialismos (HAENSCH, 2000). Este último fenómeno no se dio
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
únicamente en Chile, sino que es característico de prácticamente toda
la América hispanohablante.
No parece casual que los debates lingüístico-ideológicos del Chile
decimonónico se hayan enfocado principalmente en la ortografía y en
el léxico. Estos dos son los ámbitos del lenguaje en los que, de
acuerdo con López García (2010), con mayor frecuencia se focaliza la
conciencia lingüística normativa de los propios hablantes. Según este
autor, la atención que concitan la ortolexía (el uso “correcto” del
léxico) y la ortografía corresponde con los dos rasgos más evidentes
del signo lingüístico para los hablantes, el significado y el
significante; “esto explica la fascinación que suelen suscitar los
debates ortográficos y de vocabulario en el seno de la sociedad”
(LÓPEZ GARCÍA, 2010, p.75).
En el caso chileno (e hispanoamericano), el género de los
“reparos” a diversos repertorios lexicográficos se constituía como un
espacio discursivo idóneo para discutir una norma lingüística
emergente de carácter local (el español se ha configurado como una
lengua de norma pluricéntrica, es decir, distribuida entre varios
centros; cf. LEBSANFT, 2007 y THOMPSON, 1992), en
complementariedad, claro, con los diccionarios y obras lexicográficas
mayores del contexto chileno, dentro de los cuales también tenía lugar
esta discusión. En particular, la negociación de normas que se
despliega en estos textos atañe principalmente al proceso de selección
de rasgos lingüísticos (AMMON, 2004; TRUDGILL y
HERNÁNDEZ, 2007, s. v. selección), pues lo que estaba sujeto a
discusión era cuáles usos lingüísticos chilenos eran aptos para formar
parte de una variedad estándar de alcance local.
Rojas (2010), siguiendo la visión pragmático-discursiva del
diccionario de Lara (1997), señala que los diccionarios de
provincialismos chilenos, como muchos otros publicados en
Hispanoamérica en las décadas anteriores, servían como vehículo
discursivo para la evaluación de usos lingüísticos provinciales con
miras a su incorporación al español estándar, y no meramente para
informar acerca del significado de las palabras, como sucede en el
caso de los diccionarios monolingües. Es decir, los diccionarios de
provincialismos, junto con los textos que recogían reparos a estas
obras, eran herramientas de estandarización lingüística. En cuanto
obras normativas, pretendían corregir las (supuestas) incorrecciones
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
del español chileno y americano, determinadas por su grado de
diferencia respecto del español codificado en las obras académicas, de
marcado tinte peninsular. Los discursos que aparecen en estas obras
suelen ajustarse a lo que Milroy (2001) llama ideología de la lengua
estándar, la cual se basa en la creencia de que solo puede haber una
sola forma legítima de lenguaje (el estándar, al cual se atribuye la
propiedad de la corrección), y que las variedades geográficas,
sociales, etc., corresponden a meros errores o desviaciones debidas a
incompetencia y por tanto incorrectas. En este caso, las variedades
locales americanas son consideradas incorrectas precisamente por
distanciarse del modelo de lengua, el estándar de raigambre
castellanizante.
El Diccionario de chilenismos de Zorobabel Rodríguez, de 1875,
se publica cuando una actitud favorable al español peninsular y
negativa hacia lo provincial ya estaba bastante arraigada en los medios
cultivados chilenos, y especialmente entre los sectores más
conservadores. Su multifacético autor (1839-1901), novelista, poeta,
parlamentario, abogado (no titulado), profesor y periodista, fue uno de
los representantes más notables de la intelectualidad conservadora de
la segunda mitad del XIX. Sin embargo, no era un conservador
“puro”: su propuesta política aunaba catolicismo y liberalismo, en
cuanto defendía las libertades individuales frente al autoritarismo
estatal, así como las libertades económicas (CORREA, 1997). El
propósito de su Diccionario, según el mismo lo declara, era
proporcionar “un fácil medio de evitar los errores más comunes que,
hablando o escribiendo, se cometen en nuestro país en materia de
lenguaje” (RODRÍGUEZ, 1979 [1875], p.viii). Para esto, recoge
aproximadamente 1100 voces, comentadas bajo la modalidad de
diccionario (por orden alfabético), precedidas de un prólogo en que
explicita la finalidad de su obra. Por su propósito normativo y
finalidad pedagógica, puede considerarse que representa fielmente el
clima de opinión de la lexicografía precientífica chilena (Matus 1994),
y, sin duda, por su carácter pionero, fue muy influyente en las
reflexiones del lenguaje que vendrían en las décadas siguientes. Al
momento de su muerte, Rodríguez se encontraba preparando una
segunda edición del Diccionario, cuyos borradores probablemente se
perdieron en un incendio en su casa de Valparaíso (CASTILLO, 1995,
p.21).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
La ideología lingüística que Rodríguez despliega en los artículos
de su diccionario ha sido estudiada por Avilés y Rojas (2014). Estos
autores identifican un conjunto de creencias normativas que articulan
una versión específica de la ideología de la lengua estándar. Estas
creencias son las siguientes (véase Avilés y Rojas, 2014, p.157-158).
 Los usos de los autores literarios gozan de legitimidad.
 Asimismo, el habla de las personas educadas ostenta el
estatus de modelo.
 En principio, los provincialismos son inadecuados (pero
pueden ser aceptables si cumplen alguna de las características
de más abajo).
 Los provincialismos pueden ser aceptables si satisfacen una
necesidad denominativa, esto es, de denominar un concepto
para el cual no existe expresión en la lengua.
 En cuanto a su morfología, los provincialismos también
pueden considerarse legítimos si están “bien formados”, es
decir, se ajustan a las reglas gramaticales codificadas en las
obras de la Real Academia Española.
 Igualmente, el léxico “correcto”, en principio, es el recogido
en el Diccionario de la Real Academia Española.
 Por último, los extranjerismos léxicos son inapropiados.
A través de la concurrencia de estas creencias, que no funcionan de
manera aislada, Rodríguez somete a juicio normativo los vocablos que
forman parte de su diccionario, determinando si son o no dignos de
engrosar el léxico oficial.
A continuación, tendremos oportunidad de ver en qué medida estas
creencias coinciden o difieren de las que emplean los comentaristas
del Diccionario de chilenismos cuando plantean sus propias
propuestas normativas respecto del español de Chile.
3. Los comentaristas del Diccionario de chilenismos
Nuestros dos autores adoptan posiciones antagónicas: Fidelis del
Solar critica el texto de Rodríguez, mientras que Fernando Paulsen se
erige como defensor de dicho autor. La postura de Paulsen no es
sorprendente si se tiene en cuenta que puede llamárselo, hasta cierto
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
punto, “coautor” de Rodríguez en el Diccionario de chilenismos,
según aclara el mismo Zorobabel:
[…] despues de haberse llevado acopiando durante largos años
una multitud de observaciones sobre los vicios de nuestra habla,
[Fernando Paulsen] las puso en nuestras manos, no solo para
que las consultásemos, sino para que las tuviésemos como
propias i de nuestra propia cosecha. Ya que la excesiva
modestia de nuestro jeneroso amigo nos ha privado del placer
de citarlo los centenares de veces que hemos copiado al pié de
la letra o utilizado sus apuntes, queremos darnos el mui vivo de
manifestarle aquí la gratitud que sentimos por sus favores i la
admiracion que no ha podido ménos de despertar en nuestra
alma una tan rara erudicion hermanada con una tan singular
modestia. (RODRÍGUEZ, 1875, p.xi)
Aparte de su participación en el Diccionario de chilenismos y del
texto que ahora analizaremos, no tenemos noticias de otros trabajos
lingüísticos de Paulsen. Fidelis del Solar, en cambio, también firmó
“La x antes de consonante”, aparecido en los Anales de la Universidad
de Chile en 1885, y un extenso Vocabulario de la fraseología del
verbo Echar, publicado en 1889, además de una crítica a Voces
usadas en Chile de Aníbal Echeverría y Reyes.
3.1. La crítica de Fidelis del Solar
Solar, en primer lugar, considera que la obra de Rodríguez, además
de admirable por el ingente trabajo invertido, es muy útil para el
conocimiento del uso que en Chile se hace de la lengua castellana. Sin
embargo, advierte que la obra “es prematura y que no debía haberla
dado a luz aun hasta haber corregido muchas proposiciones erróneas
que saltan a la vista, errores ortográficos indisculpables, omisiones
notables de chilenismos de uso frecuente” (SOLAR, 1876, p.viii).
Un ejemplo de estos defectos es el siguiente. Rodríguez consigna
como chilenismo ferrocarril urbano porque en Madrid se usa tranvía.
Solar considera que, teniendo en cuenta que la Academia ni siquiera
ha “aceptado” el galicismo hotel, con mayor razón debería censurarse
tranvía, que es un calco del inglés tramway. El madrileño tranvía,
para Solar, es más censurable que ferrocarril urbano. Por lo tanto,
60
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
según Solar, Rodríguez yerra al considerar ferrocarril urbano un
chilenismo. En este ejemplo se puede vislumbrar que Solar equipara
“chilenismo” con “uso incorrecto”.
Entre las omisiones, a Solar le llama la atención que Rodríguez no
consigne como chilenismo la voz choro, de origen indígena, que
designa en el sur del país lo que en el norte se llama mejillón, siendo
esta última la voz “castiza”. Solar acusa asimismo a Rodríguez de
tener un criterio poco claro en cuanto a la aceptación de voces: a veces
se muestra muy severo con algunas que Solar considera aceptables por
ser “bien traídas y hayan enriquecido no pocas veces el idioma”,
especialmente según lo que declara en el prólogo; otras veces,
principalmente en el cuerpo de la obra, se muestra indulgente con
algunos chilenismos, recomienda otros e incluso corrige definiciones
de la Real Academia Española, de Vicente Salvá y de otros autores.
A pesar del desacuerdo que muestra el crítico con varias de las
decisiones específicas tomadas por Rodríguez, parece compartir el
“espíritu” normativo-didáctico de la obra, como se aprecia en la
siguiente cita:
Al hacer nuestros reparos no pretendemos provocar una
polémica, ni tener nuestra opinión por infalible, sino que nos
mueve a ello el bien entendido interés de nuestros compatriotas,
señalando con la misma franqueza que el señor Rodríguez
algunos de los vicios del lenguaje en nuestro país y
restableciendo y justificando algunos chilenismos bien creados
y rectificando también falsos conceptos del autor de la obra,
pues nadie está libre de incurrir en errores. (SOLAR, 1876,
p.xiv)
La siguiente cita, que se encuentra esta vez hacia el final del texto
de Solar, da cuenta de la misma postura:
Hemos llegado al fin de nuestra ingrata tarea, procurando en
este leal combate no ofender en lo más mínimo a nuestro
distinguido adversario: dirigiéndonos puramente al autor del
Diccionario de chilenismos, haciéndole ver los defectos que
hemos notado en su obra, guiados por el deseo de tener el mejor
acopio posible de nuestros provincialismos; aceptando lo bueno,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
desechando lo malo, sin que nos haya arrastrado el amor
exagerado de lo nacional, ni de lo extranjero, sino siempre lo
útil y lo justo. (SOLAR, 1876, p.189)
Y es que, a pesar de plantear Solar su comentario como una crítica
de Rodríguez, lo que cuestiona no son las ideas o creencias de fondo
que sirven como criterios normativos, sino la aplicación concreta de
estos criterios a determinadas unidades léxicas. Las creencias
normativas de Solar, de hecho, son bastante parecidas a las que
pueden observarse en Rodríguez.
Solar piensa que el uso de un provincialismo solo es aceptable en
la medida en que este cumpla una función o enriquezca la lengua, es
decir, el provincialismo bueno es el útil. Por ejemplo, acude a este
argumento cuando, contra la opinión de Rodríguez, considera que los
provincialismos boletero y boletería son aceptables por ser “voces
chilenas mui útiles i que prestan buenos servicios al idioma” (SOLAR,
1876, p.30): en España para lo primero falta una denominación, y para
lo segundo solo pueden acudir los españoles al circunloquio despacho
de billetes. Vemos aquí la satisfacción de necesidad denominativa por
parte de dichos provincialismos. En cuanto al fetichismo de Rodríguez
por el Diccionario académico, Solar también lo muestra (“El
diccionario de la lengua trae aereonauta i aeronauta como sinónimos,
por lo que la corrección que hace el señor Rodriguez queda sin
valor”), aunque quizá en un grado menor, pues este a veces prefiere
otros diccionarios que den cuenta de un uso más moderno de la
lengua, tales como el Diccionario de la sociedad de literatos o el de
R. Domínguez.
Solar, al igual que Rodríguez, se muestra enemigo de los
extranjerismos. Acusa a la prensa chilena de emplear “una fraseolojía
cosmopolita: ya escribe en francés, ya en inglés, ya en italiano…i
tantas otras palabras i locuciones tan estrañas que han hecho de la
crónica de ese diario un verdadero guirigai, haciéndolo inintelijible
para la mayor parte de sus lectores” (SOLAR, 1876, p.xii). También
coinciden ambos autores en considerar el lenguaje del vulgo como un
antimodelo, para demostrar lo cual se pueden espigar diversos pasajes
en que Solar formula apreciaciones negativas sobre el lenguaje
popular:
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
En seguida dice que hai una locucion vulgar chilena estirar las
patas, que equivale a morir. Debia, entónces, haber puesto:
“entregó la jeta al Creador, mandarse mudar o cambiar para el
otro mundo, entregó el rosquete, torció la esquina i tantas otras
de esta calaña, que no valen un comino. (SOLAR, 1876, p.59)
Fregar, ado, a, azon: ¿Valia la pena de ocuparse de dicciones
tan vulgares como éstas, proscritas por sí solas del lenguaje
culto? (SOLAR, 1876, p.65)
Solar, nuevamente como Rodríguez, considera la “buena
formación” de acuerdo con las reglas gramaticales del idioma un
criterio de aceptabilidad:
Los españoles dicen picotazo i picotada ¿porqué, pues, no
hemos de poder nosotros agregar picoton, como se dice
tarascon, bofeton o bofetada, manoton o manotada, sin faltar a
la propiedad del sentido. (SOLAR, 1876, p.120)
Por otra parte, Solar no considera que todo provincialismo sea
necesariamente malo. En este sentido, cita la famosa frase de la
Gramática castellana de Andrés Bello en que este señalaba que
“Chile i Venezuela tienen tanto derecho como Aragon i Andalucía
para que se toleren sus accidentales diverjencias cuando las patrocina
la costumbre uniforme i auténtica de la jente educada”. A propósito de
garúa y garuar, Solar apunta:
¿Qué razón tiene el señor Rodríguez para proscribir estas voces,
que todo diccionario moderno las reconoce como buenas?
Alega que garuar es provincialismo peruano i chileno i que la
jente educada no debe hacer uso de provincialismos sino en
casos mui justificados. ¡Estamos lucidos los americanos! Somos
despreciados por nuestros propios hermanos; se prefieren los
mas insulsos vocablos por venir de España a los mui sonoros i
espresivos nuestros. ¿Por dónde son preferibles mollizna i
cernidillo a garúa? Apelamos al juicio del público sensato:
quédense en buen hora en España, que por nuestra parte no
harémos el papel de farfulleros ni parlanchines. Usarémos
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
llovizna i garúa sin el menor escrúpulo, como a garuar, sin
proscribir por eso a mollizna i cernidillo, aunque los hallémos
demasiado melifluos. Llovizna y garua quedan en Chile siendo
de uso jeneral. El señor Rodriguez es a veces mas intolerante
que los mismos españoles; si Salvá, Dominguez, (si viviera
aun), u otros lexicógrafos visitasen a América, usarian de
nuestros despreciados provincialismos i es claro que así lo
harian, pues al darles acojida en sus diccionarios es porque los
adoptara la madre lengua como verdaderos hijos i no haria una
madrastra tratándolos mal. (SOLAR, 1876, p.68-69)
Otro punto de desacuerdo de criterios es que, en cuanto a la
polisemia, Solar, a diferencia de Rodríguez, piensa que “podemos
crear acepciones nuevas a palabras semejantes en el sentido que
necesitamos emplearlas” (SOLAR, 1876, p.ix), pues “si cada palabra
no tuviera mas que una sola acepcion, necesitariamos cuadruplicar por
lo ménos el caudal de voces de la lengua española” (SOLAR, 1876,
p.xi).
De entre las citas literarias que Solar pone al cierre de su obra, cabe
destacar una tomada de un Discurso pronunciado en la discusión de la
ley de ayuntamientos (1840) de A. Oliván, en que se pondera la
utilidad y aplicabilidad de las cosas por sobre su origen extranjero o
nacional, o su modernidad:
Los estremos todos son viciosos. El apresurarse a adoptar
indistintamente todo lo de los estranjeros es de necios; el
desecharlo todo por tema es de ilusos; el adoptar lo bueno y
desechar lo malo es de discretos. (cit. en SOLAR, 1876, p. 190)
La aseveración de la cita concuerda con la misión de “filtro”
normativo que se le atribuía en el siglo XIX chileno a los diccionarios
como el de Rodríguez. Por eso, precisamente, es que Solar considera
tan importante afinar los criterios normativos y aplicarlos de manera
rigurosa, que es precisamente lo que echa de menos en el Diccionario
de chilenismos. Nótese, de cualquier modo, que el espíritu normativo
al que Solar adhiere no corresponde a un purismo a ultranza, sino a un
purismo moderado, abierto a innovaciones, siempre y cuando estas
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
sean útiles y necesarias, muy en la línea inaugurada por Andrés Bello
en Chile.
3.2. La defensa de Paulsen
En la respuesta de Paulsen a Solar se observa una actitud
marcadamente purista con respecto a los usos provinciales, que parece
incluso más acentuadamente normativista que la del mismo
Rodríguez.
Paulsen dedica en gran parte de sus reparos a criticar las fuentes
utilizadas por Solar, tales como el Diccionario de la sociedad de
literatos (al que no considera una fuente autorizada), así como el mal
uso que Solar da a los diccionarios, debido a que ignora cómo utilizar
e interpretar estas fuentes (marcas, ejemplos, definiciones), además de
su escaso conocimiento en la materia. Son mayoría las refutaciones (a
las propuestas de Solar) sustentadas en la autoridad de la literatura
española clásica y del diccionario académico, por sobre cualquier otro
tipo de argumento. Paulsen critica, en el fondo, el hecho de que Solar
pretendiera que esta primera edición del Diccionario de chilenismos
de Rodríguez fuese perfecta, cosa que ni siquiera el primer
Diccionario de la Academia pudo lograr.
La siguiente cita, tomada de la “Advertencia” con que principia su
escrito, permite apreciar de manera muy clara la actitud normativa
purista de Paulsen:
El señor Rodriguez hizo esas apuntaciones, principalmente para
los jóvenes que se dedican a las letras i para todo linaje de
personas que tienen la noble aspiracion de no expresarse en una
jerga tan vulgar como abominable. En obsequio de los
primeros, para que sus obras puedan ser leidas fuera de Chile,
en las Américas i en España; donde corrian riesgo de no ser
entendidas de nadie si seguian ostentando voces i locuciones no
conocidas sino de los que nacieron en el estrecho seno de
nuestros valles: en el de los segundos, para que no se ofenda la
majestad de la Representacion Nacional con ridículos
provincialismos, i no se amengüe la elegancia del trato fino i
cortesano de nuestros salones con u lenguaje tan poco culto i
distinguido; i en fin, para que tanto nuestros varones como
nuestras damas que se resuelvan a salir alguna vez de la aldea
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
que los vió nacer, i emprendan un viaje por tierras extrañas, en
que se hable la lengua de Leon i Herrera, no necesiten de
intérprete, como lo hemos visto nosotros mismos allí en la
coronada villa que bala el arenoso Manzanares.
Pero si el autor del Diccionario no escribió sus sabias
lecciones para los mercaderes, los oficiales mecánicos, i aun
para muchas señoras de su casa, muchas de las cuales nohan
leido en su vida mas libro que el almanaque, seguro de que
ninguno de éstos habia de comprar una obra para ellos tan
inútil, nunca desconfió de que, con el tiempo, hasta la jente
pechera aceptará, si no todas, muchas de sus correcciones.
Siendo este el objeto del libro, i viniendo los chilenismos
casi siempre acompañados de su correspondencia castiza, no
comprendemos el empeño del señor Solar en adoptar voces
bárbaras que, aunque mui corrientes en nuestro suelo, está en
nuestro interes desterrar para siempre, como procuran hacerlo
en Colombia, en el Perú i otras secciones americanas, los
literatos que comprenden la inmensa ventaja de que tantos
millones de individuos hablen uniformemente una misma
lengua. [...] Resumiendo diremos, que nosotros no aceptamos
chilenismo alguno que tenga su correspondencia castellana, i
aun preferiremos el provincialismo andaluz o aragones a las
voces del cholo de Bolivia o del pehuenche de Chile.
(PAULSEN, 1876, p.13-14)
En primer lugar, Paulsen deja claro que el tipo de texto del que
están hablando, los diccionarios de chilenismos, tienen un destinatario
bien específico: las personas educadas. El sujeto popular, de esta
manera, está completamente fuera de la discusión, queda
completamente elidido, presumiblemente por ser un caso ya
completamente perdido desde el punto de vista de la conducta
idiomática, de manera que no puede formar parte de una planificación
idiomática. Esa “jerga vulgar i abominable” de la que habla Paulsen
seguro se refiere al lenguaje popular, con lo cual queda clara su
actitud radicalmente negativa hacia dicha variedad.
En segundo lugar, nótese que hay un ideal de eficiencia
comunicativa: Paulsen dice que el hablar “correctamente” permite
hacerse entender en un contexto internacional, de manera que no se
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
necesiten “intérpretes”. Con esta última alusión a los intérpretes,
Paulsen atrae un imaginario en que las variedades dialectales quedan
asimiladas a sistemas comunicativos distintos e incomensurables. La
metáfora conceptual activada en este caso es la típicamente
racionalista de que EL LENGUAJE ES UNA BARRERA. (BERTHELE,
2010, p.268; véase también GEERAERTS, [2003] 2006).
Y en relación inmediata con lo anterior, también se ve en Paulsen
una mención explícita del valor supremo que tiene la unidad de la
lengua, “inmensa ventaja” para los hispanohablantes. El valor de la
uniformidad es prioritario en el discurso de Paulsen, quien cita en otro
pasaje a Puigblanch para demostrarlo:
Los españoles americanos, si dan todo el valor que dar se debe a
la uniformidad de nuestro lenguaje en ambos hemisferios, han
de hacer el sacrificio de atenerse, como a centro de unidad, al de
Castilla, que le dió el ser i el hombre; lo contrario será fabricar
castillos en el aire. (cit. en PAULSEN, 1876, p.05)
En esta última cita a Puigblanch, también se ve claramente que,
para Paulsen, la fuerza centrípeta para la uniformación de la lengua
debe ser el uso de Castilla, que en otra parte califica de “uso recto i
regulador en materia de idioma” (PAULSEN, 1876, p.13). En este
contexto de defensa de la uniformidad, Paulsen acusa a Solar de
pretender lo contrario: “Cualquiera creeria que se trata de la formación
de una lengua nueva, cuyas voces propone el señor Rodriguez, i
discute el autor de los Reparos” (20).
Para Paulsen, al contrario que para Solar, el criterio de la utilidad
de una nueva voz no es criterio suficiente ni de peso mayor desde el
punto de vista normativo. Critica a Solar por empeñarse en conservar
“el uso de innumerables chilenismos, nada mas que porque los cree
útiles, o porque considera imposible sustituirlos por las
correspondencias castizas, por la oposicion que entre nosotros
hallarian” (PAULSEN, 1876, p.13).
Queda claro también, a partir de la cita extensa anterior, que
Paulsen tiene una actitud muy negativa hacia el provincialismo, el que
califica de “ridículo”. Con el provincialismo se entremezcla la
categoría del indigenismo léxico, hacia el cual tiene una actitud aún
más negativa, como muestra el que declare preferir los
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
provincialismos de regiones españolas que los originados en culturas
nativas de América.
En la mayoría de los puntos, la ideología lingüística de Paulsen
coincide con las creencias que hemos visto en Rodríguez (y también
parcialmente en Solar). Paulsen maneja un modelo literario español
clásico. Es muy decidora al respecto la siguiente cita a la Declamación
contra los abusos introducidos en el castellano (1791) del español
José de Vargas Ponce (1760-1821), que Paulsen incluye en su obra:
El uso de una palabra no se ha de indagar en un tocador o en un
corro de eruditos a la violeta; esto es, ni entre calaveras, ni entre
calabazas, sino por los renglones de un maestro Leon o de un
Fernando de Herrera, que, como ellos mismos cuentan de sí, las
medían i pesaban” (cit. en PAULSEN, 1876, p.16)
También se puede apreciar la preeminencia de la literatura clásica
en su ideología cuando, a propósito de aproximativo, remite a Solar a
comprobar hechos lingüísticos “en Calderon i en Quevedo”
(PAULSEN, 1876, p.21).
Igualmente, concede autoridad suprema a la Real Academia
Española y sus obras: está siendo sarcástico cuando afirma que “las
personas que deseen escribir correctamente i de modo que se entienda
en otros paises que hablan castellano lo que escriben, pueden optar
entre la autoridad del señor Solar i la de la Academia de la Lengua”
(PAULSEN, 1876, p.16).
El uso de extranjerismos es también una conducta lingüística
reprobable para este autor. A propósito de yuyuba, recrimina a Solar:
¿Qué es lo que desea Ud.? ¿O quiere Ud. que se diga pasta de
susub, en lugar de pasta de azufaifas, como teme don Juan E.
Hartzenbusch, en su prólogo al Diccionario de galicismos de
Baralt, que se le antoje decir a algun galiparlista? (PAULSEN,
1876, p.8)
La “buena formación” de los vocablos de acuerdo con reglas
gramaticales del idioma, asimismo, es un criterio de aceptabilidad:
“De paso advertiremos que aunque la palabra martillero no viene en
ningun diccionario, es bien formada” (PAULSEN, 1876, p.27).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Darío Rojas e Tania Avilés
En conclusión, puede apreciarse, en el caso de Fernando Paulsen,
una mayor coincidencia respecto del discurso lingüístico-ideológico
de Rodríguez, en comparación con Solar, e incluso, como decíamos,
una radicalización de algunas de las creencias normativas que
aparecen en el Diccionario de chilenismos.
4. Conclusión
En los autores estudiados (Fidelis del Solar y Fernando Paulsen), a
pesar de adoptar posturas antagónicas entre sí, podemos observar una
gran coincidencia en cuanto a las creencias normativas que exhiben en
sus escritos. Quizá la diferencia más importante sea la fuerza de la
actitud normativa, más acentuada en Paulsen que en Solar. Por otra
parte, las creencias de ambos autores coinciden, en mayor o menor
medida, con las que se encuentran en el texto que origina este debate,
el Diccionario de chilenismos de Zorobabel Rodríguez. La
confluencia de las creencias de este grupo de autores puede atribuirse
a la presencia, en todos ellos, de una versión históricamente
circunstanciada de la ideología de la lengua estándar (MILROY,
2001). En el fondo, todos ellos operan con el concepto de corrección y
las jerarquizaciones valorativas asociadas, a través de las cuales el
habla dialectal vernácula queda sujeta a una actitud negativa, mientras
que se prescribe un habla culta homogénea, inclinada hacia un modelo
castellano codificado principalmente en las obras de la Real Academia
Española.
Dicha coincidencia puede resultar sorprendente si se piensa que se
trata de debates (el mismo concepto de reparo, usado por Paulsen y
Solar en sus respectivos títulos, da a entender una postura polémica),
pero no tanto si se tiene en cuenta que en realidad Rodríguez, Solar y
Paulsen eran todos miembros de una élite cultural que conformaban
una comunidad discursiva (WATTS, 2008) articulada en torno al
lenguaje como objeto de reflexión, en el sentido de que compartían
intereses (por ejemplo, la educación lingüística, etc.), metas (por
ejemplo, la unidad del idioma) y creencias (como las que hemos visto
en el presente trabajo). Los debates, en este caso, podían tenían por
foco la evaluación que concretamente se hacía de un rasgo lingüístico,
pero las creencias o criterios que se usaban como fundamento de dicha
evaluación eran en gran medida los mismos. De esta manera, puede
concluirse que dicha comunidad discursiva se caracteriza también por
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
compartir una ideología lingüística y una serie de actitudes asociadas a
ella.
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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:
LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE
ZOROBABEL RODRÍGUEZ
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Palabras clave: historiografía lingüística; ideología lingüística;
español de Chile; lexicografía chilena.
Keywords: linguistic historiography; language ideology; Chilean
Spanish; Chilean lexicography.
Notas
1
Siguiendo la postura de Lara (1976), preferimos reservar el término norma para
aludir a un punto de referencia que sirve como orientación para determinar qué
acciones son consideradas socialmente válidas por una comunidad (TAKAHASHI,
2004, p.172). Es decir, como norma “prescriptiva”, por oposición a la norma
“descriptiva” de Coseriu ([1952] 1967). En palabras de Luhmann (1985, p.33), una
norma puede definirse sucintamente como una expectativa de conducta estabilizada
contrafactualmente (es decir, independientemente de los hechos). Entre las funciones
de las normas, de acuerdo con Bartsch (1982, p.61-62), se encuentra el servir de
patrón para interpretar una acción como socialmente válida y garantizar la
coordinación eficiente y económica de las acciones humanas.
72
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS
SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS
NO SUL: ALGUMAS REFLEXÕES
Amanda E. Scherer
DLCL-PPGL Laboratório Corpus UFSM
Caroline Schneiders
Laboratório Corpus DOCFIX-FAPERGS-CAPES UFSM
Taís S. Martins
DLCL PPGL Laboratório Corpus UFSM
Resumo: No presente artigo, buscamos compreender os processos de
institucionalização e disciplinarização da Linguística no Sul do
Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas
convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de
um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm
entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de
mudança. Partimos do fato de que são as condições de produção de
cada época que vão afetar e determinar a institucionalização da
Linguística no contexto em questão.
Abstract: In this article we aim to understand the processes of
institutionalization and disciplining of Linguistics in southern Brazil
in order to reflect on how each time has its conventions, values and
world views, which allow the creation of a particular academic
linguistic universe, whose elements establish associative and
functional relationships among themselves in a constant process of
change. We start from the fact that the conditions of production of
each time affect and determine the institutionalization of Linguistics in
the context studied.
Situando nossa problemática:
Porque é limitado todo o ato de saber possui, por definição uma
espessura temporal, um horizonte de retrospecção, assim como
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
73
SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o fazem
trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente
com frequência, ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina
ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro
sonhando-o enquanto constrói. Sem memória e sem projeto,
simplesmente não há saber (AUROUX, 1992, p. 11).
Nos estudos que vimos desenvolvendo, buscamos compreender os
processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no
Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas
convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de
um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm
entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de
mudança. Diante disso, partimos do fato de que são as condições de
produção de cada época que vão afetar e determinar a
institucionalização da Linguística nas universidades brasileiras.
Para esta reflexão, destacamos algumas considerações acerca
desses processos no Rio Grande do Sul, tendo em vista a relação com
os estudos saussurianos, os quais estiveram presentes em todas as
grades curriculares dos programas dos Cursos de Letras do Rio
Grande do Sul desde que esses passaram a ofertar a Linguística,
enquanto disciplina obrigatória, no início dos anos de 1960. Cabe
ressaltar que a “presença” de Saussure na disciplinarização da
Linguística no Sul foi acentuada, principalmente, depois da publicação
da tradução do Curso de Linguística Geral em Língua Portuguesa, no
ano de 1970. Assim, nosso trabalho versa sobre as primeiras
sistematizações disciplinares desse domínio de saber, levando em
conta os conceitos privilegiados, no sentido dos mais enfaticamente
designados, as disciplinas e as suas nomeações.
Nosso objetivo principal é o de compreender como os estudos
saussurianos delinearam a disciplinarização da Linguística em nosso
estado, determinando uma formação letrada, a partir de uma
representação sobre a língua e a linguagem, em uma época fecunda
que foi determinante para as décadas posteriores, bem como para a
criação dos primeiros programas de Pós-Graduação no estado. Para
tanto, os ementários, programas e grades curriculares dos primeiros
Cursos de Letras em instituições de ensino superior no interior do RS
são o nosso foco de estudo e análise. Nossos primeiros gestos de
74
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
leitura possibilitam dizer que são os estudos sobre Saussure, e não a
obra e o autor em si, que determinam a constituição da Linguística no
período por nós considerado.
1. Questões sobre a disciplinarização:
Nos últimos tempos, a partir do projeto intitulado “Linguística no
Sul: estudo das ideias e organização da memória”, temos procurado
historicizar a institucionalização dos estudos linguísticos no sul do
país, principalmente nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul. Quando estamos tratando de historicização, estamos pensando,
aqui, nos modos como a Linguística foi firmando-se enquanto
disciplina, com vistas a entender o que levou tal estabelecimento à
institucionalização da formação de pesquisadores e também da
pesquisa em nossa região.
Com esta reflexão, entenderemos, também, o processo que envolve
a constituição da Pós-Graduação, por meio do disciplinar da
Linguística nos cursos de graduação, a fim de compreender o que
temos hoje no que se refere às linhas de pesquisa, formação de
doutores, produção acadêmica e elaboração de instrumentos
linguísticos (tais como os primeiros livros sobre Introdução à
Linguística, por exemplo, entre outros), que possibilitam a visibilidade
que esse domínio de saber possui no âmbito acadêmico.
Para tanto, reunimos uma série de documentos que vão desde as
primeiras Revistas Acadêmicas, documentos oficiais que determinam
e dão base para a criação dos Cursos de Graduação em Letras e dos
Programas de Pós-Graduação, bem como ementários, programas,
cadernos de chamadas, manuscritos e rascunhos de cursos etc. Tais
documentos constituem, em nosso entendimento, um arquivo
consideravelmente importante para que possamos, neste momento,
apresentar uma parte dos resultados de nosso trabalho de pesquisa.
O que nos interessa, diante disso, é especialmente a história
disciplinar contemporânea a partir da problemática levantada pelo
projeto que foi coordenado pela Profª. Eni Orlandi e que apontou
como referência o que conhecemos hoje no Brasil como História das
Ideias Linguísticas e sua relação com a Análise de Discurso; ou seja,
procuramos identificar e interpretar como tais documentos podem
também dar sustentação ao que poderíamos designar como Linguística
Brasileira. Nossa preocupação é compreender os modos pelos quais
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
75
SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
um conteúdo da ciência se disciplinariza e se estabelece através de sua
institucionalização. Visamos, pois, a entender como a designação
disciplina, um princípio de especialização/singularização da pesquisa,
quer, por sua vez, ser “lógica” – pela sua referência a uma teoria
“unificada” de inteligibilidade – e funcional, pelos seus princípios de
organização da diversidade de conhecimentos (BOUTIER;
PASSERON; REVEL, 2006, p.07), para então cobrir um dado
conjunto dito como “natural” das Ciências da Linguagem,
justificando-se como uma certa concepção enciclopédica.
Diante disso, objetivamos explicitar a maneira pela qual se
constrói/se constitui a significação de uma certa nomenclatura, nós
diríamos “comunicacional científica”, e a repartição dos saberes de
referência em uma classificação que se quer “racional” (racionalidade
científica X racionalidade disciplinar). Nesse viés, para nós, é preciso
explicitar a maneira como o(s) saberes(s) constitue(m)-se e
configura(m)-se em relação a um certo domínio discursivo,
considerando os seus desdobramentos. A nossa questão fundamental
diz respeito a um trajeto discursivo: como um saber científico e um
certo conteúdo que se repete e que se singulariza sob forma de um
saber acadêmico pode se transformar em um conteúdo disciplinar.
Portanto, da reflexão e da produção do conhecimento, temos um
movimento nunca contínuo e muito menos linear em que o
conhecimento, ao se instar na transmissão, se coloca como um saber
acadêmico pedagogizado no intuito de tornar “mais racional” e
didático um saber que está em outro lugar e espaço temporal.
Representamos esse movimento, ainda que de forma embrionária, da
seguinte forma:
saber científico
saber acadêmico
saber pedagógico
saber escolar
Esse entendimento leva-nos a propor e considerar o fato de que
disciplina e ciência poderiam se equivaler para designar um conjunto
de relações entre os objetos e as pessoas que fazem a especificidade de
76
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
um domínio de saber ou de “um programa de pesquisa”. Isto é, pelo
disciplinar, poderíamos apreender os graus de cristalização e,
portanto, de estabilização que fazem parte da historicização de uma
prática científica.
Isso nos leva ao seguinte questionamento: o que entendemos por
disciplina? Para nós, a noção de disciplina serve para designar um
corpo de saber entendido como articulação de um objeto, de um
método e de um programa de um lado e, de outro, como o modo de
ocupação reconhecível em uma configuração maior.
Dizendo de outro modo, falar de disciplina é designar a atividade
científica como uma forma particular da divisão do trabalho de leitura
no mundo social acadêmico. Porque o sistema disciplinar é um modo
de organização funcional da pesquisa contemporânea e está muito
ligado ao ensino superior no seu caráter institucional (a descrição das
revistas, a fundação e criação das associações acadêmicas e
científicas, as transformações dos departamentos, a criação de
laboratórios, de grupos de pesquisa) e também no seu caráter teórico:
o aparelho conceitual e metodológico, a natureza das questões
colocadas em jogo, as tradições de pesquisa, ou seja, aquilo que
constituiria a sua matriz disciplinar.
Portanto, a noção de disciplina é tanto intelectual quanto
sociológica. Ela vai “testemunhar” em todas as suas definições,
limites, fronteiras, um esforço de uniformização, porque ela não é
apenas um dado de “matérias de ensino”, já que além das divisões
burocráticas ela “tem seu valor” – sua jurisdição epistemológica, uma
jurisdição institucional e pedagógica.
2. Questões sobre institucionalização e disciplinarização:
No Brasil (no período compreendido entre as décadas de 1960 e
1980), no âmbito dos estudos da linguagem, abrem-se novas
perspectivas, como, por exemplo, no ano de 1962, quando a
Linguística passa a fazer parte, como disciplina obrigatória, do
Currículo Mínimo dos Cursos de Letras. Tão logo isso ocorre, no ano
de 1963, essa disciplina já é ministrada nos Cursos de Graduação do
interior do RS, como podemos observar ao perscrutarmos os arquivos
das instituições acadêmicas gaúchas para constituir o corpus de nossa
pesquisa.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
Chiss & Puech (1999), em seus estudos, apontam para a
importância do olhar retrospectivo, a partir do qual se pode
estabelecer, pelo(s) lugar(es) de memória que ele atesta, o modo como
determinado campo de saber apresenta uma “consciência disciplinar”.
Segundo os autores, um campo de saber instaura-se na medida em que
configura um efeito integrador e esse efeito resulta do fato de o saber
ser entendido como uma unidade articulada, pela qual se pode
verificar a construção de uma espécie de campo homogêneo,
constituído por uma ontologia que se apresenta de modo mais ou
menos implícito.
A configuração de uma disciplina vincula-se ao seu horizonte de
retrospecção, pois, por meio dos resquícios-vestígios de uma memória
em funcionamento, pode-se entender uma temporalidade que é própria
à disciplina e, assim, compreender os saberes que organizam a
memória disciplinar de determinado domínio de saber (cf. ibid.). Chiss
& Puech (1999), partindo do que Auroux (2008) propõe sobre o
horizonte de retrospecção e projeção, ressaltam que a temporalidade
interna ao domínio disciplinar decorre tanto da sua relação com o
passado quanto com o futuro. A retrospecção permite a relação com a
memória, apresentando uma função legitimadora; já a projeção
apresenta uma relação com o devir, tendo, por conseguinte, uma
função instauradora. Por meio dos horizontes de retrospecção e
projeção, podemos observar o que Chiss & Puech (1999) denominam
de “horizonte disciplinar”.
Além da temporalidade que envolve a constituição do disciplinar,
Chiss & Puech (1995) destacam a importância da institucionalização.
Fazendo referência ao processo de disciplinarização e
institucionalização da Linguística (pensando esta enquanto domínio
científico), os autores consideram que:
L'institutionnalisation de la discipline semble donc résulter d'un
double mouvement relativement contradictoire. D'une part, la
science du langage est socialement utile: elle permet la
conservation de langues appelées à disparaître, reconstruit
celles qui ont déjà disparu, prend pour objet les activités
linguistiques qui constituent la plus grande partie de notre vie
sociale, doit permettre d'accomplir des progrès indispensables
dans le domaine de l'enseignement des langues, etc. De l'autre,
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
aucun des résultats qu'elle propose n'est directement accessible
au sens commun: ni la réalité du changement linguistique
continué, ni la dignité des langues sans écriture, ni la
secondarité de l'écriture par rapport à la langue parlée... ne sont
des “truisms”. La disciplinarisation de la science (son
institutionnalisation visible) est donc à la fois un devoir et une
stratégie quasi défensive1 (CHISS; PUECH, 1995, p.108, grifos
dos autores).
Compreendemos, assim, que pensar o disciplinar é também pensar
o processo de institucionalização, por meio do qual certo domínio
ganha visibilidade e possibilita/resulta na disciplinarização de
determinados saberes em condições sócio-históricas e ideológicas
específicas. Para os autores (1995), o disciplinar pode estar ancorado
em três grandes modalidades referentes à representação da unidade e
das fundações da disciplina: (i) a filiação empírica, pela qual se busca
a continuidade, seja de uma tradição nacional, seja de uma escola de
pensamento, etc; (ii) a divisão, ou demarcação disciplinar, seja em
relação ao tempo ou sincronicamente, a qual permite à disciplina estar
calcada em certa parte do real e em certa “família” de disciplinas; e
(iii) a refundação conceitual, onde a figura do antecessor não é mais
considerada como predecessor empírico, mas como um fundador que
legitima uma refundação por reapropriação/reação. Essa última
modalidade, para os autores, possibilita entender que a disciplina está
situada na ordem da legitimação, mais próxima da definição do objeto
e, na maior parte do tempo, do horizonte de projeção da disciplina, no
que deveria/poderia ser (CHISS; PUECH, 1995, p.106).
Para Chiss & Puech (1999), quando se adota um ponto de vista
disciplinar, há uma maior atenção no que diz respeito às considerações
que envolvem o objeto da ciência, permitindo analisar, por
estratificações e delimitações, o modo como o discurso está em
relação a outros discursos precedentes, adjacentes, distintos, mas que,
no entanto, não são estranhos à(s) disciplina(s) em questão. Diante
disso, os autores consideram que as representações disciplinares estão
associadas ao processo de constituição dos conhecimentos e é a
disciplinarização que organiza a relação entre o nível da continuidade
e da descoberta, bem como a herança na perspectiva da inovação
(CHISS; PUECH, 1995, p.122).
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
Pela relação com a temporalidade, é possível verificar que há um
continuum de discursos disciplinares, como apontam Chiss & Puech
(1999, p.10). Contudo, é importante ressaltar que tal continuidade
refere-se à articulação de determinado domínio de saber com o
horizonte de retrospecção. Além disso, toda retomada de saberes não
implica necessariamente a retomada dos mesmos sentidos, e é a partir
desse pressuposto que podemos pensar a questão da (re)fundação
proposta por Chiss & Puech (1995). Para os autores, do ponto de vista
disciplinar, “la nouveauté n'est mesurable que sur le fond d'une
compacité qui est celle de la discipline même: la fondation est
nécessairement une re-fondation”2 (CHISS; PUECH, 1995, p.107).
Tal processo que envolve o disciplinar é decorrente, portanto, de
sua relação com a temporalidade, com o horizonte de retrospecção,
que estabelece qual domínio de memória constitui determinado campo
de saber e permite compreender que “la discipline est moins un état de
fait qu’un processus toujours déja commencé et recommencé”3
(CHISS; PUECH, 1999, p. 19). Para tanto, Chiss & Puech (1995)
destacam a necessidade da figura do predecessor para a constituição
de um campo disciplinar, figura essa que:
[...] dans l'ordre empirique de la succession, se confond donc
avec celle du «précurseur»/fondateur, pour donner lieu à une
appréhension unifiée, homogène du champ de la discipline
saisie dans la variété de ses domaines, de ses branches et de ses
intérêts4 (CHISS; PUECH, 1995, p.112).
No caso da constituição disciplinar da Linguística, os autores, após
uma retomada de diversos estudos de linguistas do século XX acerca
da contribuição do saussurianismo, destacam o Cours de linguistique
générale, de Ferdinand de Saussure, como sendo um “texto fundador”
capaz de fornecer uma referência retrospectiva que configura um
domínio de memória, por estabelecer relações de gêneses, de filiações,
de continuidade e descontinuidade, assim como um domínio de
pesquisas5.
Se tomarmos, por exemplo, um dos autores citados nos programas
de disciplinas em análise, como é o caso de Coseriu (1999), ele em
seu livro intitulado Lecciones de Lingüística General apresenta-nos
uma história da continuidade, perscrutando no passado, os pontos
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
mais importantes apresentados no Curso de Linguística Geral de
Saussure (doravante CLG). Para o autor:
[...] hay que tener em cuenta que ‘El curso de lingüística geral’
no constituye solo um punto de partida sino también um punto
de llegada y encuentro de tesis e intuiciones anteriores y que
justamente por ello representa um momento essencial en la
historia de la lingüística6 (COSERIU, 1999, p.129).
Com isso, podemos inferir que Coseriu (1999) afirma que devemos
considerar que há alguns conceitos e noções presentes no CLG que já
são pensadas e discutidas desde a antiguidade, havendo outros que são
pensados por meio de influências recíprocas entre Saussure e seus
contemporâneos. Mesmo fazendo as devidas objeções e ressalvas, o
autor coloca ainda que “La lingüística europea actual debe mucho a
Saussure7” (COSERIU, 1999, p.74).
Já para Benveniste (1988, p.34), não há um só linguista que hoje
não lhe deva algo, pois Saussure é “em primeiro lugar e sempre o
homem dos fundamentos” (p. 34). Benveniste (1988) afirma também
que Saussure, ao afastar-se de sua época, estava aos poucos se
tornando senhor de sua verdade, gradativamente estava transformando
a ciência da linguagem “[...] à medida que adianta sua reflexão, vai à
procura de dados elementares que constituem a linguagem, desviandose pouco a pouco da ciência do seu tempo, em que não vê senão
‘arbitrariedade e incerteza’” (BENVENISTE, 1988, p.36).
