Apostila Curso de Semiótica Jurídica(Diniz de Moraes)
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Apostila Curso de Semiótica Jurídica(Diniz de Moraes)
Escola Superior do Ministério Público da União e Universiade Federal do Rio Grande do Norte. Curso de Semiótica Jurídica A Teoria da Linguagem e o Direito - Nova via de acesso ao mundo jurídico! Prof. José Diniz de Moraes Apostila Natal/2012 José Diniz de Moraes Conteúdo Programático 1ª Jornada: A Filosofia da Linguagem e o Direito: a) Antecedentes históricos – Filosofia tradicional; Atomismo lógico; Wittgenstein; O Círculo de Viena; Hans Kelsen; etc. b)A filosofia analítica – c)O giro linguístico-pragmático – d)O direito como objeto de estudo da linguagem – a Teoria Pura do Direito; Lourival Vilanova; Paulo de Barros Carvalho. 2ª Jornada: Semiótica Jurídica e Lógica Jurídica: a)Os signos e suas teorias – ícones, índices e símbolos; Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure; b)Dimensões semióticas da linguagem – sintaxe, semântica e pragmática; c)As funções e níveis de linguagem e o direito – d)Os enunciados e proposições jurídicas – forma lógica, conteúdo proposicional e norma jurídica - Modalizadores deônticos. 3ª Jornada: Semântica e Interpretação Jurídica: a)Concepções semânticas – b)Sentido e referência - Conotação e Denotação; Gottlob Frege; c)Direito e interpretação – explicação e compreensão – métodos e críticas; d)Abertura da linguagem e mundos possíveis – Paul Ricoeur; o sentido da lei e das normas. 4ª Jornada: A Pragmática Jurídica e a Norma Jurídica: a)Correntes pragmáticas - Charles Morris, John Austin; b)Os atos de fala jurídicos – John Austin e John Searle; c)Cooperação e Relevância no texto jurídico – Paul Grice e Deirdre Wilson/Dan Sperber; d)A argumentação jurídica como pragmática – G. Gadamer, Otto-Apel, J. Habermas, etc. 5ª Jornada: Linguagem, Direito e Sociedade: a)A norma como texto e o contexto da norma; b)Discursos jurídicos e ideologias subjacentes; c)Os actantes jurídicos - juiz, legislador, administrador, Parquet, advogado, perito, professor, cidadão; d)Os precipícios jurídicos e semiótica – forma lógica, ontológica e fenomenológica. 2 Apostila de Semiótica Jurídica Sumário: Conteúdo Programático ................................................................................................ 2 Texto 01 - Marilena Chauí: Convite à Filosofia ..................................................................... 7 Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia ..................................................... 7 A Filosofia na História ................................................................................................. 7 Filosofia antiga (do século VI a. C. ao século VI d. C. ) .............................................. 8 Filosofia patrística (do século I ao século VII) ............................................................. 8 Filosofia medieval (do século VIII ao século XIV) ...................................................... 9 Filosofia moderna (do século XVII a meados do século XVIII) ................................ 12 Filosofia contemporânea ............................................................................................ 14 Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea ............................................................ 15 As questões discutidas pela Filosofia contemporânea ................................................ 15 História e progresso.................................................................................................... 15 As ciências e as técnicas............................................................................................. 16 As utopias revolucionárias ......................................................................................... 17 A cultura..................................................................................................................... 18 O fim da Filosofia ...................................................................................................... 19 A maioridade da razão ............................................................................................... 20 Infinito e finito ........................................................................................................... 21 Temas, disciplinas e campos filosóficos..................................................................... 22 Texto 02 - Simon Blackburn: Universidade de Cambridge .................................................. 26 Para que serve a filosofia? ............................................................................................... 26 Texto 03 - Danilo Marcondes de Souza Filho: Noûs vs. Lógos ............................................ 33 Noûs vs. Lógos ................................................................................................................ 33 Texto 04 - Antônio Fidalgo: Semiótica - A logica da Comunicação .................................... 44 Capítulo 5 - Os Campos da Semiótica: Sintaxe, Semântica e Pragmática. ...................... 44 5.1 A semiose em Morris e o princípio da divisão da semiótica ................................ 44 A sintaxe e a ideia de gramática ................................................................................. 46 A semântica ................................................................................................................ 48 A pragmática .............................................................................................................. 50 3 José Diniz de Moraes Capítulo 6 - Os Actos de Fala. A Linguagem como Acção ............................................. 53 Capítulo 7 - A Pragmática Universal de Jürgen Habermas .............................................. 56 7.1 A lógica dos enunciados ....................................................................................... 56 7.2 A dupla estrutura da fala ...................................................................................... 59 7.3 As consequências dos actos de fala para a semântica ........................................... 61 7.4 Modos de comunicação ........................................................................................ 61 7.6 Um modelo de comunicação linguística ............................................................... 67 Texto 05 - Paulo de Barros Carvalho: Direito Tributário: Linguagem e Método) ................ 74 Capítulo 2 - NOÇÕES FUNDAMENTAIS - TOMADA DE POSIÇÃO ANALÍTICA ............ 74 2.1. CÍRCULO DE VIENA ............................................................................................. 75 2.1.1. O Neopositivismo lógico e o Círculo de Viena: aspectos gerais ...................... 75 2.1.2. Como se formou o Círculo de Viena - antecedentes históricos - precursores e fundadores - pessoas e obras que o influenciaram...................................................... 76 2. 1. 3. Propostas e objetivos do Neopositivismo lógico ........................................................ 81 2. 2. LÍNGUA E LINGUAGEM ..................................................................................... 83 2.2.1. Linguagem e signos do sistema................................................................................ 86 2.2.2. Funções da linguagem............................................................................................ 89 2.2.3. Formas de linguagem ........................................................................................... 103 2.2.4. Tipos de linguagem.............................................................................................. 105 2. 3. DIREITO E LÓGICA ............................................................................................ 115 2.3.1. A Lógica e seu objeto: “Lógica jurídica” e “Lógicas jurídicas” ..................... 117 2.3.2. Generalização e formalização......................................................................... 119 2. 3. 3. O domínio das estruturas lógicas .................................................................. 122 2.3.4. Relações lógicas e relações entre os objetos da experiência ........................... 124 2. 3. 5. A chamada Lógica formal e a metodologia .................................................. 126 2.3.6. Valores lógicos da linguagem do direito positivo e seus modais.................... 129 2.4. PROPOSIÇÃO E LINGUAGEM: I S O L A M E N T O TEMÁTICO DA PROPOSIÇÃO .............................................................................................................. 130 2.4.1. Linguagem formalizada e representação simbólica: as formas lógicas nas estruturas proposicionais .......................................................................................... 132 2.4.2. As variáveis e as constantes da Lógica Proposicional Alética ........................ 134 2.4.3. Cálculo proposicional ..................................................................................... 139 2.5. TEORIA DAS RELAÇÕES ................................................................................... 142 4 Apostila de Semiótica Jurídica 2.5.1. Simbolização: relações de primeira ordem e relações de segunda ordem ...... 144 2.6. TEORIA DAS CLASSES ...................................................................................... 158 2.6.1. Aplicabilidade prática: o sistema harmonizado de designação e de codificação de mercadorias, a nomenclatura brasileira e a tabela do imposto sobre produtos industrializados ........................................................................................................ 163 2.7. O DEVER-SER COMO ENTIDADE RELACIONAL .......................................... 164 2.8. TEORIA DA NORMA JURÍDICA ........................................................................ 166 2.8.1. Ambiguidade do termo “norma jurídica” ....................................................... 167 2.8.2. Estrutura lógica: análise da hipótese normativa ............................................. 171 2.8.3. Estrutura lógica da norma: análise do consequente ........................................ 173 2.8.4. Sistema jurídico como conjunto homogêneo de enunciados deônticos .......... 175 2.8.5. O conceito de “norma completa”: norma primária e norma secundária ........ 175 2.8.6. Espécies normativas ....................................................................................... 178 Texto 06 - Folha de S. Paulo - São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999 .................. 184 FILOSOFIA (entrevista com Karl-Otto Apel) ............................................................... 184 Texto 07 - Cristia Rosineiri G. Correa: A Semântica de Frege e a Dinâmica da Verdade .. 190 A Semântica de Frege e a Problemática das sentenças Subordinadas ........................... 190 O Problema da Verdade na Psicanálise .................................................................... 195 Discussão ................................................................................................................. 200 Referências bibliográficas ........................................................................................ 207 Texto 08 - João Sàágua: Significado, Verdade E Comunicação ......................................... 210 Preâmbulo ................................................................................................................ 210 1. Comunicação e Significado .................................................................................. 211 2. Verdade e Comunicação ....................................................................................... 218 Texto 09 - António Fidalgo & Anabela Gradim: Manual de Semiótica.............................. 232 Capítulo 3 - A semiose e a divisão da semiótica ........................................................... 232 Capítulo 4 - As propriedades sintácticas do signo ......................................................... 233 4.1 Signos simples e signos complexos .................................................................... 234 4.2 Os elementos sígnicos ou as unidades mínimas. Teoria dos elementos.............. 235 4.3 Sistema e estrutura. Relações sintagmáticas e paradigmáticas. .......................... 239 4.4 A combinação dos signos. Regras de formação e de transformação. ................. 244 4.5 A sintáctica, a gramática e a lógica .................................................................... 245 5 José Diniz de Moraes Capítulo 5 - As propriedades semânticas dos signos ..................................................... 246 5.1. O problema da significação. Sentido e referência ............................................. 246 5.2 Concepções duais e concepções triádicas dos signos. ........................................ 250 5.3 As noções de verdade e objectividade ................................................................ 255 5.4 Os múltiplos níveis de significação. Denotação e conotação. ............................ 256 5.5 Os códigos .......................................................................................................... 260 Capítulo 6 - As propriedades pragmáticas do signo ...................................................... 261 6.1. A natureza pragmática do signo. A noção de interpretante ............................... 261 6.2 Sistema e uso. Língua e fala. Competência e performance. ............................... 265 6.3 Contextos. .......................................................................................................... 267 6.4 O signo como acção. .......................................................................................... 268 6.5 Enunciação ou a lógica da comunicação ............................................................ 270 6.5.2 A dupla estrutura da fala ................................................................................. 272 6.5.3 Modos de comunicação ................................................................................... 273 6.5.4 O fundamento racional da força ilocucional .................................................... 276 Texto 10 - Danilo Marcondes: A Pragmática na Filosofia Contemporanea ........................ 279 Introdução ..................................................................................................................... 279 Sintaxe, semântica e pragmática .................................................................................... 279 Wittgenstein e a concepção de significado como uso .................................................... 282 A Teoria dos Atos de Fala ............................................................................................. 285 Grice e as implicaturas conversacionais ........................................................................ 293 Habermas: Pragmática Universal e Teoria da Ação Comunicativa ............................... 297 A Ética do Discurso ....................................................................................................... 301 Conclusão: desafios atuais da pragmática ..................................................................... 302 Referências Bibliográficas e Leituras sugeridas ....................................................... 308 6 Apostila de Semiótica Jurídica Texto 01 - Marilena Chauí: Convite à Filosofia Capítulo 4 Principais períodos da história da Filosofia A Filosofia na História Como todas as outras criações e instituições humanas, a Filosofia está na História e tem uma história. Está na História: a Filosofia manifesta e exprime os problemas e as questões que, em cada época de uma sociedade, os homens colocam para si mesmos, diante do que é novo e ainda não foi compreendido. A Filosofia procura enfrentar essa novidade, oferecendo caminhos, respostas e, sobretudo, propondo novas perguntas, num diálogo permanente com a sociedade e a cultura de seu tempo, do qual ela faz parte. Tem uma história: as respostas, as soluções e as novas perguntas que os filósofos de uma época oferecem tornam-se saberes adquiridos que outros filósofos prosseguem ou, frequentemente, tornam-se novos problemas que outros filósofos tentam resolver, seja aproveitando o passado filosófico, seja criticando-o e refutando-o. Além disso, as transformações nos modos de conhecer podem ampliar os campos de investigação da Filosofia, fazendo surgir novas disciplinas filosóficas, como também podem diminuir esses campos, porque alguns de seus conhecimentos podem desligar-se dela e formar disciplinas separadas. Assim, por exemplo, a Filosofia teve seu campo de atividade aumentado quando, no século XVIII, surge a filosofia da arte ou estética; no século XIX, a filosofia da história; no século XX, a filosofia das ciências ou epistemologia, e a filosofia da linguagem. Por outro lado, o campo da Filosofia diminuiu quando as ciências particulares que dela faziam parte foram-se desligando para constituir suas próprias esferas de investigação. É o que acontece, por exemplo, no século XVIII, quando se desligam da Filosofia a 7 José Diniz de Moraes biologia, a física e a química; e, no século XX, as chamadas ciências humanas (psicologia, antropologia, história). Pelo fato de estar na História e ter uma história, a Filosofia costuma ser apresentada em grandes períodos que acompanham, às vezes de maneira mais próxima, às vezes de maneira mais distante, os períodos em que os historiadores dividem a História da sociedade ocidental. Os principais períodos da Filosofia Filosofia antiga (do século VI a. C. ao século VI d. C. ) Compreende os quatro grandes períodos da Filosofia grecoromana, indo dos pré- socráticos aos grandes sistemas do período helenístico, mencionados no capítulo anterior. Filosofia patrística (do século I ao século VII) Inicia-se com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII, quando teve início a Filosofia medieval. A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião - o Cristianismo - com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e convertê-los a ela. A Filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio. A patrística foi obrigada a introduzir ideias desconhecidas para os filósofos greco-romanos: a ideia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. 8 Apostila de Semiótica Jurídica Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a ideia de “homem interior”, isto é, da consciência moral e do livre-arbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo. Para impor as ideias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem decretos divinos, seriam dogmas, isto é, irrefutáveis e inquestionáveis. Com isso, surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema de toda a Filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse respeito, havia três posições principais: Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles: “Creio porque absurdo”). Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam eles: “Creio para compreender”). Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura). Filosofia medieval (do século VIII ao século XIV) Abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica. A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da Filosofia de Plotino, do século VI d. C. ), e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis. Conservando e discutindo os mesmos problemas que a 9 José Diniz de Moraes patrística, a Filosofia medieval acrescentou outros particularmente um, conhecido com o nome de Problema dos Universais - e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das ideias de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal. A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar-se à segunda), a diferença e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), O Universo como uma hierarquia de seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval. Outra característica marcante da Escolástica foi o método por ela inventado para expor as ideias filosóficas, conhecida como disputa: apresentava-se uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida por argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão ou de outros Padres da Igreja. Assim, uma ideia era considerada uma tese verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade dos argumentos encontrados nos vários autores. Por causa desse método de disputa - teses, refutações, defesas, respostas, conclusões baseadas em escritos de outros autores -, costuma-se dizer que, na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia é considerada verdadeira se for baseada nos argumentos de uma autoridade reconhecida (Bíblia, Platão, Aristóteles, um papa, um santo). Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah bem Levi. Filosofia da Renascença (do Século XIV ao século XVI) É marcada pela descoberta de obras de Platão desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles, bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e 10 Apostila de Semiótica Jurídica romanos. São três as grandes linhas de pensamento que predominavam na Renascença: Aquela proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo; nela se destacava a ideia da Natureza como um grande ser vivo; o homem faz parte da Natureza como um microcosmo (como espelho do Universo inteiro) e pode agir sobre ela através da magia natural, da alquimia e da astrologia, pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas (a simpatia) entre as coisas; o homem pode, também, conhecer esses vínculos e criar outros, como um deus. Aquela originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida ativa, isto é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império Romano-Germânico, isto é, contra o poderio dos papas e dos imperadores. Na defesa do ideal republicano, os escritores resgataram autores políticos da Antiguidade, historiadores e juristas, e propuseram a “imitação dos antigos” ou o renascimento da liberdade política, anterior ao surgimento do império eclesiástico. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia), quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura, teatro). A efervescência teórica e prática foi alimentada com as grandes descobertas marítimas, que garantiam ao homem o conhecimento de novos mares, novos céus, novas terras e novas gentes, permitindolhe ter uma visão crítica de sua própria sociedade. Essa efervescência cultural e política levou a críticas profundas à Igreja Romana, culminando na Reforma Protestante, baseada na ideia de liberdade de crença e de pensamento. À Reforma a Igreja respondeu com a Contrarreforma e com o recrudescimento do poder da Inquisição. Os nomes mais importantes desse período são: Dante, Marcílio Ficino, Giordano Bruno, Campannella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Tomás Morus, Jean Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa. 11 José Diniz de Moraes Filosofia moderna (do século XVII a meados do século XVIII) Esse período, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado por três grandes mudanças intelectuais: Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”, isto é, a Filosofia, em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus, para depois referir-se ao homem, começa indagando qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em outras palavras, a Filosofia começa pela reflexão, isto é, pela volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer. O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma, cuja natureza ou substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos exteriores. Por isso, a segunda pergunta da Filosofia, depois de respondida a pergunta sobre a capacidade de conhecer, é: Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é diferente dele? Como pode conhecer os corpos da Natureza? A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos, e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os modernos, as coisas exteriores (a Natureza, a vida social e política) podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações, ou seja, ideias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento. Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser transformado num conceito ou numa ideia clara e distinta, demonstrável e necessária, formulada pelo intelecto; e, por outro lado, que a Natureza e a sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito, porque elas são inteligíveis em si mesmas, isto é, são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas ideias do sujeito do conhecimento. Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas ideias e conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna. A realidade, a 12 Apostila de Semiótica Jurídica partir de Galileu, é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é matemática. O “livro do mundo”, diz Galileu, “está escrito em caracteres matemáticos.” A realidade, concebida como sistema racional de mecanismos físico- matemáticos, deu origem à ciência clássica, isto é, à mecânica, por meio da qual são descritos, explicados e interpretados todos os fatos da realidade: astronomia, física, química, psicologia, política, artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo mecânico, ou seja, de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um paciente. A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a ideia de experimentação e de tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas) e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade. Predomina, assim, nesse período, a ideia de conquista científica e técnica de toda a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas, graças às experiências físicas e químicas. Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo intelecto, é capaz de governá-las e dominá-las, de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional. A mesma convicção orienta o racionalismo político, isto é, a ideia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantê-lo racionalmente. Nunca mais, na história da Filosofia, haverá igual confiança nas capacidades e nos poderes da razão humana como houve no Grande Racionalismo Clássico. Os principais pensadores desse período foram: Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton, Gassendi. Filosofia da Ilustração ou Iluminismo (meados do século XVIII ao começo do século XIX) Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes (por isso, o nome Iluminismo). O Iluminismo afirma que: ? pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a 13 José Diniz de Moraes felicidade social e política (a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as ideias da Revolução Francesa de 1789); ? a razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser perfectível. A perfectibilidade consiste em liberar-se dos preconceitos religiosos, sociais e morais, em libertar-se da superstição e do medo, graças as conhecimento, às ciências, às artes e à moral; ? o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que vão das mais atrasadas (também chamadas de “primitivas” ou “selvagens”) às mais adiantadas e perfeitas (as da Europa Ocidental); ? há diferença entre Natureza e civilização, isto é, a Natureza é o reino das relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens, em seu aperfeiçoamento moral, técnico e político. Nesse período há grande interesse pelas ciências que se relacionam com a ideia de evolução e, por isso, a biologia terá um lugar central no pensamento ilustrado, pertencendo ao campo da filosofia da vida. Há igualmente grande interesse e preocupação com as artes, na medida em que elas são as expressões por excelência do grau de progresso de uma civilização. Data também desse período o interesse pela compreensão das bases econômicas da vida social e política, surgindo uma reflexão sobre a origem e a forma das riquezas das nações, com uma controvérsia sobre a importância maior ou menor da agricultura e do comércio, controvérsia que se exprime em duas correntes do pensamento econômico: a corrente fisiocrata (a agricultura é a fonte principal das riquezas) e a mercantilista (o comércio é a fonte principal da riqueza das nações). Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costume ser colocado como filósofo do Romantismo). Filosofia contemporânea Abrange o pensamento filosófico que vai de meados do século XIX e chega aos nossos dias. Esse período, por ser o mais próximo de nós, parece ser o mais complexo e o mais difícil de definir, pois as 14 Apostila de Semiótica Jurídica diferenças entre as várias filosofias ou posições filosóficas nos parecem muito grandes porque as estamos vendo surgir diante de nós. Para facilitar uma visão mais geral do período, faremos, no próximo capítulo, uma contraposição entre as principais ideias do século XIX e as principais correntes de pensamento do século XX. Capítulo 5 Aspectos da Filosofia contemporânea As questões discutidas pela Filosofia contemporânea Dissemos, no capítulo anterior, que a Filosofia contemporânea vai dos meados do século XIX até nossos dias e que, por estar próxima de nós, é mais difícil de ser vista em sua generalidade, pois os problemas e as diferentes respostas dadas a eles parecem impossibilitar uma visão de conjunto. Em outras palavras, não temos distância suficiente para perceber os traços mais gerais e marcantes deste período da Filosofia. Apesar disso, é possível assinalar quais têm sido as principais questões e os principais temas que interessaram à Filosofia neste século e meio. História e progresso O século XIX é, na Filosofia, o grande século da descoberta da História ou da historicidade do homem, da sociedade, das ciências e das artes. É particularmente com o filósofo alemão Hegel que se afirma que a História é o modo de ser da razão e da verdade, o modo de ser dos seres humanos e que, portanto, somos seres históricos. No século passado, essa concepção levou à ideia de progresso, isto é, de que os seres humanos, as sociedades, as ciências, as artes e as técnicas melhoram com o passar do tempo, acumulam conhecimento e práticas, aperfeiçoando-se cada vez mais, de modo que o presente é melhor e superior, se comparado ao passado, e o futuro será melhor e superior, se comparado ao presente. Essa visão otimista também foi desenvolvida na França pelo filósofo Augusto Comte, que atribuía o progresso ao desenvolvimento das ciências positivas. Essas ciências permitiriam aos seres humanos “saber para prever, prever para prover”, de modo 15 José Diniz de Moraes que o desenvolvimento social se faria por aumento do conhecimento científico e do controle científico da sociedade. É de Comte a ideia de “Ordem e Progresso”, que viria a fazer parte da bandeira do Brasil republicano. No entanto, no século XX, a mesma afirmação da historicidade dos seres humanos, da razão e da sociedade levou à ideia de que a História é descontínua e não progressiva, cada sociedade tendo sua História própria em vez de ser apenas uma etapa numa História universal das civilizações. A ideia de progresso passa a ser criticada porque serve como desculpa para legitimar colonialismos e imperialismos (os mais “adiantados” teriam o direito de dominar os mais “atrasados”). Passa a ser criticada também a ideia de progresso das ciências e das técnicas, mostrando-se que, em cada época histórica e para cada sociedade, os conhecimentos e as práticas possuem sentido e valor próprios, e que tal sentido e tal valor desaparecem numa época seguinte ou são diferentes numa outra sociedade, não havendo, portanto, transformação contínua, acumulativa e progressiva. O passado foi o passado, o presente é o presente e o futuro será o futuro. As ciências e as técnicas No século XIX, entusiasmada com as ciências e as técnicas, bem como com a Segunda Revolução Industrial, a Filosofia afirmava a confiança plena e total no saber científico e na tecnologia para dominar e controlar a Natureza, a sociedade e os indivíduos. Acreditava-se que a sociologia, por exemplo, nos ofereceria um saber seguro e definitivo sobre o modo de funcionamento das sociedades e que os seres humanos poderiam organizar racionalmente o social, evitando revoluções, revoltas e desigualdades. Acreditava-se, também, que a psicologia ensinaria definitivamente como é e como funciona a psique humana, quais as causas dos comportamentos e os meios de controlá-los, quais as causas das emoções e os meios de controlá-las, de tal modo que seria possível livrar-nos das angústias, do medo, da loucura, assim como seria possível uma pedagogia baseada nos conhecimentos científicos e que permitiria não só adaptar perfeitamente as crianças às exigências da sociedade, como também educá-las segundo suas 16 Apostila de Semiótica Jurídica vocações e potencialidades psicológicas. No entanto, no século XX, a Filosofia passou a desconfiar do otimismo científico-tecnológico do século anterior em virtude de vários acontecimentos: as duas guerras mundiais, o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, os campos de concentração nazistas, as guerras da Coréia, do Vietnã, do Oriente Médio, do Afeganistão, as invasões comunistas da Hungria e da Tchecoslováquia, as ditaduras sangrentas da América Latina, a devastação de mares, florestas e terras, os perigos cancerígenos de alimentos e remédios, o aumento de distúrbios e sofrimentos mentais, etc. Uma escola alemã de Filosofia, a Escola de Frankfurt, elaborou uma concepção conhecida como Teoria Crítica, na qual distingue duas formas da razão: a razão instrumental e a razão crítica. A razão instrumental é a razão técnico-científica, que faz das ciências e das técnicas não um meio de liberação dos seres humanos, mas um meio de intimidação, medo, terror e desespero. Ao contrário, a razão crítica é aquela que analisa e interpreta os limites e os perigos do pensamento instrumental e afirma que as mudanças sociais, políticas e culturais só se realizarão verdadeiramente se tiverem como finalidade a emancipação do gênero humano e não as ideias de controle e domínio técnico-científico sobre a Natureza, a sociedade e a cultura. As utopias revolucionárias No século XIX, em decorrência do otimismo trazido pelas ideias de progresso, desenvolvimento técnico-científico, poderio humano para construir uma vida justa e feliz, a Filosofia apostou nas utopias revolucionárias - anarquismo, socialismo, comunismo -, que criariam, graças à ação política consciente dos explorados e oprimidos, uma sociedade nova, justa e feliz. No entanto, no século XX, com o surgimento das chamadas sociedades totalitárias - fascismo, nazismo, stalinismo - e com o aumento do poder das sociedades autoritárias ou ditatoriais, a Filosofia também passou a desconfiar do otimismo revolucionário e das utopias e a indagar se os seres humanos, os explorados e dominados serão capazes de criar e manter uma sociedade nova, justa e feliz. O crescimento das chamadas burocracias - que dominam as organizações estatais, empresariais, político-partidárias, escolares, 17 José Diniz de Moraes hospitalares - levou a Filosofia a indagar como os seres humanos poderiam derrubar esse imenso poderio que os governa secretamente, que eles desconhecem e que determina suas vidas cotidianas, desde o nascimento até a morte. A cultura No século XIX, a Filosofia descobre a Cultura como o modo próprio e específico da existência dos seres humanos. Os animais são seres naturais; os humanos, seres culturais. A Natureza é governada por leis necessárias de causa e efeito; a Cultura é o exercício da liberdade. A cultura é a criação coletiva de ideias, símbolos e valores pelos quais uma sociedade define para si mesma o bom e o mau, o belo e o feio, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o puro e o impuro, o possível e o impossível, o inevitável e o casual, o sagrado e o profano, o espaço e o tempo. A Cultura se realiza porque os humanos são capazes de linguagem, trabalho e relação com o tempo. A Cultura se manifesta como vida social, como criação das obras de pensamento e de arte, como vida religiosa e vida política. Para a Filosofia do século XIX, em consonância com sua ideia de uma História universal das civilizações, haveria uma única grande Cultura em desenvolvimento, da qual as diferentes culturas seriam fases ou etapas. Para alguns, como os filósofos que seguiam as ideias de Hegel, o movimento do desenvolvimento cultural era progressivo. Para outros, chamados de filósofos românticos ou adeptos da filosofia do Romantismo, as culturas não formavam uma sequência progressiva, mas eram culturas nacionais. Assim, cabia à Filosofia conhecer o “espírito de um povo” conhecendo as origens e as raízes de cada cultura, pois o mais importante de uma cultura não se encontraria em seu futuro, mas no seu passado, isto é, nas tradições, no folclore nacional. No entanto, no século XX, a Filosofia, afirmando que a História é descontínua, também afirma que não há a Cultura, mas culturas diferentes, e que a pluralidade de culturas e as diferenças entre elas não se devem à nação, pois a ideia de nação é uma criação cultural e não a causa das diferenças culturais. Cada cultura inventa seu modo de relacionar-se com o tempo, de criar sua linguagem, de elaborar seus mitos e suas crenças, de 18 Apostila de Semiótica Jurídica organizar o trabalho e as relações sociais, de criar as obras de pensamento e de arte. Cada uma, em decorrência das condições históricas, geográficas e políticas em que se forma, tem seu modo próprio de organizar o poder e a autoridade, de produzir seus valores. Contra a filosofia da cultura universal, a Filosofia do século XX nega que haja uma única cultura em progresso e afirma a existência da pluralidade cultural. Contra a filosofia romântica das culturas nacionais como expressão do “espírito do povo” e do conjunto de tradições, a Filosofia do século XX nega que a nacionalidade seja causa das culturas (as nacionalidades são efeitos culturais temporários) e afirma que cada cultura se relaciona com outras e encontra dentro de si seus modos de transformação. Dessa maneira, o presente está voltado para o futuro, e não para o conservadorismo do passado. O fim da Filosofia No século XIX, o otimismo positivista ou cientificista levou a Filosofia a supor que, no futuro, só haveria ciências, e que todos os conhecimentos e todas as explicações seriam dados por elas. Assim, a própria Filosofia poderia desaparecer, não tendo motivo para existir. No entanto, no século XX, a Filosofia passou a mostrar que as ciências não possuem princípios totalmente certos, seguros e rigorosos para as investigações, que os resultados podem ser duvidosos e precários, e que, frequentemente, uma ciência desconhece até onde pode ir e quando está entrando no campo de investigação de uma outra. Os princípios, os métodos, os conceitos e os resultados de uma ciência podem estar totalmente equivocados ou desprovidos de fundamento. Com isso, a Filosofia voltou a afirmar seu papel de compreensão e interpretação crítica das ciências, discutindo a validade de seus princípios, procedimentos de pesquisa, resultados, de suas formas de exposição dos dados e das conclusões, etc. Foram preocupações com a falta de rigor das ciências que levaram o filósofo alemão Husserl a propor que a Filosofia fosse o estudo e o conhecimento rigoroso da possibilidade do próprio conhecimento científico, examinando os fundamentos, os métodos e os resultados das ciências. Foram também preocupações como essas 19 José Diniz de Moraes que levaram filósofos como Bertrand Russel e Quine a estudar a linguagem científica, a discutir os problemas lógicos das ciências e a mostrar os paradoxos e os limites do conhecimento científico. A maioridade da razão No século XIX, o otimismo filosófico levava a Filosofia a afirmar que, enfim, os seres humanos haviam alcançado a maioridade racional, e que a razão se desenvolvia plenamente para que o conhecimento completo da realidade e das ações humanas fosse atingido. No entanto, Marx, no final do século XIX, e Freud, no início do século XX, puseram em questão esse otimismo racionalista. Marx e Freud, cada qual em seu campo de investigação e cada qual voltado para diferentes aspectos da ação humana - Marx, voltado para a economia e a política; Freud, voltado para as perturbações e os sofrimentos psíquicos -, fizeram descobertas que, até agora, continuam impondo questões filosóficas. Que descobriram eles? Marx descobriu que temos a ilusão de estarmos pensando e agindo com nossa própria cabeça e por nossa própria vontade, racional e livremente, de acordo com nosso entendimento e nossa liberdade, porque desconhecemos um poder invisível que nos força a pensar como pensamos e agir como agimos. A esse poder - que é social - ele deu o nome de ideologia. Freud, por sua vez, mostrou que os seres humanos têm a ilusão de que tudo quanto pensam, fazem, sentem e desejam, tudo quanto dizem ou calam estaria sob o controle de nossa consciência porque desconhecemos a existência de uma força invisível, de um poder que é psíquico e social - que atua sobre nossa consciência sem que ela o saiba. A esse poder que domina e controla invisível e profundamente nossa vida consciente, ele deu o nome de inconsciente. Diante dessas duas descobertas, a Filosofia se viu forçada a reabrir a discussão sobre o que é e o que pode a razão, sobre o que é e o que pode a consciência reflexiva ou o sujeito do conhecimento, sobre o que são e o que podem as aparências e as ilusões. Ao mesmo tempo, a Filosofia teve que reabrir as discussões éticas e morais: O homem é realmente livre ou é inteiramente condicionado pela sua situação psíquica e histórica? Se for inteiramente condicionado, então a História e a cultura são 20 Apostila de Semiótica Jurídica causalidades necessárias como a Natureza? Ou seria mais correto indagar: Como os seres humanos conquistam a liberdade em meio a todos os condicionamentos psíquicos, históricos, econômicos, culturais em que vivem? Infinito e finito O século XIX prosseguiu uma tradição filosófica que veio desde a Antiguidade e que foi muito alimentada pelo pensamento cristão. Nessa tradição, o mais importante sempre foi a ideia do infinito, isto é, da Natureza eterna (dos gregos), do Deus eterno (dos cristãos), do desenvolvimento pleno e total da História ou do tempo como totalização de todos os seus momentos ou suas etapas. Prevalecia a ideia de todo ou de totalidade, da qual os humanos fazem parte e na qual os humanos participam. No entanto, a Filosofia do século XX tendeu a dar maior importância ao finito, isto é, ao que surge e desaparece, ao que tem fronteiras e limites. Esse interesse pelo finito aparece, por exemplo, numa corrente filosófica (entre os anos 30 e 50) chamada existencialismo e que definiu o humano ou o homem como “um ser para a morte”, isto é, um ser que sabe que termina e que precisa encontrar em si mesmo o sentido de sua existência. Para a maioria dos existencialistas, dois eram os modos privilegiados de o homem aceitar e enfrentar sua finitude: através das artes e através da ação político-revolucionária. Nessas formas excepcionais da atividade, os humanos seriam capazes de dar sentido à brevidade e finitude de suas vidas. Um outro exemplo do interesse pela finitude aparece no que se costuma chamar de filosofia da diferença, isto é, naquela filosofia que se interessa menos pelas semelhanças e identidades e muito mais pela singularidade e particularidade. É assim, por exemplo, que tal filosofia, inspirando-se nos trabalhos dos antropólogos, interessa-se pela diversidade, pluralidade, singularidade das diferentes culturas, em lugar de voltar-se para a ideia de uma cultura universal, que foi, no século XIX, uma das imagens do infinito, isto é, de uma totalidade que conteria dentro de si, como suas partes ou seus momentos, as diferentes culturas singulares. Enfim, um outro exemplo de interesse pela finitude aparece quando a Filosofia, em vez de buscar uma ciência universal que 21 José Diniz de Moraes conteria dentro de si todas as ciências particulares, interessa-se pela multiplicidade e pela diferença entre as ciências, pelos limites de cada uma delas e sobretudo por seus impasses e problemas insolúveis. Temas, disciplinas e campos filosóficos A Filosofia existe há 25 séculos. Durante uma história tão longa e de tantos períodos diferentes, surgiram temas, disciplinas e campos de investigação filosóficos enquanto outros desapareceram. Desapareceu também a ideia de Aristóteles de que a Filosofia era a totalidade dos conhecimentos teóricos e práticos da humanidade. Também desapareceu uma imagem, que durou muitos séculos, na qual a Filosofia era representada como uma grande árvore frondosa, cujas raízes eram a metafísica e a teologia, cujo tronco era a lógica, cujos ramos principais eram a filosofia da Natureza, a ética e a política e cujos galhos extremos eram as técnicas, as artes e as invenções. A Filosofia, vista como uma totalidade orgânica ou viva, era chamada de “rainha das ciências ”. Isso desapareceu. Pouco a pouco, as várias ciências particulares foram definindo seus objetivos, seus métodos e seus resultados próprios, e se desligaram da grande árvore. Cada ciência, ao se desligar, levou consigo os conhecimentos práticos ou aplicados de seu campo de investigação, isto é, as artes e as técnicas a ele ligadas. As últimas ciências a aparecer e a se desligar da árvore da Filosofia foram as ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia, história, linguística, geografia, etc. ). Outros campos de conhecimento e de ação abriram-se para a Filosofia, mas a ideia de uma totalidade de saberes que conteria em si todos os conhecimentos nunca mais reapareceu. No século XX, a Filosofia foi submetida a uma grande limitação quanto à esfera de seus conhecimentos. Isso pode ser atribuído a dois motivos principais: Desde o final do século XVIII, com o filósofo alemão Immanuel Kant, passouse a considerar que a Filosofia, durante todos os séculos anteriores, tivera uma pretensão irrealizável. Que pretensão fora essa? A de que nossa razão pode conhecer as coisas tais como são em si mesmas. Esse conhecimento da realidade em si, dos primeiros princípios e das primeiras causas de todas as coisas chama-se metafísica. 22 Apostila de Semiótica Jurídica Kant negou que a razão humana tivesse tal poder de conhecimento e afirmou que só conhecemos as coisas tais como são organizadas pela estrutura interna e universal de nossa razão, mas nunca saberemos se tal organização corresponde ou não à organização em si da própria realidade. Deixando de ser metafísica, a Filosofia se tornou o conhecimento das condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro enquanto conhecimento possível para os seres humanos racionais. A Filosofia tornou-se uma teoria do conhecimento, ou uma teoria sobre a capacidade e a possibilidade humana de conhecer, e uma ética, ou estudo das condições de possibilidade da ação moral enquanto realizada por liberdade e por dever. Com isso, a Filosofia deixava de ser conhecimento do mundo em si e tornava-se apenas conhecimento do homem enquanto ser racional e moral. Desde meados do século XIX, como consequência da filosofia de Augusto Comte - chamada de positivismo -, foi feita uma separação entre Filosofia e ciências positivas (matemática, física, química, biologia, astronomia, sociologia). As ciências, dizia Comte, estudam a realidade natural, social, psicológica e moral e são propriamente o conhecimento. Para ele, a Filosofia seria apenas uma reflexão sobre o significado do trabalho científico, isto é, uma análise e uma interpretação dos procedimentos ou das metodologias usadas pelas ciências e uma avaliação dos resultados científicos. A Filosofia tornou-se, assim, uma teoria das ciências ou epistemologia (episteme, em grego, quer dizer ciência). A Filosofia reduziu-se, portanto, à teoria do conhecimento, à ética e à epistemologia. Como consequência dessa redução, os filósofos passaram a ter um interesse primordial pelo conhecimento das estruturas e formas de nossa consciência e também pelo seu modo de expressão, isto é, a linguagem. O interesse pela consciência reflexiva ou pelo sujeito do conhecimento deu surgimento a uma corrente filosófica conhecida como fenomenologia, iniciada pelo filósofo alemão Edmund Husserl. Já o interesse pelas formas e pelos modos de funcionamento da linguagem corresponde a uma corrente filosófica conhecida como filosofia analítica cujo início é atribuído ao filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. No entanto, a atividade filosófica não se restringiu à teoria do conhecimento, à lógica, à epistemologia e à ética. Desde o início do 23 José Diniz de Moraes século XX, a História da Filosofia tornou-se uma disciplina de grande prestígio e, com ela, a história das ideias e a história das ciências. Desde a Segunda Guerra Mundial, com o fenômeno do totalitarismo - fascismo, nazismo, stalinismo -, com as guerras de libertação nacional contra os impérios coloniais e as revoluções socialistas em vários países; desde os anos 60, com as lutas contra ditaduras e com os movimentos por direitos (negros, índios, mulheres, idosos, homossexuais, loucos, crianças, os excluídos econômica e politicamente); e desde os anos 70, com a luta pela democracia em países submetidos a regimes autoritários, um grande interesse pela filosofia política ressurgiu e, com ele, as críticas de ideologias e uma nova discussão sobre as relações entre a ética e a política, além das discussões em torno da filosofia da História. Atualmente, um movimento filosófico conhecido como desconstrutivismo ou pós-modernismo, vem ganhando preponderância. Seu alvo principal é a crítica de todos os conceitos e valores que, até hoje, sustentaram a Filosofia e o pensamento dito ocidental: razão, saber, sujeito, objeto, História, espaço, tempo, liberdade, necessidade, acaso, Natureza, homem, etc. Quais são os campos próprios em que se desenvolve a reflexão filosófica nestes vinte e cinco séculos? São eles: Ontologia ou metafísica: conhecimento dos princípios e fundamentos últimos de toda a realidade, de todos os seres; Lógica: conhecimento das formas gerais e regras gerais do pensamento correto e verdadeiro, independentemente dos conteúdos pensados; regras para a demonstração científica verdadeira; regras para pensamentos não-científicos; regras sobre o modo de expor os conhecimentos; regras para a verificação da verdade ou falsidade de um pensamento, etc.; Epistemologia: análise crítica das ciências, tanto as ciências exatas ou matemáticas, quanto as naturais e as humanas; avaliação dos métodos e dos resultados das ciências; compatibilidades e incompatibilidades entre as ciências; formas de relações entre as ciências, etc.; Teoria do conhecimento ou estudo das diferentes modalidades de conhecimento humano: o conhecimento sensorial ou sensação e percepção; a memória e a imaginação; o conhecimento 24 Apostila de Semiótica Jurídica intelectual; a ideia de verdade e falsidade; a ideia de ilusão e realidade; formas de conhecer o espaço e o tempo; formas de conhecer relações; conhecimento ingênuo e conhecimento científico; diferença entre conhecimento científico e filosófico, etc.; Ética: estudo dos valores morais (as virtudes), da relação entre vontade e paixão, vontade e razão; finalidades e valores da ação moral; ideias de liberdade, responsabilidade, dever, obrigação, etc.; Filosofia política: estudo sobre a natureza do poder e da autoridade; ideia de direito, lei, justiça, dominação, violência; formas dos regimes políticos e suas fundamentações; nascimento e formas do Estado; ideias autoritárias, conservadoras, revolucionárias e libertárias; teorias da revolução e da reforma; análise e crítica das ideologias; Filosofia da História: estudo sobre a dimensão temporal da existência humana como existência sociopolítica e cultural; teorias do progresso, da evolução e teorias da descontinuidade histórica; significado das diferenças culturais e históricas, suas razões e consequências; Filosofia da arte ou estética: estudo das formas de arte, do trabalho artístico; ideia de obra de arte e de criação; relação entre matéria e forma nas artes; relação entre arte e sociedade, arte e política, arte e ética; Filosofia da linguagem: a linguagem como manifestação da humanidade do homem; signos, significações; a comunicação; passagem da linguagem oral à escrita, da linguagem cotidiana à filosófica, à literária, à científica; diferentes modalidades de linguagem como diferentes formas de expressão e de comunicação; História da Filosofia: estudo dos diferentes períodos da Filosofia; de grupos de filósofos segundo os temas e problemas que abordam; de relações entre o pensamento filosófico e as condições econômicas, políticas, sociais e culturais de uma sociedade; mudanças ou transformações de conceitos filosóficos em diferentes épocas; mudanças na concepção do que seja a Filosofia e de seu papel ou finalidade. 25 José Diniz de Moraes Texto 02 - Simon Blackburn: Universidade de Cambridge Para que serve a filosofia? Está tudo muito bem, mas será que vale a pena preocuparmonos? Qual é o interesse? A reflexão não põe o mundo a funcionar. Não coze o pão nem põe os aviões no ar. Por que razão não havemos de pôr as perguntas reflexivas de lado, e passar às outras coisas? Irei esboçar três tipos de respostas: a elevada, a intermédia e a chã. A resposta elevada põe em questão a pergunta - uma estratégia filosófica típica, pois implica subir um grau na ordem da reflexão. Que queremos dizer quando perguntamos para que serve? A reflexão não coze o pão, mas também a arquitectura não o faz, nem a música, a arte, a história ou a literatura. Acontece apenas que queremos compreender-nos. Queremos isto pelo seu valor intrínseco, tal como os especialistas em ciências ou matemáticas puras podem querer compreender o princípio do universo, ou a teoria dos conjuntos, pelo seu valor intrínseco, ou como um músico pode querer resolver alguns problemas na harmonia ou no contraponto pelo seu valor intrínseco. São coisas que não se fazem em função de aplicações práticas. Grande parte da vida trata-se de facto de criar gado para poder comprar mais terra, para poder criar mais gado, para poder comprar mais terra. Os momentos em que nos libertamos disso, seja para fazer matemática ou música, para ler Platão ou Eça de Queirós, devem ser acarinhados. São momentos em que desenvolvemos a nossa saúde mental. E a nossa saúde mental é boa em si, como a nossa saúde física. Além disso, há no fim de contas uma recompensa em termos de prazer. Quando temos saúde física, o exercício físico dá-nos prazer, e quando temos saúde mental, o exercício mental dá-nos prazer. Esta é uma resposta purista. Esta resposta não está errada, mas tem um problema. Acontece que provavelmente só consegue ser atraente para as pessoas que já estão parcialmente convencidas pessoas que não fizeram a pergunta original num tom de voz muito agressivo. 