Cap.47 - Ex-Alunos MSC

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Cap.47 - Ex-Alunos MSC
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CAPÍTULO QUADRAGÉSIMO SÉTIMO
REMINISCÊNCIAS DO
ANTONIO HENRIQUES
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1941. Poesis. Penúltimo ano em Pirassununga.
A guerra alastrava-se; no final deste ano, a Alemanha invadiu a Rússia e foi o
início de sua desgraça.
Participei ativamente da guerra soltando as rédeas à imaginação: quantas vezes,
ao invés de estudar e lazer as devidas meditações espirituais, ia à Inglaterra,
envergava o uniforme de almirante a saía à caça das embarcações nazistas no
comando do Royal Oak (porta-aviões), do Prins of Wales, do Ark Royal.
Assim, afundei a belonave Bismark, episódio relembrado em um programa de
televisão da TV Cultura no dia 14-09-97. Também participei da célebre caçada ao
Graf Spee perto de Montevidéu.
Quando não capitaneava navios, pilotava os aviões de caça Spitfire da RAF (Royal
Air Force).
Encanta-me até hoje os filmes relacionados, de uma forma ou outra, com a
guerra: A balada de soldado e Quando voam as cegonhas (russos), A um passo da
eternidade; A ponte de Waterloo, Casablanca, (americanos); Roma, cidade aberta
(italiano); Adeus, meninos, Lucieu Lacombe, Assunto de mulher (franceses) e
outros.
Nos estudos, a novidade foi a cadeira de Grego, ministrada, como se sabe, pelo
Pe. Donato; tudo que aprendi dessa matéria evaporou-se e, hoje, teria de
reestudá-la, o alfabeto inclusive.
Comecei, porém, com boa nota (98) e repeti a dose na Retórica.
Continuava com nota excelente(100) em história; estava melhor em latim (78) do
que em português (76); cai em alemão (80), em geografia (80), em memória (98)
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e em religião (92); melhorei em matemática (50), em física (76) e em francês (1
00); continuei com a mesma nota (98) em literatura.
Durante o estudo de história, acredito que, nessa época, falou-se do político Otto
Von Bismarck cuja foto aparecia no livro.
Provocavam-nos gostosas risadas as pestanas compridas, revoltas e espetadas do
chanceler alemão.
Que o diga Sebastião Carvalho.
Eram as pestanas do Pe. Adriano e que caracterizam as pessoas idosas; hoje, uma
de minhas preocupações ‚ alinhar e aparar as pestanas sempre que vou ao
barbeiro.
Discorreu-se também sobre os "déspotas esclarecidos"; e não é que temos no
Brasil de hoje um tal déspota?
Não é déspota, por acaso, quem governou até agora com medidas provisórias?
Déspota, porventura, não é quem não dialoga com os movimentos sociais e quem
só pensa em reeleição transformando a Câmara e o Senado em balcão de
negócios?
Ainda no campo da história viu-se que o poderio do império austríaco se
consolidou com uma política de casamentos celebraria em versos latinos no livro
de Joaquim Silva que usávamos:
"Bella gerant alii.
Tu, felix Austria, nube. Nam quae aliis Mars, Tibi dat regna Venus".
Já que estamos falando de latim e de Vênus, eis dois versos que o Pe. umberto me
passou e que transcrevo; se alguém quiser, mande a tradução pelo Inter-Ex.
"Si Veneris veneris veneris ante
ne sedeas, sed eas ne pereas per eas".
A Eneida do Virgílio ocupou-nos nessa ocasião; traduzimos quase todos os
episódios do segundo livro, como a trágica morte de Laocoonte (horresco refens!);
o episódio dos amigos Niso e Euríalo (livro quinto) que, agora, me cheira a
homossexualismo, comum na antiga Grécia e Roma.
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Travamos também conhecimentos com os discursos de Cícero (Pro Archia Poeta,
Pro Milone e, no mínimo a primeira Catilinária).
Agradou-me ler e traduzir o poeta Virgílio de linguagem mais fácil e de assunto
mais atraente. Permanecem acesas na memória alguns versos do mantuano:
Varium et mutabile semper femina
Rari nantes iii gurgilte vasto
Fuimus Troes e ingens gloria Teucrorum
Fugit irreparabileter¡¡pus...Moriamur et iii media arma ruamus.
Tenho na biblioteca o livro que se usava em Pirassununga: L'Enéide, edição de
1947, da Hachette, de Paul Leiay.
Em 1941, havia no seminário um jovem postulante a irmão leigo: Antonio
Stringuetti.
Deu-se que ele adoeceu e morreu no mesmo ano, no dia trinta e um de abril, de
acordo com o anuário dos MSC de 1990. Antes de morrer fez a profissão perpétua
in extremis e morreu MSC.
Foi a primeira vez que a morte entrou-me na comunidade. Lembro-me da missa
solene de réquiem e, especialmente, do prefácio dos mortos e do canto na hora do
saimento do corpo; ln paradisum deducant te angeli.
Data dai, talvez meu apego à liturgia antiga da igreja e ao canto gregoriano que se
me calou fundo na alma e me envolve o espírito numa atmosfera medieval
povoada de conventos silenciosos e de monges em prece. E me vêm aos ouvidos
os versos de Alphonsus de Guimaraens:
"Se pudesses morrer na paz de algum convento a alma em sossego, o olhar
beijando a luz dos astros..."
Não sei qual foi a causa da morte do Irmão; falou-se numa ingestão de pimenta
do reino e parou-se aí.
O que eu sei é que ele não foi hospitalizado, embora tenha visto uma vez o Pe.
Adriano com um médico, o Dr. João Del Nero.
A minha impressão é que não se deu a devida atenção à doença; o Pe. Adriano
achou que poderia curá-lo e deu no que deu. Talvez tenha oportunidade de relatar
outro caso de doença com as mesmas conseqüências fatais.
Hoje, o Irmao Stringuetti deve repousar naquele tranqüilo e ameno recanto onde
os ex-seminaristas homenageiam, todos os anos, os mortos da Congregação no
Brasil, em cerimônia singela e tocante.
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Enfim, após longos anos, estávamos na Retórica, veteraníssimos.
Tantos anos, sim, mas que rápidos se foram porque, ao lado de muita tristeza,
muitas alegrias houve e variadas.
Finis coronat opus...
Íamos receber a coroa, pois que havíamos caminhado um longo caminho, por
vezes, espinhoso.
Ponto culminante na Retórica era a
Academia Pio XI que se reunia em
determinada época para avaliar os
trabalhos apresentados pela comunidade
e premiar os melhores.
Não me lembro de ter oferecido
qualquer trabalho digno de louvor em
épocas anteriores nem de ter colhido
qualquer
prêmio.