Segundo o autor, a Linguística que temos hoje, que se tornou uma
ciência importante, tem sua origem em Saussure, pois é “em Saussure
que ela se reconhece e se reúne” (BENVENISTE, 1988, p.49). Ao
considerar que Saussure busca garantir os fundamentos da linguística,
Benveniste afirma: “estranho destino esse das ideias, e como parecem
às vezes viver pela sua própria vida, revelando ou desmentindo ou
recriando a figura de seu criador” (BENVENISTE, 1988, p.48).
No contexto brasileiro, por exemplo, temos um grande estudioso
também problematizando tal relação histórica, como é o caso de
Guimarães (2008, p.09) quando enfatiza que “a história da linguística
tem centrado sua atenção, de um ou de outro modo, no corte, decisivo
sob muitos aspectos, do CLG”. A maioria dos estudos linguísticos
realizados no século XX e XXI (pelo menos no tocante ao mundo
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
ocidental) é afetada de alguma maneira pela obra do mestre de
Genebra.
Embora saibamos que “o pensamento moderno sobre a linguagem
instala-se a partir do século XIX, com a linguística comparativa”
(GUIMARÃES, 2002, p.116), é a partir da “ruptura fundante” de
Saussure que realmente a Linguística moderna se instaura, ruptura que
se dá por meio da sistematização dos estudos da linguagem. Neste
sentido, Arrivé (2010, p.20), aponta que “Saussure não fundou a
linguística, que já possuía um longo passado científico quando ele
nasceu. Mas sua obra está na origem de uma mutação considerável na
evolução da disciplina”, fato que torna possível falarmos em um corte
saussuriano.
O destaque para essa discussão em torno do disciplinar reitera o
fato de o discurso manter uma dupla relação com a história, sendo
“histórico, porque se produz em condições determinadas e projeta-se
no ‘futuro’, mas também é histórico porque cria tradição, passado, e
influencia novos acontecimentos” (ORLANDI, 1990, p.35). A
determinação histórica e a relação com o devir são fundamentais, em
nosso entendimento, por permitir explicitar que tanto a
disciplinarização quanto a institucionalização constituem-se como
processos vinculados um ao outro que contribuem para a
historicização de determinados saberes e sentidos em condições sóciohistóricas e ideológicas específicas.
3. As reflexões que propomos:
Cabe ressaltar que o corpus de nosso trabalho é constituído por
documentos relativos a programas da disciplina de Linguística (dos
anos de 60-70-80) e por relatórios anuais dos cursos de graduação de
instituições universitárias (do início dos anos 60). Documentos que
nos possibilitam a compreensão do processo de disciplinarização da
Linguística no Sul e seu desenvolvimento. Processo que possui forte
influência dos estudos saussurianos, principalmente nos anos 70, após
a publicação do CLG em Língua Portuguesa.
Essa influência a que nos referimos diz respeito à relação do
processo discursivo com determinado horizonte de retrospecção, uma
vez que o modo de historicização, conforme destaca Auroux (2008,
p.152), “depende largamente da constituição e da estrutura do
horizonte de retrospecção na sua relação com o funcionamento do
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
domínio de objetos”. Para nós, o processo de disciplinarização deve
ser pensado em articulação com o domínio da ciência, em nosso caso,
o das Ciências da Linguagem em geral, constituindo-se, assim,
enquanto um processo afetado histórica e ideologicamente. Vamos
colocar aqui tal processo discursivo em três grandes movimentos e
que poderão elucidar melhor como estamos tratando tal problemática.
3.1.
Um primeiro movimento: a disciplinarização antes da
tradução do CLG - sobre Saussure
Considerando a Linguística ministrada no Sul, logo após o decreto
que postula sua obrigatoriedade, entendemos que se tratava de uma
disciplina marcadamente identificada aos estudos da Língua
Portuguesa em suas condições externas e internas. Como podemos
observar nos programas disciplinares que fazem parte do corpus de
nossa pesquisa, ao descreverem a disciplina de Linguística, ministrada
no ano de 1963 em instituições de nosso Estado8, muitas informações
se repetem. Nesses programas disciplinares, encontramos, na
descrição dos conteúdos a serem ministrados, por exemplo: Semântica
Descritiva; Categorias Gramaticais; Progresso Linguístico;
Gramaticalização; Quadro das Categorias; Gênero; Categoria de
Tempo, de aspecto; Classificação dos Vocábulos; Pronomes;
Advérbios; Frase e Estilo; Frase-Estrutura; Frases Nominais e
Verbais; Gênese da Frase Impessoal; Vozes do Verbo; Voz Passiva;
Tipos de Frase Passiva; Estrutura; Frase Ergativa; Evolução
Empréstimo; Caráter da Evolução; Causas da Evolução; Campos da
Evolução; Evolução Fonética; Atitude Fonêmica. Estrutura Social.
Aspectos da Evolução fonética; Tipos de Evolução Fonética;
Mudanças Combinatórias, Mutações; Analogia.
Dois anos depois, em 1965, observamos uma mudança no
programa de disciplina Linguística, que continua com a mesma
nomeação, mas sofre alterações na sua designação, por meio de uma
reconfiguração interna na seleção dos tópicos a serem trabalhados.
Assim sendo, como no ano de 1963, ainda temos um Curso anual que
possui uma disciplina nomeada Linguística, mas ela é designada de
forma diferente. Podemos trazer um grande clássico para nos auxiliar
a sustentar o que desejamos, pois para nós, segundo Bréal (2008), não
há dúvida de que linguagem designa as coisas de modo incompleto,
inexato. Com isso, acreditamos que as designações são apresentadas
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
na trama de suas re+escriturações, isto é, no reaparecimento, nas
substituições, nas retomadas, que, em vez de fixarem a referência,
produzem sua deriva.
Vejamos, por exemplo, os programas disciplinares do ano de 1965,
que dividem o programa da disciplina nomeada Linguística em duas
partes específicas, configurando-a da seguinte maneira: uma 1ª parte
designada como Introdução que apresenta o desenvolvimento da
linguística; um breve histórico; a linguística no Brasil; Língua e
Cultura; Conceito de Língua; Natureza da Linguagem; Língua e
Sociedade; Língua e espaço; O atlas linguístico; Natureza da
linguagem. Língua e tempo; Fonética; Divisões da Linguística;
Objeto da Linguística; Método Linguístico; posteriormente,
referenciam-se conteúdos relativos à fonética (inclusive apresentando
o estudo do IPA – International phonetic alphabet); e uma 2ª parte
dedicada a estudos da Morfologia da Língua Portuguesa e Fonética do
Português, do Francês e do Inglês, além de introduzir estudos de
Sintaxe (a frase e sua estrutura).
Esses programas não alteram a nomeação da disciplina, mas a
fazem significar de maneira diferente dos programas anteriores por
meio de uma reconfiguração que a designa de forma diversa. Cabe
destacar que entendemos também que diferentes designações podem
estar carregadas com um mesmo sentido ou com sentidos diferentes, o
que não modifica o objeto e sim as formas de apresentação (e de
representação) desse objeto, compreendemos então que,
independentemente de ser nomeada de maneira x ou y,
independentemente de ser designada de modo a ou b, a Linguística
apresentada nos programas disciplinares por nós analisados, a partir
do ano de 1965 é, sobretudo, uma Linguística que tem como ponto
de partida os estudos saussurianos. E, conforme Benveniste (1988, p.
34), “não há uma só teoria geral que não mencione seu nome”,
independentemente de aceitar ou negar os conceitos por ele postulados
no CLG.
No ano de 1967, observamos uma referência mais enfática à
Linguística saussuriana no final da listagem dos conteúdos, como
podemos observar: Linguística: Métodos e definições; A Semiótica:
Conceitos; Caracteres dos Sinais; Classificação filosófica dos
objetos; A divisão da Semiótica; A articulação; Os níveis de
articulação; Linguagem; O sinal Linguístico; O caráter arbitrário do
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
sinal; As formas motivadas; As formas de linguagem: o discurso; As
formas de linguagem: o dialeto, a norma, o sistema; A classificação
dos elementos linguísticos e formas de linguagem. A ciência da
linguagem: sincronia.
O ano de 1969 apresenta uma divisão mais próxima do que
conhecemos como uma Linguística saussuriana, trazendo elementos
do CLG, como as dicotomias saussurianas, e também estudos do
linguista Martinet, e uma Linguística pré-saussuriana. Neste ano, os
programas da disciplina são divididos em duas partes: a primeira
corresponde à Introdução à Linguística Geral, tendo o seguinte
conteúdo programático: “Língua, conceito, funções; Langue e Parole;
Sincronia e Diacronia; Língua como grupo e sons elementos da
segunda articulação; Língua como um grupo simbólico (elem. da 1ª
articulação); Os símbolos linguísticos são arbitrários; Língua como
forma de comportamento social; Língua e cultura; A língua é sistemaparadigma e sintagma; As mudanças linguísticas; Correção
linguística; Níveis do discurso; Dialetos”; e a segunda parte é
destinada à História da Linguística, com os seguintes tópicos: “Os
hindus; Os gregos; Os latinos; A Idade Média; A Linguística
comparativa; Os neo-gramáticos; A linguística como ciência
Ferdinand de Saussure; Escolas Post-Saussurianas”.
Neste período, importantes eventos relativos aos estudos
linguísticos ocorriam em nosso estado, dentre os quais destacamos o I
Instituto Brasileiro de Linguística, que se realizou no ano de 1968, em
Porto Alegre, sob a responsabilidade acadêmica do Setor de
Linguística do Museu Nacional, por meio da figura do importante
linguista e pesquisador de línguas indígenas Aryon Dall'Igna
Rodrigues. De acordo com Scherer (2005, p.21):
[...] destaques do sul em tal evento são os professores Adelino
Martins e Leonor Scliar Cabral, cujas falas apresentavam títulos
que já anunciavam um discurso fundador do lugar de uma
linguística mais voltada ao ensino do que propriamente teórica.
Vejamos os títulos dessas conferências: As bases linguísticas
para o aprendizado de língua materna e os princípios da
Linguística e sua aplicação ao ensino de língua portuguesa.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
Nesse importante evento, inúmeros professores de diversas
instituições do estado estavam presentes, o que certamente influenciou
a Linguística desenvolvida naquele período. Também podemos
ressaltar o importante lugar conferido à PUCRS no que se refere à
formação de profissionais para atuarem na área de Linguística, entre
1968 e 1969, de modo que passaram 568 professores por um programa
de formação continuada em Linguística na instituição.
Já no âmbito regional das instituições que fazem parte do corpus
de nosso trabalho, destacamos, no ano de 1969, a realização do “I
Seminário Santa-Mariense de Orientação Linguística” que foi
ministrado pelos professores Eurico Back, Regis Berthi e Celso Luft.
A presença desses pesquisadores que, de certa maneira, estão voltados
a questões de Linguística, ensino e Língua Portuguesa (questões que
também podem ser observadas nos programas daquela época), a nosso
ver, repercutem o modo como a Linguística também foi
disciplinarizada no Sul, pois podemos afirmar que:
[...] enquanto disciplina de caráter acadêmico é, durante esse
período,
uma
disciplina
ainda
emergente,
cujos
desenvolvimentos parciais em cada um de seus domínios (a
relação curricular pelo seu ementário, programa e bibliografia)
são muito desiguais, embora relativamente autônomos, cada um
na sua ordem discursiva (SCHERER, 2005, p.23).
Isso nos permite compreender a determinação histórica que afeta a
constituição dos programas em análise, além do fato de que não há
uma regularidade com relação ao conteúdo a ser ministrado.
3.2. Um segundo movimento: a publicação do CLG – e a
configuração de um disciplinar institucional
Os anos da década de 1970 apresentam um novo cenário aos
estudos linguísticos, marcado especialmente pela publicação em
Língua Portuguesa do CLG, como afirma Salum no prefácio à edição
brasileira, com “apenas 54 anos de atraso” (SAUSSURE, 2006,
p.XVIII). Se pensarmos na conjuntura de sua edição, podemos dizer
que ela é resultante de uma série de questões, tendo em vista atender
às demandas intelectuais que se instalavam no Brasil e às demandas
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
das universidades, pois, naquela década, a Linguística começou a ter
uma difusão maior junto aos Cursos de Letras.
Além disso, entendemos que essa publicação afetou o processo de
disciplinarização da Linguística, alterando a designação e a nomeação
da disciplina para que esta se “moldasse” de maneira a representar
capítulos do CLG. Encontramos, em meados da década de 70, no Rio
Grande do Sul, disciplinas intituladas, por exemplo, como Linguística
I, Linguística II, nas quais temos respectivamente uma linguística
introdutória e uma linguística saussuriana. Como podemos observar
em nossos arquivos, naquele período, a Linguística passou a estar
fortemente atrelada ao CLG e organizada conforme seu sumário. Uma
Linguística que traz em seu conteúdo programático - Introdução do
CLG, a primeira parte do CLG (Cap. I – Natureza do Signo
Linguístico e cap. II - Imutabilidade e Mutabilidade do Signo) e a 2º
parte do CLG (cap. IV – O valor linguístico e Cap. V - Relações
sintagmáticas e relações associativas). E, na sequência, em disciplina
intitulada Linguística III, constam conteúdos como: Glossemática; A
linguística Americana Moderna; Contribuições da Psicologia e
filosofia nos estudos da língua; 4º parte do CLG (Cap. III – Causas
da Diversidade Geográfica); 5º parte do CLG (Conclusão de
Saussure; Cap. II – A língua mais antiga e o protótipo, Cap. III As
reconstruções, Cap. IV O testemunho da língua em Antropologia e em
Pré-História e Cap. V – Famílias de Línguas e tipos linguísticos).
A nosso ver, essas modificações nos programas, resultantes da
publicação em Língua Portuguesa do CLG, vinculam-se ao caráter
fundador que essa obra possui, já que é considerada um marco para o
estabelecimento do domínio de memória da Ciência Linguística.
Inclusive apoiamo-nos em Chiss & Puech (1994) para considerar que
o CLG configura-se como um texto fundador, uma vez que:
Saussure a fonctionné comme «carrefour» dans un champ plus
largement différencié encore. En effet, les lectures de
«l'événement discursif» qu'a été l'édition du C.L.G. ont
contribué à élaborer la mémoire et l'horizon disciplinaire des
sciences du langage. Mais on sait bien qu'au-delà de la
communauté savante, c'est aussi dans la transmission
pédagogique et dans le domaine des «idées générales» et des
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
transferts de connaissances que s'opère cette élaboration9
(CHISS; PUECH, 1994, p.42).
Isso nos permite dizer que o CLG configura-se como um ponto de
ancoragem para outros discursos – em nosso caso, os programas da
disciplina de Linguística –, os quais, ao retomar tal postulado,
constituem-se tendo em vista certa filiação de sentidos e determinação
histórica. Desse modo, entendemos que as alterações compreendidas
na formulação dos programas decorrem, conforme Scherer e Petri
(2008), em razão de o campo disciplinar de uma ciência ser afetado
pela formação ideológica em que está inserido, afetando a história dos
conceitos e a história cultural do disciplinar.
Para entender o processo de constituição de um campo disciplinar,
devemos, pois, atentar à determinação ideológica e histórica que afeta
a conjuntura em que tal campo se insere, pois “cada época tem suas
convenções, valores, visões do mundo, formando um certo universo
linguístico-acadêmico, cujos elementos interdependentes mantêm
entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de
mudança” (SCHERER, 2005, p.10). Isso se torna necessário na
medida em que devemos compreender e considerar, tanto a História
das Ideias quanto a história das instituições que ajudaram a constituir
dado campo científico ou dada disciplina.
3.3. Um terceiro movimento: a disciplina e seu movimento de
reconfiguração
Nos anos de 1980, os programas por nós analisados, continuam
com as mesmas nomeações de disciplina da década de 70, a saber,
Linguística I, Linguística II e Linguística III, porém com outra
configuração, designando essas disciplinas de maneira diferente. A
Linguística presente nos programas é reconfigurada, o que
alterna/altera é a designação, uma vez que a disciplina de Linguística I
passa a ter como objetivos: “Descrever a língua como um conjunto de
símbolos organizados para a comunicação humana” e subdividir seu
programa nas seguintes unidades: I) Visão geral da Linguística antes
de Saussure; II) História da Linguística na antiguidade; III) A
linguagem articulada; IV) As ideias de Ferdinand Saussure; V) O
Signo Linguístico; VI) Linguística e Gramática; VII) História da
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Grafia; VIII) A Dupla Articulação da Linguagem segundo Martinet;
IX) As Três Gramáticas.
A disciplina de Linguística II objetivava que o aluno fosse capaz
de identificar as variações articulatórias dos sons da fala e as unidades
mínimas distintivas que operam na língua, quais sejam: I) Fonética
Histórica e Descritiva; II) Dupla Articulação; III) Confronto Fonético
das Línguas; IV) Transcrição Fonética Internacional; V) Fonética
Articulatória e Acústica. Já a Linguística III contemplava, na unidade
I, As três gramáticas, e, na unidade II, Apresentação das novas
tendências da linguística, enfocando linguística e psicologia; a
linguística e as ciências sociais; a linguística e a filosofia.
Tal efeito em que alterna/altera os programas de Linguística da
década de 80 aponta para a (re)configuração em torno da designação
que envolve essa discursividade, movimento esse que é, para nós, uma
condição necessária para o processo de disciplinarização, uma vez que
as representações disciplinares estão associadas ao processo de
produção do conhecimento e é a disciplinarização que organiza a
relação entre o nível da continuidade e da descoberta, bem como a
herança na perspectiva da inovação (CHISS; PUECH, 1995, p. 122).
Além disso, tal (re)configuração indica o fato de inscrever-se na
constituição dos programas uma identificação com determinados
saberes/dizeres, por meio dos quais se visa à consolidação e a
(de)marcação de dado domínio/teoria, que se configura a partir de
condições sócio-históricas e ideológicas específicas. Esse
funcionamento em torno dos programas está relacionado, a nosso ver,
à produção do conhecimento, pois envolve, igualmente, como enfatiza
Scherer (2008):
[...] um trabalho permanente de demarcação de lugar, trabalho
que envolve um policiamento incessante de fronteiras e uma
vigilância epistemológica ímpar de domínios, a fim de que
possamos manter as rédeas de nossa sujeição nos possíveis
deslizamentos de sentido na constituição do campo de saber em
que estamos postos (SCHERER, 2008, p.133).
Podemos entender também, por meio da constituição dos
programas selecionados, um processo de filiação teórica e de sentidos.
Para Orlandi (2002, p. 156), “quando os autores se filiam a uma teoria
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
e não outra, e quando fazem um recorte do objeto de conhecimento,
estão produzindo uma política de ciência com conseqüências para uma
política social”. A nosso ver, a partir do momento em que certos
saberes/dizeres passam a constituir determinado processo discursivo,
pode-se considerar que os mesmos estão (de)marcando um lugar em
certas condições de produção.
Entendemos que é, sobretudo, a filiação que permite aos saberes se
institucionalizarem e circularem em dada conjuntura sócio-histórica e
ideológica. Sobre essa reflexão em torno da filiação, retomamos Chiss
& Puech (1999), para os quais:
[…] proclamer des filiations ou des affiliations, c’est organiser
un champ de savoir homogène par un certain agencement de la
mémoire. Définir un objet propre dans ce champ homogène,
c’est indexer, identifier, décrire les principaux domaines de la
discipline où l’objet trouve sa place légitime. Fixer des tâches
programmatiques, c’est compléter, par la dimension projective,
la cohérence rétrospective et synchronique de la discipline. Le
point de vue disciplinaire, par quelque côté qu’on l’envisage,
nous confronte donc à la dimension temporelle (retrospection,
délimitation synchronique, projection) d’une représentation du
savoir10 (CHISS; PUECH, 1999, p.16).
Segundo estamos considerando, quando pensamos na
institucionalização e disciplinarização de determinado domínio de
saber, devemos levar em conta, sobretudo, a relação com o horizonte
de retrospecção, a partir do qual se pode compreender a maneira como
determinado campo disciplinar historiciza-se ao longo do tempo.
Cabe ressaltar ainda que, apesar de diferentes
(re)configurações, (re)nomeações, designações, presentes nos
programas disciplinares por nós analisados, independentemente da
orientação teórica predominante em diferentes momentos históricos
“Saussure é, sem dúvida – e não apenas na França, na Suiça e na
Europa –, o linguista mais lido, mais citado e mais comentado: os
livros consagrados a eles são dezenas, os artigos, milhares (ARRIVÉ,
2010, p.20).
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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins
Para encerrar:
Há uma constante reconfiguração nos programas e ementas da
disciplina de Linguística que altera/alterna a sua designação, o que,
para nós, vem configurando um outro olhar para a constituição
disciplinar da Linguística e produzindo outros sentidos para essas
nomeações, assim como percebemos por meio da instituição da
Linguística I, Linguística II e Linguística III. A designação pode até
mesmo levar à alteração da nomeação e à subdivisão do campo
disciplinar, como ocorreu da passagem de Linguística para Linguística
I, II e III, ou – em outros momentos não abordados aqui – para
Linguística Geral e Introdução aos Estudos Linguísticos.
Entendemos que a constante alternância-alteração nos programas e
ementas, além da reconfiguração dos conteúdos a serem trabalhados, é
decorrente do “processo de disciplinarização”, pois “o discurso do
conhecimento, como qualquer outro, está em movimento e não se
deixa enclausurar, desenhando seus meandros no fluxo do saber”
(ORLANDI, 2002, p.62). Essas alternâncias-alterações nos programas
são determinadas historicamente, ou seja, as ideias vigentes sobre os
estudos da linguagem estão diretamente ligadas aos discursos que
tratam do saber sobre a língua, pois a produção do discurso disciplinar
está enredada, encravada, à ideologia, a qual se materializa através do
discurso e aponta para a sua historicidade, bem como para seus efeitos
de sentido.
Logo, refletir sobre a constituição e a formulação dos programas
referentes à disciplina de Linguística é relevante na medida em que
nos possibilita compreender o processo de institucionalização e
desenvolvimento desse domínio de saber em determinada conjuntura
sócio-histórica e ideológica. Tal compreensão nos conduz,
especialmente, aos movimentos de sentidos que se tem de uma época
para outra, bem como às ideias que circulam em determinada
conjuntura e que acabam voltando em espaços e momentos outros por
meio de outros sujeitos e instituições.
Se Saussure é uma espécie de “metabolização”, no dizer de Puech
(2013) do Curso e se esse acabou se tornando um objeto histórico
investido de valores culturais e políticos os mais variados, e
instituídos disciplinarmente, podemos inferir então que são os modos
de re-apropriação do saber do linguista e de suas aulas que irão ser
determinantes para o que Puech (2013) vai chamar de uma
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
91
SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
“consciência disciplinar”. No contexto aqui analisado, mesmo que sob
uma forma quase que des-materializada, porque vamos encontrar aí
uma espécie de matriz disciplinar que pode ser re-investida,
transformada, estendida e re-inventada quando da criação dos
primeiros programas de pós-graduação no RS e na formação do
pesquisador. Tema para um próximo artigo.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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<http://goo.gl/VphrCl>. Acesso em: 31 ago. 2015.
Palavras-chave : Linguística, Disciplinarização, Institucionalização
Key-words: Linguistics, Disciplining, Institutionalization
Notas
________________________
Tradução nossa: “A institucionalização da disciplina parece, pois, resultar de um
duplo movimento relativamente contraditório. De um lado, a ciência da linguagem é
socialmente útil: ela permite a conservação das línguas chamadas a desaparecer;
reconstrói aquelas que já estão desaparecidas; coloca como objeto as atividades
1
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
93
SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS
REFLEXÕES
linguísticas que constituem a maior parte de nossa vida social; e deve permitir os
progressos indispensáveis no domínio de ensino das línguas, etc. De outro lado,
nenhum dos resultados que ela propõe é diretamente acessível ao senso comum: nem
a realidade da mudança linguística continuada; nem a dignidade das línguas sem
escritura; nem a secundariedade da escritura em relação à língua falada...não são
‘truísmos’. A disciplinarização da ciência (sua institucionalização visível) é, pois, ao
mesmo tempo, um dever e uma estratégia quase defensiva”.
2 Tradução nossa: “a novidade é somente mensurável sobre o fundo de uma
compacidade que é aquela da disciplina em si: a fundação é necessariamente uma
refundação”.
3 Tradução nossa: “a disciplina é menos um estado de coisas que um processo sempre
já começado e recomeçado”.
4 Tradução nossa: “[...] na ordem empírica da sucessão, confunde-se com aquela do
‘precursor’/fundador, por dar lugar a uma apreensão unificada, homogênea do campo
da disciplina colocada na variedade de seus domínios, de seus ramos e de seus
interesses”.
5Tal domínio refere-se às pesquisas atuais que envolvem o discurso saussuriano,
sobretudo, a partir de seus manuscritos.
6 Tradução nossa: Temos que considerar que o “CLG” não constitui somente um
ponto de partida, mas também um ponto de chegada e encontro de teses e intuições
anteriores e que justamente por isso representa um momento essencial na história da
linguística.
7 Tradução nossa: A linguística europeia atual deve muito a Saussure.
8 Não vamos entrar aqui em tudo o que cada recorte implica na própria história do
fazer e na constituição do disciplinar na Linguística no Sul; nem tão pouco estudar
todas as entradas dos fatos históricos e das influências que se avolumam quando
instamos uma interpretação mais apurada de tudo o que compõe tal historicidade.
9 Tradução nossa: “Saussure funcionou como um ‘cruzamento’ em um campo ainda
mais amplamente diferenciado. Com efeito, as leituras de ‘acontecimento discursivo’
que teve a edição do C.L.G. contribuíram para elaborar a memória e o horizonte
disciplinar das ciências da linguagem. Mas sabemos bem que, para além da
comunidade científica, é também na transmissão pedagógica e no domínio das ‘ideias
gerais’ e das transferências de conhecimentos que se opera essa elaboração”.
10 Tradução nossa: “proclamar as filiações ou as afiliações, é organizar um campo de
saber homogêneo por um certo agenciamento da memória. Definir um objeto próprio
nesse campo homogêneo é indexar, identificar, descrever os principais domínios da
disciplina onde o objeto encontra seu lugar legítimo. Fixar as tarefas programáticas é
completar, pela dimensão projetiva, a coerência retrospectiva e sincrônica da
disciplina. O ponto de vista disciplinar, por qualquer lado que consideramos,
confronta-nos, pois, a uma dimensão temporal (retrospectiva, delimitação sincrônica,
projeção) de uma representação do saber”.
94
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
DOSSIÊ
ENUNCIAÇÃO E SINTAXE
Este Dossiê reúne trabalhos voltados para a exploração de aspectos
da sintaxe a partir de uma análise semântica de linha enunciativa. Os
seus autores participam do Grupo de Estudos da Enunciação, sediado
na Faculdade de Letras da UFMG, desde o ano de 2002.
O Grupo foi criado no ano 2000, na Universidade Federal da
Paraíba – Campus de Campina Grande, hoje Universidade Federal de
Campina Grande, agregando mestrandos e bolsistas de graduação na
tarefa de desenvolver leitura avançada de textos em Semântica da
Enunciação e com isso produzir os fundamentos de uma abordagem
enunciativa das articulações sintáticas do português, na tentativa de
estabelecer um lugar de pesquisa em semântica da enunciação que
pudesse apresentar uma sustentação sintática para a constituição do
sentido. A principal entrada desse lugar de pesquisa foi o conceito de
lugar sintático.
Com a instalação do Grupo de Estudos na UFMG, as pesquisas
nesse viés foram adquirindo maior consistência, com a produção de
dissertações e teses voltadas para temáticas nesse recorte teórico. No
decorrer do amadurecimento do Grupo, a perspectiva de abordagem
foi adquirindo mais especificidade.
Nesse contexto, passamos a conceber a sintaxe como um campo
cruzado pelas regularidades orgânicas e pelas condições de
funcionamento da organicidade no acontecimento enunciativo. Nesse
sentido, a unidade sentencial se constitui pela relação entre uma
anterioridade de formas que funcionaram regularmente como
sustentação de outras unidades, acionada pelo campo do memorável, e
uma demanda de formação de uma nova unidade, advinda do
acontecimento enunciativo, e posta em cena pela atualidade do dizer.
Os lugares sintáticos se formam em diferentes modos nessa relação.
Acreditamos que a ocupação ou não dos lugares sintáticos obedece a
condições relativas a essa demanda, tendo em vista o acontecimento
enunciativo. Os trabalhos desse Dossiê caminham nessa direção.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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DOSSIÊ – ENUNCIAÇÃO E SINTAXE
O primeiro texto da seção tem como título Acontecimento
enunciativo e formação sintática. Na condição de coordenador do
Grupo de Estudos, apresentamos os principais pilares da perspectiva
teórica adotada nesse campo de pesquisa. No artigo, discutimos a
predicação, abordada na relação com o acontecimento enunciativo,
conceito desenvolvido por Guimarães (2005). A forma linguística é
concebida segundo razões enunciativas, tendo em vista suas condições
de articulação, dado o seu papel na constituição de uma unidade
sentencial, como base material para unidades de enunciação.
A seguir, temos três textos de professoras pesquisadoras de
instituições federais de Minas Gerais: Priscila Brasil Gonçalves
Lacerda, Luciani Dalmaschio e Elke Beatriz Felix Pena. Elas
concluíram mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos da Instituição, sob nossa orientação, e são
membros ativos do Grupo de Estudos da Enunciação, sendo que a
primeira participa do Grupo desde a sua constituição na UFMG, ainda
na condição de bolsista de Iniciação Científica.
O artigo de Priscila Lacerda, intitulado Entre o material e o
simbólico: a conformação da referência no lugar de adjunto
adverbial, explora um dos aspectos desenvolvidos em sua tese de
doutorado, defendida em 2013, e está centrado no estudo de
formações adverbiais consideradas em contraste com formações
nominais. Nessa direção, ela defende a posição segundo a qual o lugar
sintático que abriga essas formações atua na construção do cenário de
referência da sentença, favorecendo a demarcação da perspectiva do
locutor na enunciação, tendo em vista o domínio semântico
memorável do predicador da sentença.
Em Condições de sustentação do fato gramatical “objeto verbal”
– por uma sintaxe de base semântica, Luciani Dalmaschio também
desenvolve aspectos da sua tese de doutorado defendida em 2013. No
texto, ela desenvolve perspectivas enunciativas da não-ocupação do
lugar de “complemento verbal”, configurando-se aquilo que ela
denomina de “silêncio sintático”. O eixo do trabalho está na
perspectiva de que as condições de ocupação desse lugar sintático são
determinadas pelos modos de enunciação específicos e genéricos, os
quais se manifestam em predicações centradas ou dirigidas.
Elke Pena, em Memória, acontecimento e ensino de sintaxe: o
exemplo-colmeia, igualmente desenvolve no artigo parte de sua tese
96
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
de doutorado, defendida em 2015. Ela analisa atividades de sintaxe em
livros didáticos do ensino médio, apontando aspectos que poderiam
proporcionar uma compreensão mais apurada do funcionamento da
língua caso fossem exploradas as condições enunciativas da
constituição dos lugares de sujeito e objeto nos enunciados
apresentados como objeto de análise para o aluno sob a forma de
exercícios. A partir disso, ela demonstra que o uso de enunciados
integrados tematicamente em blocos, designados como exemploscolmeia, seria bastante produtivo para o ensino de sintaxe.
O conjunto de artigos se encerra com a participação de Cármen
Agustini e sua bolsista Flávia Santos da Silva. A Profª Cármen
Agustini concluiu seu doutorado na UNICAMP, em Semântica da
Enunciação, e participou do Grupo, como bolsista de recém-doutor,
nos anos de 2003 e 2004. Atualmente, tem acompanhando os
trabalhos desenvolvidos no Grupo sob a forma de colaboradora. No
texto A frase como unidade de discurso. (N)as teorizações de Émile
Benveniste, as autoras discutem a noção de “frase” e o seu papel na
conversão da língua em discurso, no âmbito dos estudos de
Benveniste relativos à enunciação. Ele defende a tese segundo a qual o
sentido da frase é relacional, favorecendo o jogo das possibilidades de
emprego e ação. No sentido de especificar essa perspectiva
benvenistiana, elas mobilizam os conceitos de segmentação,
distribuição, integração e conexão em suas potencialidades
explanatórias do alçamento das entidades em unidades linguísticas.
Para fechar o Dossiê, temos a resenha produzida por Igor Caixeta
Trindade Guimarães, participante do Grupo na condição de
doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos
da UFMG, onde também desenvolveu o seu mestrado. Ele analisa a
obra Da ordem das palavras nas línguas antigas comparadas às
línguas modernas: questão de gramática geral, de Henri Weil,
produzida na França no século XIX e traduzida e republicada pela
Editora da UNICAMP em 2015. O autor da resenha destaca aspectos
das ideias de Weil sobre a ordem das palavras na sentença, motivada
por fatores relativos à enunciação, constituindo-se dessa maneira
numa posição inovadora para a época. Daí sua importância para os
estudos enunciativos na atualidade.
Pretendemos, com a publicação deste Dossiê, apresentar uma
amostra da potencialidade dos estudos semânticos constituídos na
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
97
DOSSIÊ – ENUNCIAÇÃO E SINTAXE
perspectiva da enunciação no Brasil, esperando que os trabalhos aqui
publicados contribuam para a compreensão da sintaxe da língua
portuguesa a partir de um olhar ainda não explorado no âmbito dos
estudos sintáticos atualmente em nosso País.
Luiz Francisco Dias
98
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E
FORMAÇÃO SINTÁTICA
Luiz Francisco Dias
UFMG/CNPq
Resumo: Neste artigo, discutimos aspectos enunciativos da
predicação sintática. Buscamos demonstrar a importância da
abordagem enunciativa na compreensão das articulações de unidades
lexicais na constituição da sentença. Na nossa perspectiva, essa nova
abordagem das conexões sintáticas permite compreendermos melhor
o papel da significação no funcionamento da língua portuguesa,
especificamente na atualização das formações gramaticais da língua
em discurso.
Abstract: The main goal of this paper is to discuss aspects of syntax
predication. We wish to draw attention to the importance of the
enunciative approach in the comprehension of lexical items
articulation in their relation to sentence formation. From our
perspective, this new procedure of syntax connections allow us to
better understand the role of meaning within the functioning of
Portuguese Brazilian Language, particularly in the updating of
grammatical formation of language in use.
Introdução
O termo sintaxe admite duas concepções, que podem ser
facilmente encontradas, com poucas variações, nas obras de referência
em estudos sintáticos de línguas naturais. Ele é definido, seja como a
disposição de itens lexicais em períodos, sentenças e sintagmas, seja
como o estudo da constituição de sentenças e das relações entre as
suas partes1. A primeira concepção é relativa à organização da língua
e a segunda concerne ao olhar teoricamente constituído sobre a sua
estruturação.
Podemos vislumbrar uma questão perturbadora nesse quadro
definitório. Os olhares teóricos mais apurados da contemporaneidade
apontam conclusões diferentes sobre a maneira como a língua se
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
99
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
“organiza”. A disposição ou arranjo de itens lexicais pode ser parte
dessa organização, mas ela é bem mais complexa.
Da nossa parte, essa complexidade se revela na medida em que
concebemos a língua na sua ordem enunciativa, e não meramente na
organização componencial2. Isso significa que, para a abordagem das
formas linguísticas, tomamos em consideração fatos de linguagem
relativos ao conceito de significação concebido na historicidade.
Nessa direção, consideramos que o sentido não nasce na
factualidade da atualização do dizer, mas da relação que se estabelece
entre uma memória das discursividades que a enunciação evoca e a
atualidade em que se situa a pertinência do enunciado no espaço da
enunciação. Dessa maneira, a enunciação adquire um caráter de
acontecimento histórico.
Para isso, buscamos fundamentos em Bally, Benveniste e
Guimarães, no âmbito do modelo teórico de análise semântica
desenvolvido no Brasil, denominado Semântica da Enunciação ou
Semântica do Acontecimento.
Dado que o nosso foco estará na ordem da língua, e não na
organização, a questão inicial e básica que orientará a perspectiva
enunciativa não é aquela que a maioria dos manuais de sintaxe
abarcam, qual seja, a natureza do item lexical. Vamos tomar o item
lexical como unidade configurada na sua relação com uma classe
gramatical. Nessa condição, os itens lexicais, sem os devidos
refinamentos da lexicologia, são considerados como “palavra” e
“locução”, tendo em vista o seu pertencimento a uma categoria
gramatical3. Evidentemente, a circunscrição precisa desses itens passa
por uma zona de desconforto, no âmbito da qual brotam algumas
perguntas: interjeição é uma classe gramatical? Locuções adjetivas são
verdadeiramente locuções? Há clareza na diferenciação entre palavras
simples, palavras compostas, lexias complexas, expressões
idiomáticas? Essas indagações são legítimas para uma abordagem
semântica da materialidade sintática, mas não serão objeto deste
estudo.
Tendo em vista que o passo inicial do nosso trabalho, neste estágio,
não é a questão da identidade do item lexical, as perguntas básicas
seriam: qual a natureza das relações entre os itens lexicais? Em que se
assenta a agregação entre eles?
100
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
A questão mais relevante a ser levantada é a da constituição da
unidade sintática, isto é, a sustentação de uma agregação de itens
lexicais que se possa definir como regular e reconhecível, com
possibilidade de autonomia de enunciação.
Para a implementação do trabalho, inicialmente apresentamos
algumas abordagens que acreditamos ser relevantes em diferentes
períodos históricos, incluindo-se a contemporaneidade, voltadas para a
concepção de agregação sintática, natureza da predicação e
constituição da unidade sentencial. A seguir, formularemos a
concepção de forma linguística e formação nominal, que serão
fundamentais para a reflexão que fazemos em seguida, voltada para a
concepção de predicação e para um olhar sobre o funcionamento da
agregação sintática e da constituição da unidade sentencial, do ponto
de vista de uma semântica da enunciação.
1. Predicação e agregação sintática: traços diacrônicos
Longe da pretensão de traçar um percurso que configure um fio
histórico do pensamento sobre a constituição da unidade sintática,
mesmo porque não é o escopo deste trabalho, vamos pontuar algumas
posições que consideramos relevantes sobre a predicação no
desenrolar do tempo.
Em obra clássica do século II DC, encontramos uma explicação,
ainda que pouco precisa, relativa ao fundamento da unidade
sentencial. No entender do alexandrino Apolônio Díscolo, os casos
oblíquos “se conectam aos casos retos por meio de um verbo
interposto entre eles” (APOLONIO DISCOLO, Sintaxis, Libro I, 137,
tradução nossa)4. Pelo verbo, a ação do caso reto (nominativo) se
transmite ao oblíquo. Díscolo utiliza dois exemplos: “Teão maltratou
o homem” e “Um cavalo escoiceou o homem”. Em português, o
nominativo corresponde ao grupo nominal que, em linhas gerais,
exerce a função de sujeito, e o caso oblíquo corresponde ao
complemento verbal. A relação com o verbo é diferente nos dois
casos, ressalta Díscolo. O oblíquo está mais afastado do verbo do que
o nominativo, e não se trata de um afastamento “geográfico”. A
questão reside no fato de que a pessoa do oblíquo não é
necessariamente a mesma pessoa do verbo, ao passo que a pessoa do
nominativo necessariamente é a mesma pessoa inscrita na forma
verbal. Dessa forma, destaca APOLONIO DISCOLO (Sintaxis, Libro
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
101
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
II, 29, tradução nossa) em “Eu estimo ele” (Na modalidade formal,
“Eu o estimo”), “Eu” (caso reto) encontra-se em primeira pessoa, da
mesma forma que o verbo. Daí o fenômeno da concordância. Já “ele”
encontra-se em terceira pessoa. Outra observação se destaca na obra: a
construção do oblíquo está submetida ao nominativo, submissão essa
carreada pelo verbo. Isto significa que, da pessoa do nominativo, parte
o ponto de observação através do qual o oblíquo é constituído. Em
outros termos, o ponto de partida da estima, estando no nominativo,
situa necessariamente o oblíquo na condição de pessoa de recepção ou
“alvo” da estima.
Pelo que vimos, os casos indicam relações sintáticas, isto é,
conexão e distribuição dos itens lexicais na sentença, tendo em vista
os papéis de nominativos, oblíquos, e verbos. O importante a se
observar é que essas relações estão fundamentadas em algo que
passaremos a denominar “perspectiva de agregação”. O nominativo é
transmissor de ação (“Teão maltratou o homem”) ou ponto de partida
de uma estima (“Eu estimo ele”). Por sua vez, o oblíquo representa a
perspectiva de algo que podemos em linhas gerais traduzir como
“afetado”, “alvo”, isto é, uma contraparte dessa perspectiva de ponto
de partida, que representa o nominativo. O verbo estaria na posição
(posição de perspectiva, e não posição geográfica) de carrear a força
da proposição advinda do nominativo em direção ao oblíquo. Ao
verbo, portanto, caberia expressar a coesão das perspectivas dos dois
casos.
Vejamos um desenvolvimento dessa concepção de predicação.
Publicada em 1492, a Gramática de la lengua castellana, de Antonio
de Nebrija, apresenta o seguinte preceito: “Entre algumas partes da
oração, há determinada ordem quase natural e em conformidade com a
razão, na qual as coisas que por natureza são primeiras ou mais dignas
devem se antepor às seguintes, menos dignas”5. (ANTONIO DE
NEBRIJA, Gramática, libro 4, cap.2, tradução nossa). Por isso que, no
seu entender, dizemos “o céu e a terra” e “a luz e as trevas”, e não “a
terra e o céu” e “as trevas e a luz”, pois aquela, e não esta, é que seria
a ordem natural das coisas. Da mesma maneira, o nominativo tem
precedência sobre os outros casos. Ele o define como o caso pelo qual
as coisas são nomeadas, ou fazem ou padecem. Os outros casos se
definem pela noção de quem é proprietário de alguma coisa (genitivo),
de quem é beneficiário de alguma coisa (dativo), de quem padece
102
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
(acusativo) ou pelo qual chamamos alguma coisa (vocativo). Como no
espanhol não há morfemas sufixais para amparar os casos, as
preposições marcariam pelo menos dois deles: de, em “casa de Maria”
(genitivo) e a, em “Dei flores a Maria” (dativo). Dado que o
nominativo e o acusativo não são casos que sofrem a orientação por
preposições, o verbo adquire um papel de situar os dois casos nas suas
funções de agregação na sentença. Na medida em que um verbo passa
uma coisa para outra, tem-se por assente a existência de um ente
nomeado. Tendo se constituído esse ponto de nomeação, há a emissão
de algo (nominativo), projetando-o à recepção (acusativo).
Assim, temos aqui as bases da perspectiva de agregação na
constituição da sentença em Nebrija. A tipificação de mobilidade
social, que era apreendida na sua minimalidade por Díscolo, a partir
do olhar para a língua grega, encontra uma expansão em Nebrija, ao
observar a língua castelhana. Essa tipificação é concebida no seu
caráter coesivo, pois as perspectivas da mobilidade humana latentes
nos casos se harmonizam: o ponto de vista do que faz e emite, do
beneficiário do gesto da emissão, do afetado por ele, da recepção do
emitido, da posse e do destinatário. Essa coesão das perspectivas de
mobilidade social sustentam a agregação dos itens lexicais na
constituição da unidade sentencial, tanto em Díscolo quanto em
Nebrija. Este, como vimos, aborda essa mobilidade como algo da
natureza das coisas na relação com o homem.
A predicação, nessa perspectiva de agregação sintática, encontra-se
embutida na rede de mobilidade social. Ela estaria na passagem entre
um ponto e outro da perspectiva: entre o fazer e emitir (do caso
nominativo) e o sofrer ou ser afetado por essa ação (do caso
acusativo). Trata-se de uma predicação acional, constituída a partir
dessa mobilidade coesiva latente nos casos. Atualmente, nós
encontramos resquícios dessa concepção de predicação quando
alguém define sujeito como “o ser que pratica a ação”, extensão
empobrecida do antigo nominativo; o predicado como “ação praticada
pelo sujeito”; e o objeto como “o resultado da ação verbal”, também
uma extensão empobrecida do antigo acusativo. A não ser em
publicações gramaticais periféricas, essas concepções não estão nas
conceituadas gramáticas tradicionais, apesar de boa parte dos falantes
do português brasileiro as apresentarem como resposta quando
solicitada a definir sujeito gramatical, predicado ou objeto verbal.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
Há que se observar, no trecho da gramática de Nebrija que
transcrevemos acima, uma informação emitida sobre o nominativo
que se constitui como elemento importante para uma mudança na
concepção de predicação vários anos depois: o nominativo é caso
“pelo qual as coisas são nomeadas”. Portanto, no caso relativo ao
sujeito da sentença, instala-se uma nomeação.
No século XVII, em que muitas produções intelectuais receberam
características racionalistas, o nome e a nomeação passam a
protagonizar a concepção de predicação no pensamento sobre a
linguagem. No entender de Foucault, o conhecimento nos séculos
XVII e XVIII era “profundamente nominalista.” (FOUCAULT, 1966,
p.409). Com efeito, o conceito de predicação presente em Arnauld e
Nicole (1662), no âmbito do que se cunhou de Gramática de PortRoyal, demonstra uma tônica acentuada no nome como “ponto de
partida” da predicação. Eles defendem a tese segundo a qual a
linguagem é uma prova da racionalidade humana, e a constituição
sintática se confunde com o próprio “mecanismo” do pensamento,
fundado no juízo humano, na relação com o mundo, configurando-se
uma operação do espírito. Na constituição sintática, o objeto do pensar
encontra-se no sujeito da sentença, e o juízo está no predicado.
Os nomes, segundo eles, são “palavras destinadas a significar,
tanto as coisas, como os seus modos de ser”6 (ARNAULD e NICOLE,
1662, p.96, tradução nossa). No entanto, afirmam eles, os homens
“tinham mais necessidade de criar palavras que expressassem a
afirmação, que é a principal forma de nosso pensamento, do que criar
palavras que expressassem objetos de nossos pensamentos.”7
(ARNAULD e NICOLE, 1662, p.101, tradução nossa). As palavras
que expressam a afirmação são os verbos.
A base de toda predicação encontra-se no verbo ser, em terceira
pessoa do singular: é. Portanto, em qualquer predicado, como “Pedro
vive”, haveria segundo Arnauld e Nicole (1662, p.101, tradução
nossa), uma afirmação subjacente do tipo “Pedro é um ser vivente”.