26 Apostila de Semiótica Jurídica Por isso, eis uma resposta intermédia. A reflexão é importante porque está na continuidade com a prática. O modo como pensamos sobre o que estamos a fazer afecta o modo como o fazemos, ou até mesmo se o chegamos a fazer; pode conduzir a nossa investigação, ou a nossa atitude relativamente a pessoas que fazem as coisas de modo diferente, ou até toda a nossa vida. Tomemos um exemplo simples: se as nossas reflexões nos levarem a acreditar na vida depois da morte, podemos estar preparados para enfrentar perseguições que não enfrentaríamos se nos convencêssemos - como muitos filósofos - de que a noção não faz sentido. O fatalismo, ou a ideia de que o futuro está determinado, seja o que for que façamos, é uma convicção puramente filosófica - mas é uma convicção que tem o poder de paralisar a acção. Em termos mais políticos, pode também exprimir a aceitação do baixo estatuto social atribuído a alguns segmentos da população, o que pode ser reconfortante para pessoas que, pertencendo aos estatutos mais elevados, encorajam essa aceitação. Consideremos alguns exemplos mais prevalecentes no Ocidente. Ao reflectir sobre a natureza humana, muitas pessoas pensam que, no fundo, somos inteiramente egoístas. Só procuramos a nossa própria vantagem e nunca nos preocupamos realmente com mais ninguém. Quando parece que nos preocupamos com os outros, isso apenas disfarça a nossa esperança num benefício futuro para nós mesmos. O paradigma principal nas ciências sociais é o homo economicus - o homem económico. O homem económico toma conta de si, numa luta competitiva com os outros. Ora, se as pessoas pensarem que somos todos assim, sempre, as suas relações com os outros transformam-se; pois terão menos confiança nos outros, serão menos cooperativos e mais desconfiados. Isto muda o modo como interagem com os outros, o que acarreta vários custos. Irão descobrir que é difícil, e por vezes impossível, manter actividades cooperativas: podem ficar encurralados naquilo a que o filósofo Thomas Hobbes (1588-1676) chamou «a guerra de todos contra todos». Na vida real, essas pessoas terão um alto custo a pagar, pois estão sempre a pensar que estão a ser enganadas. Se a minha atitude for a de que «um contrato verbal não vale o papel em que está escrito», terei de pagar a advogados para conceber contratos com sanções, e se eu não confiar nos advogados por pensar que eles nada fazem excepto encher-se de dinheiro à custa dos outros, terei de contratar outros advogados 27 José Diniz de Moraes para verificarem o trabalho dos primeiros advogados, e assim por diante. Mas tudo isto pode estar baseado num erro filosófico, que consiste em olhar para a motivação humana através de um conjunto de categorias erradas, compreendendo portanto de forma errada a sua natureza. Talvez as pessoas possam importar-se umas com as outras, ou talvez possam pelo menos preocupar-se em cumprir a sua parte e em manter as suas promessas. Se tivermos uma imagem mais optimista, talvez as pessoas possam viver de acordo com essa imagem. Talvez as suas vidas melhorem. Assim, pensar um pouco, encontrar as categorias certas para compreender a motivação humana, é uma tarefa prática importante. Não é algo que esteja confinado ao escritório; pelo contrário, é algo que extravasa o escritório. Eis um exemplo muito diferente. O astrónomo polaco Nicolau Copérnico (1473-1543) reflectiu sobre como temos conhecimento do movimento. Copérnico percebeu que o modo como compreendemos o movimento depende da nossa perspectiva: isto é, a questão de saber se vemos ou não os objectos em movimento é o resultado do modo como nós próprios estamos colocados e, em particular, resulta da questão de saber se nós próprios estamos ou não em movimento. (Sobretudo em comboios ou nos aeroportos, já tivemos a ilusão de ver o comboio ou avião que está ao lado do nosso a começar a movimentar-se, apercebendo-nos depois, com um sobressalto, que somos nós que estamos em movimento. Mas no tempo de Copérnico havia menos exemplos quotidianos. ) Assim, os movimentos aparentes das estrelas e dos planetas poderiam ocorrer não por eles se movimentarem como aparentam, mas por causa do nosso próprio movimento. E afinal as coisas são mesmo assim. Neste caso, a reflexão sobre a natureza do conhecimento - o que os filósofos chamam «investigação epistemológica», do grego episteme, que significa conhecimento - deu origem ao primeiro grande salto da ciência moderna. As reflexões de Einstein sobre o modo como sabemos que dois acontecimentos são simultâneos tinham a mesma estrutura. Einstein percebeu que os resultados das nossas medições iriam depender da direcção em que estamos a viajar relativamente aos acontecimentos que estamos a cronometrar. Isto conduziu à teoria da relatividade especial (e o próprio Einstein reconheceu a importância dos filósofos que o precederam, ao sensibilizarem-no para as complexidades epistemológicas de tais medições). Como exemplo final, podemos considerar um problema 28 Apostila de Semiótica Jurídica filosófico que muitas pessoas enfrentam quando pensam sobre a mente e o corpo. Muitas pessoas têm em vista uma separação estrita entre a mente, como uma coisa, e o corpo, como uma coisa diferente. Embora isto possa parecer apenas bom senso, pode começar a contaminar a prática de uma maneira bastante insidiosa. Por exemplo, começa a ser difícil ver como estas duas coisas diferentes interagem. Os médicos podem então achar quase inevitável que falhem os tratamentos das condições físicas que respondem a causas mentais ou psicológicas. Podem achar praticamente impossível ver como interferir na mente de alguém pode alguma vez causar mudanças no sistema físico complexo que é o seu corpo. Afinal, a boa ciência diz-nos que é necessário ter causas físicas e químicas para ter efeitos físicos e químicos. Logo, podemos ter uma certeza a priori, uma certeza de poltrona, de que um certo tipo de tratamento (drogas e choques eléctricos, por exemplo) tem de estar «correcto» e que outro tipo de tratamento (como tratar os pacientes humanamente, o aconselhamento e a análise) está «errado»: não é científico, não é sólido, está condenado a falhar. Mas esta certeza não tem como premissa a ciência mas uma falsa filosofia. Uma concepção filosófica melhor da relação entre a mente e o corpo muda essa certeza. Uma concepção melhor deve permitirnos ver que nada há de surpreendente no facto de haver interacção mente-corpo. Um dos factos mais corriqueiros, por exemplo, é que pensar em algumas coisas (domínio mental) pode fazer corar (domínio físico). Pensar num perigo futuro pode causar todo o tipo de mudanças corporais: o coração bate rapidamente, os punhos fecham-se, as entranhas contraem-se. Por extrapolação, não deve haver qualquer dificuldade em compreender que um estado mental como um alegre optimismo possa afectar um estado físico como o desaparecimento de manchas na pele ou até a remissão de um cancro. O problema de saber se tais coisas acontecem realmente transforma-se numa questão puramente empírica. A própria certeza de poltrona de que tais coisas não poderiam acontecer é afinal algo que depende de uma má compreensão das estruturas do pensamento, ou por outras palavras, má filosofia - e nesse sentido é anti-científica. E perceber isto pode melhorar as atitudes e as práticas médicas. Assim, a resposta intermédia chama-nos a atenção para o facto de a reflexão estar na continuidade com a prática, podendo a nossa prática ser melhor ou pior de acordo com o valor das nossas 29 José Diniz de Moraes reflexões. Um sistema de pensamento é algo em que vivemos, tal como uma casa, e se a nossa casa intelectual estiver fechada e for limitada, precisamos de ver que outras estruturas melhores serão possíveis. A resposta chã limita-se a sublinhar um pouco este aspecto, não relativamente a belas disciplinas graciosas como a economia e a física, mas relativamente ao piso térreo onde a vida humana é um pouco menos elegante. Uma das séries de sátiras gravadas pelo pintor espanhol Goya tem por título «O Sono da Razão Produz Monstros». Goya pensava que muitas das loucuras da humanidade resultavam do «sono da razão». Há sempre pessoas prontas a dizernos o que queremos, a explicar-nos como nos vão dar essas coisas e a mostrar-nos no que devemos acreditar. As convicções são contagiosas, e é possível convencer as pessoas de praticamente tudo. Geralmente, estamos dispostos a pensar que os nossos hábitos, as nossas convicções, a nossa religião e os nossos políticos são melhores do que os deles, ou que os nossos direitos dados por Deus anulam os direitos deles, ou que os nossos interesses exigem ataques defensivos ou dissuasivos contra eles. Em última análise, trata-se de ideias que fazem as pessoas matarem-se umas às outras. É por causa de ideias sobre o que os outros são, ou quem somos, ou o que os nossos interesses ou direitos exigem que fazemos guerras ou oprimimos os outros de consciência tranquila, ou até aceitamos por vezes ser oprimidos. Quando estas convicções implicam o sono da razão, o despertar crítico é o antídoto. A reflexão permite-nos recuar, ver que talvez a nossa perspectiva sobre uma dada situação esteja distorcida ou seja cega, ou pelo menos ver se há argumentos a favor dos nossos hábitos, ou se é tudo meramente subjectivo. Fazer isto bem é pôr em prática mais alguma engenharia conceptual. A reflexão pode ser encarada como uma coisa perigosa, visto que não podemos saber à partida onde nos conduzirá. Há sempre pensamentos que se opõem à reflexão. As questões filosóficas fazem muitas pessoas sentirem-se desconfortáveis, ou mesmo ultrajadas. Algumas têm medo que as suas ideias possam não resistir tão bem como elas gostariam se começarem a pensar sobre elas. Outras podem querer basear-se nas «políticas da identidade» ou, por outras palavras, no tipo de identificação com uma tradição, grupo ou identidades nacionais ou étnicas particulares que os convida a 30 Apostila de Semiótica Jurídica voltar as costas a estranhos que coloquem em causa os hábitos do grupo. Essas pessoas irão minimizar a crítica: os seus valores são «incomensuráveis» relativamente aos valores dos estranhos. Só os irmãos e irmãs do seu círculo podem compreendê-las. Algumas pessoas gostam de se refugiar num círculo espesso, confortável e tradicional de tradições populares, sem se preocuparem muito com a sua estrutura, as suas origens, ou mesmo com as críticas que possam merecer. A reflexão abre a avenida da crítica, e as tradições populares podem não gostar da crítica. Neste sentido, as ideologias tornam-se círculos fechados, prontas a sentirem-se ultrajadas pelo espírito interrogante. Nos últimos 2 mil anos, a tradição filosófica tem sido a inimiga deste tipo de complacência confortável. Tem insistido na ideia de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Tem insistido no poder da reflexão racional para descobrir o que há de errado nas nossas práticas, e para as substituir por práticas melhores. Tem identificado a auto-reflexão crítica com a liberdade e a ideia é que só quando nos conseguimos ver a nós mesmos de forma adequada podemos controlar a direcção em que desejamos caminhar. Só quando conseguimos ver a nossa situação de forma estável e a vemos na sua totalidade podemos começar a pensar no que fazer a seu respeito. Marx disse que os filósofos anteriores tinham procurado compreender o mundo, ao passo que o que era preciso era mudá-lo - uma das asserções famosas mais tolas de todos os tempos (e completamente desmentida pela sua própria prática intelectual). Teria sido melhor que Marx tivesse acrescentado que sem compreender o mundo, pouco saberemos em termos de como o mudar - pelo menos para melhor. Rosencranz e Guildenstern admitem não saber tocar gaita-de-foles, mas tentam manipular Hamlet. Quando agimos sem compreensão, o mundo está perfeitamente preparado para dar voz à reacção de Hamlet: «Pensais que eu sou mais fácil de controlar que uma gaita-de-foles? » Há correntes acadêmicas no nosso tempo que são contra estas ideias. Há pessoas que questionam a própria noção de verdade, de razão, ou a possibilidade da reflexão desapaixonada. Na sua maior parte, fazem má filosofia, muitas vezes sem saberem que é isso que estão a fazer: são engenheiros conceptuais que não conseguem desenhar um plano, quando mais conceber uma estrutura. Voltaremos a esta questão várias vezes ao longo do livro, mas para 31 José Diniz de Moraes já posso prometer que este livro está de cara levantada ao lado da tradição e contra qualquer cepticismo moderno, ou pós-modernismo, quanto ao valor da reflexão. O mote completo de Goya para a sua gravura é o seguinte: «A imaginação abandonada pela razão produz monstros impossíveis; unida a ela, é a mãe das artes e a fonte dos seus encantos». É assim que devemos encarar as coisas. Simon Blackburn: Texto retirado de Pense: Uma introdução à filosofia, de Simon Blackburn (tradução de António Infante et al., Gradiva, 2000) 32 Apostila de Semiótica Jurídica Texto 03 - Danilo Marcondes de Souza Filho: Noûs vs. Lógos Noûs vs. Lógos A rejeição da ideia de um pensamento não-discursivo tem sido uma das características centrais da filosofia da linguagem, estando relacionada inclusive com seu surgimento na tradição analítica (A. Coffa, 1986). Na filosofia grega clássica, entretanto, esta noção ocupou um lugar central na teoria do conhecimento, na metafísica e na própria definição da tarefa filosófica. Minha hipótese é precisamente a de que a importância e o privilégio atribuídos ao pensamento não-discursivo explicam, em grande parte, o lugar secundário atribuído à linguagem e ao discurso no pensamento clássico, e até mesmo a inexistência do conceito de linguagem, propriamente dito, neste pensamento. A questão, portanto, da relação entre pensamento discursivo (diánoia, lógos) e pensamento não-discursivo (noûs, nóesis) situa-se dentro de uma problemática mais ampla: todo pensamento é necessariamente linguístico?; pressupõe uma estrutura linguística?; a linguagem é necessária ao pensamento? São essas questões que servirão de pano de fundo para este breve exame da noção de pensamento não-discursivo na filosofia grega e suas consequências. Antes disso, entretanto, alguns esclarecimentos se fazem necessários quanto ao sentido dado neste trabalho a termos como «linguagem», «pensamento», «discurso», «proposição», etc. Vou partir de certas definições estipulativas, sem discutir as várias interpretações possíveis destes conceitos contemporaneamente, o que me desviaria dos propósitos deste trabalho. Pretendo basear-me em concepções recentes na filosofia analítica para a consideração dos textos clássicos. Por «linguagem», entendo, em um sentido bastante amplo, a estrutura lógica abstrata, o conjunto de regras que permite a constituição de juízos, isto é, a articulação de conceitos, bem como as operações ou relações entre juízos. A proposição é o conteúdo de um ato de pensamento, distinto do ato ele próprio, e possuindo a forma predicativa do juízo «que X é Y». A sentença é a expressão verbal de 33 José Diniz de Moraes uma proposição constituindo, portanto, uma unidade do discurso. O discurso resulta, assim, de um conjunto de sentenças articuladas. O pensamento é o processo mental, interior, relativo ao indivíduo, subjetivo, portanto. Enquanto constituído de juízos, ou da faculdade de julgar, possui uma estrutura lingüística. Na tradição clássica (Nuchelmans, 1973, 7), o lógos é uma combinação de ónoma e rhêma (Platão, Sofista, 262a), expressando um pensamento (diánoia). O pensamento, por sua vez, é sempre, ou quase sempre, caracterizado através do discurso, como na passagem clássica de Platão em que é definido como «o diálogo da alma consigo mesma» (Teeteto, 189e4). Nossa questão, no entanto, é precisamente se há um pensamento não-lingüístico ou não-discursivo, isto é, não constituído de proposições. Se há, qual então o papel deste pensamento na nossa compreensão do real, na constituição de nossa experiência? Ou seja, por que é necessário para a filosofia grega supor a existência de um pensamento não-discursivo? O conceito de pensamento não-discursivo parece, de fato, vir a resolver duas dificuldades, estreitamente relacionadas, apresentadas pelos paradoxos da definição e da análise. O paradoxo da definição resulta do reconhecimento de que toda definição nominal de um conceito é dada através de outros conceitos que servem para definir o primeiro. Estes conceitos, por sua vez, que pertencem ao definiens, carecem de definição e só podem ser definidos por outros conceitos. Temos, assim, uma circularidade, já que as palavras remetem umas às outras, sem que possamos sair do circuito do discurso. A definição nominal, produto do pensamento discursivo, é incapaz de nos revelar a essência das coisas, sua verdadeira natureza. É necessário, portanto, uma forma de captação da essência, um modo de acesso ao real, que não dependa de definições nominais. O paradoxo da análise é derivado da concepção de que, se o conhecimento de um objeto complexo (Teeteto, 201c210a) se dá através de sua decomposição nos elementos simples que o compõem, então estes elementos eles próprios não podem por sua vez ser decompostos e portanto analisados, sendo assim incognoscíveis. O conhecimento repousaria então sobre uma realidade que não pode ser conhecida, o que parece claramente contraditório. Ora, o procedimento de análise é um procedimento discursivo e por isso precisa dar lugar, para que o paradoxo seja evitado, a uma apreensão não-discursiva, direta, imediata da natureza das coisas simples, que não podem ser conhecidas por 34 Apostila de Semiótica Jurídica análise. O recurso à noção de pensamento não- discursivo evitaria assim a circularidade do discurso, a sua impossibilidade de relação direta com o real, já que a definição de um termo é dada sempre através de outros e o significado destes termos é sempre convencional, o que levaria ao regresso ao infinito das definições. Evitaria também o problema do acesso ao real do qual a análise não dá conta e que deve ser imediato, direto, para servir de base ao processo progressivo de construção do conhecimento. Vejamos alguns textos de Platão em que a noção de pensamento não-discursivo (noûs) é introduzida em relação a estas questões acima indicadas. Destacaria em primeiro lugar a discussão sobre as etapas e os elementos que formam o processo de conhecimento na famosa passagem da Carta VII (342a-343c). Platão distingue aí três elementos que levam ao conhecimento ou o tornam possível, sendo o conhecimento ele próprio o quarto elemento e a coisa conhecida o quinto. Em primeiro lugar temos então o nome (ónoma) cuja natureza é meramente convencional (343b), em segundo lugar a definição (lógos), que na realidade nada mais é do que um conjunto de nomes (343b), em terceiro lugar a imagem (eídolon) ou representação da coisa, que é de natureza sensível e portanto não pode constituir ainda conhecimento e, finalmente, temos o conhecimento (epistéme) identificado por Platão nesta passagem com o entendimento ou intelecção (noûs) e com a opinião verdadeira (alethès dóxa) já que não pertencem nem ao campo do discurso nem ao das figuras materiais, mas estão na alma (psyché). Platão destaca nesta passagem a inadequação do discurso (343c) ao pensamento, já que o significado não é fixo por ser convencional, as palavras podendo ter seus significados alternados (343b). As definições (lógoi), igualmente, por serem compostas de nomes, estão sujeitas às mesmas limitações. Em consequência «nenhum homem inteligente deve procurar expressar aquilo que seu intelecto apreende (tà nenoeména) em palavras» (343a). As palavras e o intelecto possuem naturezas distintas, as palavras são inadequadas para expressar o que o intelecto capta, só o intelecto é capaz de captar a coisa ela mesma (tò ón), chegar ao próprio real, superando por meio da dialética o domínio do sensível que é o domínio do discurso. O discurso e a apreensão sensível são assim parte do processo do conhecimento, mas apenas como etapas a serem vencidas, como um caminho que aponta para a realidade superior das coisas mesmas (tà ónta, tà noetá), que só o intelecto (noûs) pode 35 José Diniz de Moraes conhecer, que são objetos do intelecto (tà noetá). O segundo texto de Platão a que podemos recorrer é a célebre alegoria da Linha Dividida (República, 509d-511), em que Platão simboliza as várias etapas ou modos de contato da mente humana com os mundos sensível e inteligível através de uma linha dividida em dois segmentos representando respectivamente o mundo inteligível (noetá, as coisas inteligíveis, ou ónta, as realidades), e o mundo sensível (gignómena, objetos em mudança; aisthetá, objetos de percepção; doxastá, objetos da crença; horatá, objetos sensíveis). Cada segmento é por sua vez subdividido em dois novos segmentos. Pretendo concentrar-me apenas no segmento superior relativo ao mundo inteligível, examinando as razões de Platão para subdividi-lo por sua vez em dois novos segmentos, representando duas etapas diferentes de acesso a essa realidade, sendo que alguns intérpretes (por exemplo Austin, 1979, que passo a seguir) consideram precisamente a distinção entre pensamento (diánoia) e ciência (epistéme) como um dos propósitos centrais deste texto. O primeiro segmento em que se subdivide o segmento sobre o mundo inteligível é relativo ao matemático. Segundo Platão, o matemático (geômetra) parte de hipóteses para delas extrair suas conclusões e utiliza-se de diagramas e desenhos de figuras que pertencem ao mundo sensível. O filósofo (dialético), por sua vez, em busca do verdadeiro conhecimento, deve superar as hipóteses, abandoná-las, usando-as apenas como pontos de partida para chegar ao princípio não hipotético (archè anypóthetos), no caso a forma do Bem. O termo «hipótese» tem para Platão precisamente o sentido de uma definição ou postulado (cf. Austin, 1979, p. 300), pressupondo a existência do objeto definido, sem contudo demonstrá-la. Assim, embora o matemático esteja se referindo a uma realidade suprasensível, inteligível, tudo de que dispõe são suas definições (lógoi), que pertencem ao domínio do discurso e diagramas, que pertencem ao domínio sensível; não chegando portanto a alcançar ainda esta realidade suprasensível. Os princípios não-hipotéticos precisamente não necessitam de um postulado existencial, de uma suposição de sua existência, já que são o próprio fundamento ontológico do real. A definição é apenas uma imagem (eikón, eídolon) da forma, e não a posse da coisa ela própria, da realidade da forma. Só através do noûs, do pensamento não-discursivo, podemos captar esta realidade, por isso enquanto o matemático permanece ao nível da diánoia, o filósofo (dialético) é capaz de ter este conhecimento possibilitado 36 Apostila de Semiótica Jurídica pelo noûs. O acesso ao princípio não-hipotético só pode se dar através do pensamento não-discursivo, já que este princípio por sua natureza não pode ser definido por um lógos, nem resulta de um postulado ou pressuposto. Embora haja outras passagens relevantes em Platão sobre esta questão, creio que as duas passagens examinadas acima ilustram perfeitamente a necessidade de introduzir o conceito de pensamento não-discursivo para explicar o conhecimento enquanto certeza absoluta, captação da essência do real, acesso direto da mente (noûs) à coisa (ón). Em Aristóteles encontramos igualmente uma defesa da necessidade do conceito de pensamento não-discursivo. Os seguintes textos podem ser tomados como representativos, dentre diversos outros possíveis: Ética a Nicômaco, VI, 6; Tratado da Alma, III, 6; e Segundos Analíticos, I, 2 e 3, II, 19. Nos Segundos Analíticos Aristóteles distingue o conhecimento científico (epistéme) que temos de algo porque conhecemos suas causas (I, 2, 71b9), de um outro tipo de conhecimento que se caracteriza pelo noûs e consiste na apreensão dos primeiros princípios (archaí), do ponto de partida indemonstrável, do qual procede toda a demonstração (II, 19, 100b5). O noûs significa assim a capacidade de captar o caráter necessário de certas verdades básicas que funcionam como primeiros princípios pressupostos em toda demonstração. O conhecimento científico é silogístico, demonstrativo, consiste portanto de proposições que se encadeiam de acordo com determinadas regras (schémata) permitindo inferir determinadas conclusões. Neste sentido, o conhecimento científico é discursivo, proposicional. Entretanto, para evitar a regressão ao infinito da necessidade de demonstração temos que supor certos princípios básicos que servem de ponto de partida à demonstração e são por natureza indemonstráveis (I, 3, 72b). Ora, como se dá nosso acesso a estes primeiros princípios? Através de uma intuição ou apreensão imediata, para a qual Aristóteles emprega também por vezes o termo epagogé (indução) em um sentido especial, segundo o qual a indução nos leva aos primeiros princípios (cf. Ross, 1964, p. 217). O texto da Ética a Nicômaco (VI, 1139b25) nos esclarece mais quanto à natureza do noûs. Encontramos aí a distinção aristotélica entre as cinco virtudes intelectuais: epistéme, téchne, phrónesis, 37 José Diniz de Moraes noûs, sophía, caracterizadas como cinco formas de a mente alcançar a verdade. A introdução da noção de verdade neste ponto é importante e será melhor discutida mais adiante. Aristóteles afirma que a epistéme, conhecimento científico, consiste em juízos universais e necessários sobre as coisas e verdades demonstráveis, que dependem dos primeiros princípios que, por sua vez, só podem ser captados pelo noûs. Mais adiante Aristóteles caracteriza o noûs como apreensão das definições que não podem ser demonstradas (1142a27), distinguindo este tipo de apreensão da apreensão do particular e do variável que caracteriza a prudência ou saber prático (phrónesis). É, entretanto, no livro III (6) do Tratado da Alma que encontramos a discussão mais explícita e elaborada a respeito da natureza do pensamento não-discursivo em contraste com o discursivo. O pensamento que apreende os objetos simples é incapaz de ser falso, é só no pensamento que junta objetos em uma espécie de unidade que temos a possibilidade do verdadeiro e do falso. A falsidade sempre envolve uma síntese, uma combinação inadequada realizada pelo pensamento não possuindo uma correspondência com o real, tal como na famosa doutrina platônica exposta no Sofista (260-264). É a mente que unifica estes objetos e pode fazê-lo de modo adequado ou não. Quanto à apreensão do simples, Aristóteles introduz ainda uma nova distinção. Não se trata do simples no sentido de aquilo que não se encontra dividido, p. ex., uma linha, mas que pode ser dividido, já que a linha pode ser apreendida em partes. Trata-se no caso do pensamento não-discursivo daquilo que é indivisível, que não tem partes, da apreensão da natureza da coisa, ou seja, de sua essência constitutiva, apreensão esta que não pode ser errônea e que não se dá através de uma asserção de algo acerca de algo. Não pode ser errônea por se tratar de um acesso direto a um elemento simples e que portanto não depende de uma combinação entre objetos que pode ser adequada ou não em relação ao real. Ou há apreensão, ou não há, mas não pode haver apreensão errônea ou falsa . Assim, este tipo de apreensão é explicitamente caracterizado como pensamento não-discursivo e contrastado com o pensamento discursivo que é constituído por sentenças em que se diz algo de algo, em que se realiza uma síntese. Passo agora a examinar esta noção de pensamento nãodiscursivo à luz da discussão mais recente acerca deste problema (Lloyd, 1969/70, 1986, Sorabji, 1982). Segundo Lloyd (1969/70, p. 38 Apostila de Semiótica Jurídica 310) , as características do pensamento não-discursivo são: (i) é nãocomplexo; (ii) portanto, é não proposicional já que proposições são complexas; (iii) não envolve auto-consciência; (iv) é descrito em termos de contato. A ideia de não-complexidade parece ser entendida como apreensão de essências ou conceitos direta e isoladamente e não através da formulação de um juízo que seria proposicional. É por este motivo que o pensamento não-discursivo deve ser considerado segundo a metáfora do contato (cf. Metafísica, IX, 10, 1051b24-25; XII, 7, 1072b21), que é direto, e não como visão, que admite graus de proximidade e de clareza. O pensamento nãodiscursivo não depende portanto do estabelecimento de uma relação lógica entre conceitos, da transição de um conceito a outro, da predicação. Um dos argumentos principais em defesa da prioridade do pensamento não-discursivo sobre o discursivo parte exatamente da ideia de que se o pensamento discursivo envolve a transição de um conceito a outro, o estabelecimento de relações entre conceitos, portanto, então pressupõe a apreensão isolada de cada conceito para que se possa fazer, em um segundo momento, a relação. É neste sentido que a doutrina da prioridade lógica do conceito sobre o juízo é uma das causas principais da inexistência de um conceito de linguagem como estrutura lógica autônoma no pensamento antigo. Na verdade, é só o questionamento, a partir de Kant, da prioridade do conceito sobre o juízo, e a consequente inversão desta prioridade, que abrirá caminho para Frege e para a constituição da noção lógica de linguagem na filosofia analítica. Do ponto de vista ontológico, esta doutrina tem como consequência a ideia de que os conceitos devem existir autônoma e isoladamente para que possam ser apreendidos pela mente através de uma intuição. Não podem portanto resultar de nenhuma construção mental que seria complexa, nem serem deduzidos de juízos, já que aí seriam derivados por análise. É importante, para se esclarecer mais esta noção de apreensão imediata de um conceito, examinar a relação entre o pensamento e seu objeto, aquilo de que é pensamento. Estas relação, entretanto, parece já trair uma concepção de pensamento enquanto complexo, atributivo, ou seja, do verbo pensar em seu sentido transitivo: pensar que X, isto é, «que a alma é imortal», «que a justiça é um bem», etc.. O pensamento não discursivo equivaleria a pensar a alma, a justiça, etc., enquanto tais; isto é, corresponderia a uma espécie de posse do conceito de alma, de justiça, etc.. Mas o que 39 José Diniz de Moraes significa este pensamento da alma, da justiça? Como isto deve ser compreendido? O pensamento não-discursivo seria assim uma forma de contemplação, de presença diante da própria realidade da ideia ou do conceito. Dar-se-ia então uma espécie de identificação entre o pensamento e o seu objeto, que seria captado enquanto tal, e não através de uma representação mental ou de uma definição conceitual. Nosso vocabulário parece inclusive inadequado para caracterizar este tipo de experiência, talvez porque esteja demasiado distante dos paradigmas segundo os quais entendemos o pensamento desde a filosofia moderna. Lloyd (op. cit. ), entretanto, indica que Plotino, p. ex., chega mesmo a considerar que este contato com o real obtido pelo noûs, já que não é complexo, é direto, não é pensamento. Trata-se de uma experiência não intelectual ou racional, mas mística, caracterizada como epibolé (Enéadas, V, 3. 10). Plotino emprega os termos pronooûsa (Enéadas, V, 3. 10), uma espécie de «pré-pensamento», e, em outro contexto, hypernóesis, ou «superpensamento» (Enéadas, VI, 8. 16), como atividade do Uno. É o pensamento não-discursivo (noûs) para Plotino que leva finalmente à união com o Uno, o nível mais elevado da experiência, que já não envolveria sequer mais o pensamento. O pensamento não-discursivo seria, portanto, nãoproposicionai, não envolvendo a predicação, o pensar que, e caracterizando-se pela contemplação isolada de conceitos. Seguindo Sorabji, no entanto, podemos nos perguntar se o pensamento nãodiscursivo pode ser proposicional? Mas o que seria «proposicional, porém não-discursivo»? Aristóteles (De Anima, III, 6, 430b28) afirma que o pensamento não-discursivo leva à verdade. Como, se é uma contemplação de um conceito ou essência isoladamente? A definição de verdade do próprio Aristóteles supõe a combinação de conceitos, como já vimos. Só proposições podem ser verdadeiras ou falsas, por referência a uma realidade determinada. Segundo Sorabji, na contemplação de conceitos isolados não se predica nada de nada, não se formulam asserções. O pensamento não-discursivo aplica-se apenas à contemplação da definição (enquanto essência) do incomposto (asyntheta) isto é, do simples, que não poderia ser apreendido de outra forma. Sorabji, entretanto, considera que neste caso o pensamento teria de ser proposicional, seria o pensamento que uma determinada essência pertence a uma determinada entidade. A saída para o impasse seria considerar 40 Apostila de Semiótica Jurídica então a definição, neste caso, apenas como uma expressão de identidade, em que não teríamos predicação propriamente dita, mas referência à mesma coisa duas vezes. Contudo, mesmo uma expressão de identidade tem necessariamente uma forma proposicional, já que relaciona conceitos; assim sendo a solução de Sorabji não me parece inteiramente satisfatória. Creio que a noção de pensamento não-discursivo exclui a possibilidade de entendê-lo como proposicional, e que este pensamento pode ser verdadeiro no sentido específico de um acesso imediato ao real. Devemos supor que haja uma noção de verdade própria ao pensamento não- discursivo, em que a verdade seria uma contemplação da essência, uma espécie de revelação da natureza da coisa. Teríamos aí uma verdade ontológica, como manifestação do ser, e não lógica ou epistemológica (cognitiva no sentido proposicional). A dificuldade, entretanto, está exatamente na passagem daquilo que é apreendido pelo noûs para uma formulação discursiva, isto é, através de uma proposição. Voltemos, contudo, à nossa questão inicial: o pensamento nãodiscursivo é uma ideia coerente, sustentável? O pensamento nãodiscursivo, por ser imediato, direto, se esgotaria em si mesmo, em sua própria realização, não possuindo permanência, nem sendo possível nenhuma elaboração a partir dele, já que não pode se expressar proposicionalmente. O «conhecimento» intuitivo que resultaria dele não envolveria assim a capacidade de definir a realidade apreendida, de determiná-la conceitualmente. Portanto, se não tem expressão, o pensamento não-discursivo é totalmente privado, incomunicável. Não pode ser verdadeiro nem falso no sentido em que não envolve adequação de um predicado a um sujeito em uma sentença que se refere ao real. Na realidade, como vimos acima, seria sempre verdadeiro, no sentido especial de uma captação direta da essência, de uma espécie de identidade com o ser. Dessa característica decorre a dificuldade em explicar as relações entre o pensamento não-discursivo e o discursivo. Como o nãodiscursivo poderia vir a expressar-se no discursivo? Trata-se, portanto, da dificuldade de se extrair quaisquer consequências do pensamento não- discursivo já que não é inferencial e nada pode derivar-se dele. Não teríamos como justificar que aquilo que supomos ou afirmamos, já no plano do discurso, ser derivado realmente o seja. Assim, a questão é: do ponto de vista aristotélico, como explicar a relação entre a apreensão dos primeiros princípios 41 José Diniz de Moraes indemonstraveis e o procedimento inferencial, discursivo, linguístico, dos processos de demonstração e argumentação, do raciocínio portanto? Ou ainda, do ponto de vista platônico, como explicar a dialética descendente? A relação da apreensão das formas com os outros níveis de conhecimento que na linha dividida lhe são inferiores, ou a volta do filósofo à caverna no livro VII da República? Neste sentido, a posição mais coerente, embora mais radical, parece ser efetivamente a de Plotino, em que o pensamento não-discursivo leva finalmente à contemplação mística, ao êxtase, à união com o Uno, como finalidade da filosofia. Com efeito, parece-me que Sorabji tem razão ao vincular estreitamente a questão do papel do pensamento não-discursivo à concepção de filosofia como tendo por finalidade a contemplação das essências, a posse da verdade em um sentido absoluto. O pensamento não-discursivo não se caracteriza pela busca do conhecimento, da verdade, mas por sua posse, para a qual, como vimos, o discurso não é capaz de contribuir diretamente. Apenas algumas correntes da filosofia, como o ceticismo em pelo menos uma de suas vertentes, valorizam a busca (zétesis) da verdade e do conhecimento como definidora da própria filosofia, já que posse do conhecimento é considerada impossível. Na concepção clássica, a filosofia enfrenta o seguinte dilema: enquanto discurso encontra-se inevitavelmente no terreno do lógos, entretanto almeja sempre realizar-se como noûs, como pensamento transcendente, apreensão direta das verdades primeiras, contato direto com o ser; visa assim a superação do discurso em uma realização contemplativa. Neste sentido, só a postulação da existência do noûs poderá garantir à filosofia a realização de sua própria tarefa. Bibliografia ARISTÓTELES, The Complete Works, ed. W. D. Ross, Oxford Univ. Press. AUSTIN, J. L., «The Line and the Cave in Plato's Republic», em Philosophical Papers, 3a. ed., Oxford Univ. Press, 1979. COFFA, A., «Le positivisme logique, la tradition sémantique et l'apriori», em J. Sédestik e A. Soulez (eds. ), Le cercle de Vienne, Paris, Klincksieck, 1986. GUTHRIE, W. C. K., A History of Greek Philosophy, vol. II, Cambridge Univ. Press, 1965. LLOYD, A. 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York, 1971. 43 José Diniz de Moraes Texto 04 - Antônio Fidalgo: Semiótica - A logica da Comunicação Capítulo 5 - Os Campos da Semiótica: Sintaxe, Semântica e Pragmática. 5.1 A semiose em Morris e o princípio da divisão da semiótica Cabe a Charles Morris o mérito de ter estabelecido a divisão da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática. Essa divisão decorre da análise feita por Morris do processo semiósico1. A semiose é o processo em que algo funciona como um signo. A análise deste processo apura quatro factores: o veículo sígnico — aquilo que actua como um signo, o designatum — aquilo a que o signo se refere, o interpretante — o efeito sobre alguém em virtude do qual a coisa em questão é um signo para esse alguém, o intérprete — o alguém. Formalmente teremos: S é um signo de D para I na medida em que I se dá conta de D em virtude da presença de S. Assim, a semiose é o processo em que alguém se dá conta de uma coisa mediante uma terceira. Trata-se de um dar-se-conta-de mediato. Os mediadores são os veículos sígnicos, os dar-se-conta-de são os interpretantes, os agentes do processo são os intérpretes. Antes de mais convém salientar que esta análise é puramente formal, ela não tem minimamente em conta a natureza do veículo sígnico, do designatum ou do intérprete. Os factores da semiose são factores relacionais, de tal ordem que só subsistem enquanto se implicam uns aos outros. Só existe veículo sígnico se houver um designatum e um interpretante correspondentes; e o mesmo vale para estes dois últimos factores: a existência de um deles implica a existência dos outros. Isto tem o seguinte corolário, que é da maior 1 Charles Morris, 1959, Foundations of the Theory of Signs, Chicago: University of Chicago Press. 44 Apostila de Semiótica Jurídica importância: a semiótica não estuda quaisquer objectos específicos, mas todos os objectos desde que participem num processo de semiose. Estas considerações são sobretudo pertinentes relativamente aos designata. Os designata não se confundem com os objectos do mundo real. Pode haver e há signos que se referem a um mesmo objecto, mas que têm designata diferentes. Isso ocorre quando há interpretantes diferentes, ou seja, quando aquilo de que é dado conta no objecto difere para vários intérpretes. Os designata podem ser produtos da fantasia, objectos irreais ou até contraditórios. Os objectos reais quando referidos constituem apenas uma classe específica de designata, são os denotata. Todo o signo tem, portanto, um designatum, mas nem todo o signo tem um denotatum. A semiose é tridimensional; ela contempla sempre um veículo sígnico, um designatum e um intérprete (o interpretante é dar-se conta de um intérprete, pelo que por vezes se pode omitir). Ora desta relação triádica da semiose podemos extrair diferentes tipos de relações diádicas, nomeadamente as relações dos signos aos objectos a que se aplicam e as relações entre os signos e os seus intérpretes. As primeiras relações cabem na dimensão semântica da semiose e as últimas na dimensão pragmática. A estas duas dimensões acrescenta-se necessariamente a dimensão sintáctica da semiose que contempla as relações dos signos entre si. Cada uma destas dimensões possui termos especiais para designar as respectivas relações. Assim, por exemplo, "implica" é um termo sintáctico, "designa" e "denota" termos semânticos e "expressa" um termo pragmático. É deste modo que a palavra 'mesa' implica (mas não designa) a sua definição 'mobília com um tampo horizontal em que podem ser colocadas coisas', denota os objectos a que se aplica e expressa o pensamento do seu utilizador. As dimensões de um signo não têm todas o mesmo realce. Há signos que se reduzem à função de implicação e, por conseguinte, a sua dimensão semântica é nula — vejam-se os signos matemáticos! —, há signos que se centram totalmente na denotação e, portanto, não têm uma dimensão sintáctica e há signos que não têm intérpretes efectivos, como é o caso das línguas mortas, e, por conseguinte, não têm dimensão pragmática. Em suma, a divisão da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática, decorre da análise do processo semiósico em que uma 45 José Diniz de Moraes coisa se torna para alguém signo de uma outra coisa. A sintaxe e a ideia de gramática Indiscutivelmente a sintaxe, enquanto estudo das relações sintácticas dos signos entre si, constitui a parte mais desenvolvida da semiótica. Esse desenvolvimento começou o mais tardar com as ideias leibnizianas da ars characteristica, da ciência a que incumbiria formar os signos de modo a obter, através da mera consideração dos signos, todas as consequências das ideias correspondentes, e da ars combinatoria, do cálculo geral para determinar as combinações possíveis dos signos. Depois de Leibniz, muitos lógicos contribuíram para o progresso da estrutura logicogramatical da linguagem. Além dos já citados neste relatório, há ainda mencionar Boole, Peano, Russel e Whitehead. Os signos formam-se e agrupam-se segundo regras bem definidas. Num primeiro momento, há a considerar as regras de formação que determinam a construção de proposições; num segundo momento, temos as regras de transformação que determinam as proposições a inferir de outras proposições. As primeiras regras indicam-nos se uma proposição é ou não bem formada, as segundas estipulam as inferências entre proposições, isto é, determinam o cálculo proposicional. i) Sintaxe e língua Os elementos de uma língua organizam-se, não se amontoam. Os signos linguísticos são-no enquanto, e só enquanto, se inserem em todos de significação (sintagmas, sistemas). Fazer a análise gramatical de uma proposição ou enunciado "é indicar as funções desempenhadas pelas palavras ou grupos de palavras nessa proposição".2 Conhecemos essa análise da escola primária: qual termo é o sujeito da proposição, qual o predicado, o complemento directo, etc. Isto significa que os elementos da frase possuem funções sintácticas diferentes. Não basta chamar a atenção para o termo funções sintácticas, há que reparar também na palavra diferentes. As funções sintácticas dos diversos elementos da frase são diferentes. Segundo Ducrot3, impõem-se a este respeito as 2 Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das Ciências da Linguagem, Lisboa: Publicações D. Quixote, 1991, p. 257. 3 Ibidem. 46 Apostila de Semiótica Jurídica seguintes considerações: 1. A sintaxe define certas relações entre os elementos da frase e a totalidade da frase, relações em que dois elementos distintos têm, muitas vezes, uma relação diferente com a frase total. 2. A relação particular que liga um constituinte à frase total pode ser descrita em termos finalistas como um papel: admitese que a frase, tomada globalmente, tem uma finalidade, e que cada constituinte se distingue dos outros pelo papel que desempenha no cumprimento dessa finalidade. 3. A função de um elemento não é directamente determinada pela sua natureza: dois elementos de natureza diferente podem ter a mesma função e inversamente constituintes da mesma natureza podem ter funções diferentes. 4. As funções sintácticas são independentes da capacidade combinatória dos falantes, elas residem na própria língua. Das funções sintácticas de uma língua destacam-se as de sujeito e predicado. A função de sujeito é a de indicar o objecto sobre o qual se fala e que é determinado pelos predicados. A função de predicado consiste em determinar esse objecto ou afirmar algo sobre ele. Esta estrutura sintáctica é de tal modo fundamental que se podem compreender as lógicas de Aristóteles e de Kant respectivamente como lógicas de sujeito e de predicado. Assim, a lógica aristotélica privilegia o sujeito enquanto substrato de todas as determinações. É que esta visão decorre da noção ontológica de substância que subjaz a todos os acidentes, acidentes estes que, gramaticalmente, não são mais que predicados. Por seu lado, a lógica kantiana coloca o acento tónico no predicado. O sujeito em si é apenas um indeterminado que irá ser construído pela determinação operada pelos predicados. Se em Aristóteles a lógica precede a ontologia, em Kant é a lógica que determina a ontologia possível ou cognoscível, ou seja, a ontologia da realidade fenoménica. ii) sintaxe e ciência Foi enorme a importância que o Círculo de Viena concedeu à sintaxe na reflexão epistemológica. Sobretudo os estudos de Rudolf Carnap, em que se destacam A Construção Lógica do Mundo e A Sintaxe Lógica da Linguagem, focaram a dimensão sintáctica da ciência4. A ciência — melhor, toda e qualquer ciência particular — é composta por conceitos e proposições. Uns e outros sistematizam-se 4 Como introdução à obra de Carnap veja-se Alberto Pasquinelli, Carnap e o Positivismo Lógico, Lisboa: Edições 70, 1983. 47 José Diniz de Moraes de forma axiomática, podendo ser inferidos de alguns poucos conceitos e proposições fundamentais. Quer isto dizer que a ciência se organiza sistematicamente e, portanto, possui, enquanto discurso, uma estrutura sintáctica. Isto é tanto válido para as ciências formais, lógica e matemática, como para as ciências empíricas. Quanto às ciências formais a intelecção que lhes está subjacente é que a verdade das suas asserções se baseia apenas na sua estrutura e no significado dos termos que as compõem. Estas asserções são verdadeiras em todas as circunstâncias e, portanto, a sua verdade é independente dos factos mundanos. Isto implica, por seu lado, que essas asserções nada digam sobre a realidade. Relativamente às ciências empíricas a sistematização incide sobre o apuramento dos elementos e relações fundamentais a partir dos quais se inferem os restantes conceitos e se constrói axiomaticamente o edifício da ciência. Trata-se de um sistema de constituição dos conceitos empíricos. Constituir um determinado conceito a partir de outros conceitos significa enunciar uma regra geral pela qual todas as proposições em que aparece esse conceito podem ser traduzidas em proposições em que apenas aparecem os conceitos de que esse conceito é derivado. Dado à ambiguidade e à imprecisão da linguagem quotidiana, uma das tarefas da ciência consiste justamente, segundo Carnap, em construir linguagens formalizadas, unívocas e exactas. São linguagens artificiais que, cumprindo os requisitos científicos de rigor, devem substituir as linguagens naturais. Para além da eliminação de mal entendidos, ambiguidades e confusões, um dos objectivos mais importantes do emprego de linguagens formalizadas reside na clara separação entre linguagem e metalinguagem. Enquanto a linguagem contém apenas proposições-coisa, isto é, proposições cujos designata não incluem signos, a metalinguagem tem na própria linguagem o seu objecto. Essa distinção possibilita a destrinça entre proposições-coisa e pseudo-proposições, isto é, proposições que parecendo ser proposições-coisa efectivamente o não são. A semântica Normalmente entendida como a ciência do significado, a semântica, vista da perspectiva da semiose, ocupa-se da relação dos 48 Apostila de Semiótica Jurídica signos (veículos sígnicos) aos seus designata. É no âmbito desta relação que habitualmente se discute a questão da verdade. A questão central da semântica reside no estabelecimento da regra semântica a qual determina sob que condições um signo é aplicável a um objecto ou a uma situação. "Um signo denota o quer que se conforma às condições estabelecidas na regra semântica, enquanto a própria regra estabelece as condições de designação e, desse modo, determina o designatum"5. Quer isto dizer que a dimensão semântica de um signo só existe na medida em que há regras semânticas que determinam a sua aplicabilidade a certas situações sob certas condições. A diferenciação e classificação dos signos em índices, ícones, símbolos e outros, explica-se pelas diferentes espécies de regras semânticas. Assim, a regra semântica de um signo indexical como o apontar estipula que o signo designa a qualquer momento aquilo que é apontado. Neste caso, o signo não caracteriza o que denota. Em contrapartida, ícones e símbolos caracterizam aquilo que designam. Se o signo caracterizar o objecto denotado por mostrar nele mesmo as propriedades que um objecto tem, como acontece com as fotografias, os mapas ou os diagramas químicos, então o signo é um ícone; se não for esse o caso, então trata-se de um símbolo. A regra semântica também se estende às proposições. Aqui a regra que estipula as condições de aplicabilidade da proposição a um determinado estado de coisas envolve necessariamente a referência às regras semânticas dos signos que a compõem. Entendendo a semântica como a ciência do significado, cabe dizer que há diversos significados de significado.6 É célebre a inventariação dos significados de significado feita por Ogden e Richards, onde se contam dezasseis significações diferentes do termo.7 Hoje em dia distinguem-se usualmente duas grandes correntes na definição de significado: uma analítica e outra 5 Cf. Morris, ibidem, p. 16. Sobre esta questão veja-se Stephen Ullmann, Semântica. Uma Introdução à Ciência do Significado, Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1987, cap. III e José Pinto de Lima, Linguagem e Acção. Da filosofia analítica à linguística pragmática, Lisboa: apáginastantas, 1989. 7 C.K.Odgen e I.A.Richards, The Meaning of Meaning, London: Routledge & Kegan, 1923. 6 49 José Diniz de Moraes operacional. A primeira tenta apreender a essência do significado, a segunda investiga sobretudo o modo como opera. Na primeira corrente incluem-se tanto a teoria referencial como a teoria ideacional do significado. A teoria referencial considera que o significado de um signo é a coisa pelo qual o signo está. Por seu lado, a teoria ideacional defende que o significado de um termo ou de um signo não é a coisa pela qual o signo está ou que o signo representa, mas sim a ideia que exprime. A concepção saussureana do signo é claramente ideacional, o significado é o conceito. Na corrente operacional temos a teoria behaviorista e a teoria pragmática. A primeira, que é a preconizada por Bloomfield, encara o significado de uma forma linguística como a situação em que o elocutor a emite e a resposta que provoca no ouvinte. Quer isto dizer que o significado de uma palavra é definido pela situação da enunciação da mesma, nomeadamente pelos estímulos que a provocam e pelas reacções que ela provoca. A teoria pragmática, por sua vez, considera que o verdadeiro significado de uma palavra não está tanto no que se diz acerca dela como no que se faz com ela. Dito de uma forma sucinta, o significado de uma palavra é o seu uso na língua. Enquanto a teoria behaviorista explica o significado a partir do actividade humana entendida como comportamento, a teoria pragmática entende essa actividade como acção. A explicação behaviorista é de ordem causal, ao passo que a explicação pragmática é teleológica. A pragmática A dimensão pragmática do processo semiósico foi realçada pelo pragmatismo. Com efeito, foi esta corrente filosófica iniciada por Peirce que prestou especial atenção à relação entre os signos e os seus utilizadores. O pragmatismo compreendeu que para além das dimensões sintáctica e semântica na análise do processo sígnico há uma dimensão contextual. Isto é, o signo não é independente da sua utilização. A novidade da abordagem pragmatista da semiose está em não remeter a utilização dos signos para uma esfera exclusivamente empírica, socio-psicológica, mas encarar essa utilização de um ponto de vista lógico-analítico. A dimensão pragmática é tal como as dimensões sintáctica e semântica da semiose uma dimensão lógica. De certo modo a pragmática surge como um desenvolvimento imanente do processo semiótico. Com isto quer-se dizer que tal como 50 Apostila de Semiótica Jurídica a análise das formas sígnicas (sintaxe) leva necessariamente à consideração dos valores semânticos como critério para definir as unidades sintácticas, assim também a análise do significado induz à consideração das condições e situações da sua utilização. Bobes Naves traça muito bem o desenvolvimento da análise semiótica conducente à pragmática: "Ao estudar as formas e as relações dos signos, (... ) somos levados necessariamente a ter em conta os valores semânticos como critério para definir as unidades, mesmo no plano estritamente formal. E ao analisar o significado, e sobretudo o sentido, dessas unidades e dos processos sémicos em geral, surgem problemas acerca dos diferentes modos de significar e sobre a forma em que os usos adoptam as relações de tipo referencial, ou as de iconicidade, ou os valores simbólicos, etc.; torna-se necessário determinar os marcos lógicos, ideológicos ou culturais em que se dão os processos semiósicos; as situações em que colhem sentido os diferentes signos; os indícios textuais que orientam os sujeitos que intervêm no processo de comunicação (deícticos, apreciações subjectivas, usos éticos e étimos do signos codificados, etc.) etc., de modo que qualquer estudo semântico ou sintáctico conduz inexoravelmente à investigação pragmática. Tanto as unidades sintácticas como o sentido do texto estão vinculados à situação de uso, às circunstâncias em que se produz o processo de expressão, de comunicação, de interpretação dos signos objectivados num tempo, num espaço e numa cultura. Por outro lado, a relação dos sujeitos que usam os signos num processo semiósico em que partilham o enquadramento situaci-onal e todas as circunstâncias pragmáticas, pode estabelecer-se num tom irónico, sarcástico, metafórico, simbólico, etc., que condiciona o valor das referências próprias dos signos. As relações dos sujeitos com o próprio texto constitui uma clara fonte de sentido. Os signos, incluindo os codificados, mas sempre circunstanciais, adquirem um valor semiótico concreto em cada uso, um sentido (... ) para além do que possam precisar nos limites convencionais do mesmo texto. O desenvolvimento interno da investigação semiológica conduz, por conseguinte, de um modo progressivo, da sintaxe à semântica e desta à pragmática enquanto consideração totalizadora de todos os aspectos do uso do signo nos processos semiósicos."8. 8 Naves María del Carmen Bobes, La Semiología, Madrid: Síntesis, p. 97. 51 José Diniz de Moraes Assim como as regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos e as regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos, assim as regras pragmáticas estabelecem as condições nos intérpretes em que algo se torna um signo. Isto é, o estabelecimento das condições em que os termos são utilizados, na medida em que não podem ser formuladas em termos de regras sintácticas e semânticas, constituem as regras pragmáticas para os termos em questão.9 Efectivamente, o emprego, por exemplo, da interjeição 'Oh!', da ordem 'Vem cá?, do termo valorativo 'Felizmente', é regido por regras pragmáticas. O estabelecimento da regra pragmática permite traçar a fronteira entre o uso e o abuso dos signos. Qualquer signo produzido e usado por um intérprete pode também servir para obter informações sobre esse intérprete. Tanto a psicanálise, como o pragmatismo ou a sociologia do conhecimento interessam-se pelos signos devido ao valor de diagnose individual e social que a produção e a utilização dos signos permite. O psicanalista interessase pelos sonhos devido à luz que estes lançam sobre a alma do sonhador. Ele não se preocupa com a questão semântica dos sonhos, a sua possível verdade ou correspondência com a realidade. Aqui o signo exprime — mas não denota! — o seu próprio interpretante. Graças ao carácter diagnóstico da utilização dos signos, é possível e é "perfeitamente legítimo para certos fins utilizar signos simplesmente em ordem a produzir certos processos de interpretação, independentemente de haver ou não objectos denotados pelos signos ou mesmo de as combinações de signos serem ou não formalmente possíveis relativamente às regras de formação e transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são normalmente utilizados"10. Os signos podem ser usados para condicionar comportamentos e acções tanto próprios como alheios. Ordens, petições, exortações, etc., constituem casos em que os signos são usados sobretudo numa função pragmática. "Para fins estéticos e práticos o uso efectivo dos signos pode requerer vastas alterações ao uso mais efectivo dos mesmos veículos sígnicos para fins científicos. (... ) o uso do veículo sígnico varia com o fim a que se 9 10 Cf. Morris, ibidem, p. 25. Ibidem, p. 27. 52 Apostila de Semiótica Jurídica presta"11. O abuso dos signos verifica-se quando são usados de modo a darem uma aparência que efectivamente não têm. O abuso toma usualmente a forma de mascaramento dos verdadeiros objectivos visados com a utilização dos signos. Um exemplo de abuso dos signos é o caso em que para obter certo objectivo se dão aos signos usados as características de proposições com dimensão sintáctica e semântica, de modo a parecerem ter sido demonstrados racionalmente ou verificados empiricamente, quando efectivamente o não foram. Morris considera que se trata de um abuso da doutrina pragmatista identificar verdade com utilidade. "Uma justificação peculiarmente intelectualista de desonestidade no uso dos signos consiste em negar que a verdade tenha outro componente para além do pragmático, de jeito que qualquer signo que se preste aos interesses do utilizador é considerado verdadeiro"12. Trata-se de um abuso pois que a verdade é um termo semiótico e não pode ser encarado na perspectiva de uma única dimensão. "Aqueles que gostariam de acreditar que 'verdade' é um termo estritamente pragmático remetem frequentemente para os pragmatistas em apoio da sua opinião, e naturalmente não reparam (ou não percebem) que o pragmatismo enquanto uma continuação do empirismo é uma generalização do método científico para fins filosóficos e que não poderia afirmar que os factores no uso comum do termo 'verdade', para os quais se tem vindo a chamar a atenção, aniquilariam factores reconhecidos anteriormente".13 Capítulo 6 - Os Actos de Fala. A Linguagem como Acção Com as palavras não se dizem apenas coisas, também se fazem coisas. Fazem-se promessas, afirmações, avisos. É nisso que reside a força ilocucional da língua, na terminologia de J. L. Austin. "I do things, in saying something. (...) the locutionary act has a meaning 11 Ibidem, p. 28. Ibidem. 13 Ibidem. 12 53 José Diniz de Moraes — the illocutionary act has a certain force in saying something."14. Que é a força ilocucional, isto é, a capacidade de fazer coisas com a língua? Para se dar uma resposta, há que fazer a distinção austiniana entre constatativos e performativos. Constatativos são todas aquelas afirmações que verificam, apuram, constatam algo: "A mesa é verde", "sinto-me cansado", "O João é mais alto que o Pedro", "Deus está nos céus". São afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Por sua vez, os performativos não descrevem, não relatam, não constatam nada, não são verdadeiros nem falsos, eles fazem algo ou então são parte de uma acção. O noivo que diz: "Eu, fulano tal, aceito-te, fulana tal, como minha legítima esposa"na cerimónia do casamento, não narra coisa alguma, ele está pura e simplesmente a fazer uma coisa: a casar-se com a fulana tal. E não se casa, se não disser (fizer) isso. O acto de fala, o fazer falando, tem assim uma determinada força: a força ilocucional. Mas uma acto de fala, enquanto acção, pode resultar ou não resultar. Um acto de fala resulta quando entre o elocutor e o ouvinte se estabelece uma relação, justamente a visada pelo elocutor, e o ouvinte entende e aceita o que o elocutor lhe diz. Para que os performativos tenham lugar há que satisfazer certas condições. Austin enumera justamente seis regras que têm de ser seguidas por quem pretenda realizar actos de fala. Em primeiro lugar, tem de haver um procedimento convencional, geralmente aceite, com um certo efeito convencional, em que esse procedimento inclui o uso de certas palavras por determinadas pessoas em determinadas circunstâncias. Segundo, as pessoas e as circunstâncias específicas num dado caso têm de ser apropriadas para invocar o procedimento específico invocado. Terceiro, todos os intervenientes têm de cumprir o procedimento correctamente. Quarto, têm de o cumprir completamente. Quinto, nos procedimentos para cujo cumprimento as pessoas têm de ter determinados pensamentos ou sentimentos, então as pessoas envolvidas têm de ter efectivamente esses pensamentos ou sentimentos e agir de acordo com eles.15 Sexto, os intervenientes têm de agir também posteriormente de acordo com eles. Se uma das 14 15 Austin, How to do things with words, Oxford University Press, 1986, p. 121. Ibidem, p. 14-15. 