AGOSTINHO DA SILVA
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AGOSTINHO DA SILVA
.Apeadeiro que o tempo não pode apagar FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO · Trata-se de um homem que afirmou que não vai "em rótulos nem em modas" e que o espírito se afirma resistindo às classificações. Talvez por isso, segundo Eduardo Lourenço, a sua linha de pensamento seja "difícil de enquadrar". "Não se pode dizer que tenha sido um conservador, nem um revolucionário ou um anarquista místico, pois ele era um misto de tudo, um ser muito contraditório". Também Nuno Nabais considera não existir "um pensamento Agostinho da Silva, na medida em que não há uma tese original sua, uma reflexão sobre os grandes temas, como o belo, o bom, o Homem", mas antes "um estilo desassossegado, contrário à canonização do pensamento" e "uma raiva aos cânones e às instituições". Avesso à ideia de Escola enquanto instituição formal, rígida e normalizadora, que abre caminhos à custa do encerramento de outros, que prefere a doutrina em detrimento da vocação provocadora do pensamento, Agostinho perfilhou sempre uma educação permanente, aberta, na maior liberdade e desprendimento possíveis, já que "o que importa não é educar, mas evitar que os homens se deseduquem". Daí que, para Baptista Bastos, Agostinho seja "um homem em permanente busca da claridade e, como tal, contra todo o dogma e toda a ortodoxia". AGOSTINHO DA SILVA (1906-1996) Foi também, segundo Fernando Dacosta, "um ser que veio de um tempo muito à frente e cuja capacidade de antecipar problemas actuais fascinou uns e desconfortou outros". Agostinho aflorou, com 20 anos de previdência, questões como a globalização, a explosão do desemprego, a aproximação da União Soviética aos Estados Unidos e ao Ocidente, a construção de uma Comunidade Europeia ou o fanatismo religioso, merecendo por isso, entre outras, a designação de Profeta do Terceiro Milénio. Agostinho representa hoje, diz Baptista Bastos, "aquilo que sempre representou na revista Seara Nova - uma dose de utopia, quimera e esperança nas infinitas possibilidades do Homem". No final de contas, talvez seja esse o legado de Agostinho: um espírito livre e optimista, ao mesmo tempo contestatário e conciliador, uma crença nas virtualidades da História e da Humanidade, ainda que consciente das asfixias da vida comunitária: "Cada um de nós como Homem é inteiramente excepcional. Simplesmente as condições da sociedade em que vivemos obrigam-nos todos nós a lentamente nos irmos parecendo uns com os outros". 40 "Não ganha quem corre mais, mas quem corre melhor… quando alguma coisa é alguma coisa, deixa logo de ser as outras todas… O que é preciso é ser tudo ao mesmo tempo… ser e não ser são a chave do ser" .Apeadeiro que o tempo não pode apagar FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO · RADAR KADAFI (1984-1987) Um Radar ao Serviço da Pop Nacional O s Radar Kadafi surgiram na década de 80, mais precisamente em 1984, em Lisboa. Com uma estética assumidamente melancólica e Pop, viriam a marcar a cena musical nacional da altura. Os fundadores do projecto foram Luís Gravato (voz), Fernando Pereira (guitarra), Tiago Faden (baixo), José Bruno (saxofone), Luís Sampaio (teclados), Guli (baterista) e Patrícia Lopes (coros). O projecto foi baptizado inicialmente por "Radar" para participar na edição desse ano do concurso de música moderna do Rock RendezVous, passando a ser Kadafi em virtude de todas as polémicas que então envolviam o líder líbio e o tempo de antena que este na televisão nacional. Ficando em terceiro lugar no concurso, foi-lhes garantida a presença na colectânea editada pelo Festival com o tema "La Maquina", cantado em Italiano. 