Por isso, ele é chamado de “verbo substantivo”, isto é, um verbo que
participa do significado dos nomes, uma vez que ele expõe aquilo que
o nome “abriga”. Se Pedro abriga o atributo “ser vivente”, a forma
verbal “é” faz o papel de afirmar isso, em outros termos, de dar voz
àquilo que o nome apresenta como latente, ou potencial, ao realizar a
ponte entre “Pedro” e “ser vivente”. Dessa maneira, concluem os
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
autores: “o verbo intrinsecamente marca a relação que nós fazemos no
nosso espírito entre dois termos de uma proposição”8 (ARNAULD e
NICOLE, 1662, p.101, tradução nossa). Isso significa que há um
verbo de ligação, de natureza substantiva, que sustenta toda
predicação, e é essa relação que sustenta, por sua vez, a relação entre
os dois termos básicos da sentença: o sujeito e o predicado. O
fundamento da sintaxe está, pois, no fundamento da própria razão
humana.
Passamos, pois, da predicação acional, fundada numa tipologia de
ações, da gramática antiga, para a predicação racional, fundada na
razão do pensamento, na tradição da gramática de Port-Royal.
No século XIX, mais especificamente no seu final, uma
transformação no modo de conceber a linguagem ganha corpo nos
estudos da linguagem, e com ele, uma nova perspectiva de abordar a
sintaxe e a predicação surge nas gramáticas.
Foucault (1966, p.420) traduziu essa transformação nestes termos:
“A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do
pensamento no fim do século XIX”.
Há uma rarefação do poder da representação na linguagem, e a
gramática, na medida em que se desvincula da filosofia, adquire a
alcunha de “gramática científica”. Os fundamentos dessa
caracterização podem ser encontrados ainda em Foucault:
(...) a análise interior da língua faz face ao primado que o
pensamento clássico atribuía ao verbo ser: este reinava nos
limites da linguagem, ao mesmo tempo porque era o liame
primeiro das palavras e porque detinha o poder fundamental da
afirmação; marcava o limiar da linguagem, indicava sua
especificidade e a vinculava, de um modo que não podia ser
apagado, às formas do pensamento. A análise independente das
estruturas gramaticais, tal como praticada a partir do século
XIX, isola ao contrário a linguagem, trata-a como uma
organização autônoma, rompe seus liames com os juízos, a
atribuição e a afirmação. A passagem ontológica que o verbo
ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a
linguagem, desde logo, adquire um ser próprio. E é esse ser que
detém as leis que o regem. (FOUCAULT, 1966, p.408-409)
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
Uma breve análise de duas gramáticas (uma americana e uma inglesa)
desse período demonstra uma nova perspectiva na abordagem da
predicação, no espírito daquilo que Foucault afirmou.
Em Kimball (1900, p.7, tradução nossa), encontramos uma
formulação para o conceito de sentença que já demonstra essa nova
ordem de abordagem: “Se queremos comunicar nosso pensamento,
nós ordinariamente o expressamos em palavras, e a esta expressão
verbal do pensamento denominamos sentença.”9 Vejamos que não se
trata mais de representar o pensamento, mas de expressá-lo em
linguagem. Nesse sentido, o conceito de comunicação entra em cena.
Trata-se agora de conceber a predicação na ordem do que se
expressa e do ato de comunicar. Nessa ordem, duas expressões se
relacionam, sendo uma incidindo sobre a outra: essa incidência
configura o fundamento da agregação sentencial. Assim, o sujeito é
um assunto sobre o qual incide uma asseveração. Em Sweet, pode-se
ler o seguinte:
Sujeito e predicado podem ser reunidos de diversas maneiras.
No exemplo acima, a conexão entre eles é afirmada (asserida
como um fato) – tal como na sentença a terra é redonda, que é
por isso denominada sentença “afirmativa”; mas a conexão
pode também ser asserida em forma de dúvida, como em
possivelmente a terra é redonda, ou negada, como em a terra
não é plana, e a relação entre sujeito e predicado ser modificada
de várias outras maneiras. (SWEET, 1891, p.17, tradução
nossa)10
Como podemos observar, o que liga o sujeito ao predicado é um
ato de afirmar, duvidar, negar. Dessa maneira, sujeito e predicado são
inteiramente da ordem da linguagem (confirmando a visão de
Foucault apresentada acima): “Assim, numa sentença como a terra é
redonda, nós chamamos terra a palavra-sujeito, redonda a palavrapredicado.” (SWEET, 1891, p.17, tradução nossa)11. Dessa maneira, o
próprio dizer conduz a relação do predicado com aquilo que se
enunciou como sujeito. Diferente daquilo que vimos nas
configurações da predicação anteriores, em que o objeto do dizer é
que configurava a relação do predicado com o sujeito.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
No Brasil, Júlio Ribeiro, também no final do século XIX,
desenvolve na sua gramática uma concepção de predicação no mesmo
viés:
Sentença é uma coordenação de palavras ou mesmo uma só
palavra formando sentido perfeito, ex.: As abelhas fazem mel—
Os cães ladram—Morro.
(...)
Por “formar sentido perfeito” entende-se – dizer alguma cousa a
respeito de outra de modo completo. (RIBEIRO, 1881, p.221)
Vimos que neste período não se concebe mais uma sustentação de
completude fora do próprio dizer. Dessa maneira, estaria no “modo de
dizer” a chave da completude a que se refere Ribeiro. Isso vai resultar
em conceitos de sujeito e predicado situados numa relação
tautológica:
Toda a sentença consta de dous elementos:
1) o que representa a cousa a cujo respeito se falla: chama-se
sujeito.
2) o que representa o que se diz a respeito do sujeito; chama-se
predicado.
(RIBEIRO, 1881, p.222)
Na análise sintática, a identificação de sujeito e predicado depende
de um olhar voltado para a asserção, no sentido de se identificar um
ente pelo que se fala dele. Esse conceito de predicação é o que
permanece até hoje nas gramáticas concebidas como “tradicionais”.
Se, na predicação acional, a perspectiva de agregação dos
constituintes da sentença está situada na mobilidade coesa dos casos, e
se, na perspectiva racional, essa agregação é sustentada naquilo que se
considera o “mecanismo do pensamento”, na gramática científica, a
perspectiva de agregação se concentra naquilo que se expressa, seja
afirmando, interrogando, duvidando, ordenando. Isto é, ela se
concentra nas próprias direções que se toma na comunicação.
Teríamos então uma perspectiva incidente de predicação, tendo em
vista que nesta predicação expressa-se algo que incide, recai sobre
uma base dessa expressão, que é o sujeito.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
No entanto, apesar dessa mudança acentuada de paradigma na
predicação no final do século XIX, o predicado continua sendo
concebido a partir de uma inflexão sobre o sujeito. Passamos da
inflexão sobre uma entidade de emissão (de ações, principalmente),
para a inflexão sobre uma entidade nominada, chegando a uma
inflexão sobre uma entidade afirmada.
Em todas essas concepções, o predicado é captado a partir de um
ponto de partida que se encontra no sujeito, seja porque o sujeito é o
lugar da origem da ação/transmissão, seja porque no sujeito instala-se
um lugar de identificação de um ente pela nomeação, ou seja porque
no lugar do sujeito estaria um ente visado por um ato comunicativo,
ou motivador de uma afirmação. Constituir uma sentença, nos três
casos, seria reagir à apreensão de uma entidade. Predicar é um gesto
essencialmente de significação na relação da linguagem com o mundo,
seja passando pela transmissibilidade, seja passando pela razão, seja
passando pela comunicação.
A constituição dos estudos gramaticais na primeira metade do
século XX recebeu influências desse quadro instalado no final do
século XIX. Ainda buscamos em Foucault uma diretriz para a
compreensão ampla desse quadro. No seu entender, quando a unidade
da gramática geral, de viés racionalista, se dissipou, “a linguagem
apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida,
não podia ser restaurada.” (FOUCAULT, 1966, p.419). Sob a
influência direta das teses de Saussure, publicadas na segunda década
do século XX, encontramos em Bloomfield uma perspectiva de
abordagem da sintaxe que tenta lidar com uma visão de agregação
sintática que se destaca pela desvinculação de uma matriz semântica
na constituição da unidade sentencial.
Em Bloomfield, o conceito de “forma” ganha espaço no estudo
sintático, como uma marca do olhar sobre a língua, como um modo de
ser da linguagem captado por um olhar estruturalista. Uma sentença é
concebida como a forma livre de mais alta instância, porque tem os
sintagmas como categorias intermediárias, constituídas na reunião de
palavras (formas livres mínimas, na concepção de Bloomfield). A
construção sintática se constitui no ordenamento de sintagmas, que
ocupam posições na sentença: “As posições em que as formas
ocorrem são suas funções. Assim, a palavra João e o sintagma o
homem apresentam as funções de ‘ator’, ‘objetivo’, ‘nome predicado’,
108
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
‘meta determinada por preposição’ e assim por diante.”12
(BLOOMFIELD, 1926, p.159, tradução nossa). Dessa maneira, os
significados “ator”, “meta”, etc se associam a classes de forma,
constituindo as categorias da língua.
Há que se observar o seguinte: aquilo que Bloomfield chama de
significado é na verdade significado de função (functional meaning).
Os significados de ator e de alvo, por exemplo, são funções
desempenhadas na sentença. Em “o instrutor atingiu o aluno” e “o
aluno atingiu o instrutor”, temos o sintagma “o instrutor”
apresentando dois significados: o de ator, no primeiro exemplo, e o de
alvo, no segundo.
Na perspectiva apresentada em Bloomfield não há mais a
concepção de um predicado constituído na inflexão sobre um sujeito,
como elemento chave e gesto primordial da constituição da sentença.
O que sustenta a unidade sentencial é um enredo13 mínimo, em que
formas se associam a funções de “personagens” desse enredo: x (ator),
y (beneficiário), z (instrumento). Os itens lexicais, na medida em que
participam desse enredo mínimo, se distribuem em predicações
reccionais14 localizadas, sem um lugar de inflexão que possa produzir
um ponto de partida na estruturação da unidade sentencial. Em
Bloomfield, uma sentença tem unidade porque ela espelha esse enredo
mínimo. Trata-se de um enredo que se constitui por um jogo
posicional na distribuição dos itens lexicais. E sendo assim, as
possibilidades do jogo posicional se efetivam na horizontalidade dos
itens da sentença.
Várias perguntas se colocam frente a uma abordagem como essa, e
uma delas se destaca: qual o limite desse jogo posicional? Que
enredos ele aceitaria (ou não aceitaria) como sustentação de uma
unidade de língua? Quais os limites enunciativos desse enredo? As
questões estão relacionadas com um modo de conceber a significação
extremamente débil. Com ele, Bloomfield projeta uma sustentação da
sentença centrada unicamente no seu espaço interno. Nenhuma
relação com a sua exterioridade é concebida, como também não se
vislumbra nenhuma relação entre a sentença e a língua.
2. Predicação e agregação sintática: traços contemporâneos
Essa debilidade do semântico nos estudos sintáticos, resultando em
rarefação de sustentação da unidade sentencial no funcionamento da
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
língua, progrediu em magnitude, atingindo seu ápice no
posicionamento exacerbado de Chomsky dos anos 1960, quando
defendeu a normalidade sintática da famosa sentença “Ideias verdes
incolores dormem furiosamente15”, cuja possibilidade de enredo
causou arrepios em muitos sintaticistas.
Um dos mais densos e completos manuais de sintaxe publicados na
contemporaneidade (CARNIE; SATO; SIDDIQI, 2014) reunindo
sintaticistas conceituados e temas centrais da abordagem gramatical,
apresenta, em um dos seus textos, o título “A história da sintaxe” (The
history of syntax), de autoria de Peter W. Culicover. O texto se inicia
afirmando que desde milhares de anos se registram pensamentos sobre
a sintaxe e descrições sintáticas. No entanto, afirma ele, “do ponto de
vista da teorização sobre a sintaxe, o que interessa aqui [no contexto
do manual], o ponto inicial crítico é a obra Estruturas sintáticas, de
Chomsky (1957).”16 (CULICOVER, 2014, p.465, tradução nossa). A
dicotomia entre o pensamento sobre a sintaxe e teorização sobre a
sintaxe constitui-se em um corte normativo cujo efeito no manual é o
de situar a história da sintaxe a partir daquilo que o próprio livro
recorta como pertinente para a história do campo em que abriga os
trabalhos.
Do ponto de vista da predicação, nos primeiros anos da
constituição do modelo básico de sintaxe, de princípios gerativistas,
mantém-se a perspectiva aberta com os estudos estruturalistas, no
sentido de destituir da predicação um ponto de partida no estatuto da
unidade sentencial. No entanto, por força das teses de Chomsky
(1968) sobre a relação entre a linguagem e a mente, a apreensão da
constituição sintática adquire uma verticalidade que se afasta em
muito da horizontalidade da abordagem bloomfieldeana. Além disso, a
partir da década de 1980, Chomsky (1981) incorpora ao modelo os
casos abstratos e a estrutura argumental.
A incorporação dos casos nominativo, acusativo e oblíquo ao
modelo veio resolver a instabilidade que o arcabouço sintático
apresentava. A questão chave estava justamente no fato de que boa
parte das línguas, como o português, apresenta sintagmas nominais
(ou DP- Determiner Phrase) que não se diferenciam formalmente
entre eles e podem assumir posições sintáticas distintas:
(1) O diretor cedeu o secretário ao presidente
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
(2) O secretário ao presidente cedeu o diretor
(3) Ao presidente cedeu o secretário o diretor
A distribuição desses DPs nas posições dos diagramas arbóreos
sem uma ancoragem de atribuição denunciava uma etapa intuitiva na
constituição do modelo. A solução veio da transferência de três peçaschave do sistema de casos para o modelo: nominativo (“o diretor”),
acusativo (“o secretário”) e oblíquo (“ao presidente”).
Eles funcionam como balizas na distribuição dos DPs, a partir da
qual se configuram as posições: nominativo atribuído pelo módulo
flexional (IP), sujeito à concordância, acusativo atribuído pelo núcleo
verbal (vº), e o oblíquo atribuído pela preposição. Associada à
atribuição de caso, há a atribuição de papéis temáticos a partir da
grade temática do verbo. No caso em pauta, o verbo “ceder” é um
predicador que agrega três argumentos: agente (“o diretor”), meta (“o
secretário”) e beneficiário (“ao presidente”).
Evidentemente, o arcabouço explicativo não se resume à
participação de casos abstratos e papéis temáticos na distribuição das
construções nominais. Eles constituem determinadas condições para
movimentos de constituintes no contexto da explicação do percurso
gerativo de uma sentença. Esse percurso se completa com a passagem
por um módulo fonológico e por um módulo lógico, sendo que este
último participa do modelo global apenas como um filtro, externo,
portanto, do coração do modelo (módulo sintático), onde é concebida
a constituição das sentenças.
Como se observa, não há lugar para a inflexão de um predicado
sobre a construção nominal em nenhuma das etapas do percurso
gerativo de uma sentença.
Contemporaneamente, encontramos abordagens resistentes a essa
perspectiva, a saber, a perspectiva de que a predicação é uma relação
com argumentos considerados como participantes de uma
atividade/evento/processo denotado pelo verbo. Algumas perspectivas
de caráter funcionalista, que por sinal não se encontram incluídas na
história da sintaxe apresentada no manual de referência a que
aludimos acima, não abrem mão da perspectiva “inflexionista” de
predicação.
Os trabalhos de Halliday, um dos mais conceituados funcionalistas,
aprofundam a abordagem da sintaxe no âmbito da comunicação (já
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
esboçada no final do século XIX) e da interação entre os falantes de
uma língua natural. A formulação a seguir condensa os traços de uma
agenda de pesquisas nessa direção teórica:
Nós nos referimos à língua (i) como texto e como sistema, (ii)
como som, como escrita e como formulação, (iii) como
estrutura – configurações de partes e (iv) como possibilidade –
escolhas entre alternativas. Essas são algumas das diferentes
formas em que uma língua se apresenta quando começamos a
explorar a sua gramática em termos funcionais, isto é, do ponto
de vista de como ela cria e expressa a significação.17
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.19, tradução nossa)
Como podemos observar, trata-se de abordar a gramática no âmbito de
um amplo projeto de análise. O estudo da articulação e agregação
sintáticas, incluindo-se aí a predicação, integra-se nessa agenda de
pesquisa.
Na língua, a categoria sentencial é afetada por três linhas de
significação: o sujeito, o tema e o ator. Cada uma delas faz parte de
uma configuração funcional diferente. Podem estar coincidentes ou
não em um mesmo sintagma nominal, como na pequena narrativa
abaixo:
Eu peguei a primeira bola (a). Eu fui batido pela segunda (b). A
terceira eu parei (c). Pela quarta, eu fui nocauteado (d)18.
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.59, tradução nossa)
Na sentença (a), o sintagma representado pelo pronome “Eu” é o
sujeito, o tema e o ator, ao mesmo tempo. Já em (b), o ator está
representado no sintagma “segunda (bola)”, sendo “eu” tema e sujeito.
Por sua vez, em (c), o tema é a “terceira (bola)”, sendo “eu” o sujeito e
o ator. Por fim, em (d), “pela quarta (bola)” representa tema e ator,
sendo “eu” o sujeito.
Nesta gramática, cada uma das três linhas compõem vertentes
separadas da significação geral da sentença, e funcionam na estrutura
sentencial como uma mensagem (o tema), uma representação (o ator)
e uma interação (o sujeito). Por sua vez, cada uma dessas
representações se liga a uma das três grandes metafunções da
112
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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linguagem: textual (sentença como mensagem), experiencial (sentença
como representação) e interpessoal (sentença como evento interativo).
(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.61).
Especificamente, a agregação sintática básica, responsável pela
unidade gramatical da sentença, é concebida a partir da visão de
sentença como modo. Sendo a sentença uma unidade interacional,
considerá-la como modo gramatical significa observá-la do ponto de
vista da maneira como ela se apresenta numa relação de interação. Ela
pode se apresentar no modo gramaticalmente considerado indicativo,
sob a forma de afirmação, interrogação; no modo subjuntivo, como
suposição, no modo imperativo, como ordem. O modo consiste de
duas partes: o operador finito e o sujeito. (HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004, p.111).
O operador finito (que é parte do grupo verbal) compreende, na
língua portuguesa, o aparato de sufixos morfológicos cuja função é de
fazer finita a proposição. Quando o verbo sai do infinitivo e é
conjugado, ele adquire pontos de referência no tempo da enunciação,
isto é, no contexto do evento de fala. Ele se acomoda à dêixis
interpessoal, “situando o evento interativo no espaço semântico que é
aberto entre o falante e o ouvinte.”19 (HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004, p.116, tradução nossa).
Tendo em vista o espaço semântico aberto entre os interlocutores,
reais ou virtuais, o sujeito (um grupo nominal) funciona na estrutura
da sentença como uma base dessa interação entre interlocutores. Dada
a sentença (1), analisada acima, qual seja, “o diretor cedeu o secretário
ao presidente”, e considerada como “modo”20, o finito (tempo e
número do verbo “ceder”) especifica a referência de afirmação de algo
que ocorreu no passado. Frente a isso, o sujeito “o diretor” especifica
a entidade pela qual os interlocutores podem discutir a validade ou
não dessa referência projetada pelo finito. Por isso, o sujeito é
considerado uma base interacional. Na ocorrência em pauta, a
validade da cessão do secretário ao presidente recai sobre o diretor,
sendo este, pois, o sujeito. Ele seria o responsável pelo funcionamento
da sentença como um evento interativo: “Ele [sujeito] carrega a
responsabilidade modal; isto é, a responsabilidade pela validade do
que está sendo predicado (afirmado, questionado, ordenado ou
oferecido) na sentença.”21 (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004,
p.119, tradução nossa)
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
A predicação é concebida como uma relação interpessoal e não
experiencial, isto é, não se trata de considerar o sujeito como prova da
verdade ou da falsidade da sentença do ponto de vista de uma relação
referencial, mas da validade do predicado para os interlocutores no
espaço semântico da interlocução.
Além do modo (sujeito e finito), que formam a agregação básica da
sentença, há ainda o predicador (verbo sem os sufixos flexionais), o
complemento e o adjunto, configurando a completude sentencial.
Por essa perspectiva, teríamos uma predicação modalizadora. Em
outros termos, a agregação básica de uma sentença se dá na medida
em que o locutor apresenta ao outro aquilo que diz a partir de um
modo de interlocução.
3. A unidade sentencial e a questão da significação
Dentre as possibilidades de se estabelecer uma linha de diferença
entre as perspectivas de predicação que se constituíram até o final do
século XIX e essas que foram concebidas a partir da segunda metade
do século XX, diríamos que a questão da representação foi um
elemento decisivo nesse corte, conforme apontou Foucault.
Até o final do século XIX, constituir uma sentença seria se situar
frente à apreensão de uma entidade. Predicar era um gesto
essencialmente de significação na relação da linguagem com o mundo,
seja passando pela transmissibilidade, a partir de uma entidade de
emissão, seja passando pela razão, a partir de uma entidade de
nomeação, seja passando pela comunicação, a partir de uma entidade
de afirmação.
Sem a sustentação da representação do real, Bloomfield intenta
projetar uma abordagem sintática com forte sustentação na ordem da
estruturação formal, expondo-se, porém, à debilidade do suporte
semântico que pudesse explicar a agregação sintática.
Como pensar a significação fora dos eixos representacionais,
centrados nos paradigmas da ação, da razão e da asserção? A busca
por algo propriamente da natureza da linguagem passou pela noção de
“evento”, que é concebida diferentemente nos paradigmas formais e
funcionais, tornando-se um modo de lidar com a exterioridade da
linguagem sem o suporte direto da representação.
Essa noção de evento apresenta-se como um ponto determinante na
diferença de abordagem da predicação nos dois modelos de análise
114
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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sintática na contemporaneidade aqui apresentados. O modelo formal
privilegia traços e propriedades, com vistas à distribuição de posições
estruturais. Nesse contexto, o evento é concebido internamente ao
aparato da estruturação, a partir de traços categorizados do
conhecimento que o verbo agrega em si, proporcionando os
argumentos. As práticas comunicativas são reduzidas a uma
condensação controlável no aparato de descrição.
O modelo formal não leva em conta o uso, e pouco contribui para
a compreensão da relação entre linguagem e exterioridade, tendo em
vista o compromisso de proporcionar uma explicação para o
funcionamento da linguagem na mente. A preocupação com o
complexo aparato da verticalidade do modelo oblitera uma discussão
mais detida sobre a natureza das construções nominais e da
predicação, que fica reduzida à relação entre o verbo e um quadro
tipológico de argumentos, sustentado em um mapeamento cognitivo
da experiência social. O caráter de predicação está centrado
unicamente no papel distribuidor do verbo, resultando na realidade em
um esmaecimento do seu conceito.
Por outro lado, o modelo sistêmico-funcional de Halliday concebe
o evento na relação dos protagonistas do uso da língua e trabalha com
uma hipótese de compreensão da relação entre linguagem e sociedade,
fundamentada na interação dos usuários em perspectiva de
comunicação.
Trata-se de outra natureza de verticalidade: o uso. A forma é
concebida, em perspectiva pragmática, na sua condição de adequação
e otimização discursiva. O funcionamento de práticas linguísticas
explica ordenações e reordenações sintáticas. A exterioridade é a
prática da linguagem, o jogo da interação entre falante e ouvinte.
O conjunto das posições que apresentamos, mesmo que limitado a
algumas saliências na história da sintaxe, revela que as abordagens são
recortadas por diferentes modos de conceber a significação, ou mesmo
de afastá-la, nos estudos sintáticos. Vimos que a significação foi
identificada com a natureza das ações humanas, o pensamento
racional, asserção do ser, propriedades denotacionais e modos de
interação.
Um dos cernes da diversidade de abordagens que vimos acima está
na natureza das construções nominais. O ponto de partida da nossa
empreitada frente a esse quadro é uma visão enunciativa da construção
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
nominal, cujo conceito foi apontado na revisão das abordagens acima
como palavra-sujeito, sintagma nominal, DP, grupo nominal ou
simplesmente “nome”.
Essa diversidade é reveladora de um lugar de perguntas latentes.
Acreditamos que ainda há espaço para perguntas como: o que são a
predicação, o sujeito, o predicado? E ainda, qual a natureza da
agregação sintática capaz de produzir uma unidade sentencial?
Não vamos apresentar, neste estudo, um conceito acabado para
cada um desses objetos sintáticos. Pretendemos apresentar um recorte
de reflexão sobre a língua e a significação no qual esses objetos
podem receber um novo tratamento teórico.
Com a problematização das construções nominais, estaremos
definindo um olhar sobre a significação e o problema da relação entre
linguagem e exterioridade do ponto de vista de uma semântica da
enunciação.
4. Enunciação e formação nominal
A base das construções nominais está relacionada a uma
“inquietude” constitutiva do dizer, ou “inquietude enunciativa”.
Vamos buscar em Bally (1965), uma reflexão que apresenta os traços
iniciais dessa noção, e ao mesmo tempo indica os vieses da direção
que estamos tomando. Os fundamentos da linguagem, que, no
entender de Bally, seriam os próprios fundamentos da comunicação,
encontram-se no conceito de “reação”. Quando enunciamos um
pensamento, estamos reagindo a uma representação, sob a forma de
uma constatação, de uma apreciação ou de um desejo. Observemos
que essa perspectiva se encontra muito distante da visão ainda
corrente em parte dos estudos semânticos, segundo a qual enunciar é
formular propriedades da realidade. Além disso, o conceito de
pensamento de Bally não é aquele do século XVII. Trata-se aqui de
algo como “um vir a ser enunciado”, e não um desdobramento da
racionalidade humana. Tomemos as palavras de Bally, no sentido de
melhor compreender a sua perspectiva:
[pensar] é então julgar que algo é ou não é; ou avaliar que algo
é desejável ou indesejável; ou enfim desejar que algo seja ou
não seja. Nós acreditamos ou não acreditamos que esteja
chovendo; duvidamos que esteja chovendo, nos alegramos ou
116
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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nos afligimos com a chuva; ou esperamos que chova ou não
chova22. (BALLY, 1965, p.36, tradução nossa)
O pensar, em condição de enunciação, não se reduz a uma
representação, abstraída de um sujeito que pensa, no entender de
Bally.
Mesmo que tomemos a enunciação de um químico conceituando
“chuva”, estaremos frente a um enunciado que julga o que é a chuva
(e por essa via o que não é chuva), com base em um conjunto de
pressupostos da ciência. Diríamos que a definição de chuva está
ancorada em um referencial do estado de conhecimento que se toma
por verdade no tempo da enunciação. Enuncia-se a partir de uma
exterioridade, de ordem histórica, ancorada numa temporalidade
inexorável à enunciação. Essa temporalidade é fecunda em enunciados
outros e é em referência a eles (daí o conceito de referencial, que
vamos desenvolver adiante) que se constitui significação, produzindo
como resultado a possibilidade da comunicação. A definição de chuva
enunciada pelo químico, no nosso exemplo, contém uma reação a uma
demanda de significação, a que a representação de chuva se aplica.
“Chuva” não se conecta com o mundo de per si. Há uma demanda de
significação que instiga o “fazer sentido”, produzir consistência, no
campo científico, permeado por métodos pelos quais a atualidade
científica confere consistência aos enunciados do seu domínio
discursivo.
A pertinência do enunciado em um espaço de enunciação,
pertinência concebida na relação entre recortes de memória de
significação e a demanda de um presente pelos referenciais,
movimenta as formações articulatórias que constituem a sintaxe do
enunciado, a sua constituição formal. As formações sintáticas
sustentam materialmente a memória da língua e ao mesmo tempo a
memória das significações dos seus termos, isto é, das unidades que
integram essas formações.
Para que possamos fazer refletir esse jogo de pertinências,
constitutivo de uma inquietude enunciativa, na análise das formações
articulatórias de unidades sintáticas, precisamos produzir um
deslocamento no conceito corrente de forma linguística e de sua
captação horizontal, o sintagma.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
117
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
O conceito de forma linguística que se estabelece nos estudos
linguísticos a partir do século XX é definido seja por oposição a
significado, seja por oposição a função. Em ambos os casos, forma é
algo apreendido por traços fonológicos e morfológicos. Nessa direção,
as formas linguísticas podem ser tomadas por órgãos estruturais da
língua, como itens lexicais e morfemas.
O conceito de sintagma decorre dessa noção de forma e privilegia a
efetividade do linguístico captado por traços em presença, os quais se
consubstanciam em relações de “sucessividade”, ou horizontalidade.
Dessa maneira, um sintagma nominal, por exemplo, é um extrato de
efetivação da língua, concebido como totalidade de um ou mais
elementos, e que apresenta o comportamento estrutural do nome.
Quando se estuda o sintagma nominal, o ponto de partida é
componencial, tendo em vista os determinadores que se situam à
esquerda e os que se situam à direita do nome.
O olhar que uma semântica da enunciação produz sobre a língua
resulta em diferenças significativas no conceito de forma linguística e
consequentemente em uma perspectiva diferente de abordar as
unidades articulatórias, principalmente as construções nominais.
Um dos pontos de partida da nossa abordagem, no que se refere
aos conceitos de língua e de regularidade linguística, advém de
Guimarães (1996). Na sua visão, a língua é um “sistema de
regularidades”. Por ser sistema, entenda-se que há uma ordem de
relações que sustenta as unidades que por ela são constituídas. Por sua
vez, a concepção de regularidade, diferentemente da concepção de
regra, é edificada pela tese segundo a qual aquilo que regula essa
ordem de relações não advém de propriedades do corpo de elementos
do sistema, mas são circunscrições de modos de enunciar constituídos
na memória do dizer. As relações que se constituem entre discursos
movimentam o funcionamento da língua pela enunciação, moldando
esse sistema de regularidades. Nos termos de Guimarães (1996, p.27),
“A língua aparece, assim, como exposta ao inter-discurso, isto é, a
língua está exposta a uma memória dizível”. Nessa direção, a forma
linguística é “uma latência à espera do acontecimento enunciativo,
onde o presente e o interdiscurso a fazem significar.” (GUIMARÃES,
1996, p.32)
Ancorados nesse ponto de vista, vamos formular uma hipótese
relativa à natureza e funcionamento da forma linguística na
118
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
constituição desse sistema de regularidades. Para isso, vamos tomar a
ideia da inquietude enunciativa como parte dessa memória do dizível,
na medida em que as discursividades são relativas às pertinências
sociais do dizer, que são heterogêneas e marcadas pela inquietação
própria do dissenso constitutivo nas relações sociais.
Uma forma linguística constitui-se como tal na conformação das
palavras23 à regularidade sintática, tendo em vista o acionamento
enunciativo da língua. Essa conformação ocorre na medida em que as
palavras contraem modos de articulação em formações sintáticas. A
palavra “casa”, por exemplo, se torna forma linguística ao contrair
pertinência em uma formação nominal; por sua vez, “escorregou”
assume essa condição ao sair do estado de infinitivo e se tornar
pertinente em determinada predicação; e “de” se constitui em forma
linguística, de modo mais determinativo, quando assume papel
direcionador nos espaços sintáticos. Em suma, a forma linguística é
relativa aos lugares de entrada do léxico na constituição da unidade
sentencial.
Ao se tornarem formas linguísticas, as palavras continuam sendo
objetos de significação, mas sujeitas às determinações internas da
formação nominal e às conformações da predicação de ordem
sentencial. Essa é uma especificidade importante da visão enunciativa
da constituição sintática: ser forma linguística é significar em relação
de pertinência com os espaços de enunciação e com os espaços
sintáticos; especificamente, com os espaços de enunciação pelos
referenciais, com os espaços sintáticos, pelas especificidades da
conformação lexical.
Antes de esboçar a visão enunciativa da constituição da sentença
de uma maneira global, com enfoque no sujeito e na predicação, fazse necessário conceituarmos formação sintática, especificamente
formação nominal. Ele se constitui como decorrência dessa concepção
de forma linguística que acabamos de apresentar.
Em Dias (2013a; 2013b; 2013c; 2015a) formulamos os traços
básicos da concepção de formação nominal, a qual vimos
desenvolvendo nos últimos quatro anos. De início, afirmamos que ele
apresenta uma natureza condensadora, não de propriedades dos
objetos da exterioridade, mas de referenciais. O que é um referencial?
Com inspiração em Foucault (1969), tomamos o termo
referencial24 para designar o domínio no qual as nomeações,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
designações ou descrições se ancoram para constituir sentido e
pertinência em um espaço de enunciação. Tomemos a palavra
“chuva”, mencionada acima. Como possibilidades de referencial,
teríamos, por exemplo: a constituição físico-química dos líquidos, no
meio científico; a promoção da fertilização do solo, nas práticas de
agricultura não irrigada; a proveniência dos recursos para geração de
energia, em políticas públicas; a manifestação de uma dádiva divina
na manutenção da vida, em afirmações de fé religiosa; a origem do
“tempo ruim” em dia de festa, em reclamações por transtornos. Tratase de domínios que não se excluem na relação uns com os outros, mas
que podem ser evocados separadamente na enunciação. Esses
referenciais, na nossa concepção, estão estreitamente associados com
a perspectiva de “reação”, proposta por Bally.
O referencial seria, assim, o campo de emergência dos objetos do
dizer, campo em que se dá a “diferenciação dos indivíduos ou dos
objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo
pelo próprio enunciado.” (FOUCAULT, 1969, p.104).
A concepção de formação nominal (FN) está comprometida,
portanto, com uma abordagem vertical das construções nominais,
tendo em vista que privilegia o processo de formação dos nomes, isto
é, o jogo de referenciais que sustentam um nome enquanto unidade de
designação. Privilegia igualmente as determinações que ele recebe nas
articulações contraídas no âmbito do grupo nominal, nas quais se
expõem os pontos de pertinência do dizer, na relação entre a memória
e a atualidade do acontecimento enunciativo.
Quando uma formação nominal é constituída apenas por um
substantivo, temos uma FN de primeira ordem. Nas FNs de segunda
ordem, os substantivos recebem determinações internas. Há também
as FNs extensivas, de terceira ordem, formadas por sentenças que
ocupam o mesmo lugar de um nome nas articulações sintáticas. Por
fim, de quarta ordem, temos as FNs pronominais.
Em suma, quando um item lexical se torna integrante de uma
sentença, ele passa a se constituir em uma forma linguística
qualificada na enunciação dessa sentença. Em outros termos, esse item
lexical contrai compromissos com a regularidade da língua. Os nomes
se constituem em formas linguísticas na medida em que contraem
relações de determinação localizadas, as formações nominais, e
relações de determinação dos lugares de regularidade, como sujeito e
120
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
objeto verbal. Esses lugares de regularidade, por sua vez, se
relacionam com as formações nominais, com ou sem ocupação
orgânica do lugar, como veremos adiante.
5. Das formações nominais à predicação
Como vimos, a língua é mobilizada por um acontecimento
enunciativo25. Essa mobilização se desdobra em conformação lexical.
Por força do sistema de regularidades, as sentenças apresentam
lugares de recepção das unidades lexicalmente conformadas. Como
vimos acima, as formações nominais “conformam” palavras com
valores nominais, e podem estar associadas a três tipos de lugares:
lugar sujeito, lugar objeto e lugares direcionais26. O foco principal do
presente estudo reside no lugar sujeito e na predicação associada a ele;
secundariamente, o lugar objeto receberá alguma atenção, pela
necessidade de circunscrever o seu papel na predicação, em
comparação com o sujeito.
Na nossa abordagem, a predicação se assenta no lugar sujeito.
Como vimos, essa é uma posição historicamente consagrada. Ela foi
rompida pelas abordagens formalistas majoritárias no século XX, mas
se manteve, pelo menos em parte, no âmbito das abordagens
funcionalistas. Vimos também que a nossa visão das construções
nominais produz as condições para uma diferença naquele quadro.
Tendo em vista que os nomeáveis participam na conformação em FN
como agregador de perspectivas, potencializador de referenciais, e
convergente de reações, a predicação incide no lugar sujeito
colocando em pauta essas perspectivas, referenciais ou reações das
formações nominais ali constituídas. Em outros termos, a predicação
traz à luz e ao presente da enunciação parte daquele potencial de
inquietude enunciativa que aos nomes se associaram, tendo em vista
os espaços do dissenso que os afetaram em outras predicações nas
relações sociais.
Sendo assim, o lugar sujeito denuncia a participação da FN em
outras predicações. Por isso, ele pode ser identificado por um recurso
de interposição com o verbo de uma partícula que as gramáticas
geralmente não conseguem definir: um “que”, oscilando entre
expletivo, realce e pronome relativo. Vejamos as ocorrências a seguir:
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
121
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
(1) O diretor cedeu o secretário ao presidente
(2) O secretário ao presidente cedeu o diretor
(3) Ao presidente cedeu o secretário o diretor
(4) Gatos comem ratos
(5) Nós os declaramos livres
(6) Esta rua foi calçada pelo prefeito x
(7) Toca o telefone
(8) A panela fervendo, entra o camarão
[O diretor QUE cedeu...]
[Gatos QUE comem...]
[Nós QUE declaramos...]
[Esta rua QUE foi calçada...]
[O telefone QUE toca...]
[A panela QUE ferve, o
camarão QUE entra]
Obviamente, não pretendemos produzir aqui um artifício para
encontrar o sujeito, da forma como alguns manuais o fazem, mesmo
porque a aplicação do QUE resulta em diferenças no campo de
enunciação em que esses enunciados poderiam se inserir. Por
exemplo, em (8), a primeira sentença é uma instrução; a segunda, que
resulta da inserção do QUE, não poderia ser assim considerada.
O que pretendemos demonstrar é que a utilização desse recurso
exalta o caráter convergente do lugar sujeito, para o qual a predicação
recai. A forma QUE produz uma orientação de incidência para a FN
que a introduz.
Em (8), a predicação exercita uma das perspectivas da nossa
sociedade, a que concebe o “camarão” da posição de algo para ser
cozido, como componente de uma receita culinária. Evidentemente,
não é uma perspectiva universal, mas histórica, que emerge de uma
das práticas de um extrato social. A relação entre camarão e aquilo a
que ele se refere é dependente do referencial que essa predicação
exercita na relação com a FN “camarão”, qual seja, o espaço da
culinária. Outra seria a referência nas predicações presentes nas
sentenças a seguir:
(9) O camarão (que) se alimenta de plantas em decomposição
(10) O camarão (que) é um artrópode
(11) O camarão (que) perdeu preço no verão
A predicação incide sobre o sujeito constituído pela FN tendo em
conta os referenciais: vida aquática (9), morfologia (10), mercado
(11).
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
A predicação também é um lugar de experimentação, de inovação
de perspectiva, ao incidir nesse espaço de inquietude enunciativa (FN
“camarão”), como em
(12) O camarão (que) me fitou com cara de repreensão.
Nesse caso, tem-se ancoragem num referencial de modo de olhar que
normalmente não se aplica a animais desse tipo.
Em suma, o “que” realça uma anterioridade necessária do sujeito,
para que a predicação adquira lugar no espaço sintático. Em Dias
(2009, p.19), abordamos o conceito de anterioridade de predicação,
distinguindo-o de anterioridade processual, anterioridade actorial e
anterioridade de orientação.
Ressaltamos a necessidade de fazer uma distinção entre esse índice
de anterioridade e o fenômeno gramatical da topicalização. Para isso,
retomemos (4) e acrescentemos variações desse fenômeno:
(4) Gatos (que) comem ratos
(4a) Ratos (que) gatos comem
Tendo em vista o papel do QUE como um índice de inflexão da
predicação, ele se interpõe exatamente entre a FN que ocupa o lugar
sujeito e o verbo, como em (4), não evidenciando marca de
deslocamento. Acreditamos que ele demonstra a preparação do lugar
do sujeito para a predicação. Em (4a), por sua vez, o QUE é parte da
topicalização, e a relação que ele estabelece não é com o verbo, mas
com uma parte da predicação (“gatos comem”), evidenciando o
deslocamento da FN “ratos”. Raciocínio semelhante é válido para
(4b) O que (que) gatos comem?
Nesse caso, o QUE se constitui na integração da estrutura
topicalizada, própria da interrogação, e não na preparação para o
assentamento do verbo na direção do lugar sujeito, com em (4).
Nesse sentido, observemos a sentença a seguir:
(13) O secretário (que) cedeu o diretor ao presidente
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
123
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
Tendemos aqui a interpretar a FN “secretário” como ocupante do
lugar sujeito, pois aqui recai a base de inflexão predicativa, a qual tem
a partícula QUE como uma marca possível de direcionamento do
verbo.
Há casos em que o lugar sujeito abriga uma formação nominal de
caráter prospectivo, como na primeira sentença de (14):
(14) Aquele que deseja ser arcanjo deve sonhar com anjo.
Nesse caso, a predicação toma o “aquele” como um perfil de todos os
que projetam virtualmente galgar uma posição superior em
determinada escala. O referencial considerado na predicação direciona
para valores sociais de paciência, precaução, gradualismo. Em Dias
(2009, p.23-24) discutimos aspectos gerais do sujeito de caráter
prospectivo.
Vimos que o lugar sujeito propicia uma exposição, uma
tematização do potencial de referenciais com que um nomeável se
identificou e pode se identificar enunciativamente. O lugar sujeito se
constitui, portanto, como uma demanda de incidência de predicação.
Por isso, ele é facilmente afetado por um efeito de exterioridade com o
“que”. Essa partícula produz um efeito de “entrada” da FN na
sentença.
Em (15) a (17) esse efeito de entrada característico do lugar sujeito
pode também ser concebido, mesmo que algumas FN sejam pouco
informativas quanto ao potencial de agregação de perspectivas.
(15) O que (que) não perturbou Pedro ontem, hein?
(16) Nada (que) me faz sentir melhor.
(17) Quem (que) é quem na administração desta empresa?27
Nas três sentenças, temos ocupações de lugar sujeito com “o que”,
“nada” e “quem”, respectivamente. Trata-se de FNs de ordem
pronominal que operam com projeções de identidade concebidas fora
do plano enunciativo da sentença (DIAS, 2009, p.23). Em (15), o
lugar sujeito abriga um pronome que remete a eventos em outro plano
enunciativo; em (16), remetem a possíveis ocorrências, no plano de
uma projeção; em (17), a identidade é projetada para o plano
enunciativo da interlocução. Nos três casos, a predicação incide sobre
124
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
o lugar sujeito no sentido de colocar em pauta as reações frente a essas
identidades projetadas: percepções, sentimentos e dúvidas.
Por outro lado, o lugar objeto apresenta um caráter efetivamente
contrário ao que acabamos de apontar. Ele se constitui não por uma
incidência de predicação, mas por uma apreensão própria dela. Os
nomeáveis que se conformam na FN associada ao lugar objeto não
estão “sujeitos” à incidência da predicação, no sentido de colocar em
causa as perspectivas e reações com que se constituem os referenciais.
Nesse caso, a FN é tomada como fechada, no sentido de ser
apreendida como um “objeto” cujos contornos se definem
internamente na FN ou na própria relação com a semântica do verbo.
Pelas ocorrências (18) a (23) a seguir, podemos observar esse
caráter balizador do objeto.
(18) Pedro comprou mangas.
(19) Pedro comprou um sei lá o que, cor de jasmim.
(20) Pedro comprou não sei o quê.
(21) “Enfim, adorei sua imaginação e originalidade! Já
ganhou (não sei o que, mas já...).”28
(22) ─Pedro comprou mangas.
─Comprou nada!
(23) Pedro não comprou nada
Nessas sentenças, encontramos algumas variações de ocupação do
lugar objeto em destaque. Trata-se de FNs constituídas sob o efeito da
predicação. Nas sentenças (18) e (20), percebemos uma rarefação de
ancoragem referencial interna na FN. Em (19), “cor de jasmim” ainda
fornece traços dessa ancoragem, o que não ocorre em (20). A relação
com o verbo comprar, no entanto, produz os traços minimamente
necessários para uma ancoragem referencial no lugar objeto: trata-se
de algo que possa resultar de uma compra. A rarefação de definitude
do lugar objeto não tem repercussão na predicação, que é efetiva e
afirmativa, pela conformação verbal: “comprou”. Em (21), na segunda
sentença, temos uma ocorrência que acreditamos seja bastante
elucidativa nessa direção. Em “Já ganhou (não sei o que, mas já...)”,
indica-se na predicação uma tônica enunciativa no verbo como
suficiência para a projeção de um lugar objeto, mesmo que não se
tenha as condições de definição de referência, mas a ancoragem
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
referencial já está garantida, pelo “mas já”, resultando em suficiência
enunciativa.
Portanto, o lugar objeto é afetado por uma suficiência enunciativa
na relação com o verbo, uma vez que as FNs nominais que ali se
constituem
desenvolvem
uma
relação
com
a
anterioridade/exterioridade da linguagem diferente daquela no lugar
sujeito. Em razão disso, o lugar objeto constituído pelo pronome
“nada” não resulta em efetiva nulidade, do ponto de vista do
referencial, embora se possa conceber um conjunto vazio em termos
de referentes, no lugar objeto. Sendo assim, no diálogo, em (22), o
“nada” na sentença do interlocutor se conforma sintaticamente como
negação, no âmbito da predicação. O foco da sentença não está na
ausência do que se afirmou Pedro ter comprado, mas na negação da
compra. Algo semelhante ocorre em (23): embora o “nada” se
configure como conformação de FN de caráter pronominal, ocupando
o lugar objeto, ele se mostra um coadjuvante da negação que se aplica
ao verbo. Portanto, o verbo comprar estabelece os parâmetros para
que a predicação determine referenciais para o lugar objeto,
sustentando um lugar que se abre para o alcance desses referenciais.
Vejamos as ocorrências a seguir, no sentido de solidificar essa
visão.
(24) Carlos fez isso e aquilo e ninguém ficou sabendo.
(25) Pedro é do tipo que bate e depois dá flores.
(26)
Imagem 1: Propaganda do CVV
Em (24), o verbo fazer estabelece o lugar para que “isso e aquilo”,
Fi FNs ocupantes do lugar objeto, seja balizador para referenciais
como
de atos socialmente reprováveis. Em (25), a FN “flores” é meramente
um índice para um lugar de referencial de caráter compensatório.
Sendo assim, não importa o referente de “flores”, mas o círculo
referencial que reúne algo como “beijos”, “abraços”, “carinho”,
“presentes”, “flores”, que se oferece como compensação por atitude
126
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
ferina contra alguém. Isso demonstra que um lugar sintático não é nem
entidade orgânica, gráfica ou fonologicamente configurada, e nem a
representação de um referente no mundo, e sim um lugar qualificado
na enunciação do predicado. Já em (26), não temos a ocupação do
lugar objeto promovido pela predicação, mas a projeção do verbo
apontar, tendo como baliza índices que a predicação reúne no plano
de enunciação, como a figura de cor vermelha à esquerda, a entidade
social que promove a propaganda (CVV-Centro de Valorização da
Vida). Eles trazem o objeto de memória “arma” como elemento de
permuta para o objeto do presente “telefone”, como referenciais
básicos da identidade enunciativa do lugar objeto. Em Dalmaschio
(2015), encontramos uma análise da sentença dessa propaganda nessa
direção teórica. Uma vez que não trabalhamos com “sintagma
nominal”, o lugar sintático não é ocupado organicamente com
sintagma. No entanto, diríamos que uma FN, na condição de
“formação”, encontra-se nesse lugar qualificado no seu caráter
virtual29, não sendo possível, dessa forma, abordar o lugar como
espaço vazio.