54 Apostila de Semiótica Jurídica condições não for satisfeita, então o acto de fala não se realiza. Austin chama ao insucesso dos actos de fala infelicidades. As infelicidades, porém, não são todas idênticas. Quando resultam do incumprimento às primeiras quatro condições ou regras, chamam-se falhas (misfires), quando são infracções às duas últimas regras são designadas por abusos. Exemplos de infracções a estas regras ajudam a compreendêlas.16 Uma infracção relativa à primeira regra ocorre quando, por exemplo, alguém desafia para um duelo um habitante de um país onde a instituição do duelo é totalmente desconhecida. Uma infracção à segunda regra ocorre quando uma pessoa dá uma ordem a outra, sem contudo estar investido (em geral ou numa determinada situação) de autoridade para o fazer. Infracções à terceira e quarta regras ocorrem principalmente no direito, porque aí se exigem determinados rituais ou formas rigorosas. Na vida do dia a dia estes casos são habitualmente ignorados, na medida do possível. Porém, pode-se dizer que há uma infracção à regra três quando, por exemplo, alguém "desmarca a actividade desportiva marcada para amanhã" sem indicar de que actividade desportiva se trata; ou se alguém "deixar em testamento a alguém uma casa", possuindo, no entanto, oito casas, e não indicando de que casa se trata. Uma infracção à quarta regra ocorre quando fulano diz a sicrano: "aposto contigo que...", mas sicrano não aceita a aposta. Vista de uma perspectiva jurídica, uma aposta é um contrato entre dois lados. O que aqui existe é apenas a proposta para se fazer um contrato, mas que não teve seguimento. O que é comum a todos estes tipos de infracções é o facto de o acto de fala intendido não chegar a ter lugar. Se qualquer uma das quatro primeiras regras não for cumprida, o acto de fala pura e simplesmente não chega a ter lugar. As infracções das últimas duas regras são de tipo bem diferente. O não cumprimento destas regras não implica só por si a não realização do acto de fala. Um exemplo típico de infracção a estas regras é uma promessa não cumprida. Se a pessoa A quando disse: "prometo-te que vou ter contigo ainda hoje" não tiver a intenção de ir lá, então existe uma infracção à quinta regra. Se A 16 Os exemplos que se seguem são extraídos da exposição que Wolfgang Stegmüller faz da teoria dos actos de fala de Austin; Hauptstrômungen der Gegenwartsphilosophie II, Stuttgart: Alfred Kroner Verlag, 1987 8, pp. 64 e ss. 55 José Diniz de Moraes tinha de facto a intenção de cumprir a promessa, mas mais tarde ter reconsiderado em contrário, então trata-se de uma infracção à última regra. Mas aqui importa salientar o seguinte: apesar das infracções a promessa foi feita. Mesmo que o promitente não tenha à partida a intenção de cumprir a promessa, ele faz na mesma promessa, unicamente a promessa não foi leal; se não cumprir o prometido, a promessa não deixa de ter sido feita, só que há um rompimento da promessa. Capítulo 7 - A Pragmática Universal de Jürgen Habermas17 7.1 A lógica dos enunciados A linguística de Saussure assenta na distinção entre língua e fala. Aliás, essa distinção é fundamental para toda a linguística estruturalista. Com efeito, esta ao demarcar a língua da fala, concebe a língua como um sistema de regras para a produção de frases, de tal modo que todos as frases bem formadas podem considerar-se elementos da língua. A língua é um sistema, com regras definidas, que compete à linguística apurar. A língua é o elemento social e essencial da linguagem. A fala, por seu lado, é o individual e acidental, onde é difícil, ou mesmo impossível, apurar regras ou descortinar um sistema. Desse modo, o estudo da língua terá uma unidade própria no âmbito lógico. A fala seria relegada para estudos empíricos, sobretudo de cariz psicológico. Habermas, todavia, considera tratar-se de um sofisma a ideia de que o sucesso da delimitação da análise linguística à língua signifique a impossibilidade de uma análise lógica da fala. A distinção língua/fala não deve relegar a dimensão pragmática da 17 Para esta exposição da pragmática universal servi-me do artigo de Habermas "Was heiBt Universalpragmatik?" in Karl-Otto Apel, org., Sprachpragma-tik und Philosophie, Frankfurt, Suhrkamp, 1982, pp. 174-272, limitando-me, por vezes, a uma simples paráfrase literal do texto habermasiano. Daí que não recorra a aspas para assinalar as citações do original. 56 Apostila de Semiótica Jurídica língua para as ciências empíricas, por exemplo, para a psicolinguística ou para a sociolinguística. A tese de Habermas é de que não só a língua, mas também a fala, portanto a utilização de frases em enunciados, é passível de uma análise lógica. Enquanto a linguística faz uma distinção entre língua e utilização da língua, procurando somente tematizar as unidades da língua, isto é, as frases, a teoria dos actos de fala procura tematizar as unidades da fala, isto é, os enunciados. Encontramos aqui a distinção entre frases e enunciados. Esta distinção ficará clara através de alguns exemplos: o mesmo enunciado pode ser feito com frases diferentes: posso enunciar o facto de João estar gordo com diferentes frases: "O João está mesmo gordo", "Que gordo está o João!", "Está gordo o João!"; por seu lado, a mesma frase pode servir para diferentes enunciados. Com a frase "É uma bela menina" tanto podemos fazer numa enunciação descritiva, como laudatória, ou até irónica. A mesma frase pode ser usada com sentidos completamente diferentes, dependendo isso do contexto em que é dita, ou seja, o uso que dela se faz. Ora o objectivo da análise linguística é a descrição explícita das regras que há que dominar para se poder produzir frases gramaticalmente correctas. A teoria dos actos de fala, por sua vez, procura descrever o sistema fundamental de regras de uma competência enunciativa, isto é, já não de construção de frases, mas sim da sua aplicação correcta em enunciados. Não basta saber construir frases correctas à luz da gramática, há que também saber enunciá-las e isso é algo de diferente. O que está em causa, portanto, são as condições de enunciação. Que condições são essas? Isto é, quais são as condições gerais de comunicação? Vamos ver que não basta a gramaticalidade de uma frase como condição da sua enunciação. Se L for uma língua natural e GL o sistema de regras gramaticais dessa língua, então qualquer cadeia de símbolos é considerada uma frase de L se tiver sido construída de acordo com as regras de GL. A gramaticalidade de uma frase significa, em termos pragmáticos, que a frase quando enunciada é compreensível a todos os ouvintes que dominam GL. Mas não basta uma frase ser compreensível, para ser um enunciado. Um enunciado tem também de ser verdadeiro, na medida em que diz algo acerca do mundo que percepcionamos, tem de ser sincero na medida em que 57 José Diniz de Moraes traduz o pensamento de quem o enuncia, e tem de estar correcto na medida em que se situa num contexto de expectativas sociais e culturais. A frase para o linguista apenas tem de obedecer às condições de compreensibilidade, ou seja, de gramaticalidade. No entanto, uma vez pronunciada, tem de ser vista pragmaticamente sob outros aspectos. Além da gramaticalidade, o falante tem ainda de ter em conta o seguinte: i) escolher a expressão de modo a descrever uma experiência ou um facto (satisfazendo determinadas condições de verdade) e para que o ouvinte possa partilhar o seu saber;exprimir as suas intenções de modo a que a expressão re-flicta o seu pensamento e para que o ouvinte possa confiar nele; ii) levar a cabo o acto de fala de modo que satisfaça normas aceites e para que o ouvinte possa estar de acordo com esses valores. Estas três funções pragmáticas, isto é, de com a ajuda de uma frase descrever algo, exprimir uma intenção e estabelecer uma relação entre o elocutor e o ouvinte, estão na base de todas as funções que um enunciado pode tomar em contextos particulares. A satisfação dessas funções tem como bitola as condições universais de verdade, sinceridade e correcção. Todo acto de fala pode, assim, ser analisado sob cada uma destas funções: i) uma teoria da frase elementar investiga o conteúdo proposicional do enunciado na perspectiva de uma análise lógico-semântica; ii) uma teoria da expressão intencional investiga o conteúdo intencional na perspectiva da relação entre subjectividade intersubjectividade linguística; e a teoria dos actos de fala investiga a força ilocucional na perspectiva de uma análise interactiva do estabelecimento de relações inter-pessoais. Podemos assim, distinguir teorias e respectivos âmbitos: Teoria Âmbito Linguística frases Frases de uma língua Gramática Regras de generação de 58 Apostila de Semiótica Jurídica frases em qualquer Teoria gramatical Aspectos análise Língua da Linguística Fonética sons da linguagem Sintaxe regras sintácticas Semântica unidades lexicais Pragmática actos de fala Pragmática empírica actos de fala típicos de certas situações Pragmática universal regras da colocação de frases emquaisquer actos de fala Aspectos análise Teoria elementar da da frase Pragmática universal actos da identificação e da predicação Teoria da expressão intencional expressão intenções Teoria ilocucionais estabelecimento relações interpessoais dos actos linguística de de 7.2 A dupla estrutura da fala Há muitos tipos de actos de fala: gritar "fogo!", celebrar um contrato, fazer um juramento, baptizar, etc. Mas a forma padrão de 59 José Diniz de Moraes um acto de fala é aquela em que encontramos no enunciado duas partes: uma ilocucional e outra proposicional. Tomem-se alguns exemplos para clarificar esta distinção: Peço-te que feches a porta/ Peço-te que abras a porta; Ordeno-te que feches a porta/ Ordeno-te que abras a porta. Pedir ou ordenar são a parte ilocucional — aliás essas são expressões tipicamente ilocucionais; o abrir a porta e o fechar a porta são a parte proposicional. Há uma certa independência entre estas duas partes: podem variar independentemente uma da outra. Tal independência permite uma combinatória de tipos de acção e conteúdos. Tome-se outro exemplo: "Afirmo que Pedro fuma cachimbo", "Peço-te Pedro para fumares cachimbo", Pergunto-te, Pedro, se fumas cachimbo?", "Aconselho-te, Pedro, a não fumares cachimbo". Ora como a afirmação, a petição, a pergunta e o conselho, podiam ter outros conteúdos proposicionais, há no acto de fala dois níveis comunicativos em que elocutor e ouvinte têm de se entender simultaneamente, caso queiram comunicar as suas intenções. Por um lado, o nível da subjectividade em que quem fala e quem ouve estabelecem relações mediante actos ilocucionais, relações que lhes permite entenderem-se; por outro lado, o nível das experiências e estados de coisas sobre os quais querem entender-se no nível intersubjectivo. Todo o enunciado pode ser analisado sob estes dois aspectos: o aspecto relacional, intersubjectivo, e o aspecto de conteúdo, sobre o qual se faz a comunicação. Correspondentemente, distinguimos dois tipos de compreensão: uma compreensão ilocucional e outra predicativa. A primeira tem a ver com o nível intersubjectivo do enunciado, a segunda com o nível proposicional, o nível das experiências. Ilocucionalmente compreendemos a tentativa de estabelecer uma relação interpessoal, predicativamente compreendemos o conteúdo proposicional de um enunciado. Exemplos destes dois tipos de compreensão são fáceis de encontrar: Alguém faz uma pergunta, mas não compreendemos o que é que pergunta. Isto é, entendemos que está a fazer uma pergunta, mas não deciframos o que está a perguntar. Um aluno apanhado distraído pela pergunta que o professor lhe faz oferece um caso comum de compreensão ilocucional em que não se compreende o conteúdo proposicional. Outras vezes é ao contrário, alguém falanos sobre determinado assunto, por exemplo: das suas dificuldades económicas, e ao fim perguntamo-nos: está a dar-me uma notícia, ou 60 Apostila de Semiótica Jurídica a pedir-me dinheiro? estes dois níveis de compreensão são, assim, não só distintos , como de certo modo independentes. 7.3 As consequências dos actos de fala para a semântica A distinção entre actos locucionais (constativos) e actos ilocucionais (performativos) traz importantes consequências à semântica (teoria do significado). Austin reservou o conceito de "meaning" para as frases de conteúdo proposicional e empregava para os actos ilocucionais a expressão "força". Assim, temos: meaning — sense and reference — locutionary act force — attempt to reach an uptake — illocutionary act É bom de ver que também as proposições ilocucionais têm um significado lexical. Há um significado comum a "pedir", seja em emprego proposicional "Ontem o João pediu ao António para fechar a porta", seja em emprego ilocucional "Peço-te que feches a porta". Mas não podemos reduzir a força de um enunciado ao seu significado linguístico, como se a força fosse apenas o significado lexical inserido em determinado contexto, isto é, como se a força fosse o conteúdo significativo que ganharia o conteúdo lexical ao ser utilizado nas estruturas enunciativas (de fala). Porém, é possível distinguir entre o significado de uma frase e o significado que a utilização dessa frase tem num enunciado. Podemos falar, em sentido pragmático, do significado de um enunciado, tal como em sentido linguístico do significado de uma frase. Assim, por exemplo, o que é um pedido em termos linguísticos pode ser uma ordem em sentido pragmático. Se o chefe disser à secretária: "Poderia fazer-me um café, se fizer o favor?", o significado linguístico é diferente do significado pragmático. Linguisticamente é um pedido, mas pragmaticamente trata-se de uma ordem. 7.4 Modos de comunicação Austin julgava poder fazer uma clara divisão entre constatativos e performativos. Os primeiros diriam alguma coisa e seriam verdadeiros ou falsos; os segundos fariam alguma coisa e teriam ou não sucesso. Porém, as investigações subsequentes a 61 José Diniz de Moraes Austin mostraram que também os constatativos têm uma parte ilocucional. Os actos locucionais de Austin foram substituídos a) por uma parte proposicional, que todo o enunciado explicitamente performativo tem, e b) por uma classe especial de actos ilocucionais, que implicam a exigência de verdade — os actos de fala constatativos. A inclusão dos constatativos nos actos de fala revela que a verdade é apenas uma de entre outros critérios de validade que o elocutor coloca ao ouvinte e que se propõe satisfazer. Um acto de fala implica sempre certas condições, isto é, faz sempre exigências de validade. As afirmações (os constatativos), tal como outros actos de fala (avisos, conselhos, ordens, promessas) só resultam quando estão satisfeitas duas condições: a) estar em ordem (to be in order); b) estar certas (to be right). Actos de fala podem estar em ordem relativamente a contextos delimitados (a), mas só em relação a uma exigência fundamental que o elocutor faz com o acto ilocucional é que podem ser válidos (estar certos, to be right) (b). Em que se distinguem as afirmações dos outros actos de fala? Não na sua dupla estrutura performativa e proposicional, também não pelas condições de contexto geral, que variam de modo típico em todos os actos de fala; distinguem-se por implicarem antes de mais um critério de validade: a pretensão de verdade. Outras classes de actos de fala também têm critérios de validade, mas é por vezes difícil dizer quais os critérios específicos. A razão é a seguinte: a verdade, enquanto critério de validade dos actos de fala constatativos, é de certo modo pressuposta por ac-tos de fala de qualquer tipo. A parte proposicional de qualquer performativo pode ser explicitada numa frase de conteúdo proposicional e, assim, tornar-se-á clara a pretensão de verdade que coloca. Conclusão: a verdade é um critério universal de verdade; essa universalidade reflecte-se na dupla estrutura da fala. Quanto aos dois níveis em que a comunicação se desenrola, a saber, o nível da intersubjectividade e o nível das experiências e estados de coisas, pode-se na fala acentuar mais um que o outro; dependendo dessa acentuação o uso interactivo ou o uso cognitivo da língua. No uso interactivo da língua tematizamos as relações que elocutor e ouvinte assumem, seja enquanto aviso, promessa, exigência, ao passo que apenas se menciona o conteúdo 62 Apostila de Semiótica Jurídica proposicional de enunciado; no uso cognitivo tematizamos o conteúdo do enunciado enquanto proposição sobre algo que ocorre no mundo, ao passo que a relação interpessoal é apenas mencionada. É assim que no uso cognitivo omitimos geralmente o "afirmo que...", "constato que...", "digo-te que...", etc. Pois que no uso cognitivo da linguagem tematiza-se o conteúdo, só se admitem nele actos de fala em que os conteúdos proposicionais podem tomar a forma de frases enunciativas. Com esses actos reivindica-se para a proposição afirmada a satisfação do critério de verdade. Por sua vez, no uso interactivo, que acentua a relação interpessoal, reportamo-nos de modos vários à validade da base normativa do acto de fala. Quer isto dizer que tal como no uso cognitivo da linguagem temos como critério de validade a verdade do que afirmamos, no uso interactivo temos também critérios de validade, só que doutro tipo. A força ilocucional do acto de fala, que cria entre os participantes uma relação interpessoal, é retirada da força vinculativa de reconhecidas normas de acção (ou de valoração); na medida em que o acto de fala é uma acção, actualiza um esquema já estabelecido de relações. É sempre pressuposto um conjunto normativo de instituições, papéis sociais, formas de vida socioculturais já habituais, isto é, convenções. Um acto de fala realiza-se sempre na base de um conjunto de instituições, normas, convenções. Por exemplo, uma ordem, uma aposta, etc., implicam um certo número de condições para que se possam realizar. Para apostar, por exemplo, pressupõe-se que se aposta a alguma coisa acerca de algo sobre o qual os dois apostantes têm pontos de vista diferentes. Mas não só os actos de fala institucionais (cumprimentar, apostar, baptizar, etc.) pressupõem uma determinada norma (regras) de acção. Também em promessas, proibições, e prescrições, que não se encontram reguladas à partida por instituições, o elocutor coloca uma pretensão de validade que, caso queira que o acto de fala resulte, deverá ser legitimada por normas existentes, e isso quer dizer: pelo menos, pelo reconhecimento fáctico da pretensão, de que essas normas têm razão de ser. Ora tal como no uso cognitivo da linguagem a pretensão de verdade é posta, assim também este conjunto de normas é pressuposto como condição de validade no uso interactivo da linguagem. Ainda outro paralelismo: Tal como no uso cognitivo apenas são admitidos actos de fala constatativos, assim também no uso interactivo apenas são aceites os actos de fala que caracterizam 63 José Diniz de Moraes uma determinada relação que elocutor e ouvinte podem assumir relativamente a normas de acção ou de valoração. Habermas. chama a estes actos de fala "regulativos". Com a força ilocucional dos actos de fala, o critério de validade normativa — correcção ou adequação — encontra-se alicerçada tão universalmente nas estruturas da fala como a pretensão de verdade. Contudo, só em actos de fala regulativos é que essa exigência de um fundo normativo é invocada explicitamente. A pretensão de verdade do conteúdo proposicional desses actos fica apenas implícita. Nos actos constatativos é exactamente o inverso: a pretensão de verdade é explícita e a pretensão de normatividade é implícita. Daqui segue-se: no uso cognitivo da linguagem tematizamos mediante constatativos o conteúdo proposicional de um enunciado; no uso interactivo da linguagem tematizamos mediante actos de fala regulativos o tipo de relação interpessoal estabelecida; a diferente tematização resulta da escolha de uma das pretensões colocadas pela fala, no uso cognitivo a reivindicação de verdade, no uso regulativo a reivindicação de um fundo normativo. Uma terceira reivindicação que a fala faz e que marca o uso expressivo da linguagem é a da veracidade. A veracidade é a reivindicação que o elocutor faz ao exprimir as suas intenções. A veracidade garante a transparência de uma subjectividade que se expõe linguisticamente. Paradigmas do uso expressivo da linguagem são frases como: "tenho saudades tuas", "gostaria...", "tenho a dizer-te que... "etc. Também a exigência de veracidade é uma implicação universal da fala. Obtemos, assim, o seguinte esquema: Modos de Tipos de actos comunicaçã de fala o cognitivo constatativo interactivo regulativo 64 Tema conteúdo proposiciona l relação Pretensões de validade verdade adequação, Apostila de Semiótica Jurídica interpessoal expressivo representativo intenção correcção veracidade do elocutor 7.5 O fundamento racional da força ilocucional Em que consiste a força ilocucional de um enunciado? Antes de mais, sabemos quais os seus resultados: o estabelecimento de uma relação interpessoal. Com o acto ilocucional, o elocutor faz uma proposta que pode ser aceite ou rejeitada. Em que casos é essa proposta inaceitável (não por motivos contingentes)? Aqui interessa examinar os casos em que é o elocutor o culpado do insucesso dos seus actos, da inaceitabilidade das suas propostas. Portanto, quais são os critérios de aceitabilidade de qualquer proposta ilocucional? Austin estudou as infelicities e misfires, quando há infracções às regras vigentes que regem as instituições (casamento, aposta, etc.). Contudo, a força específica dos actos ilocucionais não se pode explicar através dos contextos delimitados dos actos de fala. A regra essencial, a condição essencial, para o sucesso de um acto ilocucional consiste em o elocutor assumir um determinado empenho de modo a que o ouvinte possa confiar nele. Este empenho significa: que na sequência da proposta feita ao ouvinte, o elocutor se dispõe a cumprir os compromissos daí resultantes. Diferente do empenhamento é a sinceridade do empenhamento. O vínculo que o elocutor se dispõe a assumir ao realizar um acto ilocucional, constitui uma garantia de que ele, na sequência do seu enunciado, cumprirá determinadas condições, por exemplo: considerar que uma questão foi resolvida, ao receber uma resposta satisfatória, abandonar uma afirmação quando se descobre a sua não-verdade; aceitar um conselho se se encontrar na mesma situação do ouvinte. Portanto, pode-se dizer que a força ilocucional de um acto de fala aceitável consiste em poder levar o ouvinte a confiar nos deveres que o elocutor assume ao realizá-lo, isto é, nos deveres decorrentes do acto de fala. Elocutor e ouvinte colocam, com os seus actos ilocucionais, pretensões de validade e exigem o seu reconhecimento. Em última instância o elocutor pode agir ilocucionalmente 65 José Diniz de Moraes sobre o ouvinte e este, por sua vez, sobre o primeiro, justamente porque os deveres decorrentes dos actos de fala encontram-se vinculados a exigências de validade verificáveis cognitivamente, isto é, porque os laços recíprocos têm uma base racional. O elocutor empenhado associa o sentido específico, em que desejaria estabelecer uma relação interpessoal, normalmente com uma exigência de validade, realçada tematicamente, e escolhe então um determinado modo de comunicação. Daí que o conteúdo do empenhamento do elocutor seja determinado pelos dois factores seguintes: a) pelo sentido específico da relação interpessoal a estabelecer (pedido, ordem, promessa, etc.). b) pela exigência de validade universal, realçada tematicamente. Em diferentes actos de fala, o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência universal de validade, realçada tematicamente. Para os três usos da linguagem: cognitivo, interactivo e expressivo, temos três tipos específicos de deveres décorrentes da referência a uma exigência universal de validade: a) um dever de fundamentação no uso cognitivo. Os constatativos contêm a proposta de, se necessário, recorrer às fontes da experiência que estão na base da certeza do elocutor. b) um dever de justificação no uso interactivo. Os actos regulativos contêm a proposta de recorrer ao contexto normativo que está na base da convicção do elocutor. c) um dever de fiabilidade no uso expressivo, isto é, mostrar nas consequências ao nível do agir que o elocutor exprimiu exactamente a intenção que tinha efectivamente em mente. Resumindo: 1. Um acto de fala resulta, isto é, estabelece uma relação interpessoal que o elocutor pretende, se: é compreensível e aceitável e 66 Apostila de Semiótica Jurídica é aceite pelo ouvinte a aceitabilidade de um acto de fala depende, entre o mais, da satisfação de duas condições pragmáticas: a existência de um contexto delimitado típico ao acto de fala (preparatory rules). um reconhecível empenhamento do elocutor ao assumir deveres típicos aos actos de fala (sincerety rule). A força ilocucional de um acto de fala consiste em poder levar um ouvinte a agir sob a premissa de que o empenhamento do elocutor é sério; essa força pode o elocutor obtê-la, no caso do acto de fala institucionalmente vinculados, à força obrigatória de normas vigentes no caso de actos de fala não institucionalmente vinculados, criá-la ao induzir ao reconhecimento de exigências de validade. 4. elocutor e ouvinte podem influenciar-se reciprocamente no reconhecimento de exigências de validade, visto que o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência de validade, realçada tematicamente, e em que o elocutor a) com a pretensão de verdade aceita o dever de fundamentação; b) com a pretensão de correcção (adequação, justeza) o dever de justificação; c) com a pretensão de veracidade, o dever de fiabilidade. 7.6 Um modelo de comunicação linguística A língua é o meio pelo qual o elocutor e o ouvinte se demarcam do que os envolve. Antes de mais o sujeito demarca-se: a) de um meio ambiente, que pode ser objectivado da perspectiva proposicional de um observador, b) de um meio ambiente de que se dá conta na perspectiva de um participante, c) da sua própria subjectividade e, finalmente, d) do próprio meio que é a linguagem. Estes campos de realidade dos quais o sujeito se demarca são: a natureza exterior, a sociedade, a natureza interior e a língua. Natureza exterior é tudo o que pode ser afirmado explicitamente como conteúdo proposicional, isto é, como conteúdo de enunciados. "Objectividade" designa o modo como a realidade 67 José Diniz de Moraes objectivada surge na fala. "Verdade" é a pretensão que fazemos valer para uma proposição respectiva. A realidade social das normas de acção e de valores aparece na fala, através dos elementos ilocucionais dos actos de fala, como uma parte de realidade não objectivável. A natureza interior dos sujeitos participantes manifesta-se na fala, através das intenções do elocutor, como uma outra parte não objectivável da realidade. "Normatividade" e "subjectividade" designam o modo como respectivamente a sociedade não objectivável e a natureza interior aparecem na fala. Correcção é a pretensão que fazemos valer face à normatividade de um enunciado, veracidade é a pretensão que fazemos valer face à intenção expressa. Intersubjectividade designa a comunidade estabelecida, graças à compreensão de significados idênticos e ao reconhecimento de exigências universais, entre sujeitos capazes de falar e de agir. É possível, assim, traçar o seguinte quadro de modelo comunicacional que a seguir se apresenta: Quadro de Modelo Comunicacional Domínios da realidade Natureza exterior Sociedade Natureza interior Língua modos de referência à realidade objectividade pretensões implícitas funções dos actos de fala verdade apresentação normatividade Correcção, justeza Veracidade comunicação subjectividade Intersubjectividade Bibliografia 68 Compreensão expressão Apostila de Semiótica Jurídica AAVV, Encyclopedia of Communications, Oxford: Oxford University Press. AAVV, Enciclopédia Einaudi: 2. Linguagem-Enunciação, Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda. AAVV, Enciclopédia Einaudi: 11. Oral/Escrito, Argumentação, Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda. AAVV, Enciclopédia Einaudi 31. Signo, Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda. AGOSTINHO, Santo, 1991, "De Magistro"in Opúsculos Selectos de Filosofia Medieval, Braga: Faculdade de Filosofia. 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WOLF, Mauro, 1987, Teorias da Comunicação, Lisboa: Editorial Presença. 73 José Diniz de Moraes Texto 05 - Paulo de Barros Carvalho: Direito Tributário: Linguagem e Método) Capítulo 2 - NOÇÕES FUNDAMENTAIS PARA UMA TOMADA DE POSIÇÃO ANALÍTICA Sumário: 2. 1. Círculo de Viena - 2. 1. 1. O Neopositivismo lógico e o Círculo de Viena: aspectos gerais do movimento - 2. 1. 2. Como se formou o Círculo de Viena - antecedentes históricos precursores e fundadores - pessoas e obras que o influenciaram 2. 1. 3. Propostas e objetivos do Neopositivismo lógico. 2. 2. Língua e linguagem 2. 2. 1. Linguagem e signos do sistema - 2. 2. 2. Funções da linguagem - 2. 2. 3. Formas de linguagem - 2. 2. 4. Tipos de linguagem. 2. 3. Direito e Lógica - 2. 3. 1. A Lógica e seu objeto: “Lógica jurídica” e “Lógicas jurídicas” - 2. 3. 2. Generalização e formalização - 2. 3. 3. O domínio das estruturas lógicas - 2. 3. 4. Relações lógicas e relações entre os objetos da experiência - 2. 3. 5. A chamada Lógica formal e a metodologia 2. 3. 6. Valores lógicos da linguagem do direito positivo e seus modais. 2. 4. Proposição e linguagem: isolamento temático da proposição - 2. 4. 1. Linguagem formalizada e representação simbólica: as formas lógicas nas estruturas proposicionais - 2. 4. 2. As variáveis e as constantes da Lógica Proposicional Alética 2. 4. 3. Cálculo proposicional. 2. 5. Teoria das relações - 2. 5. 1. Simbolização: relações de primeira ordem e relações de segunda ordem - 2. 5. 2. As propriedades, as funções e as qualidades das relações -2. 5. 3. Sobre a relação de identidade - 2. 5. 4. Cálculo das relações - 2. 5. 5. Aplicação da teoria das relações. 2. 6. Teoria das classes - 2. 6. 1. Aplicabilidade prática: o sistema harmonizado de designação e de codificação de mercadorias, a nomenclatura brasileira e a tabela do imposto sobre produtos industrializados. 2. 7. O dever-ser como entidade relacional. 2. 8. Teoria da norma jurídica - 2. 8. 1. Ambiguidade do termo “norma jurídica” - 2. 8. 2. Estrutura lógica: análise da hipótese normativa - 2. 8. 3. Estrutura lógica da norma: análise do consequente - 2. 8. 4. Sistema jurídico como conjunto homogêneo de enunciados deônticos - 2. 8. 5. O conceito de “norma completa”: norma primária e norma secundária - 2. 8. 6. Espécies 74 Apostila de Semiótica Jurídica normativas. 2.1. CÍRCULO DE VIENA 2.1.1. O Neopositivismo lógico e o Círculo de Viena: aspectos gerais do movimento Neopositivismo Lógico ou, simplesmente, Positivismo Lógico além de Filosofia Analítica, Empirismo Contemporâneo ou Empirismo Lógico - são os nomes pelos quais dá a conhecer uma corrente do pensamento humano que adquiriu corpo e expressividade em Viena, na segunda década do século XX, quando filósofos e cientistas se encontravam, sistematicamente, para discutir problemas relativos à natureza do conhecimento científico. Tratavam, portanto, de Filosofia das Ciências, mais preocupados, porém, com uma Epistemologia Geral, na medida em que cada um dos participantes lá estava movido pelos interesses específicos do seu campo de indagações. O grupo era heterogêneo, reunindo filósofos, físicos, sociólogos, matemáticos, psicólogos, lógicos, juristas (Kelsen esteve presente em alguns encontros), etc. Profundamente interessados nos fundamentos das respectivas Ciências, mantiveram intenso intercâmbio de ideias, num regime de cooperação intelectual poucas vezes registrado, circunstância que possibilitou uma série de conclusões tidas como válidas para os diversos setores do conhecimento. É daí que se pode falar de uma Epistemologia Geral, isto é, de uma teoria crítica voltada para o estudo e a análise dos conceitos básicos, dos princípios e dos objetivos do conhecimento científico em geral, bem como dos resultados de sua efetiva aplicação. Epistemologia, aliás, é termo mais restrito que Teoria Geral do Conhecimento ou Gnosiologia, pois seu foco temático não é o simples conhecimento (doxa = crença, opinião), mas o saber qualificado como científico (episteme = conhecimento científico + logos = estudo, pensamento, reflexão). A forte preocupação com os princípios básicos do saber científico ainda não é suficiente para caracterizar a índole desse movimento filosófico. De fato, tal tendência epistemológica revela uma redução do campo filosófico, uma vez que a Filosofia da Ciência não se esgota com as especulações a propósito do quadro de 75 José Diniz de Moraes possibilidades e das avaliações atinentes a Epistemologia. Vai mais além. Os neopositivistas lógicos reduziram também a Epistemologia à Semiótica, compreendida esta como teoria geral dos signos, abrangendo todo e qualquer sistema de comunicação, desde os mais singelos e primitivos até os sistemas linguísticos dos idiomas naturais e das linguagens formalizadas das Ciências. Agora, se levarmos em conta as duas mencionadas reduções (da Filosofia à Epistemologia e desta à Semiótica), poderemos entender a importância essencial que os adeptos do movimento atribuem à linguagem como o instrumento por excelência do saber científico. E, mais ainda, como a própria linguagem vai servir de modelo de controle dos conhecimentos por ela produzidos. Chegam, por isso, a proposições afirmativas como esta: compor um discurso científico é verter em linguagem rigorosa os dados do mundo, de tal sorte que ali onde não houver precisão linguística não poderá haver Ciência. Na verdade, perceberam os neopositivistas lógicos que a linguagem natural, com os defeitos que lhe são imanentes, como por exemplo a ambiguidade, jamais traduziria adequadamente os anseios cognoscitivos do ser humano, donde a necessidade de partir-se para a elaboração de linguagens artificiais, em que os termos imprecisos fossem substituídos por vocábulos novos, criados estipulativamente, ou se submetessem àquilo que Rudolf Carnap chamou de “processo de elucidação”. Esboçado genericamente, para efeito da primeira aproximação, eis o perfil do movimento conhecido por Neopositivismo Lógico. 2.1.2. Como se formou o Círculo de Viena - antecedentes históricos - precursores e fundadores - pessoas e obras que o influenciaram Desde os idos de 1907, Hans Hahn, Phillipp Frank e Otto Neurath encontravam-se, constantemente, num determinado café vienense, com o objetivo de trocar ideias a respeito de temas ligados à Filosofia da Ciência. Entretanto, foi com a vinda de Moritz Schlick para a capital austríaca, transferindo- se de Kiel, nomeado para ocupar a cátedra de Filosofia das Ciências Indutivas, que se pôde reconhecer, efetivamente, a gênese do chamado “Círculo de Viena”. Schlick obtivera o doutoramento em Berlim, com tese sobre Óptica teórica, orientado por Max Planck. Iniciou seu magistério em Viena em 1922, mas logo no ano seguinte coordenava um seminário, no 76 Apostila de Semiótica Jurídica seio do qual surgiu o famoso grupo de debates, integrado por filósofos e cientistas dos mais variados campos e dotados, todos eles, de inusitado interesse por temas epistemológicos, passando a reunir-se, com habitualidade, às senoites das quintas-feiras. Cumpre advertir que uma das características do Círculo era a atitude aberta e antidogmática existente nas discussões, em que todos se mostravam dispostos a submeter suas teses à crítica dos demais. Predominava, amplamente, o espírito de colaboração, suplantando qualquer tipo de participação competitiva. O ambiente refletia, sem dúvida alguma, a especialíssima personalidade de Schlick. Equilibrado e portador de um dinamismo propenso à conciliação, coordenava os encontros com extraordinária habilidade, incentivando a mútua cooperação entre os membros, mas, sempre que necessário, tolhendo os arroubos excessivos, para que tudo se mantivesse num plano de efetiva praticidade. Em 1929, Schlick esteve na Califórnia como professor convidado pela Universidade de Stanford durante a primavera e o verão. Ao ensejo de seu regresso a Viena, em agosto daquele mesmo ano, três membros do Círculo - Rudolf Carnap, Hans Hahn e Otto Neurath - redigiram um manifesto intitulado "O ponto de vista científico do Círculo de Viena", com o que pretenderam prestar justa homenagem ao pai do cenáculo vienense, dedicando-lhe o opúsculo. A divulgação desse trabalho e a realização do congresso internacional de Praga, no mesmo ano, deram larga e pública difusão ao movimento que ficou, assim, conhecido como "Círculo de Viena". O manifesto apresentava uma concepção científica do mundo, como algo a ser conquistado mediante uma série de medidas, entre elas: a) colocar a linguagem do saber contemporâneo sob rigorosas bases intersubjetivas; b) assumir uma orientação absolutamente humanista, reafirmando o velho princípio dos sofistas: o homem é a medida de todas as coisas; e c) deixar assentado que tanto a Teologia quanto a Filosofia não poderiam ostentar foros de genuína validade cognoscitiva, formando, no fundo, um aglomerado de pseudoproblemas. De tal concepção emergem dois atributos essenciais: 1º) todo o conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento empírico; e 2º) a reivindicação do método e da análise lógica da linguagem, como instrumento sistemático da reflexão filosófica. Este último aspecto dá originalidade ao movimento, em contraste com a tradição psicologizante da própria gnosologia empírico-positivista. Também faz parte do corpo do manifesto um exame dos fundamentos da Aritmética, da Física, da Geometria, da Biologia e da 77 José Diniz de Moraes Psicologia, apontando seus autores para a inconsistência de termos precariamente definidos, tais como alma, bem comum, espírito dos povos, enteléquia e muitos outros de cunho metafísico. No final, está declarado que a visão científica do mundo coloca-se a serviço da vida, propugnando por autênticas bases racionais para a existência associativa do homem, assim como para o próprio conhecimento humano. São muitos os nomes a que se reporta o manifesto vienense, na condição de precursores do Neopositivismo Lógico. Poremos em evidência, contudo, as figuras de David Hume, de Gottlob Frege e de Ernst Mach. O primeiro deles - David Hume18 (1711/1776) - empirista inglês, é conhecido como o pai espiritual do Positivismo Lógico, tendo afirmado que “(... ) o único fundamento sólido que podemos dar à ciência tem que residir na experiência e na observação”. Elaborou a distinção entre impressões e idéias, resumindo sua posição antimetafísica na obra Investigação sobre o entendimento humano. Foi o mesmo Hume que, no seu Tratado da natureza humana, tecendo observações sobre a moral, abriu espaço para que outros pensadores resumissem suas idéias, formulando o princípio: “é impossível deduzir uma proposição normativa de uma série de proposições descritivas e vice-versa”. Em outras palavras, do ser, não se chega ao dever-ser e do dever-ser, não se chega ao ser. Gottlob Frege (1848/1925) formulou a definição de número (1884), na obra As leis fundamentais da Aritmética, demonstrando que esta Ciência é redutível à Lógica. Além disso, antecipou-se à chamada concepção semântica da verdade, apresentada por Alfred Tarski e compôs o primeiro sistema completo de Lógica Formal. É sua também a distinção entre sentido e referência, acentuando que a busca da verdade é o que nos impele a avançar do sentido à referência. Por fim, Ernst Mach (1838/1916) era físico e, em sua principal obra, trata dos princípios da Mecânica (1883). Preocupado com as noções básicas de sua Ciência, refletiu profundamente sobre os alicerces filosóficos da Física. Produziu fortes argumentos 18 Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais, São Paulo, Imprensa Oficial/ UNESP, 2001. 78 Apostila de Semiótica Jurídica antimetafísicos, criticando o conceito de “coisa em si” como algo distinto de sua aparência (“Análise das Sensações”). Mach enfatizou um ponto muito importante para o Neopositivismo Lógico, qual seja, a imprescindível "unidade da ciência”, e regeu a cátedra de Filosofia das Ciências Indutivas, mais tarde ocupada por Moritz Schlick. Há coincidências acentuadas, igualmente, entre o ideário do Empirismo contemporâneo e o pensamento do lógico e matemático americano Charles Sanders Peirce (1839/1914). Todavia, melhor será firmarmos o nome daqueles três pensadores, cujas obras decididamente prepararam o advento do famoso “Círculo de Viena”. Por outro lado, não é difícil identificar os fundadores do movimento: Rudolf Camap, Hans Hahn e Otto Neurath, sob a coordenação indiscutível e brilhante de Moritz Schlick, de quem já falamos. Ludwing Wittgenstein não chegou a pertencer ao grupo, entretanto seu livro Tractatus logico-philosophicus influenciou diretamente os integrantes do movimento, havendo quem afirme que sem as idéias contidas nesses escritos, os neopositivistas jamais teriam alcançado os níveis de profundidade a que chegaram. Essa obra apareceu em 1922, com introdução de Bertrand Russel, e na proposição 5. 6 está dito que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Em comentário ligeiro, o Tractatus logico-philosophicus é marco decisivo na história do pensamento humano. Até Kant, a filosofia do ser; de Kant a Wittgenstein, a filosofia da consciência; e, de Wittgenstein aos nossos dias, a filosofia da linguagem, com o advento do “giro-linguístico” e de todas as implicações que se abriram para a teoria da comunicação. Não estou entre aqueles que tomam o Investigações Filosóficas como rejeição cabal do Tractatus, vendo nele a autonegação da obra revolucionária do extraordinário pensador. Prefiro conceber os “jogos de linguagem”, e tudo mais que está contido na segunda obra, como grande e corajosa revisão daquele impulso inicial que abalou as estruturas filosóficas tradicionais e que foi escrito em condições especialíssimas: nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Além do que, claro, longe de imaginar que as proposições do livro, cuidadosamente ordenadas, teriam resolvido todos os problemas essenciais da filosofia. Aliás, o texto permite várias e desconcertantes leituras: desde a que fizeram os neopositivistas lógicos, até aquelas, de cunho metafísico, que salientam o sentido ético do Tractatus, dando como exemplo a proposição pela qual o que não é dizível cientificamente é a parte 79 José Diniz de Moraes mais relevante, associada à ética e à religião. Há quem diga que Wittgenstein acreditasse, de maneira apaixonada, que tudo de importante na vida humana seria precisamente aquilo sobre o que devemos calar. Seja como for, interessa-me agora a asserção “falar uma linguagem faz parte de uma atividade ou de uma forma de vida”, uma das cláusulas fundamentais da obra tida como derradeira desse autor considerado como a expressão maior do seu tempo. A nova concepção, dando origem à filosofia da linguagem ordinária, provocou aquilo que veio a chamar-se “giro-linguístico”, movimento dentro do qual estamos imersos, cada vez com maior intensidade, segundo penso. Há divergências sobre a identificação de Wittgenstein com o Empirismo Lógico, postos os antagonismos que alguns apontam entre as linhas primordiais do pensamento neopositivista e algumas proposições do Tractatus. A despeito disso, porém, é notória a irradiação de sua influência entre os participantes do cenáculo vienense, tanto pela obra em si como por sua própria pessoa, por intermédio de Schlick. Penso que a referência a essas duas obras de Wittgenstein possa servir de marco para apontar a grande virada linguística que se deu nas concepções da linguagem e do homem em relação aos dados brutos do universo do sensível, que são o seu contorno. Ainda neste ponto, cito, concisamente, as ponderações de Sonia Mendes19, que bem elucidou esse movimento da filosofia da linguagem: “Do paradigma verificacional que vinha dominando a filosofia da linguagem desde Frege, passou-se para o paradigma comunicacional. Essa mudança de perspectiva no estudo da linguagem tomou-se conhecida como giro linguístico-pragmático. ” E continua: “Tractatus logico-philosophicus e Investigações filosóficas, não apenas são referências desses dois momentos da filosofia da linguagem, como também nos permitem observar o giro linguístico-pragmático sob a ótica do mesmo filósofo. Como exposto anteriormente, no Tractatus, WITTGENSTEIN entende que a linguagem tem como função representar o mundo e, como examinaremos posteriormente, em Investigações filosóficas, o filósofo afirma o caráter comunicacional da 19 A validade jurídica pré e pós giro linguístico, São Paulo, Noeses, 2007, p. 55. 80 Apostila de Semiótica Jurídica linguagem. 20” 2. 1. 3. Propostas e objetivos do Neopositivismo lógico As reivindicações substanciais do Neopositivismo Lógico foram expostas e discutidas, no seu tempo, com suficiente clareza. Não fora isso, contudo, e a luz projetada pela análise histórica serviria para isolar os tópicos principais que essa tendência do pensamento filosófico quis ver consagrados. Falemos aqui dos mais relevantes, lembrando que na primeira parte, ao tratarmos da natureza do movimento, ficou patente que o Neopositivismo Lógico encarece sobremaneira a linguagem como instrumento do saber científico e, mais do que isso, como meio de controle daqueles mesmos conhecimentos. Ora, fazendo convergir para a linguagem todas as atenções, perceberam a necessidade premente da construção de modelos artificiais para a comunicação científica, assim entendidas as linguagens naturais purificadas pela substituição de vocábulos que, por uma ou outra razão, obscureciam a explicação ou a compreensão do objeto. O discurso científico, desse modo aperfeiçoado, estaria apto para proporcionar uma visão rigorosa e sistemática do mundo. Os recursos semióticos permitiram a análise das três dimensões que a linguagem apresenta21. Os neopositivistas lógicos, na procura da depuração discursiva, outorgam uma importância muito grande à sintaxe e à semântica, em detrimento do ângulo pragmático. Ao conceber uma linguagem ideal para as ciências, construíram um paradigma linguístico empobrecido no plano pragmático, ainda que bastante rigoroso nos planos sintático e semântico. De fato, o respeito às regras sintáticas é um pressuposto inafastável para o sentido do enunciado. Não basta a justaposição de vocábulos conhecidos para que a mensagem tenha significação. É necessário que estejam dispostos segundo certa ordem. Se dissermos: “todavia quando e retoma”, ninguém certamente compreenderá o que foi transmitido, porque a disposição das 20 A validade jurídica pré e pós giro linguístico, cit., p. 55. 21 Não custa recordá-las: a) o sintático, em que os signos linguísticos são examinados nas suas relações mútuas, isto é, signos com signos; b) o semântico, que se ocupa da relação do signo com o objeto que ele representa; e c) o pragmático, em que os signos são vistos na relação que mantêm com os utentes da linguagem. 81 José Diniz de Moraes palavras não obedece às normas sintáticas da formação de frases, em língua portuguesa. Se, porém, o arranjo estiver adequadamente composto, há possibilidade de entender-se o que foi comunicado. Diremos, portanto, que tem sentido. Mas, a validade sintática, ainda que permita o sentido, não chega a garantir o conteúdo de verdade do enunciado. Estamos, aqui, em pleno campo semântico, isto é, no domínio da relação das palavras e expressões com as realidades interiores ou exteriores que elas denotam. Havendo a ponte entre o suporte material dos signos e os objetos significados, surge o valor de verdade, como atributo do enunciado. Desse modo, a frase “choveu na cidade de Olinda, no dia 03 de junho de 1980”, além de ter sentido, pois está bem formada sintaticamente, pode ser verdadeira ou falsa, dependendo da cuidadosa certificação que fizermos. Se o fato for confirmado, mediante informações colhidas em fonte credenciada, aquele enunciado adquirirá o valor de verdade. Caso contrário, será falso. Note-se que é a verificabilidade o critério tomado para sabermos da verdade ou falsidade dos enunciados descritivos de situações objetivas. Com tais anotações, já podemos expor um importante traço da concepção neopositivista, que não só exige a boa formação da sintaxe frásica, como também declara que os enunciados inverificáveis não poderão integrar o discurso científico. Este há de abranger, única e exclusivamente, enunciados verdadeiros, assim considerados por serem passíveis de comprovação efetiva. Advém daí o postulado: um enunciado terá sentido semântico se puder ser empiricamente verificável. Esta firme e radical postura epistemológica afasta, desde logo, os enunciados metafísicos dos quadros do saber científico, que estaria circunscrito aos limites do factual, do tangível, vale dizer, daquele campo de objetos que podem ser recolhidos por nossa intuição sensível e demonstrados experimentalmente. As proposições metafísicas, por insusceptíveis de experimentação, não chegavam a adquirir status científico e, para o pensamento do “Círculo de Viena”, sequer poderiam ser chamadas de “proposições”. A carência de sentido relegava-as à condição de pseudoproposições. Com isso, os neopositivistas lógicos acolhiam duas teses dos Tractatus de Wittgenstein, quais sejam: a) os enunciados factuais têm sentido apenas e tão-só quando puderem ser verificados empiricamente; e b) existem enunciados não verificados empiricamente, mas que têm sentido e são verdadeiros ou falsos 82 Apostila de Semiótica Jurídica consoante os próprios termos que os compõem. São as tautologias, que nada afirmam a respeito da realidade. A Lógica e a Matemática estudam essa figura, podendo dizer-se que ambas se estruturam como verdadeiros conjuntos de tautologias. A condição semântica de sentido, que repousa no teor de verdade do enunciado, é uma tese central para os empiristas contemporâneos. Ao lado disso, a confluência de todos os enunciados para o mesmo campo temático permite a demarcação da região objetiva de que se vai ocupar determinada Ciência, outorgando-lhe foros de unidade. Um discurso científico estaria assim caracterizado pela existência de um feixe de proposições linguísticas, relacionadas entre si por leis lógicas e unitariamente consideradas em função de convergirem para um único domínio, o que dá aos enunciados um critério de significação objetiva. A título de complementação deste breve estudo sobre Positivismo Lógico, cumpre lembrar que a corrente de pensamento que reduz a Filosofia à análise da linguagem bifurca-se, dando origem à vertente que se dirige à análise da linguagem científica Neopositivismo Lógico — bem como àquela que toma por objeto a linguagem comum. Esta última é conhecida como “Filosofia da Linguagem Ordinária” e tem como ponto de partida a segunda obra de Wittgenstein - Investigações filosóficas - que já circulara na Inglaterra, influenciando um grupo de pensadores, antes mesmo de sua publicação, que ocorreu em 1953. Alfredo Ayer é expressão dessa diretriz. A Filosofia da Linguagem Ordinária, não operando com modelos artificiais, preserva toda a riqueza do ângulo pragmático, que é inerente às linguagens naturais. Todavia, como ressaltou Bertrand Russel, seus excessos muitas vezes comprometem por inteiro as vantagens que, porventura, possa apresentar com relação à corrente da linguagem científica. 2. 2. LÍNGUA E LINGUAGEM É dentro daquelas ideologias adotadas pelo Neopositivismo que se propõe uma visão mais rigorosa da realidade e do mundo jurídico, tomando a linguagem como modo de aquisição do saber científico, aplicada por meio de mecanismos lógicos, na construção de modelos artificiais para a comunicação científica. Entre outras acepções, tomemos língua como sistema de signos, em vigor numa determinada comunidade social, cumprindo o 83 José Diniz de Moraes papel de instrumento de comunicação entre seus membros. A palavra está aqui com o sentido de idioma, como o português, o francês, o inglês, etc., se bem que os homens se comuniquem por meio de inúmeros códigos; assim, por exemplo, a expressão corporal e, dentro dela, a mímica, a linguagem do olhar e tudo aquilo que, com sua postura, o ente racional pode transmitir a seus semelhantes. A língua, portanto, é apenas um dos sistemas sígnicos que se presta a fins comunicacionais. O vestuário, o mobiliário, a culinária, a arquitetura, a música, as artes plásticas são também códigos e, no quadro de seus limites, deles se aproveitam as criaturas humanas para estabelecer interações do mesmo tipo. Deixemos de lado, porém, essas manifestações que o homem histórico construiu e fiquemos tão-só com as estruturas idiomáticas, sistemas que melhor atendem aos contatos intersubjetivos, como mecanismos fecundos de intercâmbio de informações, da transmissão de notícias e conhecimentos, de ordens e de sentimentos, de sugestões, da formulação de perguntas, da própria realização de fatos importantes para a sociedade, bem como para a aproximação inicial das pessoas no convívio diário. É imperioso que fixemos um ponto de apoio para situarmos, devidamente, a temática da língua enquanto sistema convencional de signos (no mais das vezes imotivados) e que se mostra resistente a tentativas isoladas de modificação por parte dos indivíduos, assumindo, por isso mesmo, o caráter de uma autêntica instituição social. Essa plataforma está representada pela linguagem, na sua natureza multiforme e heteróclita, como bem salientou Ferdinand de Saussure22, participando, a um só tempo, do mundo físico, do fisiológico e do psíquico, da índole pessoal de cada um e do seu contorno social. É na confluência de fatores compositivos tão distintos que se opera o corte metodológico mediante o qual surgirá aquele sistema sígnico alheio à matéria de que são feitos os sinais que o integram: eis a língua que Saussure opôs à fala. Consiste esta última num ato individual de seleção e de atualização, em face da primeira, que é instituição e sistema: o tesouro depositado pela prática da fala nos indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade. Atreladas num processo dialético, não pode haver língua sem fala, e a recíproca é verdadeira. A dicotomia língua/ fala, que Hjelmslev prefere substituir por esquema/uso e Jakobson por 22 Curso de linguística geral, São Paulo, Cultrix, 1975, p. 17. 84 Apostila de Semiótica Jurídica código/mensagem, é de grande relevância para a compreensão do assunto de que tratamos, de tal modo que podemos aceitar a proposição afirmativa segundo a qual a língua é, praticamente, a linguagem menos a fala, com o que R. Barthes23 nos indica a forma de abstração que permite alcançar o conceito de língua. Noções correlatas, linguagem, língua e fala são indissociáveis. Nenhuma delas poderá ser estudada, com profundidade, se não atinarmos para o esquema dialético que as aproxima. Sendo assim, da mesma maneira como pusemos em evidência a ideia de língua, como resultado da subtração, em que retiramos a fala da linguagem, nada custa reconstruir os conceitos, para recuperar a noção de linguagem e, em seguida, abstrair as ideias de língua e de fala. Linguagem, aliás, é a palavra mais abrangente, significando a capacidade do ser humano para comunicar-se por intermédio de signos cujo conjunto sistematizado é a língua. Sua análise se irradia por terrenos diversos, consoante os tipos de relações que estabelece: com o sujeito (psicolinguística); com a sociedade (sociolinguística); com a língua, enquanto sistema organizado de signos, ingressando aqui todos aqueles domínios que a Linguística recobre, tendo como proposta fundamental o estudo científico da linguagem. De agora em diante, sem nos afastar do plano da língua, no qual estudaremos mais detidamente os signos, depositemos nossa atenção nos modos pelos quais os seres utilizam a estrutura da língua no contexto comunicacional. Vai interessar-nos, a contar deste momento, as maneiras de emprego dos códigos idiomáticos, circunstância que determina o aparecimento de muitas linguagens, em decorrência de uma só língua. Neste sentido, vê-se, ocorre a confusão entre essa linguagem que mencionamos e a fala, segundo as categorias de Saussure. Para os objetivos do presente texto, usaremos linguagem em vez de fala, aproveitando ressaltar a extraordinária importância de que se reveste o estudo da linguagem nos tempos atuais, especialmente no que tange ao conhecimento “científico”, como já explicitamos no apanhado histórico a que me referi em item anterior. Vale recordar, a este respeito, a proposição 5. 6, do Tractatus logico-philosophicus, de L. Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”. Ou a afirmação categórica de Tercio Sampaio Ferraz Jr. 24: “A 23 Elementos de semiologia, São Paulo, Cultrix, 1993, p. 17. 24 Introdução ao estudo do direito, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 245. 85 José Diniz de Moraes realidade, o mundo real, não é um dado, mas uma articulação linguística mais ou menos num contexto social”. E, páginas depois: “Fato não é, pois, algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação existencial como realidade”25. 2.2.1. Linguagem e signos do sistema O falar em linguagem remete o pensamento, forçosamente, para o sentido de outro vocábulo: o signo. Como unidade de um sistema que permite a comunicação inter-humana, signo é um ente que tem o status lógico de relação. Nele, um suporte físico se associa a um significado e a uma significação, para aplicarmos a terminologia husserliana. O suporte físico da linguagem idiomática é a palavra falada (ondas sonoras, que são matéria, provocadas pela movimentação de nossas cordas vocais no aparelho fonético) ou a palavra escrita (depósito de tinta no papel ou de giz na lousa). Esse dado, que integra a relação sígnica, como o próprio nome indica, tem natureza física, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou interior, da existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, ideia ou conceito, que chamamos de “significação”. É necessário advertir que impera abundante descompasso entre os autores a respeito das denominações atribuídas a cada qual dos pontos desse triângulo, começando por aqueles que consideram o signo no seio de uma relação meramente bifásica ou bilateral26. De fato, se percorrermos os livros que se aprofundam na temática dos signos, vamos encontrar a mais variada terminologia. Umberto Eco27 utiliza significante para designar o suporte físico, significado para a significação e referente para o significado. Expõe, ainda, o nome que outros estudiosos adotam, como, por exemplo, Peirce, para quem signo é o suporte físico; interpretante, a significação; e o objeto, o significado. Morris, de sua parte, elegeu veículo sígnico no lugar de 25 Idem, ibidem, p. 253. 26 Carnap: indicador e indicado; Saussure: significante e significado. 27 O signo, 3ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 1985. 