42 43 · .Apeadeiro que o tempo não pode apagar Em Novembro de 1987 os Radar Kadafi dão o seu último grande concerto e os seus elementos seguem então caminhos diferentes. Luís Sampaio entra para os Delfins, Tiago Faden ingressa na editora Sony (vindo mais tarde a envolver-se na fundação da editora Lisboa Records, que em 2007 editou uma compilação dedicada à capital), Guli dedicou-se à arquitectura, Luís Gravato é actualmente designer gráfico e o saxofonista José Bruno envolveu-se em vários projectos, como os "Petromax" e os "Sei Miguel", fechando-se assim mais um ciclo da Pop Nacional. Para os amantes e coleccionadores de música, o disco "Prima Dona" foi reeditado em CD, em 1998. Se é certo que o o vinil é já um objecto de colecção, o CD também não é fácil de encontrar. FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO Os Radar Kadafi, para além da sua Pop melancólica, caracterizaram-se também pelas suas performances ao vivo, cheias de componentes cénicas com recurso a bailarinos, que reforçavam toda a estrutura musical, dando-lhes um cunho que os distinguia do que se vinha fazendo na altura. Três anos depois, em 1987, assinam contrato com a editora multinacional Poligram, gravando assim o primeiro e único álbum de originais, "Prima Dona". Gravado no "Angel Studios", com produção de Ricardo Camacho, o disco incluiria temas de 1982 a 1987. Do álbum editado em vinil destacam-se, do lado A, temas que ficaram para a história da Pop Portuguesa como "40 Graus à Sombra" e "Eu sei que não sou Sincero". No lado B, os temas são cantados em francês, italiano e espanhol. .Apeadeiro que o tempo não pode apagar FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO · DEREK JARMAN (1942-1994) Radicalismo, Vanguarda e Tradição D erek Jarman é um dos cineastas mais con troversos e ousados que a Inglaterra conheceu, apenas igualado no seu país por figuras como Michael Powell, Ken Russell ou Peter Greenaway. Todos eles cultivaram - ou cultivam ainda - um gosto requintado pela provocação aliado a uma visualidade arrojada, ainda hoje confundida com mau gosto (porque ainda hoje espectadores abandonam a sala de cinema durante filmes de Peter Greenaway). Jarman, além de inegavelmente controverso, conhecido pela sua "homossexualidade activista", é também autor de uma das cinematografias mais originais, distintas e idiossincráticas do século XX, tendo mesmo merecido uma nomeação para o Turner Prize (em 1986) pela "excepcional qualidade visual" dos seus filmes. 44 Sebastiane (1976) Jarman, contemporâneo de Fassbinder, via-se a si próprio como um artista gay na linhagem de Jean Cocteau e Pasolini, sendo considerado um dos fundadores do chamado New Queer Cinema, hoje associado a Isaac Julien, Todd Haynes, Gregg Araki ou John Cameron Mitchell. O ecletismo da sua obra coloca-o numa posição crítica: para muitos, Jarman permanece uma figura marginal cuja obra é demasiado experimental para ser aceite num cânone; por outro lado, e ironicamente, é também visto como esteticamente demasiado conservador e convencional para ser lido à luz das vanguardas. Jarman era, ao mesmo tempo, modernista e renascentista. A crítica feroz à política e sociedade britânicas e o uso de formas estéticas arrojadas, bem como de elementos da cultura popular, eram combinados com um fascínio tão neoromântico quanto subversivo pela cultura artística tradicional. Tamanha idiossincrasia viria a colocá-lo no centro do que se designou por "a Última Nova Vaga", a resposta britânica tardia às correntes do cinema europeu do pós-guerra. A Tempestade (1979) 45 · .Apeadeiro que o tempo não pode apagar Jubilee (1977) FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO Jarman foi um artista de múltiplas dimensões - poeta, pintor, argumentista, cenógrafo, realizador e até jardinista -, fruto de um percurso académico peculiar. Em 1960 entra na reputada e incontornável Slade School of Art para estudar Pintura. Contudo, respeitando o desejo do seu pai, céptico quanto a esta escolha do filho, acaba por ir estudar Inglês, História e História da Arte no King's College, com o objectivo de adquirir uma qualificação mais "apropriada". Este percurso de estudos tão sincrético acabou por se revelar decisivo para a sua cinematografia, facultando-lhe uma série de referência históricas e culturais que viriam a tornar-se evidentes nos seus filmes. Foi desta forma que Jarman descobriu o fascínio