A especificidade do lugar objeto, na condição de lugar constituído
internamente à predicação, não permite a ocorrência de FN constituída
unicamente por “aquele que”, de natureza prospectiva.
(27) Aquele que ampara o sofredor...
(28) Quem ampara aquele que... (?)
(29) Quem ampara aquele que sofre...
Como vimos, o “aquele que”, para que se configure como
prospecção, isto é, como um perfil de referência, necessita da injunção
de uma predicação para que se constitua tal perfil. Em (27), “aquele
que” está no lugar sujeito, e a predicação constitui o perfil para que
possamos, em outros planos de enunciação, identificar a referência.
Em (28), estando o lugar objeto constituído internamente à
predicação, não há uma injunção que a ele se agregue para delinear o
perfil, como há em (29), mas, nesse caso, o “aquele que” já é o sujeito
na sentença “aquele que sofre”. A sentença adquire conformação
como FN extensiva e produz os contornos de identidade que
propiciam uma suficiência enunciativa para a predicação.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
127
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
Há outra diferença importante entre os lugares objeto e sujeito, e
está relacionada ao fato de que o lugar objeto é afetado pela negação.
Na sentença “Pedro não comprou mangas”, a negação da ação de
comprar afeta o lugar objeto ocupado por “mangas”, na condição de
participante da predicação. Por sua vez, o compromisso com a
constituição de uma base para a predicação impede, por natureza, que
o lugar sujeito seja afetado por uma negação, antes de se constituir a
predicação. Esta pode incidir sobre o sujeito negando-o, como uma
das frases consagradas na história dos estudos da significação:
“Aquele que morreu na cruz para nos salvar não existiu”. Nesse caso,
a predicação em caráter negativo incide sobre a discursividade que
cria a perspectiva da existência de Jesus, considerando-a falsa.
A fim de arrematar a diferença entre os dois lugares sintáticos em
pauta, apresentaremos alguns dados estatísticos relativos à
lexicalização dos dois lugares, elaborados por Matta (2005, p.284),
com objetivos diferentes dos nossos, mas que se mostram elucidativos
para os nossos propósitos neste estudo. Os dados se referem a
conversações espontâneas entre interlocutores de nível universitário
em Belo Horizonte, totalizando 1h50min de conversas transcritas.
Vejamos o quadro a seguir, com os dados:
SUJEITO
OBJETO DIRETO
sem lexicalização
49,3%
sem lexicalização
45,8%
pronome
37,9%
pronome
7,7%
SN lexical
11,8%
SN lexical
37,3%
Tabela: ocupação e não ocupação de lugares sintáticos básicos
O nosso interesse reside prioritariamente na diferença entre as
ocupações com pronome nos lugares sujeito e objeto, tendo em vista
as formas de pertinência diferentes em relação à exterioridade da
linguagem e à predicação.
Nessa direção, o lugar sujeito é propício para a ocupação com
pronome, tendo em vista ser afetado por domínios referenciais
constituídos em espaços de enunciação anteriores, os quais recebem a
ancoragem justamente por pronomes (o teste com a partícula “que”
128
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
nos forneceu essa indicação). Por sua vez, o lugar objeto favorece a
elaboração dos domínios referenciais no seu próprio espaço, pelo
amparo do verbo que o sustenta na predicação. O índice maior de SNs
lexicais (FNs de primeira ordem), capitaneados por substantivos, é o
indicador dessa regularidade. A grande maioria dos casos de não
lexicalização (não ocupação, na nossa terminologia) ocorre porque se
procura evitar a repetição. Caso não evitássemos essa repetição, o
índice de pronomes subiria para cerca de 90% no lugar sujeito; no
lugar objeto, por outro lado, o índice que mais seria afetado por um
aumento seria o do SN lexical. Essa projeção reforça a nossa
convicção da significativa diferença entre os papéis desempenhados
pelos dois lugares sintáticos na constituição da articulação sintática.
6. A articulação sintática na perspectiva da enunciação:
ampliando o campo de visão
Em Dias (2015b), formulamos aspectos básicos da constituição de
um enunciado, tendo em vista o acontecimento que o tornou
pertinente em um campo de enunciação. Nessa direção, um enunciado
significa relativamente ao campo de virtualidade memorável dos seus
termos frente às condições de atualização pelos referenciais que se
agregam a esse campo.
A pertinência do enunciado no espaço de enunciação, concebida na
relação entre recortes de memória de significação e a demanda de um
presente pelos referenciais, movimenta as formações articulatórias que
constituem a sintaxe do enunciado, a sua constituição formal.
Na medida em que entramos na abordagem da conformação
sintática, pelas formações articulatórias básicas, passamos a nos focar
nos enunciados que apresentam como contraparte a sentença da forma
como a consideramos neste estudo. No entanto, dada a especificidade
do conceito de forma linguística que apresentamos neste trabalho, não
produzimos uma dicotomia entre enunciado e sentença. Analisar a
constituição da sentença envolve observá-la igualmente como
enunciado.
Uma vez que apresentamos a nossa visão sobre a constituição das
formas linguísticas, pela conformação em formações articulatórias, e
tendo apresentado a constituição dos lugares sintáticos sujeito e
objeto, envolvidos na recepção das formações nominais, vamos
apresentar o esboço de uma proposta de configuração mais ampla do
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
129
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
jogo de articulações sintáticas do ponto de vista de uma teoria da
enunciação.
Tendo em vista as condições para a predicação, como vimos,
temos, em decorrência da predicação, uma mobilidade de construções,
em consonância com os modos históricos de textualização. Uma
unidade sentencial é uma enunciação, mobilizada em conformação
pelas regularidades de uma língua, de um lado, e se apresenta
textualizada, de outro. Não se trata de percurso gerativo, mas da
própria natureza de constituição do sintático.
Com o extrato textual de uma conversação, apresentado a seguir,
podemos demonstrar, ainda que brevemente, essa mobilidade de
construções:
(30)
L2 - e o quibe heim?
L3 - o quibe ficou uma delícia gente...(fiz) quibe na casa da M.
L. ...ela aMOU o quibe que eu fIZ...
LI - quibe cru? o J. gosta muito de quibe cru né?
L3 - eu não gosto de quibe cru gente eu não dou conta de comer
CARne crua...não dô con-ta...
LI - tem gente que gosta de fazer outras coisas com quibe cru...
L2 - e peixe cru cê gosta?
L3 - detesto...NO::ssa...
(in: MATTA, 2005, anexos)
Uma das maiores dificuldades dos professores no ensino de
gramática encontra-se na tentativa de levar os alunos a fazer análise
sintática em sentenças retiradas de textos, da forma como elas
aparecem. A questão reside justamente na compreensão da mobilidade
das construções sintáticas frente ao fato de que a unidade sintática se
molda ao regime de construções de uma textualização. A compreensão
do jogo mobilizado sintaticamente em torno de FNs com pronomes
pessoais, as FNs constituídas com o nome “quibe” e as predicações
elaboradas com os verbos fazer, gostar e comer, é essencial para que
tracemos a articulação básica que forma as predicações, nucleando as
sentenças do texto.
Esses lugares básicos, articulados à predicação, constituem os
“formantes sentenciais”, que sustentam a integridade da articulação
130
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
sentencial. A nossa abordagem apresenta um modo de conceber a não
atualização desses lugares em termos orgânicos de forma a evitar o
conceito de inexistência, de lacuna, de vazio, como em “tem gente” e
“detesto”, localizados no extrato textual que apresentamos acima.
Dado que a FN é definida em termos de “formação”, na captação
das unidades lexicais para a gramática, ela pode se atualizar em pontos
de localização determinados no plano da sentença. Pode a FN também
estar atualizada fora do plano da sentença, ou projetar essa atualização
também em outros planos. No limite, ela pode sofrer absorção na
própria predicação, mantendo-se, no entanto, traços da entrada nos
espaços de qualificação do lugar sintático. Vejamos isso com alguma
especificidade, dentro do limite do presente trabalho.
A FN que se constitui no lugar sujeito pode se atualizar em outra
sentença e deixar pistas de remissão, como em algumas “elipses de
sujeito”, na terminologia tradicional, ou em ancoragem no plano da
locução, como em “(eu) detesto”, no extrato apresentado acima, ou
mesmo em casos de constituição de uma identidade referencial em
outro plano da enunciação, como nos casos de sujeito indeterminado,
na terminologia tradicional. Em Ladeira (2010), há uma análise desse
último caso do ponto de vista da semântica da enunciação. A FN pode
também estar sujeita a formas de absorção na predicação (absorção
predicativa), com amálgama no lexema verbal (no caso de “chove”)30
ou não, como no caso de “tem gente”, presente no extrato de
conversação apresentada acima. Como dissemos, a condição de
virtualidade da formação não afeta a existência do formante sentencial
sujeito, da maneira como o definimos.
Por sua vez, a FN que se constitui no lugar objeto pode
permanecer em estado virtual e não se atualizar organicamente quando
estão sujeitas a diversas formas de generalização, como em “Plantou,
colheu” (LACERDA, 2009; DALMASCHIO, 2013). De outra forma,
elas também podem sofrer absorção predicativa, como em “A criança
caiu”. As situações de absorção na predicação mantêm a existência da
FN enquanto virtualidade, que pode passar a atualizar ou sofrer
absorção em determinado período histórico da língua. Observemos
que, quando os pais exerciam a determinação no casamento dos filhos,
tínhamos predominantemente “Pedro casou Maria”, hoje temos
predominantemente “Maria casou”, com a configuração de absorção
predicativa. Por sua vez, em “Esse cano sai fumaça”, temos alguma
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
131
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
evidência de atualização de uma FN no lugar objeto projetado pelo
verbo sair, fato pouco provável de ocorrer num passado não muito
remoto da história da língua portuguesa.
Em resumo, parte das situações de não atualização orgânica de FNs
é explicada pela mobilidade sintática, na consonância com a
textualização, parte pela confluência de planos enunciativos, e parte
pela absorção predicativa.
Uma sentença, no entanto, não se constitui apenas por um lugar
sujeito, uma predicação que incide sobre ele, e pelo lugar objeto que
essa predicação abriga. Como vimos, eles constituem os “formantes
sentenciais”, que sustentam a integridade da articulação sentencial.
Os formantes integrativos envolvem a formação de alguns tipos de
categoria funcional que a gramática consagrou como complementos
indiretos e adjuntos. Eles estariam associados a lugares direcionais.
Em Lacerda (2015), temos uma abordagem de aspectos importantes
dessas construções do ponto de vista da enunciação. Esses integrativos
envolvem direcionamentos de movimento, em construções orientadas
por preposições e conjunções31.
Considerações finais
Iniciamos o presente estudo afirmando que o nosso foco estaria na
ordem da língua, e não na organização das suas partes. A constituição
desse foco nos levaria a investir na resposta a perguntas como: qual a
natureza das relações entre os itens lexicais? Em que se assenta a
agregação entre eles? A questão mais relevante estaria centrada na
sustentação de uma agregação de itens lexicais na constituição da
unidade sintática básica. Para isso, propusemo-nos a discutir a própria
natureza do semântico e como ela é configurada em alguns momentos
da história para explicar essa agregação.
Abordamos o semântico concebido em termos do funcionamento
da enunciação. A nossa perspectiva se distingue das abordagens que
concebem o semântico em termos de propriedades, ou em termos da
funcionalidade da linguagem na interação imediata. Ao invés de
perguntar pela natureza das coisas na relação com o homem, ou pela
economia linguística na interação entre os homens, perguntamos pela
natureza do dizer humano, na constituição da ordem das coisas.
Procuramos privilegiar o gesto inflexivo da predicação, apagado
em parte do pensamento sobre a sintaxe na modernidade, por entender
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
que ele é essencial para a compreensão da pertinência do dizer na
relação entre a linguagem e a ordem da exterioridade linguística.
Nesse parâmetro, o lugar sujeito centra-se nas condições para a
exploração dos referenciais do sentido pela predicação. Ele é
estabelecido por uma inquietude enunciativa, pelos gestos de contato
com outras discursividades que tocam no espaço de enunciação em
que a sentença se constitui, isto é, o lugar sujeito é constituído pelas
reações do sujeito ao mundo das significações pelo qual ele próprio se
constitui em sujeito, ao enunciar e se colocar frente a esse mundo
pelas predicações.
Aprendemos com Bally, quando ele se pergunta como nós
apreendemos um pássaro. Respondemos com ele: pelo seu canto, pelo
lugar em que vive, pela beleza que nos encanta, pelas características
que denunciam a sua ancestralidade, pela definição morfológica que o
classifica na espécie, no reino. Tudo isso são elementos de
representações do pássaro. Diríamos que essas representações são de
ordem histórico-sociais. Se enunciar é reagir a uma representação, a
enunciação é relativa ao acontecimento em que a singularidade de um
dizer adquire pertinência aos dizeres sociais representativos do objeto
do dizer. Essas representações são motivadoras de formas de
predicação, que agregam renovação aos objetos do dizer, porque os
captam novamente como movimento, como processo (nos termos de
Bally), e assim os colocam em rota de discursividade, e se sujeitam a
ser outros porque cada enunciado o traz para a sua temporalidade, via
predicação. Ao se submeterem a novas predicações, eles se sujeitam a
novas relações entre um corpo de memória que retém parte da sua
identidade e de novas inquietudes que colocam em causa essa
identidade. Daí afirmarmos que a enunciação se define na relação
entre memória e atualidade (GUIMARÃES, 2005).
Podemos nos apoiar também em Benveniste (1950), para quem a
função verbal é coesiva, no sentido de que organiza uma completude
do enunciado, e ao mesmo tempo assertiva, no sentido de que traz
para o enunciado uma realidade do sujeito.
A predicação é, pois, o ponto que liga a sentença à língua pela
pertinência do dizer num campo de enunciação. Nessa direção, o lugar
sujeito faz da FN um lugar de diferença, de busca de arranjo, que
reclama se situar, se sustentar na predicação. A sustentação da
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
133
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
sentença passa pela sustentação da sentença na língua, pelas suas
regularidades históricas e pela historicidade das suas enunciações.
Pensamos que o enunciar precede o comunicar, porque não há
suficiência do dizer nem enredo acabado. A sentença se constitui pela
procura de um enredo, na urdidura do sintático, que é o lado regular
do enunciado. O que a sintaxe tem captado são os traços da
estabilidade de um enredo. Na nossa concepção, a formação dos atores
e o caráter das peças precisam ser colocados em pauta, porque estão
na base da predicação, vale dizer, na base da formação sintática.
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Palavras-chave: enunciação e gramática, predicação sintática,
semântica e sintaxe
Keywords: enunciation and grammar, syntax predication, semantics
and syntax
Notas
1
Essa síntese da definição de sintaxe foi constituída com base na nossa tradução do
verbete Syntax, da Britannica Online Academic Edition, de 2015, disponível em:
<http://www.periodicos.capes.gov.br/>. Acesso em: 31 ago. 2015.
2 Para essa distinção, nós nos inspiramos no trabalho de Orlandi (1996), no qual ela
formula a diferença entre os dois conceitos do ponto de vista de uma análise de
discurso.
3 Em Barros (2004), encontramos fundamentos para adoção da perspectiva da
circunscrição de itens lexicais na relação com classes gramaticais.
4 Utilizamos a tradução da obra em espanhol, cujos termos assim se apresentam: “se
conectan con los rectos por medio de un verbo inserto entre ambos”
136
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luiz Francisco Dias
No original: “Entre algunas partes de la oración hay cierta orden casi natural y muy
conforme a la razón, en la cual las cosas que por naturaleza son primeras o de mayor
dignidad se han de anteponer a las siguientes y menos dignas.”
6 No original: “les mots destinés à signifier, tant les choses que les manières”
7 No original: “Les hommes, dit-il, n'ont pas eu moins besoin d'inventer des mots qui
marquassent l'affirmation, qui est la principale manière de notre pensée, que d'en
inventer qui marquassent les objets de nos pensée.”
8 No original: “le verbe de lui-même ne devrait point avoir d’autre usage que de
marquer la liaison que nous faisons dans notre esprit des deux termes d’une
proposition”.
9 No original: “If we wish to communicate our thought we ordinarily express it in
words, and this verbal expression of a thought we call a sentence.”
10 No original: “Subject and predicate may be joined together in various ways. In the
above example the connection between them is affirmed (stated as a fact) - such a
sentence as the earth is round being therefore called an 'affirmative' sentence; but it
may also be stated doubtfully, as in perhaps the earth is round, or denied, as in the
earth is not flat, and the relation between subject and predicate may be modified in
various other ways.”
11 No original: “Hence in such a sentence as the earth is round, we call earth a
subject-word, round a predicate-word.”
12 No original: “The positions in which a form occurs are its functions. Thus, the word
John and the phrase the man have the functions of 'actor', 'goal', 'predicate noun', 'goal
of preposition', and so on.”
13 O conceito de “enredo” não aparece no texto de Bloomfield, evidentemente. Ele
nasce da interpretação que empreendemos a partir da leitura do texto.
14 A recção é um termo bastante utilizado pelos estruturalistas, e se refere em geral à
subordinação que um item lexical contrai na relação com outro, resultando nas
categorizações de termo regente e termo regido.
15 No original: “Colorless green ideas sleep furiously”
16 No original: “from the perspective of theorizing about syntax, which is our concern
here, a critical point of departure is Chomsky’s Syntactic Structures (Chomsky,
1957)”
17 No original: “We have referred to language (i) as text and as system, (ii) as sound,
as writing and as wording, (iii) as structure - configurations of parts and (iv) as
resource - choices among alternatives. These are some of the different guises in which
a language presents itself when we start to explore its grammar in functional terms:
that is, from the standpoint of how it creates and expresses meaning.”
18 No original: “I caught the first ball. I was beaten by the second. The third I stopped.
By the fourth, I was knocked out.”
19 No original: “they locate the Exchange within the semantic space that is opened up
between speaker and listener.”
20 O modo é relativo às posturas de certeza, dúvida, desejo etc., adotadas pelo locutor
em relação àquilo que enuncia.
5
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
137
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA
No original: “it is that which carries the modal responsibility; that is, responsibility
for the validity of what is being predicated (stated, questioned, commanded or
offered) in the clause”.
22 No original : “C’est donc juger qu’une chose est ou n’est pas, ou estimer qu’elle est
désirable ou indésirable, ou enfin désirer qu’elle soit ou ne soit pas. On croit qu’il
pleut ou on ne le croit pas, ou on en doute, on se réjouit qu’il pleuve ou on le regrette,
on souhaite qu’il pleuve ou qu’il ne pleuve pas”.
23 Vamos tomar o termo “palavra” como “item lexical”, com as ressalvas que fizemos
na introdução deste trabalho.
24 Em Dias (2015b), levantamos detalhes do funcionamento do referencial no
acontecimento enunciativo.
25 Em Dias (2015b), discutimos com detalhes o conceito de acontecimento
enunciativo e essa mobilização.
26 Entram aqui, na terminologia da gramática tradicional, alguns complementos
verbais típicos e adjuntos com formação nominal encabeçada por preposição. Não
vamos discutir essa composição em detalhes, porque foge do escopo do presente
texto.
27 Embora a construção com o QUE “expletivo” pareça um pouco estranha, ela tem
emprego corrente, como esse: “(...) um aqui é filho do Milionário, do Milionário e
José Rico, e o outro é sobrinho do Dalvan. Quem que é quem aqui?” (in:
<http://goo.gl/gRbbY5>. Acesso em: 10 jul. 2014.
28 Disponível em: <http://goo.gl/5jclXm>. Acesso em: 10 jul. 2014.
29
Em Dias (2009), abordamos os conceitos de virtualidade e atualidade.
30 Em Dias (2010), abordamos com algum detalhe esse processo de amálgama lexical
em enunciados com o verbo chover.
31 Os detalhes de um olhar mais amplo da semântica da enunciação sobre a articulação
sintática estão sendo elaborados em nosso livro a ser lançado no ano de 2016.
21
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A
CONFORMAÇÃO DA REFERÊNCIA NO
LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
IFMG – Campus Ouro Preto
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre
o lugar de adjunto adverbial pautada nas concepções de uma sintaxe
de bases enunciativas, cujas premissas permitem observar os
fenômenos linguísticos na sua interface constitutiva entre
materialidade linguística e enunciação. O enfoque dado aqui é na
determinação da referência constituída pela formação adverbial
ocupante desse lugar sintático, considerando um contraste
estabelecido entre os lugares ocupados por formações nominais.
Compreendemos que as formações adverbiais atuam na construção
do cenário de referência da sentença e, desse modo, o lugar de
adjunto favorece a demarcação da perspectiva do locutor no dizer.
Nesse caminho, chegamos a uma proposta que coloca a referência
constituída pelas formações adverbiais, associando-a às marcas de
incidência do locutor ou à constituição desse cenário, em uma escala
de maior ou menor agregação ao que denominamos domínio
semântico memorável do predicador da sentença.
Abstract: This article presents a consideration about the place of
adverbial clauses guided by conceptions of syntax from enunciative
bases, whose premises allow us to observe the linguistic phenomena
in its constitutional interface between linguistic materialness and
enunciation. Hence the focus is given in the determination of the
reference constituted by the adverbial formation that occupies such a
syntactic place, considering a contrast established among the places
occupied by nominal formations. We understand that adverbial
formations act in building a referential scenario in the sentence,
thereby, the adjunction place enables the marking of the announcer’s
perspective while saying it. In this path, we came to a proposition
which sets the reference constituted by adverbial formations,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
associating it to the announcer’s incidence marks or to the
constitution of this scenario, in a scale from major to minor
aggregation that we call the memorable semantic domain of the
sentence predicator.
1. Considerações iniciais
Uma discussão enveredada na relação entre materialidade
linguística e enunciação incorre no risco de se ater aos limiares de
uma dimensão e de outra, aos pontos de contato ou ao emprego da
primeira em função de determinações da segunda, consolidando o
acontecimento enunciativo como exterioridade que intervém na
configuração das formas da língua. A julgar pelo interesse em
explicitar o funcionamento dessas partes do fenômeno linguístico,
como partes de um todo que é o funcionamento da língua, tal
empreendimento, que chamamos de arriscado tão somente porque já
nos fez titubear no percurso, detém mérito e relevância
inquestionáveis para os estudos teórico e descritivo da linguagem,
bem como apresenta valiosos desdobramentos no campo do ensino de
língua. O que fazemos, entretanto, é delinear as dimensões material e
enunciativa como um entrelaçamento constitutivo do fenômeno
linguístico, fiando-nos na premissa de que o emprego da língua é “um
mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a
língua inteira”, pois esse emprego – a enunciação – seria tão
necessário que parece se confundir com a própria língua
(BENVENISTE, 2006 [1974], p.82). Essa perspectiva implica o
entendimento de que a enunciação é transversal à língua, apreensível
em todos os níveis de análise. Ou seja, “qualquer fenômeno linguístico
de qualquer nível (sintático, morfológico, fonológico etc) pode ser
abordado do ponto de vista da enunciação” (FLORES, 2010, p.400).
Isso não quer dizer que os limites entre o material e o simbólico
estejam rarefeitos em nossa perspectiva de análise, senão significa que
apreendemos essas dimensões justamente no lastro em que
consubstanciam o fenômeno linguístico em estudo.
É no fulcro dessa abordagem que podemos localizar os alicerces de
uma sintaxe de bases enunciativas, em cuja proposta inserimos as
reflexões que aqui desenvolvemos. Lidamos com a proposta de que a
sentença seja constitutivamente atravessada por eixos1 – cuja
140
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
representação encontra-se no esquema a seguir – que sincretizam de
três modos distintos a convergência entre materialidade linguística e
enunciação.
Imagem 1: Eixos constitutivos da sentença
(Fonte: LACERDA, 2013, p.100.)
O eixo enunciativo 1 constitui o plano enunciativo propriamente
dito, que diz respeito à instalação da sentença, à retirada do verbo de
seu estado infinitivo. Já o eixo enunciativo 2 representa o plano de
incidência do locutor sobre aquilo que diz, desvelando os elementos
participantes da cena enunciativa, quais sejam, o Locutor (L), “figura
que se representa como responsável pelo dizer”, o locutor-x, “lugar
social de dizer”, e o enunciador, que representa “o lugar de dizer, o
lugar de onde se diz” (GUIMARÃES, 2009, p.50). O eixo temáticoreferencial corresponde ao efeito de apontamento para uma realidade
extralinguística, o qual é inerente ao acontecimento enunciativo.
Neste texto, focalizamos a conformação do eixo temáticoreferencial, especificamente, no escopo do lugar de adjunto adverbial.
Antes de chegarmos ao nosso alvo, porém, passamos por um trajeto de
análises dos lugares sujeito e de objeto como lugares de constituição
de referência. Iniciamos com esse percurso no intuito mesmo de expor
ao leitor o nosso itinerário de pensamento até chegar à formulação
acerca do lugar sintático que particularmente nos interessa aqui, mas
também para sinalizar um deslocamento de perspectiva, um contraste
entre as abordagens que precederam o estudo do lugar de adjunto
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
141
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
adverbial no campo da sintaxe de bases enunciativas e a abordagem
que ora apresentamos. Além disso, tal mudança no ângulo de visão
merece os créditos teórico-metodológicos que lhe são devidos, já que
nos conduziu à reavaliação do estatuto de lugar do adjunto adverbial,
descortinando as noções de cenário e, por fim, de domínio semântico
memorável.
2. O eixo temático-referencial em foco
2.1 Dos lugares de sujeito e de objeto ao lugar de adjunto
adverbial
Considerando que, em certa medida, todo dizer se mobiliza em
função do objeto desse dizer, diríamos que o eixo temático-referencial
atravessa fundamentalmente toda a constituição da sentença. Assim,
falar em proeminência do eixo temático-referencial em um dos lugares
sintáticos não passa por uma verificação se o lugar sintático guarda
um compromisso com esse eixo, mas por uma análise de como esse
lugar se configura na construção temático-referencial da sentença.
Alguns trabalhos desenvolvidos no campo da sintaxe de bases
enunciativas analisaram a configuração da referência no âmbito dos
lugares de sujeito gramatical e de objeto, verificando o investimento
de cada um desses lugares para a determinação do que chamamos de
modo de enunciação da sentença, que, em linhas gerais, consiste no
modo como se configura o escopo referencial da sentença em termos
de amplitude e restrição.
Segundo o modo de enunciação em que estão configuradas, as
sentenças se distribuem em um contínuo margeado por extremos que
descrevem uma referência mais especificadora, de um lado, e que
descrevem uma referência mais generalizadora, chegando até a
genericidade típica dos provérbiosi, de outro. Nessa perspectiva, os
lugares de sujeito gramatical e de objeto assumem uma identidade
interveniente e compatível com o modo de enunciação da sentença em
que estão inseridos. Assim, os trabalhos que procuraram caracterizar
esses lugares sintáticos estabelecem, por exemplo, uma relação
explicativa entre a configuração de uma sentença em modo de
enunciação proverbial, como “Quem avisa amigo é”, e a configuração
de um sujeito perfil, cuja formação nominal (doravante, FN) está
encabeçada pelo pronome relativo ‘quem/aquele que’. Da mesma
142
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
forma, a configuração referencial de uma sentença em modo de
enunciação mais especificador, como “A Petrina do apto 501 do
prédio 1001 da Paulista viu todo o confronto entre policiais e
manifestantes” pode ser explicada pelo restrito escopo de referência
da FN ‘A Petrina do apto 501 do prédio 1001 da Paulista’, que ocupa
o lugar de sujeito gramatical. No caso da configuração do lugar de
objeto, a relação entre o escopo de referência no lugar sintático e o
modo de enunciação da sentença parece ser menos determinante.
Entretanto, ainda assim são pertinentes análises que avaliam, por
exemplo, como contribui a matriz de apontamento sustentada pela não
ocupação do lugar de objeto em “Quem planta colhe” para a
configuração dessa sentença em um modo de enunciação genérico
proverbial.
Além de analisar, como demonstramos, a sintonia que se
estabelece entre a amplitude/restrição da referência construída no
escopo do lugar sintático e no âmbito maior da sentença, outra prática
consiste em selecionar uma determinada faixa do contínuo dos modos
de enunciação, ao invés de percorrer todo o contínuo, e observar as
diversas repercussões que a referência constituída no âmbito do lugar
sintático podem projetar para a configuração referencial das sentenças
que estão situadas na faixa do contínuo que foi delimitada para
análise. Ladeira (2010), seguindo esse viés, investe no escalonamento
da indeterminação referencial, que se desdobra em diversas matrizes
no lugar de sujeito gramatical.
O recurso metodológico representado no contínuo dos modos de
enunciação parece não se aplicar, contudo, ao lugar de adjunto
adverbial do mesmo modo que o empregamos para a análise dos
lugares de sujeito e de objeto. Em outras palavras, a relação entre a
matriz de referência que se instala no lugar de adjunto adverbial e a
referência constituída na sentença como um todo tende a ser diversa
da relação que se estabelece entre a matriz de referência do lugar de
objeto e a configuração do modo de enunciação da sentença. E,
principalmente, tende a ser diversa da relação de determinação que se
estabelece entre a matriz de referência no escopo do lugar de sujeito e
a configuração do modo de enunciação da sentença. A fim de darmos
visibilidade a essa questão, comparemos as sentenças em (01).
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
143
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
(01)
a- Lívia paga muitos impostos no Brasil.
b- Pague seus impostos corretamente no Brasil e não seja
surpreendido pelo leão.
c- Aquele que paga impostos no Brasil merece recompensa
social.
d- Quem paga merece recompensa.
As sentenças (01a) a (01d) se distribuem no contínuo dos modos de
enunciação, indo da constituição de uma referência mais específica à
constituição de uma referência mais genérica, de natureza proverbial,
exatamente na ordem em que estão listadas. A distribuição das
sentenças na escala dos modos de enunciação, como temos dito,
estaria relacionada à natureza da matriz de referência que se constitui
no escopo do lugar de sujeito. O lugar de objeto, por sua vez, embora
seja menos proeminente do que o lugar de sujeito na configuração do
modo de enunciação da sentença, mostra-se interveniente na
determinação do direcionamento referencial da sentença. Em (01a) a
(01c), a FN ‘impostos’ constitui um recorte na memória de dizeres do
verbo ‘pagar’, produzindo um direcionamento que atualiza o sentido
de pagar como “dar o preço estipulado por (coisa vendida ou serviço
feito)” ou ainda “descontar (do que se há de entregar) a parte que é
devida”ii. Se a ocupação do lugar de objeto fosse outra, teríamos
proporcionalmente outro direcionamento para a referência atualizada
pelo verbo ‘pagar’, que tem em seu arcabouço sentidos como “sofrer
as consequências (ex.: pagar os erros)”, “ser castigado em lugar de
outrem (ex.: paga o justo pelo pecador)” ou ainda “satisfazer (uma
dívida, um encargo)”3 Se os exemplos em (01a) a (01c) mostram que a
matriz de referência do lugar de objeto atua no sentido de determinar a
direção da referência constituída no âmbito da sentença, a não
ocupação no lugar de objeto da sentença proverbial em (01d),
configurando um amplo escopo de referência, deixa evidente que,
além de atuar no direcionamento da referência, a configuração desse
lugar sintático, em termos de amplitude e restrição de escopo, é
também solidária ao modo de enunciação da sentença.
Os exemplos em (01) também mostram que a matriz de referência
constituída no lugar de sujeito compatibiliza-se com o escopo de
referência dessas sentenças, endossando o que os trabalhos acerca da
144
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
relação de determinação entre o lugar de sujeito gramatical e a
configuração do modo de enunciação da sentença já apontaram.
Assim, no lugar de sujeito gramatical das sentenças em (01), temos,
em (01a), sentença configurada em modo de enunciação restrito, a FN
‘Lívia’, cujo escopo de referência é de fato restrito; em (01b),
sentença configurada em um modo de enunciação mediano, um sujeito
cuja referência se projeta, podendo tanto representar o alocutário da
enunciação em que essa sentença seria empregada como qualquer
pessoa que se encaixe como destinatário desse conselho; e, por fim,
em (01c) e (01d), que configuram um modo de enunciação mais
generalizador, FNs encabeçadas pelas expressões ‘quem’ ou ‘aquele
que’, que constituem um amplo perfil de referência. Ajustando-nos a
esse padrão de análise, resta-nos questionar: qual seria a relação entre
a constituição da matriz de referência no lugar de adjunto adverbial e a
configuração do modo de enunciação da sentença?
Para responder a esse questionamento, parece-nos interessante
comparar (01c) e (01d). De acordo com o que podemos verificar, a
ocupação do lugar de adjunto adverbial não parece atuar na
configuração do modo de enunciação das sentenças, já que uma
sentença apresenta esse lugar sintático ocupado e outra não, a despeito
de ambas estarem configuradas em um modo de enunciação genérico
proverbial. Além disso, (01c) abriga no lugar de adjunto adverbial a
mesma formação adverbial (doravante, FAdv), ‘no Brasil’, que as
sentenças (01a) e (01b), estando essas últimas configuradas,
respectivamente, em um modo de enunciação mais especificador e
intermediário ou mediano. Diante dessas constatações, julgamos que
seja procedente reformularmos a nossa questão. Perguntamo-nos,
então, como a matriz de referência no lugar de adjunto adverbial atua
na constituição referencial do predicado da sentença?
Novamente, vamos comparar as sentenças em (01c) e (01d). Em
nossa análise, já pudemos verificar que em (01c) temos um
direcionamento da referência constituída no âmbito do predicado
estabelecido pela articulação entre a forma verbal ‘paga’ e a FN
‘impostos’. Em contrapartida, esse direcionamento não se efetiva em
(01d), que apresenta um vazio no lugar de objeto. Além dessa
diferença quanto ao direcionamento, podemos observar que a
referência constituída no predicado da sentença (01c) assenta-se sobre
um cenário, uma perspectiva de lugar que subsidia a referência
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
145
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
constituída pela sentença como um todo. A sentença (01d), por sua
vez, constitui um perfil de referência delimitada pela articulação entre
os sentidos de pagar e receber recompensa. Entretanto, não contamos
com um cenário em que essa sentença se ancora, não se produz uma
delimitação para essa referência. Ou seja, podemos concluir que a
FAdv ocupante do lugar de adjunto adverbial serve como subsidiária
da referência constituída na sentença, estabelecendo um recorte na
memória de sentidos sobre a qual se constrói um perfil de referência.
Isso significa que a FAdv atua na instalação do que poderíamos
chamar de cenário de referência da sentença, muito embora não pareça
intervir na configuração do modo de enunciação dessa sentença.
Precisamos definir, então, o que entendemos por cenário, instância
que parece determinar a proeminência do eixo temático-referencial no
lugar de adjunto adverbial. O mecanismo de constituição da referência
no âmbito da sentença recebe uma descrição interessante e, para nós,
inspiradora nos conceitos de cena e perspectiva de Fillmore (1977).
Vamos nos deter, de imediato, no conceito de cena. Para o autor, “os
significados são relativos a cenas”, dentro de sua abordagem isso quer
dizer que “nós escolhemos e entendemos uma expressão tendo ou
ativando em nossas mentes cenas ou imagens ou memórias de
experiências”iii (FILLMORE, 1977, p.74, tradução nossa). Nesse
ponto de vista, avalia Neves (2002, p.114), “a cena é uma entidade
cognitiva”. Consideremos o pequeno texto em (02) de modo que
possamos ilustrar como ele se constrói por uma confluência de cenas.
(02)
Perguntaram pro ganhador do Big Brother:
- E aí? O que você vai fazer com o seu milhão?
- Vou comprar um apartamento em Brasília.
- E com o resto?
- O resto eu financio pela Caixa!5
Remontamos aqui, tal como o faz Fillmore (1977), a uma situação
comercial. Essa situação constrói-se a partir do cruzamento de três
cenas, que são trazidas à tona, cada qual, pela perspectiva que as
sentenças carregam. A perspectiva, dentro do quadro teórico exposto
por Fillmore (1977), seria o ângulo de visão a partir do qual a cena é
ativada. Assim, a perspectiva da compra de um apartamento em
146
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Brasília, a perspectiva do recebimento de um prêmio em dinheiro feito
por um programa de TV e, ainda, a perspectiva da requisição de um
financiamento bancário consistem em espécies de holofotes que
iluminam parcialmente a cena, repertório de imagens ou experiências
que serve de alicerce para sustentar cada uma dessas perspectivas.
Portanto, as sentenças que compõem o diálogo em (02) constituem
perspectivas de referência sobrelevadas de repertórios cênicos que
instauram, além do que se mostra em primeiro plano – a compra de
um apartamento, o recebimento de um prêmio e o financiamento –
uma referência a venda, a pagamento, a dinheiro, a vendedor, a
comprador, a casa, a alto preço, a baixo preço, a empréstimo, a dívida,
a custo.
A sequência (03), a seguir, explicita o esboço do repertório cênico
sobre o qual se assenta a perspectiva constituída por “Vou comprar
um apartamento em Brasília”, que retiramos do texto apresentado em
(02).
(03)
a- Vou comprar um apartamento.
b- Vão vender um apartamento para mim.
c- Eu vou pagar por um apartamento.
d- Vão receber de mim por um apartamento.
e- Vou gastar com um apartamento.
f- Vão lucrar sobre mim com um apartamento.
Podemos observar que, para a abordagem de Fillmore (1977), a
cena sobre a qual se ancora a perspectiva representada pela sentença
“Vou comprar um apartamento em Brasília” constitui-se de todos os
processos, representados por verbos distintos, inclusive, envolvidos
em um evento de compra. Cada uma das sentenças em (03) parece
trazer à tona, em relevo, um ângulo de visão sobre esse evento. Nas
palavras de Fillmore (1977, p.74. Tradução nossa.),
quando nós compreendemos uma expressão linguística de
qualquer tipo, montamos simultaneamente uma cena como pano
de fundo e uma perspectiva sobre essa cena [...] a escolha de
uma expressão particular dentro do repertório de expressões que
ativam a cena de um evento comercial traz à mente a cena como
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
147
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
um todo – o evento comercial como um todo – mas apresenta
em primeiro plano – em perspectiva – apenas um aspecto ou
seção dessa cena6.
A ideia de haver um repertório que dá suporte à referência
constituída pela unidade linguística articulada que conforma a
sentença deve nos auxiliar na compreensão da proeminência do lugar
de adjunto adverbial no eixo temático-referencial. Naturalmente,
precisamos arcar com a transposição desse conceito para o quadro
teórico de uma semântica de bases enunciativas. Se para Fillmore
(1977) a cena é uma espécie de entidade cognitiva, a nossa abordagem
a compreende como uma espécie de entidade enunciativa, um domínio
referencial instado pelo histórico de enunciações que os elementos
articulados na constituição da sentença suportam.
A cena, de acordo com a abordagem que empreendemos neste
trabalho, consiste em uma virtualidade sobre a qual se assenta a
referência atual constituída no escopo da sentença. Faz-se necessário
demarcarmos aqui um distanciamento conceitual da noção de cena
enunciativa de Guimarães (2002). Segundo esse autor, “a relação entre
a língua e o falante” se dá em espaços de enunciação, “que são
espaços de funcionamento de língua”, decisivos “para se tomar a
enunciação como prática política”. Portanto, nesses “espaços de
enunciação, os falantes são tomados por agenciamentos enunciativos,
configurados politicamente” (GUIMARÃES, 2002, p.18-22). As
cenas enunciativas, por sua vez, “são especificações locais nos
espaços de enunciação”. Nelas há uma “distribuição de lugares de
enunciação”, que “são configurações específicas do agenciamento
enunciativo para ‘aquele que fala’ e ‘aquele para quem se fala’”
(Idem, p.23). No estudo do eixo temático-referencial, mesmo que
entendamos que a composição da referência leve em conta as
condições sociopolíticas que determinam o acesso à palavra e regulam
a distribuição dos papéis em uma cena enunciativa, estamos
focalizando propriamente o repertório de sentidos, a base sobre a qual
essas condições se investem para a constituição de uma cena,
compreendida, então, como base de referência.
Já que a designação “cena enunciativa” remete a uma noção
distinta da que consideramos para lidar especificamente com o que é
pertinente ao eixo temático-referencial, por uma questão de economia
148
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
e precisão, chamaremos a cena que remete à construção de uma base
sobre a qual se assenta a referência constituída na atualidade do dizer
de domínio referencial. Essa noção é apresentada por Dias (2013), que
parte do conceito de “referencial”, proposto por Foucault (2010, p.
103). Para esse autor,
um “referencial” [...] não é constituído de “coisas”, de “fatos”,
de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de possibilidade, de
regras de existência para os objetos que aí se encontram
nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se
encontram afirmadas ou negadas. O referencial do enunciado
forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância
de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de
coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio
enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de
delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu
valor de verdade.
Foucault (2010) fala em “enunciado”. Transferindo essa percepção
para o escopo da sentença, contraparte orgânica do enunciado e nível
de expressão que de fato nos interessa particularmente como unidade
de análise, teríamos o domínio referencial como o repertório de base
que conforma a contraparte virtual da atualidade de referência que se
constitui sobre a articulação sintática da sentença. A instância de
referência que se configura na atualidade do dizer é o que nós
chamamos de cenário.
Devemos precisar como se dá a dinâmica entre virtualidade e
atualidade aplicada à constituição da referência. A conformação do
cenário é um acontecimento enunciativo e, como tal, não segue
fixamente um roteiro de possibilidades, preestabelecido pelo domínio
referencial sobre o qual se assenta. Antes, a construção de um cenário,
“instala sempre uma nova temporalização, um novo espaço de
conviviabilidade de tempos” (GUIMARÃES, 2002, p.12). Isso deriva
do postulado de que “o real a que o dizer se expõe ao falar dele”
consiste, na verdade, em “uma materialidade histórica do real”
(GUIMARÃES, 2002, p.11).
A constituição da referência no âmbito da sentença não se efetiva,
portanto, pela simples representação de uma exterioridade linguística.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
149
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
O apontamento para essa exterioridade consiste em um efeito
perpassado pela instância enunciativa que interpreta o mundo a que o
dizer se refere. A sentença, nesse sentido, precisa ancorar-se em “um
ponto definido”, em “uma posição determinada” que delimite “um
campo de coexistências” para constituir referência (FOUCAULT,
2010, p.112). Entretanto, ao mesmo tempo em que a referência
efetivamente não se constitui a esmo, estando necessariamente
delimitada pelo domínio referencial que lhe serve de alicerce, ela
constrói um potencial de expansão dos seus limites. E é a relação de
uma sentença com outras sentenças que funciona como instância
reguladora desse potencial de expansão.
2.2 O domínio semântico memorável
As FAdvs, dentro da dinâmica que esboçamos na seção anterior,
estariam engajadas na constituição da referência como peças de
sustentação, ancoradas no domínio referencial que subjaz à
constituição do cenário, ou seriam peças que sobrelevam da atualidade
do dizer, dando especificidade a esse cenário? Essa questão parece
resolver-se parcialmente pelo que entendemos por domínio semântico
memorável do verbo.
O esboço que fizemos em (03) representa o repertório cênico ou,
transpondo para a nossa terminologia, e trazendo com essa
transposição uma perspectiva eivada de empreendimentos
enunciativos, representa o domínio referencial da sentença “Vou
comprar um apartamento em Brasília”. Tal esboço deixa entrever que
o domínio referencial da sentença em questão se constrói em torno do
evento apresentado pelo verbo ‘comprar’. A especificidade do lugar
em que se dá o evento, em Brasília, não foi elencada como categoria
de base na conformação desse domínio referencial. O domínio
referencial sobre o qual se assenta um evento deve reduzir-se ao
número mínimo de variáveis convocadas a participar da constituição
desse evento, tendo em vista que o presente da enunciação se
encarrega de investir sobre a constituição da atualidade desse evento
os elementos instados a compor o cenário de referência. O que parece
se colocar minimamente na constituição de um evento instalado em
torno do verbo ‘comprar’ são as categorias que compõem o domínio
semântico memorável desse verbo.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
O conceito de domínio semântico memorável está inspirado no
conceito de domínio semântico de determinação desenvolvido por
Guimarães (2007). Esse autor afirma que “a determinação é a relação
fundamental para o sentido das expressões linguísticas”, ou seja, “as
palavras significam segundo as relações de determinação semântica
que se constituem no acontecimento enunciativo” (GUIMARÃES,
2007, p.79-80). Para explicitar essa noção, ele toma como exemplo a
sentença que reproduzimos a seguir.
(04) As casas e os barracos do bairro mostram que as
residências urbanas tem uma grande diferença de qualidade.
Nessa sentença, temos as FNs ‘casas’, ‘barracos’ e ‘residências’
que compartilham do mesmo domínio semântico. A FN ‘residências’
retoma por reescrituração as outras e, na medida em que na sentença
em questão essas FNs constituem o sentido da palavra ‘residências’, o
chamado domínio semântico de determinação (doravante DSD) dessa
última FN é composto por ‘casas’ e ‘barracos’, como mostra o
esquema:
casa |– residência –| barraco
Fonte: GUIMARÃES, 2007, p.80.
Assim, define-se que “dizer qual é o sentido de uma palavra [em
um enunciado] é poder estabelecer qual é o seu DSD”
(GUIMARÃES, 2007, p.80). O autor esclarece ainda qual é a relação
entre o DSD de uma palavra e a referência por ela constituída:
O DSD caracteriza [...] a designação das palavras [...]. A
designação de uma palavra é uma relação de palavra a palavra,
que não é uma classificação das coisas existentes, é uma
significação que acaba por identificar coisas, não enquanto
existentes, mas enquanto significadas. (GUIMARÃES, 2007, p.
95)
Ou seja, o DSD de uma FN é o que configura a referência
constituída por essa FN na atualidade do dizer em que ela é
empregada. Essa referência se dá como a apreensão de objetos
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
significados por esse dizer, significados pela enunciação. Apesar de a
referência não se furtar ao efeito de apontamento para um mundo
existente, ela se dá por um mecanismo enunciativo, em que as
palavras funcionam como peças que apreendem um mundo
significado.