Mesmo
minha
participação
como
acadêmico
foi
mínima.
Havia a foto de praxe - ad perpetuam
memoriam - dos acadêmicos, na entrada
do seminário, com o emblema da
academia.
Perdi esta e inúmeras outras fotos dos
tempos
idos
em minhas
várias
mudanças de uma pensão para outra.
pedaços da vida na busca incessante do
tempo que se foi.
DESENHO DE ÉZIO MONARI (MUNNARI)
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Lamento, hoje, a ruptura com os elos do passado especialmente agora, quando,
em plena velhice, tento recompor os
Não me lembro se os retóricos eram premiados com algum passeio; nós o fomos.
Estivemos na fazenda Santa Cruz das Palmeiras, em Araras, de propriedade da
Condessa Crespi, com os padres Donato e Cornélio van Gils.
Meio deslocados embora, não fizemos feio.
Quem passou por maus bocados foi o Francisco Mariano que, a contragosto,
tomou vários copos de cerveja constantemente renovados pelo solícito garçom de
luvas brancas, até que alguém sugerisse ao Francisco que mantivesse o copo
cheio.
Pelo mais, o ano decorreu normal e, nos estudos, minhas notas subiram em
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alemão (90),
religião (98),
português (86),
latim (86),
geografia (94),
matemática (80 - Amirabile dictu!), e
física (96 - Amirabile dictu!); diminuíram em
grego (90),
história universal (92),
francês (90); repetiram-se em
literatura (98),
memória (98).
A novidade foi a introdução do estudo do inglês (nota 90); o que aprendi de inglês
num ano me foi mais útil do que os quatro anos de alemão.
Usou-se a gramática de Fitzgerald, da Editora Globo, utilizada, também, por Érico
Veríssimo, como se pode ler em Solo de Clarineta, primeiro volume.
Na Poesis e Retórica estudávamos latim em uma gramática editada pelos padres
Premonstratenses de Pirapora numa edição muito caprichada.
Traduzimos Tácito, Horácio e alguma coisa de Catulo; deste, com certeza, não
traduzimos as poesias Ad Lesbiam, das quais a mais conhecida começa com os
versos: vivamus, mea Lesbia, atque amemus.
Do velho Horácio ficou para sempre o carpe diem, lembrado numa can‡ao
universitária que ouvi do Pe. Lamberto:
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Gaudeamus igitur
Juvenes dum sumus.
Post jucundam juventudem
Post molestam senectudem
Nos habebit humus.
O grego estudamo-lo na Grammaire grecque de E. Ragon; no dia 20/07/98
encontrei na Livraria Francesa três exemplares dessa gramática com a seguinte
observação: entièrement refondue.
Do grego traduzimos trechos Anabásis de Xenofonte, da Ilíada e da Odisséia. O
padre Donato lia-nos, com entusiasmo, uma tradução da qual ainda ficou uma
passagem sempre repetida:
“E quando a aurora de dedos de rosa surgiu matutina..." Ficaram-me também
gravados alguns epítetos homéricos: "A de glaucos olhos, Atena", "O de pés
ligeiros Aquiles" e outros.
Em 1942, comentava-se muito sobre
duas figuras que a guerra trouxe ao
Brasil. Um era Georges Bernanos
radicado em Minas (Barbacena), autor
de livros importantes como Sob o sol de
Satã (Sous le soleil de Satan), filmado e
coroado com a Palma de Ouro num
festival de Cannes.
O outro era Stefan Zweig, autor de
Brasil, país do futuro (eta! futuro
demorado!) e A canção de Bernadete,
também
filmado
(The
song
of
Bernadete) cujo assunto são as
revelações de Nossa Senhora a
Bernadete
de
Soubiroux,
esta
interpretada por Jennifer Jones.
O filme foi considerado medíocre, mas,
mesmo assim, levou quatro Oscars.
Zweig suicidou-se em Petrópolis (?) em
1942.
DESENHO DO ÉZIO MONARI (MUNNARI)
1636
O final do ano não só fechou o ciclo de minha estada em Pirassununga como
sinalizou o fim de uma época: voltaria ao seminário após ausência prolongada de
mais ou menos cinqüenta anos quando participei do meu primeiro encontro com
ex-alunos.
Nesta ocasião, confrangeu-se-me o coração ao deparar com o seminário
despovoado e, em parte, relegado ao abandono.
A crise de vocações sacerdotais atingira a escola; parte se transformou no Colégio
John Kennedy; parte era habitada pela pequena comunidade e outra parte estava
entregue ao pó.
O dormitório onde passei a noite estava um horror.
Pouco dormi aquela noite; consumi o tempo com lembranças do passado; ora
deleitavam-me as brincadeiras do bando buliçoso dos alunos; ora, viam-se passar
os vultos dos padres mortos reintegrados em suas funções; ora via-me menino, "o
menino que podia ter sido e que não fui."
Um táxi levou-me ao seminário em 1937; em 1942 outro táxi nos apanhou (os
alfenenses) na porta da escola e nos conduziu à estação ferroviária.
Deixei o seminário com os olhos marejados de lágrimas, rumo à amorável Alfenas,
onde ficaria alguns dias no regaço da família.
Minha estada em Alfenas foi curta, graças a Deus. Estava fora do ambiente,
completamente deslocado.
Para minha felicidade, havia os colegas, a igreja e a casa paroquial dos padres
MSC, entre os quais, o Pe. Bernardo Ditters, muito bom de papo.
Logo que cheguei, já dei vexame na hora do almoço encomendado ao Zé da
Nega. A mesa, estava a Nilza, minha irmã de criação, e três irmãs do José Lopes
da Costa.
Não consegui engatar qualquer conversa e evitava olhar as meninas; pouco comi,
o rosto em brasa de tanta vergonha. Mamãe aproveitou uma deixa e disse que eu
estava muito feio; pescoço comprido, nariz grande e pé enorme. Banquei, com
certeza, o Cavaleiro da Triste Figura.
Para meu alivio, fui chamado à casa do José Lopes, meu vizinho, onde se achavam
os outros colegas e pude, então, destravar a língua.
Aproveitou-se o tempo para algumas visitas: à Dona Naquita, Dona Tonica e
outras.
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Fomos à casa de nossa professora no primário. Maria do Rosário que nos acolheu
com doces, bolos e refrigerantes.
Ficamos conhecendo duas irmãs do padre Vitório: Anita (?) e Josefina (Fina).
A convite do Sebastião e do Francisco, estive, com eles, em Machado em visita a
um parente deles.
Fomos à casa dos pais do Pe. Vitório e, naturalmente, à casa paroquial dos MSC,
onde, como já contei, fui flagrado pelo Pe. Galiart quando trocava olhares com
duas moças da casa vizinha.