86 Apostila de Semiótica Jurídica suporte físico, designatum ou significatum em vez de significação e denotatum para aludir ao significado. É sensível a divergência entre os termos usados pela doutrina especializada, circunstância que não chega a obscurecer ou dificultar a compreensão do assunto. Estabeleçamos, contudo, num pacto semântico, a adoção das palavras de que se serve Edmund Husserl: suporte físico, significação e significado, prosseguindo no caminho que nos propusemos percorrer. Um exemplo, porém, terá o condão de consolidar a ideia de signo como relação triádica. A palavra manga (fruta) é o suporte físico (porção de tinta gravada no papel). Refere-se a uma realidade do mundo exterior que todos conhecemos: uma espécie de fruta, que é seu significado. E faz surgir em nossa mente o conceito de manga, variável de pessoa para pessoa, na dependência de fatores psíquicos ligados à experiência de vida de cada um. Para aqueles que apreciarem essa fruta, certamente que sua imagem será de um alimento apetitoso, suculento. Para os que dela não gostarem, a ideia será desfavorável, aparecendo a representação com aspectos bem diferentes. Trata-se da significação. A classificação dos signos gera, também, intensas polêmicas. Uma das mais difundidas, que examina a entidade segundo o tipo de associação mantida entre o suporte físico e o significado, exposta por Charles S. Peirce, distingue o gênero signo em três espécies: índice, ícone e símbolo. índice é o signo que mantém conexão física com o objeto que indica. Nuvens carregadas, que se avolumam no céu, aparecem como índice de chuva. Os sintomas patológicos que os homens manifestam nada mais são do que índices das várias enfermidades. Examinado o paciente, verificando o médico que nele ocorrem alguns sintomas, interpreta esses índices como significativos da presença de um mal, substituindo-os, então, pelo nome técnico que as ciências médicas artificialmente criaram: sinusite, hepatite, laringite, gastrite, etc. Veremos depois que tais palavras são signos da linguagem médica. O ícone, por sua vez, procura reproduzir, de algum modo, o objeto a que se refere, oferecendo traços de semelhança ou refletindo atributos que estão no objeto significado. Os desenhos figurativos, as próprias caricaturas, os bustos esculpidos ou entalhados, todos e muitos 87 José Diniz de Moraes outros, são exemplos de signos icônicos. Já o símbolo é um signo arbitrariamente construído, não guardando, em princípio, qualquer ligação com o objeto do mundo que ele significa. Aceitos por convenção, os símbolos são largamente utilizados nos mais diferentes códigos de comunicação. Deles não pode haver melhor exemplo do que as palavras de um determinado idioma. O vocábulo casa nada sugere, considerado em si mesmo, a respeito da entidade real que menciona. É produto de convenção, formada num processo evolutivo que a gramática histórica pode em parte explicar, se bem que a escolha propriamente dita, no seu modo primitivo de existir, continue sendo ato arbitrário. São exemplos de símbolo, em linguagens não idiomáticas, a bandeira branca, que exprime o pedido de paz; a cruz, expressão viva do cristianismo; os emblemas, brasões, distintivos e tudo aquilo que representa pessoas, famílias, clubes, países, instituições, etc. A Semiologia, como Ciência que estuda a vida dos signos no seio da sociedade, foi apresentada por Ferdinand de Saussure e voltou-se mais para a linguagem verbal, uma vez que o autor era linguista. Todavia, o projeto foi concebido para a pesquisa de todo e qualquer sistema sígnico. Quase simultaneamente, Charles Sanders Peirce, filósofo americano, fundava a Semiótica como disciplina independente, tendo por objeto, também, os signos dos mais variados sistemas. De caráter mais acentuadamente filosófica, a teoria de Peirce teve, desde o início, o mesmo campo objetai que a Semiologia de Saussure, razão por que a maioria dos autores emprega os dois nomes como sinônimos para designar a teoria geral dos signos28. Peirce e outro americano - Charles Morris29 - distinguem três Durante anos, Semiótica, empregada por Charles Sanders Peirce, e Semiologia, utilizada por Ferdinand de Saussure, eram termos usados para designar a teoria geral dos signos. Ambos autores viveram no final do século XIX e início do século XX, portanto, foram contemporâneos. Por outro lado, contudo, não chegaram a manter contato e desenvolveram as respectivas teorias paralelamente. Só com Roman Jakobson, em 1974, em Milão, na abertura do primeiro congresso da Associação Internacional de Estudos Semióticos que se definiu a semiótica como ciência geral dos signos. Foi quando com seu On language, publicado em Cambridge, pela Universidade de Harvard, firmou: “Language as one of the sign systems and linguistics as the science of verbal signs, is but a part of semiotics, the general science of signs which was forseen, named and delineated in John Locke’s essay... ”. 29 Signos, lenguaje y conducta, Buenos Aires, Losada, 1962. 28 88 Apostila de Semiótica Jurídica planos na investigação dos sistemas sígnicos: o sintático, em que se estudam as relações dos signos entre si, isto é, signo com signo; o semântico, em que o foco de indagação é o vínculo do signo (suporte físico) com a realidade que ele exprime; e o pragmático, no qual se examina a relação do signo com os utentes da linguagem (emissor e destinatário). Exemplo da dimensão semiótica da sintaxe é a gramática de um idioma, conquanto a pesquisa gramatical vá além, ocupando-se da morfologia e da fonologia. A sintaxe, entretanto, pode ser definida como o sistema finito de regras capaz de produzir infinitas frases. Já o ângulo semântico cuida da associação que se instala entre o signo (como suporte físico) e o objeto do mundo (exterior ou interior) para o qual aponta. Modelo de trabalho semântico são os dicionários que, inspirados pela lexicografia, colecionam ordenadamente os signos de uma língua, tendo em vista a explicação de seu significado. Há dicionários próprios a muitos sistemas de linguagem, que servem ao conhecimento e à comunicação desse conhecimento entre os homens. Salientamos aqui, a título de registro, os dicionários de terminologia jurídica, onde as palavras do direito estão dispostas de tal modo que o leitor interessado possa encontrar os correspondentes significados que os diversos signos abriguem, atribuindo-lhes os sentidos possíveis. Por fim, o plano pragmático, que é de extrema fecundidade, sendo infinitas as formas de utilização dos signos pelos sujeitos da comunicação, em termos de produzir mensagens. Imaginemos um elogio feito pelo emissor a uma terceira pessoa, ausente do contexto comunicacional, introduzindo a mensagem mediante sorriso irônico. É certo que o receptor compreenderá não se tratar de elogio verdadeiro, por força da combinação dos signos idiomáticos com os sinais extra-idiomáticos produzidos pelo emissor (manifestação que também aparece como signo ou signos, pertencentes, no entanto, a outro código). 2.2.2. Funções da linguagem Polarizemos nossas atenções nos sistemas idiomáticos, corpos de linguagem dotados de amplos recursos para o desenvolvimento do processo de comunicação inter-humana, e deixemos de lado, propositadamente, todos os demais códigos, por expressivos ou sugestivos que possam ser. Verificaremos, desde logo, que a interação ocorre num contexto extremamente Complexo, pois há múltiplas possibilidades de utilização das palavras, 89 José Diniz de Moraes individualmente consideradas, assim como numerosos são os usos das construções frásicas que a gramática de cada língua permite compor, sem que as regras sintáticas venham a ter caráter decisivo para o esclarecimento da específica função em que a linguagem está sendo empregada. A correspondência entre forma e função não acontece como relação necessária, de tal sorte que as estruturas gramaticais oferecem apenas precários indícios a respeito da função, como acentua rving M. Copi30. Isso compele o intérprete a sair da significação de base (que toda palavra tem) em busca da amplitude do discurso, onde encontrará a significação contextuai, determinada por uma série de fatores, entre eles e, principalmente, pelos propósitos do emissor da mensagem. Ora, se os objetivos daquele que expede o comunicado são tão importantes, é de convir que a decodificação da mensagem se dá, em grande parte, no plano pragmático da linguagem. Procede, portanto, a observação de Luis Alberto Warat31. “Analizar la problemática funcional del lenguaje es en cierto modo efectuar un planteamiento de nivel pragmático, para cuya elucidación debemos incursionar indefectiblemente en torno a las condiciones subjetivas de su uso por parte de un sujeto determinado. ” Aliás, tudo se encaixa bem naquela noção que apresentamos sobre a pragmática, como ângulo semiótico em que se analisa a relação dos signos com seus usuários. E os estudos pragmáticos se projetam exatamente nesse sentido, isto é, considerando o ser humano enquanto produtor da mensagem e, por meio dela, visando a obter certos efeitos. No processo constitutivo da interação comunicacional, Roman Jakobson32 descreve a coalescência de seis componentes: “O REMETENTE envia uma MENSAGEM - ao DESTINATÁRIO. Para ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (ou “referente”, em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma 30 Introdução à Lógica, São Paulo, Mestre Jou, 1974, p. 55. Semiótica y derecho, Buenos Aires, Eikón, 1972, p. 80. 32 Linguistica e comunicação, São Paulo, Cultrix, 1991, p. 123. 31 90 Apostila de Semiótica Jurídica conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a entrarem e permanecerem em comunicação”. Discorrer, porém, sobre as funções da linguagem, obriga- nos a fixar premissa sem a qual as conclusões ficariam incompletas ou prejudicadas: toda e qualquer manifestação linguística, desde as mais simples às mais complicadas, raramente encerram uma única função, aparecendo como espécies quimicamente puras, no dizer de Copi. Ainda que haja uma função dominante, outras a ela se agregam no enredo comunicacional, tornando difícil a tarefa de classificá-las. Para contornar o empeço, sugere Alf Ross33 que tomemos o efeito imediato como critério classificatório: “La función de cualquier herramienta debe determinarse por su efecto propio, esto es, el efecto inmediato a cuya producción la herramienta está directamente adaptada. Son irrelevantes cualesquiera otros efectos ulteriores en la cadena causal subsiguiente. ” Cientes de que toda comunicação efetiva exige certa combinação de funções e, recolhendo o critério do efeito imediato ou da função dominante, como entendemos melhor, passemos a formular uma classificação das linguagens, de acordo com as funções que cumprem no processo comunicacional. O esboço parte de um sincretismo que julgamos conveniente para o fim de ressaltar a importância das variadas maneiras segundo as quais o homem manipula os signos do seu idioma. Adota, portanto, o animus que move o emissor da mensagem (critério pragmático), sem desprezar as particularidades sintáticas que as linguagens ostentam (critério sintático ou lógico). Tal caminho nos permitirá ir além das funções assinaladas por Jakobson, ao associá-las a cada um dos fatores que constituem o processo de comunicação. Linguagem descritiva, informativa, declarativa, indicativa, denotativa ou referencial é o veículo adequado para a transmissão de notícias, tendo por finalidade informar o receptor acerca de situações objetivas ou subjetivas que ocorrem no mundo existencial. Apresenta-se como um feixe de proposições, afirmadas ou negadas, que remetem o leitor ou o ouvinte aos referentes situacionais ou textuais. É a linguagem própria para a transmissão do conhecimento (vulgar ou científico) e de informações das mais 33 Lógica de las normas, Madrid, Editorial Tecnos, 1971, p. 28. 91 José Diniz de Moraes diferentes índoles, sendo muito utilizada no intercurso da convivência social. Seus enunciados submetem-se aos valores de verdade e de falsidade, razão pela qual essa sintaxe é estudada pela Lógica Clássica, também conhecida por Lógica Apofântica ou Lógica Alética34. Como discurso descritivo que é, mantém um vector semântico com as situações indicadas, de modo que seus enunciados serão verdadeiros se os fatos relatados tiverem realmente acontecido ou vierem a efetivar-se; e falsos, se não se verificarem na conformidade do que foi descrito. Note-se que a relação entre o enunciado factual e o acontecimento por ele informado só é possível se dispusermos de metalinguagem que afirme ou negue a correspondência entre enunciado e fato35 (“verdade por correspondência”). Linguagem expressiva de situações subjetivas é aquela na qual o emissor exprime seus sentimentos, quer pelo uso de interjeições (ai!, oba!, oh! ), de palavras interjeicionais (viva!, apoiado!, fora! ) ou de expressões interjeicionais (minha Nossa Senhora!, quem dera! ), quer por intermédio de orações ou de períodos. O traço característico da linguagem empregada nessa função é a presença de emoções manifestadas pelo remetente da mensagem, que se expande para comunicar aquilo que lhe passa n'alma, provocando no receptor, quase sempre, sentimentos da mesma natureza. O exemplo típico da linguagem expressiva de situações subjetivas é a linguagem poética, mas convém referir que pode revestir-se de outras formas, que não a da poesia, como nas reações espontâneas, em que o homem exibe seus sentimentos de alegria, de dor, de surpresa, de desejo, de afeto, etc., fazendo-o pelo emprego de interjeições. Quando desempenha essa função, a linguagem de que tratamos não pode subordinar-se aos critérios de verdade e falsidade, inerentes à lógica do discurso descritivo. A licença poética afasta de cogitação qualquer tentativa no sentido de vincular suas elaborações aos critérios da Lógica Clássica. Até o presente momento, pelo que sabemos, não se tem notícia da descoberta de sistema lógico capaz de explicar o funcionamento 34 Alethéa, palavra grega que significa verdade. 35 Alfred Tarski, A concepção semântica da verdade: Textos Clássicos de Tarski, São Paulo, Imprensa Oficial/UNESP, 2007. 92 Apostila de Semiótica Jurídica sintático da linguagem expressiva. Não que o discurso poético prescinda do ângulo sintático, que o descaracterizaria como linguagem, mas, pura e simplesmente, porque ninguém ainda descobriu, pelo que sabemos, quais as regras que presidem essa sintaxe. Quando se diz que a linguagem poética não tem lógica, na verdade o que se pretende transmitir é que a linguagem que atua nessa função não pode ser governada pelos padrões da Lógica Alética. Nunca que carecesse do plano sintático, o que seria absurdo. Linguagem prescritiva de condutas presta-se à expedição de ordens, de comandos, de prescrições dirigidas ao comportamento das pessoas. Seu campo é vasto, abrangendo condutas intersubjetivas e intra-subjetivas . Todas as organizações normativas operam com essa linguagem para incidir no proceder humano, canalizando as condutas no sentido de implantar valores. Um excerto de Lourival Vilanova36 diz bem da importância desse uso: “Altera-se o mundo físico mediante o trabalho e a tecnologia, que o potência em resultados. E altera-se o mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe da qual é a linguagem das normas do Direito”. As ordens não são verdadeiras ou falsas, mas sim válidas ou não-válidas. Estes últimos são os valores lógicos da linguagem prescritiva e sua sintaxe é estudada pela chamada Lógica Deôntica, de que faz parte a Lógica Deôntico-jurídica, cujo objeto é a organização sintática da linguagem do direito positivo. Esta especialização da Lógica Deôntica encontra-se hoje sistematizada, principalmente a partir da obra Deontic Logic, de autoria de Georg Henrik von Wright, publicada em 1951. Em Lógica, o vocábulo proposição significa a expressão verbal de um juízo. Os estudiosos, entretanto, negaram-se a empregá-lo para designar outros juízos que não os descritivos de situações, subordinados aos critérios de verdade/falsidade. É curioso sublinhar que Kelsen, evitando a palavra para referir-se às unidades do direito positivo, utilizou-a na expressão “proposição jurídica”, querendo aludir ao discurso do cientista, em nível de metalinguagem. Daí a distinção que fez entre norma jurídica e proposição jurídica. O étimo proposição, contudo, serve para denominar qualquer espécie de juízo, seja ele declarativo, interrogativo, imperativo ou exclamativo. E é assim que o 36 As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo, Noeses, 2005, p. 42. 93 José Diniz de Moraes encontramos em Lourival Vilanova, que distingue as proposições normativas das proposições descritivas, ambas contidas no conceito mais abrangente de proposições jurídicas. Resta lembrar que a linguagem prescritiva se projeta sobre a região material da conduta humana. Mais ainda, que seu vector semântico atinge única e exclusivamente os fatos e as condutas possíveis, caindo fora de seu alcance as ocorrências factuais e os comportamentos necessários ou impossíveis. A consideração vale para todos os campos do deôntico, em particular para o do deônticojurídico, em que não teria sentido a regra que colhesse a conduta necessária - ou impossível, modalizando-a com o “P” (permitido), com o “V” (proibido) ou com o “O” (obrigatório). Linguagem interrogativa ou linguagem das perguntas ou dos pedidos é a de que se utiliza o ser humano diante de objetos ou situações que desconhece, ou ainda quando pretenda obter alguma ação de seus semelhantes. As perguntas podem ser interpretadas como pedidos de respostas, circunstância que nos permite reduzir uma linguagem a outra. Em muitas situações, reflete a insegurança do emissor, ao mesmo tempo em que provoca uma tomada de posição do receptor. Ninguém pode ficar impassível perante uma indagação, seja ela qual for. Responderá ou não, afastando-se a possibilidade de conduta indiferente. Por mais absurda e impertinente que seja a pergunta, o destinatário assumirá uma de duas posturas: ou se mantém silente, ignorando-a, com o que implementa a conduta de não responder; ou apresenta, satisfatoriamente ou não, a juízo do emissor, comportamento que realiza a resposta. Do mesmo modo que a linguagem prescritiva, as proposições que compõem este discurso não estão sujeitas aos valores da Lógica Clássica: verdadeiro e falso. Seus critérios são outros. Uma pergunta é pertinente ou impertinente; adequada ou inadequada; própria ou imprópria; além do que, como todos os demais enunciados, haverá de ser bem formada sintaticamente, condição indispensável para que tenha sentido. Sobre a lógica da linguagem das perguntas, Georges Kalinowski37 nos dá notícias das obras de A. N. Prior, Erotetic logic; de Stalh, Developpement de la logique des questions; e de 37. Introducción a la lógica jurídica, Buenos Aires, Eudeba, 1973, p. 8. 94 Apostila de Semiótica Jurídica Ajdukiewicz, Logiczne podstawy nauczania. Deparamos, em alguns teóricos da linguagem, com o tratamento conjunto das funções prescritiva e interrogativa, debaixo da designação genérica de função conativa, cuja finalidade seria de influenciar o comportamento do destinatário da mensagem. Sob o ângulo pragmático, nada há que objetar, a não ser acrescentando também a função persuasiva. Entretanto, a diretriz que elegemos para presidir nossa classificação não repousa, exclusivamente, na instância pragmática, levando em conta aspectos do plano sintático. Repetimos que a linha diretora que escolhemos considera o animus que move o emissor da mensagem, sem desprezar as particularidades sintáticas que as linguagens ostentam. Ora, há profundas diferenças de sintaxe entre as três linguagens referidas com o nome de conativas, o que justifica estudá-las separadamente. e) Linguagem operativa ou performativa é o discurso em que os modos de significar são usados para concretizar alguma ação. Como efeito imediato, nada informam, pois sua função primordial é operativa, dando a concretude que certos eventos exigem para sua efetiva realização. Exemplo típico de função performativa é aquela mencionada por Irving M. Copi38, em que o sacerdote ou o juiz de paz, para o encerramento da cerimônia, proclama: “eu vos declaro marido e mulher". Tais palavras constituem o ato em si, não sendo emitidas com o escopo imediato de informar. Para o autor citado, a linguagem operativa emprega as chamadas “elocuções de desempenho”, cujo papel é realizar, em circunstâncias apropriadas, a ação que relatam ou que transmitem. Tais locuções empregam os verbos que ele chama de atuantes, entre eles aceitar, aconselhar, desculpar-se, batizar, parabenizar, prometer e sugerir. É oportuna a lembrança de Warat39 de que “Este uso presupone la existencia de un sistema normativo vigente que le otorga sentido objetivo a ciertos atos de voluntad”. E agregamos que nem sempre o sistema normativo é o jurídico, podendo ocorrer sob preceitos de qualquer dos muitos plexos de regras que estão presentes no fato social. Linguagem fáctica. Alude-se, com tal expressão, à linguagem introdutória da comunicação, bem como todos os recursos linguísticos empregados para manter o contato comunicacional já 38 Introducción a la lógica, Trad. de Álvaro Cabral, São Paulo, Mestre Jou, 1981, p. 52. 39 Semiótica y derecho, Buenos Aires, Eikón, 1972, p. 76. 95 José Diniz de Moraes estabelecido. Dela faz parte tudo aquilo que, numa mensagem, serve para estabelecer, manter ou cortar o vínculo da comunicação. Para Francis Vanoye40, “numa comunicação telefônica, o tradicional ‘alô’ estabelece o contato, as expressões Você está me ouvindo?, um momento por favor’ mantêm o contato, ‘vou desligar’ interrompe a comunicação”. Nas atividades diárias do ser humano é de grande intensidade o emprego da linguagem na sua específica função factual. Exercendo papel eminentemente introdutório, mantenedor ou terminativo da comunicação, essa linguagem quase nada informa, sendo que as orações interrogativas que a integram não visam à obtenção de respostas, a não ser em gradações ínfimas. Quando nos encontramos com pessoa de nossas relações e emitimos a pergunta “como vai? ”, o objetivo não é travarmos conhecimento com o estado de saúde física ou psíquica do destinatário, mas de simplesmente saudá-lo - que denotaria breve comunicação - ou de prepararmos diálogo mais profundo. Da mesma forma, a resposta não costuma trazer dados explicativos a respeito do que foi perguntado, já que o interlocutor percebe, desde logo, tratar-se de linguagem utilizada em sua função fáctica. É bem verdade que a mesma indagação poderia colocar-se dentro de outro contexto, em que o emissor da pergunta estivesse efetivamente interessado em conhecer o estado de saúde do receptor. É a sensibilidade psicológica de cada um, ou de terceiros que assistem ao fato comunicacional, que vai reconhecer a linguagem como empregada na função interrogativa ou fáctica. Nesses domínios, já o dissemos, o ângulo pragmático é decisivo. Interessante exemplo de linguagem cumprindo função factual nos é oferecido por Francis Vanoye41, ao mencionar a letra da música “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, cujo trecho inicial transcrevemos: Olá, como vai? Eu vou indo, e você, tudo bem! Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro. E você? 40 Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita, 4a ed., São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 54. 41 Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção orai e escrita, cit. 41 Introdução à lógica, cit, p. 52. 46 96 Apostila de Semiótica Jurídica Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe?Quanto tempo... Me perdoe a pressa é a alma dos nossos negócios... Oh! não tem de quê eu também só ando a cem. Vale notar que o encontro se dá ao fechar-se o sinal e ambos instalam a comunicação, procurando mantê-la mediante frases destituídas de sentido preciso, com reiteradas perguntas e correspondentes respostas, mas sem outro objetivo que não o de aproveitar os pouquíssimos instantes de contato, sustentando a comunicação instaurada. Temos para nós que a “função cerimonial”, indicada por Irving M. Copi36, em muitas oportunidades ajusta-se melhor no âmbito desta linguagem que ora referimos. As palavras introdutórias que enchem os documentos oficiais, os ditos pomposos que antecedem certas solenidades e os ritos verbais que abrem espaço a sermões ou discursos políticos são, todos eles, modos de significar que preparam ou sustentam o curso de tipos específicos de interação comunicacional. Linguagem propriamente persuasiva, como entendemos melhor chamar, é aquela animada pelo intento imediato de convencer, persuadir, induzir, instigar. Falamos em “propriamente persuasiva” porque as mensagens transmitidas com outras funções sempre têm um quê de persuasivas. Quem se comunica para informar alguém acerca de um fato procura fazer chegar a notícia ao destinatário, de acordo com seu modo de ver o acontecimento. Formulando conceitos, que são invariavelmente seletores de propriedades, o emissor acentua os aspectos que correspondam aos seus valores, passando-os ao receptor. A presença do animus persuasivo, aliás, pode ser registrada em todas as funções que a linguagem desempenha, em diferentes níveis de intensidade, circunstância que nos permite identificar uma espécie em que a persuasão exerce papel dominante: eis a linguagem a que nominamos de “propriamente persuasiva". Aqui, o intuito de quem expede a comunicação é prioritariamente de convencer o interlocutor, induzindo-o a aceitar sua argumentação a ponto de estabelecer-se o acordo de opiniões. O caráter persuasivo manifestase ostensivamente, com função imediata, pronta e determinante da 97 José Diniz de Moraes própria razão de ser do discurso. É a linguagem que ocorre quando existirem interesses conflitivos ou em situações em que alguém postula algo, reivindicando a justiça, a razoabilidade ou a conveniência daquilo que é solicitado. Nos territórios do direito esta linguagem assume extraordinária importância e enorme frequência: é o chamado discurso judicial. Também o encontramos na discussão de questões administrativas, sempre que o convencimento da autoridade competente seja pressuposto da decisão. Gregorio Robles Morchón42 examina a linguagem empregada pelos juristas nos processos de decisão, propondo uma teoria da decisão jurídica. Afirma que a linguagem do advogado não cria a decisão, ainda que a propicie por representar uma das partes, oferecendo um ponto de vista dentro do diálogo que constitui o processo. Seu objetivo não é decidir senão convencer e a retórica jurídica é o esquema metódico de que se serve. Vale salientar a propósito o caráter retórico indissociável à linguagem persuasiva, não incorrendo, com esta afirmativa, no mau vezo de atribuir somente a ela este registro. Sim, porque toda a função linguística exige o tom retórico, sem o qual a mensagem não se transmite do enunciador ao enunciatário. Enganam-se aqueles que admitem a retórica apenas como expediente da função persuasiva, estruturada para facilitar o convencimento de quem recebe o impacto da enunciação. Inexiste a “não-retórica”. E a contra-retórica é retórica também. Resta saber qual a intensidade de sua utilização nos diversos tipos de linguagem. Em comentários ligeiros, os recursos a serem utilizados pelo cientista variam segundo a região ôntica do objeto a ser descrito. Há um tipo de veemência recomendado para o domínio dos entes físiconaturais; outro para o dos ideais e ainda outro para o dos culturais, levando-se em conta, neste setor, a multiplicidade imensa das manifestações objetais43. Tudo para advertir, de maneira incisiva, que não é qualquer torneio retórico que convém ao discurso da Ciência do Direito ou mesmo daquel'outros produzidos com o Las reglas del derecho y las reglas de los juegos, Univer. de Palma de Mallorca, 1984, p. 271. 42 Lourival Vilanova, “Analítica do dever-ser”, in Escritos juríd. e filosóficos, vol. 2, cit., p. 69. 43 A propósito, ver pg. 116 do livro. 42 98 Apostila de Semiótica Jurídica objetivo de convencer a autoridade competente ou o juiz de direito nos respectivos autos. Por outro lado, é impossível estipular o espaço de variação da possibilidade retórica no recinto do jurídico, mesmo porque um é o do direito posto, outro o da dogmática. Simplesmente isso. Caberá à intuição, tomada aqui como órgão, aliás o mais poderoso instrumento cognoscitivo, a chamada “ciência direta”, sugerir os critérios de avaliação do quantum de argumentação retórica que deve ser empregada na construção do discurso científico, evitando, por todo o modo, a logomaquia e tantas extravagâncias que rondam e ameaçam a pena de quem escreve. Com estas modulações, pretendo deixar claro que a lógica da linguagem persuasiva ou da linguagem que prepara a decisão é a lógica da argumentação, isto é, uma lógica da interpretação para decidir ou lógica dialógica orientada para a decisão44. Sobre a Teoria da Argumentação, Tercio Sampaio Ferraz Jr. 45 tece importantes considerações que merecem detida reflexão. Assinalando que a lógica retórica se ocupa da argumentação como tipo específico de raciocínio, correspondendo a procedimentos quase lógicos, que não obedecem ao rigor exigido pelos sistemas formais, passa a estudar, um a um, os mais conhecidos modelos de procedimento, no âmbito da argumentação jurídica, sem intuito classificatório. Salta aos olhos que a estrutura sintática da linguagem jurídica, num processo de decisão judicial ou administrativa, subordina-se a valores lógicos outros que não os do discurso descritivo (verdadeiro/falso) ou prescritivo (válido/não-válido) ou ainda o da linguagem das perguntas (pertinentes/impertinentes). Os sujeitos participantes desenvolvem seus esforços no sentido de obter um fim determinado: o convencimento do juiz ou da autoridade competente para decidir. E o próprio magistrado ou o agente administrativo, ao proferir o ato decisório, procurará justificá-lo, argumentando em termos de mostrar que o fez para atender a princípios de justiça, de coerência, de segurança, de respeito à ordem jurídica vigente. Com efeito, se atinarmos bem, veremos que o rigoroso apego à verdade dos enunciados, a precisão ao relatar os acontecimentos factuais, a adequada subsunção dos conceitos dos fatos ao conceito das normas, tudo isso, ainda que sirva de instrumento valioso para 44 Gregorio Robles Morchon, Las reglas del derecho y las reglas de los juegos, cit., p. 273. 45 Introdução ao estudo do direito, cit., p. 294. 99 José Diniz de Moraes a configuração das peças jurídicas, no contexto processual, cede lugar ao objetivo primeiro, ao fim último que os interessados almejam alcançar, qual seja o convencimento do órgão decisório. É certo que há expedientes dentro do processo, como os laudos periciais, por exemplo, cuja função preponderante da linguagem não é persuasiva. Contudo, tais manifestações, longe estão de predominar, a ponto de exercer função caracterizadora do discurso judicial ou do campo mais amplo da linguagem que trata dos procedimentos decisórios. k) A linguagem afásica consiste num conjunto de enunciados que alguém dirige contra a mensagem de outrem, visando a obscurecê-la, confundi-la perante o entendimento de terceiros ou a dificultar sua aceitação, por meio de recursos linguísticos variados, tudo no pressuposto de que o discurso que sofre o impacto da linguagem afásica seja claro, estando em condições de ser devidamente apreendido. Cai bem o nome dessa função, pois afasia é termo técnico que designa perturbações na comunicação verbal. Neste caso, porém, a afasia não é provocada por lesões que a neuropsicologia e a neurolinguística localizaram no hemisfério esquerdo do cérebro humano, numa zona específica da linguagem, mas por efeito da contra-mensagem do destinatário. Na amplitude da discussão judicial, bem o sabemos, é comum que os representantes das partes litigantes utilizem esse tipo de linguagem para tumultuar o andamento regular do feito. Diante de uma peça racionalmente composta, portadora de forte capacidade de persuasão, o advogado da parte contrária, não tendo como contrapor-se aos fundamentos de ordem fáctica e jurídica, passa a questionar afirmações pacíficas, levanta problemas sobre palavras, sobre situações estranhas ao tema controvertido, com o deliberado escopo de despertar embaraços e dificuldades na compreensão daquilo que, sem esses expedientes, seria perfeitamente admissível. Mas o exercício da linguagem com tão antipáticos fins não é o único a que se presta o discurso afásico. Pode também encobrir o vazio de significação de certas mensagens, neste caso cumprindo uma função axiologicamente positiva. Em alguns momentos é o meio de escapar dos domínios estritos da litera l idade da lei, fazendo prevalecer uma solução valorativa da 100 Apostila de Semiótica Jurídica equidade. Nas palavras de Warat46: “cuando se puede hacer pasar gato semántico por liebre equitativa”. A função afásica permite, então, preencher lacunas, completando o discurso ao qual se dirige. i) Linguagem fabuladora. Se a função descritiva se desenvolve mercê de enunciados com pretensão de verdade, há certo uso pragmático, como aponta Alf Ross47, que não faz a proposição depender dos conceitos de verdade e falsidade, exigindo- se apenas que tenha significado. Este autor refere-se a tal uso como “apresentação da proposição”, que passa a constituir aquilo que denomina de ficção ou hipótese, ao passo que o discurso correspondente terá função fabuladora. Frise-se que a linguagem desse modo utilizada cobre vasto segmento no quadro geral da comunicação humana, integrando os textos considerados fantasiosos ou fictícios, como as fábulas, os contos infantis, as novelas, os filmes cinematográficos, os mitos, as anedotas e, especialmente para o nosso interesse, as ficções jurídicas, bem como as hipóteses com que trabalham os cientistas. Descabe cogitar-se do teor de verdade desses enunciados, de tal arte que mesmo na contingência de serem coincidentes com a realidade, isso não lhes dá preeminência no sistema contextual. Predominam os casos de falsidade, mas também é irrelevante para tipificar a atribuição que desempenham. Tratando-se de uma película cinematográfica ou de representação teatral de conteúdo histórico, requer-se, é evidente, um mínimo de proposições dotadas do valorverdade, exatamente para reproduzir as situações escolhidas pelo autor. Por outro lado, as histórias imaginárias abrigam somente enunciados falsos, sem que essa contingência enfraqueça o discurso. Fique bem claro que os enunciados da linguagem fabuladora são susceptíveis de apreciação segundo os critérios de verdade/falsidade, entretanto, a verificação não importa para os fins da mensagem. Sotopondo-se a esses valores, mesmo assim a dinâmica discursiva continua lentamente sua marcha para atingir a finalidade proposta, sem que o respeito àqueles padrões ou à sua manifesta inobservância tenham o condão de afetar-lhe a natureza de 46 Warat, op. cit., p. 79. 47 Sobre el derecho y la justicia. Tradução de Genaro Carrió, B. Aires, EUDEBA, 1974, p. 37. 101 José Diniz de Moraes linguagem fictícia ou fabuladora. O direito, na prescritividade mesma de sua linguagem, aproveita-se frequentemente das ficções. Como seu vector semântico está preparado para incidir na realidade social e não para com ela coincidir43, sempre que o legislador das normas gerais e abstratas estiver premido a esquematizar fatos e qualificar objetos, em desacordo com a índole em que normalmente são tomados, emprega o recurso fabulador. j) A linguagem que opera na função metalinguística, segundo Roman Jakobson48, focaliza o código, ou seja, o próprio discurso em que se situa. Nela, antecipa-se o emissor às interrogações do destinatário, explicitando fragmentos do discurso que lhe pareceriam desconhecidos ou absurdos aos ouvidos ou aos olhos do interlocutor. Antes que o receptor interrompa a locução para formular perguntas, aquele que fala ou escreve esclarece o trecho, oferecendo informações adicionais a respeito. Há metalinguagem, mas no interior do discurso. A função metalinguística, assim versada por Jakobson, pressupõe um único código e, dentro dele, dois níveis de linguagem convivendo na mesma sequência contextual. Difere, portanto, daquelas circunstâncias em que linguagem-objeto e metalinguagem aparecem em momentos distintos e, muitas vezes, elaboradas por sujeitos diferentes. Basta essa lembrança para divisarmos que a expressão não é unívoca: contempla a situação em que o emissor fala da sua própria fala, num único contexto; assim como todas as manifestações de linguagem que se ocupara de falar sobre outras linguagens, seja do mesmo autor ou de autores diferentes. Estipulemos aqui, para efeito do desenvolvimento dos nossos estudos, que a função metalinguística acontece sempre no interior de um único código, promovida por um só emissor e, mais adiante, versaremos o assunto das hierarquias de linguagem. Para ilustrar com exemplos, lembremos que denunciam a presença da função metalinguística frases introduzidas por expressões como isto é, ou seja, ou melhor.; por outro modo, em outros termos, dito deforma diferente, etc. No campo da Ciência, observamos que o teórico sente muitas vezes a necessidade de extrapassar os limites do conhecimento 48 Linguística e comunicação. Trad. de José P. Paes e Isidoro Blikstein, SP, Cultrix, 1991. 102 Apostila de Semiótica Jurídica especializado, para poder examinar a natureza e pensar nas possibilidades do seu trabalho. Nesse átimo, estará discorrendo sobre a técnica da sua construção científica, examinando o método de investigação para declará-lo ou explicitá-lo, instante em que põe em curso a função metalinguística. 2.2.3. Formas de linguagem Orientar a atenção para as formas da linguagem significa ingressarmos no terreno da gramática do idioma. Mas a gramática, designada por normativa, cobre cinco setores diferentes: a) morfologia; b) fonética; c) sintaxe; d) semântica; e e) estilística. A divisão nos leva a supor que o estudo das formas seria desenvolvido nos quadros da morfologia. Não é assim. A morfologia cuida das palavras, isoladamente consideradas, pesquisando seu modo de formação, sua estrutura, suas propriedades e as flexões que podem experimentar. Enquanto isso, pensamos agora nas formas de discurso como modalidades de mensagens transmitidas no plexo interacional da comunicação, cujo conhecimento se dá no capítulo reservado à sintaxe, parte da gramática que examina as possíveis opções no que tange à combinação das palavras na frase, para que a exteriorização do pensamento ocorra com clareza. Distribui-se a sintaxe por três subcapítulos: a) sintaxe de concordância; b) sintaxe de subordinação (ou de regência); e c) sintaxe de ordem (ou de colocação). Dentro dos limites que o interesse temático nos permite, estabeleçamos como ponto de partida o conceito de frase para chegarmos logo aos objetivos que este trabalho projetou atingir. Frase é a palavra ou combinação de palavras com que expressamos nosso pensamento. É categoria genérica, abrangendo as frases nominais, as orações, também conhecidas por sentenças, e o período. As frases nominais não têm verbo; as orações, portadoras de estrutura sintática, apresentam obrigatoriamente o verbo como elemento essencial e, muitas vezes, sujeito e complemento como elementos acidentais. Por fim, o período, formado por uma oração, uma combinação de oração e frase ou mais de uma oração, será simples, existindo uma só sentença; composto, quando houver duas ou mais estruturas oracionais. As frases meramente nominais diferem das sentenças porque as primeiras carecem de estrutura sintática, não sendo passíveis de 103 José Diniz de Moraes análise. Recuperando o sentido genérico de frase, indicam os autores seis classes: 1) as declarativas; 2) as interrogativas; 3) as exclamativas; 4) as imperativas; 5) as optativas; e 6) as imprecativas. Consulta ao nosso interesse expositivo reduzir esses tipos a apenas quatro, o que entendemos possível, visto que as frases optativas (que manifestam um desejo) e as imprecativas (que contêm uma imprecação), cabem ambas no espaço das exclamativas. A matéria dessa maneira exposta predispõe nossa mente a imaginar correspondência entre as formas de frases e as diversas funções que cumprem na comunicação humana. Tal correspondência, contudo, não acontece necessariamente. As funções de que se utiliza a linguagem não se prendem a formas determinadas, de modo que o emissor poderá escolher esta ou aquela, a que melhor lhe aprouver, para transmitir seu comunicado, dependendo dos fatores extralinguísticos que fizer acompanhar a manifestação verbal. O registro impede que identifiquemos a função pelo reconhecimento do enunciado textual. Façamos então uma experiência, firmando a estrutura da frase declarativa e procurando ver a que funções pode prestar-se: a) Palmares é cidade do Estado de Pernambuco - forma declarativa e função declarativa. b) Estou com muita sede - forma declarativa e função interrogativa, imaginando-se um meio de pedir água. c) O som elevado da televisão está atrapalhando meu trabalho forma declarativa e função prescritiva. d) Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. do Código Civil) - forma declarativa e função prescritiva. e) Já sossega, depois de tanta luta, já me descansa em paz o coração - Transcendentalismo, Antero de Quental - forma declarativa e função expressiva. f)Os mais celebrados autores, assim nacionais, que estrangeiros, advogam a mesma tese - forma declarativa e função persuasiva. g) O autor desenvolve seus argumentos sem discutir o cabimento das duas premissas que lhe servem de suporte - forma declarativa e função afásica. h) Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo forma declarativa e função operativa. i)A tartaruga, perante Aquiles, admite o condicional e seu 104 Apostila de Semiótica Jurídica antecedente, mas nega o consequente - Diálogo de Aquiles com a tartaruga, em conto de Lewis Carrol - forma declarativa e função fabuladora. j) j) Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro trecho de Sinal Fechado - forma declarativa e função fáctica. A dissociação entre forma e função não se verifica apenas com a frase declarativa. Breve esforço da parte do leitor demonstrará que a função da linguagem empregada pelo remetente, ao expedir a mensagem, independe da modalidade frásica adotada. 2.2.4. Tipos de linguagem Uma classificação estará construída corretamente se tiver observado as regras sintáticas do procedimento classificatório, prescritas pela Lógica dos termos ou Lógica dos predicados. Trata-se de condição a priori de sua validade semântica. Nada obsta, entretanto, que, superado o plano sintático, venhamos a compor muitas classificações sobre o mesmo objeto, utilizando, para tanto, critérios diferentes sob cuja inspiração possamos analisá-lo por variados ângulos. Já contemplamos a linguagem à luz das inúmeras funções que desempenha no fato concreto da comunicação. De seguida, vimo-la pelo ponto de referência das possíveis formas gramaticais que presidem o surgimento de frases em língua portuguesa. A diretriz, agora, será outra: descansa no grau e no modo de elaboração de mensagens, que serão mencionadas segundo tipos. O Neopositivismo Lógico alude a três tipos de linguagem: a) a natural ou ordinária; b) a linguagem técnica; e c) a linguagem formalizada. Entendemos que o aspecto que nutre a especificação admite outros desdobramentos. Falaremos, assim, em seis tipos de linguagem, a saber: a) a natural, ordinária ou vulgar; b) a linguagem técnica; c) a linguagem científica; d) a linguagem filosófica; e) a linguagem formalizada; e f) a linguagem artística. A linguagem natural aparece como o instrumento por excelência da comunicação entre as pessoas. Espontaneamente desenvolvida, não encontra limitações rígidas, vindo fortemente acompanhada de outros sistemas de significação coadjuvantes, entre os quais, quando falada, a mímica. Entre suas múltiplas características figura o 105 José Diniz de Moraes descomprometimento com aspectos demarcatórios do assunto sobre que se fala ou escreve: flui com ampla liberdade e corresponde, por isso, à reivindicação própria da comunicação cotidiana. Sobremais, lida com significações muitas vezes imprecisas, não se prendendo a esquemas rígidos de formação sintática de enunciados. A combinação desses fatores prejudica a economia do discurso, acentuando a dependência das mensagens à boa compreensão da conjuntura contextuai. De contraparte, sua dimensão pragmática é riquíssima, evoluindo soltamente entre emissor e destinatário. Nela, percebem-se com clareza as pautas valorativas e as inclinações ideológicas dos interlocutores que, em manifestações despreocupadas, exibem suas intenções, dando a conhecer os vínculos psicológicos e sociais que entre eles se estabelecem. Atento a esses traços que lhe são peculiares, o movimento conhecido por “Filosofia da Linguagem Ordinária” estruturou-se como reação ao “Empirismo Contemporâneo”, principalmente porque este último, ao recolher o discurso científico como exclusivo objeto de suas especulações, deixava de lado a linguagem natural, rebelde em termos sintáticos, problemática no plano semântico, mas extremamente fecunda pelo prisma pragmático. Na área dessa linguagem, na qual se aloja o coloquial, não haveria espaço para descrições cujo rigor dos enunciados é pressuposto de seu valor veritativo. O discurso natural, em face da latitude de indeterminações semânticas que provoca, ao lado da flexibilidade excessiva na construção sintática de suas proposições, jamais atenderia ao caráter analítico-descritivo do saber científico, que requer fórmulas minudentes, precisas, capazes de relatar a sutileza e a finura dos fenômenos que constituem seu objeto. Linguagem técnica é toda aquela que se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científicas. Não chegando a atingir uma estrutura que se possa dizer sistematizada, busca transmitir informações imediatas acerca da funcionalidade do objeto, utilizando, para tanto, número maior ou menor de termos científicos. O intercâmbio socioeconômico dos dias atuais é pródigo em exemplos desse tipo de linguagem. A cada instante, deparamo-nos com manuais de instruções para o manejo de ferramentas, máquinas, utensílios eletrodomésticos, veículos, etc., e as 106 Apostila de Semiótica Jurídica recomendações contidas nesses corpos de linguagem empregam palavras específicas, de conteúdo fixo, viradas para o objetivo primordial de tornar possível o máximo proveito na manipulação do bem. Há porção significativa de linguagem descritiva, mas apenas para atender às necessidades explicativas que a exploração das potencialidades do objeto requer. Sabemos que, para além daqueles manuais acima referidos, muitos outros exemplos podem ser sacados, entre eles as bulas que acompanham os remédios, abrigando escritos que se dirigem aos leigos. Nelas, é considerável a presença de terminologia das ciências médicas, ainda que a finalidade esteja ligada estreitamente à sua administração adequada por quem venha a consumir o medicamento. Difere da linguagem científica, toda ela vertida sobre os limites internos da matéria-objeto e sistematicamente organizada, de tal sorte que o feixe de proposições indicativas, governado pelo método, estará apto para produzir conhecimentos e controlar o teor de verdade dos enunciados emitidos. Quanto ao direito positivo, aqui considerado na sua mais elevada extensão, seja a linguagem do legislador das normas gerais e abstratas, seja aquela das normas individuais e concretas, ambas se enquadram no tipo de linguagem técnica. As regras emanadas do Poder Legislativo, em razão de sua compostura heterogênea, decorrência inevitável da representatividade política, revela presença menor de termos com acepção precisa e predominância incontestável do linguajar comum. Já as normas individuais e concretas, principalmente as exaradas pelo Poder Judiciário, costumam revestir-se de mais rigor, penetradas em maior intensidade por vocábulos próprios da Ciência do Direito. Isso, contudo, não lhes tira o caráter de linguagem técnica, ainda porque, significativa que seja a preponderância de termos e expressões artificialmente construídos, para responder à determinação ínsita que a disciplina da conduta reclama, mesmo assim jamais poderia adquirir foro de discurso científico por não ser descritiva de objetos, e sim prescritiva de comportamentos intersubjetivos. Se caso faltassem notas que pudessem justificar tratamento diferenciado entre linguagem técnica e linguagem científica, a experiência do jurídico serviria, à perfeição, para demonstrar que, certamente, essas linguagens são de tipos diferentes. Ninguém ousaria afirmar que o discurso prescritivo das proposições normativas labora tão-somente no campo da comunicação natural. 107 José Diniz de Moraes Tais mensagens, entretanto, nunca atingirão o status de linguagem científica, remanescendo o adjetivo técnica para qualificá-las. Ao contrário do que sucede com outras linguagens desse tipo, na jurídica nada há de função descritiva, apesar de sua forma muitas vezes dissimular esse aspecto relevante, que referimos linhas acima. Linguagem científica é um discurso que se pode dizer artificial, porquanto tem origem na linguagem comum, passando por um processo de depuração, em que se substituem as locuções carregadas de imprecisão significativa por termos na medida do possível unívocos e suficientemente aptos para indicar, com exatidão, os fenômenos descritos. Nem sempre, porém, toma-se exequível a estipulação de vocábulos precisos, procedendo-se então ao que Carnap designou de “processo de elucidação”, no qual se emprega a palavra, explicitando-se, em seguida, o sentido em que foi utilizada. A linguagem científica arma-se, desse modo, para caminhar em direção à idéia limite de um sistema, consistente e rigoroso, pronto para descrever a realidade objetai de que se ocupa. Esta circunscrição material há de ser demarcada de maneira firme e o cientista o faz adotando cortes arbitrários e incisivos. A delimitação do objeto é pressuposto do controle da incidência das proposições descritivas, que não poderão extrapolar as lindes traçadas, com o que se comprometeria a homogeneidade do espaço empiricamente observado. São questões epistemológicas, mas que integram o modo de ser da linguagem científica, imprimindo-lhe fisionomia própria. Valem para qualquer Ciência as ponderações de Roberto J. Vernengo49: “pretenderá formular, en un lenguaje logicamente coherente, un conjunto de proposiciones verdaderas sobre su tema de investigación, en forma tal que los enunciados que las expresen sean racionalmente controlables, sea en cuanto empiricamente verificables, sea en cuanto logicamente derivables de otras proposiciones cuya verdad se asume o ha sido acreditada. ” Assentadas essas características, a linguagem científica há de aparecer bem esquematizada sintaticamente, com seu plano 49 Curso de teoría general del derecho, Buenos Aires, Depalma, 1986, p. 34. 49 “O problema do objeto da teoria geral do estado”, in Escritos juríd. e filosóficos, vol. 1, São Paulo, Axis Mundi/IBET, 2003, p. 82. 108 Apostila de Semiótica Jurídica semântico cuidadosamente elaborado, mas enfraquecida na dimensão pragmática. O esforço de estruturação sintática e o empenho no sentido de evitar as confusões significativas trazem como resultado a diminuição do quadro de manobras de que dispõem os usuários dessa linguagem, ficando difícil captar as inclinações ideológicas, pois o texto referencial não deve conter palavras emotivas, evitando-se o recurso a argumentos de cunho retórico. No caso do direito, a linguagem científica fala a respeito de outra linguagem: a linguagem técnica do direito positivo. Pretende dizer como ela é, investigando-a nas suas dimensões semióticas. Sendo assim, convém ao cientista do direito, na composição de seu discurso indicativo, o uso de palavras emotivamente neutras, que não divirtam a atenção do leitor para fins outros que atendam suas intenções valorativas. E a persuasão há de fazer-se sem qualquer empenho retórico, mas por força da precisão descritiva da linguagem empregada. Bem certo que tudo isso representa uma procura incessante, a busca de um modelo ideal de Ciência, que por ser ideal o homem jamais alcançará. Principalmente se seu objeto estiver contido na região dos objetos culturais, como o direito. Vejamos, a propósito, a penetrante observação de Lourival Vilanova46: “Se o formal permite a neutralidade do comportamento cognoscitivo do homem, se o homem concreto, em face das formas e sua articulação em sistema - assim, na Lógica - comporta-se como sujeito puro, quando trava contato com o mundo dos conteúdos sociais e históricos, vem a travar contato consigo mesmo, e, em vez da relação sujeito-objeto, mescla-se essa relação com uma inevitável parcela de atitude práticovalor ativa. ” Os problemas suscitados pelo interesse cognoscente do ser humano podem ser investigados por um procedimento que enfatize o aspecto pergunta, abrindo-se o espírito para o questionamento de conceitos fundamentais, em que até as premissas poderão ser submetidas a discussão e substituídas. Este tipo de enfoque é chamado de zetético. A ele se contrapõe o procedimento dogmático, em que se firmam as premissas, como algo intangível, absoluto. Tercio Sampaio Ferraz Jr. 50 adverte que em toda investigação vamos encontrar os dois enfoques, se bem que algumas acentuem 50 Introdução ao estudo do direito, cit., p. 42. 109 José Diniz de Moraes mais um aspecto que outro. Feliz é o exemplo do problema de Deus, examinado pela Filosofia e pela Teologia. Sirvamo-nos das palavras desse ilustre Professor: “A primeira, num enfoque zetético, pode pôr em dúvida a sua existência, pode questionar até mesmo as premissas da investigação, perguntando-se inclusive se a questão de Deus tem algum sentido. Nestes termos, o seu questionamento é infinito, pois até admite uma questão sobre a própria questão. Já a segunda, num enfoque dogmático, parte da existência de Deus como premissa inatacável. ” Toda vez que uma investigação, de caráter zetético ou dogmático, compuser sistema de proposições orientado para um fenômeno com fins cognoscitivos, teremos uma teoria. E essa teoria será Ciência se, e somente se, além de formar um feixe de enunciados vertido sobre determinado campo objetai, tiver pretensão e finalidade veritativas. Sendo assim, as ciências nada mais são que teorias (uma só ou combinação delas) animadas pelo objetivo de apresentar conclusões que se confirmem como verdadeiras. Enquanto modo específico de conhecimento da realidade, o assunto da Ciência requer meditações mais profundas, que os limites deste trabalho não comportam. É matéria da Epistemologia ou, em termos mais amplos, da Filosofia das Ciências. Para concluir, aquilo que se passa com a Ciência do Direito, em relação a seu objeto, o direito positivo, oferece um bom exemplo da diferença entre a linguagem científica e a técnica. A linguagem filosófica assume foros que a distinguem como discurso peculiar. Com efeito, as reflexões sobre a vida da criatura humana, na sua trajetória existencial, no papel que cumpre como ente da natureza, nos seus anseios de conquistas materiais e seus apelos de espiritualidade, enfim, o pensar no homem e no que ele representa, o tomar posição perante o mundo, requer uma linguagem de tipo especial, saturada de valores, com terminologia própria, tudo para habilitar aquela investigação que retroverte sobre o conhecimento mesmo, da realidade circundante, como do universo interior, na procura do ser em sua totalidade universal. Trata-se de uma linguagem que incide em todas as regiões ônticas: natural ou física, metafísica, ideal e cultural, de tal modo que seu objeto poderá ser tanto linguístico como extralinguístico. O filósofo medita sobre o conhecimento vulgar (doxa) e medita sobre o 110 Apostila de Semiótica Jurídica conhecimento científico (episteme), quando indaga a propósito das condições e possibilidades de determinada ciência. Mas, antes de tudo, pensa sobre o próprio conhecimento, o conhecimento em si, colocando-o como foco temático. Numa ascese temporária, suspende o interesse pelos objetos do mundo existencial, em atitude de renúncia momentânea e metodológica, e projeta sua atenção no fenômeno que ocorre entre o ser cognoscente e o objeto. Se a Filosofia tem a pretensão de explicar o mundo, compondo teorias, estas, para serem legitimamente filosóficas, haverão de romper os limites do estrito campo objetai das ciências particulares, para nelas pensarem, em atitude crítica, analisando a natureza do trabalho cognoscitivo e as técnicas aplicadas à elaboração do material levantado. O passo subsequente é estabelecer a complementariedade daquele segmento do saber, no contexto da teoria geral com que o filósofo se propõe expressar a totalidade do real. Tanto o saber comum como o científico marcam o ponto de partida da investigação filosófica, que retribui as contribuições particulares, esclarecendo-lhes as causas e assentando-lhes os fundamentos. Nesse ponto, vê-se com nitidez a relação entre o pensar filosófico e o pensar científico, cada qual manifestado num tipo de linguagem adequada a seus propósitos, suas finalidades e, substancialmente, ao seu modo particular de ser. Agora, em nenhum plano de indagação o enfoque zetético está tão presente quanto no das especulações da Filosofia. Cada teoria filosófica, antes de qualquer outra coisa, revela a perplexidade de uma grande indagação que une os indivíduos em torno de suas intermináveis dúvidas existenciais. Uma referência prática ilustrará a distinção que vimos afirmando: se quisermos entender um texto da linguagem dos economistas ou dos sociólogos ou dos juristas consultaremos dicionários de terminologia de cada uma daquelas ciências. Da mesma forma, muitos dos termos da linguagem filosófica não serão encontrados senão em dicionários de Filosofia, o que denota estarmos diante de um tipo especial de discurso. A linguagem formalizada advém da necessidade de abandonarmos os conteúdos de significação das linguagens idiomáticas, em ordem a surpreender as relações entre classes de indivíduos ou de elementos. As relações mesmas, com a pureza 111 José Diniz de Moraes ínsita aos conceitos primitivos, fundantes, não são muitas vezes perceptíveis no conjunto frásico, por obra das vicissitudes gramaticais da língua, dos torneios inerentes ao falar comum e, principalmente, pelo comprometimento natural do homem com a realidade circundante. Tudo isso acaba inibindo a apreensão dos vínculos associativos que aproximam os termos e as proposições. A formalização da linguagem aparece como instrumento eficaz para exibirmos relações, sejam elas matemáticas, físicas, econômicas, sociológicas, psicológicas ou jurídicas. Quando a Geometria, utilizando fórmulas matemáticas, enuncia que (h2 = a2 + b2), está exprimindo em linguagem formalizada uma relação constante para todo triângulo retângulo. Interpretada em linguagem desformalizada, teríamos: Em todo triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Ao tratar da operação conhecida como produto, a Aritmética oferece a fórmula (x. y) = (y. x), indicando com precisão o comportamento das variáveis x e y , enquanto fatores da multiplicação, e o sinal de igualdade põe em evidência a propriedade comutativa de que desfruta essa operação. Também as relações jurídicas podem exprimir-se mediante esquemas de linguagem formalizada, momento em que saltam aos nossos olhos as qualidades que lhe são imanentes. Querendo salientar o caráter irreflexivo das relações jurídicas ou a assimetria do vínculo que une dois sujeitos, emprega o lógico do direito as fórmulas, respectivamente, -(xRx) e (xRy) ≠ (yRx). No caso da Aritmética, qualquer número que substitua x ou y mantém constante a relação. Paralelamente, no liame jurídico, pouco importa o sujeito de direito que estejá no tópico de x ou de y: a relação é sempre irreflexiva -(xRx), isto é, ninguém pode estar juridicamente relacionado consigo mesmo; assim como invariavelmente assimétrica, vale dizer, se x é credor de y, então y é devedor de x, não sendo possível a transposição pura e simples dos termos referente e relato: -[(xRy) = (yRx)]. Dito de maneira diversa, a relação (xRy) e sua conversa (yRx) não são iguais. Apesar de toda a formalização, com a simbologia artificialmente criada para acentuar os laços que a linguagem comum disfarça, mesmo assim estaremos diante de uma autêntica linguagem. Há variáveis (x e y) e constante (R), de tal modo que as variáveis têm um mínimo de significação, recolhendo em x ou em y quaisquer pessoas (físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado), mas sujeitos de direito. Não posso substituir x ou y 112 Apostila de Semiótica Jurídica por nomes de condutas ou de fatos, o que indica haver, realmente, uma significação muito genérica, portanto, significação. Também R, como relacional deôntico, surgirá sempre modalizado num dos operadores: O, P e V (obrigado, permitido e proibido), inexistindo uma quarta possibilidade (lei deôntica do quarto excluído). Estamos, então, diante de uma linguagem com estrutura sintática rígida e bem organizada, com plano semântico em que seus termos encontram uma e somente uma significação, e com dimensão pragmática, pobre, mas existente. Adiantamos alguns conceitos, que serão explicados e desenvolvidos em capítulos ulteriores. Fizemo-lo apenas a título de exemplificação, para transmitir idéia sumária do que venha a ser uma linguagem formalizada. Quero insistir, porém, num ponto: ao despojarmos o discurso de suas roupagens idiomáticas, há de remanescer um resíduo formal dotado de alguma significação, sob pena de transformar-se o conjunto num mero cálculo, quer dizer, numa combinação das relações possíveis entre os sinais do sistema, sinais esses que nada dizem, que nada comunicam, como adverte Lourival Vilanova51. d) Por linguagem artística entendemos aqueles modos de significar, de funções variadas, reveladores de valor estético. Sirvamo-nos da literatura, em prosa ou verso, que são modelos característicos, ou da peça jurídica da sentença, ou do relato histórico, ou do parecer do jurista especializado. Seja o relatório médico, as palavras introdutórias de um projeto arquitetônico ou páginas de um livro de Ciência. Nada disso importa. A função não está aqui como fator de identificação: não é o critério. Este é o senso estético, algo que provoca nossa sensibilidade, orientando-a em direção ao belo e produzindo aquela satisfação cuja índole subjetiva e seu caráter intuitivo impedem seja isolado e definido com explicitude. Convocamos novamente a doutrina do jusfilósofo pernambucano52 para ilustrar as noções expostas: “Sob o ponto de vista estético, passa a plano secundário a verificabilidade histórica dos fatos cujo contexto situam-se um César ou um Henrique IV A linguagem aqui é o sistema de símbolos portadores de significações que valem para um universo de formas, de formas do trágico, do sublime e do 51 “Lógica jurídica”, in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 178. 