pela história, arte e literatura do Renascimento, que atravessa toda a sua filmografia. Uma vez concluído o curso, Jarman regressa à Slade, em 1963, onde o estudo da Pintura e da Cenografia concorre para a formação de uma visualidade tão distinta quanto audaciosa, tal como o ambiente que então se vivia contribuiu para a assumpção da sua sexualidade, que viria a tornar-se também num tema recorrente das suas obras. .Apeadeiro que o tempo não pode apagar FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO · Foi de facto um renascentista em mais do que um sentido: cinco das suas onze longas-metragens giram em torno da relação entre o Renascimento e a actualidade, um espaço histórico que Jarman tomou como exclusivamente seu. É neste relacionamento com o passado, com o património cultural, literário e artístico europeu, que Jarman mais se aproxima de Pasolini, provando ser um dos seus sucessores. Jarman sentia uma afinidade com o cineasta italiano não só por questões de sexualidade, mas por ser igualmente visto como um artista problemático e controverso apesar da escolha de matérias tradicionais. Como diria o próprio: "Shakespeare, Caravaggio, Requiem, que temas mais tradicionais poderia um cineasta encontrar? E ainda assim sou considerado uma ameaça". Foi na Slade School que Jarman tomou contacto com os grandes realizadores europeus como Eisenstein, Fellini e Pasolini, mas também com a vanguarda americana de Maya Deren, Kenneth Anger e Andy Warhol. Em termos estéticos, a obra de Jarman situa-se na encruzilhada destas duas referências, com filmes de estilo claramente europeu e austero como Caravaggio (1986) e obras mais radicais e vanguardistas como Blue (1993), bem como objectos híbridos como The Garden (1990), que combina elementos de ambos estilos. O seu primeiro trabalho em cinema foi marcante. Jarman concebeu os cenários de The Devils (1971) a convite de Ken Russell, realizador que o impressionou de forma indelével: "é um realizador com quem se pode aprender muito, pois escolhia sempre o caminho mais aventureiro, mesmo que pusesse em causa a coerência". Viria ainda a colaborar no filme seguinte de Russell, Savage Messiah (1972), mas por esta altura adquire uma Super-8, começando a traçar os seus próprios caminhos através de diversas curtasmetragens que por vezes compilava num só filme. É o caso de In the Shadow of the Sun (1974-80), composto por material de The Art of Mirrors e Journey to Avebury, que viria a estrear em 35mm no Festival de Berlim, em 1981. A sua estreia na longa-metragem, Sebastiane (1976), apesar de revelar um Jarman ainda à procura de uma voz própria, é notória por duas razões: é o primeiro filme totalmente rodado em latim e o primeiro filme inglês abertamente homoerótico, que trata o amor homossexual com seriedade, de forma romântica e lírica. Não obstante alguns traços de comicidade - como a tradução de Édipo por "motherfucker" -, este filme, que reconta o martírio de S. Sebastião, pretende claramente reformar a representação da homossexualidade no cinema britânico, assumindo uma perspectiva séria e sóbria. O aparecimento do filme em meados dos anos 70, numa fase exangue do cinema britânico, não poderia aliás ter sido mais oportuna. O impacto foi tal que resultou no despertar de diversas produções independentes e de baixo orçamento como Nighthawks (1978) de Ron Peck e Scum (1979) de Alan Clarke. 46 Jubilee (1977), a segunda longa-metragem de Jarman, foi um escândalo bem sucedido, à semelhança de Sebastiane. Conhecido como o primeiro filme inglês oficialmente punk, é também o primeiro filme renascentista do realizador, em que a Rainha Isabel I, através do seu astrólogo (um anacronismo típico de Jarman), é magicamente transportada 400 anos para o futuro, encontrando o cenário urbano e desolado da geração punk londrina. Neste filme, que prefigura a adaptação de Orlando (1992) por Sally Potter (não por acaso protagonizado por Tilda Swinton, a actriz-fetiche de Jarman), a interacção entre passado e futuro é na verdade diminuta, servindo as sequências isabelinas