Ainda sinto arrepios do olhar prussiano do Pe. Galiart.
Outro passeio: à fazenda dos pais do Felipe Toledo., ex aluno, cuja família era
muito ligada à minha e cuja irmã, Carlota, era minha madrinha.
Escusado é dizer que estava sempre em contato com o José Silvestre, outro ex
aluno. Falecido este ano.
E assim, logo mais estava arrumando as malas com destino a Itapetininga, mas
isso é assunto para mais tarde.
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No início de 1943, os alfenenses arrumamos as malas com destino a
Itapetininga, após as férias no seio da família, terminados os seis anos de
estudos em Pirassununga.
Não me ficou na lembrança nenhum pormenor interessante desta viagem.
O Sebastião Carvalho diz que pernoitamos em São Paulo, na Vila Formosa,
no prédio do Escolasticado, ora em construção.
Fico imaginando em que precárias condições nós dormimos, pois o prédio
só teve possibilidades de habitação em 1945, quando para lá se transferiu
a filosofia e a teologia, então em Itapetininga.
O ano de noviciado não me provocou ressonâncias nenhumas nem física
nem, espiritualmente.
Foi uma temporada de muitos exercícios espirituais, especialmente os de
Santo Inácio de Loyola que neles imprimiu uma marca inconfundível de
militarismo, militar que era.
Foi também uma época de prática de penitência. Assim, lembro-me de que
fomos recolher esterco num monturo de lixo depositado nas mediações,
em meio a um cheiro nauseabundo. O Pe. Mestre queria tirar aurum ex
stercore.
Entre outras formas de penitência, havia o cilício de arame com pontas
que se colocava nos braços ou nas pernas.
Ficamos conhecendo também, o açoite de corda com bolinhas nas
extremidades para castigar o corpo.
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Corria o boato de que gente havia que malhava o colchão ao invés de se
flagelar. Usei, com parcimônia, destas formas de penitência. mesmo na
filosofia e teologia.
Preleções espirituais havia e numerosas ministradas pelo Pe. Mestre cujo
teor não variava muito, versando sobre morte, juízo, inferno, paraíso.
Vinham sempre recheadas de expressões latinas como laborare est orare;
talis vita, finis ita; mors certa, ora incerta.
Uma dessas expressões estava perto do relógio no alto
da escada e impressionou o Benedito Inácio: Vulnerant
omnes,ultima necat (todas as horas ferem, a última
mata).
O Pe. Mestre, quando falava da morte, sempre repetia:
clericorum sors, repentina mors.
Tempos depois dizia que morreríamos, provavelmente,
de morte natural, vítimas de algum a doença. Alguns
de nossos padres sofreram morte violenta (desastre)
que é, de certa forma, morte repentina.
Era de praxe, nas preleções, repetir- se uma passagem
do Apocalipse: “porque és morno eu começarei a
vomitar-te de minha boca."
Costumava o Pe. Mestre chamar os tíbios de "meias
molhadas" ou "sacos de sal molhados".
Rasparam-nos as cabeças no noviciado e recebemos o
hábito religioso.
Ganhamos duas batinas: uma nova e outra usada para
o dia-a-dia. Em geral, estas ultimas eram ensebadas,
portadoras de muitos e variados suores.
Além da batina, recebemos um chapéu (usado), o
cíngulo e o colarinho: um novo e outro já amarelecido
pelo uso.
O Amilcar Varanda conta como ganhou de um familiar um chapéu digno de
bispo; quando ele deixou o noviciado, os padres compraram-lhe o chapéu.
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O Pe. Mestre era o Pe. José Wijnands que esteve em Alfenas onde era
querido pelos meus pais. Contava, então, o Pe. Mestre com 56 anos.
Sobreviveu mais 9 e morreu na Vila Formosa, em cujo cemitério foi
enterrado.
Foi velado na matriz e, bem me lembro, seu corpo exalava mau cheiro.
Segurei-lhe a alça do caixão, semi-aberto, tão ordinário que era.
O livro Face a Face diz que ele morreu em dezembro de 1953. Ora, em
1953, eu já não estava no Escolasticado, com certeza.
Percebia-se já, no noviciado, que ele andava doente, com a respiração
ofegante.
Numa celebração de missa, logo após o evangelho, escarrou muito (coisa
de praxe), recolheu o escarro no lenço, olhou e disse: "Credo",
continuando a missa.
Preocupou-se com a minha saúde e levou-me ao médico, Dr. Dick (se não
me engano – na realidade é Dr. Dix); o médico recomendou-me almoçar
bem e nada mais.
Embora magro, eu gozava de boa saúde.
O Pe. Mestre preocupou-se com meu serviço militar.
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Em Itapetininga, recebi minha carteira de reservista de 3ª. categoria, nº
849924, alistado no ano de 1943 e sorteado no ano de 1944.
Claro que esta questão foi um acerto entre os padres e algum chefe
militar.
Além do Pe. Mestre, havia um outro padre que o auxiliava, mas não me
lembro de quem era.
Era vigário em Itapetininga o Pe. Antonio Brunetti, corado como um
camarão. Dele falaremos oportunamente.
O tempo do noviciado escoou rápido devido, talvez, à presença dos
filósofos e teólogos; a casa estava sempre cheia e sempre havia
novidades.
No final do ano, deu-se o primeiro desfalque entre os alfenenses:
o Sebastião Carvalho voltou à vida secular.
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Como é do conhecimento de todos, o Escolasticado funcionou em
Itapetininga até 1944, quando foi transferido para Vila Formosa (São
Paulo) a um prédio recém construído.
Destarte, meu primeiro ano de filosofia transcorreu em Itapetininga, sem
maiores novidades.
Teólogos e filósofos, tomávamos as refeições juntos e juntos rezávamos e
recreávamo-nos.
Participavam de nossa missa diária algumas mulheres já
malcheirosas de um asilo próximo.
idosas e
Invariavelmente, atrasavam-se para a comunhão o que irritava o nosso
professor de filosofia, Pe. José Rijnja, cujo desagrado estampava-se-lhe no
rosto e nos olhos de forma bem clara.
Aconteceu, uma feita, que uma dessas senhoras sofreu pequeno
desequilíbrio; apoiou-se no então Frater Arlindo Giacomelli e rasgou-lhe o
bolso da batina.
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Hora de comunhão, sofreamos o riso, mas o nosso colega foi alvo de
muita gozação.
Fui aluno medíocre de filosofia. O curso, porém, foi de suma importância,
embora mal ministrado.
De modo geral, os pontos importantes centralizavam-se na discussão entre
duas correntes, uma defendida por um autor jesuíta e outra sustentada
por um dominicano.