52 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 159. 113 José Diniz de Moraes cômico, e onde as ocorrências e as pessoas são meras possibilidades na ordem dos fatos. Que haja uma confirmação empírica, ou que haja uma discordância com a realidade histórica, não acrescenta nem diminui o valor estético das produções artísticas. A busca da verdade subjacente à composição literária, se é um tema importante sob certos pontos de vista, representa um vetor de análise irrecusavelmente extra-estético. ” O discurso que chama a atenção pelo valor artístico, assumindo, como de fato assume, qualquer das funções que examinamos, pode igualmente revestir-se das formas gramaticais disponíveis à expressão do pensamento, o que significa admitir que, como tipo de linguagem, é critério que pode prevalecer entre os demais. O subjetivismo que preside à utilização desse valor de referência dá margem a intensos desacordos de opinião. Isso, no entanto, não é obstáculo para sua autonomia, que se afirma a cada instante, na medida em que nos deparamos com textos que despertem em nosso espírito, como primeira reação, o sentimento estético que o inspirou. Quem já não leu sentenças ou acórdãos tão harmônicos e bem compostos, estilisticamente, que antes de provocar em nós qualquer tomada de posição acerca da justiça da decisão, ou de seu teor de juridicidade, suscitou a admiração pelo modo de expressar-se, pela nobreza das referências, pela riqueza das imagens e pela combinação simétrica das formas? Pois bem, é precisamente essa linguagem que traz à frente um apelo à sensibilidade estética, aquela que versamos sob o nome de artística. Vimos, portanto, que em toda a formulação linguística, fruto das concepções neopositivistas, preza-se a boa formação da sintaxe frásica e toma-se a verificabilidade como critério semântico para que o texto se enquadre como discurso científico. A linguagem, aqui, é tida como instrumento do saber científico, empregada pelo intérprete jurídico na constituição do direito positivo. É esta busca da excelência sintática dos neopositivistas que os aproxima da Lógica ou, em outras palavras, da linguagem formalizada. O pensar científico, no intuito de precisar a descrição da mensagem legislada, exige métodos que assegurem a estrutura sintática rígida e bem organizada, que, no plano semântico caminhem ao encontro de termos dotados de uma e somente uma significação. Apenas a Lógica, expressão da dimensão formal de toda e qualquer linguagem, com recursos da simbologia, foi capaz de dar substrato a este universo. 114 Apostila de Semiótica Jurídica Acontece que o conjunto escolhido para representar o plano das unidades lógicas constitui um sistema comunicacional, com suas dimensões sintática, semântica e pragmática: uma autêntica linguagem, com a particularidade de ser formalizada. Os recursos semióticos, por sua vez, permitem a análise das três dimensões que esta linguagem apresenta, cada qual analisado de acordo com as respectivas bases: (i) as estruturas frasais e as regras lógicogramaticais nelas contidas; (ii) os tipos de linguagem; e (iii) as funções da linguagem no discurso. De um lado, a referida formalização contemplará os vínculos associativos que ligam os vários signos de um mesmo sistema, expondo à carne viva o plano sintático daquele conjunto, e, na instância semântica, encontrandose a significação que é inerente àquela estrutura formal. De outro, a pragmática da comunicação humana indicará a trajetória imprescindível para a determinação do tipo de lógica com que devemos trabalhar. Ingressemos, agora, nos estudos propriamente da linguagem formalizada, estabelecendo o paralelo entre a lógica e o direito positivo. 2. 3. DIREITO E LÓGICA A Lógica integra a parte da Filosofia que trata do conhecimento. Entre os gregos, inicialmente, assumiu a feição de arte ou dom de produzir argumentos de maneira habilidosa, com o fito de organizar a mensagem, ensejando o convencimento. Evoluiu, em seguida, para tornar-se um conjunto de proposições cujo objetivo ia mais além, oferecendo critérios para a determinação da própria validade dos esquemas intelectuais que buscavam o valor-verdade. O núcleo das preocupações lógicas passou a estudar os modos que presidem o funcionamento do pensar humano, isolando-se a temática do pensamento naquilo que se podia considerar o quadro das relações possíveis entre as várias formas de manifestação do intelecto. Essa função tem início com as associações que nosso espírito elabora a partir dos materiais oferecidos pela intuição. Esses materiais são as ideias, noções ou conceitos. Aliás, o pensamento começa pelo ato da afirmação, que põe o juízo, enquanto este último se exterioriza pela proposição. Foi Aristóteles quem transformou a pesquisa dos conteúdos mentais na secreta intimidade de sua organização interior, num sistema de enunciados de natureza científica. E o fez de modo tão 115 José Diniz de Moraes bem composto que Kant admitiu estar diante de um corpo de conhecimentos pronto e acabado, não havendo como experimentar novos progressos. Com efeito, desvencilhada dos componentes psicológicos que dão vida e movimento às suas estruturas, a Lógica atingiu foros de disciplina particular. Enquanto linguagem, é um sistema de significações dotado de regras sintáticas rígidas - com plano semântico em que seus signos apresentam um e somente um sentido - e que procura reproduzir, com recursos da simbologia, as relações que se estabelecem entre termos, proposições e argumentos. Esclareçamos desde já que assim como a proposição é a expressão verbal do juízo, o termo o é da idéia e o argumento, do raciocínio. Nos nossos dias, a lógica se apresenta em linguagem formalizada, fazendo-se necessário, por isso, referência expressa ao sistema notacional adotado. Esse discurso formalizado requer, para explicá-lo, uma metalinguagem que, por sua vez, para falar acerca da linguagem-objeto, tem de apresentar-se, obrigatoriamente, desformalizada. É impossível conceber-se metalinguagem formalizada transcodifícando linguagem-objeto também formalizada. O enunciado da linguagem lógica dirá: “p→q”; e a metalógica explicitará, afirmando: “esta fórmula molecular exprime o conectivo condicional, de maneira que, sendo verdadeira a proposição ‘p', como antecedente, então a consequente 'q’ também o será. ” Tomada como Ciência, a Lógica consiste num discurso linguístico que se dirige a determinado campo de entidades. Esse domínio é o universo das formas lógicas, situado na região ôntica dos objetos ideais, que, portanto, não têm existência concreta, real; não estão na experiência e são axiologicamente neutros. Apreendemo-los pelo ato gnosiológico da intelecção e o método que se lhes aplica é o racional-dedutivo. Essas formas ideais, contudo, só existem onde houver qualquer manifestação de linguagem, por insignificante que seja. Insistamos em que o objeto da Lógica, enquanto Ciência, é o pensamento da criatura humana, visto na condição de estrutura, independentemente de suas causas genéticas e das circunstâncias externas que lhe imprimem dinamismo funcional, setores especulativos pertinentes à Psicologia. Interessa à Lógica lidar com 116 Apostila de Semiótica Jurídica as entidades formais que organizam a estrutura do pensamento. As ponderações acima mostram-se de grande relevância para o estudo e a aplicação do direito positivo. Considerada a premissa de que o direito situa-se na região ôntica dos objetos culturais, a lógica o encontrará como um autêntico cosmos para dele organizar o seu material ontológico, constituindo verdadeiro sistema formalizado de sobrelinguagem. No entanto, fica a advertência: a Lógica não altera o ordenamento jurídico, mas o descreve em linguagem formalizada, transformando o objeto cultural, que é o direito positivo, em objetos ideais, próprios das Ciências Lógicas. Constitui assim a ampliação dos horizontes culturais existentes. A Lógica atua do mesmo modo que uma sobrelinguagem da Ciência Jurídica, descrevendo e codificando a própria linguagem descritiva do direito, assim como sobrelinguagem da argumentação jurídica. São, portanto, três linguagens-objeto que a análise da Lógica formaliza: (i) a do direito positivo, (ii) a da Ciência do Direito e (iii) a da retórica do direito. Eis o porquê da afirmativa do Professor Lourival50: “A ciência da Lógica, sim, é que é a sobrelinguagem que formaliza a linguagem das proposições jurídicas (da ciência jurídica) e a linguagem das normas (do direito positivo), pois é nesse seu nível que se reduzem as duas capas de linguagem a fim de se obterem estruturas formais, constituídas de variáveis lógicas, de constantes lógicas e de functores intra/interproposicionais. ” Diante deste poderoso instrumental descritivo que é a Lógica, o exegeta do direito encontrará racionalidade no discurso jurídico, sendo capaz, pela utilização das leis e estruturas lógicas, de apontar uma infinidade de características, vícios e contradições no ordenamento normativo. 2.3.1. A Lógica e seu objeto: “Lógica jurídica” e “Lógicas jurídicas” Havemos de convir que a lógica (do grego logiké) é apenas um ponto de vista sobre o conhecimento. Nesse sentido, expressaria a dimensão formal de toda e qualquer linguagem, representada pelo conjunto das regras morfológicas e sintáticas que presidem a composição dos signos, bem como o grupamento dos modos possíveis de associação entre tais unidades, tendo em vista a geração de estruturas cada vez mais complexas. É “Lógica” também a Ciência 117 José Diniz de Moraes que estuda essa estrutura formal, analisando os entes e as relações que se verificam nesse setor do mundo ideal. Mas é importante dizer que, por esse ângulo de análise, a lógica existirá, única e exclusivamente, ali onde houver linguagem. Mais ainda, suas variações estarão ligadas às funções que a linguagem cumpre no contexto comunicacional, de tal maneira que as alterações do uso linguístico determinarão modificações importantes nos padrões lógicos a serem empregados. Dito de outro modo, a pragmática da comunicação humana será o caminho imprescindível para a determinação do tipo de lógica com que devemos trabalhar. Para a linguagem utilizada em função descritiva de situações objetivas, a Lógica é chamada “formar’, “menor”, “Lógica clássica”, “alética” ou “apofântica”, na qual os valores são a verdade e a falsidade; tratando-se da função interrogativa, teremos a lógica erotética, com seus valores cabível ou incabível, pertinente ou impertinente; se a função for a persuasiva, os valores serão o convincente ou o não-convincente; para a linguagem empregada na função prescritiva de condutas, lidaremos com os valores válido e não-válido. Isso, nos horizontes das chamadas “lógicas bivalentes”, porque na pesquisa do plano formal das linguagens, levando-se em conta suas oscilações funcionais, muitas lógicas foram criadas. Com o passar do tempo, apareceram estudos alentados sobre a matéria, de tal sorte que se fala, hoje, em muitas outras lógicas. Pois bem, explorando a temática da linguagem, sob o enfoque da função pragmática do discurso, vamos nos aproximando daquilo que chamamos de “Lógica jurídica”, expressão ambígua utilizada para mencionar a linguagem prescritiva do direito posto, mas também empregada para fazer referência à linguagem da Ciência do Direito e ao estudo do complexo de formas de argumentação que surpreende o sentido retórico das comunicações jurídicas. Essas três “lógicas” se acomodam dentro do campo semântico da expressão “Lógica jurídica”, com os nomes, respectivamente, de “Lógica deôntico-jurídica”, “Lógica da ciência jurídica” e “Lógica da retórica jurídica”. Convém insistir, porém, que essas formas ideais só existem onde houver qualquer manifestação de linguagem, por insignificante que seja. Não há lógica na floresta, no fundo dos oceanos ou no céu estrelado: torna-se impossível investigarmos entes lógicos em qualquer outra porção da existência real que não 118 Apostila de Semiótica Jurídica seja um fragmento de linguagem. O saber lógico pressupõe a linguagem, que é seu campo de eleição, e a ela se dirige não como fim temático e sim como índice temático, para recolher a lição de E. Husserl, oportunamente lembrada por Lourival Vilanova51. Tudo porque o pensamento humano se acha indissociavelmente jungido à linguagem, meio exclusivo de fixar o produto da atividade cognoscitiva e de transmiti-lo nas situações comunicacionais. Ora, transportando essas considerações para o campo do direito, podemos falar numa lógica deôntico - jurídica que terá como objeto a linguagem dos enunciados prescritivos e de uma lógica da Ciência do Direito, preocupada com os enunciados descritivos proferidos pelos juristas. Firmado o pressuposto de que chegamos ao mundo da lógica pela formalização, explicitemos a diferença entre esse processo e a conhecida “generalização”. 2.3.2. Generalização e formalização A linguagem formalizada, portanto, é aquela que logrará plenamente substituir todas as palavras do discurso por símbolos lógicos para a elaboração dos cálculos proposicionais. Porém, como se dá esta formalização? Será que ela se faz por um processo de generalização ou mesmo de um processo de abstração? Qual o método aplicado pela Lógica para chegar a esta formalização? Toda vez que passamos da observação de fatos particulares para uma conclusão geral sobre todos os fatos de uma dada classe, estaremos diante do processo de generalização. O método que lhe convém é o indutivo, que parte de enunciados protocolares observados e, sem esgotar o universo de fatos da mesma índole, pretende extrair lei geral, válida inclusive para os acontecimentos não submetidos à experiência. O enunciado conclusivo seria explicativo do subconjunto dos enunciados protocolares examinados, bem como de seu complemento, isto é, aquele formado pelos eventos não empiricamente testados. O método indutivo ergue-se sobre a base da regularidade objetiva dos fenômenos do mundo e da sua cognoscibilidade pelo homem. Trilhando caminho oposto ao da dedução, pelo raciocínio indutivo realizamos a síntese, ao passo que pelo dedutivo elaboramos a análise. Mas a indução de que falamos é a incompleta, roteiro interativo e constante no quadro das Ciências naturais, na Sociologia, na Psicologia, etc. A chamada “indução 119 José Diniz de Moraes completa”, cuja conclusão geral exaure a classe dos objetos considerados, supõe universos finitos, além de não muito numerosos. Têm-na alguns como simples enumeração, não merecendo o nome de “raciocínio”. Outros, contudo, a incluem no esquema dedutivo, designando-a de “silogismo indutivo de Aristóteles”. Todavia, evoluindo o pensamento do particular para o geral e sacando-se conclusão que difere das premissas, trata-se realmente de raciocínio e sua natureza não pode ser outra que a indutiva. Já a indução matemática guarda o caráter de autêntica dedução, não se confundindo com as duas primeiras. Retomemos a generalização, enquanto processo, para dizer que em seu percurso, quer finito ou infinito o universo de objetos, desde o primeiro registro à conclusão generalizante, o observador não abandona, um momento que seja, o domínio demarcado. Em outras palavras, permanecerá operando no mesmo campo semântico, do começo ao fim. Se a área de verificação constituir-se de metais, por exemplo, sairá o interessado pesquisando, de espécie em espécie, até chegar ao conceito genérico que postula obter, mas conservar-se-á sempre, rigorosamente, dentro da região material dos metais. Se acaso dirigisse a investigação para o lado jurídico dos contratos e outro tanto ocorreria, pois o estudioso não cessaria de falar nessa figura, começando pelos tipos específicos que for encontrando, até surpreender os traços gerais integrantes de todo e qualquer contrato, sem jamais ultrapassar os limites que circunscrevem a matéria. Eis a característica da generalização: atua com conteúdos significativos constantes e uniformes, variando apenas os acidentes que identificam as espécies. Formalizar, entretanto, é algo bem diferente. Nesse processo, deixamos de lado os núcleos específicos de significação das palavras para ficar com signos convencionalmente estabelecidos, que não apontam para este ou para aquele objeto e sim para o objeto em geral. No lugar de João ou de Pedro ou de Antonio ponho “S”, que é o homem em geral, podendo ser substituído tanto por João quanto por Pedro ou por Antonio. Trata-se de despojarmos a linguagem natural, técnica, científica ou qualquer outra, de seus teores estritos de significação, substituindo-os por símbolos que expressem os objetos em geral, os predicados em geral, além das partículas que cumprem funções meramente sintáticas ou operatórias. Desse modo, edificamos um sistema de conhecimentos reduzido às suas estruturas formais, em que os materiais empíricos ou intuitivos são 120 Apostila de Semiótica Jurídica postos entre parênteses, para que surjam em evidência as relações sintáticas do discurso. É o instrumento eficaz para contemplarmos os vínculos associativos que ligam os vários signos de um mesmo sistema, expondo abertamente o plano sintático daquele conjunto. Por outros meneios, podemos dizer que é pela formalização que chegamos ao domínio das formas lógicas. Sim, porque generalizando não conseguimos desprender-nos do campo de irradiação semântica de cada palavra, permanecendo, como já vimos, no plano dos conteúdos materiais. Agora, na formalização, há um descontinuum que representa verdadeiro salto para o território das entidades lógicas. É por isso que depois de substituir “João é médico” por “S é P”, em que “S” é o tópico dos objetos e “P” o dos predicados, posso, perfeitamente, aplicar a proposição “S é P” em domínio estranho, para significar que “o próton é integrante do núcleo dos átomos”, que “o metal é bom condutor de eletricidade”, que “a água do mar é salgada”, que “o homem é racional”, que “a consciência é doadora de significado ao mundo”. Note-se que os exemplos oferecidos ajustamse todos à mesma forma proposicional, variando apenas a circunstância de o objeto, que é sujeito de uma predicação, estar num sintagma nominal mais ou menos complexo, e também assim no que concerne ao sintagma verbal, onde está o predicamento. Chegaremos então ao patamar das formas lógicas e o faremos pelo caminho da formalização. De lá, se quisermos, é fácil retroceder, bastando saturar as variáveis lógicas com as significações de uma linguagem-de-objeto. É a trajetória inversa: a desformalização. Desaparecem os símbolos notacionais e, em seus lugares, aparecem palavras carregadas de significação e pertencentes a certo domínio material. Vale a proposição segundo a qual a generalização está para a particularização, assim como a formalização para a desformalização. Vem ao ponto advertir que a formalização a que nos referimos não se confunde com a atividade de abstração, usada com tanta frequência em todos os níveis comunicacionais. Nesta última, a mente humana provoca um corte conceptual, de modo que logra separar o inseparável. Vejo uma mulher de olhos azuis e a cor de seus olhos me impressiona. Imediatamente, penso que aquela tonalidade se assemelha à cor do céu ou do mar. Recolho somente a cor de seus olhos, como se isso fosse possível, e componho versos que alimentam a imaginação. Estamos diante de processo de abstração, mas abstração que se estabelece no mesmo nível do ser físico 121 José Diniz de Moraes daquela figura feminina. Isolei “propriedades físicas que se manifestam juntas”, declara Lourival Vilanova52 (em exemplo semelhante). E conclui: “Não é assim a abstração em lógica. A proposição não está no mesmo sítio ontológico das letras, sílabas, palavras e orações da linguagem. (... ) A abstração que nos conduz à proposição, como proposição, salta para outro plano: o que podemos denominar o universo das formas lógicas” (o grifo é do original). Mantenhamos na retentiva a diferença entre a abstração isoladora e a abstração lógica. A formalização ou abstração lógica tornou-se ferramenta indispensável ao matemático, ao lógico, ao filósofo, ao linguista, ao que lida com informática e a todos aqueles que pretenderem conhecer a fundo e aprimorar a organização de seu discurso, cuidando zelosamente da dimensão sintática da linguagem. Basta levarmos em conta os sistemas idiomáticos para ver, com clareza, a imprescindibilidade dos controles gramaticais, em grande parte responsáveis pelo sentido preciso das mensagens. Atinemos para que a boa construção da frase é pressuposto inafastável do entendimento comunicacional e as regras de seu uso adequado estão na sintaxe. 2. 3. 3. O domínio das estruturas lógicas Vimos que generalizando não atingiremos a região do logos, permanecendo envolvidos com os núcleos de significação de uma linguagem-de-objeto ou de metalinguagem material. Tão-somente o processo de formalização libertar-nos-á da concretude imanente daquelas linguagens, propiciando o salto para o universo das formas lógicas, autônomo e irredutível. Nele, toparemos com entidades que convivem de modo harmonioso, formando um todo que se movimenta por força de combinações que o cálculo do conjunto admite. Sabemos da existência de unidades, como sabemos a maneira pela qual ocorrem as articulações possíveis entre essas unidades. Mas, sobre a natureza das formas lógicas, nada há para afirmar-se: são conceitos primitivos, situados na raiz do fenômeno do conhecimento, sendo, portanto, indefiníveis. Aliás, são indefiníveis não só as formas lógicas, como o próprio domínio que as recolhe e organiza. Por não consubstanciarem noções derivadas e sim originárias, fundantes, ser-nos-á vedado o ingresso 122 Apostila de Semiótica Jurídica em sua ontologia: um véu espesso permanecerá encobrindo tais essências. O obstáculo, contudo, não é suficiente para tolher esforços no sentido de isolar esse cosmos e estudá-lo nas suas funções. Alojando-se na região ôntica dos objetos ideais, como já dissemos, o ato que apreende as formas lógicas é a intelecção, que capta as noções ou conceitos, como simples representação mental. Em seguida, praticamos o ato de julgar, pelo que afirmamos ou negamos que a ideia de um predicado convém à ideia de dado objeto, sujeito da predicação: é o juízo. Passamos, então, ao raciocínio, operação em que, de dois ou mais juízos, extraímos um terceiro, que deles deriva de modo necessário. Enquanto atos integrantes do processo cognoscitivo, a apreensão nos leva à ideia, noção ou conceito; o julgamento produz o juízo; e a conjugação de juízos com vistas à obtenção de um terceiro manifesta-se como raciocínio. De um lado, atos do espírito; de outro, os produtos finais desses atos. É a distinção entre processo e produto ou entre noeses e noema. O primeiro exprime o ato e o segundo, seu conteúdo. A título de exemplo, no terreno dos fenômenos naturais, o ato de olhar para o horizonte do mar, por onde se desloca um navio, é noeses, ao passo que o navio que surpreendo com o desempenho dessa atividade é o conteúdo noemático do ato, ou noema. Importa lembrar que a Lógica vai parando por aqui, negando-se a discutir as razões determinantes do ato, para não se imitir nos domínios da Psicologia. Oferecidas essas considerações propedêuticas, já podemos dizer que o termo é a expressão verbal da ideia; a proposição, do juízo; e o argumento, do raciocínio. Em outras palavras, as noções, os juízos e os raciocínios são produzidos e permanecem em nossa mente. Verbalizados, surgem como termos, proposições e argumentos, respectivamente. Se, ao lidarmos com a linguagem da Lógica, ativermo-nos às expressões verbais, entidades físicas que suportam significações, nem por isso podemos esquecer estas últimas, no quadro da estrita correspondência que mantêm com as primeiras. Vista a proposição internamente, teremos variáveis de objeto e variáveis de predicado, como categoremas; além de partículas que cumprem papéis meramente sintáticos dentro do esquema proposicional (operadores ou functores e quantificadores), isto é, sincategoremas. A fórmula clássica da estrutura proposicional, na Lógica Apofântica: S é P, mostra S e P como categoremas (S é variável de objeto e P variável de predicado), enquanto o “é” apofântico faz as vezes de sincategorema. Há situações em que o 123 José Diniz de Moraes termo-objeto, o termo-predicado ou ambos são compostos, aparecendo então conectivos como e e o u ligando os símbolos integrantes. N’outras, o termo vem afetado por quantificador, do tipo todos, nenhum, alguns, pelo menos um. Convenhamos nisso: só com categoremas ou com sincategoremas não posso compor uma estrutura formal dotada de validade sintática. A associação de Pedro Paulo alto apóstolo José forte, contado apenas em categoremas, não permite que cheguemos ao nível de uma construção logicamente bem formada. Pelo mesmo motivo, se dispusermos tão-só de sincategoremas (todos e se então ou) não atingiremos o mínimo necessário para satisfazer as normas sintáticas de composição de enunciados, ainda que nos dois exemplos conheçamos as palavras utilizadas. O universo das formas lógicas, porém, não termina com as indagações intraproposicionais. Estas se integram em estruturas mais complexas, até alcançar a condição-limite de sistema, “a forma das formas”, no dizer de Husserl. E as associações se fazem por meio de conectivos que estudaremos em capítulo subsequente (negador, e, ou-includente, ou-excludente, se então, se e somente se). Outras regras sintáticas, agora da Lógica Proposicional, disciplinam a conjugação de proposições numa combinatória apta para a elaboração de infinitas fórmulas, todas rigorosamente pertinentes ao sistema. 2.3.4. Relações lógicas e relações entre os objetos da experiência Os nexos lógicos, como vemos, acontecem num mundo abstrato cujo ingresso se dá a partir da experiência com a linguagem. Sem este ponto de apoio, ninguém penetra nos domínios das entidades lógicas. Entretanto, é com o emprego da linguagem que o ser cognoscente adquire e mantém contato com a realidade circundante, comunicando esse conhecimento a seus semelhantes. É com tal instrumento que ele descreve as mutações que a dinâmica existencial vai produzindo em sua volta, constante e paulatinamente, até permitir que ele se aproprie de uma visão objetiva, que lhe propicie mover-se nessa mesma realidade, cumprindo sua trajetória. Ao fazê-lo, verbaliza as relações que ocorrem no plano da circunstância tangível, depositando em sua linguagem aquilo que vê realizar-se segundo a lei da causalidade 124 Apostila de Semiótica Jurídica física ou natural. Um corpo cai, atraído pelo centro da terra, e com ela se choca. O homem observa atentamente o fenômeno físico provocado na experiência e, pela indução generalizadora, proclama o enunciado confirmatório da conhecida proposição newtoniana: a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Pronto: trata-se de um evento do mundo cosmológico que acaba de ser descrito em linguagem. Surge, agora, a possibilidade de representá-lo por meio da simbologia lógica. Mas, única e exclusivamente, porque foi transcrito em termos verbais. Enquanto não merecesse esse cuidado, continuaria o fenômeno físico que é, todavia, sem capacidade de expressão lógica, pois na região dos fatos não há vínculos dessa natureza. Os vínculos lógicos existem a partir da linguagem, repetimos. Sendo assim, como admitir referências a relações como esta, por exemplo: o evento econômico X implicou o evento político Y? Há implicações (no sentido estritamente lógico) entre eventos econômicos e eventos políticos? Evidentemente, não. Incide aqui a figura mediante a qual o homem transporta para o domínio dos objetos da experiência uma relação de índole lógica. É mera transposição que o falar comum insistentemente registra, mas que não se sustenta numa análise rigorosa. Um acontecimento físico ou social é causa de outras ocorrências físicas ou sociais. A lei que vige é a da causalidade natural, manifestada em termos de antecedência, de simultaneidade ou de sucessividade no tempo, algo inteiramente estranho ao campo da lógica, ao menos das lógicas convencionais. A relação de implicação, em contrapartida, instaura-se entre termos, proposições ou feixes de proposições de maneira que o termo, a proposição ou o conjunto delas, situado no tópico de antecedente, é condição suficiente do termo, da proposição ou conjunto delas, alojado no lugar sintático do consequente que, por sua vez, será condição necessária do antecedente. Consignemos a doutrina de Lourival Vilanova53: “A relação de causa/efeito é uma relação no mundo dos fatos, dos fatos naturais, ou dos fatos socioculturais, Entre objetos lógicos ou objetos formais não se encontra. As premissas não causam a conclusão, o enunciado implicante não causa o enunciado implicado, uma variável de 53 Causalidade e relação no direito, 4a ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p. 39. 125 José Diniz de Moraes objeto x não é causa ou efeito de outra variável y, uma variável R' não é causa ou efeito de outra variável R”, uma variável de classe A não se inclui como causa ou efeito de outra variável B, nem a relação de pertinência de um indivíduo x ‘com sua classe A’ é de causa ou de efeito54”. É que a origem das relações causais-naturais está na experiência com os objetos físicos, provocada ou não pelo homem no seu contato direto com a natureza. Já as relações lógicas dão- se na região dos objetos ideais e partem da experiência da linguagem, mas não estão nela, linguagem. Podemos dizer que esses dois tipos de relações pertencem a ontologias diferentes, de sorte que as interconexões no mundo dos acontecimentos tangíveis não constituem sintaxe: são laços criados no plano da realidade física e explicados pela lei da causalidade natural. Só por excesso vamos nos deparar, aqui e ali, com tal transposição. 2. 3. 5. A chamada Lógica formal e a metodologia A lógica de que vimos falando é a chamada “Lógica Formal” ou “Lógica Menor”, que tem por objetivo o estudo das formas do pensamento, isto é, das ideias, dos juízos e dos raciocínios, bem como de seus correlatos verbais, a saber, dos termos, das proposições e dos argumentos, fazendo-se abstração dos conteúdos significativos a que se aplicam aqueles esquemas. Trata-se de examinar as estruturas do conhecimento, independentemente do objeto mesmo do conhecimento, o que lhe outorga foros de validade universal, uma vez que suas leis estão aptas para incidir em qualquer província do saber. Observe-se, contudo, que a locução “Lógica Formal” não pode escapar da crítica de pleonástica, pois, como ficou registrado, o único caminho capaz de conduzir-nos ao domínio das formas lógicas é o da formalização. A linguagem da lógica é necessariamente formalizada, carecendo de sentido acrescentarmos o adjetivo formal. Ao cabo de contas, toda lógica é formal. Quando, porém, o homem se nutre dos recursos dessa lógica e se dirige a um determinado segmento especulativo, em atitude 54 No texto transcrito, o professor Vilanova emprega fato como entidade extralógica, fora, portanto, do âmbito da linguagem, diferentemente do uso que venho recomendando. A ressalva preserva o inteiro cabimento da citação. 126 Apostila de Semiótica Jurídica cognoscente, aplicando aquelas leis universais ao campo particular que foi proposto, surge a Lógica Aplicada, Lógica Maior, Lógica Material ou, simplesmente, Metodologia. Neste exato sentido, Metodologia significa adaptação da Lógica Menor a uma específica região material. Tenhamos presente que a Lógica Menor ou Lógica Apofântica ou Lógica Alética está credenciada tão-só para revelar a sintaxe da linguagem com função descritiva de situações, não servindo à linguagem das ordens, das perguntas ou da linguagem poética. Evoquemos, novamente, as considerações a respeito do rumo seguido para alcançar o estrato das formas lógicas: partimos da experiência do fato comunicacional e, pelo processo de formalização, fomos retirando os conteúdos de significação das palavras, até o ponto de despojarmos o fragmento de linguagem com que trabalhamos de todo sentido determinado. Remanesceram símbolos representativos do objeto em geral, do predicado em geral, além de partículas operatórias que exercem apenas função sintática. Nesse instante, atingimos as entidades lógicas, nuamente expostas, como estruturas abertas para receber qualquer tipo de objeto e qualquer tipo de predicado, o que lhes atribui status de universalidade. O procedimento que nos leva ao formal é sempre o mesmo, variando somente o domínio de objetos a que nos dirigimos. Da multiplicidade dessas variações advém a quantidade de métodos que os muitos setores reclamam em razão de suas peculiaridades existenciais. E, nesse meio, há de estar o jurídico, com seu modo específico de existir. Cada porção do real representa uma incisão profunda, mas abstrata, imposta pelo ângulo de análise que satisfaz o interesse do sujeito do conhecimento. Este, por sua vez, não ignora a natureza contínua e heterogênea do mundo que o envolve, procurando, enquanto sujeito transcendental, romper aquela continuidade extensiva e intensiva para extrair o descontínuo homogêneo sobre o qual fará incidir o feixe de suas proposições descritivas. Mas é evidente que o objeto de tal maneira recortado reivindica um meio próprio de aproximação e de exploração cognoscitiva, em outras palavras, um método. Daí a insistente asserção segundo a qual a cada ciência corresponde uma metodologia, ainda que um único método admita técnicas diferentes de implantação e de operação. A via racional-dedutiva, por exemplo, utilizada para a intelecção dos objetos ideais, não pode substituir o processo empírico-indutivo, empregado na explicação generalizadora 127 José Diniz de Moraes das ciências naturais, em virtude de razões que provêm da própria ontologia objetai: enquanto os primeiros não têm existência espaçotemporal, não se prestando à experiência, os últimos são reais e empíricos, pouco importando o traço comum de neutralidade axiológica que une tais objetos. Ainda mais: os métodos racionaldedutivo (adequado ao plano dos objetos ideais) e empírico-indutivo (objetos naturais) não convêm à investigação dos objetos culturais, sempre valiosos, positiva ou negativamente. Aqui, o ato cognoscente já é outro - a compreensão - e o caminho a ser percorrido é o método empírico-dialético. O direito positivo, como camada de linguagem prescritiva de condutas, é uma construção do ser humano que está longe de ser um dado simplesmente ideal, não lhe sendo aplicável, também, as técnicas de investigação do mundo natural. As unidades normativas selecionam fatos e regulam condutas, fatos e condutas recolhidos no campo do social. Ora, o fato social, como processo de relação, é um fenômeno com sentido e, sem ele (sentido), que imprime direção aos fatos sociais, é impossível compreendê-los. Os fatos jurídicos, quer os previstos nos antecedentes das normas, quer os prescritos na fórmula relacional dos consequentes, apresentam-se na forma de fenômeno físico, relações de causas e efeitos, mais o sentido, isto é, o fim jurídico que os permeia. Sem a significação jurídica que presidiu a escolha do evento e inspirou a regulação da conduta, não se há de falar em fatos jurídicos e relações jurídicas. Essa parte do mundo empírico pede tratamento especial, que atente para seu lado dinâmico de ações e reações, no esquema de causa e efeito, mas que o considere, fundamentalmente, naquilo que ele tem de significação, de sentido. Quem se propuser conhecer o direito positivo não pode aproximar-se dele na condição de sujeito puro, despojado de atitudes ideológicas, como se estivesse perante um fenômeno da natureza. A neutralidade axiológica impediria, desde o início, a compreensão das normas, tolhendo a investigação. Além do mais, o conhecimento jurídico já encontra no seu objeto uma auto-explicação, pois o direito fala de si mesmo e este falar-de-si é componente material do objeto. Daí a função reconstrutiva do saber jurídico expressa nas proposições da Ciência do Direito. Noções expostas com segurança e vigor pelo já referido pensador pernambucano. Desta maneira, o procedimento de quem se põe diante do direito com pretensões cognoscitivas há de ser orientado pelas 128 Apostila de Semiótica Jurídica possibilidades gnosiológicas do ser humano, levando-se em conta as exigências que o próprio objeto levanta. A Ciência do Direito, como sistema autônomo de conhecimentos, tem sua metodologia, podendo exibi-la em face de outros sistemas que se ocupam da mesma realidade-objeto. 2.3.6. Valores lógicos da linguagem do direito positivo e seus modais Válido e não válido são os dois (e somente dois) valores lógicos das proposições do direito posto, que não se confundem com os modalizadores das condutas intersubjetivas. Estes são três e somente três (lei deontológica do quarto excluído): obrigatório (Op), proibido (Vp) e permitido (Pp). O chamado comportamento facultativo (Fp) não é um quarto modal, precisamente porque se resolve sempre numa permissão bilateral: permitido cumprir a conduta, mas permitido também omiti-la (Pp . P-p). Em linguagem formalizada, dirigindo a atenção para a norma jurídica completa, no seu mínimo deôntico, chegaremos a duas implicações: a da norma primária e a da norma secundária, unidas pelo conectivo disjuntor-includente. Consignemos a doutrina de Lourival Vilanova55 a respeito: “Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas partes, que se denominam norma primária e norma secundária. Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como consequência da verificação de pressupostos, fixados na proposição descritiva de situações fácticas ou situações já juridicamente qualificadas; nesta, preceituam-se as consequências sancionadoras, no pressuposto do não-cumprimento do estatuído na norma determinante da conduta juridicamente devida. (... ) As denominações adjetivas ‘primária’ e ‘secundária’ não exprimem relações de ordem temporal ou causal, mas de antecedente lógico para consequente lógico. ” A título de exemplo, utilizando o sistema notacional inglês, de Bertrand Russel, podemos representá-la assim: D [(f → r ) v (-r → s )], o que possibilita perceber a drástica redução que se promove nos textos do direito positivo, para alcançar a universalidade própria da lógica. Nesse primeiro contato, porém, não aparecem os functores deônticos intraproposicionais, que estão contidos no consequente 55 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 105. 129 José Diniz de Moraes das implicações. Comparece, todavia, o functor interproposicional, representado na fórmula pelo “D”. Em termos de metalinguagem, diríamos “deve-ser que se ocorrer o fato 'f', então se instaure a relação ‘r', ou se não for cumprida a conduta estabelecida na relação ‘r’, seja aplicada a sanção ‘s”'. Como se vê, a lógica é apenas um ponto de vista sobre o conhecimento, de modo que ultrapassar seus limites conduz ao logicismo. Geraldo Ataliba, ao prefaciar a obra “Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo” de Lourival Vilanova, chama a atenção para a circunstância de que a experiência jurídica integral levará em conta todos os aspectos constituintes do dado: o lógico nos enunciados e o empírico nos dados-de-fato, valorativamente selecionados da realidade física e social (que, por isso, se qualifica juridicamente, ou se toma juridicamente relevante). Considerações desse tope nos permitem perceber que a lógica, por si só, não é suficiente para nos conduzir à concreção material da experiência jurídica, isolando, na sua amplitude, tão-só os caracteres formais das normas. 2.4. PROPOSIÇÃO E LINGUAGEM: ISOLAMENTO TEMÁTICO DA PROPOSIÇÃO Dissemos que a Lógica integra a parte da Filosofia que trata do conhecimento. Tal se dá pelo ato intelectivo do pensar; exteriorizado pelas figuras do termo, da proposição e do argumento. Eis a importância da proposição como suporte linguístico que traduz os juízos pessoais, a saber, asserções de que algo é algo. O referido ente lógico tem características próprias dentro da linguagem que o distingue e o eleva a um patamar único, na medida em que o conhecimento adquire proporções adequadas a partir das estruturas proposicionais. Enunciado é o produto da atividade psicofísica de enunciação. Apresenta-se como um conjunto de fonemas ou de grafemas que, obedecendo a regras gramaticais de determinado idioma, consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da comunicação. Para a Lógica Apofântica, que opera com a linguagem tomada em sua função exclusivamente descritiva de situações objetivas, enunciado é toda formação linguística bem construída, indicativa de um acontecimento efetivo, ostentando, por isso mesmo, a propriedade de 130 Apostila de Semiótica Jurídica ser verdadeira ou falsa. A exigência de ser um segmento de linguagem “bem construído” garante ao enunciado aquilo que conhecemos por “sentido completo” e, por conseguinte, sua subordinação às valências lógicas mencionadas. Há palavras frequentemente utilizadas como sinônimas de enunciado: “oração”, “sentença”, “asserção”, “proposição”. Os autores alemães empregam o vocábulo “aussage”, que significa “enunciado”. Ficaremos, porém, com a orientação anglo-saxônica que distingue “sentença”, “oração” (“sentence”) de “proposição” (“proposition”). Para os ingleses, “oração” e “sentença” teriam o mesmo valor semântico de “enunciado”, isto é, a expressão oral ou gráfica de uma proposição, enquanto esta seria o conteúdo significativo que o enunciado, sentença ou oração exprimem. Daí que a mesma proposição possa encontrar diferentes expressões verbais, correspondendo, portanto, a enunciados distintos, num só ou em idiomas diversos. Vejamos este exemplo, em que dois enunciados em língua portuguesa expressam uma única proposição: “o movimento teve a adesão de muitos parlamentares” e “muitos parlamentares aderiram ao movimento”. Ou este, em idiomas diferentes: “it is raining”, “il pleut”, “chove”. Em ambos os exemplos, segmentos de linguagem sintaticamente diversos portam uma única significação. Em contrapartida, pode ocorrer que uma sentença comunique proposições distintas: “No Brasil, o Presidente da República foi deposto”. A frase tanto serve para significar o episódio de 1945, quanto o de 1964. Conhecemos sua “significação geral”, mas desconhecemos seu “sentido específico”. A dualidade “significação geral”/ “sentido específico” cumpre, então, interessante papel para a compreensão do texto. Cremos que se legitima o uso da palavra “proposição”, apesar de algumas críticas advindas principalmente dos nominalistas, para quem as proposições não têm existência real, pelo que preferem referir-se a sentenças ou orações pertencentes às linguagens concretas, faladas ou escritas (daí, cálculo sentenciai). Na verdade, as proposições são objetos conceptuais, o que não importa admitir que desfrutem de existência autônoma, isto é, que haja “proposiçõesem-si”, independentemente de quem possa pensá-las. Nessa linha, a distinção que se estabelece com o termo “enunciado” parece-nos bastante útil. Contudo, quando se afirma que a proposição é o conteúdo de um enunciado descritivo (declarativo, indicativo ou teorético), temos que advertir tratar-se de um excesso. O asserto 131 José Diniz de Moraes vale para as proposições da linguagem descritiva mas, como sabemos, esta não é a única função que a linguagem desempenha no fenômeno comunicacional. Ali onde houver enunciados linguísticos, seja qual for a função, encontraremos proposições com o sentido daquelas sentenças. A redução se explica por motivos históricos, já que a linguagem descritiva de situações foi pioneira e intensamente estudada. Hoje, entretanto, podemos falar de proposições interrogativas, imperativas, exclamativas, etc. No estudo das normas jurídicas, por exemplo, lidamos com “proposições prescritivas”, dirigidas ao comportamento inter-humano, no convívio social. Recomenda-se muita cautela na utilização dos termos “enunciado” e “proposição”, especialmente porque a Lógica tradicional nominava de “proposição” aquilo que os modernos autores ingleses chamam de “sentence” e que nós empregaremos como “enunciado”, “oração” ou “sentença”, ao passo que anotava como “juízo” o que esses últimos indicam como sendo “proposição”. Como dito anteriormente, trabalharemos com os vocábulos “proposição” e “enunciado” (“sentença” ou “oração”), à maneira dos ingleses. Como o interesse da Lógica está voltado para a forma das proposições e não dos enunciados, é sempre relevante lembrar que as proposições não são enunciados e os elementos das proposições e das formas de proposições não são palavras nem expressões linguísticas, mas aquilo que significam. A nota serve para divisarmos o campo temático da Lógica, em face do objeto de investigação da morfologia e da sintaxe gramatical de um idioma qualquer. 2.4.1. Linguagem formalizada e representação simbólica: as formas lógicas nas estruturas proposicionais As particularidades gramaticais de cada língua e os fatores pragmáticos que estão presentes no fato comunicacional dificultam sobremaneira a apreensão das entidades lógicas, sendo necessário formalizar o discurso para percebermos os vínculos associativos que unem os termos, as proposições e os conjuntos de proposições, na figura maior de sistema. Ora, formalizar implica um salto para o domínio das formas lógicas e tal procedimento se dá pelo deliberado abandono dos conteúdos concretos de significação, substituindo as palavras e expressões da linguagem de que tratamos por signos convencionalmente estabelecidos, portadores de um mínimo 132 Apostila de Semiótica Jurídica semântico, qual seja o de representar um sujeito qualquer, um predicado qualquer, uma proposição qualquer, um sistema qualquer. Sem esse resíduo significativo não poderíamos falar de signos, muitos menos de linguagem. Sucede que o conjunto escolhido para representar o plano das unidades lógicas constitui um sistema comunicacional, com suas dimensões sintática, semântica e pragmática. A fim de que possa referir-se de modo apropriado aos objetos ideais com que trabalha, faz-se preocupação constante da Lógica operar com o máximo de rigor. No capítulo “Lógica dos predicados” (melhor seria “Lógica dos termos”), para exemplificar, pretendendo ocupar-se da compostura interna da proposição, o lógico detém-se no estudo do termo sujeito, do termo predicado, da cópula apofântica, dos quantificadores, sugerindo uma convenção sígnica em que as unidades simbólicas, não podendo ser ambíguas, pois a linguagem há de ser precisa, venham a ter uma e somente uma significação. Imaginemos um acontecimento comunicativo do falar comum: “João ajuda seu pai”. “Pai”, nesta frase, denota um termo, está no lugar do nome de pessoa, de um substantivo próprio. Entretanto, quando dizemos “Antônio é pai de João”, a palavra “pai” é o nome de uma relação: “ser pai de”, que tem como seus termos “Antônio” e “João”. No primeiro enunciado, a palavra “pai” está no papel sintático de substantivo próprio, enquanto que no segundo participa como predicado diádico ou “relação” entre dois nomes de pessoas. Pois bem, esta ambiguidade, que muitas vezes abre caminho para a falácia do equívoco, é algo que se pode considerar ínsito às linguagens idiomáticas, muito mais intensamente, é claro, na comunicação ordinária e muito menos nos discursos científicos, dada a artificialidade com que estes últimos são construídos. Para eliminar esse e outros problemas que perturbam o fenômeno comunicacional, imprimindo rigidez e determinação às mensagens, bem como para outorgar presteza e agilidade à combinatória entre as formas lógicas dos diversos sistemas, é que a simbolização da linguagem se apresenta como um passo decisivo. Substituem-se as palavras por meio de letras, números ou sinais, mas sempre de modo arbitrário, segundo as preferências de quem os escolhe. O requisito indispensável repousa na univocidade tão-somente. Admitamos que é possível estudar-se Lógica com os meros recursos da linguagem comum, como o fez Aristóteles e o fizeram tantos outros. Durante muitos séculos foi escasso o nível de formalização da 133 José Diniz de Moraes linguagem dos lógicos. Leibnitz, pioneiramente, concebeu a possibilidade de uma Lógica inteiramente formalizada, expondo as ideias fundamentais daquilo que viria a ser hoje a chamada “Lógica Simbólica” ou “Lógica Matemática'’. Os primeiros resultados concretos, porém, foram colhidos por A. de Morgan e G. Boole, seguindo-se os trabalhos de C. S. Peirce, G. Frege, G. Peano, A. N. Whitehead e B. Russel, que construíram sistemas totalmente desvinculados da linguagem idiomática. Com efeito, a substituição de certos nomes por símbolos de variáveis já denuncia algum grau de formalização, como no exemplo “X” vende o bem imóvel para “Y”. Entretanto, dizemos que a linguagem estará plenamente formalizada quando lograrmos substituir todas as palavras do discurso por símbolos lógicos. Eis um caso: [(p → q). p] → q, da Lógica Proposicional Alética, em que “p” e “q” são variáveis de proposição, "→" e "." são símbolos de constantes (conectivos condicional e conjuntor) e “[ ]” e “( )”são símbolos auxiliares. Não é preciso ressaltar que a adoção de signos que representem as formas lógicas facilita sobremaneira a elaboração dos cálculos (de predicados, de proposições, de relações), por permitir tábuas combinatórias ricas e sofisticadas, abrindo espaço para a criação de sistemas aptos para descrever as variadas e complexas situações do mundo. Para além do interesse teórico que possa suscitar, a matematização da Lógica é a responsável direta por grandes e relevantes conquistas do nosso tempo, especialmente no campo da informática, com o projeto e aperfeiçoamento de circuitos digitais (“hardware”), desenvolvimento de programas (“software”) e toda a gama de contribuições que a computação eletrônica vem exibindo nas sociedades modernas. 2.4.2. As variáveis e as constantes da Lógica Proposicional Alética Entende-se por Lógica Proposicional Alética o capítulo da Lógica da Linguagem Descritiva de situações objetivas, também conhecida por “Lógica Apofântica”, “Lógica Clássica”, “Lógica Menor” ou “Lógica Formal”, que tem como objeto o estudo das proposições consideradas como tais, vale dizer, enquanto proposições, analisando-as na relação com outras proposições e sem se preocupar com sua estrutura interna. Trata-se de uma Lógica bivalente: seus valores são o verdadeiro “V” e o falso “F”, daí o adjetivo “alética”, que vem do grego - “Alethéa” - e significa “verdade”. Na condição de linguagem formalizada que 134 Apostila de Semiótica Jurídica modernamente é, opera com fórmulas (atômicas e moleculares), havendo regras de construção e de transformação que permitem o chamado “cálculo de proposições”. A esquematização formal em que são expressas as fórmulas presta-se para mostrar, desde logo, uma série de afirmações da Ciência Lógica, antecipando-se à própria verificação empírica, para ensejar o asserto sobre a verdade ou falsidade dos enunciados proposicionais. A atenta leitura de certas fórmulas já autoriza afirmarmos o seu caráter de verdadeira (tautologias) ou de falsa (contradições). Na linguagem de que tratamos haverá símbolos de variáveis e símbolos de constantes; os primeiros estão no lugar das proposições e os últimos representam as conexões entre proposições. Além disso, no sistema notacional que viremos a adotar, há os chamados “símbolos auxiliares”, que colaboram no sentido de evitar dificuldades quanto à leitura e interpretação das expressões formais. Nem sempre, porém, estarão todos os tipos sígnicos mencionados compondo uma única fórmula. Aprenderemos, a seguir, que uma variável proposicional, isoladamente considerada, já consubstancia uma fórmula e que os símbolos auxiliares são recomendáveis apenas quando houver possibilidade de dúvidas, em face de leituras diferentes. São elucidativas, por isso mesmo, as palavras de Echave, Urquijo e Guibourg56: “Una fórmula está siempre compuesta, en forma exclusiva, por los signos apuntados, que constituyen - por así decirlo — su elenco estable. Ningún actor ajeno a la compañía puede introducirse en la función... Que variables, conectivas y signos auxiliares formen el elenco estable del teatro lógico no implica que todos ellos deban estar siempre en escena: bastará con que haya, por lo menos una variable. ” As variáveis proposicionais são símbolos que representam uma proposição qualquer, a proposição em geral, e que podem ser substituídas, no instante em que quisermos, por uma dada proposição, concretamente especificada. Alguns autores preferem chamá-las de “letras esquemáticas” ou “letras sentenciais”, mas insistamos na advertência de que as proposições com as quais substituiremos as variáveis proposicionais, letras Esquemáticas ou letras sentenciais, que fazem agora os nossos cuidados, são 56 Lógica, proposición y norma, Bueno Aires, Astrea, 1981, p. 43. 135 José Diniz de Moraes exclusivamente as correspondentes a enunciados descritivos de situações objetivas. Os símbolos de variáveis da Lógica Proposicional, por significarem uma proposição qualquer, conservam esse mínimo semântico, sem o qual não seriam signos. Não devemos confundir, portanto, a variável proposicional; que é um lugar sintático, com a proposição concreta que, porventura, venha a preencher aquele espaço lógico. Esta pode manifestar-se, verbalmente, pela sentença que bem entendermos, desde que seja declarativa ou indicativa de uma situação objetiva. Todavia, se tivermos duas ou mais variáveis proposicionais, a interpretação que dermos a uma das variáveis será restritiva das demais, ou seja, posso atribuir a “p” um significado qualquer; do mesmo modo a “q”. Mas, quando escolher a sentença de “q”, terei que excluir aquela primeira, outorgada a “p”. Ao menos dentro da mesma sequência discursiva, pois num segundo momento estarei livre novamente, para eleger o conteúdo dos enunciados, de tal modo que o espaço sintático de “p” pode ser empregado para abrigar outra forma descritiva de significação determinada. Função proposicional é um enunciado que, tendo a estrutura sintática de proposição, não se apresenta completa e conserva certo grau de indeterminação. Como nem todos os seus termos estão especificados, não há como promover o teste empírico e submetê-la aos valores “verdadeiro” e ‘‘falso”. Nada obstante, por revestir a forma sintática inerente às proposições, bastará substituirmos a variável ou as variáveis por constantes, recolhidas no domínio próprio, para que a expressão se converta em entidade proposicional. Quem enunciar: “o número X é divisível por 3” não estará formulando uma proposição. Impossível seria comprovar seu teor de verdade ou de falsidade. Porém, desde que venhamos a trocar “X” pelo número 65, imediatamente aquela organização sintática se transforma em proposição, oferecendo ensejo a que lhe prediquemos o valor falsidade. Igualmente, teremos proposição se o número consignado for 18, momento em que seu valor lógico será o verdadeiro. A ideia de função nasceu na Matemática moderna, juntamente com a poderosa noção de variável. Vimos que no enunciado “S é P”, “S” e “P” são variáveis (categoremas, na terminologia clássica), enquanto o “é” apofântico aparece como constante (sincategorema). Uma relação “R” é funcional, ou simplesmente “função”, sempre que a todo elemento “Y” corresponda um elemento “X”, tal que “xRy”. 