como um quadro de contraste nostálgico entre a Idade de Ouro e a decadência da Inglaterra moderna. Em vez de um elogio da geração punk, Jubilee antecipa a comercialização do movimento e o seu progressivo declínio, parodiando uma série de figuras paradigmáticas como o empresário dos Sex Pistols, Malcolm McLaren, que, na personagem de Borgia Ginz, transforma o Palácio de Buckingham num estúdio de gravação. Diversos ícones do movimento como Adam Ant, Wayne County, The Slits e Siouxsie and the Banshees surgem neste filme que gerou diversas críticas no meio punk, entre elas a de Vivienne Westwood, que criou uma t-shirt que reproduzia a sua carta aberta a Jarman, denunciando a visão deturpada do movimento veiculada pelo filme. Caravaggio (1986) Eduardo II (1991) 47 · The Last of England (1988) .Apeadeiro que o tempo não pode apagar The Last of England (1988) FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO A Tempestade (1979), adaptação da peça de Shakespeare, é o segundo filme renascentista de Jarman. Com nudez opulenta (sobretudo masculina) e um cenário inusitado (uma mansão em ruínas em vez de uma ilha), a abordagem do texto é exuberantemente livre, visualmente vibrante, tornando o filme numa das adaptações mais imaginativas e audazes da obra do dramaturgo isabelino. Muito embora A Tempestade seja o mais acessível dos primeiros filmes de Jarman, e porventura o menos ofensivo, o realizador tornou-se persona non grata e apesar de ter conseguido realizar alguns filmes no entretanto (como The Angelic Conversation, também com base em sonetos de Shakespeare) levou seis anos a conseguir estrear Caravaggio (1986), que se viria a tornar uma das suas obras mais emblemáticas. O projecto do filme foi-lhe sugerido por Andrew Ward Jackson, comerciante de arte e produtor, que viu em Jarman um sucessor legítimo daquele que tinha sido a sua primeira escolha: Pasolini. A figura do pintor Caravaggio intrigava Jarman desde os seus estudos na Slade School e não será difícil de entender porquê. Em primeiro lugar, Jarman considerava Caravaggio o inventor da luz cinematográfica com o seu uso revolucionário do chiaroscuro. Além disso, Caravaggio era para ele "o mais homossexual dos pintores", pelo que existe uma clara afinidade com o artista renascentista. Porém, Jarman não se limita a figurar Caravaggio como um pintor homossexual, já que o triângulo amoroso que forma o núcleo da narrativa é bem mais complexo, unindo o pintor (Nigel Terry), o seu modelo Ranuccio (Sean Benn) e a amante de ambos, Lena (Tilda Swinton, uma das amigas mais próximas de Jarman numa das suas mais magníficas interpretações). O que mais impressiona no filme é sem dúvida a sua visualidade, a forma como Jarman conseguiu traduzir o chiaroscuro de Caravaggio, de tal modo que muitas das cenas - sobretudo aquelas em que os quadros do pintor são encenados - se assemelham de facto a quadros renascentistas. Isto aliado às figuras de estilo mais caras a Jarman como os vários anacronismos (máquinas de escrever, revistas de moda, carros, o som de um comboio), aqui especialmente bem conseguidos no contraste com a pouco habitual convencionalidade e sobriedade de estilo. .Apeadeiro que o tempo não pode apagar FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO · De facto, Jarman terá notado que o filme resultou mais convencional do que desejaria. A conformação a um determinado género (o biopic) e sobretudo a obrigação contratual de rodar em 35mm impuseram-lhe alguma austeridade visual, pois já que não tinha tanta mobilidade como com a Super8, optou por não mover de todo a câmara ao longo da quase totalidade da rodagem. Apesar de tudo isto, ou justamente devido a estas contingências, Caravaggio é não só o filme mais bem acolhido e acessível de Jarman - mas não menos interessante -, como se tornou um exemplo incontornável do género, tendo certamente inspirado obras como Looking for Langston (1989), filme de Isaac Julien sobre Langston Hughes, ou Love is the Devil (1998), sobre Francis Bacon, de John Maybury. Talvez por isso, The Last of