Lembro-me do nome do jesuíta, um espanhol de nome Suarez, em latim
“Suaresius”!
O curso era ministrado em latim num livro cujo autor segundo o Benedito
Ignácio, era o francês Boyer. Não me lembro.
O único Boyer de que guardo lembranças é o ator de cinema, Charles
Boyer. Claro que estudávamos a filosofia tomista, com base na Summa
Philosophica de Santo Tomás de Aquino, o Doctor Angelicus.
Dentre os muitos tomistas citados, cito o nome de Jacques Maritain.
No estudo da filosofia, a argumentação devia ser estruturada em forma de
silogismo e nas discussões era de praxe o uso de alguns termos como
affirmo, nego, distinguo, transeat e outros.
Ainda permanecem na minha lembrança algumas expressões muito em
uso na linguagem filosófica de então, como por exemplo, sublata causa,
tollitur effectus, ex nihilo nihil, quod gratis asseritur, gratis negatur, causa
incausata, niutat¡s mutantibus, caeteris paribus, ens a se, ens ab alio e
outras muitas que não me acodem agora.
Também os argumentos eram dotados de nomes latinos: ex auctoritate,
majus ad minus, a contrario sensu, ad analogiam, ad hominem e outros
que ainda se repetem nos livros de direito e de retórica, como os de
Perelman.
Nos estudos de filosofia continuava brilhando a inteligência do Walter
Vergna.
Outro que se destacava era o Paulo Vilhena. Este envolveu-se de tal forma
com os estudos que recebeu a alcunha de “filósofo”.
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Discutia pontos filosóficos no recreio e durante as refeições. Absorvia-se,
em tal medida, que ficava longo tempo com a travessa ou o prato erguidos
no ar, de tudo esquecido.
A esta altura, o Francisco Mariano (quantas saudades!) e o Sebastião
Carvalho já haviam despido o hábito religioso.
Quanto a mim, nos estudos de filosofia, continuava no terreno oscilante da
mediania, como se pode ver pelas notas do primeiro ano (1944):
Filosofia (5,5);
Ética (6,5);
Teologia Fundamental (5);
Exegese (8,5);
Psicologia (6,0);
Música (5,5).
Lembro-me de que o Pe. Lamberto ministrava Ética e usava o livro de
Victor Cathrein, autor ao qual faz referência o Dr. Miguel Reale em seu
livro “Memórias".
A exegese ficava a cargo do Pe. Cornélio van Gils; psicologia e música com
o Pe. Leopoldo van Liempt e teologia fundamental com o Pe. Geraldo van
ROYEN...?
Por ora, fiquemos por aqui. Até mais ver!
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Foi então que, graças às démarches do Amilcar Monteiro Varanda e de Monsenhor
Salim, ingressei direto na Faculdade de Filosofia da PUC de São Paulo, no curso de
Letras Clássicas.
Passei, naturalmente, por um vestibular e obtive o primeiro Lugar não por meus
méritos, mas porque os concorrentes eram mesmo fracos, apesar de haver entre
eles um ex- seminarista carmelita e um dos Padres do Verbo Divino.
Todas as tardes fazia aquela viagem a que me referi no último número do Boletim.
A ida era melhor livre de trânsito. A tarde, tinha de enfrentar a fila de ônibus no
Largo São José do Belém. Sim, já havia filas nos tempos de antanho; longas filas,
longas e desorganizadas filas; eu, geralmente, ia de pé e depois, mais 15 minutos
até o Escolasticado, noite já feita, mas tranqüilo sub umbra alarum angelorum.
A parte administrativa da Faculdade ficava aos cuidados do beneditino D. Beda
Krause, já falecido.
As vezes, dava altos berros pelos corredores. Os alunos não gostavam dele.
A parte relacionada aos estudos estava sob os cuidados de outro beneditino, D.
Cândido Padim, dotado de extraordinária inteligência.
Mais tarde, tornou-se bispo de Bauru e destacou-se pela defesa dos direitos
humanos. Por isso, foi excluído pelo Papa de uma delegação da CNBB e substituído
por um bispo conservador.
Hoje, está recolhido no Mosteiro de São Bento. Foi ele quem presidiu ao meu
casamento na Capela da PUC.
Os professores da PUC eram, em geral, de bom nível; alguns eram mesmo da USP.
Os de Letras eram, porém, medíocres; pelo menos, as aulas eram fracas. O
professor de grego era um português (José Rodrigues), exímio matador de aulas.
O de latim era um italiano (João Ecsodi), homem muito culto. Professor de
literatura portuguesa era o Américo de Moura, protestante e que lia a aula inteira
um grosso livro que eu ainda conservo.
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Havia um padre que Lecionava religião e gostava de matar aula: gastava meia
hora para fazer chamada dos alunos especulando a vida de cada um.
Fora da área de Letras não se pode deixar de citar os nomes de Alexandre Correia
e Leonardo Van Acker (ambos de Filosofia).
Éramos uns quinze colegas, entre os quais um malandrinho que, de comum
acordo, sorteava determinado ponto de exame com uma peça que ele punha no
saquinho e retirava.
Colava-se muito e eu ajudava os colegas, com a permissão do Pe. Leopoldo van
Liempt.
Uma colega de quem bem me lembro era a Therezinha (com z) Moura, menina da
pá virada. Já morreu.
Outra era a Áurea, casada com um professor aposentado da USP. Encontrei-me
com ela várias vezes, na correção de provas da Fuvest e no cinema.
O marido (Dino Pretti) era vidrado por filmes antigos (como eu) e nos
encontrávamos, às vezes, em cineclubes.
Freqüentei as aulas na PUC durante dois anos de batina e dois em traje civil. Foi
lá que conheci minha esposa; ainda estava de batina.
O namoro quase não prosperou porque um professor, brincando, dizia que ela me
desencaminhara. Talvez até já tenha falado disso.
Como balanço final da Faculdade, cabe-me dizer que pouco aprendi e pouco me
ilustrei com os ensinamentos recebidos o que debito à minha mediocridade já
manifestada em Pirassununga e no Escolasticado.
Fora estas deslocações para a Faculdade, saímos, às vezes, em grupo ou sozinhos
com este ou aquele fim, por exemplo, ir ao dentista.
Nosso dentista tinha seu consultório na Av. Ramos de Azevedo; na altura do
cemitério Quarta Parada onde repousam os ossos do folclórico ex-presidente do
Corinthians Paulista, Vicente Mateus.
O dentista chamava-se Francisco Tortorelli e era natural de Caconde. Ele me tirou
uma foto, mas fez questão de que eu não pusesse as mãos em prece, como era de
praxe. Parece ter sido um bom dentista, pois só agora, vez ou outra, preciso
restaurar uma ou outra obturação daquela época.