136 Apostila de Semiótica Jurídica Por outro giro, se “xRy” e “zRy”, então “x=z”. Chamam-se “valores do argumento” os objetos que ocupam o lugar sintático de sucessor, tendo em vista a relação “R”, e “valores em função” aos predecessores do mesmo vínculo (“xRy”). Num exemplo da Matemática, se uma variável “x” tem seu valor dependente de outra variável “y”, de forma que “x = 2y”, é evidente que o valor de “x” está ligado ao valor de “y”, de tal maneira que vale o asserto segundo o qual “x é função de y”, ou, em linguagem formal “x = f(y)”. Salientese, contudo, que nem toda relação entre variáveis constitui uma função: em “ser maior do que”, não temos relação funcional, pois para cada valor de “y” haverá um número infinito de valores de “x”, satisfazendo a relação “x > y”. A convenção mais difundida para signos de variáveis é aquela que os representa por consoantes minúsculas do final do alfabeto: p, q, r, s, t, etc., acrescentando-lhes aspas simples, segundo as necessidades de variação simbólica. Assim, p e p’, q e q’, r e r’, que lemos “p” e “p-linha”, “q” e “q-linha”, “r” e “r-linha”. As constantes da Lógica Proposicional Apofântica são os conectivos, partículas que cumprem a função operatória de associar as variáveis de proposição para formar estruturas mais complexas. São em números de 6 (seis): o negador, o conjuntor, o disjuntor includente, o disjuntor excludente, o condicional ou implicador e o bicondicional ou bi-implicador. O primeiro, negador, é monádico, uma vez que atua exclusivamente sobre a fórmula que está à sua direita. Os demais são diádicos ou binários, porquanto unem duas fórmulas, exercendo sobre ambas sua influência sintática. Os conectivos são conhecidos também como “conectivos extensionais”, “constantes lógicas”, “operadores” ou “functores” e seu papel não apenas se circunscreve a afetar uma fórmula (operadores monádicos) ou Unir fórmulas - uma à direita, outra à esquerda como no caso dos functores diádicos: deles depende o valor lógico das estruturas formais, daí a locução “conectivos extensionais”. De fato, o valor verdade ou falsidade que venhamos a extrair de uma formação lógica bem construída está na estrita dependência do tipo de conectivo que aproxima os termos da composição. Além de inverter o valor da fórmula a que se liga (sempre pelo lado esquerdo), que é propriedade do negador, os demais operadores (diádicos) combinam de certa maneira os valores das expressões componentes, de tal sorte que influem, decisivamente, no resultado final, como teremos a oportunidade de conhecer ao examinarmos as 137 José Diniz de Moraes peculiaridades de cada um, mediante observação atenta das respectivas tabelas de casos possíveis (que alguns autores preferem chamar de “tabelas de verdade”). Há muitas notações para representar as constantes lógicas. O negador, por exemplo, manifesta-se por meio dos seguintes símbolos: "-", "~" ou “” (afetando aqui a variável “p” por cima e não pela esquerda); o conjuntor, por ". ", "^", ou por “&”; o disjuntor includente, por “v”; o disjuntor excludente por "≠" ou “w”; o condicional, por “→” ou por “¯->”; O bicondicional, por "≡" ou “<->”ou ainda por "↔". Todos esses símbolos dizem respeito ao sistema notacional de B. Russel conhecido como “notação inglesa”. Muito difundido, também, é o sistema polaco, proposto por Lukasiewicz, que tem a particularidade de empregar somente letras do alfabeto, de tal modo que dispensa a utilização dos símbolos auxiliares. Outros existem, contudo. Tanto os símbolos de variáveis quanto os de conectivos são conceitos fundantes da Lógica Proposicional Alética. A partir deles, e com auxílio de regras de inferência, chegaremos aos conceitos derivados, exaurindo o sistema. Façamos a comparação: Notação Polaca Notação Inglesa “Np” "-", "~" ou “"” Negador “Kpq” ". ", “^” ou "&" Conjuntor “Apq” “v” “Jpq” Disjuntor includente “≠” ou w Disjuntor excludente “Cpq” "->", "→" ou “3” “Epq” "≡", "↔" ou "<->" Condicional Biconditional Adotaremos o sistema notacional inglês, na primeira de suas variantes: "-", ". ", “v”, “->” e "≡". Como símbolos auxiliares, vamos utilizar os parênteses “ ()” , os 138 Apostila de Semiótica Jurídica colchetes “[ ]”, as chaves “{ }” e as barras “ | | ” . Exatamente nessa sequência. Tais pares de sinais gráficos atendem ao objetivo de esclarecer os conectivos dominantes, sendo empregados para indicar grupamentos simbólicos que evitem a dualidade de interpretações, com o mesmo efeito da linguagem da Álgebra. Assim, a expressão algébrica x+y. z é susceptível de duas traduções: x+(y. z) e (x+y). z. Há quem utilize tão-só os parênteses “() ”, justapondo-os nos casos em que a leitura das expressões requer. 2.4.3. Cálculo proposicional Fórmula é uma expressão lógica bem construída, composta por apenas um ou por mais símbolos, dentre aqueles relacionados no sistema notacional escolhido. Dizer-se que a fórmula é uma expressão lógica bem construída significa admitir que foi formada em estrita observância às correspondentes regras de construção. São elas: R1) Uma variável proposicional, isoladamente considerada, é uma fórmula. Exemplos: “p”, “q”, “r”, etc. R2) Se antepusermos o negador a uma fórmula constituída por uma variável proposicional, teremos outra fórmula. Exemplos: “-p”, “-q”, -r”, etc. R3) Uma fórmula ligada a outra fórmula por um, e somente um operador diádico, é também uma fórmula. Exemplos: “pvq” “-p. -q”, “p≡q”, “-p. q”, “-p->-q”, “p. q", “[(p->q). -p]->q", “(p≡q)≡(p->q). (q->p)”, etc. Os símbolos auxiliares exercem papel importante para a identificação das expressões formadas na conformidade de R3, porquanto os conjuntos encerrados entre parênteses, entre colchetes, entre chaves e entre barras, representam uma única fórmula. A propósito, vê-se que existem, no último exemplo, sete fórmulas. Ei-las: a) “p”, b) “q”, c) “(p≡q)”, d) “(p->q)”, e) "(q->p)", f) "(p->q). (q->p)” e a expressão final que decompõe o bicondicional: g) “(p≡q)≡(p->q). (q->p)”. Nominaremos de fórmulas atômicas aquelas construídas em consonância com R1, vale dizer, uma variável isoladamente considerada. Todas as demais serão moleculares, incluindo-se a formada de acordo com R2, ou seja, uma única variável proposicional precedida do operador monádico. A fórmula atômica é também conhecida por “simples”, sendo “complexa” a molecular. Os 139 José Diniz de Moraes termos vêm da Química, na qual os símbolos das moléculas são obtidos por associações de símbolos de átomos, que são originários ou primitivos e, portanto, indecomponíveis. Reiteremos a afirmação mediante a qual o valor lógico da fórmula molecular é uma função do valor das fórmulas atômicas que a compõem, tomando-se como referência o conectivo empregado. Em outras palavras, uma fórmula complexa será verdadeira ou falsa na dependência da verdade ou da falsidade das fórmulas simples que nela se integram, mais a consideração do operador lógico presente. Cálculo de um sistema é o conjunto das relações possíveis entre as unidades que o compõem. Tratando-se de um sistema lógicoproposicional, em que as unidades são expressões simbólicas chamadas de “fórmulas” (atômicas ou moleculares), seu cálculo será representado pelo conjunto das relações possíveis entre as fórmulas desse sistema. Assim, fala-se em “cálculo de predicados”, “cálculo de quantificadores”, “cálculo de classes”, “cálculo proposicional”, etc., tudo com referência ao conjunto das relações que se podem extrair entre os predicados, entre os quantificadores, entre as classes, entre as proposições de um sistema considerado. Ora, dado que o sistema com que operamos é o proposicional, formado por elementos que são as fórmulas simples e complexas a que nos referimos para apuração do cálculo desse sistema, é preciso conhecer as regras sintáticas de construção e de transformação daquelas fórmulas. As regras de construção já foram examinadas; cabe-nos, então, indagar de que modo aquelas unidades lógicas se modificam, movimentando as estruturas: são as regras de transformação, ou de demonstração, também conhecidas como “regras de inferência” e que exprimem a maneira como é possível transitar, validamente, de uma fórmula a outra, mais ou menos complexa, mantendo-se rigorosamente dentro do sistema. Dito de outro modo, são instruções que nos permitem transformar dada proposição em novas proposições também verdadeiras. Como tais regras falam da linguagem formalizada da Lógica, indicando os procedimentos que devemos seguir para a movimentação de suas estruturas, atingindo unidades formalmente diferentes, integram o nível da Metalógica, isto é, da linguagem que fala da Lógica, não devendo confundir-se com as tautologias em que estas leis se manifestam. São estratos de linguagem de hierarquias diferentes: as fórmulas tautológicas, na posição de linguagem-objeto e as regras de inferência, como metalinguagem. Cabe aqui a analogia com os 140 Apostila de Semiótica Jurídica manuais de instrução para o bom uso de certos bens, como automóveis e eletrodomésticos em geral, em que fica patente a diferença entre o objeto adquirido que, no caso, não se manifesta como linguagem, e o corpo de normas de procedimento, dele inteiramente distinto. Ao converter um dado sistema em objeto de nossa análise, vemos que é construído por conceitos primitivos e por outros conceitos obtidos dos primeiros por derivação, daí chamarem-se “conceitos derivados”. O procedimento de derivação é regulado pelas regras de inferência que, rigorosamente, não pertencem ao sistema, integrando linguagem de sobrenível. No plano considerado, teremos apenas conceitos primitivos e conceitos derivados ou proposições axiomáticas e proposições teoremáticas. Três são as regras de inferência: a) a substituição simples; o intercâmbio; e c) o modus ponens (ou regra de separação). Pela substituição simples, permite-se trocar uma variável qualquer por outra variável ou por uma fórmula molecular, sem que se altere o valor lógico da expressão. Entretanto, a substituição há de operar-se em todas as aparições da variável. Vejamos estes dois exemplos: (p v q) ≡ -(-p. -q) (s v q) ≡ -(-s. -q) substituição da variável “p” pela variável “s”. ( p v q ) ≡ (-p. q) [(r ≡ s) v q] ≡ - [-(r ≡ s). q] substituição da variável “p” pela fórmula molecular (r ≡ s. ). Já o intercâmbio autoriza a permuta de toda e qualquer fórmula por outra, desde que lhe seja equivalente. Ao passo que a substituição simples, quando realizada numa variável, pressupõe a necessidade de implementá-la em todas as aparições dessa variável, no intercâmbio, a substituição pode operar- se apenas uma vez, segundo o interesse de quem exercita. Na fórmula tautológica: [(p -> q) . (q -> r)] -> (p -> r), conhecida como “transitividade do condicional”, podemos promover o intercâmbio de “(p -> q)” por “(-p v q)”, dada a equivalência entre as duas expressões simbólicas: “(p -> 141 José Diniz de Moraes q) ≡ (-p v q)”. E, mesmo que houvesse outras manifestações da fórmula intercambiada, a substituição seria opcional: ou promovemos o intercâmbio em uma só aparição, ou o fazemos em algumas delas, ou, finalmente, em todas. Nisso se distingue da substituição pura e simples. No modus ponens, ou regra de separação, se admitirmos um condicional “(p -> q)” como verdadeiro, e afirmarmos a verdade do antecedente “p”, necessariamente teremos que reconhecer a verdade do consequente “q” (o antecedente é condição suficiente do consequente). Diz-se também “regra de separação” porque este raciocínio “afasta”, “isola”, “separa” o consequente da fórmula molecular “(p -> q)”. Se as regras de substituição e de intercâmbio representam procedimentos auxiliares para a movimentação das estruturas do cálculo proposicional, o princípio do modus ponens, transitando das premissas para a conclusão do pensamento, pode ser qualificado de raciocínio dedutivo por excelência. As chamadas “regras de inferência” são, em rigor, procedimentos de demonstração, preceitos de como conduzir as provas neste campo do conhecimento formal. 2.5. TEORIA DAS RELAÇÕES Carnap utilizou “predicado” para indicar o símbolo de propriedades ou de relação atribuíveis a um indivíduo. Exposto de modo distinto, na composição interior de um enunciado proposicional, vamos encontrar nomes de indivíduos (de pessoas ou de objetos) e outras palavras ou expressões que designam qualidades (propriedades) atribuídas aos nomes. Além disso, em alguns casos, em vez de propriedades ligadas aos nomes, temos uma relação entre indivíduos. São duas as formas do predicado: aparece como (i) característica ou propriedade conferida a um indivíduo; ou (ii) à maneira de uma relação que vincula dois ou mais indivíduos. Atinemos para os exemplos: 1. Pierce era americano. 2. Cabral foi um grande descobridor. 3. Sócrates foi mestre de Platão. 142 Apostila de Semiótica Jurídica 4. Três é maior do que dois. 5. Rodolfo prefere o esporte aos estudos. 6. Na lista dos aprovados, Otávio esteve abaixo de Júlio, Pedro e Augusto. 7. Considerando-se os dez primeiros números inteiros, 6 é menor que 7, 8, 9 e 10. Em todos eles, sem contar com os nomes, as demais palavras ou expressões cumprem o papel de predicados. Nos exemplos 1 e 2, os predicados guardam a forma de qualidades, características ou propriedades que reconhecemos aos indivíduos (no caso, pessoas) Pierce e Cabral. Nos enunciados subsequentes (3, 4, 5, 6 e 7), aquilo que encontramos é uma relação: entre dois nomes de pessoas, como em 3; entre dois nomes de números, como em 4; entre três nomes, sendo um de pessoas e dois de atividade, como em 5; entre quatro nomes de pessoas, como em 6; e, finalmente, entre cinco nomes de números, tal como em 7. Isso nos permite afirmar que os predicados são monádicos (quando se referem, isoladamente, a um indivíduo) ou poliádicos (quando vinculam dois ou mais indivíduos). Vê- se, então, nos mencionados exemplos, que em 1 e 2 os predicados são monádicos; em 3 e 4 são diádicos (ou binários); em o predicado é triádico; em 6 é tetrádico; e em 7 é pentádico. Em face do que foi dito, portanto, é intuitivo perceber que o tema “Teoria das Relações” nada mais é que um subcapítulo da Lógica dos Predicados ou mesmo “Lógica dos Predicados Poliádicos”. Trata-se de uma parte importantíssima da Lógica e seu desenvolvimento inicial é atribuído a A. de Morgan e a Charles S. Peirce, principalmente no que diz respeito ao chamado “Cálculo de Relações”. Lembremo-nos que em todo o segmento do saber científico, seja ele qual for, encontramos a descrição de relações entre os mais variados entes, físicos, ideais, culturais ou metafísicos, e que o “substractum” desses vínculos há de ser conhecido no plano dos estudos lógicos. De fato, tanto as relações matemáticas, químicas, biológicas, fisiológicas, quanto as relações históricas, antropológicas, psicológicas, sociológicas, éticas e jurídicas hão de ser colhidas, nos seus fundamentos últimos, no domínio da Lógica dos Predicados Poliádicos ou, o que é a mesma coisa, no âmbito da Teoria das Relações. Eis um dos motivos pelos 143 José Diniz de Moraes quais a Lógica é considerada como a base de todas as outras ciências, seja pela circunstância de que em cada raciocínio que empregamos estão presentes conceitos no universo da Lógica, seja porque toda inferência, para ser correta, há de conformar-se aos cânones dessa disciplina. 2.5.1. Simbolização: relações de primeira ordem e relações de segunda ordem A representação das variáveis e constantes lógicas mediante símbolos arbitrariamente convencionados é um dos mais significativos traços da Lógica atual, conhecida por isso como Lógica Simbólica ou Lógica Matemática. Adotemos, pois, as letras maiúsculas “R”, “S”,..., para simbolizar relações e as minúsculas “x”, “ y ” , p a r a denotar as variáveis de nomes de indivíduos ou de objetos, mais simplesmente, variáveis de objetos. Teremos, então, “xRy” no lugar do enunciado “o objeto x tem a relação R com o objeto y”. Da mesma forma, mas agora com a utilização do negador símbolo que já conhecemos do cálculo proposicional, negamos aquela relação: “-(xRy)”, que significa afirmar a inexistência da relação R entre os objetos x e y. A variável de objeto “x” ocupa o tópico de predecessor da relação “R”. A outra variável de objeto “y” figura na posição de sucessor. Diremos, assim, que todo o objeto que tenha relação “R” com algum objeto “y” é um predecessor com respeito à relação “R”; igualmente, todo o objeto “y” para o qual exista um objeto ux” tal que “xRy” é um sucessor com respeito à relação “R”. Para designar esta posição sintática, os lógicos empregam também os termos “anterior” e “posterior”; região anterior e região posterior; bem como região esquerda e região direita. A classe de todos os predecessores, tendo em vista a relação “R”, é chamada de domínio e a classe de todos os sucessores, de contradomínio ou de domínio recíproco da relação “R”. No vínculo de paternidade, por exemplo, a coleção de todos os pais forma o domínio, enquanto a dos filhos, seu contradomínio ou domínio recíproco. Tomando-se como referência a relação jurídica de venda e compra, todos os vendedores integrarão seu domínio e todos os compradores, seu contradomínio, já que os primeiros ocupam o lugar de predecessores ou anteriores, ao mesmo tempo em que os últimos estão no tópico de sucessores ou posteriores. 144 Apostila de Semiótica Jurídica Existem relações de diversas ordens. Relações de primeira ordem são aquelas que ocorrem entre nomes de indivíduos ou de objetos, ao passo que as relações de segunda ordem enlaçam não indivíduos ou objetos, mas classes ou relações de primeira ordem, isto é, são relações que se estabelecem entre relações. O critério é idêntico para falarmos de relações de terceira, quarta ou enésima ordem. Vezes há, contudo, em que nos deparamos com relações mistas, nas quais figura um nome de indivíduo na região anterior (predecessor) e uma classe de indivíduos na região posterior (sucessor). Para os objetivos deste estudo, porém, lidaremos mais frequentemente com relações de primeira ordem, em que tanto predecessores como sucessores são nomes de indivíduos. 2.5.2. As propriedades, as funções e as qualidades das relações Dada a relação - “xRy” - notamos que pode estar construída de tal modo que a um “x” corresponda um único “y”; a “x” correspondam vários “y”; a um “y”, vários “x”; ou a vários “x” correspondam vários “y”. Exemplifiquemos. Na relação de paternidade, expressa simbolicamente por xRy, podemos enunciar: “x é pai de y”. Um pai pode ter vários filhos, todavia, um filho terá somente um pai. y’ y” X y’” Relações como essa denominamos uni-plurívocas (porque há um só nome na região anterior e vários na posterior). Chamam-na, também, de anterior-unívoca (pois o nome que está na posição de predecessor é único). No campo da Matemática, esta categoria assume extraordinária importância e é conhecida como relação funcional ou, simplesmente, função. Reconhecemo-la sempre que a todo objeto “y” corresponder um único objeto “x”, tal que “xRy”. A relação “x é pai de y” é tipicamente uma relação funcional, visto que para toda pessoa “y” existe unicamente outra pessoa “x”, que é pai de “y”. y''' Na relação conversa, isto é, “yRx”, ou “y é filho de x”, temos um vínculo pluriunívoco ou posterior-unívoco, consoante queiramos 145 José Diniz de Moraes salientar o perfil total da relação, ou vê-la apenas por um dos lados. y’ y” X De outra parte, a relação “x é esposa de y” é unívoca, também conhecida como função biunívoca (Matemática), ao menos na concepção cristã de matrimônio. Entre os maometanos, esse vínculo figura no plano das relações pluriunívocas ou posterior-unívocas, considerando-se que, na hipótese, vários “x” podem ser esposas de um único “y”. Finalmente, há relações que são pluriplurívocas porquanto vários nomes podem assumir o espaço da região anterior, o mesmo sucedendo com o lugar de sucessor. São exemplos: conhecido de x y amigo de colega de Nelas, são diversos os nomes aptos para figurar no pólo de predecessor ou no posto de sucessor. Teríamos: x’ y ’ x” y ” x’” y’” Cumpre advertir que nem toda relação é uma função. Este último termo tem sentido mais restrito, aplicando-se apenas às relações uni-plurívocas e às uni-unívocas ou biunívocas. 146 Apostila de Semiótica Jurídica Três características são particularmente relevantes para a teoria das relações. Vamos examiná-las: a) Reflexividade Diz-se que uma relação é reflexiva se o nome do indivíduo inscrito no predecessor, ou no sucessor, estiver em correspondência com ele próprio. Dito de outra maneira, sempre que a relação for universalmente válida com anteriores e posteriores idênticos. A classe das relações reflexivas é o conjunto total dos vínculos que existem entre uma coisa e a mesma coisa, por Força da identidade dos termos neles atrelados. Utilizando a simbologia, teremos: “xRx”. São exemplos de relações reflexivas: a igualdade, a congruência e a equivalência. Aliás, nesses casos, a reflexividade é total, porque tais relações são sempre reflexivas. Em contraparte, há vínculos que nunca podem ser reflexivos, configurando-se, por via de consequência, como irreflexivos. São todos aqueles em que se toma impossível que O mesmo nome ocupe o espaço de predecessor e sucessor, no âmbito da mesma relação. A título de exemplo, encontramos inúmeras relações, tais como “maior que”, “pai de”, “ao norte de”, “mais velho que”, “casado com”, etc. Hipótese genuína de relação irreflexiva é a jurídica, dado que ninguém pode estar, juridicamente, em relação consigo próprio. O direito pressupõe, inexoravelmente, dois sujeitos distintos, no mínimo, como imperativo de sua fundamental bilateralidade. Entre as relações reflexivas (que sempre o são) e as irreflexivas (que nunca poderão ser reflexivas), encontramos as assim chamadas semi-reflexivas, as quais assumem por vezes um ou outro caráter, como em “elogiar”, “quadrado de”, “respeitar”, “estar satisfeito com”, etc. “X” tanto pode elogiar “y”, como “elogiar-se”; “4 é o quadrado de 2”, mas “1 é o quadrado de 1”; “x” pode respeitar “y”, como pode, também, “respeitar-se”, “um pai pode estar satisfeito com o filho”, porém pode, igualmente, “estar satisfeito consigo mesmo”. b) Simetria Uma relação é simétrica quando, se ocorre entre “x” e “y”, também se dá entre “y” e “x”. São simétricas as relações: “casada com”, “vizinho de”, “compatível com”, “paralela a”, e muitas outras. Já empregamos, linhas acima, a expressão “relação conversa”, sem defini-la. Vamos fazê-lo agora, para enfatizar a circunstância 147 José Diniz de Moraes de que, numa relação simétrica, o objeto e seu converso são iguais. Relação conversa é aquela que se obtém pela inversão da ordem de sucessão de seus membros. Opera- se uma troca de posições, em que o sucessor passa ao tópico de predecessor e este assume o lugar do sucessor. Com tal modificação, ressalvado o caso das relações simétricas, altera-se o vínculo. Observamos alguns exemplos desse paralelismo: Relação original Relação conversa “x é maior do que y” “y é menor do que x” “x é pai de y” “y é filho de x” “x é marido de y” “y é mulher de x” “x é professor de y” “y é aluno de x” “x está ao norte de y” “y está ao sul de x” Também no quadro de estudo das relações simétricas podemos falar de uma categoria intermediária: as relações semi-simétricas, que se apresentam ou não com as características descritas, dependendo da situação. No exemplo “x ama y”, este amor pode ser unilateral, assim como correspondido. Outro tanto acontece com “x aprende de y” ou “x coopera com y”. c)Transitividade Uma relação é transitiva, numa classe K, se, para três elementos quaisquer “x”, “y” e “z” dessa classe, as condições “xRy” e “yRz” sempre implicam “xRz”. Vimos, no cálculo proposicional, que a transitividade é uma das propriedades do conectivo condicional, de sorte que “[(p->q). (q-r)]->(p->r)]”. Aqui, as variáveis são proposições e não nomes de indivíduos. Tomemos, no entanto, alguns exemplos da linguagem ordinária, envolvendo indivíduos. “Se um tigre é maior do que um gato e um gato é maior do que um rato, então o tigre é maior do que o rato.” “Se Artur é mais velho do que Pedro e Pedro é mais velho do que José, então Artur é mais velho do que José.” Vê-se que as relações “mais velho do que”, “maior do que”, “superior a”, “preferível a” são transitivas. 148 Apostila de Semiótica Jurídica Nada obstante, relações há que nunca são transitivas, como, por exemplo, “x é mãe de y” ou “y é pai de z”. Nesses casos, se “x” é mãe de “y” que é mãe de “z”, então “x” é avó de “z” e nunca “mãe de z”. São denominadas, por isso, intransitivas. Entre umas e outras, porém, temos as relações semitransitivas, como “ser amigo de”, “conhecer”, etc., as quais se apresentam ora como transitivas, ora como intransitivas, dependendo das circunstâncias. 2.5.3. Sobre a relação de identidade Entre os conceitos lógicos não pertencentes ao cálculo proposicional, como ensina Alfred Tarski, o de maior importância é, provavelmente, o conceito de relação de identidade. Sua definição foi formulada por G. W. Leibniz (1646-1716), aproximadamente nestes termos: “x = y se, e somente se, x tiver toda a propriedade que y tenha, e y tiver toda a propriedade que tenha x.” A forma lógica é a do bicondicional (se, e somente se), como convém a uma definição bem composta. Nela, o sinal que se pretende definir, está empregado unicamente no definiendum, não aparecendo no definiens, aspecto que a recomenda. Tomando-a como ponto de partida, os lógicos deduziram outras leis pertencentes à teoria da identidade, das quais as mais importantes são as seguintes: “Todo objeto é igual a si mesmo: x = x” Esta lei (i), tal qual enunciada, chama a atenção para o caráter reflexivo da identidade. “Se x = y, então y = x” Quer significar (ii) que a relação de identidade é simétrica, sendo iguais, ela e sua conversa. “Se x = y e y = z, então x = z” Salienta-se, aqui, a propriedade transitiva inerente à relação de identidade (iii). “Se x = z e y = z, então x = y” De acordo com esta formulação, se dois objetos são iguais a um terceiro, então são iguais entre si (iv). 149 José Diniz de Moraes Para concluir, registre-se que os termos “igualdade” e “identidade”, sempre que utilizados no campo da Lógica, são sinônimos. 2.5.4. Cálculo das relações Cálculo pode ser definido como o conjunto de relações entre os símbolos de um sistema. Tratando-se de assunto em que os símbolos do sistema representam relações, teremos então um conjunto de relações entre relações. O cálculo de relações é uma parte do tema maior, a Teoria das Relações. Seu objetivo principal é o estabelecimento de leis formais que regem as operações por meio das quais se constroem relações a partir de outras relações dadas. Comecemos por aludir a dois importantes conceitos desse cálculo: relação universal e relação nula. (i) Relação universal A relação universal é aquela que vincula todo indivíduo a todo indivíduo, dentro de determinado contexto. Mudando as palavras, é a relação que se mantém entre quaisquer dos indivíduos do conjunto universo. O símbolo que a exprime é “V”. Isolando-se a classe dos advogados, a relação “ser colega de” está presente para qualquer par de seus membros. É exemplo de relação universal, válida, naturalmente, dentro do mencionado universo de discurso. (ii) Relação nula Relação nula ou vazia é aquela que nunca se estabelece entre pares de indivíduos do conjunto tomado como universo de referência. Só existiria entre termos que não possuem identidade. Como a identidade é a relação que todo indivíduo mantém consigo mesmo, relação nula ou vazia é aquela que não se instala, no quadro, é claro, de determinado universo discursivo. Para o conjunto de indivíduos solteiros (na acepção restrita da palavra), “ser casado com” é uma relação nula. Representa-se assim: “ A ”. (iii) Complemento de uma relação Complemento de uma relação R se define como a classe de pares ordenados de indivíduos entre os quais não se dá essa relação. Se R é a relação “estar casado com” (que se configura como a classe 150 Apostila de Semiótica Jurídica de todos os “x” e de todos os “y”, tal que “x" está casado com “y”), o complemento de “R” será R’, ou seja, a classe de todos os “x” e de todos os “y”, tal que “x” não está casado com “y”, ou ainda, a classe de todos os pares de indivíduos entre os quais não se dá a relação matrimonial. (iv) Soma ou união absoluta de relações Dadas as relações R e S, podemos dizer que a soma lógica ou união dessas relações é a classe de todos os pares ordenados entre os quais se dá somente a primeira relação, ou apenas a segunda, ou ainda ambas. O resultado, isto é, a soma lógica, é uma nova relação. Se interpretarmos R como “irmão de” e S como “irmã de”, teremos a relação-soma, chamemo-la T, que está representada por “irmão e irmã de”. A soma lógica das relações “filho de”, “neto de” e “bisneto de” será a relação “descendente”. Tal qual se emprega na teoria das classes, a notação simbólica é “U”. Assim: “RUS” significa a soma lógica ou a união das relações R e S. Atente-se para a circunstância de que a união de relações segue o modelo da disjunção, de tal sorte que inclui os pares ordenados da primeira relação (R), ou da segunda (S), ou de ambas as relações (R e S). Enunciado em linguagem simbólica, teríamos: x (RUS) y ≡ (xRy) v (xSy) (v) Inclusão de relações Uma relação está incluída em outra se, e somente se, quando a primeira se instaurar entre dois indivíduos, então a segunda, inevitavelmente, também ocorrerá. Exemplo de operação dessa natureza é a que se passa entre as relações “menor que” e “maior que”, ambas incluídas na relação “ser de distinto tamanho”. Igualmente, “ser pai de”, “ser filho de”, “ser tio de”, “ser irmão de”, todas se incluem na relação mais abrangente “ser parente de”. O símbolo próprio é "<-", também utilizado na teoria de classes. (vi) Produto absoluto de relações Também conhecida por “intersecção de relações”, esta Operação consiste na conjunção de duas relações dadas, ou seja, na classe de todos os pares ordenados entre os quais se dá a primeira juntamente com a segunda. Exemplo: se R é a relação “irmão de” e S a relação “maior que”, o produto absoluto ou produto lógico ou intersecção das duas relações será a terceira (T), interpretada como “irmão maior de”. Sua representação se faz pelo símbolo “∩”, à 151 José Diniz de Moraes semelhança da teoria de classes. Se confrontarmos a soma lógica com o produto lógico das relações, veremos que, enquanto a soma segue o modelo formal do disjuntor, o produto acompanha o do conjuntor. Por isso, em toda a intersecção de relações encontraremos, em linguagem simbólica: x (R)”S) y ≡ (xRy). (xRy) (vii) Produto relativo de relações Produto relativo de R e S é a relação que se instaura entre todos os “x” e todos os “y”, de maneira que haverá um “z” com o qual “x” mantém a relação R e “y” mantém a relação S. Representa-se por “R/S”. Por outro giro, afirmamos que se dá o produto relativo R/S entre dois indivíduos “x” e “y” se, e somente se, existir um terceiro indivíduo - “z” -, tal que, simultaneamente, “xRz” e “zSy”. Figuremos um exemplo em que a relação R é “ser marido de” e a relação S interpreta-se como “ser filha de”. Neste caso, o produto relativo R/S se estabelece entre “x” e “y” se houver uma terceira pessoas - “z” -, tal que “x é marido de z” e “z é filha de y”. Na hipótese, o produto relativo R/S indica a relação “ser genro de”. Há uma diferença essencial entre o produto absoluto e o produto relativo de relações. Ao passo que o primeiro se perfaz com os indivíduos “x” e “y”, exclusivamente, o segundo pressupõe um outro indivíduo, que ocupa a região posterior na relação R, e a região anterior, na relação S. Esse terceiro elemento - “z” - permite o aparecimento do produto relativo R/S, entre “x” e “y”. O elemento “z” não consta da relação final, pois esta vinculará apenas “x” e “y”; todavia, intervém na produção do resultado, facilitando o trânsito de “x” para se ligar a “y”. Analisemos as seguintes situações: “x é irmã de z” e “z é mãe de y”, logo “x é a tia materna de y” (produto relativo daquelas duas relações). Outro exemplo: suponhamos que se trate de definir a expressão relacional “x é o assassino do irmão de y”. Vemos, de pronto, que há duas relações: “ser assassino de” e “ser irmão de”. De que forma combinar os dois vínculos? Tentemos operar com o produto absoluto. Obteremos: x(R∩S)y≡(xRy). (xSy), vale dizer, “x matou seu irmão”, porque “x assassinou y” e “x é irmão de y”. Conclui-se que o produto absoluto não serve para os objetivos daquela mensagem inicial. Na verdade, a questão se resolve pela operação chamada “produto relativo”, na qual se une “x” a “y”, de tal 152 Apostila de Semiótica Jurídica arte que há um “z” que “x” assassinou e que era irmão de “y”. (xRz). (zSy) O produto relativo de relações tem enorme aplicação na vida prática e, por meio dele, conseguimos entender e explicar uma série de relações tipicamente jurídicas. Utilizemos, agora, alguns gráficos. Pai Irmão (tio) Filho (sobrinho) Mãe (sogra) Pai (sogro) Filha Marido (genro) Filho Mulher (nora) Nos produtos relativos de relações os “fatores” não são passíveis de comutação. Assim, o irmão do pai é o tio, enquanto que o pai do irmão é o próprio pai. O marido da irmã é o cunhado; pelo contrário, a irmã do marido é a cunhada. A mãe do marido é sogra, ao passo que o marido da mãe é o pai. Vamos examinar, finalmente, a relação processual, aquela que se estabelece entre juiz, autor e réu. Consideramo-la triádica, numa visão integral. Se isolarmos, porém, a relação “autor/réu”, saberemos que é o produto relativo de duas outras: “autor/juiz” e “juiz/réu”, atuando o magistrado, neste caso, como elemento que possibilita o trânsito do autor, para se ligar ao réu num vínculo jurídico-processual implícito. Vejamos: Juiz 153 José Diniz de Moraes Autor Réu (viii ) Potências de uma relação Do mesmo modo como podemos elevar um número ao quadrado, também poderemos, mediante o produto relativo, formar as potências de uma relação: R1 = R R2 = R/R R3 = R2/R Em geral, Rn = Rn+1/R Para entender o que significa elevar uma relação a certa potência, nada como considerar a relação “ser pai de”: R = ser pai de R1 = ser pai de R2 = ser avô de R3 = ser bisavô de R4 = ser trisavô de R5 = ser tetravô de (ix) Algumas leis da lógica das relações - -R ≡ R (dupla negação aplicada à lógica das relações) R U S ≡ S U R (comutatividade da soma das relações) R ∩ S ≡ S ∩ R (comutatividade do produto absoluto) R U S ≡ -(-R ∩ S) (lei de DE MORGAN para relações) R ∩ S ≡ -(-R U -S) (lei de DE MORGAN para relações) 154 Apostila de Semiótica Jurídica (R <- S) ≡ (-S <- -R) (contraposição da inclusão) [(R <- S). (-S <- -R)] -> (R <-T) (transitividade da inclusão) l(R/S)/T] ≡ [R/(S/T)] (associatividade do produto relativo) (R<- S) -> [(T/R) <- (T/S)] (inclusão dos produtos relativos) R” ≡ R (a conversa da conversa é a própria relação) (R <- S) ≡ (R’ <- S’) (equivalência entre a inclusão de relações e respectivas conversas) (R = S) ≡ (R' = S') (equivalência entre a igualdade de relações e respectivas conversas). 2. 5. 5. Aplicação da teoria das relações A título elucidativo do que acabamos de expor sobre a Teoria das Relações, vamos aos exemplos do domínio que nos interessa, retomando os conceitos fundamentais da Ciência do Direito dentro de uma concepção relacional. Fato jurídico é a parte do suporte fáctico que o legislador, mediante a expedição de juízos valorativos, recortou do universo social para introduzir no mundo jurídico. Pontes de Miranda57 argumenta que o suporte factual, que está no mundo, “não entra, sempre, todo ele. As mais das vezes, despe-se de aparências, de circunstâncias, de que o direito abstraiu; e outras vezes se veste de aparências, de formalismo, ou se reveste de certas circunstâncias, fisicamente estranhas a ele, para poder entrar no mundo jurídico. A própria morte não é fato que entre nu, em sua rudeza, em sua definitividade no mundo jurídico”. Ao promover essas incisões no plano da realidade social, o legislador tem de levar em conta a estrutura lógica da norma que vai compor, uma vez que as descrições factuais serão associadas implicacionalmente a prescrições de conduta. Estará às voltas, então, com as combinações possíveis entre os antecedentes e os consequentes de cada unidade, de tal sorte que teremos as seguintes possibilidades: a) F’/R’; b) F'/R', R”, R’”...; c) F', F”, F’’’.../R’; d) F', 57 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, 4a ed., Tomo I, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1974, p. 20. 155 José Diniz de Moraes F”, F’”... / R', R” R”'.... Equivale a dizer, em linguagem desformalizada: a) um fato (F’) pode estar ligado a uma única relação jurídica (R’); b) o mesmo fato (F’) pode associar-se a dois ou mais vínculos jurídicos (R', R”, R”' ... ); c) dois ou mais fatos (F’, F”, F’”... ) podem provocar a mesma relação (R’); e d) dois ou mais fatos (F', F”, F''',. ) podem irradiar duas ou mais relações de direito (R’, R”, R'''... ). Já notamos que a Teoria das Relações (ou Lógica dos Predicados Poliádicos) não admite outras junções, somente essas: a) um com um; b) um com vários; c) vários com um; e d) vários com vários. E o legislador, como todos os demais seres pensantes, será prisioneiro dessa combinatória formal. Bem sabemos, contudo, que o mesmo fato social pode sofrer tantos cortes jurídico-conceptuais quanto o desejar a autoridade que legisla, dando ensejo à incidência de normas jurídicas diferentes. Ao confluírem sobre a mesma base de incidência, as várias regras vão projetando, um a um, os distintos fatos jurídicos, dos quais se irradiam as peculiares eficácias. Se, desde já, quisermos transportar essas reflexões para um caso concreto, cumpre verificar de pronto quais os tipos de relações existentes na estrutura normativa daquele fato jurídico que nos interessa. Neste sentido, a fim de não deixar nenhuma dúvida sobre o assunto, trago exemplo no âmbito do direito tributário. Assunto polêmico e muito atual é o que tange ao crédito-prêmio do IPI. A dúvida estaria na seguinte indagação: este crédito continuaria válido mesmo em casos em que há isenção tributária sobre a atividade de industrialização tal qual ocorre na região de Manaus? Para a solução da dúvida, cumpre verificar que, nestes casos, será possível perceber que não se trata, apenas, de uma regra de direito, porquanto dois foram os cortes conceptuais promovidos no suporte fáctico, como duas foram as relações jurídicas que se propagaram pela ocorrência dos respectivos acontecimentos: a obrigação tributária e o vínculo no bojo do qual emergiu o direito ao crédito. Duas ocorrências do mundo físico-social, sendo uma de aquisição de insumos para o processo de industrialização (F') e outra operação de compra e venda mercantil (F”), entre Manaus e qualquer outro Estado, tendo por objeto produtos industrializados, abriram espaço para a percussão de duas normas jurídicas distintas: a da regra156 Apostila de Semiótica Jurídica matriz de direito ao crédito pelo valor do imposto pago nas compras para o processo de industrialização (N’) e a da regra-matriz de incidência do IPI (N”). Esse exemplo demonstra caso típico da possibilidade lógica d). As bases da Teoria das Relações, explicadas acima, facilitam muito a compreensão dos institutos de direito de maneira geral e, no caso, daqueles do direito tributário, impregnados pelo legislador de uma dificuldade operativa ímpar. Essa análise relacional demonstra de maneira formalizada a Lógica Deôntica, como linguagem objeto, existente entre as unidades sistêmicas desse universo axiológico que é o direito. A Lógica dos Predicados ou “Lógica dos Predicados Poliádicos” preocupa-se em estudar esses cálculos de relações, uma vez que estrutura, como sobrelinguagem (apofântica) que é, de maneira lógica e formal as frases normativas. Agora, aplicando-se essa teoria a uma situação concreta, observa-se que ela traz soluções cognoscitivas imprescindíveis para a boa compreensão da subsunção que ocorre entre os fatos jurídicos e as normas de direito. Neste sentido e no intuito de esclarecer quaisquer dúvidas, vale apresentar outra situação tributária. Citemos. Para saber da incidência ou não de ICMS na atividade de transporte prestado por uma empresa brasileira que executa serviço de courier a uma empresa estrangeira, é fundamental atinar para a teoria das relações, tendo em vista que nos ajudará a definir, dentre os tipos de relações e classes, onde aquele específico vínculo se enquadra. No exemplo mencionado, observadas as relações normativas possíveis, interessa-nos a “inclusão de relações”. Uma relação está incluída em outra se, e somente se, instaurando-se a primeira entre dois indivíduos, a segunda, inevitavelmente, também ocorrer. Esclarece Helmut Seiffert58 que a relação de classe inclusiva dá-se quando uma classe A contém totalmente uma classe B. Nesse caso, todo elemento de B é também elemento de A, uma vez que A inclui B. Sendo assim, o serviço de transporte realizado por uma prestadora de serviço de courier encontra-se incluso no serviço de transporte internacional. Isso porque a contratação do serviço de transporte internacional consiste na coleta de documentos no domicílio do remetente, localizado no 58 Introducción a la lógica, Barcelona, Herder, 1977, pp. 78-79. 157 José Diniz de Moraes exterior, e sua entrega ao destinatário, em território nacional. Todavia, para que essa prestação de serviço seja concretizada, é necessário outra relação, nela inclusa, consistente na subcontratação da empresa brasileira que prestará o serviço de courier em nome da empresa internacional, para finalizar esse serviço no país. Chamaremos, respectivamente, de empresa A e empresa B. Não resta qualquer dúvida, por conseguinte, de que a relação consistente em prestar serviço de transporte internacional, pela empresa estrangeira B, é classe inclusiva, que contém, necessariamente, a finalização do serviço pela empresa brasileira A, Em consequência, estando a atividade da empresa A embutida naquela contratada com a empresa B, não pode dela ser dissociada. Trata-se, pois, de uma relação componente da prestação do serviço de transporte internacional. Portanto, mesmo havendo subcontratação para transporte em trecho interno, não se descaracteriza a relação de transporte internacional, não constituindo, o transbordo, nova prestação de serviço. A subcontratação de parcela do serviço de transporte não implica quebra da unidade da operação, que é de natureza internacional. São dois exemplos que ilustram a teoria das relações com o pragmatismo da realização jurídico-tributária, comprovando a seriedade e a aplicabilidade do estudo lógico-relacional. 2.6. TEORIA DAS CLASSES A Lógica dos Predicados, ou Lógica dos Termos, como pensamos ser mais apropriado referir, compreende o estudo da composição interna dos enunciados simples e, dentro deles, a análise dos termos sujeito e predicado, da cópula apofântica e dos quantificadores (universal e existencial). Os nomes são palavras tomadas voluntariamente para designar indivíduos e seus atributos, num determinado contexto de comunicação. Ao mesmo tempo em que todos os nomes são nomes de alguma coisa, real ou imaginária, nem todas as coisas têm nome privativo. Algumas reivindicam designação distinta, em função da sua individualidade, como acontece com as pessoas e com certos lugares que se tornam famosos. Mas há objetos que não têm nome próprio, de tal maneira que, se for preciso indicá-los, empregam-se nomes gerais, aptos para abrangê-los em número indefinido. Com efeito, um nome geral é 158 Apostila de Semiótica Jurídica susceptível de ser aplicado, no mesmo sentido, a um número indefinido de coisas. Um nome geral denota uma classe de objetos que apresentam o mesmo atributo. Neste sentido, “atributo” significa a propriedade que certo objeto manifesta e todo nome, cuja significação está constituída de atributos é, em potencial, o nome de um número indefinido de objetos. Portanto, todo nome, geral ou individual, cria uma classe de objetos (de alguns objetos, como no geral, ou de apenas um, como nos nomes próprios). Um nome geral é introduzido no discurso em face da necessidade de palavra que denote determinada classe de objetos e de seus atributos peculiares. Definamos, então, classe como “a extensão de um conceito geral ou universal”, na lição de Albert Menne59, lembrando que o nome individual tem o condão de exaurir seu universo, sendo, portanto, também universal. Ou, finalmente, como a relação dos nomes de objetos que satisfazem a função proposicional “f(x)”. Ao examinar a estrutura interna do enunciado, a Lógica dos Termos se ocupa, além da definição, das operações de classificação e de divisão. Classificar é distribuir em classes, é dividir os termos segundo a ordem da extensão ou, para dizer de modo mais preciso, é separar os objetos em classes de acordo com as semelhanças que entre eles existam, mantendo-os em posições fixas e exatamente determinadas em relação às demais classes. Os diversos grupos de uma classificação recebem o nome de espécies e de gêneros, sendo que espécies designam os grupos contidos em um grupo mais extenso, enquanto gênero é o grupo mais extenso que contém as espécies. A presença de atributos ou caracteres que distinguem determinada espécie de todas as demais espécies de um mesmo gênero denomina-se “diferença”, ao passo que “diferença específica” é o nome que se dá ao conjunto das qualidades que se acrescentam ao gênero para a determinação da espécie, de tal modo que é lícito enunciar: “a espécie é igual ao gênero mais a diferença específica (E = G + De)”. Tomando o exemplo da linha curva, podemos classificála em circunferência, elipse, parábola, hipérbole, espiral, etc. Se adicionarmos ao gênero (linha curva) as diferenças peculiares a cada qual, teremos as espécies anunciadas. Obviamente que as qualidades somente gerais não se prestam à divisão do gênero em espécies. 59. Introducción a la lógica, Madrid, Editorial Gredos, 1969, p. 140. 159 José Diniz de Moraes Com efeito, o gênero compreende a espécie. Disto decorre que o gênero denota mais que a espécie ou é predicado de um número maior de indivíduos. Em contraponto, a espécie deve conotar mais que o gênero, pois, além de conotar todos os atributos que o gênero conota, apresenta um plus de conotação que é, justamente, a diferença ou diferença específica. Daí por que estabelecer o significado de diferença como aquilo que deve ser adicionado à conotação do gênero, para completar a conotação da espécie. Nessa linha, os princípios que devem dirigir a classificação, como procedimento lógico, informam que não há nomes que sejam exclusivamente gêneros ou apenas espécies. Tais palavras são termos relativos, aplicados a certos predicados para explicar sua relação com dado sujeito. Desse modo, a classe que aparece como gênero relativamente à subclasse ou espécie que contém, pode ser, ela mesma, uma espécie em relação a uma classe mais compreensiva (gênero superior). As normas individuais e concretas consubstanciam espécies de normas jurídicas; todavia, formam o gênero de que são espécies as normas individuais e concretas veiculadas pelo Poder Judiciário que, por sua vez, são o gênero com relação às individuais e concretas postas por sentenças. Toda classe é susceptível de ser dividida em outras ciasses. É princípio fundamental em Lógica que a faculdade de estabelecer classes é ilimitada enquanto existir uma diferença, pequena que seja, para ensejar a distinção. O número de classes possíveis é, por conseguinte, infinito; e existem, de fato, tantas classes quantos nomes, gerais e próprios. Porém, se examinarmos, uma a uma, as classes assim formadas, como a dos contratos ou das plantas, a classe dos elementos químicos ou dos planetas, e se considerarmos em que particularidade os indivíduos de uma classe diferem dos que a ela não pertencem, encontraremos sob esse aspecto uma diferença bastante nítida entre duas classes distintas. Por outro lado, o expediente classificatório pode dar sentido artificial a uma palavra em decorrência da necessidade técnica de uma Ciência particular. Isto porque cada gênero difere dos outros, não necessariamente por um só atributo, senão por número indefinido de atributos. A taxa, por exemplo, é espécie do gênero tributo, tomando-se como critério de distinção a circunstância de sua hipótese de incidência abrigar sempre uma atuação do Estado, efetiva ou potencial, referida ao sujeito passivo. Entretanto, outra é a característica segundo a qual, para as taxas, não há falar-se em 160 Apostila de Semiótica Jurídica competências privativas. Realmente, não existem limites à liberdade de fazer classificações que, no fundo, consubstancia-se em separar em classes, em grupos, formando subclasses, subdomínios, subconjuntos. Ao sujeito do conhecimento é reservado o direito de fundar a classe que lhe aprouver e segundo a particularidade que se mostrar mais conveniente aos seus propósitos. Ressalvemos, porém, que se a conveniência prática é motivo suficiente para autorizar as principais demarcações de nossos objetos, a fortiori devemos estar atentos para a correção do processo de circunscrição, garantindo que os gêneros e as espécies sejam, efetivamente, gêneros e espécies. A operação que nos permite distinguir as espécies de um gênero dado é a divisão, assim entendido o expediente lógico em virtude do qual a extensão do termo se distribui em classes, com base em critério tomado por fundamento da divisão. Mas, evitemos a confusão entre dividir e desintegrar. Quando afirmamos que “o ano tem 12 meses” ou que “o livro consta de dez capítulos” estamos diante de procedimento chamado “desintegração”, que pode ser reconhecido na medida em que os elementos desintegrados do todo não conservam seus traços básicos, não sendo possível, neles, perceber o conteúdo do conceito desintegrado. Um capítulo do livro não é o livro, assim como o mês não é o ano. Em contranota, quando dizemos que “seres vivos se dividem em animais e plantas”, tanto podemos predicar dos animais a condição de seres vivos quanto das plantas. Importa mencionar as regras que presidem a operação de dividir que é, afinal de contas, o processo empregado para classificar os termos. A inobservância de tais preceitos provoca erros inevitáveis que maculam o raciocínio, comprometendo a manifestação do pensamento e prejudicando a comunicação entre as pessoas. São elas: 1) A divisão há de ser proporcionada, significando dizer que a extensão do termo divisível há de ser igual à soma das extensões dos membros da divisão. 2) Há de fundamentar-se num único critério. 3) Os membros da divisão devem excluir-se mutuamente. 4) Deve fluir ininterruptamente, evitando aquilo que se chama “salto na divisão”. Cumpre advertir que a boa classificação depende não só do processo de bem dividir o termo, mas, antes disso, de elaborarmos 161 José Diniz de Moraes uma definição adequada de seu conceito. E definir é operação lógica demarcatória dos limites, das fronteiras, dos lindes que isolam o campo de irradiação semântica de uma ideia, noção ou conceito. Com a definição, outorgamos à ideia sua identidade, que há de ser respeitada do início ao fim do discurso. Ora, se dissemos e redissemos que nossa realidade é constituída pela linguagem; que o mundo jurídico se estabelece pela linguagem do direito; claro está que as unidades desses sistemas sígnicos, em grande parte nomes, gerais e próprios, são classes que exprimem gêneros ou espécies e, como tais, passíveis de distribuição em outras classes, segundo, evidentemente, as diretrizes do critério escolhido para a divisão. Com os recursos da classificação, o homem vai reordenando a realidade que o cerca, para aumentá-la ou para aprofundá-la consoante seus interesses e suas necessidades, numa atividade sem fim, que jamais alcança o domínio total e a abrangência plena. E salientamos esse caráter reordenador porque assim como a classificação pressupõe a existência de classe a ser distribuída em subclasses, o aumento ou aprofundamento da realidade, como algo constituído pela linguagem, antessupõe também a afirmação da própria realidade enquanto tal. A Lógica reserva à temática da classificação um capítulo inteiro, denominado Teoria das Classes, em que se estuda o conceito de classe e o quadro de suas propriedades gerais. Como disciplina autônoma, foi criada e desenvolvida pelo matemático alemão G. Cantor (1845/1918), recebendo, nesse setor do conhecimento, o nome de “Teoria dos Conjuntos”. Visto que todos os nomes são classes de elementos, inclusive os nomes individuais (domínios ou conjuntos formados por um único objeto), não só a comunicação cotidiana, com sua linguagem livre e descomprometida, mas a Matemática, a Botânica, a Zoologia, a Sociologia, o Direito e todas as demais ciências lidam, necessária e insistentemente, com essas entidades. Ali onde houver linguagem, natural ou técnica, científica ou filosófica, haverá, certamente, classes e operações entre classes, com o aparecimento de gêneros, espécies e subespécies. Isso, em qualquer das regiões ônticas: seja a dos objetos naturais ou dos ideais; a dos metafísicos ou dos culturais. E frases como “o indivíduo x é elemento do conjunto C”, “o objeto y pertence à classe K” ou “o domínio D contém como elemento o indivíduo z”, são expressões que denunciam a presença dessa categoria formal que, em linguagem simbólica, escrevemos “x ε K” 162 Apostila de Semiótica Jurídica (“x está em K”). Dito isto, é imprescindível ter em mente - recordando - que as coisas não mudam de nome, nós é que mudamos o modo de nomear as coisas. Portanto, não existem nomes verdadeiros ou falsos das coisas. Apenas existem nomes aceitos, nomes rejeitados e nomes menos aceitos que outros, como nos ensina Ricardo Guibourg. Esta possibilidade de inventar nomes para as coisas chama-se “liberdade de estipulação”. Ao inventar nomes (ou ao aceitar os já inventados), traçamos limites na realidade, como se a cortássemos idealmente em pedaços e, ao assinalar cada nome, identificássemos o pedaço que, segundo nossa decisão, corresponderia a esse nome. 2.6.1. Aplicabilidade prática: o sistema harmonizado de designação e de codificação de mercadorias, a nomenclatura brasileira e a tabela do imposto sobre produtos industrializados O sistema harmonizado de designação e de codificação de mercadorias é conteúdo aprovado pela Convenção Internacional (Bruxelas, 14/06/83), à qual o Brasil aderiu em 31/10/86. Ela é a base da nomenclatura brasileira de mercadorias que, por sua vez, é a fonte da implantação da tabela de incidência do imposto sobre produtos industrializados (TIPI). São, todas, classificações codificadas, isto é, expedientes artificiais que nos possibilitam repartir dado setor de objetos em subsetores específicos, consoante determinado critério, fixando-se para cada classe não um nome, mas um número ou um código alfanumérico. Revestindo o caráter artificial de todas as classificações, a que estrutura a tabela de incidência do IPI criou uma outra realidade, reordenando a até então existente. Cada código denota um conjunto de mercadorias e, idealmente, cada mercadoria tem um código ao qual se subsome. Algumas, mesmo semelhantes, exigem e recebem códigos distintos. O sistema harmonizado, como aprovado na Convenção Internacional, opera com seis dígitos, correspondendo a posições e subposições de mercadorias, mas a NBM7SH (TIPI/TAB) sobrepõese àquele sistema para acrescentar-lhe matriz de subespécies, mediante a particularização de itens e de subitens. O código-posição denota uma classe de mercadorias que apresentam o mesmo atributo e atributo é a propriedade que 163 José Diniz de Moraes manifesta um dado objeto. Todo código cuja significação esteja constituída de atributos é, em potencial, o código de um número indefinido de mercadorias. Portanto, todo código-posição cria uma classe de objetos. Tomemos por exemplo a máscara utilizada na codificação da tabela NBM/SH-TIPI: “XXXX. YY. ZZzz” Três são as divisões: código-posição “XXXX”, código subposição “YY” e código-item/subitem “ZZzz”. Cada uma das letras representa um número. Assim, considerando que o sistema numérico empregado seja o decimal e tratando-se de variáveis numéricas, é lícito concluir que: 1 – o código-posição “XXXX” pode apresentar variação combinacional de 0000 até 9 999, isto é, 10 000 combinações possíveis; 2 – o código subposição “YY” pode apresentar variação combinacional de 00 até 99, ou seja, 100 combinações possíveis; e 3 – o código-item/subitem “ZZzz” pode apresentar variação combinacional de 0000 até 9 999, isto é, 10 000 combinações possíveis. Infere-se, ainda, da ordem das variáveis de grupo, o seguinte: 4 – o código-posição “XXXX” descreve 10 000 gêneros possíveis e cada um desses pode apresentar 100 espécies diferentes em relação ao código-subposição “YY”; 5 – o código subposição “YY”, que é espécie em relação a “XXXX”, é gênero em função do código-item/subitem “ZZzz”. Nesse sentido, o código-subposição “YY” descreve até 100 gêneros distintos e cada um deles pode apresentar até 10 000 espécies diferentes em relação ao código “ZZzz”; 6 – deduz-se que o código-posição “XXXX” é sempre variável de gênero; o código-item/subitem “ZZzz” é variável de espécie em relação a “YY” e variável de subespécie em relação a “XXXX”; o código subposição “YY” é variável de espécie em relação a “XXXX” e de gênero em relação a “ZZzz”. 2.7. O DEVER-SER COMO ENTIDADE RELACIONAL Kelsen insistiu na diferença entre as leis da natureza, submetidas ao princípio da causalidade física, e as leis jurídicas, articuladas pela imputabilidade deôntica. Lá, a síntese do ser; aqui, 164 Apostila de Semiótica Jurídica a do dever-ser. Nas duas causalidades temos a implicação, o conectivo condicional atrelando o antecedente ao consequente. Entretanto, quando usado e não simplesmente mencionado, o deverser denota uma região, um domínio ontológico que se contrapõe ao território do ser, em que as proposições implicante e implicada são postas por um ato de autoridade: D (p → q) (deve-ser que p implique q). Falamos, por isso, num operador deôntico interproposicional, ponente da implicação. Não fora o ato de vontade da autoridade que legisla e a proposição-hipótese não estaria conectada à proposiçãotese. Daí por que esse operador deôntico seja chamado de neutro, visto que nunca aparece modalizado. Cumpre acrescentar, contudo, que no arcabouço normativo, enquanto estrutura lógica, encontraremos outro dever-ser expresso num dos operadores deônticos, mas inserto no consequente da norma, dentro da proposição-tese, ostentando caráter intraproposicional e aproximando dois ou mais sujeitos, em torno de uma previsão de conduta que deve ser cumprida por um e pode ser exigida pelo outro. Este dever-ser, na condição de conectivo intraproposicional, triparte-se nos modais “proibido” (V), “permitido” (P) e “obrigatório” (O), diferentemente do primeiro, responsável pela implicação, e que nunca se modaliza. Se chamarmos de “functor deôntico” aquele presente na proposição-tese da norma jurídica, seguindo a terminologia de Georges Kalinowski, o primeiro será “functor-de-functor”, uma vez que, inaugurando a relação implicacional, é ponente também do functor intraproposicional. Adverte muito bem Lourival Vilanova que, na linguagem falada e escrita do direito positivo, não nos deparamos com o deverser, com a função sintática de modal-deôntico neutro. “Generalizando, obtenho o conceito de norma jurídica. Agora, só formalizando obtenho o conceito de ‘dever-ser’: ultrapassando a linguagem da Teoria Geral do Direito para ingressar na linguagem formal da Lógica60 (o grifo é do original). ” Em linguagens extrajurídicas, a expressão dever-ser traz o sentido de algo que pode ser, que tem a possibilidade de acontecer, ou também, revelando o modo alético da necessidade, aquilo que tem-de-ser. Na região do jurídico, porém, o dever-ser estará sempre ligado às condutas inter-humanas, tendo, portanto, significação, ainda que nada denote, pois não aponta para objetos do mundo, 165 José Diniz de Moraes inexistindo fatos ou situações que lhe possam especificamente corresponder. Aliás, seja como sintagma verbal, seja como sintagma nominal, o dever-ser exprime sempre conceitos relacionais. Assim, para que nos aproximemos mais desse operador responsável pela síntese fundamental do próprio domínio do jurídico, sirvamo-nos novamente da lição do Professor Vilanova 61: “Em rigor, o ‘dever-ser’ é expressão sintática, é uma partícula operatória que se encontra na estrutura dos enunciados normativos, participando na sua lei de composição interna. Como partícula, carece de significação per se, não é por-si-só bastante para conduzir a uma expressão completa. ” Por isso mesmo, o que está ao nosso alcance é a regra de uso dessa expressão sintática, movendo-se na articulação interna dos enunciados deônticos e, convém insistir, também no interior do enunciado que cumpre a função de apódose ou consequente. Iremos examinar a proposição-tese ou consequente normativo, mais à frente, ocasião em que reencontraremos esse functor, entreligando, como anunciamos, dois ou mais sujeitos de direito, acerca de uma conduta tipificada pela regra. 