England (1988), em que a Super-8 dita a forma e o conteúdo de quase todo o filme, marca um regresso consciente ao estilo menos formal que antecedera Caravaggio. Memórias, pensamentos e fantasias do realizador (ele próprio surge ocasionalmente ao longo do filme) são reunidas numa colagem desvairada de estilos (crónicas quase documentais, vídeos domésticos) ao serviço da sua fúria contra a Inglaterra de Thatcher. Se em Jubilee Jarman apresentara a Inglaterra dos anos 70, transformada pela rebelião anarco-punk, The Last of England (que rouba engenhosamente o título ao quadro do prérafaelita Ford Madox Brown em que um grupo de emigrantes abandona o país em busca de uma nova vida no Novo Mundo) traduz uma visão apocalíptica do futuro do país como um estado totalitário, repressivo e homofóbico. O declínio de Inglaterra é figurado aqui pelas paisagens sombrias de Londres e pelo desequilíbrio físico e mental dos seus habitantes. Extractos de poemas como Uivo de Alan Ginsberg ou Homens Ocos de T. S. Eliot ecoam em justaposições frenéticas de imagens, entrecortadas por sonatas de Bach e disco sound dos anos 80, sugerindo um país caótico numa decadência sórdida. Influenciado pela pintura de Goya e pela alegoria grotesca de Pasolini sobre a Itália de Mussolini, Saló (1975), The Last of England figura o luto nostálgico de Jarman pela sua Inglaterra moribunda, fria e cruel como a sua líder. Já em The Garden (1990), Jarman é uma personagem muito mais central. Surgindo no início do filme, à secretária, rodeado de imagens cristãs, Jarman sonha com o cenário da Paixão de Cristo, figurado por dois amantes homossexuais, numa tentativa de aproximação ao Evangelho segundo S. Mateus de Pasolini. 48 Uma das sequências mais memoráveis envolve o realizador, deitado na cama numa praia, rodeado de homens e mulheres que o circundam com tochas, a voz off ecoando palavras sobre Sida, morte e a mortalidade do próprio realizador. The Garden foi de facto a primeira reflexão explícita de Jarman sobre o seu estatuto de seropositivo, que viria a marcar a fase final da sua obra. Já o seu filme anterior, War Requiem (1989), baseado no oratório de Benjamin Britten, lidava com o problema da Sida, mas de forma indirecta e alegórica, através do massacre de jovens na Grande Guerra. Mas muitos, incluindo o próprio Jarman, acreditavam que The Garden seria o seu último filme, daí que tenha tratado o tema de modo mais directo. Porém, Jarman viria ainda a surpreender com mais três filmes: Eduardo II, Wittgenstein e o derradeiro Blue. Cinematograficamente uma obra relativamente menor, Wittgenstein (1993), com guião de Terry Eaggleton, foi encomendado por Tariq Ali para uma série de programas do canal de televisão Channel Four sobre vários filósofos. Contudo, verbas adicionais do British Film Institute levaram a que o filme passasse de uma peça televisiva a uma espécie de teatro filmado. Ainda assim o orçamento era reduzido, pelo que se trata de um projecto bastante minimalista e de composição frugal. Gravando num palco praticamente desprovido de cenários, guarnecido com poucos adereços, Jarman utilizou a maior parte do orçamento no elenco, recorrendo ao seu já núcleo duro: Michael Gough, Karl Johnson e, claro, Tilda Swinton. O filme relata diversos aspectos sobre o filósofo, centrando-se na sua relação com Bertrand Russell e Maynard Keynes, e as suas principais ideias filosóficas são veiculadas num estilo humorístico através de diálogos com um marciano. O talento de Jarman na produção de baixo orçamento é também evidente em Eduardo II (1991), a conclusão e o apogeu do seu ciclo renascentista. A adaptação da peça de Marlowe, que aqui se centra na figura do rei e do seu amante, lembra em alguns aspectos Caravaggio, sobretudo na artificialidade ostensiva dos cenários e no uso de anacronismos como latas de coca-cola, cigarros e espingardas, que forjam a ligação entre a narrativa de Marlowe e aquele que é o verdadeiro tema do filme: a luta pelos direitos dos homossexuais na Inglaterra de Thatcher. Naquele que é considerado o seu