O conceito de DSD é, para Guimarães (2007), um instrumento para
explicar como o sentido de uma palavra, e a identidade que essa
palavra confere a um mundo significado, constrói-se no presente da
enunciação. Na medida em que o presente da enunciação, na
instalação de sua temporalidade, produz um recorte na memória de
dizeres e uma latência de futuro, podemos admitir que o DSD de uma
palavra é construído na interface entre memória e atualidade e
configura-se, sob o signo da regularidade, como um arcabouço
memorável para enunciações futuras.
Conduzindo nossas reflexões por esse caminho, diríamos que as
palavras são atravessadas por uma memória de enunciações que
definem o seu sentido. Esse corpo memorável, que confere identidade
de sentido às palavras e no qual a atualidade do dizer produz recortes
de pertinência, é o que chamamos aqui de domínio semântico
memorável (doravante DSM). Assim, entendemos que o modo como
se configura o domínio referencial do evento instalado pelo verbo
‘comprar’ e pelos outros verbos da língua está em consonância com o
DSM que o verbo carrega.
A seguir, verificaremos uma sequência de exemplos a fim de
investigar se as FAdvs destacadas em cada uma das sentenças
estariam engajadas no DSM do verbo a que se articulam ou se elas
teriam insurgido da conformação do cenário, i.e., do recorte de
referência que sobreleva na atualidade de enunciação dessas
sentenças. Em primeiro lugar, devemos esclarecer que as FAdvs são
unidades passíveis de ser substituídas por advérbios isolados. E,
reforçando esse critério de delimitação das FAdvs, assumimos que
esses elementos, ocupantes do lugar de adjunto adverbial, respondem
às seguintes perguntas: como?; quando?; onde?; por quê?.
Vejamos os exemplos (05) a (10) a seguir, o primeiro deles já
utilizado em nosso capítulo inicial.
(05) Essa semana iniciei a minha dieta maluca.
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(06) Um engenheiro americano projetou um revólver de
plástico, mas que atira balas de verdade. Calibre 38. E colocou
o projeto na internet.7
(07) Quem age com respeito merece respeito.
(08) Eles foram ao parque.
(09) O parasita mora ao lado
(10) Eles estudam medicina na UFMG8.
Para verificar o nível de agregação da FAdv ao DSM das formas
verbais em (05) a (10), empregamos o teste de apagamento. Nesse
caso, entretanto, o teste não se presta a observar se a sentença perde a
sua aceitabilidade na língua ao ter a FAdv que originalmente a
compõe subtraída. Verificamos a partir desse teste se o lugar ocupado
pela FAdv demanda uma matriz de referência, configurando um
silêncio significativo, a partir da retirada dessa FAdv. A configuração
de um silencio sintáticoiv, ou seja, de uma matriz de referência no
escopo do lugar de adjunto adverbial, indicaria que o DSM do verbo
demanda a referência constituída pela FAdv, ou seja, indicaria que a
FAdv está agregada ao DSM do verbo. Assim, consideremos as
sentenças tal como as apresentamos a seguir, após o apagamento das
FAdvs.
(05’) [
] Iniciei a minha dieta maluca.
(06’) Um engenheiro americano projetou um revólver de
plástico, mas que atira balas de verdade. Calibre 38. E colocou
o projeto [onde].
(07’) Quem age [ ] merece respeito.
(08’) Eles foram [onde].
(09’) O parasita mora [onde].
(10’) Eles estudam medicina [
].
Notamos que a sentença (05’) apresenta um cenário em que os
elementos instados a construir a referência em torno do verbo ‘iniciar’
são apenas aqueles linguisticamente materializados na ocupação dos
lugares de sujeito e de objeto, já que o apagamento da categoria de
tempo expressa pela FAdv ‘essa semana’ não deixou vestígios na
referência constituída pela sentença (05’). A sentença (06’), em
contrapartida, demanda uma matriz de referência para a categoria de
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
lugar no escopo do adjunto adverbial. Isso nos indica que a FAdv ‘na
internet’ não é uma especificidade do cenário constituído pela
atualidade do dizer que se materializa em (06), mas está arraigado ao
DSM do verbo ‘colocar’. A sentença (07’), por sua vez, não parece
constituir matriz de referência no lugar da FAdv subtraída. Isso nos
indica que a FAdv ‘com respeito’ está menos agregada ao DSM do
verbo ‘agir’, na sentença (07). As sentenças (08’) e (09’),
diferentemente, mostram que se produz matriz de referência nos
respectivos lugares sintáticos de adjunto adverbial que originalmente
estavam ocupados por uma categoria FAdv constituída pela categoria
lugar. Por fim, a partir da observação de (10’), compreendemos que a
FAdv ‘na UFMG’ não deixa em seu lugar uma matriz de referência ao
ser eliminada da sentença. Isso significa que as FAdvs em análise nas
sentenças (08) e (09) estão mais agregadas ao DSM dos verbos ‘ir’ e
‘morar’, respectivamente, enquanto a FAdv analisada em (10) está
menos agregada ao DSM do verbo ‘estudar’.
Ao investigarmos a agregação das FAdvs ao DSM do verbo, com
efeito realizamos um procedimento de análise cujo entendimento
sobre a articulação dos elementos dentro da sentença segue uma
orientação inversa daquela que se observa nos moldes da tradição
gramatical no que concerne à noção de regência. Assumimos, pois,
que “é o termo secundário que é o requerente e o termo primário que é
o requerido: um termo primário pode aparecer sem o termo
secundário, mas não o inverso”10 (HJELMSLEV, 1939, p.19, tradução
nossa). Lidamos com essa inversão na medida em que partimos da
FAdv, como elemento secundário, para chegar a uma explicação
acerca da relação dessa FAdv com o verbo, tomando-o como elemento
primário. Supomos que é a FAdv que requer a relação com o verbo
para se configurar e não o inverso. Assim, procedemos desta forma:
primeiramente, observamos uma sequência em que as FAdvs estão
materializadas e, depois, efetuamos o apagamento delas, a fim de
depreender se a instanciação dessas FAdvs na sentença explicar-se-ia
pela agregação delas ao DSM do verbo. Essa inversão parece nos
oferecer um ângulo de visão mais ajustado às especificidades do lugar
de adjunto adverbial. Novamente, estabelecemos um diálogo com
Fillmore (1977, p.74), no intuito de explicar a nossa concepção a
respeito desse ajustamento do método invertido ao estudo do lugar de
adjunto adverbial. Nas palavras desse autor:
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Os constituintes “circunstanciais” da sentença não precisam ser
aspectos de cenas especificamente requeridos por um tipo de
situação particular. Uma vez que todo evento acontece em um
tempo, toda sentença que apresenta um evento pode conter um
adverbial de tempo; uma vez que vários tipos de eventos
acontecem em lugares específicos, sentenças que representam
eventos como esses podem conter adverbiais locativos; e assim
por diante.v
Ou seja, as categorias de referência apresentadas pelas FAdvs
estariam submersas na constituição do cenário de qualquer sentença.
Avaliar se as FAdvs constituem o DSM do verbo significa avaliar se
as categorias de referência apresentadas por elas são instadas pelo
domínio referencial das sentenças, i.e., pela memória histórica de
sentidos sobre a qual se assenta o cenário instaurado pela atualidade
do dizer materializado pela sentença, ou se elas sobrelevam da própria
atualidade de constituição desse cenário. Vejamos mais alguns
exemplos.
(11) Pedro agiu de má fé.
(11’) Pedro agiu [como/onde/porque/quando].
(11”) Finalmente, Pedro agiu [como/onde/porque/quando].
(11”’) Finalmente, Pedro agiu.
(12) Pedro sempre age.
Excetuando a sentença (11’”), em que podemos entender o
processo de agir no sentido de tomar uma atitude, as sentenças de (11)
a (12) nos mostram que o DSM do verbo ‘agir’ demanda uma matriz
de referência no lugar de adjunto adverbial. Por isso, devemos admitir
que a FAdv constitui o cenário de referência dessas sentenças estando
enraizada no DSM do verbo em questão, diferentemente do que ocorre
no exemplo a seguir.
(13) Pedro não mora [
], ele esconde.
Ao compararmos (09) e (09’), chegamos à conclusão que o DSM
do verbo ‘morar’ demanda uma matriz de apontamento no lugar de
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
adjunto adverbial associada à categoria de referência lugar. Em (13),
temos uma sentença em que os sentidos de ‘morar’ são confrontados
com o sentido de ‘esconder’, criando um cenário para o conceito de
morar longe. E, nesse caso, o lugar de adjunto adverbial associado ao
verbo ‘morar’ não constitui uma demanda de referência em seu
escopo, pois estamos diante de uma sentença cujo modo de
enunciação lida justamente com o efeito de estabilização de um
conceito.
A partir dessa verificação e do confronto que estabelecemos entre
(07’), “Quem age merece respeito”, e as demais sentenças construídas
em torno do verbo ‘agir’, podemos constatar que o DSM estaria
condensado na forma infinitiva do verbo, entretanto, esse DSM não
emerge em estado bruto do infinitivo para a constituição do cenário de
referência da sentença. Antes, o presente da enunciação produz um
recorte no DSM do verbo, delimitando as pertinências da atualidade
do dizer, i.e., as pertinências à constituição do cenário de referência da
sentença. O contraste entre exemplos constituídos em torno do mesmo
verbo nos leva a crer que o modo de enunciação em que se configura a
sentença governaria o recorte no DSM do verbo para a constituição do
cenário de referência da sentença.
Retomando a ideia apresentada por Fillmore (1977), de que as
categorias de tempo e lugar estariam fundamentalmente submersas na
constituição do cenário de referência das sentenças, somos levados a
questionar se outras categorias materializadas por FAdvs não estariam
na mesma condição. Para entendermos esse ponto, consideremos a
seguinte afirmação de Sousa Dias (1995, p.98, destaque em negrito
nosso):
o sentido é neutro: permanece estritamente o mesmo para
proposições que se opõem sob todos os pontos de vista
possíveis: seja sob o da quantidade, ou o da qualidade, ou o da
relação, ou o da modalidade (porque todos os pontos de vista
concernem apenas a referência, não o sentido). O sentido é a
dimensão virtual, ou evenemencial, de toda a enunciação [...]
Ao falar do sentido, o autor remete à “dimensão não referente,
inacessível sob forma proposicional”, às “idealidades virtuais” que se
definem “por uma intrínseca multiplicidade e pela consistência dessa
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
multiplicidade” e que estariam “num plano não de referência mas de
imanência” (SOUSA DIAS, 1995, p.98-99). Em suma, o sentido
concerne à dimensão simbólica da língua, que se manteria
relativamente estável em si mesma, pairando sobre a atualidade de
todo dizer, sem se reduzir a ela. Em outros termos, o sentido seria a
base de sustentação da sentença, constitutivo do domínio referencial e
do DSM do verbo, que subjazem a atualidade da referência constituída
enquanto cenário. Sousa Dias (1995) fala em pontos de vista possíveis
que concernem à referência, logo, depreendemos que esses pontos de
vista possíveis se instalam sobre o cenário constituído pela atualidade
do dizer.
Quantidade, qualidade, relação ou modalidade seriam, segundo o
autor, variáveis que revelam a inserção desse ponto de vista na
constituição da referência. Parece evidente que as variáveis de
quantidade e modalidade ganham materialidade linguística em FAdvs
como ‘muito’, ‘pouco’, ‘bastante’ ou ‘bem’, ‘mal’, ‘lindamente’, entre
outras. Já a variável qualidade materializar-se-ia de forma prototípica
em expressões adjetivas, entretanto, admitimos que essa variável
esteja também infiltrada nas FAdvs indicativas de quantidade, pois a
gradação
entre
‘demasiadamente’,
‘bastante’,
‘muito’,
‘suficientemente’ e ‘pouco’, por exemplo, podem ter o seu emprego
associado a um julgamento qualitativo. Mas é nas FAdvs de
modalidade que a variável qualidade parece, sobretudo, infiltrada, pois
a modalização apresenta um teor avaliativo marcado, por exemplo,
pela oposição entre ‘bem’ e ‘mal’ ou ‘lindamente’ e ‘estupidamente’.
A relação, por sua vez, também, está arregimentada por uma
conformação eivada de traços de ponto de vista do locutor e seria o
mecanismo de base para a constituição da referência na atualidade do
dizer.
Em resumo, podemos dizer que o processo de constituição de
referência da sentença estaria ancorado em um domínio referencial
que lhe dá sustentação, contudo, a transposição do domínio virtual
para a atualidade da enunciação parece estar eivada de incursões
creditadas ao ponto de vista que se lança sobre a constituição dessa
referência. E na medida em que as FAdvs transitam entre dar suporte
linguístico às variáveis concernentes ao que Sousa Dias (1995)
entende por ponto de vista e dar suporte à unidade de referência
agregada ao DSM do verbo, compreendemos que possam ser
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
157
ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
congregados, em um único contínuo, conformações dos eixos
enunciativo de incidência do locutor e temático-referencial. Assim, as
FAds seriam distribuídas nesse contínuo que se estende entre um
extremo margeado pela maior agregação ao DSM do verbo e outro
extremo margeado pela maior agregação ao cenário de referência da
sentença, o que quer dizer maior agregação ao mecanismo próprio de
inserção de ponto de vista na constituição desse cenário, sobrepondo o
eixo enunciativo de incidência do locutor à constituição do cenário de
referência. Vejamos a seguir a distribuição de algumas ocorrências
nesse contínuo:
+ AGREGADA
AO DSM DO
VERBO
Eles foram ao parque.
O parasita mora ao lado.
Um
engenheiro
americano
projetou um revólver de plástico
[...]. E colocou o projeto na
internet.
Pedro sempre age.
FADV
Essa semana iniciei a minha dieta
maluca.
Eles estudam medicina na UFMG.
Ela beijou sua mãe na bochecha.
Maria dançou lindamente ontem.
Ela beijou sua mãe na plataforma.
+ AGREGADA AO
CENÁRIO DE
REFERÊNCIA
Maria dançou lindamente.
Quem age com respeito merece
respeito.
Maria provavelmente
lindamente ontem.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
dançou
Priscila Brasil Gonçalves Lacerda
Imagem 2: Contínuo +/- agregação ao DSM do verbo e +/- agregação ao
cenário de referência da sentença
(Fonte: LACERDA, 2013, p.128.)
Como podemos observar, no extremo superior estão alocadas as
FAdvs que produzem, inclusive, silêncio sintático. Já no extremo
inferior, estão situadas as FAdvs que insurgem da própria constituição
do cenário, demarcando ponto de vista. Na zona intermediária,
aderindo à abordagem de Fillmore (1977), estão posicionadas as
FAdvs de categoria tempo ou lugar que, independentemente da
agregação ao DSM do verbo, potencialmente submergem na
constituição de qualquer cenário de referência. Enfim, a zona
intermediária está reservada a estas últimas uma vez que elas não se
enquadram no DSM do verbo, muito embora também não estejam
ancoradas na inserção de pontos de vista ao cenário de referência.
Considerações finais
As análises apresentadas aqui assentam-se sobre a essência de uma
sintaxe de bases enunciativas, cujo entendimento ressalta os fatos
sintáticos como imersos na relação entre a materialidade articulada da
língua e o acontecimento enunciativo (DIAS, 2009). É nesse espaço
de reflexões que as tradicionais funções sintáticas são entendidas
como lugares sintáticos, sítios etiquetados que abrigam constituição
ou configuração de referência. E é também nesse quadro que a
referência, ao estabelecer uma relação entre a linguagem e uma
entidade do mundo, é concebida como um efeito de sentidos
atribuídos pela relação de um enunciado com outros enunciados e pela
relação do locutor com aquilo que diz.
No entremeio de todas essas concepções basilares, o estudo sobre a
configuração temático-referencial do lugar de adjunto adverbial ganha
relevância por trazer à tona diferentes matizes da relação entre
materialidade linguística e enunciação. Isso se dá porque ganha
visibilidade na configuração desse lugar sintático a conformação da
referência no interstício da entrada do locutor na enunciação para a
constituição de um cenário em que elementos são agregados para
produzir, como efeito, a apreensão de um mundo extralinguístico.
Ganha visibilidade, com o enfoque dado ao adjunto adverbial, o fato
de a referência se constituir em perspectivação – o que, em última
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
instância, é inerente ao processo de atualização da virtualidade da
língua.
Outro aspecto do processo de atualização da virtualidade da língua
que ganha notoriedade na configuração do lugar de adjunto adverbial,
desta vez colocado em contraste com o lugar de objeto, é a projeção
da memória de dizeres na configuração da sintaxe da língua. A noção
de DSM lança os holofotes especialmente sobre o caráter
determinante da relação entre materialidade e enunciação para
conformação do que tradicionalmente explicar-se-ia em termos de
transitividade e seria descrito como elementos acessórios ou essenciais
para a completude da sentença.
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Palavras-chave: formações adverbiais, sintaxe de bases enunciativas,
domínio semântico memorável, referência, perspectiva do locutor
Keywords: adverbial formations, syntax from enunciative bases,
memorable semantic domain, reference, announcer’s perspective.
Notas
1
Em Lacerda (2013, p.95-134), esta proposta é apresentada de forma mais detalhada.
Em Lacerda (2009), apresentamos a noção de genericidade proverbial, que se
caracteriza pela constituição de referências, de um modo geral, inespecíficas,
consubstanciadas em sentenças configuradas em um modo de enunciação proverbial.
3 Definições extraídas do verbete ‘pagar’ do Dicionário Priberam de Língua
Portuguesa. (<http://goo.gl/iiKGC> Acesso: 20/06/2013).
4 No original: […] meanings are relativized o scenes […] we choose and understand
expressions by having or activating in our minds scenes or images or memories of
experiences.
5 Disponível em: <http://goo.gl/2pJyW>. Acesso: 24 jun. 2013.
2
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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA
REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL
6
No original: [...] whenever we understand a linguistic expression of whatever sort,
we have simultaneously a background scene and a perspective on that scene […] the
choice of any particular expression from the repertory of expressions that activate the
commercial event scene brings to mind the whole scene – the whole commercial event
situation – but presents in the foreground – in perspective – only a particular aspect
or section of that scene.
7 Disponível em: <http://goo.gl/BQ4SH. Acesso: 26 jun. 2013.
8 Disponível em: <http://goo.gl/tmABR. Acesso: 26 jun. 2013.
9 A noção de silêncio sintático, desenvolvida por Dalmaschio (2008), designa um
mecanismo de constituição de referência in absentia, por meio da atualização de um
lugar sintático que não é ocupado por um elemento linguístico materializado, mas que
continua a compor a sentença. Consiste em um silêncio significativo delimitado pelas
características do lugar sintático que o abriga, sendo necessário, inclusive, para que a
sentença ganhe efeito de completude.
10 No original: c’est le terme secondaire qui est l’appelant et le terme primaire qui est
l’appelé: un terme primaire peut apparaître sans terme secondaire, mais non
inversement.
11 No original: The “circumstantial” constituents of a sentence need not be aspects of
scenes that are specifically required by a particular type of situation. Since any event
takes place in time, any event sentence can contain a time adverbial: since many kinds
of events take place in specific locations, sentences representing such events can
contain locative adverbials, and so on.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO
GRAMATICAL “OBJETO VERBAL” – POR
UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
Luciani Dalmaschio
UFSJ
Resumo: Esta pesquisa fundamenta-se nos estudos desenvolvidos pela
Semântica da Enunciação, a fim de propor um trabalho de análise
que se organiza em torno de uma sintaxe de base enunciativa, cujo
pressuposto teórico propõe que o funcionamento linguístico é regido
pelo plano das formas e o plano da enunciação. Nessa perspectiva,
tomamos como objeto específico de análise o lugar sintático “objeto
verbal”. Alicerçados no estudo desse fato gramatical e tomando por
base um corpus diversificado, trabalhamos com a proposta de que o
silêncio sintático se apresenta como elemento constitutivo do sentido,
bem como de que as condições de ocupação são determinadas pelos
modos de enunciação específicos e genéricos que se manifestam em
predicações centradas e dirigidas.
Abstract: This research is based on studies developed by the
Semantics of Enunciation in order to propose an analytical work that
is organized in an enunciative based syntax, whose theoretical
assumption proposes that the linguistic functioning is governed by the
plane of the forms and the plane of enunciation. In this approach, the
focus of the analysis is on the syntactic place of verbal object. This
work, based on this grammatical topic and also in a diverse corpus,
works with the proposition that the syntactic silence presents itself as
a meaningful constitutive element, as well as occupation conditions
are determined by generic and specific enunciative forms that
manifest in centered and directed predications.
1. Introdução
Filiados à perspectiva teórica trazida pela semântica da enunciação,
no percurso de nossa vida acadêmica temos realizado pesquisas que
visam à reflexão sobre a materialidade linguística percebida em sua
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
163
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
contraparte
enunciativa.
O
olhar
para
a
interface
enunciado/enunciação tornou viável um recorte de trabalho que coloca
em cena os lugares sintáticos, no caso deste trabalho o lugar de objeto
verbal, de modo a propor que “não dizer sintaticamente” não significa
esvaziar o sentido do enunciado. Ao contrário, significa ampliar o
domínio de referência do lugar silenciado, possibilitando que ali se
efetive a multiplicidade do dizer, graduada referencialmente pelos
modos de enunciação.
A teoria que sustentará nossa pesquisa fundamenta-se nos estudos
sobre Enunciação e materialidade linguística. Nesse sentido, para o
desenvolvimento deste texto, partimos do pressuposto segundo o qual
é na relação entre a dimensão material e a dimensão enunciativa que
se realiza o funcionamento linguístico. Sendo assim, como exigência
do caminho teórico selecionado para sustentar nossa análise,
afirmamos que é por meio de como escolhemos abordar o fato
gramatical que podemos ou não realizar uma sintaxe de bases
enunciativas.
A exemplo do que dissemos em Dalmaschio (2008), as condições
que sustentam o fato gramatical são, no mínimo, três e caracterizam-se
de forma diversa, de modo a direcionar o foco de análise para uma ou
outra vertente de língua, podendo, algumas vezes, agirem juntas
dentro de uma mesma orientação de gramática. Essas condições foram
nomeadas por Dias (2007a) como distributivas, atributivas e
operativas. Neste texto, olharemos, a princípio, cada uma delas, a fim
de começarmos a esboçar um perfil de como a transitividade verbal se
manifesta
na
língua,
segundo
nossa
fundamentação
sintático/semântica. Logo em seguida, e pelas vias das condições
atributivas e operativas da reflexão gramatical, trataremos de duas
formulações específicas: a) do que para nós se configura como “lugar
sintático”, tomando por base a teoria das posições, desenvolvida por
Jean-Claude Milner (1989) e; b) de como os estudos da
Macrossintaxe, alvo das pesquisas de Berrendonner (1990, 2002),
podem ser associados ao que estamos nomeando sintaxe de bases
enunciativas. Por fim, lançaremos um olhar sobre o lugar sintático de
objeto pelo viés da Semântica da Enunciação. Para isso, discutiremos
como ocorre a projeção desse lugar, em que medida as predicações
centradas e dirigidas e os modos de enunciação (DIAS, 2006)
participam da ocupação (e da não-ocupação) do lugar de objeto e que
164
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
efeitos de sentido a presença do silêncio sintático configura nesse
processo de predicação.
2. Condições distributivas e atributivas do fato gramatical
Ao propor a existência das condições distributivas, Dias (2007a) se
baseia no fato de que há gramáticas que fazem análise sintática
elegendo como alvo de olhar a distribuição dos itens lexicais na
sentença e a interdependência que esses itens estabelecem entre si e/ou
com as cenas do mundo. São as gramáticas de base reccional, cujo
foco de discussão centra-se no estudo dos mecanismos de ligação
sentencial. Trata-se, portanto, da análise das unidades a partir do
processo de articulação dos elementos na sentença. Sob essas
condições, o sujeito e o objeto, por exemplo, “adquirirem o estatuto de
seres (pela confluência entre o pensamento e a realidade) ou de termos
(pela distribuição das unidades na estrutura).”1 (DIAS, 2007a, p.86).
Essa reflexão nos faz perceber que, levar em conta apenas as
condições distributivas do fato gramatical significa produzir um
estreitamento da noção de língua cujas regras são constituídas apenas
organicamente ou apenas levando em conta a organização semântica
do mundo extralinguístico.
A segunda condição de abordagem do fato gramatical, proposta por
Dias (2007a), é a atributiva. A passagem das condições distributivas
para as atributivas pode ser considerada, segundo o autor, o ponto
central para o desenvolvimento da sintaxe, uma vez que estas prevêem
a existência não mais de termos ou de seres na configuração da cadeia
e sim de lugares sintáticos.
Essa noção de lugares-suporte equivale àquela proposta pela teoria
gerativa que se refere a essas projeções sintáticas como posição. Nas
palavras de Silva (1996, p.19) “...se se insere um verbo transitivo
como encontrar na estrutura, sabe-se que na Estrutura-P, por conta do
léxico, ele deve ter uma posição de objeto para a inserção lexical do
complemento interno deste verbo.” A diferença é que, para os
gerativistas, o interesse no estabelecimento dessas posições na
estrutura sintática da sentença se deve à necessidade de compreender a
linguagem como uma “faculdade humana, um sistema biologicamente
determinado, organizado de maneira precisa, localizado em alguma
parte do cérebro humano.” (SILVA, 1996, p.17). Decorre desse fato o
interesse da gramática gerativa em buscar estabelecer quais são os
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
165
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
meios utilizados pelo cérebro humano para produzir o que se chama
linguagem. O investimento teórico que realizam para esse fim
encontra sustentação no pressuposto de que
a faculdade da linguagem se encaixa dentro da arquitetura
maior da mente/cérebro. Ela interage com outros sistemas, que
impõem condições que a linguagem deve satisfazer se for para
ser de todo usável. Estas poderiam ser pensadas como
‘condições de legibilidade’, no sentido que outros sistemas
precisam ser capazes de ‘ler’ as expressões da língua e delas
fazer uso para o pensamento e ação. (CHOMSKY, 1997, p.57).
Sendo assim, a postura assumida pelo gerativismo em relação ao
que nomeamos aqui como silêncio sintático seria a de ignorá-lo, uma
vez que para a teoria gerativa não interessa vislumbrar a ocupação
virtual dessa posição, desse lugar sintático, basta marcá-lo como
categoria vazia. As análises gerativistas têm tratado os casos de
objetos nulos por meio de perspectivas diversas. Mas, em sua maioria,
os estudos realizados sobre esse assunto, como por exemplo os
trabalhos de Rizzi (1994) e Raposo (1992), caracterizam os objetos
nulos como categorias vazias. Na verdade, as condições atributivas
bastam aos gerativistas para o estudo que a teoria adotada por esses
pesquisadores estabelece. Trata-se de um estudo posicional em que os
lugares são estudados a partir de seus preenchimentos ou de seus nãopreenchimentos na cadeia que se estabelece na sentença.
Algumas gramáticas de perfil tradicional como a de Bechara
(1999)2 e aquelas de concepção pragmática também concebem o fato
gramatical sob a ótica das condições atributivas. Revisando Bechara
(1999, p.416), Dias (2007a, p.86) afirma em seu trabalho que “o signo
verbal de natureza substantiva que ocupa o lugar sintático de objeto é,
na verdade, um representante do lugar-argumento”3 e, retomando as
ideias de Borba (1996, p.21) diz que “posição paralela toma a linha da
gramática funcionalista: os actantes são itens lexicais que preenchem
os argumentos.” (DIAS, 2007a, p.86). Por essa concepção,
percebemos que é possível atribuir-se função sintática sem que ela
esteja ligada a ser ou a termo, como proposto nas condições
distributivas.
166
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
3. Ocupação dos lugares sintáticos – foco de análise das condições
operativas
A terceira e última condição de estudo do fato gramatical,
conforme pensado em Dias (2007a), corresponde ao que o autor
chamou de condição operativa. Essas condições, além de preverem a
existência dos lugares sintáticos, debruçam-se sobre a busca das
exigências de ocupação de tais lugares, aceitando, inclusive, a
possibilidade de que essa ocupação não se efetive e que isso não traga
nenhum prejuízo à produção de sentido do enunciado.
Os perfis de gramática que não incluem as condições atributivas
em sua concepção, consequentemente, não admitem também as
operativas, uma vez que não propõem a existência de lugares
sintáticos na organização da sentença.
As condições operativas nos levam a entender que o sentido de um
enunciado não tem relação só com a sua estrutura, mas também com a
história de sentidos do próprio enunciado, com outros sentidos de
outros enunciados, com a relação dos enunciados com as coisas sobre
as quais ele fala, etc. (GUIMARÃES, 2006, p.120). Ou seja, o sentido
está no potencial das enunciações nas quais essa sentença foi
proferida.
Tomando por base um aparato teórico que, observados os devidos
distanciamentos, muito se aproxima dessa forma de análise linguística,
traremos, agora, para nosso trabalho, dois fundamentos que pensamos
ser importantes para os objetivos que almejamos alcançar e que, em
nossa concepção, se ligam ao que Dias (2007a) caracteriza como
condições atributivas e operativas do fato gramatical, de modo a
tentarmos esclarecer como essas condições se efetivam em um estudo
linguístico.
4. Site e place – a teoria das posições
Um aspecto que nos parece fundamental elucidar é o que até agora
nomeamos lugar sintático. Para delimitarmos esse conceito
tomaremos por base as definições trazidas por Milner (1989) acerca da
concepção de place e site. Em suas discussões, o autor propõe que
place deve ser estudado sintaticamente como um conceito relativo à
localização de um item lexical na sentença, apresentando, portanto,
uma noção mais concreta, dada a prerrogativa de poder ser visualizado
organicamente. Isso o faria ser percebido como um lugar não
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
167
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
qualificado. Site, por sua vez, corresponde a um lugar qualificado. Seu
conceito é mais abstrato e precisa ser estudado tendo em vista um
arcabouço teórico que o caracterize. Site é o que nomeamos lugar
sintático.
Essa diferenciação nos impulsiona a alguns questionamentos
fundamentais para o desenvolvimento dos objetivos propostos por
esse trabalho, como por exemplo: se o lugar sintático com o qual nos
propomos a trabalhar é um lugar qualificado – e representa o que
Milner chama de site – como se dá a qualificação do lugar sintático de
objeto em dado acontecimento enunciativo? Dito de outra forma, se o
lugar sintático de objeto, tomado como place, corresponde a um lugar
projetado pelo verbo e, normalmente, localizado nas sentenças da
Língua Portuguesa depois das formas verbais, que elementos
orgânicos e enunciativos permitem estudá-lo sob o ponto de vista do
site, ou seja, que aspectos influenciam a ocupação e/ou a não
ocupação desse lugar na sentença?
Para exemplificar nossa análise, tomemos os exemplos (01) e (02).
(01)
Imagem 1: Propaganda Havaianas, obtida por meio do Google4
(02) Os homens preferem mulheres e sandálias com curvas.
Em (02), o sintagma “mulheres e sandálias” ocupa o place objeto e
está no posicionamento regular da Língua Portuguesa, ou seja, situa-se
organicamente após o verbo preferir. Já em (01) houve uma mudança
do lugar não qualificado, ou seja, um deslocamento da formação
nominal para o início da sentença. Para nossa pesquisa é esse um dos
pontos que atraem a atenção: ao observarmos os dois enunciados, é
168
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
possível dizer que, mesmo com localizações distintas, a expressão
“mulheres e sandálias” continua exercendo a função de objeto.
Decorre desse fato acreditarmos que o deslocamento foi realizado em
função do site. Na verdade, trabalhamos com a perspectiva de que é
essa ação de atrair o sintagma para dentro de uma nova localização
sintática que faz com que esse lugar receba o título de qualificado.
Nas palavras de Dias “os lugares sintáticos, por sua vez, não são
relativos aos locais em que os termos estão alojados na sentença, mas
aos lugares que qualificam os termos lexicais para contraírem
funções.” (DIAS, 2009, p.15). O site não precisa, portanto, de um
lugar fixo. E, na perspectiva de estudo que adotamos, pode, inclusive,
não aparecer configurado materialmente na sentença.
Vale ressaltar que, se trabalhássemos apenas com a noção de place,
sentenças como
(03) Alongue.
integralizadoras da cena enunciativa produzida pela propaganda da
UNIMED/BH,
(04)
Imagem 2 - Propaganda Unimed/BH, obtida por meio do Google5
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
deveriam ser estudadas como construções em que o lugar sintático de
objeto não se configura.
Entretanto, no anúncio publicitário, temos claramente a não
ocupação linguística do lugar sintático de objeto como um recurso
fundamental para a funcionalidade do texto. Não há a ocupação
material do lugar sintático projetado pelo verbo alongar, mas isso não
afeta a unidade da sentença, porque há uma “memória de seu lugar
que advém de outros extratos de ocorrência que são constitutivos do
espaço sintático” (Dias, 2007b, p.197). Expliquemos melhor. Se as
sentenças
(05) A vida é curta.
(03) Alongue.
fossem analisadas independente de relação que estabelecem com o
acontecimento enunciativo no qual se inserem, facilmente seria
proposto, por uma análise de perspectivas tradicionais, que o sujeito
da 1ª sentença (05) também ocuparia o lugar sintático de objeto
acionado pelo verbo Alongue na sentença 2 (03). Entretanto,
percebemos que os outros enunciados que compõem o anúncio
funcionam como um domínio referencial que possibilita a entrada de
um novo item lexical, capaz de ocupar o lugar posto em cena pela
predicação de que participa o verbo alongar. Ou seja, quando a
propaganda produz uma linha do tempo cujos enunciados afirmam
que
(06) Aos 8 anos, eu me esticava para pegar frutas no pé.
(07) Aos 36, continuo adorando frutas depois do alongamento.
é acionada a possibilidade de que a formação nominal o corpo
também funcione como um referente capaz de oferecer efeito de
completude a (03) Alongue. É importante dizermos que trabalhamos
com o conceito de formação nominal proposto por Dias (2011).
Segundo o autor, a formação nominal
se constitui em centro de articulação temática. Na medida em
que constituímos um tema, ou um foco de interesse na
170
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
enunciação, estamos trazendo a memória de sentidos que se
agregam aos nomes. As determinações contraídas pelos nomes,
constituindo um grupo ou sintagma nominal, apresentam as
condições de recebimento dos traços de atualidade advindos da
construção temática na sua relação com o mundo
contemporâneo. [...] A constituição desse centro de referência
pode ser captada pela língua em formato concêntrico, tendo um
substantivo na nucleação, de forma a encapsular um conceito
historicamente constituído[...] (DIAS, 2011, p.275).
Retomando a análise da propaganda (04), percebemos que ela
ganha pertinência quando, sem realizar muito esforço, podemos
captar, na memória dos dizeres em que se inscrevem sentenças com o
verbo esticar-se e com o substantivo alongamento, um domínio de
referência que inclui também o substantivo corpo. Portanto, é
esperado que os enunciados (05) e (03) recebam as seguintes
formulações:
(08) A vida é curta. Alongue a vida.
(09) A vida é curta. Alongue o corpo.
Ou ainda
(10) A vida é curta. Alongue o corpo [para alongar] a vida.
A cada vez que a peça publicitária da UNIMED-BH é recebida por
um leitor, o lugar sintático de objeto está em causa, isto é, ganha uma
mobilidade; a mobilidade da oscilação entre ser ocupado pelos itens a
vida e o corpo. O espaço do lugar sintático de objeto é o espaço da
relação entre: uma regularidade, consubstanciada em (08) e marcada
estruturalmente pelo domínio referencial da sentença anterior (A vida
é curta), bem como pelo objetivo da propaganda que é valorizar a
aquisição de um plano de saúde, logo, valorizar a vida e; uma
atualidade, consubstanciada em (09), atualidade essa que só pôde ser
configurada mediante o cruzamento de dizeres historicamente
produzidos em outros acontecimentos enunciativos, que foram
acionados pelas demais sentenças (“Aos 8 anos, eu me esticava para
pegar frutas no pé.” e “Aos 36, continuo adorando frutas depois do
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
171
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
alongamento.”) constitutivas de (04). A enunciação, portanto, é o
acontecimento do dizer no qual uma atualidade cruza com uma
memória (GUIMARÃES, 2002). Em se tratando dos propósitos desta
pesquisa, o lugar sintático de objeto é o palco desse cruzamento. Não
há que se pensar, portanto, em falta de complemento em (03), mesmo
porque a funcionalidade do texto é devida ao fulcro do olhar sobre a
mobilidade da saída e entrada no domínio de referência do lugar
sintático de objeto.
Sendo assim, pensamos que o nível de abstração teórica que Milner
propõe com a noção de site, para nós o mesmo que lugar sintático,
alicerça a análise que realizamos sobre as possibilidades de ocupação
sustentadas pelo acontecimento enunciativo de que participa o verbo
alongar no anúncio publicitário.
5. Macrossintaxe: dois níveis combinatórios em uma relação de
apontamento
Ao lado de todos os pressupostos já explicitados, entendemos ser
importante também apresentar como base teórica de nossas discussões
fundamentos trazidos pelos estudos da macrossintaxe. Sobre esse
assunto, utilizaremos, a princípio, as discussões estabelecidas por
Berrendonner (1990, 2002a e 2002b), por se tratar de um dos
pesquisadores que mais esforços têm empreendido no
desenvolvimento desse conceito.
O autor trabalha com a tese segundo a qual a sintaxe pode ser
analisada sob a ótica da micro e da macrossintaxe. De acordo com sua
proposta, a microssintaxe se caracteriza pelas relações de ligação
estabelecidas na sentença, que assumem a característica de
concatenação e recção. Ligações do tipo concatenação dizem respeito
à posição dos constituintes sentenciais, dito de outra forma, postulam
à hierarquia dos espaços a serem ocupados pelos termos na
organização do enunciado. Já as relações de recção se fundamentam
no processo de determinação que um termo exerce sobre o outro.
Essas relações se configuram, portanto, como sistemas de dependência
regidos pelas especificidades de cada constituinte. Como podemos
notar, os estudos da microssintaxe se realizam em apenas um nível: o
nível da ligação interna constitutiva da sentença.
Por aproximação conceitual, adotamos em nosso trabalho o
conceito de macrossintaxe como um dos balizadores das discussões
172
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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que ora propomos. Esclareçamos melhor de que forma entendemos
que a macrossintaxe se aproxima do que nomeamos como condições
operativas do fato gramatical. Na macrossintaxe, Berrendonner propõe
dois níveis de combinatória, sendo que um dos níveis mantém uma
relação de apontamento em relação ao outro. Em outras palavras,
enquanto a microssintaxe se assenta apenas no nível das ligações
internas, o que fazem, por exemplo, as condições atributivas e
distributivas, a macrossintaxe ganha forma quando trabalhamos com
dois níveis distintos e complementares: o nível do texto, que diz
respeito aos mecanismos sentenciais e o nível dos implícitos, que se
fundamenta na memória discursiva, cujos extratos de existência não
estão marcados apenas nas formas.
Ou seja, a macrossintaxe leva em consideração a necessidade de se
estabelecer uma sintaxe mais complexa, que trabalhe com um
elemento marcado na horizontalidade da sentença, seria o que
Berrendonner denomina liage, ou seja ligação, como pressupõem os
estudos reccionais; mas que garanta, ao mesmo tempo, a presença de
outras marcas situadas no nível da verticalidade, no nível da memória,
é o que o autor descreve como pointage, ou apontamento.
Assim, Berrendonner (1990) propõe um esquema do que se
configura como macrossintaxe em sua proposta de trabalho, conforme
demonstrado na Imagem 3.
Imagem 3: Esquema da morfossintaxe, Berrendonner (1990).
Como explicação do esquema proposto acima, podemos dizer que
a dimensão da memória discursiva (M) é evocada por operações de
apontamento, realizadas por elementos internos da sentença - Clause
(C), que visam estabilizar, dar regularidade às informações de (M).
Dessa forma, (M) existe em um estado de virtualidade que, ao ser
convocada pelo fio do discurso, passa por um processo de atualização
e, de maneira equivalente, é de novo posta em cena para ser acionada
em enunciados futuros.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
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Passemos a exemplificar mais claramente os pressupostos
suscitados no parágrafo anterior, por meio da utilização do exemplo
(11).
(11) Ilustração do esquema da Morfossintaxe proposto por
Berrendonner (1990).
(12) Em caso de
desespero aponte uma
arma para o ouvido.
(13)
(14) Em caso de desespero
não aponte uma arma para o
ouvido, aponte o telefone.
6
O que podemos observar em (11) é que a sentença (13) – Em caso
de desespero, aponte para o ouvido. –, marcada por lacunas, suscitou
a necessidade de o acontecimento enunciativo lidar com operações de
apontamento, que estão no nível da memória discursiva (M1), aqui
representada pelo enunciado (12). Ou seja, há uma determinação de
ordem sócio-histórica possibilitando uma virtual ocupação do lugar
sintático de objeto como arma, projetado pelo verbo apontar.
Entretanto, a relação que (C1), no caso do exemplo em análise (13),
mantém com o apontamento (M1), ou (12) - Em caso de desespero
aponte uma arma para o ouvido. -, gera um novo estado de memória
(M1 + 1), possibilitando, dessa forma, que o enunciado ganhe em
atualidade e em ampliação referencial, consubstanciada em (14) - Em
174
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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caso de desespero não aponte uma arma para o ouvido, aponte o
telefone.
O que se propõe, portanto, é que, ao se produzir uma sentença, a
memória se atualiza, ou seja, para além dela lhes são agregados outros
recortes de sentido postos em acontecimento pela enunciação. Diante
disso, é possível afirmarmos que dois enunciados apresentam
indiretamente um caráter relacional por intermédio de um
apontamento de (M). Assim, as sentenças dialogam com (M) e, ao
realizar esse diálogo se configuram duas direções: a direção de
retomar (M) e a direção de devolvê-la diferente para uma virtualidade
passível de nova atualização.
Para Dias (2009), tomando por base as ideias de Berrendonner
(2002a), o fio do discurso é marcado por incompletudes, não ditos,
discrepâncias diversas, sem que isso se configure como uma ausência
configurada como falta, como defeito, justamente porque ele se
constitui como um diálogo com (M) por meio de relações de
apontamento.
Isso descaracteriza a noção do linguístico como uma construção
compacta de elementos sentenciais e o coloca no patamar de algo
afetado pela dispersão própria da força de atualidade que emerge do
acontecimento enunciativo.
Nesse sentido, pretendemos trabalhar em nossa pesquisa com a
perspectiva de que não é suficiente considerarmos apenas as relações
de ligação internas na sentença, se quisermos nos pautar em um estudo
sintático de bases enunciativas. Faz-se necessário, antes, levarmos em
consideração os elementos marcados pelos mecanismos sentenciais,
associando-os aos apontamentos inscritos na memória do dizer.
6. O lugar sintático de objeto pelo viés da semântica da
enunciação
Orientados pelas reflexões que traçamos até aqui, passemos a
descrever como a Semântica da Enunciação concebe o fato gramatical
transitividade verbal e de que forma é possível perceber a
manifestação desse fenômeno linguístico como sendo constituído,
concomitantemente, por elementos sintáticos e elementos semânticos
que agem em conjunto para sua integralização. Trata-se, portanto, de
pensarmos a linguagem como sendo produzida, na perspectiva de Dias
(2007b), por meio da relação entre a dimensão material e a dimensão
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175
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
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simbólica.
Na tentativa de entendermos melhor essa relação que Dias propõe
entre a dimensão material e a dimensão simbólica talvez possamos
associá-la ao que Foucault (1986, p.124) utiliza para descrever o
enunciado. Para ele, “o enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e
não oculto.” Ou seja, coexistem duas instâncias na sua constituição. E,
sobre esse cenário da coexistência enunciativa se destacam...as
relações gramaticais entre as frases, as relações lógicas entre as
proposições, as relações metalinguísticas entre uma linguagemobjeto e aquela que lhe define as regras, as relações retóricas
entre grupos (ou elementos) de frases. (FOUCAULT, 1986,
p.112).
Esse nível seria o que Dias estabelece como dimensão material do
linguístico, ou seja, aquela não oculta, passível de descrições e
marcada organicamente na sentença. No entanto, essas relações,
propostas por Foucault,
só podem existir e só são suscetíveis de análise na medida em
que as frases tenham sido ‘enunciadas’; em outros termos, na
medida em que se desenrolem em um campo enunciativo que
permita que elas se sucedam, se ordenem, coexistam e
desempenhem um papel umas em relação às outras. O
enunciado, longe de ser o princípio de individualização dos
conjuntos significantes (o ‘átomo’ significativo, o mínimo a
partir do qual existe sentido), é o que situa essas unidades
significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se
acumulam. (FOUCAULT, 1986, p.112).
Ao trazer a ideia de campo enunciativo, estaria sendo posta em
cena a dimensão simbólica do dizer. Afinal, mesmo sem força de
visibilidade descritiva, o campo enunciativo é o responsável por
atribuir mobilidade de significação à materialidade linguística, a fim
de que ela possa marcar um domínio referencial em determinado
tempo e espaço. Ou seja, o simbólico e o material se requerem
concomitantemente na constituição do linguístico, a fim de que juntos
produzam o nexo das regularidades que regem sua dispersão.
176
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Dessa forma, Dias (2007b) afirma que essa “demanda de
saturação” entre as duas dimensões apresentadas suscita que os
estudos sintáticos fundamentem seu trabalho em torno da relação de
dois planos: o plano da organicidade e o plano da enunciação. Nesse
sentido, as categorias enunciativas são constitutivas da linguagem e,
portanto, pertinentes, também, à constituição do fato gramatical. Isso
impulsiona a gramática a reconhecê-las, e não apagar sua pertinência,
tampouco tratá-las como fatores externos à estruturação sintática do
enunciado com o qual se relacionam. Sobre esse assunto Dias (2007b)
argumenta em favor da tese de que
o fato lingüístico é afetado por uma tensão entre a constituição
do arranjo sintático (no plano da organicidade), e a verticalidade
advinda de uma demanda de saturação (no plano da
enunciação), produzindo como resultado uma injunção à
unidade desse arranjo. É por essa verticalidade que são
‘veiculados’ os extratos de ocorrência que afetam a articulação.
A constituição do espaço sintático seria constitutivamente
permeada pelo semântico, portanto. (DIAS, 2007b, p.198).
Percebemos, então, que não podemos negar a aproximação entre os
pressupostos de Milner (1989), tampouco entre a perspectiva de
Berrendonner (1990, 2002a, 2002b) e Dias (2007b). Afinal, parecenos possível efetivarmos uma análise da transitividade verbal na qual
seja empreendida uma marca de horizontalidade, que engloba o place,
o fio do discurso, o plano da organicidade; e uma força da
verticalidade que contenha o site, o apontamento à memória, o plano
da enunciação.