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Lembro-me de que estivemos - época de 50 - na Praça da Sé por ocasião de um
congresso eucarístico nacional no episcopado de D. José Gaspar de Affonseca e
Silva, mas não tenho nenhuma Lembrança especial daquela solenidade.
Embora aluno da PUC, continuava normalmente minha vida no Escolasticado.
Havia certos episódios de que eu participava e achava normais. Hoje, entretanto,
refletindo sobre eles, acho-os absurdos.
Em Pirassununga e no Escolasticado havia cães policiais (pastores) e todos se
chamavam “Kees".
Quando aparecia um gato por ali, ele era atiçado pela turma e sempre
estraçalhava o felino.
Para nós, aquilo era uma festa: corríamos juntos com o cachorro, aos berros, e
festejávamos, com ele, o ato selvagem.
Outra coisa que hoje, merece minha desaprovação era o fato de o Oscar Marini
andar empunhando uma espingarda, à noite, a fazer ronda pelo terreno.
Aconteceu que, na época, começaram a estacionar carros perto do Escolasticado.
Começava a moda de casais namorarem em lugares ermos, à luz da lua.
O Oscar Marini era um bom rapaz; ele, como eu, teve a caminhada para o
sacerdócio obstruída. Ficou um tempo em Ibicaré‚, voltou para o Escolasticado e
acabou saindo. Dizem que ele se entendia bem com o superior que o encarregava
de várias tarefas. Morreu num desastre de carro na Via Dutra.
O saudoso Pe. Antonio Rodrigues Cortez apareceu, certo dia, com um revólver na
mão.
Estávamos numa rodinha no pátio. Conversa vai, conversa vem, o revólver
disparou, felizmente, para o chão.
Ninguém se assustou, mas, arma na mão, pode ter conseqüências nada
agradáveis.
A vida em Vila Formosa era mais livre, com foi dito, e havia diversões: música,
cinema, futebol.
Sem o sítio, o superior arranjou outros lugares para gozarmos as férias como
diremos oportunamente.
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Já devo ter falado, mas vou citar dois filmes a que assistimos: A canção de
Bernadete (The song of Bernadete) e um filme sobre Joana D'Arc estrelado por
Ingrid Bergman.
Nosso maior divertimento no seminário maior era o futebol. Tínhamos um time
muito forte cujos nomes mais importantes como excelentes craques eram:
‫ ٭‬Nelson Faria no gol; depois que ele saiu, parece que jogou no Noroeste de
Bauru;
‫ ٭‬Luís Baptistella, uma barreira na defesa com sua altura, vigor físico e
habilidade;
‫ ٭‬João Crisóstomo, um craque consumado, dotado de velocidade, driblador e
artilheiro;
‫ ٭‬José Romão, ponta esquerda dos melhores, além de outros.
Jogamos amistosos com os carmelitas e seminaristas do Verbo Divino em Vila
Formosa e na casa deles e lhes infligimos derrotas estrondosas.
Já relatei que o nosso campo de futebol era uma concessão da Prefeitura de São
Paulo que teve até‚ a gentileza de nivelar o terreno.
Também na Fazenda da Barra mostramos nossa habilidade no trato com a bola,
mas, vamos deixar as férias para o próximo número do Boletim.
Abri o artigo com a menção ao Amilcar Monteiro Varanda.
O trabalho dele foi de altíssima importância pois tirou dos ombros dos exseminaristas do Brasil todo uma pesada cruz e reparou uma enorme injustiça.
O Amilcar trabalhou bastante para a fundação da Associação dos ex-alunos MSC.
Poucos sabem, por exemplo, que o nome do Boletim, (Inter-Ex), foi sugestão dele.
Parabéns, Amilcar.
1649
Há quem considere o saudosismo como um sentimento de desagrado com a
atualidade; para nós, ex-seminaristas MSC, no entanto, ele representa a
superestimação do passado como reconhecimento da importância daqueles anos
para a nossa formação.
Em cada um de nossos encontros e reencontros, o reviver das emoções remotas
reativam e reforçam antigos laços de amizade que perduram até o congraçamento
dos familiares.
Cada um dos colegas daqueles bons tempos atiçam-nos a lembranças mas, nesta
oportunidade, preferi me fixar nos locais que me envolvem em recordações.
1650
Neste último, encontro chegamos a Pirassununga à noite e, desorientados, a cada
esquina perguntávamos a alguém: onde fica a Escola Apostólica..., não, o Colégio
da Raia aliás, o Colégio Kennedy?
O velho prédio do seminário continua imponente mas o antigo dormitório nos
remeteu a lembranças de 1966.
Por razões de segurança, fomos desalojados e tivemos que nos acomodar em
diversos lugares.
Uma turma instalou-se no convento da chácara, antes ocupado pelas Filhas de
Nossa Senhora do Sagrado Coração, onde então alguém já foi nomeado como
madre superiora e outro como irmã tesoureira.
Os mais velhos, buscando comodidade, instalaram-se no Quartel general. Aqueles
que se alojaram na enfermaria eram identificados como "os mutilados".
A sala de recreio dos seminaristas adultos, também ocupada passou a denominarse “cantina" e havia ainda a República do Bambolê que todos diziam que era tão
apertada quanto ninho de urubu.
Parte do Colégio Kennedy hoje ocupa a parte de trás do seminário e isto nos faz
lembrar o mutirão para o desmonte da velha igreja do Rosário onde depois
construímos uma área esportiva conhecida como Quadra Miola.
A sempre bela e aconchegante capela traz à lembrança as muitas missas e
celebrações solenes, abrilhantadas pelo afinado coral de 3, 4 e 5 vozes.
Do auditório, as mais vivas recordações das performances teatrais, das sessões
litero-musicais das premiações da Academia.
O nosso antigo e rico museu. Qual o destino daquelas belíssimas peças da
arquitetura e da escultura clássica greco-romana?
Tanto o campo de futebol quanto as quadras esportivas nos relembram os
memoráveis embates em torneios na cidade.
Certa vez fomos campeões no vôlei, derrotando todos os adversários, inclusive a
seleção nacional da Aeronáutica e nossa torcida foi premiada como a mais
animada graças a inúmeras cigarras que, aprisionadas em caixas de fósforos,
reforçavam nosso coro de incentivo aos nossos atletas.
O sítio São José do Barrocão. Isto é tema para páginas e páginas de recordações e
fica para uma próxima oportunidade.
1651
PADRE ANTÔNIO VAN ES (PRIMEIRO À ESQUERDA)
E A PRIMEIRA TURMA DE PIRASSUNUNGA
Pe. Antônio van Es
Nascemos - ele e eu - no mesmo mês de agosto (27 e 9) e convivemos seis longos
anos, ele, superior, e eu, da Sexta à Retórica.