2.8. TEORIA DA NORMA JURÍDICA A norma jurídica tem sido, muitas vezes, o ponto de referência para importantes construções interpretativas do direito. Torna-se difícil compreender, por isso mesmo, o papel de pouco relevo que algumas propostas cognoscentes de grande envergadura lhe atribuem. Em Pontes de Miranda, por exemplo, que desenvolveu com muito cuidado temas como “o fato jurídico”, “a incidência”, “a validade” e a “eficácia”, não encontramos a estrutura completa da norma jurídica, como bem anota Lourival Vilanova62. Ele, Pontes, o grande dogmático, que partira de um positivismo filosófico que o levou ao positivismo jurídico-sociológico; que observou minuciosamente a tessitura relacional que a experiência com o direito oferece, aplicando-lhe com destreza, diga-se de passagem, as categorias lógicas da relação; ele mesmo que levou tão a sério o direito processual, a ponto de chamá-lo “o ramo do direito mais rente à vida”; pois bem, o jurista alagoano, que teorizou fartamente sobre o material empírico que o contato com o direito proporciona, em nenhum momento se mostrou estimulado a compor uma teoria 166 Apostila de Semiótica Jurídica da norma, preferindo falar simplesmente em “incidência da regra de direito”. Mas a concepção ponteana é tão só um exemplo. Mesmo autores que dispensaram tratamento mais abrangente ao tema das normas jurídicas não procuraram surpreendê-la, ingressando, com entusiasmo, na intimidade de sua essência. Enquanto isso prosperam teorias em várias direções: teorias sobre os fatos jurídicos, teorias sobre as relações jurídicas, teorias sobre as estruturas institucionais, teorias sobre o sistema e sobre seus valores, teorias, enfim, acerca das categorias fundamentais do fenômeno jurídico. Devo esclarecer, contudo, que a visão normativa a que me refiro não pretende assumir caráter absoluto que a levaria, certamente, ao “normativismo”, entendido o termo como algo excessivo, que se põe logo em franca competição com outros esquemas de compreensão, afastando iniciativas epistemológicas que se dirigem aos diferentes setores de que se compõe o fenômeno. A teoria da norma de que falo há de cingir-se à manifestação do deôntico, em sua unidade monádica, no seu arcabouço lógico, mas também em sua projeção semântica e em sua dimensão pragmática, examinando a norma por dentro, num enfoque intranormativo, e por fora, numa tomada extranormativa, norma com norma, na sua multiplicidade finita, porém indeterminada. Tenho por imprescindível a investigação estrutural das unidades do sistema, vale dizer, as normas jurídicas, nas instâncias semióticas a que já me referi. A doutrina atual do Direito Tributário vive, abertamente, esse momento histórico de sua evolução: começou, tendo por núcleo de sustentação a chamada “obrigação tributária”; em seguida, ocupou-se do “fato gerador”; e agora encontrou na norma jurídica a fonte de suas especulações. 2.8.1. Ambiguidade do termo “norma jurídica” A teoria comunicacional do direito vem se irradiando, tanto na Europa, com a obra de Gregorio Robles Morchón, quanto em outros países, como o Brasil, ainda que debaixo de diversas designações, sendo o caso das “doutrinas pragmáticas” e do “constructivismo lógico-semântico”. Tratar o direito como algo que necessariamente se manifesta em linguagem prescritiva, inserido numa realidade recortada em textos que cumprem as mais diversas funções, abriu 167 José Diniz de Moraes horizontes largos para o trabalho científico, permitindo oportuna e fecunda conciliação entre as concepções hermenêuticas e as iniciativas de cunho analítico. Por outro lado, uma série de ajustes hão de ser feitos para encurtar as distâncias entre tais propostas. Um deles é a delimitação das proporções do chamado princípio da “homogeneidade sintática” das normas do sistema, em face da heterogeneidade linguística dos enunciados do direito positivo. De fato, como nos adverte Celso Lafer, “(... ) o que caracteriza o Direito Positivo, no mundo contemporâneo, é a sua contínua mudança. Daí a necessidade de conhecer, identificar e qualificar as normas como jurídicas pela sua forma60”. Com efeito, a ambiguidade da expressão “normas jurídicas” para nominar indiscriminadamente as unidades do conjunto, não demora a provocar dúvidas semânticas que o texto discursivo não consegue suplantar nos seus primeiros desdobramentos. E a clássica distinção entre “sentido amplo” e “sentido estrito”, conquanto favoreça a superação dos problemas introdutórios, passa a reclamar novos esforços de teor analítico. A despeito disso, porém, interessa manter o secular modo de distinguir, empregando “normas jurídicas em sentido amplo” para aludir aos conteúdos significativos das frases do direito posto, vale dizer, aos enunciados prescritivos, não enquanto manifestações empíricas do ordenamento, mas como significações que seriam construídas pelo intérprete. Ao mesmo tempo, a composição articulada dessas significações, de tal sorte que produza mensagens com sentido deôntico-jurídico completo, receberia o nome de “normas jurídicas em sentido estrito”. Por certo que ninguém ousaria negar a diversidade de formas sintáticas e a multiplicidade dos conteúdos semânticos que as construções normativas exibem, logo no exame do primeiro instante. Mas é difícil admitir que o comando deôntico-jurídico deixe de revestir aquela estrutura imputativa trabalhada por Hans Kelsen e tão bem desenvolvida por Lourival Vilanova, como denominador comum e último reduto das comunicações que se estabelecem entre 60 Celso Lafer, A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com Hannah Arendt, São Paulo, Tese de concurso para provimento de cargo de professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP, 1988, p. 53. 168 Apostila de Semiótica Jurídica o editor da regra e seus destinatários. Fixemos aqui um marco importante: quando se proclama o cânone da “homogeneidade sintática” das regras do direito, o campo de referência estará circunscrito às normas em sentido estrito, vale dizer, aquelas que oferecem a mensagem jurídica com sentido completo (se ocorrer o fato F, instalar-se-á a relação deôntica R entre os sujeitos S’ e S”), mesmo que essa completude seja momentânea e relativa, querendo significar, apenas, que a unidade dispõe do mínimo indispensável para transmitir uma comunicação de dever-ser. E mais, sua elaboração é preparada com as significações dos meros enunciados do ordenamento, o que implica reconhecer que será tecida com o material semântico das normas jurídicas em sentido amplo. Penso que tais elucidações afastem, desde logo, algumas dificuldades atinentes à singela dicotomia “homogeneidade / heterogeneidade”, sobretudo porque a teoria comunicacional emprega esses signos voltada para a organização linguística do discurso jurídico, ao passo que o “constructivismo lógico-semântico” restringe esses nomes a planos distintos da análise semiótica. Uma coisa são os enunciados prescritivos, isto é, usados na função pragmática de prescrever condutas; outras, as normas jurídicas, como significações construídas a partir dos textos positivados e estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais, compostos pela associação de duas ou mais proposições prescritivas. É exatamente o que ensina Riccardo Guastini61, de modo peremptório: “um documento normativo (una fonte del diritto) è un aggregato di enunciati del discorso prescritivo”. Gomes Canotilho62 percorre o mesmo caminho epistemológico, firmado, entre outros, na posição daquele jurista italiano. Todavia, acaba por acolher doutrina que não me parece rigorosa, ao conceber a possibilidade de norma sem base em enunciados prescritivos. Ao citar como exemplo o princípio do procedimento justo (due process), arremata: “Este princípio não está enunciado linguisticamente; não tem disposição, mas resulta de várias disposições constitucionais (... )”. Ora, se resulta de várias disposições constitucionais, assenta-se não em um enunciado apenas, mas em vários, o que infirma o pensamento do autor português. Sucede que as construções de 61 Riccardo Guastini, Delle fonti alle norme, p. 16. 62 Direito constitucional e teoria da Constituição, 4a ed, Coimbra, Almedina, 2000, p. 208. 169 José Diniz de Moraes sentido têm de partir da instância dos enunciados linguísticos, independentemente do número de formulações expressas que venham a servir-lhe de fundamento. Haverá, então, uma forma direta e imediata de produzir normas jurídicas; outra, indireta e mediata, mas sempre tomando como ponto de referência a plataforma textual do direito posto. Também Eros Grau, distinguindo “texto” de “norma”, afirma que a atividade interpretativa é um processo intelectivo, pelo qual, partindo-se de fórmulas linguísticas contidas nos atos normativos (textos, enunciados, preceitos, disposições), alcançamos a determinação de seu conteúdo normativo63. Em outro escrito, retrilhando a mesma ideia, aduz: “è volta al discernimento degli enunciati semantici veicolati daí precetti (enunciati, disposizione, testi). L'interprete libera la norma dal suo involucro (il testo); in questo senso, l’interprete ‘produce la norma’”(grifo do autor)64. A doutrina do ilustre publicista se aproxima do ponto de vista que expusemos, com a pequena diferença de que tomamos a norma como construção “a partir dos enunciados” e não "contida ou involucrada nos enunciados”. Todavia, a expressão "o intérprete produz a norma” cai como uma luva ao sentido que outorgamos às unidades normativas. Adverte o autor, no entanto, que o intérprete produz a norma na acepção de que, posto o enunciado pela autoridade competente, ele, intérprete, passa a construir a regra de direito. Outra proporção semântica seria a de expedir o próprio enunciado, a contar do qual será edificada a norma, tarefa do órgão indicado pelo sistema. Seja como for, o processo de interpretação não pode abrir mão das unidades enunciativas esparsas do sistema positivo, elaborando suas significações frásicas para, somente depois, organizar as entidades normativas (sentido estrito). Principalmente porque o sentido completo das mensagens do direito depende da integração de enunciados que indiquem as pessoas (físicas e jurídicas), suas capacidades ou competências, as ações que podem ou devem praticar, tudo em determinadas condições de espaço e de tempo. A teoria comunicacional, aliás, trata admiravelmente bem desse tema, 63 Eros Roberto Grau, Licitação e contrato administrativo, São Paulo, Malheiros, 1995, p. 5-6. 64 Idem, La doppia destrutturazione del diritto, Milão, Edizioni Unicopli, p. 59. 170 Apostila de Semiótica Jurídica organizando os enunciados do direito positivo (ordenamento) de tal modo que facilite as providências subsequentes da montagem comunicativa. 2.8.2. Estrutura lógica: análise da hipótese normativa A derradeira síntese das articulações que se processam entre as duas peças daqueles juízos, postulando uma mensagem deôntica portadora de sentido completo, pressupõe, desse modo, uma proposição-antecedente, descritiva de possível evento do mundo social, na condição de suposto normativo, implicando uma proposição-tese, de caráter relacional, no tópico do consequente. A regra assume, portanto, uma feição dual, estando as proposições implicante e implicada unidas por um ato de vontade da autoridade que legisla. E esse ato de vontade, de quem detém o poder jurídico de criar normas, expressa-se por um dever-ser neutro, no sentido de que não aparece modalizado nas formas “proibido”, “permitido” e "obrigatório”. “Se o antecedente, então deve-ser o consequente". Assim diz toda e qualquer norma jurídico-positiva. A proposição antecedente funcionará como descritora de um evento de possível ocorrência no campo da experiência social, sem que isso importe submetê-la ao critério de verificação empírica, assumindo os valores “verdadeiro” e “falso”, pois não se trata, absolutamente, de uma proposição cognoscente do real, apenas de proposição tipificadora de um conjunto de eventos. Nesta linha, Florence Haret65 afirmou: "... o direito positivo se utiliza da linguagem em função fabuladora, toda vez que o legislador, no momento em que elabora a lei, opera com signo apto a significar algo, sem que lhe seja demandado a sua verdade ou a falsidade empírica, para ser signo válido no sistema e constitutivo de realidade jurídica”. Faz-se oportuno lembrar que o suposto, qualificando normativamente sucessos do mundo real-social, como todos os demais conceitos, é seletor de propriedades, operando como redutor das complexidades dos acontecimentos recolhidos valorativamente. Todos os conceitos, antes de mais nada, são contraconceitos, assim como cada fato será um contrafato e cada significação uma contra65 As presunções e a linguagem prescritiva do direito, in Revista de Direito Tributário, vol. 97, São Paulo, Malheiros, p. 114. 171 José Diniz de Moraes significação. Apresentam-se como seletores de propriedades, e os antecedentes normativos, conceitos jurídicos que são, elegem aspectos determinados, promovendo cortes no fato bruto tomado como ponto de referência para as consequências normativas. E essa seletividade tem caráter eminentemente axiológico. O antecedente da norma jurídica assenta-se no modo ontológico da possibilidade, quer dizer, os eventos da realidade tangível nele recolhidos terão de pertencer ao campo do possível. Se a hipótese fizer a previsão de fato impossível, a consequência que prescreve uma relação deôntica entre dois ou mais sujeitos nunca se instalará, não podendo a regra ter eficácia social. Estaria comprometida no lado semântico, tornando-se inoperante para a regulação das condutas intersubjetivas. Tratar-se-ia de um sem-sentido deôntico, ainda que pudesse satisfazer a critérios de organização sintática. Havendo grande similitude entre as proposições tipificadoras de classes de fatos, como é a hipótese normativa, e aquel'outras cognoscentes do real, seus traços individualizadores não se evidenciam, à primeira vista. Uma observação lógica, contudo, pode dar bem a dimensão do antecedente em face de proposições que dele se aproximem: a hipótese, como a norma na sua integralidade, pressupõe-se como válida antes mesmo que os fatos ocorram, e permanece como tal ainda que os mesmos eventos (necessariamente possíveis) nunca venham a verificar-se no plano da realidade. Paralelamente, diante de um enunciado declarativo ou teorético, teremos de aguardar o teste empírico para então expedirmos juízo de valor lógico sobre a proposição correspondente. Só depois da experiência será possível dizer da verdade ou falsidade dos enunciados descritivos, ressalvando-se, por certo, aqueles tautológicos e os contraditórios. Anote-se que o suposto normativo não se dirige aos acontecimentos do mundo com o fim de regrá-los. Seria um inusitado absurdo obrigar, proibir ou permitir as ocorrências factuais, pois as subespécies deônticas estarão unicamente no prescritor. A hipótese guarda com a realidade uma relação semântica de cunho descritivo, mas não cognoscente, e esta é sua dimensão denotativa ou referencial. Se a proposição-hipótese é descritora de fato de possível ocorrência no contexto social, a proposição-tese funciona como prescritora de condutas intersubjetivas. A consequência normativa 172 Apostila de Semiótica Jurídica apresenta-se, invariavelmente, como uma proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória. O antecedente da norma, salientamos, assenta-se no modo ontológico da possibilidade, devendo a escolha do legislador recair sobre fatos de possível ocorrência no plano dos acontecimentos sociais. Agora, quando versamos sobre o consequente, outro tanto há de ser dito, porque a modalização das condutas interpessoais somente terá sentido dentro do quadro geral da possibilidade. Não faria sentido prescrever comportamento obrigatório, proibitivo ou permissivo a alguém, se o destinatário, por força das circunstâncias, estivesse tolhido de praticar outras condutas. Careceria de sentido deôntico obrigar alguém a ficar em uma sala, proibido de sair, se a sala estivesse trancada, de modo que a saída fosse impossível. Também cairia em solo estéril permitir, nessas condições, que a pessoa lá permanecesse. Ao disciplinar condutas intersubjetivas, o legislador opera no pressuposto da possibilidade. Ali onde houver duas ou mais condutas possíveis, existirá sentido em proibir, permitir ou obrigar certo comportamento perante outrem. 2.8.3. Estrutura lógica da norma: análise do consequente Para a Teoria Geral do Direito, “relação jurídica” é definida como o vínculo abstrato segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação. Para que se instaure um fato relacional, vale dizer, para que se configure o enunciado pelo qual irrompe a relação jurídica, são necessários dois elementos: o subjetivo e o prestacional. No primeiro, subjetivo, encontramos os sujeitos de direito postos em relação: um, no tópico de sujeito ativo, investido do direito subjetivo de exigir certa prestação; outro, na posição passiva, cometido do dever subjetivo de cumprir a conduta que corresponda à exigência do sujeito pretensor. Ambos, porém, necessariamente sujeitos de direito. Nada altera tratar-se de pessoa física ou jurídica, de direito público ou de direito privado, nacional ou estrangeira. Ao lado do elemento subjetivo, o enunciado relacional contém uma prestação como conteúdo do direito de que é titular o sujeito ativo e, ao mesmo tempo, do dever a ser cumprido pelo passivo. O 173 José Diniz de Moraes elemento prestacional fala diretamente da conduta, modalizada como obrigatória, proibida ou permitida. Entretanto, como o comportamento devido figura em estado de determinação ou de determinabilidade, ao fazer referência à conduta terá de especificar, também, qual é seu objeto (pagar valor em dinheiro, construir um viaduto, não se estabelecer em certo bairro com particular tipo de comércio, etc. ). O elemento prestacional de toda e qualquer relação jurídica assume relevância precisamente na caracterização da conduta que satisfaz o direito subjetivo de que está investido o sujeito ativo, outorgando o caráter de certeza e segurança de que as interações sociais necessitam. É nesse ponto que os interessados vão ficar sabendo qual a orientação que devem imprimir às respectivas condutas, evitando a ilicitude e realizando os valores que à ordem jurídica instituiu. Para encerrar este tópico, quero dizer que a concepção de norma que temos operado é a chamada “hilética”, qual seja, a que toma as unidades normativas, de modo semelhante às proposições, como o significado prescritivo de certas formulações linguísticas. “En la otra versión, denominada “concepción expresiva”, lo distintivo de una norma no reside en su aspecto semántico sino en el uso de un contenido proposicional, y por ello, la identificación de una norma supone recurrir a una análisis pragmático del lenguaje”66. E, inserindo-se na corrente hilética, o Professor Lourival Vilanova67 registra bem a distinção apontada: “O uso é sempre relação pragmática. É externo ao enunciado. É relação pragmática intersubjetiva, não relação sintática na estrutura do enunciado, nem relação semântica de referência denotativa com as situações que deonticamente qualificam” (grifos no original). Todo e qualquer vínculo jurídico voltado a um objeto prestacional apresenta essa composição sintática: liame entre pelos menos dois sujeitos de direito. Tão só pela observação do conteúdo semântico das relações jurídicas é que estas podem ser objeto de distinção. 66 Pablo Eugênio Navarro, La eficacia del derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1990, p. 31. 67 Lourival Vilanova, “Analítica do dever-ser”, in Escritos juríd. e filosóficos, vol. 2, cit., p. 54. 174 Apostila de Semiótica Jurídica 2.8.4. Sistema jurídico como conjunto homogêneo de enunciados deônticos Kelsen sempre chamou a atenção para a circunstância de que todas as normas do sistema convergem para um único ponto, axiomaticamente concebido para dar fundamento de validade à constituição positiva. Esse aspecto confere, decisivamente, caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de normas, como entidades da mesma índole, outorga-lhe o timbre de homogeneidade. Sabemos que o legislador emprega, muitas vezes, a linguagem informativa ou expressiva, como forma de veicular suas mensagens. A despeito disso, entretanto, sua linguagem mantém, invariavelmente, uma função diretiva ou prescritiva, dobrando-se para o contexto social e nele atuando para tecer a disciplina da conduta entre as pessoas. Seu discurso se organiza em sistema e, ainda que as unidades exerçam papéis diferentes na composição interna do conjunto (normas de conduta e normas de estrutura), todas elas exibem idêntica arquitetura formal. Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos semântico e pragmático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único meio de que dispõe o legislador para cobrir a imensa e variável gama de situações sobre que deve incidir a regulação do direito, na pluralidade extensiva e intensiva do realsocial. Com admitir uma só esquematização formal para todas as normas do sistema poderemos reescrevê-las em fórmulas deônticas, a despeito do modo descritivo ou informativo de que se serviu o editor da regra. Vejo nisso um expediente correto e sobremaneira útil para a devida compreensão do fenômeno jurídico, além de oferecer instrumento apropriado e eficaz para as elaborações descritivas da dogmática. 2.8.5. O conceito de “norma completa”: norma primária e norma secundária As normas jurídicas têm a organização interna das proposições condicionais, em que se enlaça determinada consequência à realização de um fato. Dentro desse arcabouço, a hipótese refere-se a um fato de possível ocorrência, enquanto o consequente prescreve a relação jurídica que se vai instaurar, onde e quando acontecer o fato cogitado no suposto normativo. Reduzindo complexidades, 175 José Diniz de Moraes podemos representar a norma jurídica da seguinte forma: H → C, onde a hipótese (H) alude à descrição de um fato e a consequência (C) prescreve os efeitos jurídicos que o acontecimento irá provocar, razão pela qual se fala em descritor e prescritor, sendo o primeiro para designar o antecedente normativo e o segundo para indicar seu consequente. Mas a norma de que falamos é unidade de um sistema, tomado aqui como conjunto de partes que entram em relação formando um todo unitário. O todo unitário é o sistema; as partes, unidades que o compõem, configuram o repertório; e as relações entre essas partes tecem sua estrutura. As regras jurídicas não existem isoladamente, mas sempre num contexto de normas com relações particulares entre si. Atentar para a norma, na sua individualidade, em detrimento do sistema é, na contundente metáfora de Norberto Bobbio68, “considerar-se a árvore, mas não a floresta”. Construir a norma aplicável é tomar os sentidos de enunciados prescritos no contexto do sistema de que fazem parte. A norma é proposição prescritiva decorrente do todo que é o ordenamento jurídico. Enquanto corpo de linguagem vertido sobre o setor material das condutas intersubjetivas, o direito aparece como conjunto coordenado de normas, de tal modo que uma regra jurídica jamais se encontra isolada, monadicamente só: está sempre ligada a outras normas, integrando determinado sistema de direito positivo. Depende a norma, pois, desse complexo produto de relações entre as unidades do conjunto. É produzida por um ato (do Legislativo, do Executivo, do Judiciário ou mesmo do particular), sua fonte material. Mas, ao ingressar o enunciado linguístico no sistema do direito posto, seu sentido experimenta inevitável acomodação às diretrizes do ordenamento. A norma é sempre o produto dessa transfiguração significativa. Na completude, as regras do direito têm feição dúplice: (i) norma primária (ou endonorma, na terminologia de Cossio), a que prescreve um dever, se e quando acontecer o fato previsto no suposto; (ii) norma secundária (ou perinorma, segundo Cossio), a que prescreve uma providência sancionatória, aplicada pelo Estado68 Teoria do ordenamento jurídico, Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Brasília/São Paulo, UNB/Polis, 1991, p. 19. 176 Apostila de Semiótica Jurídica Juiz, no caso de descumprimento da conduta estatuída na norma primária. Inexistem regras jurídicas sem as correspondentes sanções, isto é, normas sancionatórias. A organização interna de cada qual, porém, será sempre a mesma, o que permite produzir-se um único estudo lógico para a análise de ambas. Tanto na primária como na secundária, a estrutura formal é uma só [D (p->q)]. Varia tãosomente o lado semântico, porque na norma secundária o antecedente aponta, necessariamente, para um comportamento violador de dever previsto na tese de norma primária, ao passo que o consequente prescreve relação jurídica em que o sujeito ativo é o mesmo, mas agora o Estado, exercitando sua função jurisdicional, passa a ocupar a posição de sujeito passivo. Por isso, o que existe entre ambas é uma relação-de-ordem não simétrica, como agudamente pondera Lourival Vilanova69. Apresentada em notação simbólica, a norma secundária apareceria da seguinte forma: [D(p. q)->Sn]. E com o desdobramento de Sn: (S'RS””), em que “p” é a ocorrência do fato jurídico; ". ", o conectivo conjuntor; “-q”, a conduta descumpridora do dever; "→", o operador implicacional; e Sn a sanção, desdobrada em S', como sujeito ativo (o mesmo da relação da norma primária; R, o relacional deôntico; e S’”, o Estado-Juiz, perante quem se postula o exercício da coatividade jurídica). A Teoria Geral do Direito refere-se à relação jurídica prevista na norma primária como de índole material, enquanto a estatuída na norma secundária seria de direito formal (na acepção de processual, adjetiva). Não seguimos a terminologia inicialmente acolhida por Kelsen: norma primária a que prescreve a sanção e secundária a que estipula o dever jurídico a ser cumprido. Fico na linha de pensamento de Lourival Vilanova, coincidente, aliás, com o recuo doutrinário registrado na obra póstuma do mestre de Viena70. As duas entidades que, juntas, formam a norma completa, expressam a mensagem deôntica-jurídica na sua integridade constitutiva, significando a orientação da conduta, lentamente com a providência coercitiva que o ordenamento prevê para seu 69As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 105-138 Hans Kelsen, Teoria geral das normas, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 181. 70 177 José Diniz de Moraes descumprimento. Em representação formal: D{(p → q) v [(p → -q) → S]}. Ambas são válidas no sistema, ainda que somente uma venha a ser aplicada ao caso concreto. Por isso mesmo, empregamos o disjuntor includente (“v”) que suscita o trilema: uma ou outra ou ambas. A utilização desse disjuntor tem a propriedade de mostrar que as duas regras são simultaneamente válidas, mas que a aplicação de uma exclui a da outra. 2.8.6. Espécies normativas Parece-nos perfeitamente justificada e coerente a adoção das qualidades “abstrato” e “concreto” ao modo como se toma o fato descrito no antecedente. A tipificação de um conjunto de fatos realiza uma previsão abstrata, ao passo que a conduta especificada no espaço e no tempo dá caráter concreto ao comando normativo. Embora revista caracteres próprios, a existência do antecedente está intimamente atrelada ao consequente, vista na pujança da unidade deôntica, que, por seu turno, terá outro perfil semântico. Levando em conta tais considerações, a relação jurídica será geral ou individual, reportando-se o qualificativo ao quadro de seus destinatários: geral, aquela que se dirige a um conjunto de sujeitos indeterminados quanto ao número; individual, a que se volta a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas. Pudemos relevar, outrossim, que argutos conhecedores têm se limitado à apreciação do antecedente normativo, ao qualificar as normas jurídicas de gerais e individuais, abstratas e concretas. Apesar da fecundidade de notações, a redução não se justifica. A diferença repousa em que a compostura da norma reclama atenção para o consequente: tanto pode haver indicação individualizada das pessoas envolvidas no vínculo como pode existir alusão genérica aos sujeitos da relação. Uma coisa é certa: é possível que o antecedente descreva fato concreto, consumado no tempo e no espaço; com o consequente, porém, será isso impossível, uma vez que a prescrição da conduta devida há de ser posta, necessariamente, em termos abstratos. Briga com a concepção jurídico-reguladora de comportamentos intersubjetivos imaginar prescrição de conduta que já se consolidou no tempo, estando, portanto, imutável. Seria um sem-sentido deôntico. Sopesadas essas premissas, poderemos classificar as normas em quatro espécies: (i) abstrata e geral; (ii) concreta e geral; (iii) 178 Apostila de Semiótica Jurídica abstrata e individual; e (iv) concreta e individual. Bem, passemos a examinar uma a uma. A norma abstrata e geral adota o termo abstrato, em seu antecedente, no bojo do qual preceitua enunciado hipotético descritivo de um fato, e geral, em seu consequente, onde repousa a regulação de conduta de todos aqueles submetidos a um dado sistema jurídico. Observadas essas reflexões, o antecedente das normas abstratas e gerais representará, invariavelmente, uma previsão hipotética, relacionando as notas que o acontecimento social há de ter, para ser considerado fato jurídico. Será, portanto, um enunciado conotativo, que se compõe ora de uma classe ou conjunto, enumerando os indivíduos que a compõem, ora indicando as notas ou nota que o indivíduo precisa ter para pertencer à classe ou conjunto. A primeira é a forma tabular; a segunda, forma-deconstrução. A modalidade em que, quase sempre, manifesta-se a proposição normativa geral e abstrata não é a forma tabular, mas a forma-de-construção. Nela se estatuem as notas (conotação) que os sujeitos ou as ações devem ter para pertencer ao conjunto. Em posição subsequente, teremos o consequente normativo que, por seu turno, trará conduta invariavelmente determinada em termos gerais, voltada para um conjunto indeterminado de pessoas. Agora, em abono desse matiz e considerando a feição dúplice de toda norma completa, depararemo-nos, no plano semântico, com dois diferentes tipos gerais e abstratos: a norma geral e abstrata primária e a norma geral e abstrata secundária. Na primeira, acomoda-se um enunciado que prescreve um dever: “Se ocorrer o fato F, então dever-ser a conduta Q”. Na segunda, instala-se um enunciado que prescreve uma providência sancionatória hipotética: “Se ocorrido o fato F e descumprido o dever da conduta Q, então deve-ser a relação sancionatória Sn entre o sujeito do dever e o Estado-Juiz”. Ambas estruturas guardaram homogeneidade sintática, abrindo-se para receber apenas o plano dos conteúdos. Comprova-se, mais uma vez, a heterogeneidade semântica invariavelmente presente no domínio das estruturas normativas. Penso ser inevitável, porém, insistir num ponto que se me afigura vital para a compreensão do assunto: a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta. Uma ordem jurídica não se realiza de modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que os comandos gerais e abstratos 179 José Diniz de Moraes ganhem concreção em normas individuais. O fenômeno da incidência normativa opera, pois, com a descrição de um acontecimento do mundo físico-social, ocorrido em condições determinadas de espaço e de tempo, que guarda estreita consonância com os critérios estabelecidos na hipótese da norma geral e abstrata (regra-matriz de incidência). Por isso mesmo, a consequência desse enunciado será, por motivo de necessidade deôntica, o surgimento de outro enunciado protocolar, denotativo, com a particularidade de ser relacional, vale dizer, instituidor de uma relação entre dois ou mais sujeitos de direito. Este segundo enunciado, como sequência lógica e não cronológica, há de manterse, também, em rígida conformidade ao que for estabelecido nos critérios da consequência da norma geral e abstrata. Em um, na norma geral e abstrata, temos enunciado conotativo; em outro, na norma individual e concreta, um enunciado denotativo. Ambos com a prescritividade inerente à linguagem jurídica. O fato, portanto, ocorre apenas quando o acontecimento for descrito no antecedente de uma norma individual e concreta. O átimo de constituição, saliente-se, não pode ser confundido com o momento da ocorrência a que ele se reporta, e que, por seu intermédio, adquire teor de juridicidade. Posto isto, pretendo deixar claro que, em notações paralelas ao que se postulou em planos abstratos, a norma primária e a norma secundária, em termos individuais e concretos, apresentam ordens semânticas diversas. Prescreve, a primeira, o fato típico denotativo previsto no suposto do dever, identificando o próprio acontecimento relatado no antecedente da norma individual e concreta; e a conduta regulada, identificando os sujeitos da relação e seu objeto. A segunda, por sua vez, em seu antecedente, alude, com determinação, à ocorrência do fato típico e à conduta descumpridora do dever em termos concretos; e, em seu consequente, à própria sanção, vinculando Estado-Juiz e sujeito de dever por meio de uma relação concreta, portadora de coatividade jurídica. Seguindo o degrau das estruturas normativas, perceberemos que tanto a norma gerai e abstrata quanto a norma individual e concreta pressupõem um ato ponente de norma, juridicizado pela competência jurídica de inserir norma no sistema que lhe prescreve o direito positivo. Torna-se preciso, como pede a teoria das fontes do direito, que um veículo introdutor (ato jurídico-administrativo do 180 Apostila de Semiótica Jurídica lançamento, por exemplo) faça a inserção da regra no sistema. Significa dizer: unidade normativa alguma entra no ordenamento sem outra norma que a conduza. O preceito introduzido é a disciplina dos comportamentos inter-humanos pretendida pelo legislador, independente de ser abstrata ou concreta e geral ou individual, ao passo que a entidade introdutora é igualmente norma, porém concreta e geral. Lembremo-nos de que a regra incumbida de conduzir a prescrição para dentro da ordenação positiva é de fundamental importância para montar a hierarquia do conjunto, axioma do próprio sistema jurídico. Em sua estrutura completa de significação, a norma geral e concreta tem como suposto ou antecedente um acontecimento devidamente demarcado no espaço e no tempo, identificada a autoridade que a expediu. Muitas vezes vêm numeradas, como é o caso das leis, dos decretos, das portarias, ou referidas diretamente ao número do processo, do procedimento ou da autoridade administrativa que lhe deu ensejo. A verdade é que a hipótese dessa norma refere-se a um fato efetivamente acontecido. Já o consequente revela o exercício de conduta autorizada a certo e determinado sujeito de direitos e que se pretende respeitada por todos os demais da comunidade. Nesse sentido é geral. Quando faço alusão ao conteúdo do ato competencial introdutor de norma, estou me referindo àquilo que a conduta autorizada do sujeito competente da norma introdutora realiza: à norma ou às normas gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais e concretas ou individuais e abstratas, inseridas no ordenamento por força da juridicidade da regra introdutora. Essas normas introduzidas são o próprio objeto da norma introdutora. Implica reconhecer que, sem tal núcleo de significação, o veículo introdutor fica oco, vazio, perdendo o sentido de sua existência. Sua importância, em termos sistemáticos, aloja-se em dois pontos: a) são os instrumentos apropriados para inserir regras jurídicas no sistema positivo; e, além disso, b) funcionam como referencial para montar a hierarquia do conjunto. Afinal de contas, temos de ser coerentes com as premissas que declaramos. Se o direito é tomado como conjunto de normas válidas, num determinado território e num preciso momento do tempo histórico, tudo dentro dele serão normas, em homenagem ao princípio epistemológico da uniformidade do objeto. Daí por que as entidades “leis”, “contratos”, “atos administrativos”, “desapropriação”, 181 José Diniz de Moraes “matrimônio”, “tributo”, etc., reduzidos à expressão mais simples, assumem a condição de normas jurídicas. E a prova está na circunstância segundo a qual a instituição, a modificação e a extinção dessas figuras se operam por regras de direito. No plano das formulações normativas, fazendo-se menção ao conteúdo da norma geral e concreta em termos primários ou secundários, iremos nos deparar com uma importante secção semântica. Dado que a aplicação da norma secundária sujeito competente como unicamente ao Estado-Juiz, esta vem a constituir um subconjunto dentro daquele em que se inscrevem os sujeitos competentes da norma primária. Nesta, é sujeito de direito o Estado-legislativo, o Estado-executivo e o Estado-judiciário, bem como os particulares, uma vez que há hipóteses em que a lei autoriza ao próprio particular a efetivação da norma jurídica. O conteúdo da norma primária abrange aquele da norma secundária, no entanto, com maior amplitude. Por fim, depuraremos a norma individual e abstrata, menos frequente no sistema que as três explicitadas acima. É aquela que toma o fato descrito no antecedente como uma tipificação de um conjunto de fatos; e que, no quadro de seus destinatários, volta-se a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas. Seria o caso, por exemplo, de uma consulta fiscal, em que o interessado, ainda inerte, questiona ao Fisco a possibilidade de determinada conduta para fins tributários. A resposta do Fisco trará à luz uma norma individual e abstrata: justapondo o antecedente hipotético (objeto da consulta), ao consequente individualizado, uma vez que já se pode determinar os sujeitos e o objeto da relação veiculada pela consulta. Outros dois exemplos bastante férteis são a servidão de passagem e o regime especial. Ao conceder servidão de passagem em sentença, o Juiz expede uma norma individual e abstrata. No antecedente não indica fato determinado no tempo e no espaço, mas uma hipótese factual que se desdobra no tempo. Diante da análise linguística do vocábulo “passagem”, perceberemos que ele nada mais é que a substantivação do verbo “passar”, caracterizando a inexistência do fator temporal na expressão. Para além do rigor, servidão de passagem não quer dizer servidão do que se passou, descartando-se com isso a possibilidade de fato jurídico concreto. O antecedente da norma prescindirá necessariamente de uma previsão abstrata, ao passo que nada ocorrerá com a norma individual e abstrata quando o beneficiário passar pelo prédio 182 Apostila de Semiótica Jurídica serviente, pois seu direito de passagem estará garantido enquanto perdurar a prescritividade daquele enunciado normativo. Em seu consequente, por outro lado, encontraremos um vínculo relacional no seio do qual são identificados os sujeitos de direito e de dever, bem como o objeto da relação jurídica, revelando que se trata de enunciado individual. Tudo se dará da mesma forma com o regime especial. Há de notar-se, em determinados casos, por necessidade pragmática ou por objetivos sancionatórios, a autoridade administrativa, a requerimento do interessado ou de ofício, adota regime especial para o cumprimento das obrigações fiscais e o faz por intermédio de norma individual e abstrata. Em seu antecedente, prescreve qualquer tratamento diferenciado da regra geral, tal como a alteração das formas usuais de emissão de documentos fiscais, de escrituração, apuração e recolhimento dos tributos; e, em seu consequente, caracteriza os beneficiários do regime, formalizando o vinculo jurídico entre a autoridade administrativa e o sujeito de direito. Eis, ainda que a breve trecho, um panorama do cenário normativo no ordenamento jurídico. O evolver dos tempos e o desenvolvimento gradativo da Ciência do Direito com alicerce no “contructivismo lógico-semântico” e na estrutura lógica da regramatriz de incidência, tudo isso se encarregou de demonstrar, pouco a pouco, a eficiência do critério subjacente a essa classificação. 183 José Diniz de Moraes Texto 06 - Folha de S. Paulo - São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999 FILOSOFIA (entrevista com Karl-Otto Apel) O filósofo alemão Karl-Otto Apel expõe seus argumentos contra o relativismo filosófico atual Como escapar do blablablá LUIZ FELIPE PONDÉ especial para a Folha: O filósofo Karl-Otto Apel vive em uma pequena cidade nos arredores de Frankfurt (Alemanha). A atmosfera desse lugar causa seguramente um estranhamento para alguém acostumado com a "promiscuidade antropológica" de cidades como Nova York, São Paulo ou Paris. A sensação que se respira nesse silêncio é que se está protegido do universo ruidoso e agressivamente contingente do qual brota um pensamento corrosivo como o pragmatismo. Todavia tal violência epistemológica do pragmatismo norte-americano não é garantia evidente de sua inconsistência filosófica. Para Apel é exatamente esta sua guerra: encontrar em meio à devastação causada por pensadores como Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e Rorty os rastros de alguma luz que nos leve de volta à "episteme" platônica ou à Razão kantiana. Percebe-se como ele se bate contra a ideia de que a moral possa se dissolver no mundo sombrio do senso comum vadio contemporâneo, no qual o obsessivo desejo de "felicidade" devora qualquer drama moral. Apel é um anti-relativista convicto, embora aceite e reconheça o valor da crítica relativista em todos os seus sentidos. Como ultrapassar a semiótica, o pragmatismo, a hermenêutica e o historicismo racionalmente? Pela prática de uma pragmática transcendental baseada em uma racionalidade argumentativa nãoestratégica. Para Apel a comunicação como pura possibilidade já depende de critérios éticos, do contrário ela fracassa, isto é, perde-se a possibilidade de produzir qualquer sentido mínimo. Faz-se necessário o respeito pelo Outro: o parceiro da comunicação está inscrito nas condições de possibilidade (filosofia transcendental) de materialização da Razão (que estaria encarnada no uso da 184 Apostila de Semiótica Jurídica linguagem, por isso uma pragmática). "Argumento, logo existo". Um outro a priori da Razão Pura. Para o pragmatismo rortiano o que falta em pensadores como Apel e Habermas é "estômago" para a absoluta contingência e por isso insistem nessa obsessão por filosofias transcendentais. Para Apel (autor de "Estudos de Moral Moderna", Ed. Vozes), quando o homem aceita trocar alegremente a "verdade" pelo "útil" ou "eficiente", ele na realidade selou sua sorte: redução de sua capacidade cognitiva e racional. Trata-se de uma ameaça direta à verticalidade do Homo sapiens. Supor que a racionalidade estratégica (ainda que cheia de "boas intenções ianques") possa ser uma forma válida de se enfrentar a contingência ontológica é condenar-nos à barbárie. De qualquer forma, ouvir hoje alguém que busca quebrar uma certa unanimidade ruidosa acerca do caráter "sagrado" da "eficiência" como "virtude (pseudo) teologal" que substitui a "verdade" -essa coisa arcaica- é já saudável em alguma medida, pois, se está correto dizer como Nelson Rodrigues que "toda unanimidade é burra", é urgente discordarmos para sermos menos idiotas. Folha - Sua primeira tese foi sobre Martin Heidegger e sua preocupação então era muito ligada à hermenêutica e a Hans-Georg Gadamer? Karl Apel - Sim. Comecei por Heidegger e minha intenção era fazer hermenêutica. Quando vi então os primeiros resultados do trabalho de Gadamer caí em mim! Percebi que não era aquilo que eu queria, embora meu interesse intelectual estivesse ligado ao triângulo Heidegger/Gadamer/Wittgenstein... Folha - A crítica de um "logos" um tanto ingênuo? O senhor concordaria com a ideia de que, se analisarmos sua obra e sua vida, poder-se-ia dizer que na sua atividade de filósofo se encontram unidas sua história existencial e suas preocupações puramente conceituais? Apel - Claro! É impossível não ver que em mim o imperativo de pensar a responsabilidade de um homem pelo Outro e o problema da ética existencialista irracional de que cada um tem o direito de buscar a si mesmo estão profundamente ligados. Isto é: o imperativo ético kantiano de buscar uma ética válida em mim se torna uma angústia existencial. Durante a Segunda Guerra, fui voluntário; naquela época não tínhamos uma percepção clara do papel desastroso que teria a Alemanha na guerra... 185 José Diniz de Moraes Lembro-me de um soldado alemão desertor que foi fuzilado diante de meus olhos. Antes de morrer, ele amaldiçoou Hitler, dizendo que na Alemanha não havia mais lugar para se viver como indivíduo. O olhar dele me marcou profundamente. De alguma forma comecei ali a despertar e senti um sentimento de responsabilidade pelo destino daquele soldado. Folha - O senhor diria que sua obra é uma tentativa de responder ao impasse rortiano de que os vocabulários que lidam com problemas morais universais não apresentam conexões conceituais, consistentes logicamente com os vocabulários existenciais? Resumindo: Kant não dialogaria com Kierkegaard ou Heidegger? Apel - Exatamente. Rorty é um querido amigo. Ele é muito engraçado como pessoa, você sabe, tem um humor fantástico. Diz o tempo todo: "Vamos escrever romances". Onde estão os seus romances? Só vejo ensaios filosóficos excelentes. "A verdade é a contingência! " Sou alguém que antes de tudo espera contribuir para combater exatamente o que meu amigo Rorty representa: o relativismo, o pragmatismo. Folha - Entre o binômio "sagrado" de hoje em dia, Wittgenstein/Heidegger, e o binômio "que esqueceu o Ser" e que "não conheceu o relativismo pragmático da linguagem", Platão/Kant, o senhor fica com o segundo? Apel - Sem nenhuma dúvida. Mas um Platão e um Kant que "leram" o primeiro binômio que você colocou e abandonaram o "logos" ingênuo. Seria necessário ler esses autores relativistas e fazer a crítica deles em vez de criar modas paralisantes do pensamento, como Derrida -sei que ele não é só isso. É o que eu chamo de pragmática transcendental: assimilar a crítica relativista (de todos os tipos) e buscar as condições de possibilidade da operação racional, que se torna assim consciente de seus determinantes históricos. Veja: a crítica pragmática de que os significados das palavras são relativos ao meio político-social que utiliza essas palavras (as formas de vida e os jogos de linguagem de que falam os wittgensteinianos), ou seja, a tal saída de cena da metafísica como critério da verdade para a entrada da política e da contingência histórica como critério, como diria meu amigo Rorty, é um dado fundamental. Não reconhecer o peso (e a angústia) da "verdade" que 186 Apostila de Semiótica Jurídica trouxe o pragmatismo americano é uma ilusão perigosíssima! Todavia (e aí incorro no "pecado europeu", como diz Rorty, eu e o Habermas somos grandes "pecadores"), não se pode simplesmente ficar paralisado diante da vitória da "doxa" sobre a "episteme". É a morte do pensamento, e é uma ilusão achar que o homem pode sobreviver à morte do pensamento! Esse problema me parece crucial: os relativistas contemporâneos, principalmente os pragmáticos, que são os mais radicais, não percebem que o valor de sua "descoberta" está na crítica que ela faz do solipsismo cognitivo e epistemológico da teoria do conhecimento moderno (na realidade começa com Santo Agostinho). Descartes, Kant, Husserl, todos erraram quando pensaram que era um tipo de "eu penso" solitário que poderia gerar uma racionalidade fundante para qualquer "ciência". Proponho abandonar o "eu penso" pelo "eu argumento". E no plano moral ainda é mais evidente tal fato: a moral, em sua essência, não trata da realidade individual e solitária de um homem. E essa é a grande liberação da razão que trouxe Habermas para os desesperados de Frankfurt: a Razão não é só evidentemente estratégica, e esta não é radicalmente racional. A razão está concretamente presente na linguagem. Existem condições de possibilidade universais que sustentam qualquer argumentação séria possível, sem as quais o argumentador cai em autocontradição performativa. A filosofia transcendental é que deve lançar luz sobre essa questão. Folha - Seria como dizer que, na luta contra a "doxa", Platão deveria escrever o "Heidegger", o "Wittgenstein" e o "Rorty"? Como se dá essa impossibilidade de ultrapassar a necessidade universal da racionalidade a priori? Apel - Rorty diz: "Vamos deixar essa história de querer produzir conceitos universais". A menos que ele esteja blefando, e aí é um problema de não credibilidade ética cognitiva (como diria Habermas), ele pressupõe que "vamos... " está alicerçado sobre argumentos que possuem o que os analíticos chamam "validity claims" (consistência material e referencial das asserções). Ele sustenta que a saída é desistir da "verdade"... Folha - Trata-se de um exclusão pragmática da verdade? Apel - Isso mesmo. Mas, sustentando a exclusão da "verdade", já se sustentam os pressupostos argumentativos que possibilitam defender esta ideia, a começar pelas palavras como "abandonar", 187 José Diniz de Moraes "conceitos", "validade" etc. Até mesmo a letra "a". Negar isso é cair em autocontradição performativa. Na realidade ninguém, nem o segundo Wittgenstein, nem Rorty, nem qualquer outro representante do "linguistic-pragmatic-hermeneutic-turn" pode renunciar ao recurso lógico- intelectual público para expor suas teses relativistas acerca da não validade universal das propostas filosóficas. No "público" já está implícita a racionalidade discursiva. Assim sendo, os relativistas recorrem a esquemas não-relativistas da argumentação para "provar" a não-racionalidade da argumentação. É contradição performática. Esse tipo de procedimento é um verdadeiro símbolo da atividade conceitual dos pragmáticos não-transcendentais. Folha - Mas como o senhor responde à racionalidade estratégica (a questão "desesperada" dos frankfurtianos)? Podemos muito bem reconhecer que existe uma racionalidade imanente à linguagem -assim como reconhecemos a racionalidade "físicoquímica"- e ainda assim a instrumentalizarmos a partir de nossa "razão cínica", como diz Peter Sloterdijk. O senhor não estaria sendo ingênuo, como diz o Rorty? Apel - Isso me lembra a eterna questão de Dostoiévski: "Se a alma é mortal e Deus não existe, tudo é permitido". Em outras palavras, por que devo ser moral? Folha - O problema indicado por Dostoiévski aponta exatamente para a impossibilidade de fundar uma ética no nível de uma argumentação circular ou imanente. Sem sair do mundo da "corrupção" e do "temporário" não se chega a um imperativo universalmente válido. Apel - Para que haja comunicação é necessário que o Outro fale e reconheça o que eu falo. Nesse eixo já existe a assunção mínima de que há um campo democrático e de respeito na argumentação sem o qual não existe comunicação. É por isso que afirmo que é um tipo de racionalidade que demanda um outro tipo de binômio cognitivo: sujeito/co-sujeito e não sujeito/objeto, como nas teorias solipsistas modernas. É uma validade epistemológica intersubjetiva e não uma busca de objetividade ingenuamente neutra, como nos propõe uma ciência cega. Os cientistas estão imersos em uma comunidade comunicacional real, do contrário não conseguem nem mesmo fazer a hipótese "acontecer". Se um grupo de pessoas discute algo com a 188 Apostila de Semiótica Jurídica intenção de chegar a uma conclusão, quem roubar no jogo destrói a argumentação. Não se trata de uma "adesão" volitiva irracional de tipo popperiano, mas de uma adesão racional cognitiva: se roubarmos no jogo, acaba a argumentação, e a cognição buscada se desfaz. Sem esse campo democrático de respeito, toda fala é blablablá... É a argumentação que deve ser o modelo transcendental (sentido kantiano) para a fundação de uma ética atualmente (o que chamo de ética da discussão), em um mundo pós-metafísico, sem Deus e cheio de almas mortais que se inter- relacionam não mais dentro de esquemas culturais grupais fechados (que sustentavam a ética solidária no passado), mas por meio de gigantescas redes tecnológicas e comerciais impessoais. Folha - Seria então o modelo argumentativo -linguagem normativa- a forma de suplantar a sensação pós-heideggeriana e pós-wittgensteiniana do relativismo paralisante? Apel - Sim. Retomando o que dizia antes sobre a relação íntima de minha vida com o impasse moral relativista, fica clara minha guerra contra a ideia de que se possa ficar na consciência da temporalidade do "dasein" como horizonte ou mesmo da linguagem pragmática imanente como "limite". Sem "eidos" não se pensa, ainda que esse "eidos" tenha em algum nível determinantes políticosociais e históricos, como bem dizem os pragmáticos americanos (o fundo contingencial da historicidade). Folha - O senhor identificaria um certo "esquecimento do "logos'" em Heidegger, assim como ele identificou o "esquecimento do Ser"? Apel - Sim. A verdade é "alethéia", mas também (e antes, logicamente) é "logos", do contrário mergulhamos no silêncio ou no ruído. Luiz Felipe Pondé é doutor em filosofia e professor do programa de estudos pós-graduados em ciências da religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica) e da Universidade de Tel Aviv (Israel). 