Sendo assim, se temos como proposta de trabalho constituir uma
interface entre o enunciado e a sentença (DIAS, 2013), não podemos
abrir mão de discutir mais efetivamente de que forma entendemos a
organização dos lugares sentenciais, bem como qual o papel das
condições enunciativas na ocupação do que estamos nomeando lugar
sintático objeto verbal. Agindo assim, estaremos produzindo “o espaço
do entremeio que buscamos para um conhecimento mais apurado do
enunciado, a partir de uma visão dinâmica da sentença.” (DIAS, 2013,
p.231). Trabalhando com um olhar voltado para a transitividade por
esse viés, temos a possibilidade de ampliar as discussões sobre o
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assunto e incluir elementos na análise desse fato gramatical.
Tentaremos agora elucidar alguns pontos acerca de como
entendemos a constituição do lugar sintático objeto verbal. Logo em
seguida, passaremos, então, a analisar os dois tipos de predicação
(centrada e dirigida) e os dois modos de enunciação (específico e
genérico) que se configuram como pontos importantes para este
trabalho.
6.1 Discussões sobre a projeção do lugar sintático objeto verbal
Por meio de todo aparato teórico que tentamos descrever até aqui,
caminhamos na tentativa de propor uma nova perspectiva para a
concepção da transitividade. Para nós, transitividade verbal representa
a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos verbos,
especificamente os da língua portuguesa, cujas condições de ocupação
(e de não ocupação) são determinadas pelo acontecimento
enunciativo, que se fundamenta nos domínios referenciais sóciohistóricos do dizer.
Comecemos a detalhar a afirmação anterior, a qual pretende situar
conceitualmente o que estamos delimitando até então como
transitividade verbal. Ao dizermos que “transitividade verbal
representa a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos verbos da
língua portuguesa”, precisamos reafirmar o que estamos trazendo
como definição de “lugares sintáticos” e ainda, apontar em que
evidências nos baseamos para afirmar que cabe aos verbos da língua
portuguesa (a todos, por assim dizer) o papel de projeção desses
lugares.
Conforme apresentado, apoiados na perspectiva de Milner (1989),
segundo a qual lugar sintático é um lugar qualificado na sentença. A
esse lugar o autor nomeou site. A sintaxe é, portanto, uma articulação
entre os lugares qualificados da sentença. A respeito desse fato, Dias
(2013, p.231) diz que “consideramos o lugar sintático como ‘lugar
qualificado’, uma vez que ele se define, na Língua Portuguesa, com
relativa independência em relação à localização na sentença.”
Por essa via, Dias (2013) afirma que não há como pensar a
dimensão do materialmente articulável, aquela que se alicerça nas
articulações entre as unidades formais de ordem sintática, sem que se
discuta o conceito de materialidade qualificada, ou seja, de lugar
sintático.
178
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Sendo assim, no caso específico desta pesquisa, qual papel cabe ao
verbo na constituição do lugar sintático objeto verbal? Defendemos
que o papel assumido pelo verbo é o de projetar o lugar sintático de
objeto, cuja ocupação passa a ser regulada pelas condições operativas,
não estando o objeto, portanto, circunscrito a uma necessidade de
complementação do sentido desse verbo. Assim, o verbo reveste-se da
capacidade de projeção do lugar sintático objeto verbal e as condições
de produção, que constituem o acontecimento enunciativo, orientam o
enunciado de que esse verbo participa para configurar-se em torno de
uma predicação centrada ou dirigida.
Assumida essa perspectiva, outro questionamento se torna passível
de consideração: todos os verbos da Língua Portuguesa apresentam
potencial de projeção desse lugar sintático? E quanto àqueles cujas
ocorrências com o lugar sintático de objeto ocupado não se efetivam
em extratos captáveis pela língua em uso? Como comprovar a
existência desse lugar? Tentativas de respostas a essas relevantes
questões serão desenvolvidas a partir de agora.
Se levarmos em consideração, por exemplo, os verbos morrer e
falecer, cujos efeitos de sentido orientam para um mesmo domínio
referencial, perceberemos que existem vários enunciados, produzidos
com a participação dessas duas formas verbais, em que não há a
ocupação de lugar sintático de objeto. Isso pode ser notado facilmente
em diversos acontecimentos enunciativos. Apenas para exemplificar
nossa afirmação selecionamos os exemplos que seguem:
(15) Membro da equipe técnica de 'Batman' morre nas
filmagens7
(16) A Morte no hospital de Aveiro vai ser investigada. A
Inspeção Geral de Saúde abriu um inquérito ao caso do idoso
que morreu em Aveiro. O homem faleceu após a queda de uma
maca no corredor do Hospital da cidade.8
Analisando agora outro tipo de exemplo, concluímos que em
relação ao verbo morrer encontramos sentenças em que ele se faz
presente, também, orientado para um objeto. Como, por exemplo em:
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
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(17) Cristo não morreu uma morte de mártir; mas Ele provou a
morte na sua ligação penal com pecado.9
Parece oportuno, então, considerarmos a capacidade de projeção do
lugar sintático de objeto no que se refere à forma verbal morrer.
É tarefa mais difícil, entretanto, encontrarmos ocorrências em que
o verbo falecer apresente-se como integrante de uma predicação cujo
lugar sintático de objeto esteja lexicamente materializado.
Acreditamos que esse fato encontre sustentação na menor
produtividade enunciativa que esse verbo apresenta. Dito de outra
forma, o plano do enunciável é o que regula a mobilidade de efeitos de
sentidos das formas verbais. Portanto, quanto mais extratos de
ocorrência um verbo apresentar, maior será a possibilidade desse
verbo participar de predicações que apresentam os lugares de objetos
ocupados e/ou não-ocupados. Logo, o verbo morrer, por apresentar-se
mais produtivo enunciativamente, torna-se capaz de integrar os dois
tipos de predicações, ao passo que falecer – forma verbal de baixa
regularidade enunciativa – constitui-se como participante apenas de
predicações em que o lugar sintático de objeto não se encontra
ocupado.
Outra forma verbal, não citada anteriormente, mas que apresenta
correspondência de sentido com os verbos morrer e falecer, é perecer.
Esse verbo reafirma a análise realizada, afinal, por apresentar um
caráter de erudição maior do que falecer, perecer demonstra uma
capacidade ainda menor de participar de uma predicação cujo lugar
sintático de objeto seja ocupado. Disso resulta a facilidade de
encontramos predicações centradas com esse verbo, como na charge:
Imagem 4: Luto nacional – a ética pereceu 10
180
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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Nesse sentido, acreditamos que a ocupação do lugar sintático de
objeto se processa ancorada na produtividade enunciativa apresentada
pelas formas verbais. Na medida em que as ocorrências historicamente
produzidas com determinado verbo se acham escassas, há um
favorecimento para que esse verbo participe apenas de um tipo de
predicação.
Como tentamos descrever, ao demonstrar exemplos em que a
mesma forma verbal pode ocorrer com ou sem a ocupação do lugar
sintático de objeto, sem que isso cause prejuízo à unidade sentencial,
pensamos estar evidenciando que a projeção desse lugar sintático é
uma atribuição do verbo, ainda que o objeto não se lexicalize na
materialidade da sentença. Entretanto, outro fato gramatical já
bastante analisado pelos estudos linguísticos, parece, a nosso ver,
reforçar a tese de projeção, pelo verbo, do lugar sintático de objeto.
Estamos nos referindo ao fenômeno da causatividade.
Sem nos aprofundarmos muito nessa conceituação, estamos
tomando causatividade de acordo com os pressupostos defendidos por
Bittencourt (2001), para quem
[...] a causatividade é um processo que compreende: a) dois
eventos (ou uma situação e um evento) – causador e causado –
que podem ser expressos separadamente em duas orações
distintas, ou, num evento único, superposto, ou não, a uma outra
relação causativa; b) dois protagonistas, Causador e Causado,
que, qualificados como [± animado], apresentam um grau
variável de participação da ação, processo ou acontecimento.
(BITTENCOURT, 2001, p.172-173). É o caso, por exemplo,
dos enunciados a seguir:
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(19)
Imagem 5: Capa do livro de Graça Ramos
(20)
Cuida bem de mim
Então misture tudo
Dentro de nós
Porque ninguém vai dormir
Nosso sonho...11
(21) O professor sumiu minha prova.12
Os exemplos (19), (20) e (21) representam sentenças causativas
sintéticas, uma vez que, ao contrário das causativas analíticas, não
explicitam, como elemento de articulação, um verbo de natureza
causativa
como
fazer/mandar/causar,
por
exemplo.
(BITTENCOURT, 2001). A organização sintática se efetiva por meio
de um verbo lexical, nos casos em análise voar, dormir e sumir,
respectivamente. Assim,
(19) Vamos voar as trancinhas? (causativa sintética)
tem como contrapartida a seguinte estrutura analítica:
(22) Vamos fazer voar as trancinhas?
Se retomarmos a definição trazida por Bittencourt (2001) de que a
causatividade é um processo que compreende dois eventos,
perceberemos que nas causativas sintéticas há uma condensação
desses eventos realizada pelo mesmo verbo, cujo desdobramento
poderia ser feito da seguinte forma:
182
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(23)
Evento 1: O professor fez alguma coisa para minha provar
sumir.
Evento 2: Minha prova sumiu.
Evento 1 + Evento 2: O professor sumiu minha prova.
O que vemos acontecer em (23) é que o verbo causativizado
desencadeia um processo de agregação das duas cenas. Para isso, a
sentença se estrutura sintaticamente de modo a dar visibilidade e
ocupação aos lugares sintáticos de sujeito e objeto, principalmente,
para efeito do estudo que ora propomos, ao lugar sintático de objeto.
Parece-nos que exemplos como esses demonstram que mesmo
aqueles verbos, cujos estudos tradicionais denominam intransitivos,
abrem-se para participar de predicações em que a presença de um item
lexical ocupando o lugar sintático de objeto se faz necessária.
É importante que se diga que não estamos mais nos referindo a
predicações cujos objetos são cognatos, como seria o caso, por
exemplo de:
(24) João voou sem ter escolta, nenhuma ave o seguiu. Voou
um voo13 sem volta. João partiu e se partiu!14
Tampouco nos pautamos naquela predicação que pressupõe a
presença de objetos internos15, ou seja, aquela cujo campo semântico
do objeto equivalente ao do verbo (MACAMBIRA, 1987), como em
(25), por exemplo:
(25) E ela dormiu o sono dos justos...
O que vemos acontecer nas orações causativas é uma organização
sintática capaz de mobiliar-se para a produção de determinado efeito
de sentido. Para isso, os verbos ditos intransitivos, monoargumentais,
orientam o que era instância de possibilidade (ocupação do lugar
sintático de objeto por eles projetados) para instância de realização.
Decorre desse fato assumirmos a perspectiva de que
enquanto unidades formais, os lugares sintáticos de sujeito e de
objeto se qualificam na medida em que funcionam como portos
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
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de passagem na rota de circulação de sentidos, de discursos para
o enunciado, e deste para os espaços futuros da discursividade,
que por sua vez serão bases para novos enunciados. (DIAS,
2013, p.236).
Sendo assim, entendemos que ao verbo cabe projetar o lugar
sintático de objeto e ao acontecimento enunciativo regular a ocupação
(ou não ocupação) desse lugar por meio de fatores que se configuram
historicamente a partir de uma tensão entre domínios de memória e
atualidade de uso.
6.2 Predicações centrada x dirigida e os modos de enunciação
Uma vez apresentada a explicação da primeira parte do conceito de
transitividade que estamos adotando neste trabalho - transitividade
verbal representa a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos
verbos da língua portuguesa - passemos agora a discutir a segunda
parte desse conceito, cuja fundamentação se baseia no fato de que as
condições de ocupação (e de não ocupação) são determinadas pelo
acontecimento enunciativo, que se fundamenta nos domínios
referenciais sócio-históricos do dizer.
Levando em conta todas as considerações já produzidas até aqui,
acreditamos, então, que a transitividade deve ser analisada a partir da
ótica da predicação que se estabelece em determinado acontecimento
enunciativo. O objeto é, portanto, mais um elemento que integra essa
predicação e possibilita que ela apresente efeito de completude.
Sendo assim, trabalhamos com a hipótese sugerida por Dias (2006)
de que há dois tipos de predicação: a predicação dirigida, que se
realiza quando seu efeito de completude é orientado para um objeto
marcado organicamente na sentença e a predicação centrada que
ocorre quando apresenta uma significação orientada para o próprio
verbo. Dessa forma:
na medida em que nos afastamos da necessidade de classificar
os verbos em transitivos ou intransitivos, segundo a completude
ou incompletude de significação a ele inerente, podemos
ampliar o campo de abordagem da transitividade, recorrendo às
condições enunciativas de ocupação do lugar sintático de
objeto, segundo o grau de amplitude dos domínios de
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
referências que se instalam no plano do enunciável. E isso é
determinante para que tenhamos a possibilidade de predicação
centrada e predicação dirigida. (DIAS, 2006, p.65).
Ao utilizarmos essa hipótese, estabelecemos, então, a possibilidade
de haver predicados cuja presença do objeto se faz necessária e
predicados em que essa presença é dispensável, uma vez que o efeito
de sentido se configura mesmo sem a participação desse termo.
Vejamos o exemplo (26), para ilustrarmos esses dois tipos de
predicação.
(26)
Mamãe morreu
Dois amigos se encontram. Um deles, único herdeiro da mãe,
está cabisbaixo. O primeiro pergunta:
Interlocutor 1: — O que aconteceu?
Interlocutor 2: — Minha mãe morreu. Fiquei muito triste.
Interlocutor 1: — Que pena! Meus pêsames. Ela sofreu muito
antes de morrer?
Interlocutor 2: — Muito. Infelizmente: sofreu um assalto que
lhe tirou grande parte do dinheiro, um sequestro que lhe levou
um apartamento e dois terrenos, um golpe de meu pai que a
deixou sem carro...
Tomando por base as reflexões de Dias (2006), é o caso de
afirmamos que, na piada utilizada como exemplo, o verbo sofrer
integra duas predicações: uma dirigida, aquela proferida pelo
interlocutor 2, e uma centrada, aquela dita pelo interlocutor 1. É
importante dizer que a participação do verbo sofrer, nesses dois tipos
de predicação, só é possível devido à memória de regularidades que
esse verbo traz dos trajetos enunciativos por ele percorridos, conforme
já mencionado neste trabalho, ao discutirmos como se realiza a
projeção do lugar sintático de objeto. Logo, sofrer projeta o lugar
sintático de objeto que pode ou não ser ocupado no texto anterior
porque outros extratos de ocorrência desse mesmo verbo permitem
(ou não) a ocupação desse lugar.
É importante ressaltar, ainda, que o exemplo (26) se constitui em
torno da característica de humor. Assim, a não ocupação do lugar
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
sintático de objeto projetado pelo verbo sofrer, na fala do interlocutor
1, seguida da ocupação desse mesmo lugar, na fala do interlocutor 2,
produz um efeito de sentido que (re)formula a constituição referencial
gerada pela ausência/presença de elementos materiais passíveis de
ocupar o lugar projetado. O interessante é percebermos que, silenciar a
ocupação do lugar sintático de objeto, na fala do interlocutor 1, não se
vincula, portanto, a uma exigência verbal. Não se trata de um aspecto
de completude do próprio verbo. Refere-se, antes, a um traço de
memória discursiva que dá ao verbo sofrer a possibilidade de efetivarse, em enunciações cuja temática é a morte, sem a presença orgânica
de itens lexicais no lugar sintático de objeto por ele projetado. Dito de
outra forma, o verbo sofrer guarda trajetos de sentido que, em função
da regularidade em que ocorrem, institucionalizam a participação
desse verbo em predicações centradas. Dessa forma, por se tratar de
uma regularidade e não de uma regra, ao se quebrar essa
institucionalização, com a ocupação do lugar sintático de objeto, na
fala do interlocutor 2, por meio da delimitação da predicação dirigida
organizada em torno daquele domínio referencial, produz-se, nesse
enunciado, um efeito humorístico.
O que vemos na proposta de Dias é que predicações dirigidas se
relacionam, portanto, a modos de enunciação mais especificadores em
que o lugar sintático de objeto é delimitado por um campo de
referência específico e recorta, dessa forma, um domínio de sentido
marcado por uma pontualidade referencial. Por outro lado,
predicações centradas se ligam, com maior evidência, a modos de
enunciação genéricos, por serem as bases sobre as quais se
configuram predicações cujos campos de referência do lugar sintático
de objeto são generalizadores. No caso das predicações centradas, os
lugares de objeto mostram-se abertos para abrigarem ocorrências
referenciais diversas. Dessa forma, o objeto apresenta características
generalizantes, que não precisam ser marcadas organicamente nas
sentenças. Essa generalização ganha pertinência no entrelaçamento da
atualidade da enunciação com uma memória de ordem histórica,
representada pelas recorrências das enunciações de que os verbos
participam.
Partimos, pois, do princípio de que há estreita relação entre o modo
de enunciação e a lexicalização (predicação dirigida) ou a nãolexicalização (predicação centrada) do lugar sintático de objeto.
186
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
6.3 A presença do silêncio sintático no processo de predicação
O lugar teórico de onde analisamos o fenômeno transitividade
verbal, conforme definição apresentada nos dois itens anteriores, nos
possibilitou delimitar algumas questões distintas do tratamento que
esse fato gramatical vem recebendo ao longo dos estudos linguísticos.
Uma delas diz respeito à formulação do que nomeamos, em
Dalmaschio (2008), como silêncio sintático.
O que apresentamos como definição de silêncio sintático teve por
base o fato de considerarmos que a língua é permeada por silêncios
das mais diversas ordens, por não-ditos que se inscrevem no próprio
dizer e se manifestam como efeitos de sentido em determinados
acontecimentos enunciativos.
Nessa perspectiva, e inspirados no que Orlandi (1995) define como
silêncio constitutivo, ousamos empreender um trabalho teórico de
associação semântico-sintática de modo a afirmarmos que os estudos
linguísticos precisam considerar que, também na organicidade da
sentença, às vezes, “para dizer é preciso não-dizer.” (ORLANDI,
1995, p.24).
Sendo assim, passamos a considerar que só a projeção do lugar
sintático do objeto verbal, vinculada a dado acontecimento
enunciativo já pode ser percebida como índice de completude.
Diferente da perspectiva tradicional, para nós, não é necessário um
termo ocupante do lugar sintático de objeto, para que haja completude
semântica.
Voltemos ao exemplo (26). Na perspectiva que assumimos, o verbo
sofrer, projeta o lugar sintático de objeto nas duas sentenças, mas, no
exemplo em questão, a ocupação desse lugar só se efetiva na fala do
interlocutor 2, que direciona a predicação de que o verbo participa
para um domínio de referência mais delimitado e pontual. Entretanto,
o silêncio sintático, estabelecido na fala do interlocutor 1, ou a falta de
um elemento léxico não afeta a unidade da sentença, porque há uma
memória de seu lugar que advém de outros extratos de ocorrência que
são constitutivos do espaço sintático. Tal é a força da regularidade
referencial apresentada pela memória de utilização desse verbo que,
ao serem recortados os extratos para ocupação do lugar sintático de
objeto na fala de 2 (...um assalto..., ...um sequestro... e ...um golpe...) o
acontecimento enunciativo se estabelece como texto humorístico, uma
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187
CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
vez que a ocupação na fala de 2 realiza um deslocamento da ocupação
silenciosamente marcada na fala de 1. Vale ressaltar que só podemos
trabalhar a noção de deslocamento em função da repetição, do hábito.
Afinal, acreditamos que é “recorrendo ao já-dito que o sujeito
ressignifica. E se significa” (ORLANDI, 1995, p.90). Trata-se de um
intervalo entre uma memória de recorrências – no caso em análise,
recorrências de silêncios sintáticos em predicações de que esse verbo
participa, orientadas para a ideia de sofrimentos físicos propiciados
por uma doença – e uma atualidade de uso – que lida com o verbo
sofrer como algo relacionado à perda de bens materiais. Esse seria,
então, o espaço do equívoco, espaço esse em que “os sentidos não se
imobilizam... não perdem seu caráter errático: deslocamentos,
equívocos e mudanças se produzem. E não param de produzir seus
efeitos” (ORLANDI, 1995, p.94).
Não podemos considerar o silêncio sintático, sob esse ponto de
vista, como uma categoria vazia. É dessa forma, então, que
entendemos o silêncio como um dos eixos responsáveis pela fluência
da interpretação. “Ele é o ponto de apoio do giro interpretativo”
(ORLANDI, 1995, p.164), sendo “para o falante (...) lugar de
elaboração de outros sentidos (...); para o analista uma pista de um
modo de funcionamento discursivo.” (ORLANDI, 1995, p.130). O
silêncio sintático seria, portanto, um lugar na organicidade da
sentença, aqui especificamente o lugar sintático de objeto, que permite
a possibilidade do movimento dos dizeres. Movimento esse que se
constitui sócio-historicamente a partir de uma tensão entre memória e
atualidade.
Considerações finais
Essa forma de nos posicionarmos diante da transitividade verbal,
ou seja, essa proposta de que o objeto é um lugar sintático projetado
pelos verbos parece generalizar a explicação para o fenômeno
articulatório da relação entre verbo e objeto. Some-se a isso, ainda,
que a possibilidade de explicar a ocupação ou a não ocupação como
sendo algo condicionado a um acontecimento enunciativo mostra que
as explicações para o fenômeno da transitividade não podem ser
centralizadas no verbo, nem nos sentidos que ele pode assumir e nem,
ainda, num contexto de uso que ele possa apresentar. É na relação com
a regularidade enunciativa captada pela memória e com os elementos
188
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
linguísticos marcados na superfície da sentença que se dá a ocupação
do lugar sintático de objeto projetado pelos verbos da língua
portuguesa. Sendo assim, essa ocupação pode acontecer de forma
mais ou menos ampla por força dos fatores enunciativos que atuam na
constituição do dizer.
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190
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Luciani Dalmaschio
Palavras-chave: Semântica da Enunciação, Lugar Sintático, Objeto
Verbal.
Keywords: Semantics of Enunciation, Syntactic Place, Verbal Object.
Notas
Tradução livre de: “Sous ces conditions, le sujet et l’objet acquièrent le statut
d’êtres (par la confluence entre la pensée et le réel) ou de termes (par la distribution
d’unités dans la structure).”
2
A partir de 1999, a gramática de Bechara ganha uma nova versão, totalmente
diferente da que foi editada pela primeira vez em 1961, reeditada até 1998. Essa nova
versão recebe influência direta dos estudos linguísticos formalistas e funcionalistas.
3 Tradução livre de: “le signe lexical de nature substantive » qui occupe la place de
l’objet est, en vérité, un représentant de la place-argument.”
4 Disponível em: < https://goo.gl/LPBTnQ>. Acesso em: 09 jul. 2012.
5 Disponível em:
<http://www3.propmark.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=54755&
sid=7>. Acesso em: 12 fev. de 2009.
6 Propaganda do Centro de Valorização da Vida (CVV). O CVV foi fundado em
1962, em São Paulo, em decorrência do aumento do suicídio nas grandes metrópoles,
tendo como objetivo a prevenção ao suicídio, através do apoio emocional oferecido
por pessoas voluntárias às pessoas angustiadas, solitárias ou mesmo sem vontade de
viver. Hoje conta com 2500 voluntários, 57 postos distribuídos pelo Brasil, que se
colocam gratuitamente à disposição de todos que necessitam de ajuda. (Adaptado de
<http://www.cvv.org.br/c_historia.htm>. Acesso em: 26 dez. 2007.
7 Disponível em:
<http://news.ubbi.com.br/view.asp?http://www.estadao.com.br/arteelazer/not_art5663
8,0.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012.
8 Disponível em:
<http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?headline=98&visual=25&article=321927&tema
=37>. Acesso em: 03 jan. 2012.
9 Disponível em: <http://cms.sadoutrina.com/content/view/95/65/>. Acesso em: 03
jan. 2012.
10 A tirinha se refere à CPI que julgou o caso “Renan Calheiros”. Disponível em:
<http://educando.wordpress.com./2007/09/13/luto-nacional-a-etica-pereceu/>. Acesso
em: 03 jan. 2010.
11 Fragmento da música: Muito Estranho (Cuida Bem de Mim), composta por Dalto.
Disponível em: < http://goo.gl/LWqMTP>. Acesso em: 02 jan. 2013.
12 Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=6961461390>.
Acesso em: 02 jan. 2013.
13 No exemplo (24) voar e voo caracterizam-se como vocábulos cognatos porque se
filiam ao mesmo radical. (MACAMBIRA, 1987).
1
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO
VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA
14
Disponível em: <http://www.talentosdamaturidade.com.br/trabalho/23498/o-voode-joao>. Acesso em: 03 jan. 2013.
15 Vale ressaltar que tanto as predicações com objetos cognatos quanto as predicações
com objetos internos, também representam, em nossa perspectiva teórica, exemplos
capazes de demonstrar o potencial do verbo, no que se refere à projeção do lugar
sintático objeto verbal. O que estamos tentando fazer é trabalhar com outras
possibilidades de justificativa desse papel do verbo, por meio da discussão sobre as
orações causativas.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
MEMÓRIA, ACONTECIMENTO E ENSINO
DE SINTAXE: O EXEMPLO-COLMEIA
Elke Beatriz Felix Pena
IFMG – Ouro Preto
Resumo: Este artigo apresenta um estudo com bases na Semântica da
Enunciação, a fim de propor um ensino de gramática para o ensino
médio em que sejam consideradas as dimensões orgânicas e
enunciativas da língua. Para isso, analisamos capítulos destinados à
sintaxe em livros didáticos de língua portuguesa. Empreendemos um
trabalho com sentenças, que aborde um conjunto de exemplos que se
relacionam, para que o aluno perceba, através de diferentes
enunciações das formas linguísticas, a relação entre língua e sua
exterioridade.
Abstract: This article presents a study based on Semantics of
Enunciation, in order to propose a kind of grammar teaching for high
school that takes into account both the organic and enunciative
dimensions of language. In order to do so, we analyzed chapters
dedicated to the syntax in Portuguese language textbooks for high
school. Thus, we undertook a job with sentences in the classroom that
addresses a set of examples related to each other in order to make
students notice, through different utterances of linguistic forms, the
relationship between language and its externality.
Neste texto, trazemos um recorte de nossa tese (PENA, 2015)
relativa ao ensino-aprendizagem de língua materna, em especial, os
conteúdos sintáticos, tomando-se por base o arcabouço teórico da
Semântica da Enunciação (GUIMARÃES, 2002)1. Para isso, trazemos
a análise de atividades propostas em coleções de livros didáticos
(doravante LD) de língua portuguesa do ensino médio, procurando
identificar em cada uma delas aspectos enunciativos que nem sempre
(ou quase nunca) são considerados nos LD, mas que estão latentes nas
atividades por ser parte constitutiva do próprio funcionamento da
língua (BENVENISTE, 2006). A partir dessas análises e dos estudos
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
193
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
já desenvolvidos nesse campo teórico a respeito do que chamamos de
lugares sintáticos, propomos elementos para o incremento do ensino
de sintaxe em que sejam observados aspectos enunciativos da
constituição dos lugares sintáticos de sujeito e de objeto, tendo em
vista possibilidades de trabalho com “exemplos-colmeia”, cujo
conceito será apresentado adiante neste estudo.
1. Enunciação e sintaxe
Quando observamos a sintaxe em um viés enunciativo, estamos
considerando a relação existente entre aquilo que é materializado no
acontecimento enunciativo e aquilo que perpassa essa materialidade.
Nessa perspectiva, a referência é constituída na relação entre o
acontecimento enunciativo e o espaço histórico desse dizer, tal qual
nos apresenta Guimarães (2002). Essa noção é fundamental para o
entendimento de que, para nós, as articulações sintáticas devem ser
abordadas do ponto de vista da enunciação. Consideramos, assim, a
língua em duas dimensões: i) orgânica: possibilidades regularmente
configuradas numa ordem material específica e ii) enunciativa:
mecanismos de acionamento dessas possibilidades. Em (i), temos a
sintaxe como base para a observação dessa ordem material e a relação
entre os elementos que compõem essa estrutura orgânica (DIAS,
2001). Em (ii), entendemos que a forma linguística adquire identidade
na dimensão enunciativa, que traz a memória social e histórica das
enunciações desta forma, configurando-se uma futuridade e um
passado no presente do acontecimento (GUIMARÃES, 2002).
Para nós, “sentença é a face regular da unidade configurada como
enunciado” (DIAS, 2009, p.13). Nela, vemos dispostos os lugares
sintáticos nos quais a memória do dizer e a atualidade desse dizer
encontram pontos de contato. Esses pontos de contato são objeto de
estudo da sintaxe, uma vez que a regularidade das sentenças está
relacionada à regularidade da significação das recorrências da
memória.
Uma unidade sintática é articulada, isto é, constituída
articulatoriamente, na medida em que os seus constituintes já
participaram de outras unidades em outros domínios de enunciação
da língua. Dessa maneira, uma sentença (ou oração) se assenta não
exatamente sob outras sentenças (à maneira de uma reprodução de
194
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
padrões), mas sob a enunciação de outras sentenças, de onde os
componentes trouxeram as regularidades do funcionamento
agregador da unidade. (DIAS, 2012, p.27)
Para definirmos essa regularidade da sentença, utilizamos o
conceito de site, de Milner (1989), em sua “Teoria das posições”. Para
esse autor, são duas as possibilidades de se conceber as posições
sintáticas e suas relações na sentença: place e site2. O place marcaria a
localização orgânica de um item lexical na sentença, e o site seria o
lugar de pertinência dos termos em uma sentença. A relação entre
pertinência categorial do termo ocupante, objeto da morfologia, e a
etiqueta do lugar ocupado, objeto da sintaxe, é que determinaria a
configuração sintática do site. Dessa maneira, interessa-nos a posição
site, que é um lugar de pertinência na sentença, podendo estar ou não
ocupado materialmente3.
Existe uma pertinência de ocupação dos lugares por fatos sintáticos
motivada na relação entre a memória que constitui a regularidade e a
atualidade da enunciação da qual essa ocupação participa. Dessa
maneira, a ocupação do lugar sintático está ligada às condições de
produção de um enunciado, às quais chamamos de “modo de
enunciação”, ou seja, a configuração da unidade sentencial estará
relacionada à configuração do seu modo de enunciação, que, segundo
Dias (2005), pode ser mais específico ou mais genérico. No modo de
enunciação específico, há um foco na pontualidade da referência na
ocupação dos lugares sintáticos. No modo de enunciação genérico, por
sua vez, há uma abertura do campo referencial, dificultando a
configuração de um grau mais específico de “saturação referencial”.
Vejamos um exemplo formulado com base em Lacerda (2013) para
demonstrar o grau de saturação do fato sintático no acontecimento. A
“demanda de saturação” é produzida por uma discrepância
constitutiva entre as duas dimensões: o plano da organicidade
linguística e o plano do enunciável (DIAS, 2002).
(A) Quem planta, colhe.
(B) Pedro colheu flores amarelas.
(C) Pedro colheu ___
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
195
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
Em (A), temos um modo de enunciação genérico, o que causa um
efeito de completude semântica e sintática, mesmo não tendo o lugar
de objeto verbal ocupado materialmente, organicamente. O lugar de
sujeito, ocupado pelo pronome “quem”, guarda o grau de uma
generalização configurada como um perfil a receber identificação em
cada instância de atualização desse enunciado. A sentença adquire
“saturação” enquanto unidade sintática, pois, pelo modo de
enunciação, configura-se uma completude, apesar do “vazio” material
do lugar de objeto. Por sua vez, consideramos os modos de
enunciação em (B) e (C), de caráter especificador, tendo em vista que
as sentenças contemplam no grupo nominal-sujeito “Pedro” uma base
de sustentação referencial específica, mais restrita, oferecendo
condições de uma particularização da referência a partir da sua própria
formulação. Nesse caso, configuram-se condições de ocupação do
lugar do objeto, visto que a própria formulação se “arma” para
oferecer essa base de sustentação referencial, sem a qual a sentença é
percebida como “incompleta” (C).
Tendo em vista isso, podemos dizer que o domínio de referência é
determinante na natureza enunciativa dos lugares sintáticos.
Tomamos, aqui, domínio de referência de acordo com Lacerda (2014,
p.32), que o define como “a delimitação de referentes passíveis de
serem contemplados pela sentença”. Teremos então a relação entre o
domínio de referência amplo ou restrito do fato gramatical e o
domínio de referência amplo ou restrito da sentença, sendo o primeiro
uma “repercussão” do segundo.
2. Exemplo-colmeia: direção de uma metodologia de ensino
A noção de lugar sintático torna-se fundamental na abordagem dos
lugares sintáticos do ponto de vista de uma semântica da enunciação.
Neste sentido, procuramos mostrar que há, nos livros didáticos de
ensino médio analisados, apontamentos para questões de ordem
enunciativa que não são exploradas como aspectos da relação entre a
língua e sua exterioridade. Propomos alguns deslocamentos
conceituais capazes de dar base para uma análise das atividades dos
livros didáticos a partir da observação das diferentes enunciações das
formas da língua, explicitando as questões de ordem enunciativa.
Dessa maneira, pretendemos explorar as atividades didáticas na
direção de apontar o processo de produção de sentido, estudado de
196
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
maneira a levar o aluno a conhecer as relações entre as formas da
língua e, também, perceber o que motiva a sua constituição.
Como metodologia didática para a análise de aspectos do
funcionamento da língua, compreendidos a partir da enunciação como
acontecimento, apresentamos o conceito de “exemplo-colmeia”,
criado e desenvolvido por Dias (2006) em contraponto com o que ele
denominou de “exemplo-ilha”.
Muito utilizado em LD e gramáticas normativas, o exemplo-ilha é
aquele que, por ser utilizado de forma isolada, é afetado diretamente
pelo paradoxo relativo ao duplo papel do exemplo: demonstrar um
conceito gramatical e ao mesmo tempo apresentar-se como uma peça
de uso da língua (MARCHELLO-NIZIA; PETIOT, 1977). Nesse
caso, o papel de demonstração do conceito acaba sobrepujando o
papel de conduzir o aprendiz na percepção do funcionamento da
língua em termos mais amplos. Ao propor o exemplo-colmeia, Dias
(2006) visa amenizar os efeitos de tal paradoxo (concretização do
conceito X uso situado). Para isso, o exemplo é apresentado em um
conjunto de outros com os quais mantém relações de semelhança e
diferença nas formas linguísticas, no sentido de explorar os efeitos de
sentidos relativos ao jogo do semelhante e do diferente, tendo em vista
fatores de ordem enunciativa. Essas enunciações formam uma rede,
sem hierarquia ou sequência determinada, como no desenho de uma
colmeia, que, a partir de um centro, outras casas vão sendo agrupadas,
tendo, ao final, algo unificado, sem início ou fim. Dessa maneira, o
exemplo em foco é considerado tanto na relação com o conceito
quanto na relação com outros no campo da enunciação de enunciados
pertinentes, constituindo-se a colmeia.
Acreditamos que o deslocamento do trabalho com o modelo de
exemplo-ilha para o de exemplo-colmeia trará muitos ganhos ao
ensino de língua, uma vez que proporcionará ao aluno, através da
observação de diferentes enunciações, a percepção da relação entre as
dimensões orgânicas e enunciativas da língua. Nessa proposta, caberá
ao professor buscar exemplos, em ocorrências reais da língua, que
tenham relação com o tema estudado. Com isso,
As aulas de português terão um ganho nas redes temáticas do diaa-dia do aluno. Nesse sentido, o professor pode reunir exemplos
que adquirem relação uns com os outros em determinado tema. Ele
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
197
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
pode analisar as formas linguísticas tendo como pano de fundo as
diferenças de enunciação dessas formas. Através dessas diferenças
de enunciação, o aluno pode se ver motivado a perceber a
interessante relação entre a língua e sua exterioridade. (DIAS,
2006, p.52)
Antes de nos dedicarmos à análise das possiblidades de prospecção
de exemplos-colmeia no ensino dos lugares de sujeito de objeto em
atividades dos LD, faremos uma discussão relativa ao conceito de
“contexto” e de “completude de sentido” desenvolvido nos LD. E,
como consequência dessa discussão, mostraremos o deslocamento dos
conceitos de “contexto” para o de “intertexto” e o de “completude de
sentido” para o de “saturação no acontecimento”, a fim de se tornar
possível falar dos lugares sintáticos como configurações linguísticas e,
ao mesmo tempo, das incidências enunciativas nesses lugares, no
trabalho com os exemplos-colmeia.
Neste estudo, analisamos duas coleções de LD, aqui referidas
como Coleção Didática 1 e Coleção Didática 2, e referenciadas a
seguir:
ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M.; PONTARA, M. (2010)
Português: contexto, interlocução e sentido. v.2. São Paulo: Moderna.
CEREJA, W. R.; MAGALHAES, T. C. (2010) Português Linguagens:
literatura, produção de texto, gramática. 7ed. São Paulo: Saraiva.
As duas coleções são destacadas pelo número de exemplares
solicitados pelas escolas públicas.
2.1 A questão do contexto
É muito comum vermos a palavra “contexto” sendo utilizada em
comandos de atividades nos livros didáticos do ensino médio. Do que
trata esse termo?
Percebemos que o contexto é tratado de modo genérico, sem
explicitação definida. Observemos o exemplo (1):
198
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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(1)
Figura 1: atividade de sintaxe, coleção didática I, v.2, p.510.
Nesse exemplo, nas questões propostas 5 e 6, o termo “contexto” é
usado para se referir ao anúncio publicitário em si: as imagens e o
texto da parte inferior, que são elementos que circundam o enunciado
“É. O amor é cego”. No entanto, a constituição do sentido desse
enunciado passa pela relação que ele contrai com um campo de
memória de suas enunciações. É isso que permite a relação com os
constituintes do texto que o integra. Nesse campo de memória de
enunciações, estão outros enunciados que situam o sentimento do
amor na relação com “cegueira”. Esse é o referencial de sentido desse
enunciado. Podemos vislumbrar como enunciados desse campo de
memória:
(1a) O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as
tolices que praticam.
(1b) O amor é cego, a amizade fecha os olhos.
(1c) Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que
não é cego, não é amor.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
Dessa forma, passamos pelo que Rastier (1998) concebe quando
se refere a “contexto”, não como situação, mas como relação entre
textos, isto é, o intertexto. Para esse autor, um conjunto de textos do
mesmo gênero forma um corpus desse texto. Para análise de um
determinado texto, não podemos olhar somente para o seu interior,
mas para o corpus do qual participa. A isso ele chama de memória
intertextual.
o escrito opera com uma outra forma de contextualização
justamente aquela que vai de texto a texto – e que aliás não é
totalmente estranha quando se trata do oral. O escrito, com efeito,
pode se desvincular da situação inicial, ou pelo menos ampliar essa
situação, alcançando outros contextos. Dessa maneira, tendo em
vista a problemática retórico/hermenêutica, o contexto é
constituído não somente do aqui/agora, mas também daquilo que
não se situa no imediato: ele transborda, portanto, os limites do
situacional4. (RASTIER, 1998, p.106 - Tradução nossa)
Além de Rastier, outro autor que também trata o contexto como
memória intertextual é Adam (2011), que se refere a ele como uma
“forma memorial”, pois considera essa memória um suporte interno
do texto e critica esse conceito como aquilo que o “situa”.
Adam (2011) parte da afirmação de Foucault (1969) de que “uma
unidade linguística (frase ou proposição) só se torna unidade de
discurso (enunciado) se ligarmos esse enunciado a outros” (p.128
apud ADAM, 2011, p.45) para defender a rede de memórias entre
textos, o intertexto. Para ele, “realidade ao mesmo tempo histórica e
cognitiva, o contexto está ligado à memória intertextual. Não é um
dado situacional exterior aos sujeitos.” (p.56). Por isso, todo texto
constrói seu “contexto de enunciações” (p.56).
Assim, o corpus se constitui da entrada de um texto na memória de
outros textos, uma relação de dizeres atualizados em um
acontecimento com a memória desses dizeres.
Sendo assim, defendemos a tese segundo a qual “É. O amor é
cego.”, na peça publicitária em questão, só funciona ali devido a sua
entrada em outras enunciações da mesma regularidade. É isso que
legitima a relação desse enunciado com os outros do texto, relativos
ao amor por São Paulo, mesmo com os incômodos problemas da
200
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
cidade. Portanto a completude desse enunciado passa pela sua relação
com um campo de memória do qual ele é integrante.
Alheio a isso, o livro didático classifica “É.” e “O amor é cego.”
como frases, com base na definição de que “frase é um enunciado
linguístico que, independentemente de sua estrutura ou extensão,
traduz um sentido completo em uma situação de comunicação”
(COLEÇÃO 1, p.507). Se levarmos em conta apenas essa definição
indicada no livro, não é possível aceitarmos “É.” como frase, pois não
teria, por si só, “um sentido completo”. Isoladamente, pode nos
indicar, no máximo, que se quer afirmar algo que já foi ou será dito.
Portanto, ao considerar “É.” como frase, o livro didático certamente
considera elementos que vão além do que está materializado, e que
estão apontando para esse campo de memória, embora não explore
isso na atividade proposta aos alunos. Em relação a essas atividades,
na proposição (5) da página do LD que apresentamos na figura 1, para
responder à questão, supomos que o aluno teria que se remeter ao
campo enunciativo da expressão “O amor é cego”, que as autoras
apontam como “afirmação genérica”. Mas o que dá a essa expressão
esse estatuto genérico? Retomamos (1a) a (1c) para observá-la em
diferentes enunciações em que aparecem5.
(1a) O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as
tolices que praticam.
(1b) O amor é cego, a amizade fecha os olhos.
(1c) Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que
não é cego, não é amor.
Nas virtuais ocorrências aqui consubstanciadas em (1), percebemos
a afirmação de que, ao se amar, todos os defeitos do ser amado devem
ser relevados. Caso isso não aconteça, é sinal de que o sentimento não
é verdadeiro. Ama-se sempre incondicionalmente é o sentido
constituído pela rede de memória do pensamento expresso pela
metáfora “o amor é cego”. Daí, encontramos a ocorrência (1d) que
leva essa afirmação às últimas consequências, ignorando qualquer
racionalidade no amor.
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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
(1d) Sabe o que é o amor? Ele é cego, surdo, mudo, sem
preconceitos, não liga pra idade, qualidades, defeitos, apenas se
sente, apenas se ama.
Através dessa percepção enunciativa com exemplos (1a a 1d) em
colmeia, constituído com foco em “É. O amor é cego”, podemos
responder à segunda questão proposta no exercício (6) do LD, pois o
amor por São Paulo é também incondicional, apesar da “inversão
térmica”, do “trânsito louco” e de todos os seus “problemas”.
Dessa forma, tirando o contexto somente do campo do situacional
restrito e levando-o para o campo da memória, é possível relacionar o
enunciado ao que está sendo proposto nas atividades, pois, para
responder às duas questões que nelas constam, é necessário relacionar
o que está dito no texto com uma exterioridade constitutiva, o campo
de memória desse enunciado, que o atualiza na enunciação, que é a
relação entre uma memória e uma atualidade. (GUIMARÃES, 2002).
2.2 Do contexto para o intertexto
Nos LD de língua portuguesa do ensino médio, é comum, ao
introduzir o ensino de sintaxe, que o capítulo referente a esse conteúdo
se inicie com a definição de frase, oração e período, sendo a definição
de frase baseada em critérios semânticos. Tomaremos como base para
nossa reflexão, o capítulo introdutório à sintaxe do que chamamos de
coleção 1 em nosso estudo a respeito do ensino de sintaxe no ensino
médio. Nesse material, como já dissemos no item anterior deste texto,
frase é definida como “um enunciado linguístico que,
independentemente de sua estrutura ou extensão, traduz um sentido
completo em uma situação de comunicação (COLEÇÃO 1, p.507), e o
item destinado ao estudo da frase inicia-se da seguinte maneira:
202
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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(2)
Figura 2: capítulo de introdução à sintaxe, coleção didática I, v.2, p.510.
Logo após esse exemplo e antes de definirem frase, o LD afirma
que “O enunciado Mulheres e crianças primeiro! tem um sentido
completo. É considerado, em termos sintáticos, uma frase.” (p.507).
Até aqui, interessam-nos dois pontos: 1) a afirmação de que essa
frase é um enunciado e 2) a afirmação de que Mulheres e crianças
primeiro! tem sentido completo. Examinemos cada uma dessas
afirmações.
Enunciado é definido nesse LD como “tudo aquilo que é dito ou
escrito. É uma sequência de palavras de uma língua que costuma ser
delimitada por marcas formais: na fala, pela entoação; na escrita, pela
pontuação. O enunciado está sempre relacionado ao contexto em que é
produzido.” (p.505). Ainda nessa obra, a sintaxe “é o conjunto de
regras que determinam as diferentes possibilidades de associação das
palavras da língua para a formação de enunciados.” (p. 505).
Entende-se, nesse caso, que enunciado e frase podem ser tomados
um pelo outro pelo critério do fazer sentido num determinado
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
203
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
contexto. Isso é confirmado na observação presente no livro do
professor, o qual informa que o conceito de frase da obra “estabelece
uma ponte entre a noção discursiva de enunciado e as unidades que
serão objetos de estudo da sintaxe: sintagmas, orações e períodos”,
sendo, assim, “correto afirmar (...) que todas as frases são enunciados
da língua” (p.506).
No subitem “Os enunciados da língua”, ao qual pertence o
exemplo da capa do livro, a frase é apontada como uma das três
unidades dos enunciados da língua, sendo as outras duas a oração e o
período. Assim, enunciado é toda e qualquer construção linguística.
Sabendo disso, podemos verificar o segundo ponto a respeito do
sentido de Mulheres e crianças primeiro!
Na sequência da exposição sobre frase, é dito que “O essencial
para decidir se um enunciado é ou não frase é o fato de ele apresentar
um sentido completo em um contexto específico.” (p.507) A pergunta
que fazemos é: como se determina o sentido desses enunciados?
Interessa-nos saber se, da forma como é exposto o assunto, fica claro
para o aluno determinar o que “tem ou não sentido”. Também nos
interessa saber se, uma vez “decidido” que um enunciado é realmente
uma frase, o aluno consegue explicar o que dá sentido a ela.
Parece-nos que afirmar que Mulheres e crianças primeiro! tem
sentido completo, sem demonstrar o que dá base a essa afirmação, é
fazer uma reflexão superficial em relação à produção de sentido. Se o
critério que determina o conceito de frase em questão é o sentido,
julgamos fundamental um tratamento mais aprofundado e sistemático
desse critério para que ele não seja tomado de forma intuitiva pelo
aluno.