Foi um convívio amistoso; dele não me ficou nenhuma mágoa; não me lembro de
ter levado algum puxão de orelha mais duro que me marcasse a vida.
Zeloso no seu trabalho, ele o foi: mais de uma vez pude vê-lo com o rosto
ensaboado, barba semi feita, abrir a janela do quarto e olhar o que estava
acontecendo no p tio dos menores quando a gritaria se acentuava.
Tinha-lhe amizade e devotava-lhe respeito; não me passou pela cabeça dar-lhe um
apelido como o fez meu colega de turma, o Toninho de Araras (Antônio Severino);
este deu ao Pe. van Es o apelido de "papagaio sem rabo" em atenção ao seu nariz
e ao modo de andar quando rezava o breviário, especialmente quando estava de
capa curta.
1652
De volta a Alienas, minha mãe mostrou-me os boletins com observações, em letra
bonita, do Pe. van Es como: "menino genioso”, não gosta de matemática",
"menino bom" e outras. Havia também uma carta de minha irmã Filoca devolvida
de Pirassununga porque falava das muitas saudades que minha ausência lhe
deixara.
Os alunos deviam conversar com o Superior e pediam-lhe audiência por meio de
bilhetinhos ou eram chamados em casos particulares. Assim, mantive contato
estreito com o Pe. van Es.
Não me lembro de nenhuma lição de vida que me tivesse transmitido; quando
senti os primeiros apelos sexuais, o assunto foi abordado, mas sem nenhuma
profundidade, como era praxe naqueles tempos.
Para alguns padres holandeses ficou a impressão de fraqueza ao se deixar
influenciar demais pelo Pe. Donato; este, na realidade, era quem dava as cartas
em Pirassununga.
Repete-se a história; quem manda no Brasil é Antônio Carlos Magalhães.
SENTADOS: PADRE ANTONIO VAN ES, PADRE MATIAS WIJNANDS, PADRE LÉO
LEENDERS
DE PÉ: PADRE DONATO VAN HEST, PADRE HENRIQUE ALOFS, PADRE
BERNARDO DITTERS, PADRE JOSÉ MARIA DE BEER, PADRE ALBERTO
BRANDTS E PADRE MÁRIO PENNOCK
1653
Pe. Adriano van Iersel
Coube-me a ventura de tê-lo ao meu lado em várias fases de minha vida.
Criança, conheci-o em Alfenas onde, coroinha, o ajudava especialmente na missa
das onze horas; por vezes, interrompia a leitura do breviário para conversar
comigo repassando-me os cabelos. Em 1937, em Pirassununga, reencontrei- o
professor da Sexta e em outras séries.
Em Vila Formosa estivemos, mais uma vez, lado a lado, embora não fosse meu
professor.
Interessantes eram suas aulas de francês; deliciavam-nos, a nós e ao professor,
alguns versos como já citados no nº. 70 (1997) do Inter-Ex e os seguintes:
Chat vit rôt.
Rôt tenta chat.
Chat mît pâte à rôt.
Rôt brula chat.
Du pain sec et du fromage
C'est bien peu pour déjeuner.
On me donnera, je gage,
Autre chose à mon diner:
Car Didon dina dit-on,
Du dos d´un dodu dindon.
Em história, o Pe. Adriano parecia falar do que está ocorrendo agora; os fatos são
os mesmos, as mesmas safadezas.
Lembro-me de um dos seus conselhos: o chefe de família devia entregar todo o
salário à mulher e deixá-la administrar a casa. Juro que tentei fazer isso, mas não
deu certo.
Tinha respostas sensatas para qualquer pergunta. Quando um aluno lhe perguntou
o que era "amante", ele deu uma resposta bem condizente ao machismo da
época: "É uma empregada de quem o patrão gosta muito”.
Devíamos ser, na Sexta, uns diabinhos de seminaristas porque, às vezes, o próprio
anjo de doçura que era o Pe. Adriano perdia a paciência; momentos havia que, em
sala de aula, ele puxava o gorro na cabeça, cerrava os dentes, batia o ponteiro e
tamborilava os dedos crispados na mesa.
Bom Pe. Adriano, quantas saudades; saudades imensas, bom Pe. Adriano.
1654
Pe. Bernardo Ditters
Loiro, alto e desengonçado, cujos olhos azuis quase sumiam atrás de grossas
lentes dos óculos, o Pe. Bernardo ‚ outro que tem agasalho especial no meu
coração.
Era inteligente e - coisa rara naqueles tempos - de mentalidade aberta. Ao
contrário da praxe, não vivi repisando o problema da castidade e dizia o óbvio: há
muitos outros pecados piores.
Dois pequenos fatos ilustram como ele sabia encarar as coisas.
Aconteceu, em sala de aula, que um aluno "soltou um ar", alto e sonoro. A
gargalhada foi geral; o padre também riu, mas deixou o autor da façanha à
vontade dizendo que aquilo acontecia nas melhores famílias e nos mais variados
locais.
Outro também em sala de aula; após uma sabatina (?), alguns alunos reclamaram
das notas altas de outros que, durante a prova, olharam os mapas pendurados na
sala.
O professor (Pe. Ditters) não aceitou a reclamação; bobo foi quem não olhou; o
mapa estava lá para isso.
Posso imaginar o que ele sofreu com a enxaqueca, pois, longos anos, fui vítima
dessa doença que se acalmou quando a velhice chegou.
Padre Bernardo: há de ficar comigo uma saudade sua.
Pe. Léo Leenders
Como ele convivi seis anos (de 1937-1942), mas meu contato com ele foi mais à
distância, sem profundidade.
Dele recebi lições de inglês (um ano) e alemão (quatro anos). Era também
bibliotecário e permanecia longo tempo na biblioteca que servia, igualmente, de
sala dos professores leigos.
Do Pe. Léo guardo a lembrança de um homem bom.
1655
Pe. Graciano van't Westeinde
Os padres holandeses eram em geral, de pele e olhos claros; o Pe. Graciano era
bem moreno, morenão.
Lecionava matemática; talentoso, ele o era, com certeza, mas não eu aprendia
nada, o que debito á minha burrice, em todo caso, Pe. Adriano me parecia bem
mais didático. Por vezes, causava-me estranheza.
Uma vez, no sítio, como eu não quisesse pular no riacho, ele veio por trás,
agarrou-me e jogou-me na água.
De outra feita, no pátio, eu estava bebendo água no bebedouro; alguém me deu
uma bordoada no bumbum: virei-me e era o Pe. Graciano com uma vara. Nunca
entendi aquilo e ele nunca me explicou.
Em tempo: falei em bebedouro, mas acho que era mesmo torneira.