filme mais furioso, Jarman chega ao ponto de encenar a luta entre Mortimer e Eduardo como um conflito entre a polícia de choque e activistas homossexuais. - Sebastiane (1976) - Jubilee (1977) - The Tempest (1979) - The Angelic Conversation (1985) - Caravaggio (1986) - The Last of England (1988) - War Requiem (1989) - The Garden (1990) - Edward II (1991) - Wittgenstein (1993) - Blue (1993) Derek Jarman (1942-1994) FOLHAS CAÍDAS DE OUTONO Filmografia (longas-metragens) 49 .Apeadeiro que o tempo não pode apagar Blue (1993) · Na introdução do guião Jarman diria que a única maneira de fazer um filme "sobre um caso de amor homossexual" é pegando "numa peça antiga e poeirenta e violá-la". Apesar do tom enfurecido que ressalta do filme, o resultado é uma obra sensível, reflexiva e madura, que antecipa a sua derradeira obra, Blue (1993), provavelmente o seu filme mais comovente mas também mais experimental. Visualmente, como o título sugere, Blue limita-se a um ecrã em azul, sobre o qual os habituais colaboradores e amigos Nigel Terry, John Quentin e Tilda Swinton vão lendo passagens do diário do realizador, evocando a sua luta contra o HIV, a sua progressiva cegueira, a perda de amigos e a sua morte cada vez mais próxima. O filme teve início como um projecto sobre o pintor Yves Klein, cujas pinturas monocromáticas, muitas vezes puras contemplações de azul, Jarman admirava. Porém, à medida que a sua doença e a consequente cegueira progrediam, o projecto tornou-se mais pessoal e poético. Para Jarman, a sua doença não poderia nunca constituir tema de entretenimento e a sua figuração através de personagens, narrativa e imagens apenas iria empobrecê-la. A rejeição da imagem foi pois uma opção estética motivada por "critérios especificamente políticos e éticos". Foi esta a única maneira de dignificar a sua despedida, que acabaria, como não poderia deixar de ser, por desafiar as próprias possibilidades do cinema, como aliás sempre o havia feito. OPERAÇÃO COSMÉTICA · Metamorfoses REICHSBUNKER FRIEDRICHSTRASSE Das raves porno à arte contemporânea I que se apresenta Christian Boros, o polaco milionário que transformou um antigo bunker collect art that I don't understand. É assim nazi, situado no centro de Berlim, num espaço dedicado à arte contemporânea. Não é um museu, sublinha o coleccionador, proprietário de uma Agência de Publicidade. É uma galeria onde Boros instalou a sua colecção privada, em que figuram nomes como Damien Hirst, Olafur Eliasson, Elizabeth Peyton, Wolfgang Tillmans, Anselm Reyle, Manfred Pernice, Tobias Rehberger, John Bock, Wilhelm Sasnal e Michel Majerus. 50 Encomendado por Hitler ao famoso arquitecto Albert Speer, o bunker abre em 1942 com o propósito de albergar os passageiros da estação de comboios da Friedrichstrasse dos ataques aéreos. A população civil da área residencial circundante e os frequentadores do Teatro Nacional podiam igualmente procurar abrigo neste espaço com capacidade para 2000 pessoas. Após a rendição nazi, o abrigo foi tomado pelo Exército Vermelho, que o utilizou como prisão. A partir dos anos 50, o bunker conheceu uma utilização bastante diferente: tornou-se num armazém de fruta e legumes. A espessura das paredes e a sofisticação do sistema de ventilação proporcionavam uma temperatura estável, tornando-o especialmente apropriado para a armazenagem de fruta tropical. Daí que os habitantes da DDR lhe tenham atribuído a magnífica designação de "Banana bunker". Após a reunificação, as bananas foram outras. A cena techno-fetiche, tão característica da Alemanha do anos 90, encontrou no bunker o local perfeito para as suas festividades. O armazém de bananas transformou-se então num dos clubs de techno hardcore sado-maso mais afamados do país. A mítica exposição Sexperimenta teve lugar em 1995 e no ano seguinte o bunker despediu-se definitivamente do Techno. Até que Christian Boros se apaixonou à primeira vista pelo edifício abandonado, dando-lhe uma nova vida, e uma nova casa à sua colecção. Aberta ao público desde Junho, com visitas apenas por marcação, a