A partir do exemplo dado no livro, podemos partir da pergunta: por
que consideramos “Mulheres e crianças primeiro!” um enunciado de
sentido completo?
Em busca pela internet, encontramos outras ocorrências de
“Mulheres e crianças primeiro”. Vejamos, então, alguns desses casos
em que a expressão aparece:
(2a) Por que mulheres e crianças têm prioridade em situações
de emergência?6
(2b) Mulheres e crianças primeiro é lenda náutica, afirma
pesquisa.7
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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(2c) Mulheres e crianças primeiro, homens descartáveis.8
O texto em (2a) mostra o surgimento desse princípio de que, em
situações de risco, mulheres e crianças devem receber tratamento
prioritário. Pela razão exposta, há uma repetição de ações em que essa
lógica é respeitada, tornando o enunciado recorrente nas situações de
perigo. Em (2b), é informada uma pesquisa que passa a considerar
esse princípio um mito. E (2c) é um texto cuja autora questiona esse
princípio, a partir de uma visão feminista que o considera como
pretexto para subjugar a capacidade feminina. Por essas ocorrências,
percebemos que essa construção mulheres + crianças + primeiro se
estabilizou devido ao seu percurso de enunciações, constituídas num
campo de memória, tanto que em (2a) o autor do texto a chama de
“lema”. Quando nos é apresentada a capa com esse título no LD
(figura 2), “reconhecemos” o sentido, porque há uma entrada desse
acontecimento enunciativo na memória de outros, que formam o
corpus, como propõe Rastier (1998), de “Mulheres e crianças
primeiro”. Daí o efeito de completude da expressão que leva à
afirmação de que ela tem sentido completo. Mas, na verdade, o que
acontece é uma participação no campo de memória da expressão que,
pela recorrência em outras enunciações, provoca uma saturação no
acontecimento enunciativo.
Não existe na expressão “Mulheres e crianças primeiro” uma
completude de sentido, pois, como o próprio livro aponta, é necessário
se considerar algo que vai além do que está exposto, a que chamam de
“contexto”.
Apresentar ao aluno ocorrências que mantêm relação entre si é
importante para que se possa perceber como o efeito de sentido da
expressão que se está analisando foi construído. Com essa prática,
podemos levar o aluno a entender que nenhum termo ou expressão
possui um sentido completo em si mesmo, como o faz entender a
forma como isso é muitas vezes dado nas salas de aula, mas esse
efeito de completude se dá na relação dessa palavra ou expressão no
presente da enunciação com as suas enunciações anteriores.
“Mulheres e crianças primeiro!” parece ter “sentido completo”, como
afirma o LD, porque ganhou, ao longo de seu histórico enunciativo,
um recorte de significação determinado pelos acontecimentos dos
quais participou. Há, assim, uma saturação da frase no acontecimento,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
como se, ao se realizar como título na capa do livro, trouxesse uma
ligação do presente com o passado, que resultasse num efeito de
completude, numa presença tão marcante que “apaga” a sua
contraparte de memória. Mas não se trata de algo completo, fechado,
acabado, e sim algo saturado, no sentido de conter o maior número de
possibilidades que se condensam. Por isso, no campo da significação,
não acreditamos na completude de sentido num determinado contexto,
mas sim na saturação de determinado enunciado no seu
acontecimento, como vimos em “Mulheres e crianças primeiro!”.
A partir de (2), procuramos mostrar como o trabalho com
diferentes enunciações de uma forma linguística pode levar o aluno a
perceber e entender a relação de significação. O sentido é produzido
na enunciação como um acontecimento e se faz necessário elaborar
uma metodologia que leve o aluno a sistematizar e analisar essa
produção de sentido, através da constituição das colmeias, como (2a) a
(2c). Essa seria uma saída do trabalho didático do campo da intuição.
Dadas a metodologia do exemplo-colmeia e as suas bases teóricas,
vamos discutir, no próximo capítulo, como os lugares sintáticos
podem ser abordados nessa perspectiva do campo da enunciação.
3. Lugar sintático e ensino de sintaxe
3.1 Lugar sintático de sujeito
Defendemos a tese segundo a qual o lugar sintático de sujeito é o
responsável pela instauração da sentença. Isso se justifica pelo fato
desse lugar ter uma condição de proeminência no eixo enunciativo da
unidade sentencial, uma vez que, no acontecimento, possibilita ao
verbo o recebimento da coordenada de pessoalidade, proeminente para
essa instauração. Explicando melhor, ao se colocar a língua em
funcionamento, coordenadas enunciativas incidem sobre a sua
materialidade. A partir dessas coordenadas é que o verbo sai do seu
estado de dicionário, ou seja, seu estado antes de constituir um
acontecimento, quando passa para um estado de finitude em que essas
coordenadas se materializam através das formas sufixais. Essa
atualização do verbo só é viabilizada na sua relação com o lugar de
sujeito. Assim, “a instalação do sujeito (...) rege a perspectivação da
pessoalidade na predicação” (DIAS, 2009, p.20). A instalação do
predicado é devida, então, à sua relação com o lugar de sujeito. De
maneira sucinta, o lugar de sujeito aciona o verbo que sai do estado de
206
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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dicionário e se constitui como base de uma predicação. Dessa relação
é que afirmamos que o lugar de sujeito tem como característica básica
uma anterioridade de predicação.
Quando dizemos algo como
(3) Maria viajou.
o lugar qualificado de sujeito, na enunciação, estabelece uma relação
com o verbo em estado de finitude. Em (3), o lugar sintático do sujeito
retira o verbo do seu estado de dicionário, “viajar”, para instalar um
predicado. Dessa forma, dizemos que o lugar de sujeito dá perspectiva
ao verbo, pois, ao retirá-lo do estado de infinitivo, dá a ele marcações
enunciativas, materializadas, no caso, por elementos morfológicos,
pertinentes ao acontecimento enunciativo do qual participa.
Para ser sentença, a sequência precisa projetar referência, daí
dizermos que o lugar de sujeito é lugar de constituição de referência.
Nesse quadro, a enunciação é o acontecimento da constituição do
enunciado. No acontecimento enunciativo, o articulável adquire
formações legíveis, tendo em vista que o enunciável se faz
pertinente na relação entre traços de memória (DIAS, 2012),
advindos de enunciados outros, em outros tempos e lugares, e uma
demanda atual, com vistas a significar o presente. Assim, as formas
da língua são constitutivas da relação que se estabelece entre a
instância de presente do enunciar e uma instância de anterioridade
(de memória). (DIAS, 2013, p.230)
O lugar do sujeito é constituído por uma anterioridade de
predicação, que consiste na instalação de uma perspectiva de
predicação tomada pelo verbo, na constituição da sentença, isto é, o
lugar de sujeito é a base de sustentação do predicado na constituição
da sentença.
É importante salientarmos que não é o item lexical classificado
como sujeito da sentença o responsável pelo acionamento ao qual nos
referimos e sim o lugar do sujeito, estando esse ocupado ou não
materialmente na sentença. Isso pode ser melhor entendido a partir da
análise que fizemos da seguinte atividade e da reflexão a respeito do
sujeito sintático propostas por um LD:
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207
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
(4)
Figura 3: atividade sobre termos essenciais da oração, coleção didática I, v.2,
p.514-515.
No decorrer da exposição iniciada pela tirinha da Mafalda, as
autoras atribuem a dificuldade de falantes da língua portuguesa,
quando lhes são apresentados conceitos como de sujeito e predicado, à
confusão que fazem entre critérios de natureza semântica e de
natureza sintática, o que poderia abrir uma discussão a respeito
daquilo que é material e do que é enunciativo na fala dos personagens.
O que consideramos um problema é que, na sequência dada, as
208
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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autoras definem sintático como o que diz respeito “às relações
estabelecidas a partir da maneira como os termos se articulam no
interior das orações.” (p.515). Dessa forma, as relações se restringem
aos aspectos formais da língua, apesar de, em vários exercícios, como
já demonstramos, ser necessária a relação enunciativa para se
estabelecer o sentido da sentença – como (1) ou (2). As autoras
justificam a resposta do personagem como sendo uma confusão entre
critérios de natureza semântica - “sujeito como alguém que pratica
uma ação, que é responsável por um acontecimento” – e critérios de
natureza sintática – “funções desempenhadas pelos sintagmas no
interior das orações” (p.515). Ou seja, na perspectiva da semântica,
para elas, o sujeito é o ser no mundo, um sujeito empírico.
Mesmo assim, consideramos significativa a abordagem dada ao
sujeito nesse item, pois pode sinalizar que, apesar de ainda preso a
aspectos formais da língua ao tratar a sintaxe, há uma percepção no
LD de que existem outros níveis de análise da língua. Dessa forma, ao
mesmo tempo em que notamos formas tradicionais de trabalhar a
sintaxe, percebemos “escapadas” para abordagens que apontam para o
enunciativo, como no que é exposto no guia de respostas, referindo-se
à questão 3:
3. Miguelito usa um critério de natureza semântica, ou seja, ele
considera o sentido do que é dito e faz uma interpretação para
identificar um indivíduo que possa ser responsável pelo fato
nomeado.
O que Miguelito precisaria entender é que, além das relações
de sentido, os termos da oração também estabelecem entre si
relações de natureza sintática que marcam as funções
desempenhadas pelos sintagmas no interior das orações.
(GUIA DE RESPOSTA, p.189, grifo nosso)
O LD considera diferentes esferas para se observar a língua,
denominadas por elas de semântica e sintática.
Voltando à tirinha (figura 3), a resposta do personagem, no terceiro
quadrinho, nos leva a pensar no significado da palavra “sujeito”, pois
temos duas palavras com o mesmo significante: sujeito como pessoa e
sujeito como nome da categoria gramatical. O que acontece na tirinha
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
é que a pergunta é feita pensando no segundo significado, e a resposta,
no primeiro.
A discussão levantada aqui, sobre a relação sintático/semântico do
ponto de vista da gramática, está em se considerar o sujeito como
sintagma, “esse lixo”, ou como ser no mundo, “LIXO”. Na nossa
concepção, voltada para uma semântica da enunciação, a questão é a
pertinência de se ocupar o lugar de sujeito por este ou aquele item
lexical. Então, a partir do exemplo da tirinha, podemos lançar mão de
outras ocorrências em colmeia para demonstrar que não são as
palavras, mas o lugar sintático que determina a constituição do sujeito.
Na tirinha, é feita uma crítica social em relação ao tratamento dado
pelo poder público ao lixo nas ruas da cidade. Partindo de:
(4a) Esse lixo enfeia a rua.
Podemos trazer as ocorrências:
(4b) A prefeitura enfeia a rua com esse lixo.
(4c) O prefeito enfeia a rua não recolhendo esse lixo.
(4d) O cidadão enfeia a rua jogando esse lixo no chão.
Do ponto de vista da ocupação do grupo nominal-sujeito (GNsujeito), todos apresentam alto grau de definitude no acontecimento,
devido ao seu núcleo substantivo que produz um efeito de unidade
(DIAS, 2009). No entanto, voltando à situação da tirinha, podemos
observar que apenas (4a) daria a possibilidade da resposta do garoto.
No acontecimento enunciativo que se configura no texto, há uma
crítica social em relação à responsabilidade do lixo. Ao mesmo tempo,
no gênero tirinha, se propõe um efeito de humor, que se produz, em
(4), a partir da relação entre traços de memória que são acionados na
atualidade da enunciação, formalizada como O lixo e a crítica que
incide sobre ele. Isso porque lixo é um resultado de ações e não quem
efetivamente produz essas ações. O lixo está nas ruas por ações (ou
falta delas) de pessoas ou órgãos responsáveis pela limpeza da cidade.
Dessa maneira, em (4), o personagem encontra brecha na enunciação
para trazer o sujeito como referente no mundo para a sentença que lhe
é posta como questão, nos exemplos-colmeia (4a) a (4d), já inserimos
esses referentes como GN que ocupa o lugar de sujeito. Ao enunciar
(4a), na cena enunciativa construída na tirinha, na relação entre
memória e atualidade, a enunciação atualiza o enunciado que é
210
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
formalizado. Também por essa relação memória/atualidade, o
personagem produz essa referência na responsabilidade sobre aquela
situação do lixo. Nas ocorrências de (4b) a (4d), essa responsabilidade
está inserida na sentença como o GN-sujeito. Dessa maneira, o jogo
de significação relativo ao lixo e sua responsabilidade social é
apropriadamente trabalhado em um exercício de estruturação
linguística, no campo da sintaxe, através do exemplos-colmeia. Eles
servem para demonstrar o lugar sintático de sujeito ao mesmo em que
possibilita uma reflexão sobre o jogo de enunciações que colocam em
cena uma questão social. Demonstram que o funcionamento da língua
não é alheio ao jogo das significações pertinentes aos problemas
sociais.
3.2 Lugar sintático de objeto
Vimos, no item anterior, que é o lugar de sujeito, com suas
pertinências sociais, que aciona o verbo, tirando-o do seu estado de
dicionário, e instaura a sentença. Já o lugar de objeto é projetado pelo
verbo e está mais relacionado à progressão temática da sentença.
Como o lugar de sujeito, o lugar sintático de objeto pode também estar
ou não ocupado, dependendo da demanda de saturação da sentença.
São os verbos que projetam o lugar de objeto, por trazerem, nas
enunciações das quais participaram, um histórico de elementos que
ocupam esse lugar, o que cria uma memória de regularidades dessa
ocupação. Dessa forma, além de apresentar esse potencial de projeção
do lugar de objeto, o verbo participa da configuração da referência
constituída nesse lugar (DIAS, 2005). Vejamos (5), a fim de
ilustrarmos o que foi dito até aqui.
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(5)
Figura 4: atividade sobre termos essenciais da oração, coleção didática 2, v.2,
p.268-269.
A memória dos verbos presentes na tirinha é acionada para se
constituir uma referência dos objetos não lexicalizados, e, assim,
chegar à resposta da atividade 1. Isso é possível porque os verbos
“passar”, “chutar”, “atrasar” e “lançar” já participaram de outras
enunciações em que apareceram acompanhados de lugares de objeto
ocupados, como em (5a) a (5d). Assim, mesmo esses lugares estando
“vazios”, a significação está relacionada às possibilidades de
ocupação constituídas pelo percurso enunciativo desses verbos.
(5a) Passar a bola corretamente é uma das principais habilidades do
futebol.9
(5b) Cinco formas de chutar uma bola de futebol.10
(5c) Um zagueiro atrasa a bola com o pé para o goleiro do time
dele que, pressionado pelo atacante, chuta mal.11
(5d) Lança a bola, mata no peito, pode chutar que é gol.12
Acontece que alguns verbos são mais produtivos que outros,
ampliando essas possibilidades de ocupação. O verbo passar não
traria apenas uma memória no âmbito do futebol. No entanto, a
referência é constituída, nesse lugar sintático, também pela articulação
212
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
sintática dos verbos na sentença e no acontecimento, dentro de um
texto. A articulação entre os verbos passar, chutar, atrasar e lançar
restringe as possibilidades temáticas das sentenças ao futebol e
projetam um domínio de referência que daria suporte à ocupação do
lugar de objeto. O discurso, no caso do jogo de futebol, opera sobre as
bases da sintaxe, por isso, a articulação sintática dos verbos na
sentença é tão determinante para a referência do lugar sintático quanto
o percurso enunciativo do verbo que projeta esse lugar.
O verbo projeta um lugar, ou seja, um espaço no interior do
qual se constitui um domínio de referência. O objeto, enquanto
forma linguística, é um recorte de significação historicamente
delimitado e ganha forma na língua através desse lugar
projetado. Assim, o domínio de referência é algo da relação
entre um recorte determinado pelas condições históricas do
acontecimento e uma injunção desse recorte ao lugar específico
de configuração da forma linguística (DIAS, 2006, p.57).
Por isso consideramos problemático o tratamento dado
tradicionalmente ao estudo dos objetos, por partirem de uma ideia de
(in)completude do sentido do verbo (verbos transitivos ou
intransitivos). Em (5), podemos ver a fragilidade dessa concepção em
relação aos verbos, quando, por exemplo, o verbo passar é usado sem
objeto, e, mesmo assim, é possível responder à questão 1 a respeito do
seu “complemento”. Poderíamos, aqui, explicar essa possibilidade
apenas no que se refere ao gênero textual “tirinha”, relacionando o
texto verbal e o texto não verbal (lançando-se mão do que nos parece
que os autores chamam, na questão 1, de “contexto”), mas insistimos
que, mesmo apresentando a seguinte sequência sem os outros
elementos que compõem o texto:
(5e) Passa! Chuta! Atrasa! Lança!
ainda sim seria possível constituir projeção de referência para o lugar
de objeto, através de injunções da memória enunciativa desses verbos
e da articulação dos mesmos no enunciado. Isso se dá porque
reconhecemos aí a discursividade do futebol, na qual esses verbos são
bastante presentes, como nos exemplos-colmeia (5a) a (5d). E é
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
213
MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
importante observar que é comum a presença desses verbos, nesse
domínio de referência, sem os complementos, uma vez que os
jogadores se veem tomados pela emoção e a urgência de agir dentro
do campo. A ocupação desses lugares é “controlada por fatores
discursivos que atuam na enunciação.” (DIAS, 2005, p.119). O humor
do quadrinho reside justamente no fato de que um dos personagens
quebra esse estatuto, esperando que o seu parceiro utilizasse o termo
“por favor” ao lhe dar os comandos do jogo, quando a pertinência está
exatamente em ser direto.
A ocupação ou não do lugar de objeto, observada pelas condições
enunciativas dessa ocupação, nos leva a uma observação dos domínios
de referência no plano do enunciável e nos afasta do viés de
completude ou incompletude do sentido dos verbos, que geram
questões em sala de aula. Essas questões podem ser mais bem
compreendidas tendo em conta as condições enunciativas,
didaticamente exploradas pela metodologia dos exemplos-colmeia.
Considerações finais
Os lugares sintáticos são um lugar de contato entre uma memória
dos dizeres e a sua atualidade. Assim, é lançando o olhar sobre esses
lugares que podemos observar as dimensões orgânicas e enunciativas
da língua. Além disso, vimos que a forma como se dá a ocupação
desses lugares constitui as condições materiais da produção do
sentido. Por isso, defendemos a inserção da noção de lugares
sintáticos no ensino de língua portuguesa. Como buscamos mostrar,
com essa abordagem enunciativa da língua, o aluno poderá ser levado
a perceber as relações de memória das formas linguísticas, o que traria
importante ganho para o estudo da significação no ensino médio. Para
a sistematização desse ensino, propomos a aplicação do conceito de
exemplo-colmeia. O uso das palavras não é aleatório, mas
“discursivizado”. Dessa forma, os exemplos de diferentes enunciações
de uma sentença que se relacionam pelo histórico de suas ocorrências
formam um campo de memória. Com o estudo dos lugares sintáticos
pelo uso dos exemplos-colmeia, o aluno é levado a perceber a relação
entre formas da língua e sua exterioridade constitutiva.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Elke Beatriz Felix Pena
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLOCOLMEIA
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statut de l´interpretation dans les sciences du langage”. In: Langages,
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Palavras-chave: Semântica da Enunciação, sintaxe, ensino de língua
portuguesa
Keywords: Semantic of Enunciation, syntax, Portuguese language
teaching
Notas
1
Dias, no presente dossiê, traça o perfil básico dessa perspectiva de abordagem da
significação.
2 Na língua francesa, site e place equivalem ao termo “lugar”, no português. Quando
falamos em site, falamos em lugar qualificado sintaticamente, com determinada (não
absoluta) dependência da localização na sentença na língua portuguesa (lugar de
sujeito, lugar de objeto), ao passo que place se refere tão somente à localização de um
termo na sentença, tendo em vistas as relações de contiguidade (Y depois de X,
seguido de Z).
3 Dalmaschio, no presente dossiê, apresenta detalhes dessa distinção.
4 l’écrit connaît une autre forme de contextualité, celle qui va de texte à texte – et qui
d’ailleurs n’est nullement inconnue de l’oral. L’écrit em revanche peut n’être pás
attaché à sa situation initiale, ou du moins s’en éloigner pour gagner d’outres
contextes. Ainsi, pour la problématique rhétorique/herméneutique, le contexte est fait
non seulement du hic et nunc, mais aussi de ce qui n’est past là: il dèborde alors la
situation.” (RASTIER, 1998, p.106)
5Todas essas ocorrências encontradas em <http://goo.gl/RSE93J>. Acesso: 20 jan.
2015.
6 LINARDI, Fred. Por que mulheres e crianças têm prioridade em situações de
emergência? Disponível em: <http://goo.gl/91OGx9>. Acesso em: 21 jan. 2015.
7 VALLADARES, Maria Luiza. Mulheres e crianças primeiro, homens descartáveis.
<http://goo.gl/yRo3QL> (adaptado). Acesso em: 21 jan. 2015.
8 VALLADARES, Maria Luiza. Mulheres e crianças primeiro, homens descartáveis.
<http://goo.gl/yRo3QL> (adaptado). Acesso em: 21 jan. 2015.
9 Disponível em: <http://goo.gl/FmrnOm>. Acesso em: 20 jun. 2015.
10 Disponível em: <http://goo.gl/Bv6ZaT>. Acesso em: 20 jun. 2015.
11 Disponível em: <http://goo.gl/PuKt8c> Acesso em: 20 jun. 2015.
12 Disponível em: <http://goo.gl/S9lnZZ> Acesso em: 20 jun. 2015.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO.
(N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE BENVENISTE
Cármen Agustini
UFU
Flávia Santos da Silva*
Resumo: No presente artigo, discutimos a noção de frase nas
teorizações de Émile Benveniste relativas à conversão da língua em
discurso, a fim de compreender e explicitar o porquê de a frase ser
considerada por ele unidade de discurso. Para tanto, mobilizamos, em
particular, da Linguística Geral Benvenistiana, as teorizações que
apresentam a frase como unidade de discurso e que, por isso,
demandam a necessidade de considerá-la em seu acontecimento
evanescente; não é possível (de)limitar seu sentido, porque o sentido é
relacional; mas é possível jogar com possibilidades de emprego e
ação. O conceito de frase mostra-se, por conseguinte, fundamental
aos procedimentos de análise semântica presentes na obra de Émile
Benveniste. Para discutir o porquê de a frase ser unidade de discurso,
mobilizamos os conceitos de segmentação, distribuição, integração e
conexão em suas potencialidades explanatórias do alçamento das
entidades em unidades linguísticas.
Abstract: In this paper, we discuss the notion of sentence in Émile
Benveniste’s theories related to the conversion of the language into
discourse in order to understand and explain why the sentence is
taken as a unit. We use Benveniste’s studies which present the sentence
as a discourse unit. Such studies show the necessity to consider the
sentence as an evanescent happening. This is so because it is not
possible to determine its meaning once it is relational. What is
possible to do is to play with possibilities of use and action.
Consequently, the concept of sentence is essential to the procedures of
semantic analysis in the research carried out by Émile Benveniste. To
discuss why the sentence is considered to be a discourse unit, the
concepts of segmentation, distribution, integration and connection in
their explanatory potential of the uprising of linguistic entities are
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
217
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
taken into account.
Le sens est en effet la condition fondamentale que doit remplir toute
unité de tout niveau pour obtenir statut linguistique. (BENVENISTE,
PLG I, p.122)
Introdução
Na Linguística, o conceito de frase pode assumir diferentes
definições, segundo a orientação teórica adotada. É conceituada por
alguns como uma abstração forjada para exemplificar questões
linguísticas, assim como pode ser considerada por outros como uma
unidade linguística inferior ao texto e ao discurso. Para ter ciência
dessas diferentes definições, é suficiente consultar um dicionário de
linguística. O termo “frase” pode, ainda, mostrar-se tão trivial que,
muitas vezes, não é reconhecida a necessidade de defini-lo e o termo é
utilizado de modo a pressupor como consensual sua conceituação e,
por isso, resvala-se na falta de rigor teórico, permanecendo sob a
égide do senso comum e, consequentemente, de uma vagueza teórica.
Com efeito, trata-se, na verdade, de um termo de difícil definição,
quando pensado para além de uma teorização específica. De acordo
com Saussure (1964 [1916], p.23) “c'est le point de vue qui crée
l'objet”1; por isso, para definir o que seja frase é necessário estabelecer
um ponto de vista e o ponto de vista de Benveniste é o da presença do
homem na linguagem e na língua. Por isso, Benveniste intenta
compreender o funcionamento do processo de conversão da línguasistema em língua-discurso, uma vez que esse processo introduz
aquele por meio do qual e em quem a manifestação de linguagem
acontece naquilo que diz ao (se) enunciar. Quais são as implicações
dessa condição na conceituação da frase no pensamento
benvenistiano? Eis o fio condutor de nossa argumentação na presente
demonstração da frase como unidade de discurso.
De pronto e de início, é possível dizer que, nas teorizações de
Émile Benveniste, o conceito “frase” ganha, além de uma definição
específica nas redes conceituais de seu pensamento, um lugar
privilegiado e um valor fundamental, uma vez que se constitui como
unidade de discurso. A condição de fundamento da frase justifica a
importância em abordá-la no processo de compreensão do pensamento
218
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
de Émile Benveniste. A assunção da frase à unidade de discurso abre
(outros) caminhos de como concebê-la e, assim sendo, de como
compreendê-la. Há um mo(vi)mento em Benveniste de questionar a
evidência sobre o que seja a frase e sua condição nada trivial no
funcionamento da linguagem.
Ao considerar a frase como unidade de discurso, a semântica de
Émile Benveniste submete-se à compreensão do que seja a frase em
função do texto e do discurso, por exemplo. De saída, Benveniste
coloca que a frase, por conexão, liga-se a outra(s) para (con)figurar
o(s) discurso(s) que pode(m) estar subjacente(s) ao texto. A conexão é
a operação semântica que coloca uma frase em relação a outra(s) na
conversão da língua-sistema em língua-discurso no ato de enunciação,
seja esta falada ou escrita. Por isso, se um texto constitui um
amontoado de frase(s), esse amontoado não implica que a(s) frase(s)
que o compõe(m) esteja(m) em desordem, ou produza(m) incoerência
e/ou possa(m) ser isolada(s) da situação discursiva que a(s) evoca(m)
sem que esse isolamento não afete a própria constituição do texto e do
discurso, em sua consistência significativa.
Para dirimir essa compreensão sobre o texto e o(s) discurso(s) que
ele pode veicular, analisamos o miniconto Hora do recreio de Luiz
Brigadeiro, disponibilizado no site Recanto das Letras. Essa análise
explora o jogo entre forma e sentido, assim como o emprego da forma
e o uso da língua, a fim de compreender e explicitar o funcionamento
da frase na textualização de (dis)curso(s). Os níveis da análise
linguística permitem colocar em relevo a inexatidão do sentido, uma
vez que a segmentação das entidades linguísticas em unidade é função
do locutor, o que abre o texto, em sua condição de discurso, à
equivocidade constitutiva.
Por isso, embora as manifestações do sentido possam parecer
fugidias, livres e imprevisíveis, elas estão submetidas às coerções da
língua em sua dupla função na linguagem: (1) a função de significar,
relativa ao modo semiótico e (2) a função de comunicar, relativa ao
modo semântico. Do ponto de vista de Émile Benveniste, é assim que
se torna possível produzir uma análise científica do sentido, como
demonstraremos na sequência.
1. Os planos semiótico e semântico na compreensão da frase
De acordo com Benveniste, a língua possui dois planos, o plano
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
219
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
semiótico e o plano semântico, organizados em quatro níveis: (1) o
merismático, (2) o fonemático, (3) o intermediário e (4) o
categoremático. O nível merismático é o dos caracteres distintivos dos
fonemas, estando implicados nele certos traços distintivos. Os traços
bilabial, gutural, surdo e sonoro, por exemplo. O nível fonemático
refere-se ao modo de organização dos signos diferenciando-se entre si
por meio das relações paradigmáticas. O nível intermediário é aquele
em que o signo, do paradigma, funciona no sintagma, contraindo as
propriedades de palavra. Havendo sintagma, a língua é manifestada no
nível categoremático, cuja expressão por excelência é a frase. Por esse
motivo, Benveniste afirma que, com a frase, a língua atravessa um
limite:
Ce qui est nouveau ici, tout d’abord, est le critère dont relève ce
type d’énoncé. Nous pouvons segmenter la phrase, nous ne
pouvons pas l’employer à intégrer. Il n’y a pas de fonction
propositionnelle qu’une proposition puisse remplir. Une phrase
ne peut donc pas servir d’intégrant à un autre type d’unité. Cela
tient avant tout au caractère distinctif entre tout, inhérent à la
phrase, d’être un prédicat. (BENVENISTE, 1966, p.128)2
Para compreender o atravessamento desse limite pela língua, é
necessário problematizar os conceitos de integração, função
proposicional e predicado, que estão presentes nas teorizações de
Benveniste. Esses conceitos estão em função de explorar esse
atravessamento de modo a teorizá-lo no alçamento da frase à unidade
de discurso. Dito de outro modo, esses conceitos funcionam na
tessitura teórica da formulação do que é o semiótico e o semântico e
do que é a unidade linguística em cada plano.
É necessário, de antemão, explicitar que esses planos funcionam
juntos no exercício da linguagem; por isso, não há passagem de um
plano para outro, no sentido de que, ao entrar em um plano, o outro
não estaria ali operando sobre o funcionamento da língua. Nesse
sentido, Benveniste não busca destituir a complexidade e o paradoxo
do funcionamento da língua na linguagem posta em ação, na
(re)produção de discurso. Ao contrário, seu interesse é trabalhar esse
funcionamento paradoxal, de modo a explicitar a função do homem no
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
processo de conversão da língua-sistema em língua-discurso.
Em francês, “intégrer” pode ter tanto o sentido de enxertar em um
conjunto como o de inseri-lo em um todo de modo a pertencer
solidariamente com os outros elementos: “placer quelque chose dans
un ensemble de telle sorte qu'il semble lui appartenir, qu'il soit en
harmonie avec les autres éléments”3. E é justamente essa definição de
que se serve Benveniste para explanar a integração: os elementos do
nível merismático integram o nível fonemático que integram o
intermediário até chegar ao categoremático de maneira a formar
língua, por isso, a relação é solidária. Por exemplo, no nível
merismático, a guturalidade surda de “g” integra “gato” de modo a
diferenciá-lo da guturalidade sonora do “c” em “cato”.
No nível fonemático, “gato” e “cato” coexistem de modo a
fornecerem possibilidades de associações ao locutor. Enquanto
integrantes do eixo paradigmático, essas unidades são constituintes do
nível intermediário, nessa conversão de signo a palavra:
“conheço/[cato/gato]/eu/um”. Quando (n)o locutor (se) faz as suas
associações, fazendo com que “cato” não se relacione a “catar”, mas a
“povo da Germânia”, ele poderia sintagmatizá-lo na frase “eu conheço
um cato”, de modo a fazer com que seu significado genérico tome um
emprego específico, inclusive podendo relacioná-lo a “eu conheço um
gato”, se o emprego de “gato” estiver para “homem bonito”, o cato.
Deste modo, “cato” integra esse sintagma, tornando-se um elemento
solidário ao todo. Solidário, portanto, significa que um termo está em
função do(s) outro(s), estabelecendo entre eles uma relação de
interdependência e de (de)limitação recíproca.
É a partir desse tipo de raciocínio que Émile Benveniste emprega o
conceito de “fonction propositionnelle”4: no nível categoremático, a
palavra toma uma função na frase. Por conseguinte, “fonction”
deveria ser tomada no sentido de “rôle joué par un élément dans un
ensemble”5, isto é, a função é um papel que um elemento preenche em
jogo. Na língua, esse jogo é frase, que, pautada no eixo paradigmático,
oferece uma indefinida gama de relações. Dependendo da maneira
como se articula a palavra nessa rede de associações, ela vai tomar
funções proposicionais diferentes. Assim, “função” não implica
meramente uma finalidade ou uma categoria gramatical fixa, mas
relação e dependência solidária entre os elementos linguísticos. Nesse
sentido, vale ressaltar que não há nada na frase que lhe seja acessório,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
221
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
uma vez que estes estão em função da ideia que a frase pode veicular
na situação discursiva que a evoca.
Consequentemente, a frase é um predicado porque ela diz ou pode
dizer algo (de algo ou alguém). Em nota6, Benveniste explana que sua
definição de “prédicat” deriva do termo grego “katégoréma”, o qual
equivale a “praedicatum” em latim. “Praedicatum” é o particípio
passivo de “praedico”, cujas definições dicionarizadas podem revelar
sentidos interessantes para a compreensão do modo como o termo
pode ser conceituado em Benveniste:
Dizer em alto e em bom som, dizer na cara, perante
testemunhas, publicamente; dizer, falar. Audes mihi praedicare
id? Ter. Pois tu atreves-te a me dizer isto? Quod mihi praedicas
vitium. Plaut. O defeito que me imputas. Ita praedicant. Ter.
Assim corre, assim dizem. Utrumne taceam, an praedicem? Ter.
Devo calar-me ou falar? (SARAIVA, 2006, p.929)
Nesse verbete, o emprego de “dizer” que Terêncio faz de
“praedico” nas frases corresponde aos sentidos que Saraiva
dicionariza. Entretanto, o exemplo de Plauto foge a isso: em “Quod
mihi praedicas vitium”, “praedicas” atribui uma propriedade,
“vitium”, a “mihi”, por isso a tradução: “O defeito que me imputas”.
Assim, o dativo expresso por “mihi” não seria meramente o “objeto
indireto”, como geralmente tenta-se explicar esse caso, mas o caso que
denota o “beneficiário”, isto é, aquele que recebe os efeitos de uma
ação. No caso dessa frase, o “ego” recebe o efeito, “vitium”, do “tu”
que “praedicas” sobre ele, por isso, “mihi”.
Embora Saraiva não tivesse explicitado esse emprego, é possível
observar por esse exemplo que os romanos também faziam uso de
“praedico” de modo a conferir-lhe o sentido de “dizer algo de
alguém”, isto é, atribuir propriedades dizendo. E é justamente esse
sentido que “praedicatum” toma em Benveniste. Compreendamos essa
questão a partir das três consequências que esse autor enumera no que
diz respeito ao fato de a frase ser um predicado: (1) o sujeito
gramatical não é necessário, (2) a sintaxe é um código gramatical e (3)
a entonação é subjetiva:
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
De même la présence d’un “sujet” auprès d’un prédicat n’est
pas indispensable: le terme prédicatif de la proposition se suffit
à lui-même puisqu’il est en réalité le déterminant du “sujet”. La
“syntaxe” de la proposition n’est que le code grammatical qui
en organise l’arrangement. Les variétés d’intonation n’ont pas
valeur universelle et restent d’appréciation subjective. Seul le
caractère prédicatif de la proposition peut donc valoir comme
critère. (BENVENISTE, 1966, p.128)7
A frase tem um termo predicativo, isto é, seu fim último é predicar,
atribuindo propriedades ao dizer, o que não implica a necessidade de
haver um sujeito gramatical nela. É nesse ponto que a noção de
“praedicatum” vai ao encontro da noção de “prédicat” em Benveniste:
predicar não implica necessariamente ocupar o lugar de predicado
gramatical em uma frase, mas simplesmente dizer, no sentido de
“praedico” do termo. É por isso que a sintaxe seria apenas o código
gramatical que organiza o arranjo da frase.
Esse “apenas” não viria pejorativamente – já que o próprio
Benveniste fez estudos muito pesados em sintaxe - mas de modo a
mostrar que a frase não se resume a seu arranjo, que é forma: ela
também veicula sentido(s) – isso possibilita, inclusive, que a frase seja
constituída de uma única palavra8. Por isso, predicar é dizer por meio
desse arranjo, que pode dar-se por um conjunto de palavras, mesmo
que esse conjunto seja unitário, (com)portando, por conseguinte,
apenas uma palavra. Essa palavra, por sua vez, para se constituir como
frase, deve assumir a condição de sintagma. Um exemplo de sintagma
de termo unitário é encontrado nas placas com o dizer “Silêncio!”
colocadas nas salas de espera de hospitais.
Dizer, poderíamos observar, não só no sentido de “dizer em alto e
em bom som” de “praedico”, dado que a entonação está para a
apreciação subjetiva, mas no sentido de “atribuir propriedades
dizendo”, já que é o caráter predicativo da frase que vale como critério
de análise. Isso porque a entonação está para a substancialização da
língua, que, justamente por ser substância, não pode ser tida como
linguística; o linguístico é de natureza psíquica e não de natureza
física. A natureza física restringe-se ao suporte da língua nas
manifestações da linguagem. Conforme Saussure,
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
223
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
Ainsi, si nous prenons le côté matériel, la suite de sons, elle ne
sera linguistique que si elle est considérée comme le support
matériel de l’idée; mais envisagé en lui-même, le côté matériel,
c’est une matière qui n’est pas linguistique, matière qui peut
seulement concerner l’étude de la parole, si l’enveloppe du mot
nous répresente une matière qui n’est pas linguistique. Une
langue inconnue n’est pas linguistique pour nous. A ce point de
vue-là, on peut dire que le mot matériel, c’est une abstraction au
point de vue linguistique. Comme objet concret, il ne fait pas
partie de la linguistique. (SAUSSURE In: ENGLER, 1989,
p.232)9
A substancialização da língua, considerada por ela mesma, é
apenas uma cadeia de sons que torna o signo material. Por isso, na
Linguística, ela é pura abstração: os sons, não sendo o suporte de um
conceito, não podem ser considerados signos; o mesmo se dá com a
frase: sendo ela apenas uma sequência de sons sintagmatizados que
partem da boca de um locutor e chegam à orelha de um interlocutor,
por mais diferentes que sejam as flexões de voz, não pode ser tida
como linguística. Portanto, escapa ao domínio de estudo da
Linguística, o que não implica que não possa ser estudado por outra
ciência e contribuir com os estudos em Linguística. Por isso, a
entonação permaneceria como apreciação subjetiva, na qual o termo
“subjetivo” estaria para “abstrato”, e não no sentido benvenistiano do
termo “simbólico”.
Com base no exposto, compreendemos que, na frase, a língua
atravessa um limite devido à predicação: esta faz com que haja a
passagem da língua-sistema à língua-discurso10. Dado a isso, voltemos
ao nosso exemplo: o interlocutor pode não compreender “eu conheço
um cato” se o emprego de “cato” enquanto “povo da Germânia” não
pertencer às suas redes de relações associativas. Se não o faz, “eu
conheço um cato” não irá se constituir linguisticamente para o
interlocutor; essa possibilidade faz com que a frase não seja uma
unidade de língua, mas uma unidade de discurso, no sentido em que o
interlocutor saberia que ela “diz algo”, mas o que ela diz não lhe
estaria acessível. Façamos a tessitura dos desdobramentos dessas
colocações teóricas no próximo tópico.
224
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
2. A intersubjetividade na compreensão da frase
Na semântica benvenistiana, a relação entre forma e sentido é
inalienável e, por isso, imanente, o que significa dizer que não há
unidade de status linguístico sem a relação entre elas. São noções
gêmeas e, por isso, têm a mesma natureza psíquica e se formam juntas
na língua-sistema e, em decorrência, estão presentes na línguadiscurso como entidade imantada que garante a permanência da língua
em funcionamento na estrutura linguística; forma e sentido estão um
em função do outro, ou seja, não há forma sem sentido e não há
sentido sem forma; é no exercício da linguagem que forma e sentido
se produzem, se deslocam, se modificam; mas também se estabilizam
e se mantêm em relação. E é justamente na imanência entre forma e
sentido que está calcada a subjetividade e, portanto, a noção de frase
de Benveniste:
La phrase est une unité, en ce qu’elle est un segment de
discours, et non en tant qu’elle pourrait être distinctive par
rapport à d’autres unités de même niveau, ce qu’elle n’est pas,
comme on l’a vu. Mais c’est une unité complète, qui porte à la
fois sens e reférence (BENVENISTE, 1966, p.130)11.
O discurso é a expressão do emprego da língua, é aquilo que surge
como efeito do fato de os homens se comunicarem, embora essa
“comunicação” não implique nem simetria nem igualdade no processo
de referenciação entre locutor e interlocutor. Assim, a frase é uma
unidade de discurso não no sentido de que ela entra em relação de
distinção com outras frases – a língua não possui frases prontas no
sistema, uma vez que se organiza em paradigma –, mas na medida em
que é um segmento da atualização da língua-sistema em línguadiscurso. Por esse motivo, a frase possui referência, que, sendo a
situação de discurso que a evoca, sempre se esvai. Entretanto, há um
resto que sobra, o sentido, que se torna inteligível.
Por ser inteligível, esse resto se dá em razão do critério predicativo,
o que produz três tipos de frase: a proposição assertiva, a proposição
imperativa e a proposição interrogativa. Poder-se-ia questionar que é a
entonação que as diferencia. Entretanto, para Benveniste, é a
predicação que o faz justamente porque faculta o manejo de três
funções inter-humanas: a função de veicular um conhecimento na
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
asserção, a função de obter uma informação na interrogação e a
função de intimar uma ordem no modo imperativo. O que distingue
uma proposição de outra são as funções discursivas que se dão entre
os homens na intersubjetividade, e não meramente uma inflexão de
voz. O simbólico tem preponderância com relação à substancialização
da língua.
De modo resumido, poderíamos dizer que a frase é uma unidade de
discurso porque ela é uma porção do processo de semantização da
língua; por isso, a frase não é passível de decomposição. Quando o
locutor organiza os signos que estão impressos virtualmente em sua
mente em sintagmas, de modo a produzir frases conexas entre si, a
língua-sistema, que herdou dos outros homens em sua experiência de
linguagem, converte-se em língua-discurso, cuja expressão por
excelência é a frase. Por isso, a frase apresenta um funcionamento
particular: ela permite que o modo semiótico se articule ao modo
semântico de maneira a produzir significância, o que habilita o
diálogo entre os participantes da relação discursiva.
Consequentemente, a noção de unidade discursiva em Benveniste
implica necessariamente a noção de intersubjetividade, uma vez que
está em função dos participantes da relação discursiva. Para que haja
correferenciação entre os participantes da relação discursiva, é
necessário que a intersubjetividade esteja em operação e
funcionamento. Ao possibilitá-la, a frase se torna um tipo de
enunciado12 que vem em função de organizar ideia(s), uma vez que a
ideia é o sentido possível da frase em uma situação de discurso que a
evoca; a noção de “situação” pressupõe necessariamente a instância
de, ao menos, dois homens em atividade de diálogo13. Em decorrência,
se há o tipo de enunciado que organiza ideias, a frase, também há a
contraparte, aquele tipo de enunciado que não o faz. Se alguém emite
“palavras soltas” de tal modo que elas não entram em conexão para
formar uma ideia na situação de discurso que a(s) evoca(m), então é
possível conceber que há enunciado que não se constitua como frase.
Nesse caso, esse enunciado também não se constituiria como
discurso, porque não (con)figuraria um dizer organizado e articulável
à série da realidade (social). Se levamos a sério que o sentido é
relacional ao eu-tu-ele-aqui-agora da enunciação, há a possibilidade
de que o enunciado não se constitua como frase-discurso para o
interlocutor; condição em que o enunciado lhe chegaria como mera
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
falação, ou seja, como uma espécie de “barulho” que não diz,
barrando a possibilidade de o interlocutor correferir-se ao locutor e de,
assim acontecendo, poder assumir a condição de co-locutor daquilo
que o locutor (se) diz ao enunciar. Portanto, para que o enunciado se
constitua como frase-discurso é necessário que ele, na relação com os
participantes da interlocução, faça sentido.
A frase, portanto, é um tipo de enunciado que não pode integrar
outro tipo de unidade, porque ela é o último nível passível de ser
segmentado em unidades linguísticas. Um conjunto de frases conexas
não é segmentável em unidades linguísticas, porque o sentido da frase
é sua ideia e essa ideia está em função do eu-tu-ele-aqui-agora de sua
enunciação14. Nesse sentido, a frase não pode constituir-se como
unidade linguística, porque ela é evanescente ao seu acontecimento.
Nessa perspectiva, o texto e o discurso não são níveis. O discurso é
efeito e, por isso, evanescente e relacional ao eu-tu-ele-aqui-agora da
enunciação.
Já o texto pode ser compreendido como um resto “morto” de
enunciação; aquilo que resta materialmente falando da condição
evanescente da frase e do discurso e que, por isso, permanece, em
latência, para que outro homem, em lugar de interlocutor, possa
revivê-lo e, assim se dando, re-construí-lo discursivamente. Nesse
sentido, o texto precisa de um interlocutor que o leia e que, ao lê-lo,
alce-o à condição de discurso, re-significando-o. Trata-se, nessa
perspectiva, de uma outra relação discursiva, o que implica uma nova
enunciação e a possibilidade de re-produção de (outros) sentidos.
Na direção dessa compreensão do pensamento de Émile
Benveniste, podemos citá-lo em seu texto “La phrase nominale15”, de
1950, presente no PLG1, de 1966. Nesse texto, o autor afirma que “un
énoncé assertif fini possède au moins deux caractères formels
indépendants: 1) il est produit entre deux pauses; 2) il a une intonation
spécifique16” (BENVENISTE, 1966, p.154). Continua ele:
Une assertion finie, du fait même qu'elle est assertion, implique
référence de l'énoncé à un ordre différent, qui est l'ordre de la
réalité. A la relation grammaticale qui unit les membres de
l'énoncé s'ajoute implicitement un “cela est!” qui relie
l'agencement linguistique au système de la réalité17.
(BENVENISTE, 1966, p.154)
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
É na relação, portanto, entre o agenciamento linguístico da frase e
a situação discursiva que a evoca que a referência se constrói e ela
pode, então, representar o mundo por meio da função simbólica da
linguagem. É observável, ainda, que “enunciado”, nesse mo(vi)mento
teórico, refere-se a dizer e dizer de tal modo que re-produz o mundo,
re-construindo uma realidade imaginária.
É por esse motivo que “nihil est in lingua quod non prius fuerit in
oratione18”. Por meio da frase, o locutor tem acesso a um número
finito de elementos semióticos empregados, os quais, semantizados,
fazem acontecer uma infinidade de sentidos no discurso. Isso permite
que a língua se forme e se (con)figure pela atualização que se dá por
meio do diálogo. A frase, portanto, patenteia a sua natureza
primordial, a de ser uma unidade - porque é forma e (con)figura - de
discurso - porque acontece na intersubjetividade.