Era exímio enxadrista e jogador de damas; poucas vezes ousei enfrentá-lo e sem
Êxito sempre.
Pe. Henrique Alofs
Estou me lembrando do Pe. Henrique no dia 22-12-98 ainda na época do Advento
e ele foi ver a face do Senhor no Domingo Laetare. Também com relação ao Pe.
Henrique nada houve de relevante em nenhum sentido entre ele e mim.
Lembro-me de uma "espinafrada" dele em um aluno que não soube responder a
umas perguntas de francês. Como era aniversário do aluno, concluiu o padre que o
aluno não havia estudado.
Pe. Henrique gostava de futebol e participava de torneios inclusive. Para se
proteger do sol, amarrava as extremidades do lenço formando bolinhas e punha-o
na cabeça.
Com a batina arregaçada até a cintura, corria veloz, mas não tinha pontaria
alguma nos chutes. A bola subia além dos mais altos eucaliptos.
Foi regente de canto e de banda de música e me encarregou de tocar pistom ao
lado do então aluno, Hercílio Bertolini.
1656
Ora, não entendia nada de música e ficava fingindo que tocava. Os colegas
perceberam e diziam que eu realizava uma façanha: tocar o hino nacional sem
mudar uma chave sequer.
Não entendi como Pe. Henrique nada dizia e providências não tomava.
Bem lhe haja, Pe. Henrique, na boa terra de Holanda.
Pe. Alberto Brandts
Conheci-o como professor de história natural e como regente da schola cantorurn.
Lembro-me de que, num ensaio de canto, ele me passou da segunda para a
primeira voz.
Não me recordo dele como professor de física e matemática segundo informa o
livro Face a face.
Parece ter lecionado francês pois, certa vez lamentava-se de um aluno ter
traduzido o nome de um dos reis de Roma (Numa) por dans une.
O Pe. Alberto brincava comigo e me chamava de "azulão" por causa de meus olhos
azuis e eu retrucava chamando-o de "vermelhão" por ter o rosto sempre corado.
Não participava das peladas no campo de futebol como o Pe. Henrique e, às vezes,
o Pe. Bernardo.
Deixou-me, ele também, boas saudades.
Pe. Mário Pennock
Não me restaram lembranças dele como meu professor, mas como regente do
coro.
Acho mesmo que não foi meu professor.
Como é comum acontecer, gravou-se-me na memória um tique do Pe. Mário: vivia
arrumando o cabelo solto com os dedos da mão direita com extrema ligeireza num
movimento inimitável.
1657
Foi muito oportuna a edição do livro do Pe. Henrique Roberto que me revelou
muitos aspectos da vida de v rios padres militantes em Pirassununga. Não sabia
que o Pe. Mário morrera em Alfenas e já me esquecera de que fora exímio
violinista, clarinetista e possuidor de belíssima voz.
Padre Donato van Hest
Não sei como, quando, nem por que começou meu relacionamento com o Pe.
Donato.
Acredito que se iniciou em 1938 quando entrei numa fase de excitação piedosa,
fato que, por certo, o aproximou de mim e fê-lo meu diretor espiritual pelo menos
até a Poesis.
Encantava-me a postura daquele padre baixinho, de nariz enorme, um doce olhar,
olhos azuis, cabelos finos e loiros.
Em prece, estava sempre de olhos fechados, corpo levantado, mesmo sentado.
Desabrochou e vingou entre ele e mim uma amizade denominada, no seminário,
de "amizade particular" mas sem nenhuma ou qualquer conotação pejorativa.
Em nossas freqüentes comunicações, houve sempre o maior respeito; posso
atestar que nunca o Pe. Donato me pegou sequer nas mãos.
Era uma amizade pública e notória; o superior sabia; sabiam os padres e os alunos
e nunca ouvi algo desabonador da parte de ninguém nem direta nem
indiretamente.
Verdade é que me tornei seu enfant gâté (expressão corrente na época); basta um
exemplo: nas peças de teatro, se nem sempre me reservava o papel mais
importante, sempre me atribuía o papel mais simpático ou bonito.
Caracterizava-se o Pe. Donato pelo dinamismo que imprimia na sala de aula, no
serviço paroquial ou em atividades outras.
Foi excepcional seu trabalho no teatro: tradução ou adaptação de peças; ensaios;
aquisição de guarda-roupa; montagem de cenários; participação de elementos da
sociedade Pirassununguense.
Foram pontos positivos que não se lhe podem tirar.
Mesmo o fato de fazer sombra ao diretor, mesmo o fato de ter sido uma espécie
de Richelieu é um sinal claro de sua importância na comunidade.
1658
Figura polêmica, ele o foi, com certeza; admiravam-no muitos e muitos o
detestavam como, por exemplo, o lsaac Brandão.
Os muitos apelidos de que foi alvo (Anão Narigudo, Tampinha e outros) talvez
tenham sido frutos de alguma animosidade.
O Pe. Donato deve ter-se frustado comigo e com outros como é o caso do Nelson
Altran.
Mesmo eu que lhe carreguei a marca durante largo tempo, fui dele afastando-me
desde a Poesis e, durante minha longa permanência na congregação, não mais o
vi ou lhe escrevi.
Concluindo: suas qualidades superaram-lhe as falhas; ninguém lhe pode negar
piedade, seriedade, amor ao trabalho, inteligência e cultura.
Pe. Matias Nijsters
Em Pirassununga, em minha época, exercia o cargo de mestre dos irmãos leigos.
Tinha, assim, pouco contato com os alunos.
Relaciono-o, entretanto, porque ouvi dizer que o Pe. Matias era quem me arranjara
uma benfeitora, uma madrinha que arcava com as despesas de minha educação.
Conheci-a no Escolasticado e chamava-se, caso não me falhe a memória, Noêmia
Cintra de Carvalho, fazendeira de Brasópolis ou Paraisópolis. Dela ganhei alguns
presentes entre os quais um bonito relógio de bolso.
Oportunamente, falarei dos padres Lamberto Prins e Cornélio van Gils que
reencontraria no Escolasticado.
1659
Irmãos Leigos
Já escrevi sobre a morte do Ir. Antonio Stringuetti; mais tarde falarei do Ir. João
Braga, meu contemporâneo, em Vila Formosa.
Irmão Francisco Strackxs
Consoante o livro Face a lace, entramos juntos em
Pirassununga, em 1937, onde o conheci como Irmão
roupeiro e inspetor de alunos.
Aos 51 anos de idade, Irmão Francisco trabalhava
como um mouro dentro do seminário e
acompanhava-nos aos passeios pelos sítios vizinhos,
sempre a pé, no ritmo imposto pelos meninos.