primeira exposição acolhe escultura, instalação e performances que renovam a experiência deste local. A maior parte das obras foi instalada e encenada pelos próprios artistas, alguns dos quais as alteraram para um melhor enquadramento no espaço. Algumas obras foram mesmo criadas especialmente para ele. "Outros poderiam ter transformado o espaço numa adega de vinhos", disse Boros. "Mas isso seria errado, a meu ver. O meu propósito foi de preencher um monumento do III Reich com a forma mais elevada de liberdade intelectual - Arte." OPERAÇÃO COSMÉTICA · Metamorfoses 51 MANTA DE RETALHOS · Xisacto / Cortes Soltos Quando a Europa não sabe rir... o novo ano e já o mundo da arte Malnoscomeçou brindou com mais uma polémica que, fe- lizmente, lhe é habitual. Na abertura da presidência checa da União Europeia, a 12 de Janeiro, foi inaugurada uma exposição no edifício Justus Lipsius, em Bruxelas, como é prática comum por ocasião do início de cada presidência rotativa. Exposições destas costumam ser incontroversas e pacíficas. A França, que deteve a presidência antes da República Checa, mandou erigir um previsível balão de enormes proporções com as cores nacionais. Desta vez, porém, os checos encomendaram a exposição comemorativa a um artista nacional que conta no seu currículo com várias obras controversas, pelo que o escândalo suscitado pela escultura Entropa só foi surpresa para quem o desconhece. A obra foi encomendada a David ?erný, que se responsabilizou por convidar 26 artistas oriundos dos restantes países da União Europeia para a criação de uma obra colectiva que reflectisse o espírito da Europa e dos seus estados-membros. O resultado foi uma fraude e um teste ao sentido de humor dos dirigentes políticos europeus: Entropa não foi criada por 27 artistas de diferentes nacionalidades, mas sim apenas por ?erný (e dois assistentes), que forjou 26 identidades de artistas europeus associados a peças representativas do território de cada um dos países-membros da União. 52 Para nomear apenas alguns, a Bélgica (Roger Geboers) é representada como uma caixa de bombons; a Bulgária (Elena Jelebova) por um conjunto de sanitas ligadas através de luzes néon; a Dinamarca (Lars Kristjansen e Susan Malberg Albertsen) é uma grande construção em legos; a França (pelo GRAA - Groupe de Recherche d'Art Audiovisuel) é representada por um cartaz grevista; a Alemanha (Helmut Bauer) por um conjunto de auto-estradas que se assemelha a uma cruz suástica; a Grécia (Ângelo Navridis) é um território em chamas; Itália (Francesco Zampedroni) surge como um campo de futebol em que os jogadores têm bolas no lugar dos seus órgãos sexuais; no território da Polónia (Leszek Hirszenberg) um grupo de padres erige a bandeira em arco-iris do movimento gay; Portugal (Carla de Miranda, que conta no seu falso currículo com exposições na SNBA, em Alcochete e em Arruda dos Vinhos) é formado por uma tábua com três nacos de carne na forma de Brasil, Angola e Moçambique; o eurocéptico e insular Reino Unido (Khalid Asadi, até o falso nome do artista contém ironia) é representado pelo espaço vazio no lugar que a grelha-mapa lhe reserva. ?erný declarou que através desta peça procurou veicular uma visão irónica sobre os estereótipos que estão associados aos diferentes países da União Europeia, respondendo criticamente ao lema desta presidência, "Europa sem barreiras". O sentido da obra parece evidente: enquanto os estados-membros continuarem a vislumbrar-se através de estereótipos, as barreiras manter-se-ão. Depois do seu Shark de 2005, uma imagem de Saddam Hussein num tanque de formol que parodia The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living de Damien Hirst, ?erný soma ao seu currículo mais uma controvérsia, que nos faz o favor de lembrar que a arte ainda tem alguma capacidade de causar desconforto. MANTA DE RETALHOS · Xisacto / Cortes Soltos As reacções dos mais susceptíveis não se fizeram tardar. O representante europeu da Bulgária exigiu de imediato a remoção da peça que representa o seu país através de um conjunto de sanitas. A peça não foi removida mas mais tarde foi coberta com cimento. Outros países exigiram a retirada da escultura, mas responsáveis do Conselho Europeu reafirmaram a legitimidade da obra: afinal de contas, é suposto a Europa promover a liberdade de expressão e censurar a própria censura. 