3. A frase no texto e sua assunção a discurso
A frase no texto é a parte do enunciado que permanece disponível
para que um falante, no lugar de interlocutor (tu), possa ascendê-la à
condição de frase no processo de leitura e, assim, poder (con)figurarse como co-locutor; nesse mo(vi)mento, a frase é compreendida como
unidade de discurso, porque toma lugar no processo de (re)enunciação
do texto. Discurso, em Benveniste, é o efeito do processo relacional
que instaura a língua-sistema como instrumento da comunicação19 em
uma relação de intersubjetividade específica na língua-discurso. Por
isso, há um desencaixe constitutivo entre o que o locutor reproduz e o
que o interlocutor recria por meio da linguagem em ação.
A análise do miniconto Hora do recreio de Luiz Brigadeiro,
abaixo, pode clarificar nossa problematização da frase como unidade
de discurso na perspectiva benvenistiana. No entanto, é necessário,
antes, fazer uma ressalva sobre o fato de o texto constituir-se como
parte do espaço literário. Trata-se de um texto em prosa e, por isso,
seu funcionamento aproxima-se do funcionamento da linguagem
ordinária, de modo que sua análise não implica uma desconfiguração
do pensamento de Benveniste sobre o funcionamento da linguagem
em ação, ou seja, sobre o funcionamento do discurso (BENVENISTE,
1966 [1958], p.258).
Nesse caso, o eu-tu-ele-aqui-agora da enunciação reporta-se a uma
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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
construção que não traduz propriamente uma realidade social20; sua
referência é a emoção que o conto intenta re-criar no interlocutor que
o leia. Em Benveniste, a re-criação está para o interlocutor; este cria
sua interpretação a partir da relação que se instaura, no processo de
leitura, entre o texto e sua experiência de linguagem, na situação de
discurso que esse processo coloca em funcionamento.
A relação de integração refere-se à articulação de uma unidade a
outra a fim de constituir outra unidade de nível superior. Na
integração, há relação de interdependência e de hierarquização; a
relação de interdependência preconiza que um elemento é em função
do outro e a relação de hierarquização pressupõe a existência de
elemento determinante e de elemento determinado. A relação
específica para promover o conjunto das frases à condição de texto é a
conexão. A conexão, por sua vez, implica uma relação de
(de)limitação e de direcionamento. A (de)limitação refere-se às
possibilidades de encadeamento das frases e o direcionamento é a
operação que intenta “amarrar” as possibilidades de sentido(s). Para
empreendermos a análise do miniconto, jogaremos com essas relações
e com a intersubjetividade instaurada no mo(vi)mento de confidência
do eu lírico.
Hora do recreio
(1) Lá vinha ela. Sempre com fita no cabelo e lancheira de lado.
Hoje tomei coragem, cheguei mais perto e disse:
__ Oi, vamos brincar?
__ Brincar de quê?
Por timidez fiquei mudo.
(2) Eu queria apenas brincar de dar as mãos pra ela.
(Luiz Brigadeiro. Publicado no Recanto das Letras em
19/06/2008)
Em “Lá vinha ela”, no nível fonemático, “vinha” integra-se à frase
de modo a diferenciar-se de “tinha”, “minha”, “linha”, entre outros.
No nível intermediário, essa integração é acirrada, uma vez que o
signo “vinha” pode relacionar-se equivocamente tanto ao sentido de
“terreno de videiras” quanto ao de “encaminhar-se a um lugar” no
modo semântico. O agenciamento da frase, entretanto, seleciona essas
possibilidades, permitindo encaixar o segundo sentido, em detrimento
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
do primeiro, dentre outros possíveis.
O sentido de “terreno de videiras”, no entanto, pode não ser
acionado nas relações associativas, uma vez que a língua está no
homem de modo parcelar e, por isso, os sentidos também, embora o
manejo da língua a afete em seu todo. A relação com “lá” e “ela”, em
certo sentido, (de)limitam-na em uma relação de solidariedade
recíproca, asseverando o abandono da interpretação de “vinha” como
“terreno de videiras”. Nesse caso, os participantes podem não ser
tocados por essa equivocidade e um efeito de evidência do sentido
pode se dar.
Por conseguinte, no nível categoremático, os signos se organizam
de maneira solidária. Assim, a frase não pode ser concebida como um
somatório destes. Merismaticamente, em “ela”, o caráter de ser uma
vogal central baixa de “a” faz diferenciá-la da anterioridade média de
“e”, em “ele”, o que, no nível categoremático, leva ao efeito de
sentido de que o eu lírico observa a vinda de um indivíduo que ele
considera como “feminino”, não sendo possível, apenas com essa
frase, esboçar o quadro daquilo que constitui esse indivíduo enquanto
sujeito. Por ora, só sabemos que esse indivíduo se desloca, “lá”, de um
lugar já da realidade do discurso a outro, também dessa realidade, em
que se encontra o eu lírico.
Graças à consecução de frases, é possível em “Sempre com fita no
cabelo e lancheira de lado” começar a desenhar (uma) instância(s)
discursiva(s) para esse “feminino”. A função proposicional de cada
uma das palavras que a compõem é de essencial importância para esse
desenho. Junto ao verbo do período anterior, “sempre” confere a “vir”
uma constância, um hábito que não caracteriza propriamente o “ela”,
mas a maneira como o eu lírico vê esse “ela”.
“Com fita no cabelo” e “[com] lancheira de lado” conferem a “ela”
caracteres que fazem-na sair do lugar do ordinário, da massa de
pessoas indistinguíveis, destacando-se ante os olhos do eu lírico.
Consequentemente, três sintagmas, “sempre”, “com fita no cabelo” e
“[com] lancheira de lado”, desempenhando a função tida como de
adjunto adverbial, não podem ser meramente termos acessórios e, por
isso, dispensáveis, como preconizado pela Gramática Normativa da
Língua Portuguesa. É justamente esses adjuntos que permitem esboçar
um desenho não de “ordinariedade”, mas de “especialidade”, daquilo
que é especial, do “ela” em relação ao “eu”.
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
Em que consiste essa “especialidade” se dá no enunciado que se
sequencia: “Hoje tomei coragem, cheguei mais perto e disse”. Esse
enunciado é composto de três frases que se organizam por
coordenação. Como a frase é um predicado, na conexão dessa
coordenação é possível entrever como o “ela” passa a tomar outro
lugar na realidade discursiva. “Hoje tomei coragem” atribui
propriedades de modo a fazer compreender, dentre outras
possibilidades, de que “ela” constitui uma dificuldade que exige um
enfrentamento por parte do “eu”. Tomando coragem, ele enfrenta a
situação e chega mais perto, predicando uma diminuição da distância
que o “lá” da primeira frase do texto poderia permitir pressupor.
Desta feita, a coordenação de “e disse” se torna o clímax da
narrativa confessional do eu lírico, uma vez que (trans)forma21 o
“ela”, a não-pessoa do discurso, em “tu”, a pessoa a quem o “eu” se
dirige, apesar de toda a dificuldade, para se constituir, desvendando a
“especialidade” que esse “tu” representa para o “eu”. Nesse (des)velar,
a frase “Oi, vamos brincar?” (con)figura-se como um convite. Esse
convite é marcado por uma equivocidade que o “tu”, em certo sentido,
explicita em sua interrogação: “Brincar de quê?” O auge da inocência
do “eu-tu” em relação ao intentado do eu lírico. A essa questão, o
leitor, em lugar de interlocutor do texto, poderia propor diversas
respostas, como “brincar de amor, brincar de médico, brincar de
escolinha”, ou seja, brincar em seus diferentes sentidos; com mais ou
com menos malícia.
Essa equivocidade, por conseguinte, permite ler o texto de
diferentes modos e, assim se dando, alçá-lo a discursos diferentes: no
discurso infantil, um convite para brincar; no discurso erótico, um
convite para “transar”; no discurso amoroso, um convite para namorar
ou um convite para curtir um momento a dois, para “ficar” etc. Dessa
forma, o interlocutor está imbuído de uma co-responsabilidade na
interpretação em sua leitura do texto e essa interpretação é direcionada
pelas relações associativas que a experiência de linguagem do
interlocutor mo(vi)menta. Por isso, é possível deduzir a importância
de tais relações no alçamento das entidades em unidades linguísticas.
O texto, por sua vez, sintetiza o que poderia ser a expressão de uma
primeira experiência amorosa e, por isso, seleciona, no eixo
paradigmático, a emoção titubeante da hora da primeira aproximação.
A frase “Por timidez fiquei mudo” poderia, nesse mo(vi)mento, ser
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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
lida como significando “receio de ser preterido ou rejeitado” pelo
indivíduo “feminino”, objeto de desejo do eu lírico, ou como
significando certo “pudor para dizer o que se intenta”. A conexão da
frase ulterior “Eu queria apenas brincar de dar as mãos pra ela”
(de)limita os sentidos possíveis e pode prolongar o caráter ingênuo da
emoção que pode referenciar, a despeito de outras interpretações mais
maliciosas que a ausência da última frase poderia manter em operação
de acirramento.
Nesse sentido, a última frase do texto é fundamental para
(de)limitar certa emoção que pode referenciar e, também, para intentar
produzir um efeito de fechamento para o texto em certa direção de
sentido: aquela da inocência pueril ante o primeiro amor. No entanto,
é necessário considerar ainda que há sentidos metafóricos, inclusive
para o sintagma “brincar de dar as mãos pra ela”, o que, na condição
de discurso, abre o sentido na assunção da frase a unidade de discurso.
A conexão das frases em (1), por conseguinte, mantém a
direcionalidade do(s) sentido(s) em certa equivocidade, enquanto (2)
funciona como estofo para essa equivocidade, constituindo-se como
“amarra” para um certo intentado de significação. Por isso, é possível
dizer que o miniconto constitui-se como texto, produzindo, ao menos
para uma parte dos falantes de Língua Portuguesa, o efeito de unidade
de sentido, com consistência significativa, o que lhe imputa o efeito de
que apresenta começo, meio e fim e, por isso, pode ser considerado
um texto.
Na condição de discurso, por sua vez, o texto poderia referenciar
emoções diversas e bem diferentes, tanto em relação ao eu lírico
quanto em relação ao “ela”, ao “amor”, ao “desejo” dentre outros. O
eu lírico pode, então, ser significado como romântico por uns leitores,
assim como pode ser significado como otário por outros por ter
perdido a oportunidade de uma investida amorosa. Nesse sentido, a
frase é evanescente, inclusive, porque pode significar diferentemente
para um “mesmo” leitor em diferentes situações de discurso.
Conclusão
Com o presente artigo, intentamos demonstrar o porquê de a frase
ser compreendida como unidade de discurso por Émile Benveniste,
sendo, por isso, marcada pelo aspecto evanescente da enunciação na
qual (con)figura-se. Nas teorizações de Émile Benveniste, a frase
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
também pode ser compreendida como tipo de enunciado e, assim,
teríamos, por exemplo, frase nominal e frase relativa. O conceito de
frase em relação à linguagem em funcionamento no discurso ganha
contornos específicos e significativos, constituindo-se como unidade
de discurso. Assim, a frase torna-se um tipo de enunciado, cuja
premissa básica é poder significar uma ideia. Para tanto, a frase não se
restringe ao somatório de suas partes; a sua significação é de outra
ordem; embora dependa de suas partes, ela as transpõe.
Nesse jogo, a conexão que se estabelece entre as frases pode ou
não constituir-se como texto e assumir a condição de discurso. É
possível, por conseguinte, conceber que texto, em sua função
predicativa, é um modo de as frases, por conexão, tornarem-se aptas a
(re)produzir sentido(s) de modo organizado e com consistência
significativa. Ou seja, texto é um modo de ordenar frases, a fim de
intentar conter o(s) sentido(s) que ali pode(m) ser (re)produzido(s) na
relação com o interlocutor e sua experiência de linguagem. Assim
sendo, a leitura do texto projeta uma interpretação que o alça a
discurso; é nesse mo(vi)mento que o texto (re)produz sentido(s) na
relação com o leitor e sua experiência de linguagem. Por isso, em
Benveniste (1966 [1958] p.258), discurso é a linguagem posta em
ação e, necessariamente, entre parceiros.
“Eu” e “tu” constituem-se, portanto, como lugares na língua para
que os falantes possam endereçar-se a outro humano e, assim,
estabelecer uma relação de interlocução na qual colocam-se como
parceiros. Parceiros no sentido de que, enquanto pessoa, associam-se
no exercício da linguagem posta em ação. Ou seja, no sentido latino
do termo, partiarius, aquele que tem parte nesse exercício, aquele que
joga o jogo da linguagem e que, ao jogar esse jogo, emerge como
sujeito. Por esse jogo ser relacional, a frase, em Benveniste, é uma
unidade evanescente; ela é a relação única e discreta da enunciação.
Por isso, irrepetível. O retorno a ela é sempre (re)construção de
enunciação; é sempre mo(vi)mento singular. Eis a beleza suprema da
linguagem humana!
Referências bibliográficas
BENVENISTE, E. (2002 [1966]). Problèmes de linguistique générale.
Saint-Amand: Éditions Gallimard, v.1.
_____. (2002 [1974]). Problèmes de linguistique générale. Saint-
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
233
A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE
BENVENISTE
Amand: Éditions Gallimard, v. 2.
BRIGADEIRO, L. (2008). Hora do recreio. Disponível em:
<http://goo.gl/gQGEuQ> Acesso em: 24 mar. 2015.
JEUGE-MAYNART, I. (2012). Larousse: dictionnaires de français.
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Éditions
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Disponível
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2015.
SARAIVA, F. (2006). Dicionário latino-português. Rio de Janeiro:
Livraria Garnier.
SAUSSURE, F. (1964). Cours de linguistique générale. Paris: Payot.
_____. (1989). Cours de linguistique générale. Édition critique par
Rudolf Engler. Wiesbaden: Harrassowitz.
Palavras-Chaves: Émile Benveniste, Semântica, frase.
Keywords: Émile Benveniste, Semantics, sentence.
Notas
*
Pós-graduanda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da
Universidade Federal de Uberlândia.
1 Essa tradução e todas as seguintes são nossas. “É o ponto de vista que cria o objeto”.
2 “O que é novo aqui, primeiramente, é o critério de que releva esse tipo de enunciado.
Podemos segmentar a frase, não podemos empregá-la para integrar. Não há função
proposicional que uma proposição possa preencher. Uma frase não pode, então, servir
de integrante de outro tipo de unidade. Isso tem relação, sobretudo, ao caráter
distintivo entre todos, inerente à frase, de ser um predicado.”
3 INTÉGRER. In: JEUGE-MAYNART, 2012, não paginado: “colocar algo em um
conjunto de tal modo que lhe parece pertencer, que esteja em harmonia com os outros
elementos”.
4 Cf. BENVENISTE, 1966, p.125.
5 FONCTION. In: JEUGE-MAYNART, 2012, não paginado: “papel desempenhado
por um elemento em um conjunto”.
6 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128.
7 “Do mesmo modo, a presença de um ‘sujeito’ junto de um predicado não é
indispensável: o termo predicativo da proposição basta por si mesmo, já que ele é, na
verdade, o terminante do ‘sujeito’. A ‘sintaxe’ da proposição é apenas o código
gramatical que organiza o seu arranjo. As variedades de entonação não têm valor
universal e permanece como apreciação subjetiva”.
8 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128.
9 “Assim, se tomamos o lado material, a sequência de sons, ela apenas será linguística
se for considerada como suporte material da ideia; mas, tomado nele mesmo, o lado
material, é uma matéria que não é linguística, matéria que pode somente concernir ao
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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva
estudo da fala, se o envelope da palavra nos apresenta uma matéria que não é
linguística. Uma língua desconhecida não é linguística para nós. Sobre esse ponto de
vista, podemos dizer que a palavra material é uma abstração do ponto de vista
linguístico. Como objeto concreto, não faz parte da Linguística”.
10 Cf. BENVENISTE, 1966, p.130.
11 “A frase é uma unidade no que ela é um segmento de discurso, e não no que ela
poderia ser distintiva com relação a outras unidades de mesmo nível, o que ela não é,
como vimos. Mas é uma unidade completa, que porta, ao mesmo tempo, sentido e
referência”.
12 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128. Enunciado na acepção de que algo foi emitido,
declarado ou expresso; relativo ao particípio passado do verbo enunciar. Assim,
enuncia-se algo de algo ou de alguém.
13 Não há a necessidade de que esse diálogo se dê materialmente falando; ele pode se
dar virtualmente. Um exemplo deste seria um homem lendo o texto de outro homem.
14 Se isolamos uma frase do conjunto que a (com)porta, ela perde sua condição de
frase e assume a condição de mera proposição. Ademais, a frase não pode exercer
uma função proposicional.
15 “A frase nominal”.
16 “Um enunciado assertivo finito possui, ao menos, dois caracteres formais
independentes: 1) ele é produzido entre duas pausas; 2) ele tem uma entonação
específica”
17 “Uma asserção finita, do fato mesmo que ela é asserção, implica referência do
enunciado a uma ordem diferente, que é a ordem da realidade. À relação gramatical
que une os membros do enunciado acresce-se implicitamente um “isso é!” que liga o
agenciamento linguístico ao sistema da realidade”.
18 BENVENISTE, 1964, p.131: “nada está na língua que não estivesse anteriormente
no discurso”.
19 Em Benveniste (1974 [1968] p.97), a língua é o instrumento da comunicação,
porque é ela que torna a comunicação possível, ou seja, passível de acontecer; ela é o
fundamento da comunicação, compreendida como uma troca (de sentido), porque ela
está investida de propriedades semânticas e porque ela funciona como uma máquina
de produzir sentido. Essa troca não se dá de forma simétrica ou igual; ao contrário, ao
passar pelo crivo do interlocutor, esse não o faz passivamente, ele recebe algo, dado o
semantismo social, mas não de modo homogêneo ou total. Há, portanto, um
desencaixe constitutivo.
20 Benveniste (1966 [1963], p.25) propõe o conceito de realidade imaginária para
lidar com a re-produção do real por meio da linguagem em ação (discurso, portanto).
Assim, podemos dizer que a realidade social seja algo que se atinge a partir do
cruzamento das realidades imaginárias. Ou seja, a realidade social seria aquilo que é
socializado, no sentido de (com)partilhável, na intersecção das realidades imaginárias.
21 Essa (trans)formação significa um deslocar-se do lugar de ele, objeto de discurso,
para o lugar de tu, interlocutor e, por conseguinte, participante da relação discursiva.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
235
RESENHA
WEIL, Henri. Da ordem das palavras nas línguas antigas
comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral.
Campinas: Ed. da Unicamp, 2015. 128 pp.
Henri Weil, filólogo alemão radicado na França, defendeu, em
meados do século XIX, uma tese com importantes ideias sobre a
colocação das palavras na sentença, motivada por fatores relativos à
enunciação. À época, a Linguística ainda não havia se definido
propriamente como ciência, mas eminentes estudiosos já formulavam
postulados que influenciaram, de alguma forma, linguistas do século
XX. Referimo-nos a Georges Perrot e a Michel Bréal, autor de Ensaio
de Semântica1. Juntamente com tais nomes, Weil fundou, em 1867, a
Association pour l’encouragement des études grecques en France.
Sua tese deu origem à obra Da ordem das palavras nas línguas
antigas comparadas às línguas modernas: questão de gramática
geral, cuja terceira edição2, de 1879, serve de referência para esta
resenha.
Produzida no esteio dos estudos histórico-comparatistas, a obra em
questão defende o princípio de que a ordem das palavras segue a
ordem das ideias, de sorte que a fala configure a imagem fiel do
pensamento. A fim de validar sua hipótese, o autor analisa dados de
diferentes línguas — clássicas e modernas, sintéticas e analíticas,
como latim, grego, chinês e francês. Em princípio, poder-se-ia
suspeitar de que Henri Weil adotasse uma concepção mentalista de
língua, a julgar pela referência recorrente que ele faz ao princípio de a
disposição das palavras estar de acordo com o pensamento; todavia,
nota-se que este termo não é empregado, exatamente, com a acepção
utilizada por teorias mais recentes, de orientação gerativista e
cognitivista, a que interessa de perto o funcionamento da mente em si,
até mesmo o mecanismo biopsíquico que lhe dá origem. Depreende-se
do texto de Weil que o sentido de pensamento por ele referido é
alusivo ao que poderíamos denominar perspectiva de enunciação, ou
seja, aquilo que o locutor pretende enunciar. Soma-se a isso o fato de
que o filólogo, inspirado na tradição retórica greco-latina, tece
considerações sobre aspectos vinculados à estilística, ainda que não
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RESENHA
faça menção a tal disciplina, os quais produzem efeitos singulares no
ato da interlocução. Dessa forma, parece razoável considerar que, para
o autor, o fenômeno da colocação é diretamente influenciado por
fatores semânticos, abertos ao discurso e à enunciação.
Na introdução do livro, há menção à possibilidade de a ordem das
palavras obedecer a efeitos de eufonia, aqueles que “somente a orelha
pode julgar”. A esse respeito, sabe-se que a prosódia de fato pode
influenciar a disposição das palavras, o que é atestado por pesquisas
que analisam, por exemplo, a colocação dos pronomes oblíquos
átonos. As chamadas palavras atrativas não são nada mais do que
monossílabos ou dissílabos que, justamente por serem de curto
tamanho, fazem com que os pronomes se agreguem mais facilmente a
elas. Para Weil, porém, a eufonia tem importância secundária, posição
que ele assume com base em dois argumentos: 1) o desconhecimento
da real pronúncia das línguas clássicas, mormente grego e latim, cujos
dados são valorizados de forma especial por ele; 2) a relatividade da
eufonia, que varia de acordo com os povos e com as línguas.
Ainda na introdução da obra, ele comenta a seguinte passagem, que
Cícero, no capítulo 54 de Orator, analisa: “Oh, Marco Druso, apelo ao
pai: você costumava dizer ser sagrada a república; que todos os que a
dessacralizaram pagaram a penalidade. O dito do sábio, a temeridade
do filho comprovou”3. O que chama a atenção aqui é esta última frase,
em que há um deslocamento do objeto direto para o início da frase.
Weil afirma que, estando o verbo no fim, “a frase se arredonda, e os
termos opostos sapiens [sábio] e temeritas [temeridade] se chocam”.
Em seguida, considera que a eufonia atribuída a tal colocação
esconde, na verdade, um “julgamento de espírito”.
No início do capítulo 1, Henri Weil, partindo da concepção
tradicional que orienta os fundamentos da oração, expõe as limitações
em torno da forma como a proposição é definida, no sentido de ser “a
expressão de um julgamento”. Numa conotação geral, ele afirma que
as frases são construídas com base em julgamentos, de modo a sugerir
o aspecto subjetivo que subjaz o acontecimento enunciativo. Contudo,
em relação à dicotomia sujeito/predicado, termos que são tidos,
respectivamente, como determinado e determinante, a definição não se
aplica. Isso significa que não é apropriado entender sujeito como “ser
objeto de um julgamento pelo atributo” ou, ainda como encontramos
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Igor Caixeta Trindade Guimarães
em gramáticas recentes, “ser sobre o qual se faz uma declaração”, “ser
sobre o qual se diz algo”. A crítica de Weil advém desta frase:
(1) A intemperança perdeu este jovem.
O filólogo comenta que é mais natural entender que tenha sido feito
um julgamento sobre “este jovem”, que não é o sujeito da proposição.
Em seguida, apresenta um conceito de sujeito que lhe parece melhor:
“ser do qual a ação emana”. Curiosamente, é, em essência, o mesmo
conceito que encontramos em Mattoso Câmara (2013, p.70), na obra
Estrutura da língua portuguesa: “ser de que parte o processo verbal”.
Voltaremos a discutir a questão do sujeito mais adiante, mas o que se
destaca, por ora, é a mudança de concepção que o conceito de Weil
produz: se sujeito é o ser do qual a ação emana, não deve ser
entendido como termo determinado, mas como termo determinante.
Ainda em relação ao primeiro capítulo, gostaríamos de dar atenção
a dois pontos relevantes. O primeiro deles é pertinente a uma
aproximação com o campo de estudos da enunciação, em especial a
semântica do acontecimento e a sintaxe de bases enunciativas. Weil
afirma (p.28-29) que o homem, a princípio, dirige “sua atenção às
mudanças, aos movimentos, às ações” e que o protótipo da
proposição, em geral, diz respeito à ação sensível, na qual se
concentram também nossos pensamentos. Mesmo que não
enunciemos ações, utilizamos o mesmo modelo de proposições de
ação. Weil argumenta, assim, que dizemos o leão tem uma presa da
mesma forma que o leão dilacera sua presa. Ele analisa, ainda, duas
outras frases: A esperança supõe o desejo e A posse procura um gozo
real. Considera que, a despeito de esperança e gozo não serem
pensados como praticantes de ações, nossos pensamentos, por essa
configuração, se revestem de uma forma essencialmente dramática.
Na página 35, o autor postula que a sintaxe “é a imagem de um fato
sensível” e, por se referir às coisas, ao exterior, a “sucessão das
palavras se refere ao sujeito que fala, ao espírito do homem”. Além
disso, destaca que, na fala, “o que há de mais essencial é o momento,
o momento da concepção e da enunciação: é nesse momento que se
encontra toda a vida da fala; antes desse momento ela não existia;
depois, ela está morta”, dando destaque ao indivíduo que fala,
responsável pela condução dos signos. Trata-se de uma reflexão muito
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RESENHA
bem conduzida, especialmente por vislumbrar a relação entre
acontecimento e sintaxe, articulada pelo sujeito falante. Faríamos
apenas uma ressalva sobre a afirmação de que, depois da enunciação,
a fala está morta. Se levarmos em conta o fato de que os
acontecimentos enunciativos temporalizam, de acordo com
Guimarães, uma enunciação, ao se constituir como tal, promove novas
possibilidades de significação, isto é, não está morta depois de ter se
constituído. “O acontecimento tem como seu um depois
incontornável, e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem
significa porque projeta em si mesmo um futuro”. (GUIMARÃES,
2002, p.12).
O outro ponto a que queremos chamar atenção é uma observação
sobre a tese defendida por Weil. Ao longo do texto, ele argumenta em
favor do princípio de acordo entre a marcha das ideias e a marcha
sintática, mas alerta que tal princípio não é categórico, uma vez que “a
forma não tem nada de obrigatório” (p.30) e diferentes construções
sintáticas podem expressar o mesmo pensamento. A respeito do
fenômeno em questão, ou seja, a ordem das palavras, julgamos
importante fazer uma comparação entre o que foi postulado por Weil,
no século XIX, e o que tem sido proposto na contemporaneidade dos
estudos linguísticos.
Pesquisas atuais que se interessam pela ordem das palavras e dos
constituintes oracionais lançam muitas dúvidas sobre esse fenômeno.
A teoria da cartografia sintática, desenvolvida por Rizzi (1997), no
quadro da gramática gerativa, utiliza princípios pragmáticodiscursivos na formulação de categorias funcionais que são
responsáveis pelo deslocamento de um termo. Nessa perspectiva, a
topicalização, entendida como um recurso sintático de movimento de
um constituinte para a primeira posição da oração, é explicada por
efeitos relacionados a tematização e a focalização, que exercem força
ilocucionária. Nota-se que as línguas têm diferentes tendências na
fixação da ordem de constituintes, o que faz com sejam agrupadas em
tipologias distintas (como línguas V1, V2), de acordo com a posição
do verbo. Pinto (2011), baseado em Kayne (1994), afirma que as
línguas têm uma ordem básica subjacente comum, e o que explica as
eventuais alterações dessa ordem é o movimento de um constituinte
para a esquerda, o qual passa a ser hospedado à esquerda de outro
elemento. Não se trata, porém, de uma explicação esclarecedora, mas
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de uma descrição de categorias, em termos de traços mais
fortes/fracos, motivadores do movimento. O autor comenta não serem
claras “as razões pelas quais um determinado traço é forte ou fraco.
As coisas simplesmente são assim. ‘É forte porque se move. É fraco
porque não se move’”. (PINTO, 2011, p.4). A respeito da posição do
advérbio em relação ao verbo, por exemplo, sabe-se que em inglês é
preferível que ele figure antes do verbo, como em He carefully
explained the lesson, ao passo que, em francês, ocorre
preferencialmente após o verbo, como em Il a expliqué soigneusement
la leçon. A ordem é, pois, “explicada” em razão do movimento de
categorias formais. Além dessa variedade de tendências de ordenação,
as línguas podem sofrer mudanças de parâmetros relacionados à
ordem; em vista disso, é inevitável destacar a complexidade do
assunto. De toda forma, há um reconhecimento, mesmo entre teorias
linguísticas mais díspares, de que a ordem das palavras na frase se
prende, em peso, a fatores relativos à enunciação, e, nesse sentido, a
tese de Henri Weil, passados mais de 150 anos, permanece atual,
feitas as devidas ressalvas.
Pezzati ocupou-se em estudar aspectos da ordem do português,
com base em uma teoria funcionalista. Ao discutir o tema, considera
que a linearidade da sentença “é um meio muito primitivo, por isso
tende a refletir a ordem normal e natural dos fenômenos que ocorrem
na realidade extralinguística” (PEZZATI, 1993, p.160). Acrescenta,
fazendo alusão à natureza psicológica do falante, que os atores
preexistem às ações, e estas, por sua vez, depois de realizadas é que
atingem um objeto ou dão origem a outros. Ademais, trata da oposição
dado X novo, alegando que primeiro se coloca o que é de
conhecimento do ouvinte e, em seguida, o que é novo para ele. Uma
sentença ilustrativa desse ponto de vista, apresentada pela autora, é
João morreu, cuja ordem é motivada pela perspectiva do falante, no
sentido de que ele escolheu indicar um processo ocorrido com João,
daí este SN assumir a posição de tópico e a função de sujeito.
Destaca-se no estudo de Pezzati uma crítica às propostas
tradicionais de classificação do português quanto ao quesito ordem.
Ela afirma que é equivocado classificar o português como sendo uma
língua SVO em razão do fato de que, a depender do tipo de verbo em
torno do qual se constrói uma oração, como os intransitivos não
existenciais, a ordem normal é a VS (Saíram as notas). Um outro
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RESENHA
ponto do trabalho de Pezzati que chama atenção, de forma especial, é
a afinidade com o princípio defendido por Weil — o de que a marcha
sintática segue a marcha das ideias. A autora cita passagem da
gramática de Jerônimo Soares Barbosa, contemporâneo de Wiel, na
qual se lê que a ordem natural das sentenças está de acordo com a
ordem “com que nosso espírito concebe as coisas” (BARBOSA, 1830,
apud PEZZATI, 1993, p.163).
Encontra-se, em Mattoso Câmara, um breve estudo de sintaxe de
colocação, vinculada à estilística. Kehdi4 (2004) pondera que, para o
eminente linguista, há um princípio que consiste em atribuir ao último
termo do enunciado o máximo valor informativo, o que possivelmente
poderia explicar a colocação normal do sujeito, antes do verbo, em
consonância com a proposta de Pezzati; explicaria, também, a
tendência do adjetivo de ocupar uma posição posterior ao substantivo,
uma vez que este tem informações acrescentadas por aquele. Não
obstante haver um fundo de verdade no referido princípio,
especialmente se se levam em conta os efeitos de uma escala
argumentativa, tão bem explorados por Oswald Ducrot5, no caso
particular da colocação do adjetivo em relação substantivo, há uma
grande imprecisão quanto aos fatores que motivam a anteposição ou a
posposição, o que Mattoso também problematiza. Certos adjetivos
podem ocorrer em ambas as posições, como excelente (excelente
pessoa/pessoa excelente), sem mudança de sentido; outros também
podem ocorrer pospostos ou antepostos, como grande (grande
homem/homem grande), mas com mudança de sentido; há aqueles que
só podem ser antepostos, como mero (mero político), e, por fim, os
que apenas aparecem pospostos, como os gentílicos (homem francês).
O mesmo não acontece necessariamente em outras línguas; em inglês,
há uma posição fixa para o adjetivo, que vem sempre anteposto ao
nome.
Ainda com relação à sintaxe em Mattoso Câmara, encontramos um
ensaio sobre colocação, na obra Dispersos, organizada por Uchôa
(2004), em que ele analisa um fato de colocação no soneto A
cavalgada, de Raimundo Correia, cujo verso inicial — A lua banha a
solitária estrada... — é também o verso final, apenas com uma
diferença de colocação: A lua a solitária estrada banha. Mattoso,
inicialmente, tece considerações a respeito do fluxo informacional,
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Igor Caixeta Trindade Guimarães
com vistas à distinção entre informação nova e informação feita, como
exemplifica o seguinte esquema:
1. “eu saio às três horas” (a que horas?),
2. “às três horas eu saio” (que faço?),
3. “às três horas saio eu” (sai quem?).
(MATTOSO CÂMARA, 2004, p.188)
Na sequência da análise, Mattoso interpreta o soneto, que descreve,
ao longo das estrofes, a informação nova (o ambiente da “estrada”,
cena poética de referência); feita a descrição, tal informação passa a
ser dada, e é exatamente isso que pode motivar a colocação de
“estrada” antes do verbo.
Tal ponto de vista sobre a colocação encontra-se descrito no
capítulo 1 da tese de Henri Weil. Ao mencionar trecho de uma das
cartas de Cícero a Ático, Weil promove uma reflexão sobre a
colocação do sujeito em uma das últimas posições da oração: No
primeiro dia de junho, indo eu a Âncio, feliz por me afastar dos
gladiadores de M. Metelo, teu escravo veio ao meu encontro. Fosse
outra a ordem da frase, com o sujeito teu escravo no início, seria
alterada a intenção comunicativa do texto de Cícero. O adjunto
temporal, colocado na dita ordem natural (após o verbo), poderia
apropriadamente responder à pergunta Quando você encontrou meu
mensageiro? Nessa situação, o encontro do mensageiro teria sido o
ponto de partida, o fato conhecido; e as circunstâncias de tempo etc.,
o objetivo do discurso. A disposição original desse período de Cícero,
diferentemente, apresenta como objetivo do discurso o fato descrito, e
não a circunstância temporal.
Outro exemplo apresentado por Weil é uma frase de Voltaire: Ele
se matou para se livrar de um embaraço [Il se tua pour se tirer
d’embarras]. Essa disposição está de acordo com os diferentes
motivos que podem determinar o suicídio:
Um se matou porque não podia suportar a miséria; outro, porque
estava desgostoso de sua felicidade; e outro, enfim, para se livrar de
um embaraço. O suicídio era, então, a coisa conhecida, o autor
acrescenta a ele o motivo. Mas se ele tivesse querido nos dar a
conhecer o estranho expediente imaginado por esse jovem para
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escapar de um embaraço, teria dito: Para escapar de um embaraço,
ele se matou. (p.38)
Mas é possível que a enunciação não tenha, a priori, um objeto de
discurso de conhecimento do interlocutor, observa o filólogo. Nesse
caso, é comum começar-se pelo que é mais elementar: Havia um rei,
Há a cidade de Éfira, Éfira é uma cidade. Na literatura atual, verbos
como ter e haver são rotulados como verbos de apresentação de
existência, função que talvez explique o fato de o dado novo do
discurso, o referente apresentado, tender a ocupar a posição pós-verbal
(havia um rei, e não um rei havia).
Os apontamentos a respeito da tendência de, na sintaxe, se
apresentar por último o que é novo, tão bem explicados por Henri
Weil, estão de acordo com as teorias que desenvolvem a oposição
dado X novo, conforme já adiantado anteriormente, e com o estudo
funcionalista da estrutura argumental preferida6, segundo o qual os
referentes introduzidos no discurso tendem a exercer a função de
complemento verbal. Em acréscimo, evocamos também a contribuição
de Dias (2009), a propósito da sintaxe de bases enunciativas. No texto
Enunciação e regularidade sintática, o autor pondera que o lugar
sintático de sujeito se caracteriza por uma sustentação temática, ao
passo que o lugar de objeto é pertinente à construção temática. A fim
de ilustrar tal formulação, Dias (p. 27) apresenta uma sentença em que
estão ocultos, no segundo período, o sujeito e o objeto:
(1) Pedro plantou sementes de milho. Adubou, semeou,
irrigou, colheu e vendeu.
Embora os referentes não estejam materializados na sentença, a
interpretação dela é mobilizada por uma virtualidade de implícitos que
se articulam de formas diferentes. Na primeira oração, temos sujeito e
objeto explícitos. É interessante notar que o sujeito de adubou,
semeou, irrigou, colheu e vendeu é sempre o mesmo, ao ser
recuperado anaforicamente. O mesmo não se dá em relação aos
objetos de tais verbos, que devem ser construídos virtualmente:
adubou [o solo], semeou [os grãos], irrigou [as plantas], colheu [os
frutos], vendeu [o produto]. Se diferentes fossem os sujeitos, deveriam
ser declarados:
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(2) Pedro plantou sementes de milho. Carlos adubou, Maria
semeou, João irrigou, Marina colheu e Fernando vendeu.
Preencher as lacunas dos objetos significa, segundo Dias, participar
de sua construção sob a força dos limites do domínio de referência.
Feitas algumas considerações sobre a ordem envolvendo os lugares
sintáticos de sujeito e objeto, nota-se uma conformidade entre a ordem
“normal” do português (sujeito antes do objeto) e o princípio da
apresentação/conhecimento dos referentes. Mas, problematizando um
pouco esse tema, como entender as possibilidades de ruptura das
posições sintáticas canônicas? Recorramos mais uma vez a Dias, que
traz esclarecimentos sobre a questão, a partir dos conceitos
anterioridade de predicação, anterioridade de orientação,
anterioridade actorial e anterioridade processual.
Mais anteriormente, afirmamos, em consonância com Weil, que o
sujeito é um lugar sintático determinante, e não determinado, hipótese
que explica a anterioridade de predicação. A anterioridade de
predicação significa a perspectiva na qual se constitui a predicação
verbal, o que permite mostrar um contraste com o lugar de objeto
(determinado). Segundo Dias, sujeito é o grupo-nominal que aciona o
verbo, arrebatando-o de sua condição de infinitivo. “A instalação de
uma sentença, e por conseguinte de uma unidade mínima de sentença,
é devida ao GN-sujeito” (DIAS, 2009, p.19). Por esse viés, infere-se
que o lugar de sujeito é primordial do ponto de vista do verbo, o que
não significa que deva ocorrer, necessariamente, na primeira posição
da sentença. Nesse sentido, é importante tratar da anterioridade de
orientação, que, de acordo com Dias, diz respeito a um objetivo
enunciativo. A orientação do ato enunciativo estabelece uma ordem de
pertinência na apresentação dos referentes, daí o conceito de tópico,
que representa um ponto de partida da comunicação. Exemplo: A
Maria, eu a vi ontem na feira. A anterioridade processual, por sua
vez, é concebida de forma mais obscura, relacionada ao modo como a
cognição processa a informação, o que talvez não se dê de forma
linear, como na sintaxe, em que necessariamente um termo precisa vir
antes de outro — retomemos brevemente a proposta de Pezzati, para
quem a “linearidade da sentença é um meio muito primitivo”. Nesse
ponto, parece que, quando Henri Weil trata da marcha do pensamento,
sugere aproximar-se muito mais do que se entende por anterioridade
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RESENHA
de orientação do que da anterioridade processual. Apurar o
processamento cognitivo é algo mais complexo, que depende de
outros aparatos.
A anterioridade actorial, por fim, associa-se aos papéis dos
participantes do evento, como agente e paciente. Geralmente, um dos
participantes pratica a ação e outro a recebe; portanto, um deles é
anterior. No arranjo sintático, é possível que essa definição assuma
contornos metafóricos, como mostram estas duas frases citadas
páginas atrás: A esperança supõe o desejo e A posse procura um gozo
real.
Feitas as devidas distinções, que nos auxiliam a compreender
melhor a complexidade sintática, voltemos à obra que nos interessa.
Após discutir, no capítulo 1, o princípio geral que defende, Weil passa
a analisar, no capítulo 2, a ordem das palavras segundo a forma
sintática das proposições, comparando línguas diversas. Por meio
dessa proposta, distingue duas tipologias de línguas, com base no
critério da liberdade de ordenação. Latim e grego, que têm caso
morfológico, são tipificados como línguas de construção livre, ao
passo que as línguas românicas atuais, que não têm marcação de caso,
são de construção fixa — tal tipificação, porém, assume graus de
relatividade, o que o próprio autor reconhece; em relação ao turco, por
exemplo, as construções do francês são mais livres, dado que, naquela,
os determinantes do nome só podem assumir posição pré-nominal.
Outra distinção a que o filólogo dedica algumas páginas é a seguinte:
construções descendentes (o termo regente precede o termo regido) e
construções ascendentes (o termo regido precede o termo regente).
Prosseguindo na comparação, o filólogo toma como foco a posição do
verbo (decisão também assumida por linguistas contemporâneos) para
elaborar algumas generalizações. Opta por extrair, das línguas de
posição livre, a razão para a preferência por uma ou outra ordem. Ele
explica que, em alemão, é a natureza da proposição (principal ou
subordinada) que decide o lugar do verbo. A partir da premissa de que
é a frase principal que enuncia o pensamento, o contraste entre uma e
outra posições tem a ver, para Weil, com esse caráter afirmativo/não
afirmativo da preposição, o que motivaria a colocação do verbo no
meio ou no final da sentença.
Em outra parte do capítulo, há uma análise da colocação do
adjetivo e do advérbio, com algumas intuições interessantes. Porém,
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na medida em que o autor analisa diversas línguas e não adota uma
metodologia clara no tratamento dos dados, em razão mesmo das
limitações científicas da época, suas conclusões não se assentam em
evidências muito palpáveis. Em outros momentos, seu alto grau de
erudição também torna o texto não muito didático. Acrescente-se,
ademais, também devido a uma mentalidade pré-saussureana, o
julgamento qualitativo que Henri Weil faz das línguas: em várias
passagens, tende a considerar latim e grego línguas perfeitas, por
serem de posição livre e, dessa forma, se ajustarem mais facilmente ao
pensamento, ao contrário das línguas atuais. A despeito da
impropriedade desse julgamento de perfeição, a comparação das
línguas parece corroborar a tese do autor, em vista das evidências
referenciadas por Kato (1998):
podemos dizer que quanto mais variação de ordem uma língua
permitir, mais sensível ela será a explicações funcionalistas, isto
é, a ter sua ordem explicada em termos de funções semânticas
ou textuais-discursivas, e não em termos estritamente sintáticos.
Por outro lado, quanto menos opções posicionais para uma
mesma função gramatical a língua apresentar, menos
biunivocidade entre posições sintáticas e funções de ordem
semântica ou textual essa língua vai exibir. (KATO, 1998, p.13)
No terceiro e último capítulo da obra, Henri Weil traz para
discussão outro princípio determinante da ordenação das palavras: o
acento oratório. Nesta oportunidade, estipula que é preciso recorrer à
língua falada e viva, por ser insuficiente a escrita. Aparentemente,
seria de se supor que fosse tratar das línguas modernas, todavia ele se
deteve em peso na análise do grego e do latim, a partir de indícios que
supostamente evidenciariam como tais línguas se manifestavam na
oralidade quando vivas. Dado que, para o autor, a fala está a serviço
do pensamento, e não o contrário, a influência do acento oratório é
secundária no que concerne à marcha das ideias, porém ela se deve,
também, a aspectos estilísticos. A bem dizer, trata-se de princípios que
se complementam. Por exemplo, em francês, a acentuação ascendente
se encontra frequentemente em concordância com a construção
descendente, isto é, a informação nova introduzida pelos termos
complementares recebe, via de regra, maior intensidade de acento,
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RESENHA
especialmente porque é uma língua em que a tonicidade recai sobre a
última sílaba. Weil apresenta regularidades relacionadas a tal
princípio; uma delas tem a ver com o tamanho dos complementos
ligados a uma mesma palavra:
De vários complementos que recaiam sobre a mesma palavra,
dê a forma mais concisa ao que segue a palavra completada e, à
medida que você avance, dê aos complementos uma expressão
mais desenvolvida e mais entendida. (p.100)
Exatamente para manter uma coerência com a hierarquia dos
princípios (respectivamente, marcha das ideias e acento oratório), a
recomendação de Weil é alternativa a uma regra geral, segundo a qual
os complementos devem ser dispostos em razão de seu tamanho, o que
supostamente poderia contrariar a ordem do pensamento.
Ao longo do capítulo, são descritos efeitos estilísticos da
acentuação, tais como o efeito de punição da apatia da plateia, por
meio de uma acentuação final áspera, e o efeito de expressividade, por
meio de uma acentuação descendente, obtida pela maior intensidade
da voz no início da proposição. A frase latina ROMANUS sum civis
[sou cidadão ROMANO], declarada por um personagem
desconhecido, é exemplo dessa expressividade, pois a palavra
romanus produz uma revelação que desperta atenção da plateia,
conforme sugere Weil. O começo e o fim de uma proposição são, para
ele, lugares de honra, mais propícios às palavras acentuadas. O acento
é entendido, dessa forma, como um recurso discursivo. Ou melhor, a
ordem, de modo geral, é concebida, ao longo da obra, por um feixe de
fatores cujos propósitos visam a efeitos discursivos.
Em vista de todas essas considerações que fizemos a respeito da
obra do filólogo alemão, avaliamos como muito relevantes as
contribuições que ela trouxe, e pode continuar trazendo, aos estudos
da enunciação e da sintaxe. Ainda que já se tenha passado muito
tempo desde a publicação dessa obra e que, depois disso, as pesquisas
em Linguística tenham se tornado mais consubstanciais, o fenômeno
da ordenação sintática ainda é pouco compreendido. A análise
perspicaz empreendida por Weil, em seus diversos aspectos, pode
despertar o interesse de pesquisadores que pretendem enveredar pelos
meandros do assunto.
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Igor Caixeta Trindade Guimarães
Igor Caixeta Trindade Guimarães
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos Linguísticos da UFMG
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Unicamp.
Notas
1
2
Obra inaugural dos estudos semânticos.
Tradução inédita para o português, por Sheila Elias de Oliveira.
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015
249
RESENHA
3
Traduzida do latim: O Marce Druse, patrem apello: tu dicere solebas sacram esse
rem publicam; quicumque eam violavissent, ab omnibus esse ei poenas persolutas.
Patris dictum sapins temeritas filii comprobavit.
4 O autor comenta sobre a ordem dos termos da oração: Considerando-se que a ordem
dos vocábulos é justificada por diversos fatores, tais como a autonomia do sintagma, a
pausa, o ritmo, as razões de natureza lógico-semântica, etc. (e que, muitas vezes,
aparecem acoplados), parece-nos parcial o enfoque exclusivo da expressividade.
(p.114)
5 Ver DUCROT, O. Argumentação e “topoi” argumentativos. In: GUIMARÃES, E.
(Org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. pp.13-38.
6 Ver DUBOIS, J. W. Competing Motivations. In: HAIMAN, J. (ed.) Iconicity in
Syntax. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1985.
250
Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

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