Normalmente de cachimbo na boca, não perdia os
alunos de vista e ficava-lhes na cola do amanhecer
ao findar do dia: no dormitório, no refeitório, na sala
de estudos e até mesmo na capela estávamos sob o
olhar vigilante do Irmão Francisco.
O irmão Prefeito, via de regra, andava carrancudo, de cara fechada como se pode
ver até na foto que o identifica na Face a Face.
Mas tudo eram aparências: a todos atendia com presteza e boa vontade. Recusas
havia, por vezes, e inevitáveis como foi o meu pedido para jogar futebol de
cuecas.
Outras vezes, havia soluções inesperadas. Segundo o saudoso Jamil Aruth, o
Irmão Francisco deu-lhe meio copo de vinho que lhe resolveu o problema de
insônia, numa noite qualquer.
O bom e desengonçado religioso é uma figura inesquecível na minha vida.
1660
Irmão Henrique Surtel
Guardo lembranças dele como alfaiate
e fotógrafo.
Também era o administrador do sítio,
lugar muito gostoso e divertido graças
a ele.
Cada vez que passo os olhos em fotos
dos tempos idos e vividos de
Pirassununga, lembro-me do Irmão
Henrique.
Irmão Henrique Bowman
Outro que adentrou o seminário no mesmo ano que eu. Conheciamo-lo por
Forgeron (ferreiro) e atuava, também, na cozinha onde era praxe fazer-se um
determinado prato da cozinha holandesa cujo nome era...
O Nelson Altran conta o trabalho do irmão Henrique para desentupir os canos do
esgoto por causa de páginas de revista de "atrevidos nus femininos".
A vigilância do seminário estava aberta.
Na minha época tal fato era impossível.
Irmão Adriano Lansbergen
Estava plenamente convencido de que o Ir. Adriano fora meu professor de liturgia
na sexta, em 1937.
Ora, o livro Face a Face diz que ele foi a Pirassununga em 1942, justamente
quando terminei a Retórica.
Já fiz referências ao Irmão Adriano em uma das lembranças já publicadas.
1661
Pe. Pedro Paulo Koop
Melhor dizer Dom Pedro Paulo Koop, bispo
que foi de Lins. Como bispo é que me
despertou mais simpatia pois que se
caracterizou
como
bispo
do
bloco
progressista.
Há quem não goste dele por esse motivo
como é o caso do João Banwart, fazendeiro
de Pirajui.
Como padre, Pedro Paulo esteve na minha
Alfenas e, entre outras coisas, tornou-se
conhecido pelo tamanho do pé precisando de
sapatos sob medida.
Pe. Gastão Melsen
Era belga e passava a impressão de ser bem relaxado com a batina sempre solta
(sem cíngulo ou cordão) e sem colarinho.
Gostava de conversar com ele e tinha-o em conta de inteligente.
Minha simpatia por ele talvez adviesse de ele me ter dito que eu tinha aparência
de europeu: tipo longilíneo, cabelos loiros e olhos azuis. Enfim, encheu-me o ego.
Outra coisa que se me gravou na lembrança: disse que os jovens brasileiros são
mais inteligentes que os belgas.
Pe. Adriano Seelen
Dele me lembro quando nos ofereceu um recital de piano aos membros da
comunidade de Pirassununga.
Deixou-me a impressão de exímio pianista e achei interessante o fato de, após a
execução de cada peça, ele levantar-se e inclinar-se em meio aos aplausos.
Logo depois, ao concluir o curso em Pirassununga, perdi o contato com o Pe.
Seelen.
O Benedito Inácio tem mais lembranças, algumas não muito agradáveis.
1662
Pe. Cornélio Ham
Conheciamo-lo de vários retiros e sempre
torcíamos
pela
sua
presença
em
Pirassununga e para que celebrasse a missa
para os alunos na capela.
Quando tal acontecia e ele se dirigia ao
altar,
os
alunos
trocavam
olhares
significativos e os risos desenhavam-se nos
rostos.
Ao dizer, alto e bom som: AREMUS ao invés
de OREMUS, ninguém se continha: as
risadas contaminavam a todos: abafado ou
aberto, o riso estampava-se no rosto de
todos, gente havia que até chorava.
Que Deus nos perdoe de estar lembrando
essas e outras.
Padre Jerônimo Vermin
Já contei aos leitores que o Pe. Jerônimo assistia em Alfenas, vigário da paróquia
quando os sete meninos fomos a Pirassununga iniciar o caminho ao sacerdócio.
Pe. Jerônimo era dotado de brilhante inteligência e de espírito sarcástico que
transparecia em cada uma de suas falas.
Exemplo: quando se referia à faculdade de Alfenas (Direito?) usava sempre a
palavra facilidade.
Talvez tenha sido injusto, mas profético, ele o foi; hoje noventa por cento das
faculdades particulares do Brasil não passam de facilidades; basta você pagar
pontualmente as mensalidades.
Criei problemas em algumas delas por ser contrário à aprovação em massa, com a
alegação de que a vida se encarregaria de fazer a devida reprovação.
Pelo Face a Face fiquei sabendo que o Pe. Jerônimo tinha dois irmãos: Henrique e
Antônio (padres); não conheci o primeiro e o segundo foi meu superior no
Escolasticado pouco antes de eu sair.
1663
Pe. Leonardo Hendriks
Conheci-o quando ele estava nos seus quarenta e poucos anos e sempre me
deixou a impressão de um homem doente, de respiração difícil, voz arrastada,
andar lento e difícil.
Todavia, faleceu aos 77 anos, idade que poucos religiosos atingiram.
O Sebastião Carvalho lembra que em uma cerimônia da Semana Santa quando se
entoava o "Flectamus genua” e todos respondiam "Levate" e se levantavam, o Pe.
Leonardo estava ainda no meio da genuflexão.
Padre João Schuur
Foi pequeno meu relacionamento com ele; guardo um histórico escolar datado de
3l de janeiro de 1953; eu havia deixado a batina em dezembro de 1952.
No verso, há a assinatura do então provincial, Pe. Cornélio van der Made do qual
não guardei lembranças.
Não cobravam taxa pelo documento; mais tarde, parece que a cobravam, o que eu
acho normal.
Pe. Pedro Dingenouts
Pequeno embora meu contato com o Pe. Dingenouts, foi bastante para aquilatar a
inteligência que extravasava em tiradas e ditos chistosos, oportunos, temperados
pela sua veia satírica.
Minha admiração por ele cresceu ao perceber, nas páginas do Face a Face, que ele
era "persona non grata" à revolução de 1964.
Bom foi saber que, naquela altura dos acontecimentos, já sopravam ares salutares
na Congregação, ares de renovação, de maior comprometimento social.
Oportunamente, pretendemos falar de alguns colegas de Pirassununga. Abraços a
todos.
1664

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