53 MANTA DE RETALHOS · Xisacto / Cortes Soltos CHICO BUARQUE E MAYRA ANDRADE PREMIADOS EM CUBA O Brasileiro Chico Buarque e a cabo-verdiana Mayra Andrade receberam na capital cubana, Havana, os prémios Cubadiscos internacionais. Chico Buarque recebeu o galardão pelo álbum "Carioca", onde o compositor resume toda a sua identidade através da sua cidade natal, o Rio de Janeiro, e Mayra Andrade com o álbum "Navega", que já fora também distinguido este ano pela BBC. "8" - O NOVO ALBUM DOS RÁDIO MACAU Os Rádio Macau estão de volta após cinco anos sobre o último trabalho de originais, editado pela Universal em 2003, surgindo agora o oitavo da banda, justamente com o nome de "8". A banda que junta agora novos elementos aos fundadores do projecto marca uma vez mais com este trabalho, com arranjos mais Pop, um apeadeiro obrigatório na cena musical nacional, fruto de toda a sua experiência, maturidade e longa carreira. Absolutamente obrigatório escutar o tema "Cantiga d'Amor". SAM THE KID À CONQUISTA DOS EUA O site All Hip-Hop, uma das mais importantes publicações on-line dos EUA, destacou a faixa "Negociantes" do álbum "Praticamente" do rapper português Sam The Kid, colocando-o lado a lado com JadaKiss, Nelly ou Lupe Fiasco. O português com direito a mp3 na famosa página é o único rapper não anglo-saxónico a dispor de tal privilégio. JARVIS COCKER EM BUSCA DO SEGUNDO ALBUIM O vocalista dos Pulp, Jarvis Cocker, na sua carreira a solo e a viver há cinco anos em Paris, está a acabar o seu segundo álbum. O sucessor de Jarvis ainda não tem nome, no entanto algumas das canções já foram baptizadas. Titulo: A anunciar Data: Fim de 2008, inicio de 2009 54 MANTA DE RETALHOS · Xisacto / Cortes Soltos LIVRARIA CÍRCULO DAS LETRAS das Letras abriu portas no dia 7 A Círculo de Novembro de 2007. Situada na Rua Augusto Gil, 15 B, entre o Campo Pequeno e a Avenida de Roma, afirmou-se no seu projecto como "espaço de leitura, núcleo de militância cultural e de debate, ponto de encontro de amigos". É exactamente o que tem sido no ano de vida que contabiliza. Dezenas de lançamentos de livros, sessões de poesia, debates e exposições de artes plásticas têm dado conteúdo à ideia inicial e mobilizadora de um grupo de amigos. Mestre Rogério Ribeiro, extraordinário artista plástico e amigo, inaugurou com uma Exposição que intitulou "Trabalhos de ilustração", o Espaço a que foi dado o seu nome. Foi a ultima acção cultural, orientada ao pormenor pelo próprio, que veio a falecer em Março de 2008. O ano que agora começa tem já agendadas inúmeras acções, das quais podemos destacar para o primeiro trimestre: JANEIRO 08./31. - Exposição de pintura de Margarida Alfacinha 13. - Ciclo de Poesia Neo-realista - (Luis Miguel Cintra diz Mário Dionísio) 20. - 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem (Dom Januário Torgal Ferreira e Dr. Domingos Lopes) 21. - "Sete Partidas - poemas" de Manuel Alegre - (Paulo Sucena, António Borges Coelho e poemas por Manuel Alegre) FEVEREIRO 03./28. - Exposição de Cerâmica de Teresa Cortez 17. - Ciclo de Poesia Neo-realista (Fernanda Lapa diz Carlos de Oliveira) * . - 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem /Guantanamo (Ana Gomes) * . - 60 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem nos mundos de hoje - (Dr. Fernando Nobre e Dr. Domingos Lopes) 56 MARÇO 05. - Memórias e depoimentos do 25 de Abril (Vasco Lourenço e Pinto Soares) * . - Poesia de Abril (Maria do Céu Guerra) 13. - Ciclo de Poesia Neo-realista - (Cármen Dolores diz Manuel da Fonseca) o Março - Teatro de Abril (Helder Costa) *. - Evocação do 25 de Abril (intervenção artística, literatura, canto livre) ABRIL *. - Evocação do 25 de Abril (intervenção artística, literatura, canto livre) *. - Datas a confirmar