189 Texto 07 - Cristia Rosineiri Gonçalves L. Correa71: A Semântica de Frege e a Dinâmica da Verdade na Psicanálise Resumo: O artigo discute a problemática da verdade em sua inscrição nas sentenças subordinadas, a partir das abordagens filosófica e psicanalítica. Argumenta que a filosofia de Frege indica o que a psicanálise reivindica acerca da dinâmica da verdade e verifica, nesta direção, que a questão da verdade deve ser pensada a partir da noção de real, e não de realidade. Palavras-chave: Frege; verdade; realidade; real; Lacan. Frege’s Semantics and the Dynamic of the Truth in Psychoanalysis Abstract: This article discusses the question of truth in its inscription in dependent clauses, from the philosophical and psychoanalytical approaches. The author posits that Frege’s approach indicates what psychoanalysis claims about truth and its dynamic, and, in this sense, that the question of truth ought to be thought from the notion of real rather than reality. Key-words: Frege; truth; reality; real; Lacan. A Semântica de Frege e a Problemática das sentenças Subordinadas Frege (1892/1978), no artigo “Über Sinn und Bedeutung” (“Sobre sentido e referência”), discrimina sentido de referência, reivindicando que, enquanto o sentido concerne ao pensamento, a referência diz respeito ao objeto presente na realidade que corresponda ao nome. Desse modo, enquanto o sentido de “Estrela da Tarde” e “Estrela da Manhã” seriam diferentes, a referência seria a mesma, na própria medida em que “Estrela da Tarde” e “Estrela da Manhã” admitem um único referente: o planeta Vênus no primeiro caso, a brilhar ao anoitecer, e, no segundo, a desaparecer quando o Sol surge. Frege diz que a sentença pode ter sentido e referência, como também somente sentido como é o caso, por exemplo, de um poema épico. No entanto, Frege coloca a sua ênfase na referência em detrimento do sentido, afirmando que sem 71 Psicanalista. Mestre em Filosofia e Ética da Saúde Mental pela University of Warwick (UK); e-mail: crlopes2001@yahoo. com. br Apostila de Semiótica Jurídica referência o pensamento perde valor, na exata medida em que é a referência que tem valor de verdade. Nessa direção, Frege propõe que a referência de uma sentença é seu valor de verdade quando seu sentido é um pensamento. Contudo, ele se depara, em sua investigação, com o problema introduzido pelas sentenças subordinadas, em que a sentença inteira, ou a sentença componente, estão em discurso direto ou indireto - casos nos quais as palavras não têm suas referências usuais. Frege argumenta que a sentença subordinada pode ser interpretada de dois modos: como tendo sua referência costumeira um valor de verdade -, ou como tendo sua referência indireta, ou seja, um pensamento. Pode ocorrer, ainda, que o sentido de uma parte da sentença subordinada seja não somente um pensamento, como também uma parte de outro pensamento, que, associado ao sentido diretamente expresso pela sentença subordinada, forme o sentido da sentença como um todo (FREGE, 1892/1978, p. 85). Assim, Frege esteve concernido nesse artigo com o propósito de clarificar, por meio de uma minuciosa análise, as razões essenciais pelas quais uma sentença subordinada nem sempre é substituível por outra de mesmo valor de verdade, sem afetar a verdade da sentença total. As razões dadas por ele foram as seguintes: 1) A sentença subordinada tem como referência não um valor de verdade, e sim um pensamento, quando o seu sentido não é um pensamento, mas uma parte dele. Isso se dá quando: a)As palavras têm referência indireta; b)Mesmo a sentença subordinada tendo referência habitual, uma parte do pensamento indica indefinidamente, em vez de ser um nome próprio. A sentença subordinada, embora tendo como referência um valor de verdade, não se restringe a isso, pois seu sentido exprime, além de um pensamento, também uma parte de outro. Nesse artigo, temos o propósito de discutir somente um problema dentre todos os mencionados, deflagrado pela estrutura das sentenças subordinadas no que tange à dinâmica da verdade e ao sentido. O problema concernente aos casos nos quais as palavras nas sentenças subordinadas têm referência indireta conota essa referência não como um valor de verdade, mas como um 191 José Diniz de Moraes pensamento e o seu sentido não como um pensamento, mas como uma parte dele. Casos em que encontramos no seu fundamento a problemática das crenças. Esse problema é encontrado por Frege no campo das sentenças subordinadas substantivas abstratas introduzidas pelo “que” e estruturadas no discurso indireto, nas quais, de acordo com Frege, a referência das palavras é indireta, coincidindo com o que é, costumeiramente, seu sentido (Ibid., p. 72). Nessas sentenças subordinadas, o sentido não é um pensamento independente, e sim apenas uma parte do pensamento da sentença composta como um todo. E essas sentenças têm como referência um pensamento, e não um valor de verdade. Isso ocorre depois de “dizer”, “pensar”, “ouvir”, “inferir”, “estar convencido” e palavras semelhantes (Ibid.). Frege usa, como argumento a favor da conclusão extraída por ele sobre o problema colocado pelas sentenças substantivas abstratas, o fato de que elas constituem um caso em que a referência não é um valor de verdade, e sim um pensamento; bem como o fato de que a verdade do todo não depende da verdade da sentença subordinada, e por isso em nada interfere para a verdade do todo a verdade ou a nãoverdade da sentença subordinada. Nessas sentenças, não há a dependência da verdade do todo em relação à verdade das partes. Daí o problema encontrado por Frege, pois isso questiona as consequências lógicas da sua reivindicação de que a referência de uma sentença é seu valor de verdade: que o valor de verdade de uma sentença permanece inalterado quando uma expressão é nela substituída por uma que tenha a mesma referência. E que a referência de uma sentença se constitui a partir da referência das palavras, quando as palavras são partes da sentença. Na sentença subordinada, a referência da sentença não se constitui a partir das referências das palavras, mesmo sendo as palavras partes da sentença. A sentença não pode ser substituída por outra de mesmo valor de verdade sem afetar a verdade do todo (Ibid., p. 71). Frege dá como exemplo duas sentenças: “Copérnico acreditava que as órbitas planetárias eram circulares” e “Copérnico acreditava que o movimento aparente do Sol era produzido pelo movimento real da Terra” (Ibid., p. 72). Nesses dois exemplos não há nenhum ônus para a verdade do todo se as órbitas planetárias eram ou não circulares, ou se o movimento aparente do Sol era ou não produzido pelo movimento real da Terra. Vê-se, então, que a referência nesse campo é o pensamento, e 192 Apostila de Semiótica Jurídica não o valor de verdade: trata-se do que Copérnico pensava. Referência para Frege é significado, a denotação, o objeto coisificado na realidade. Aqui, a única conclusão pertinente é que a referência de uma sentença nem sempre é seu valor de verdade e que “Estrela da manhã” nem sempre se refere ao planeta Vênus, a saber, quando esta expressão tem sua referência indireta. Uma tal exceção ocorre nas sentenças subordinadas que acabamos de examinar, cuja referência é um pensamento (Ibid., p. 75). Frege assevera que expressões como “alegrar-se”, “consentir”, “lamentar”, “ter esperança”, “temer”, “desaprovar” encerram a mesma problemática: a referência como pensamento, e não como valor de verdade. Segundo ele, a convicção ou a crença pode primeiramente ser a referência de um sentimento, como no exemplo: “Se Wellington, próximo ao final da batalha de Waterloo, se alegrasse porque os prussianos estavam chegando” (Ibid., p. 73), a base de sua alegria não era a realidade da chegada ou não dos prussianos, mas uma convicção - a convicção de eles estarem chegando, independentemente de isso ser verdadeiro ou falso. E, além disso, uma convicção, ou uma crença, pode ser a referência de uma outra convicção, que é o que ocorre na inferência, como exemplifica a seguinte sentença: “Colombo inferiu, da redondeza da Terra, que poderia alcançar a Índia viajando em direção ao oeste” (FREGE, 1892/1972, p. 73). Esse exemplo encerra duas convicções sustentadas por Colombo, e uma convicção é a base da outra. É indiferente para a verdade da sentença se a Terra é ou não redonda, e se Colombo poderia ou não alcançar a Índia viajando para o oeste. Até aqui, Frege esteve concernido com a problemática introduzida pelas sentenças subordinadas cujo sentido não é um pensamento, e sim uma parte do pensamento, e cuja referência indireta conota essa referência como um pensamento. Casos em que a referência não é um valor de verdade. Problemática que já denuncia a vulnerabilidade da sua tese de que a referência é um valor de verdade, e que o sentido é um pensamento, já que, nesse tipo de sentenças subordinadas, a referência deixa de ser um valor de verdade. Em linhas gerais, Frege examina esse impasse em termos de uma problemática encerrada na estrutura dessas sentenças, de uma independência da verdade do todo em relação à verdade ou falsidade das partes. A verdade do todo é afetada se substituímos uma sentença subordinada por uma outra de mesmo 193 José Diniz de Moraes valor de verdade. É o que “exceções” como essas, até aqui, ensinam para Frege. Dessa maneira, o filósofo encontra, no problema encerrado pelas sentenças subordinadas, no que concerne à referência como valor de verdade e ao sentido como pensamento, um dos obstáculos pelos quais uma sentença subordinada nem sempre pode ser substituída por outra de igual valor de verdade sem afetar a verdade da sentença total. Entretanto, Frege diz que os casos em que uma sentença subordinada não é substituível por outra de mesmo valor de verdade não refuta sua tese de que o valor de verdade é a referência quando o sentido é um pensamento. Com isso, Frege parece sugerir que a questão concerne às “exceções” a essa tese. E que, por conseguinte, ele pode com legitimidade continuar sustentando sua tese de que o valor de verdade é a referência da sentença quando o sentido é um pensamento. Com essa conclusão, Frege parece mostrar que essa é a verdadeira visada do seu artigo: analisar a sua reivindicação de que o valor de verdade de uma sentença é a referência da sentença quando o sentido é um pensamento. Portanto, até aqui podemos concluir que Frege nos diz que, embora nem todas as sentenças subordinadas encerrem em sua estrutura a dificuldade de seu sentido ser apenas uma parte de um pensamento, e, consequentemente, a referência não ser seu valor de verdade, habitualmente elas constituem “exceções” à sua tese. Exceções que ele, Frege, não se furta a analisar; e as analisa com rigor, privilegiando como impasse a relação de dependência, de subordinação da sentença subordinada em relação à sentença principal e vice-versa. O sentido como um pensamento sendo extraído a partir do todo que resulta da combinação entre as sentenças principal e subordinada. O meu acento, neste artigo, não recairá sobre o que já foi possível extrair de conclusão do trabalho de Frege na direção de afirmar que os significados das palavras só são conhecidos mediante a função que desempenham em contextos mais complexos, ou no fato de que essa abordagem traz como consequência que as palavras quando usadas isoladamente carecem de significado (ALCOFORADO, 1972). Reconhecer a correção dessas teses não impede outras conclusões, na medida em que o acento pode ser 194 Apostila de Semiótica Jurídica colocado em outro lugar. O objetivo deste artigo é justamente o de tentar privilegiar as “exceções” com as quais Frege se deparou. Deslocar o acento para o que pode indicar o fato da referência das sentenças subordinadas não ser o seu valor de verdade, na própria medida em que o seu sentido não é um pensamento no sentido dado a nós por Frege. Nosso propósito é enfatizar o problema introduzido pelas sentenças subordinadas, das quais Frege, no nosso entendimento, não extraiu as devidas consequências, e designou para elas o lugar de “exceções”, pois, como poderemos ver na próxima seção em uma outra visada - a psicanalítica -, a estrutura das sentenças subordinadas tem o mérito de deflagrar a dinâmica da verdade. Tem o mérito de fazer um corte na teoria da verdade como correspondência. Enquanto “exceções”, em Frege, é um significante tomado em uma abordagem tradicional, tendo, portanto, o sentido de confirmar a regra a que elas resistem; “exceções”, em uma visada psicanalítica, é um significante que conota um questionamento dessa regra. Nesse sentido, nos deteremos na próxima seção na perspectiva psicanalítica da questão introduzida pela verdade, para que a partir disso possamos contrapor as duas leituras com o propósito de verificar se o encontro de Frege com essa “exceção” à sua tese de fato indica o que a psicanálise reivindica no que concerne à dinâmica da verdade. O Problema da Verdade na Psicanálise De acordo com Lacan (1964), Freud trata de buscar a certeza que concerne ao inconsciente, a despeito da sua inconsistência, das fragilidades dos seus furta-cores, superando tudo o que seja da ordem do Não estou certo, tenho dúvidas. E, com isso, Lacan conclui que o encaminhamento de Freud é cartesiano. Que há um ponto em que se aproxima o encaminhamento de Freud com o de Descartes, na medida em que quando Descartes nos diz - Estou seguro, porque duvido de que penso -, ele faz a dúvida apoiar a certeza fundada no sujeito (LACAN, 1964, p. 38-39). Contudo, enquanto em Descartes o correlativo do sujeito da certeza é da ordem do Outro que não seja enganador (Outro consistente, lugar da garantia das bases da verdade, Deus perfeito, que não mente, não engana, que não é trapaceiro), para a abordagem freudiana do inconsciente, o correlativo do sujeito não é 195 José Diniz de Moraes mais da ordem do Outro que (não) engana, mas do Outro enganado (Ibid., p. 40). “O que o sujeito mais teme é nos enganar, nos colocar numa pista falsa ou, mais simplesmente, que nós nos enganemos, pois, antes de mais nada, é bem claro, vendo nossa cara, que nós somos pessoas que podemos nos enganar como todo mundo” (Ibid. ). Nessa direção, Lacan (1959-1960/1991) reivindica que no nível do inconsciente o sujeito mente. E que “essa mentira é sua maneira de dizer a verdade acerca disso” (LACAN, 1959-1960/1991, p. 94). Lacan retoma o Entwurf de Freud, no qual é trabalhada a primeira mentira histérica. Lembra o exemplo dado por Freud de uma doente, Emma, que tem fobia de entrar sozinha nas lojas, onde tem medo que caçoem dela por causa de sua roupa. À primeira vista, a problemática se centra na primeira recordação: a experiência tida por essa mulher, aos doze anos, quando entrou numa loja e os empregados riram, aparentemente, de sua roupa. Um deles não só lhe agradou, como também a perturbou de modo singular em seu início de puberdade. No entanto, por detrás desta primeira recordação, podemos reencontrar a recordação causal: uma experiência de agressão sofrida aos oito anos, numa loja, por parte de um homem de uma certa idade, que a beliscou “não-sei-onde” debaixo da sua saia de uma maneira bem direta (Ibid., p. 94). “Essa recordação entra, portanto, em ressonância com a ideia da atração sexual sentida na outra recordação” (Ibid. ). De acordo com Lacan, enquanto por um lado tudo o que resta no sintoma dessa mulher é vinculado à zombaria experienciada por causa da roupa, por outro, a cobertura, a Vorstellung mentirosa da roupa nos coloca nos trilhos da verdade. “Há uma alusão, de forma opaca, ao que não aconteceu no momento da primeira recordação, mas na segunda. Algo que não foi apreensível originalmente, só depois o é, e pelo intermédio dessa transformação mentirosa - proton pseudos” (Ibid., p. 95). Freud (1920), no seu famoso caso da jovem homossexual, no qual se vê diante de sonhos mentirosos tidos por essa paciente que intencionavam enganá-lo de que ela estava se voltando para o que lhe era pedido, nos sugere que o inconsciente pode se exercer no sentido do engano e que isto não desvaloriza a verdade que concerne ao inconsciente. “Com efeito, como não haveria a verdade da mentira - essa verdade que torna perfeitamente possível, contrariamente ao pretenso paradoxo, que eu afirme - minto” (LACAN, 1964, p. 40). LACAN (1962-1963) nos diz que o mundo do sujeito falante 196 Apostila de Semiótica Jurídica tem como característica essencial o fato de que nele é possível enganar. Característica conferida pelo significante que gera esse mundo, na própria medida em que faz do mundo uma rede de traços em que a passagem de um ciclo a outro se torna então possível (LACAN, 1962-1963, p. 87). Com isso, Lacan nos diz que a dimensão do engano e com ela a dimensão da dúvida são inevitáveis para os sujeitos submetidos à ordem simbólica. Segundo LACAN, a proposição chamada afirmativa universal tem apenas o sentido de definição do real a partir do impossível. A lógica tem a função essencialmente precária de condenar o real a tropeçar eternamente no impossível. LACAN sugere que nos remetamos ao Pequeno Hans (FREUD, 1909) que, em um primeiro momento, universaliza o pênis: Todos os seres animados têm falo. A partir dessa equação se depreende que é impossível que exista um ser que não tenha falo (com isso, o real do Outro sexo tropeça no impossível). Assim, surge a angústia, quando do momento em que a falta do Outro se coloca por meio da diferença sexual da mãe. E a partir disso, o passo seguinte é dizer que mesmo os que não o têm o têm. Que mesmo os que não o têm o terão, contra tudo e contra todos (LACAN, 1962-1963, p. 90). Eis a dimensão do engano. Como Lacan nos adverte, ao contrário do que a psicologia clássica professa - que os homens são atormentados pelo irreal no real - a conquista freudiana nos ensina que o inquietante é que, no irreal, é o real que os atormenta (Ibid., p. 91). Freud, em seu texto sobre o fetichismo (1927), nos indica que a Verleugnung, o desmentido, a recusa diante da castração no Outro, não é um mecanismo exclusivamente perverso, e sim um dado de estrutura em todo ser falante: “Quando esse mecanismo se constitui no caminho preferencial do sujeito, na sua relação à angústia do Outro, nos encontramos com a estrutura clínica da perversão, mas o mecanismo em si está longe de reduzir-se a ela” (BECKER, 2006, p. 48). No referido texto, Freud traça uma distinção entre Verdrängung (recalque) e Verleugnung (desmentido) indicando que os mecanismos do recalque e do desmentido estão presentes tanto na neurose quanto na perversão. O que na verdade diferenciará essas duas estruturas é o funcionamento diferente desses dois mecanismos em cada uma. Freud nos indica que, enquanto no recalque a ideia é retida no inconsciente, na Verleugnung a ideia é desmentida. A proposição “a mãe não tem o pênis” é negada afirmando. Freud argumenta que a criança se recusa a reconhecer a 197 José Diniz de Moraes castração no Outro sexo, pois ela implica o reconhecimento da própria castração pela criança. Entretanto, Freud sublinha a falta de simplicidade desse mecanismo, ressaltando de sua abordagem a dimensão do paradoxo quando ele reivindica que após a topada com a castração no Outro sexo, a criança não mantém inalterada sua crença de que as mulheres possuem um falo. Retém essa crença, mas também a abandona. Freud (1938), nessa mesma direção, ressalta o conflito entre o eu da criança que se encontra a serviço de uma poderosa demanda pulsional que ele costuma satisfazer e a vivência por ela de um perigo real dificilmente suportável, caso ela prossiga nessa satisfação. Freud argumenta que a criança deve decidir-se entre duas alternativas: o reconhecimento do perigo real, ou seja, da castração que implica uma renúncia pulsional, ou desmentir a realidade da castração e perseverar na satisfação. Entretanto, de acordo com o psicanalista vienense, a criança encontra “uma solução muito esperta da dificuldade” (FREUD, 1938/2007, p. 33) e “responde ao conflito com duas reações contrárias, ambas válidas e eficazes” (Ibid.). Freud reitera o argumento apresentado no Fetichismo, que, diante da castração na mãe, a criança retém a crença, mas também a abandona com outras palavras. Diz que a criança num mesmo movimento rejeita a realidade da castração e reconhece o perigo dessa realidade, assumindo para si a angústia diante deste perigo real como sintoma de padecimento, e busca depois se defender dele. No entanto, tal solução esperta tem um preço, a saber, um rasgão, uma cisão no eu “que nunca mais cicatrizará e só se ampliará com o tempo. As duas reações contrárias ante o conflito perduram como âmago de uma cisão do eu” (Ibid., p. 33-35). Nesse texto, Freud marca que a cisão, resultado da Verleugnung, é dado de estrutura, e não um elemento da psicose como foi para ele em um primeiro momento da sua teoria. Vidal (2007) diz que o conflito abordado por Freud nesse texto constitui-se entre duas bordas: a do buraco aberto da pulsão que demanda sempre mais, e a da realidade que, ao fazer objeção a essa satisfação pulsional ilimitada, confere suporte ao real impossível de simbolizar. Parece que Vidal fala aqui da realidade psíquica no que ela serve como uma rede de proteção contra a verdade do desejo do Outro, como uma rede de anteparo do inconsciente que protege o sujeito da verdade do próprio inconsciente. 198 Apostila de Semiótica Jurídica Freud, no início de seu percurso, tomou como verdade factual a cena de sedução pelo pai que as suas pacientes histéricas contavam para ele, até ele escutar com um rigor impecável que nessa cena não se tratava de realidade concreta, e sim de realidade psíquica, desembocando na sistematização do complexo de Édipo. A vivência edípica conduz Freud a reivindicar que o sujeito neurótico sofre em decorrência da realidade psíquica, e não da realidade concreta. O sofrimento interminável do neurótico se dá por se sentir responsável por coisas que dizem respeito à sua fantasia e não aos fatos, por ele estar submetido à sua fantasia. Entretanto, Freud parece legitimar a verdade que concerne ao fantasma, na medida em que ele marca que não se trata de desresponsabilizar o sujeito no que concerne ao seu fantasma (FREUD, 1909/1996). Podemos dizer que, a partir da noção de realidade psíquica, para a psicanálise, a realidade é fantasmada. A fantasia, podemos dizer a partir de Lacan, é a resposta que o sujeito dá para o ponto de falta no Outro que introduz o enigma do seu desejo. O fantasma é a saída para o desejo, na medida em que o desejo por ser efeito da falta de um significante no Outro, e por esse desejo se constituir em um não sentido, ele faz sofrer. “O fantasma é então a solução neurótica para o desejo” (LEGUIL, 1993, p. 20). Freud (1919) postula o fantasma como fantasma perverso e constrói que, aquilo que faz o sujeito gozar em suas fantasias é ser espancado, implicando dessa forma um lado inconsciente do fantasma, pelo que o sujeito nada sabe disso. O fantasma, como nos mostra a fórmula construída por Lacan - $ ◊ a (sujeito barrado conjunção e disjunção com a) -, realiza a divisão do sujeito, articulada a um objeto: “Aí está a posição verdadeiramente paradoxal do fantasma. Este fantasma que realiza a divisão é um real que esconde o Real. O fantasma é um real da castração que esconde do sujeito o Real da castração” (LEGUIL, 1993, p. 18). Isso parece sugerir a estrutura paradoxal da verdade, na medida em que introduz o lugar da mentira do inconsciente cuja visada é nos proteger de sua própria verdade por ela ser insuportável (BECKER, 2006). Estamos, então, no campo da Verleugnung, a recusa, a primeira mentira do inconsciente. Uma mentira fundamental que constitui a estrutura da crença do engano necessário e que é convocada pelo insuportável (BECKER, 2006) do real. “Na mais tenra idade, já se é versado na mentira, e capaz de construir explicações dignas do mais legítimo cara-de- pau, na recusa que se 199 José Diniz de Moraes faz da castração” (BECKER, 2006, p. 48). Dessa abordagem feita aqui, o que nos interessa essencialmente é salientar que na Verleugnung, como um dado estrutural, a falta mesmo desmentida é mantida, uma vez que a castração da mãe tem uma passagem obrigatória pelo desmentido, que, embora rejeitando a falta na mãe, retém essa crença. O que muito nos interessa, nesse percurso, é a ligação da Verleugnung, como um dado de estrutura, com a estrutura da crença. Nessa lógica, a recusa e o desmentido da castração demonstram a própria castração negada. A mentira do próprio inconsciente com a qual se deparou Freud no caso da jovem homossexual convocada pelo insuportável do real, cuja visada é proteger o sujeito de sua própria verdade (BECKER, 2006), confessa, mesmo sem o sujeito nada querer saber disso, essa verdade. O que é deflagrado no papel fundamental do mecanismo da Verleugnung nas crenças é que a verdade é paradoxal, que a verdade convoca a mentira, e a mentira deflagra a verdade, mesmo sem o sujeito o querer. Conjuntura bem ilustrada pelo paradoxo do mentiroso. Ao proferir ‘Este enunciado é falso’, se ele é verdadeiro, então o que ele diz é verdade, a saber: que ele é falso. Se ele é falso, então, uma vez que isso é exatamente o que ele declara a respeito de si mesmo, ele é verdadeiro. Logo, quer seja verdadeiro, quer falso, ele é tanto verdadeiro quanto falso (GOLDSTEIN et al., 2007). A partir do mecanismo da Verleugnung na estrutura das crenças não é possível sustentar o ideal de uma verdade verdadeira, de uma verdade sem a dimensão da mentira e, por outro lado, de uma mentira que não introduza a dimensão da verdade (que é mantida pela Verleugnung). Pensamos que é nessa direção que podemos introduzir a reivindicação de Lacan (1975) de que a verdade tem estrutura de ficção. Discussão A abordagem fregeana do sentido e da referência, no que ela não se furtou a reconhecer a problemática introduzida pelas sentenças subordinadas, casos nos quais a referência deixa de ser um valor de verdade, mesmo sem ter tirado tal consequência, tem o mérito de indicar um corte com a teoria da verdade como correspondência com a realidade (RUSSEL, 1905, 1906-7, 1917; WITTGENSTEIN, 1922; AUSTIN, 1950; TARSKI, 1933, 1969, 1983). 200 Apostila de Semiótica Jurídica Os tipos de sentenças subordinadas analisados por Frege a que nos referimos nesse artigo concernem a todo um campo: crenças, sentimentos, pensamentos, inferências etc., que tem como fundamento o problema das crenças. Todo um campo que introduz uma questão para uma teoria da verdade como correspondência inaugurada por Frege, já que a estrutura desse tipo de sentenças pode trazer no seu bojo tanto a correspondência, e nesse caso a verdade (para essa teoria), como a não correspondência, e, com isso, a falsidade das partes constituintes dessas sentenças com a realidade. E o que faz Frege diante desse embaraço que deflagra de maneira tão patente o elemento de falsidade na dinâmica da verdade? Designa esse tipo de sentença como uma “exceção”, e continua sustentando sua tese de que o valor de verdade de uma sentença é a referência, ou seja, o significado, só que agora com uma ressalva que as “exceções” ensinaram para ele: a referência é um valor de verdade quando o sentido é um pensamento. Com isso, Frege estabelece uma relação harmoniosa entre sentido e verdade: sentido acabado/verdade coisificada. Por outro lado: sentido indefinido/verdade como pensamento. E o que tem a psicanálise a dizer sobre essa problemática denunciada pela estrutura das sentenças subordinadas? Primeiramente, no que concerne ao sentido, podemos falar do uso que faz Lacan (1969-1970) da ambiguidade das raízes nas línguas para mostrar que o sentido e o nonsense comportam ambiguidades e um jogo significante nessas línguas, introduzindo o lugar mesmo do sentido do não sentido e o da verdade. Isso é ilustrado na língua francesa com a palavra sans, presumidamente vinda do latim sine, cuja primeira forma era algo como senz, mostrando um jogo significante em que temos senz e depois sans (puis sans), conotando uma potência (puissance), o que é antes o que de ser há no sentido, entendido diversamente de sentido pleno (LACAN, 1969-1970/1996, p. 54). Essa nuance sutil entre o sentido e o nonsense comportada pelo jogo significante pode ser vista também no inglês com o without - equivalente na língua inglesa para o sans no francês -, que estruturalmente conota com estando fora (LACAN, 19691970/1996). Enquanto Frege interpretou a falta de sentido pleno das 201 José Diniz de Moraes sentenças subordinadas como “exceção”, e não declinou da sua teoria de que o valor de verdade de uma sentença é a sua referência quando o seu sentido é um pensamento, não extraindo dessas fecundas “exceções” consequências radicais para a sua abordagem do sentido e da verdade, opondo (mesmo que não de uma maneira ostensiva como seus herdeiros o fizeram) sentido e nonsense; Lacan nos deixa entrever, por meio da análise da ambiguidade das raízes do nonsense nas línguas, o quão sutil é a linha divisória entre o sentido e o nonsense para a psicanálise. Em segundo lugar, no que concerne à verdade, como argumentamos na seção passada, a realidade psíquica para Freud parece ter não somente um peso de verdade, mas também um valor de uma sentença de subordinação, na medida em que ele reivindica, por exemplo, que o sujeito neurótico se subordina a uma tortura imensa por se sentir responsável por coisas que dizem respeito à sua fantasia, e não aos fatos (FREUD, 1909/1996). Dissemos que, a partir dessa noção de realidade psíquica, para a psicanálise, a realidade é fantasmada. A noção de realidade psíquica, ou fantasma, parece sugerir a estrutura paradoxal da verdade, uma vez que introduz o lugar da mentira do inconsciente, cuja intenção é nos proteger de sua própria verdade, por ela ser insuportável (BECKER, 2006), deflagrando o campo da Verleugnung, a primeira mentira do inconsciente. Uma mentira fundamental que está no cerne da crença do engano necessário. Mentira que é convocada pelo horror do real. A estrutura das sentenças subordinadas tem o mérito de engendrar o problema da verdade, no que ela parece passar pelo desmentido no campo das crenças. Problemática que discutimos na seção anterior. As sentenças subordinadas têm o mérito de mostrar que no campo das crenças uma afirmação falsa pode aceder a um lugar legítimo de verdade, como exemplifica a sentença extraída do texto do próprio Frege: “Copérnico acreditava que as órbitas planetárias eram circulares”. Nesse exemplo, podemos entrever que a falsidade da afirmação de as órbitas planetárias serem circulares, ao ser introduzida no campo da crença, consegue aceder à condição de verdade. Podemos entrever o real das órbitas planetárias em jogo nessa crença. Hoje sabemos que as órbitas planetárias são elípticas, mas elas sempre o foram e sempre estiveram no mesmo lugar. No entanto, a crença de Copérnico teve lugar diante do enigma colocado para ele pelas formas das órbitas planetárias. No fundamento dessa 202 Apostila de Semiótica Jurídica crença, está o engano que toma lugar diante da insuportabilidade da falta, de não saber do que se mantém como real, nesse caso, a forma das órbitas planetárias em sua época. Podemos reivindicar, a partir de uma abordagem psicanalítica, que o que a estrutura dessa sentença subordinada indica é que o engano de Copérnico, que desembocou na sua crença, se fundou a partir de seu encontro com o real das órbitas planetárias, com o enigma colocado pelo mesmo. Esse engano protegeu Copérnico da sua verdade, a saber, que das formas das órbitas planetárias ele não sabia. Mas, num mesmo movimento, essa sentença subordinada que expressa a crença de Copérnico deflagra esse ponto de falta no seu saber. Nessa direção, sentenças subordinadas que conotam todo o campo das crenças parecem indicar que a verdade tem estrutura de ficção. Os exemplos de Frege são rigorosos, porque em todos eles podemos entrever com nitidez a presença do real com sua natureza enigmática na origem das afirmações falsas que no terreno das crenças ganham legitimidade. O campo da lógica e da filosofia da linguagem tentou resolver esse embaraço restringindo a palavra ‘proposição’ a sinônimo de conteúdo, reivindicando que são as proposições os portadores primários de verdade e falsidade (GOLDSTEIN et al., 2007). A partir desse projeto, aparentemente o embaraço colocado pelo problema da verdade no campo das crenças é solucionado pelo fato da crença poder ser verdadeira, mas o conteúdo da crença falso. Entretanto, o que podemos detectar nessa perspectiva é simplesmente a camuflagem do problema colocado pela verdade nas crenças. Pois essa abordagem, ao tentar dar à proposição, entendida rigorosamente como o conteúdo da crença, a última palavra para a filosofia, não consegue tocar no problema da verdade colocado pela crença. Adotar essa perspectiva é continuar privilegiando a teoria de correspondência da verdade com a realidade e negligenciar a problemática da estrutura da crença. Dessa maneira, o mérito das sentenças subordinadas é indicar pela sua estrutura (que consiste na possibilidade de afirmações falsas desembocarem na verdade do todo - elemento que embaraçou) algo que a psicanálise reivindica, a saber: a mentira deflagra a verdade negada. Indica que a mentira que visa a proteger o sujeito da verdade da castração, confessa, mesmo sem o sujeito nada querer saber disso, essa verdade. O que a estrutura das sentenças subordinadas indica é o paradoxo encerrado pela dinâmica da verdade, qual seja: a verdade convoca a 203 José Diniz de Moraes mentira e a mentira confessa a verdade, mesmo sem o sujeito o querer. A estrutura das sentenças subordinadas que conota todo o campo das crenças indica a falácia de sustentar o ideal de uma verdade sem a dimensão da mentira e de uma mentira que não deflagre a verdade, como quer todo e qualquer projeto de metalinguagem (RUSSEL, 1905, 1906-7, 1917; WITTGENSTEIN, 1922; AUSTIN, 1950; TARSKI, 1933, 1969, 1983). Nesse ponto, como Iannini (2008) marca bem, a virulência da crítica de Lacan à metalinguagem, ou seja, a qualquer concepção de linguagem como sistema representativo calcado na positividade do significado, passa por termos que vão desde “ilusão”(LACAN, 1957/1998, p. 501), passando por “heresia” (Ibid.), até a acusação de “canalhice” (LACAN, 1969-1970/1994, p. 57). Nessa direção, Lacan (1975) argumenta que a verdade tem uma estrutura de ficção porque ela passa pela linguagem, e a linguagem tem uma estrutura de ficção. Dizer que a verdade tem estrutura de ficção é dizer que não há verdadeiro sem falso, pelo menos em seu princípio. No entanto, é falso reivindicar que não há falso sem verdadeiro, pois o verdadeiro não tem uma genealogia, remontando sempre a um primeiro verdadeiro do qual não poderia mais declinar (LACAN, 1969-1970/1996). Incluir o inconsciente na dimensão da verdade como a psicanálise o faz, é reconhecer que a verdade é não toda. A verdade é não toda porque a linguagem, como Wittgenstein, grande herdeiro de Frege, tanto enfatizou em seu Tractatus, tem os seus limites. Esses limites, Lacan não deixa de reconhecer, mas, diferentemente de Wittgenstein, apesar dos limites, sustenta que é possível bordejar essa verdade que toca no impossível de ser dito (CORREA, 2008). Portanto, a reivindicação lacaniana da verdade como uma estrutura de ficção denuncia a vulnerabilidade da ambição lógica de eliminar a dimensão do paradoxo do campo da verdade. Sob essa ótica, a estrutura de ficção da verdade garante a legitimidade da verdade das sentenças subordinadas, que conotam o campo das crenças no que elas parecem suportar essa estrutura de ficção. Interessa-nos, pois, neste artigo, a definição dada por Becker (2006) da estrutura de ficção da verdade: (... ) é preciso distinguir saber a verdade de um saber que fala do lugar da verdade. A paixão pelo saber, na qualidade de paixão pela verdade, é o avesso, ponto a ponto, da paixão pela ignorância. Já o saber que fala do lugar excêntrico à paixão, é construído como uma rede de anteparo, 204 Apostila de Semiótica Jurídica uma ficção que perfaz a borda de um trauma, condição de possibilidade para que o sujeito possa suportá-la. É o que levou Lacan a afirmar que “a verdade tem sempre uma estrutura de ficção”. As significações desta rede importam muito pouco, de fato; é a resistência material mesma do tecido da língua a responsável pelo seu enorme valor psíquico (BECKER, 2006, p. 49-50). Estando a Verleugnung, como reconhecimento e recusa da castração, na base de todas as nossas crenças, podemos pensar que a verdade da crença tem estrutura de ficção: um saber que ao mesmo tempo serve ao sujeito como anteparo de proteção contra o insuportável da verdade, e um saber que fala do lugar da verdade. E isso, a estrutura das sentenças subordinadas que concerne a todo um campo das crenças o indica de maneira privilegiada. Em suma, a psicanálise pode tirar consequências da possibilidade de existência de um elemento de falsidade na estrutura de um enunciado que, apesar disso, pode ser verdadeiro, como ilustra quaisquer exemplos dados por Frege, tais como: “Copérnico acreditava que o movimento aparente do Sol era produzido pelo movimento real da Terra” (FREGE, 1978, p. 72). Nesse exemplo, não há nenhum ônus para a verdade do todo se o movimento aparente do Sol era ou não produzido pelo movimento real da Terra. Podemos dizer, a partir da psicanálise, que essa referida estrutura das sentenças subordinadas circunscreve um campo da falta de um saber garantido, e tem o mérito de corroborar a reivindicação psicanalítica de ser a realidade uma realidade fantasmada, construída a partir da resposta dada a essa falta de saber. Resposta que comporta a dimensão do engano. Daí podemos entrever quão problemática é a teoria da verdade como correspondência com a realidade. Se de um lado Frege fala em “exceções”, de outro, nós, ao tirarmos novas consequências dessa problemática, podemos asseverar que a verdade concerne à realidade concreta apenas contingencialmente. Portanto, de um lado Frege tenta sustentar um tratamento da verdade que diz respeito à referência tomada como significado. A verdade, na sua abordagem, refere-se à realidade concreta. Nesse contexto, não é possível reivindicar valor de verdade como referência para uma sentença que não suporta em sua estrutura uma correspondência com a realidade, na medida em que ela traz no bojo da sua estrutura a possibilidade da falsidade das sentenças componentes, mesmo que no todo ela seja verdadeira. Do outro lado, 205 José Diniz de Moraes a abordagem lacaniana do sentido e da verdade questiona consistentemente Frege, dado que, de acordo com Lacan (19691970/1996), a verdade é certamente inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais, incluindo dessa maneira o inconsciente, tendo, portanto, a verdade estrutura de ficção: “Que nenhuma verdade pode ser localizada a não ser no campo onde ela se enuncia - onde se enuncia como pode” (LACAN, 1969-1970/1996, p. 59). Lacan (1969-1970/1996), por outro lado, nos adverte contra a dimensão do amor à verdade, pois essa dimensão não nos deixaria entrever a impossibilidade do que se mantém como real. Não nos deixaria entrever que a verdade original por estar radicalmente perdida, na medida em que ela sucumbe ao recalque originário concernente ao real. E, por isso, é impossível dizê-la toda. Lacan (1969-1970) afirma que a verdade que refere-se ao real é da ordem do nonsense, dado que o real é puro nonsense - o que não para de não se escrever. No entanto, Lacan, numa direção oposta a uma posição filosófica cética, sustenta uma abordagem para esse real que insiste com o peso do nonsense que lhe concerne. “Coisa curiosa, o não-senso tem peso. Isso dá um frio no estômago. E este é o passo dado por Freud, ao ter mostrado que isso é o que o chiste tem de exemplar, a palavra sem pé nem cabeça e nem cauda” (LACAN, 1969-1970/1996, p. 54). A abordagem lacaniana da verdade provoca-nos a não consentir com essa posição filosófica cética e cômoda diante dessa verdade que revela sua estrutura de ficção, às vezes de maneira privilegiada - como pensamos ocorrer na estrutura das sentenças subordinadas. A maneira pela qual Frege designa as sentenças subordinadas como “exceções” sugere no seu cerne a conotação de exílio, de um recanto rejeitado e excluído. Direção impecavelmente seguida, a despeito de algumas diferenças que não modificaram em nada a ética dessa posição, pelo Wittgenstein (1922) do Tractatus Logico-Philosophicus, que, envolvido com o ideal da palavra como suporte da verdade, não respeitou a ordem do impossível do real, e teve, nessa direção, o mérito de deflagrar a contrapartida lógica desse ideal: a exclusão da dinâmica da verdade e a exclusão da falta de sentido. Lacan fala da posição de Wittgenstein como um “nada querer saber do recanto em que a verdade está em jogo” (LACAN, 1969-1970/1996, p. 60). Pensamos que é também essa a posição de Frege. Mesmo que ele não tenha sustentado afirmações tão 206 Apostila de Semiótica Jurídica categóricas e radicais no que tange ao real e à dinâmica da verdade como Wittgenstein o fez, ele implicitamente faz a mesma exclusão da dinâmica da verdade. A dimensão do Ideal da linguagem é patente no pensamento de Frege. Lacan (1967/2005) reivindica algo referente ao Ideal do eu que esclarece essa formação do Ideal que parece estar a serviço do desmentido (Verleugnung), reconhecendo a castração e sua recusa em um mesmo movimento (FREUD, 1927/1996). Lacan, nessa proposição, ao tratar da dimensão do Ideal na psicanálise, sugere com uma fina elegância que, onde o Ideal do eu está em jogo, temos como contrapartida lógica a segregação, a exclusão das diferenças que tocam no real da castração (LACAN, 1967/2005). Trata-se de um campo onde as diferenças são sentidas no registro da exclusão e não simplesmente como diferenças em direção à depuração de um estilo. Em uma direção oposta àquela defendida pela filosofia (que afirma, implícita ou explicitamente, que ‘nada se pode dizer’ sobre o real e a dinâmica da verdade), Lacan reivindica que mesmo não sendo possível dizer toda a verdade, é possível semidizê-la. O tratamento analítico, usando a palavra como seu instrumento, vai esbarrar no real. E é o bordejamento desse real que possibilitará ao sujeito semidizer essa verdade. Bordejar o impossível é tomar o real como causa. Estamos então no campo da operação de separação que confere abertura para que o desejo do sujeito em sua função separadora franqueie a queda do Ideal. Nessa operação, o desejo do Outro deixa de ter um valor de sentença de subordinação para o sujeito, conferindo a ele uma abertura para se desembaraçar do comando de uma realidade fantasmada que adquire valor de verdade, suportando a falta de sentido que toca na dimensão do impossível da verdade. Referências bibliográficas ALCOFORADO, P. (1978) “Introdução”, in FREGE, G. 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London: Routledge. 209 José Diniz de Moraes Texto 08 - João Sàágua: Significado, Verdade E Comunicação72 Preâmbulo A Semântica tem como objecto explicar o significado, e o significado é essencial para explicar a comunicação. No entanto, o trabalho da Semântica pode ser realizado em dois níveis distintos. Um no qual se estuda uma linguagem particular, como o Português, o Checo, o Chinês ou outra, e se descrevem os mecanismos de produção de significado que são específicos dessa linguagem. Este é o nível da semântica linguistica. Mas, há também um segundo nível, mais geral, no qual se estuda a natureza do significado e o modo como este se relaciona com as expressões das linguagens, sejam estas quais forem, e com o comportamento verbal dos seus falantes. Este é o nível da Semântica como teoria geral do significado. É óbvio, que os dois níveis, sendo distintos, têm que ter uma relação conspícua. A teoria geral do significado não específica nenhuma linguagem em particular, mas tem em vista resultados que seriam válidos para todas elas. Por sua vez, a semântica linguística de uma linguagem particular não pode ser prosseguida por muito tempo sem que considerações mais gerais, explícitas ou tácitas, acerca da natureza do significado sejam mobilizadas para tornar inteligíveis os processos semânticos da linguagem que se pretende estudar. Existe, mesmo assim, considerável autonomia entre os dois níveis da investigação, e no que se segue cingir-me-ei ao nível da teoria geral do significado, visto que é este que nos interessa para explicar o fenómeno da comunicação verbal, que é comum a todas a linguagens. Nesta conformidade, vou aqui procurar mostrar como é que um certo programa conhecido como Semântica das Condições de Verdade, propõe uma explicação do significado e da comunicação 72 - A investigação conducente a este ensaio foi realizada no âmbito do projecto “The Explanation of Human Interpretation”, do qual sou o Investigador Responsável. Este projecto é financiado pelo Programa Sapiens, Código: PCTI/1999/FIL/34455. Agradeço a Ricardo Santos e à minha mulher, Esmeralda, sugestões que me fizeram e que me permitiram melhorar o texto escrito. 210 Apostila de Semiótica Jurídica verbal. Considero que este é o melhor programa semântico disponível para proporcionar essa explicação, mas não argumentarei aqui nessa direcção. Ater- me-ei apenas a uma apresentação do seu quadro geral, remetendo para uma eventual discussão, ou para uma outra altura, os aspectos mais técnicos deste programa, sobre os quais tenho, aliás, escrito com frequência73. Contudo, a especificidade e o interesse do que irei expor só podem ser adequadamente compreendidos se forem afastadas do horizonte dessa exposição uma certa concepção errada do significado e uma certa concepção, também errada, da referência linguística. Chamarei à primeira teoria clássica do significado e à segunda teoria atomista da referência. Ambas serão brevemente afloradas e contrastadas com o que aqui nos interessa. Nos últimos cerca de cinquenta anos de trabalhos sobre a linguagem é possível detectar uma forte tendência para opor duas disciplinas: a Semântica e a Pragmática. Considero que esta tendência é especialmente nefasta para os estudos sobre comunicação verbal74. No final desta exposição, procurarei contrariá-la. 1. Comunicação e Significado A comunicação verbal é um fenômeno natural, que ocorre com elevada frequência entre indivíduos de uma espécie natural, a humana75. Outras formas de comunicação, por exemplo, por sinalética corporal, podem ocorrer entre indivíduos de outras espécies naturais, e também entre os humanos, mas essas não me preocuparão aqui. Sendo um fenômeno natural, a comunicação verbal comporta, como todos os outros fenómenos naturais, um conjunto de regularidades observáveis através das quais ela pode ser identificada e distinguida de outros fenômenos. Em esboço, podemos descrever essas regularidades como sendo as seguintes: emissão de cadeias de sons articulados por parte dos agentes humanos, fluidez na troca dessas cadeias por parte dos intervenientes no acontecimento comunicativo (i. e., fluidez na conversação), articulação de acções verbais com acções não verbais 73 - Cf. Sàágua, J. [2002]b. Cf. Rodrigues, A. e Sàágua, J. [2002]: 142-5. 75 - Cf. Hauser, M. D. [1997]. 74 - 211 José Diniz de Moraes (i. e., facilidade nas negociações)76. Estas observações constituem um verdadeiro padrão de comportamentos a detectar quando se pretende identificar o fenómeno da comunicação verbal. É claro que esse padrão admite exceções, mas o mesmo se passa, em maior ou menor grau, com todas as observações de regularidades que servem de padrão ao estudo de outros fenômenos naturais. Note-se que as observações que acabo de descrever, podem ser feitas independentemente do nosso conhecimento da linguagem particular que os agentes humanos usaram para comunicar e são, por isso, válidas para qualquer dessas linguagens. Este é um aspecto metodológico importante: se pretendemos vir a ter uma explicação satisfatória do fenómeno da comunicação verbal, temos que começar por distinguir com clareza entre o que são os dados da explicação e o que é aquilo que se pretende explicar77. Os dados são, pois, as regularidades observáveis já descritas, elas servem de ponto de partida da investigação e, no fim, servirão de evidência para testar a teoria que viermos a elaborar. Aquilo que se pretende explicar é, digamos assim, que tipo de transacção ocorre quando dois ou mais falantes trocam emissões de cadeias de sons articulados e, em especial, quando podemos dizer que essa troca teve sucesso. É para explicar esta transacção, e o seu eventual sucesso, que noções como as de significado e de sentido fazem a sua entrada em cena. Estas são noções teóricas. Mas a nossa explicação toma-as de empréstimo ao uso corrente e elabora-as depois em conformidade com uma metodologia escolhida. O mesmo ocorre com outras noções noutras teorias. A noção de peso, por exemplo, tanto serve, no seu uso corrente para qualificar um saco de compras do supermercado, como serve em física das partículas para referir o peso molecular dos elementos de uma tabela periódica. Seria errado, em qualquer dos casos, pensar-se que há um só uso corrente de cada uma das noções deste género, e que esse alegado uso corrente único é captado e cristalizado pela explicação científica. Há diversos, vagos e nem sempre facilmente compatíveis, ou unanimemente reconhecíveis, usos correntes deste género de noções. As explicações científicas apenas seleccionam aquele uso que melhor parece servir os seus fins e, se for caso disso, reelaboram-no ao um ponto tal que tornam a 76 77 - Cf. Quine, W. [1987]: 27-29, [1992]: 43 Cf. Davidson [1985]: 141-5. 212 Apostila de Semiótica Jurídica noção quase irreconhecível. Voltando às duas noções que nos interessam, a de significado e a de sentido, admitimos que ao trocarem cadeias de sons articuladas, os comunicantes, como podemos chamar-lhes, as dotam de um certo significado e, simultaneamente, realizam uma acção intencional que tem um certo sentido. O processo comunicativo teve sucesso se cada comunicante, agora na qualidade de ouvinte das elocuções dos outros, apreendeu o significado das elocuções destes e compreendeu o sentido daquelas. Estou aqui a propor uma distinção entre significado e sentido. Esta distinção não é óbvia e merece ser mais elaborada. Contudo, deixá-la-ei a flutuar no ar quase até ao final desta exposição e concentrar-me-ei até lá na de significado. Um primeiro aspecto que pretendemos que caracterize a noção de significado é que os significados sejam condição necessária da comunicação verbal: comunicando, os falantes identificam tais ou tais cadeias sonoras como sendo significativas e, em especial, como tendo tal ou tal significado particular. Deve, pois, ser possível especificar esses significados particulares. Determinar em que consiste essa especificação é, sem dúvida, um dos desiderata de uma teoria que vise explicar a comunicação verbal. Um segundo aspecto que pretendemos que caracterize a noção de significado é que os significados sirvam para pôr em equação cadeias sonoras diferentes, da mesma linguagem ou de linguagens diferentes, de modo a que possamos determinar se essas cadeias sonoras assim postas em equação têm o mesmo significado. É para este aspecto do significado que estamos a apelar quando afirmamos: “celibatário” quer dizer o mesmo que “homem não casado”; ou quando afirmamos: “Snow is white” traduz-se em português por “A neve é branca”. Assim se formula o segundo desideratum da nossa explicação: determinar quais são em geral as condições que devem ser satisfeitas para que se estabeleça a sinonímia entre duas cadeias sonoras diferentes. Um terceiro aspecto que pretendemos que caracterize a noção de significado é que os significados sejam de, algum modo, ‘objectivos’. Eles devem ser distintos das representações mentais que cada comunicante associa a uma dada cadeia sonora da sua linguagem, ou a comunicação bem sucedida seria para nós um mistério. As representações mentais são idiossincrásicas e privadas; estão dependentes da biografia de cada comunicante, e não há duas 213 José Diniz de Moraes histórias pessoais idênticas. Sendo assim, podemos enunciar mais um dos desiderata da teoria: determinar em que consiste a ‘objectividade’ dos significados e como se explica a partir desta a comunicação bem sucedida. Um quarto aspecto que pretendemos que caracterize a noção de significado é que os significados sejam distinguíveis da referência. Cadeias sonoras diferentes e às quais associamos diferentes significados podem referir os mesmos objectos. “Estrela da manhã”, “Estrela da Tarde” e “Vénus” são disso um exemplo. Contudo, é plausível supor que existe uma relação conspicua entre o significado de uma cadeia sonora e aquilo a que ele eventualmente se refere. E desta suposição decorre o quarto desideratum da explicação: articular significado e referência no contexto da comunicação verbal. Por fim, quinto aspecto, pretendemos que os significados sejam de multiplicar, com ou sem razão conhecida. Novas cadeias sonoras, que os comunicantes nunca tinham pronunciado ou ouvido antes, podem ser em qualquer momento produzidas e, na medida em que elas sirvam a comunicação verbal, devem ser dotadas de novos significados. Por exemplo, é admissível pensar que nenhum dos leitores deste ensaio ouviu a cadeia de sons que vou transcrever a seguir, e no entanto creio que todos compreenderão qual é o seu significado: “Em Março de 2003 Saddam Hussein veio a Portugal e vestiu-se de mulher para participar, como marafona, no Carnaval de Torres”. Este é o fenómeno habitualmente designado por criatividade da linguagem. Explicar como é que a comunicação verbal inclui este aspecto criativo é, pois, mais um, e na circunstância o último, dos desiderata da explicação pretendida. No quadro de austeridade de que parti, falei predominantemente de cadeias de sons articulados. Do ponto de vista expositivo, toma-se agora útil falar também de elocuções de expressões linguísticas, mas não existe aqui nenhum relaxar dos nossos padrões iniciais. Uma elocução de uma expressão linguística é, simplesmente, a vocalização de uma cadeia sonora articulada e dotada de significado. Uma teoria geral do significado que sirva para explicar a comunicação verbal deve, então, ser capaz de articular os cinco aspectos que, como acabámos de ver, queremos ver representados 214 Apostila de Semiótica Jurídica nessa noção78. No entanto, para motivar essa teoria, torna-se necessário remover do seu caminho, digamos assim, a teoria que acima designei teoria clássica do significado. Esta teoria teve origem nos trabalhos semânticos de Frege79, embora, em boa verdade, se encontrem vestígios dela já em Aristóteles80. E, nas mãos de autores como o primeiro Wittgenstein, Carnap, Church, Kripke, Katz, Fodor ou Block81, ela desenvolveu-se até aos dias de hoje mais como uma família de programas de investigação sobre a linguagem de que como um programa único. O principal e mais pernicioso traço de família destes programas consiste em determinar a natureza e a objectividade dos significados reificando-os sob a forma de intenções, de propriedades, de conceitos ou de proposições. Segundo a teoria clássica, os significados são entidades estruturadas, abstractas e intangíveis; eles são as contrapartes não linguísticas da linguagem. Tal como, num museu os quadros podem ter etiquetas que os nomeiam ou descrevem, também os significados teriam expressões linguísticas que os expressam. Dizer que duas expressões têm o mesmo significado é dizer que elas são etiquetas do mesmo quadro; e os restantes aspectos do significado seriam explicados nesta mesma veia. É claro que os programas de que falo são extremamente complexos e sofisticados, mas estou aqui apenas a aludir à sua raiz e ao seu erro comum. Nos últimos cerca de 60 anos, autores como Quine, Putnam e Davidson, na esteia do que já haviam sugerido, primeiro, Dewey e, depois, o segundo Wittgenstein82, argumentaram que este quadro teórico de explicação do significado é, de todo, inaceitável, mas não me é possível entrar aqui nos detalhes desta crítica. Destes autores, Quine e Davidson dedicaram-se a criar um quadro teórico alternativo, a Semântica das Condições de Verdade, e inúmeros são hoje os indivíduos que trabalham no desenvolvimento deste programa. 78 - Cf. Quine [1961]: 48 e ss. Gotlob Frege [1984]: 157-77; 351-372. 80 - Aristóteles, “Sobre a Interpretação”, 16a. 81 - Cf., por exemplo, Wittgenstein [1922]; Carnap [1942] e [1947]; Church [1951a] e [1951b]; Kripke [1971] e [1980]; Katz [1990] e [1998]; Fodor [1987] e [1999]; e Block [1986]. 82 - Cf. Dewey [1925]; Wittgenstein [1953]; Quine [1960] e [1969]; Davidson [1967] e [1973]; Putnam [1975] e [1988]. 79 - 215 José Diniz de Moraes Esta variedade da semântica começa por enfatizar que a linguagem deve ser estudada tendo por modelo a comu- nicação83. Ora, qualquer evento de comunicação verbal é um acontecimento social. Como estamos a supor, é também um acontecimento através do qual o significado vem ao mundo. Mas vem ao mundo como um produto social. Os significados não são entidades, como queria a teoria clássica. Eles são socialmente construídos e dotados, por isso, de uma intersubjectividade que, num certo sentido, os objectiva. Como são eles construídos socialmente? A resposta a esta questão inicia-se considerando o uso público que os comunicantes fazem das cadeias sonoras. Este uso apresenta regularidades que se exibem no comportamento verbal quando comunicamos. E é partindo dessas regularidades que construímos o significado84. Para permanecermos no âmbito de uma teoria geral do significado, devemos ser capazes de descrever essas regularidades sem fazer referência a nenhuma linguagem em particular. Essas regularidades, estamos a supor, serão comuns a todas as linguagens, quando os seus falantes as usam para comunicar. Podemos, então, distinguir quatro géneros de regularidades que nos servirão para articular uso e significado. Observamos que os falantes de tal ou tal linguagem proferem tais ou tais elocuções, ou dão-lhes o seu assentimento, quando tais ou tais objectos estão presentes, ou tais ou tais acontecimentos ocorrem. Conjecturando que esses objectos ou acontecimentos causam de alguma maneira aquelas elocuções ou assentimentos, identificamos um primeiro género de regularidades: aquelas elocuções são acerca daqueles objectos ou acontecimentos. De igual modo, observando o comportamento dos falantes, vemos que quando eles dão o assentimento a uma certa elocução recusam dá-lo a uma certa outra. Ambas devem ser incompatíveis, conjecturamos nós a partir destas observações. E assim identificamos um segundo género de regularidades: a incompatibilidade entre algumas elocuções. Observando, uma vez mais, o comportamento dos falantes, vemos, por exemplo, que eles dão o assentimento a uma certa elocução, sempre que proferiram certas outras, ou lhes deram o 83 84 - Cf. Quine [1960]: 5-8, [1992]: 42-44; Davidson [1997]: 5m-11m. - Cf. Quine [1981]: 43-54; Davidson [1997]: 5m-14m. 216 Apostila de Semiótica Jurídica assentimento conjunto. Eles consideram que as segundas são condição suficiente de aceitação da primeira, conjecturamos nós. E, deste modo, identificamos um terceiro género de regularidades: as relações de consequência entre elocuções de frases. Como é natural, existirão frases da linguagem que apenas muito remotamente, ou de modo nenhum, podem ser postas em relação com aspectos observáveis do mundo exterior. Chegaremos às regularidades relativas ao uso que os falantes fazem dessas frases, e de algumas das suas expressões, apenas lenta e progressivamente, por aproximações sucessivas. Observaremos, por exemplo, que certas expressões que ocorrem em elocuções de frases que respondem mais directamente a certas observações de objectos ou acontecimentos, recorrem por sua vez em frases que estão mais afastadas dessas observações. Elas recorrem nestas frases mais afastadas das observações conjuntamente com expressões que não ocorrem sequer nas frases que respondem mais directamente às observações. A partir destas constatações temos que começar a conjecturar novas regularidades, de um quarto género, relativas ao uso dessas expressões recorrentes e ao uso das novas expressões que não estavam presentes nas elocuções de frases que respondem mais directamente a observações. Ajudar-nos-ão certamente nestas conjecturas as regularidades do segundo e terceiro géneros que entretanto tivermos detectado85. É claro que, se a linguagem usada pelos comunicantes for uma linguagem que conheçamos ou a nossa própria, todas estas regularidades são identificáveis com relativa facilidade. Haverá margens para desacordo no que respeita ao uso de diversas expressões, mas haverá acordo massivo relativamente à grande maioria delas. Se a linguagem usada pelos comunicantes for uma linguagem que desconhecemos totalmente, o trabalho de identificação de regularidades será muito mais difícil. Mas, persistindo, e operando por tentativas e erros, chegaremos eventualmente a detectar as regularidades descritas. A criança que aprendeu essa linguagem que, por hipótese, nos é desconhecida não teve outro caminho. Nós próprios fizemos o mesmo quando aprendemos a nossa86. Todo este processo de identificação de regularidades está, como 85 86 - Cf. Davidson [1985]: 136-7, [2001]: 212-5. - Cf. Quine [1992]: 37-8. 217 José Diniz de Moraes vimos, dependente de conjecturas: a primeira conjectura interpreta o uso de certas elocuções por parte dos comunicantes como respondendo, grosso modo, aos mesmos aspectos do mundo a que nós próprios responderíamos; a segunda e terceira conjecturas dotam os comunicantes com um mínimo de lógica: eles são interpretados como observando, as mais das vezes pelo menos, a coerência discursiva; por fim, a quarta conjectura preconiza que se abstraiam os usos das expressões que constituem as frases dos usos que fazemos dessas frases, enquadrando-se assim num ambiente holista o comportamento verbal dos comunicantes. E é deste modo que as nossas quatro conjecturas resumem a racionalidade que se supõe ser inerente à comunicação verbal. Elas dizem-nos que o uso que os comunicantes fazem da linguagem não é caótico, que ele é interpretável87 2. Verdade e Comunicação É para explicar como podemos interpretar esse uso de modo a construir os seus significados, que a Semântica das Condições de Verdade propõe que se introduza a noção de verdade. Esta noção está indiciada no comportamento observável dos comunicantes de qualquer linguagem, quer pela simples elocução de frases, quer pelo assentimento que cada comunicante eventualmente dá à elocução de frases proferidas por outro88. Partir desta noção supõe, em particular, que se admita que a linguagem tem um carácter referencial, isto é, que as cadeias sonoras que usamos para comunicar são acerca de algo, próximo ou longínquo, presente ou ausente, concreto ou abstracto, objecto ou acontecimento, existente ou imaginado, querido ou detestado e assim por diante. Mas, este ponto, que é uma extensão natural da nossa primeira conjectura, não parece ser polémico. Comunicamos verbalmente porque a linguagem é robustamente extrovertida89, ou não serviria para comunicar. Estamos agora aptos a descrever o objectivo geral da teoria do significado para uma qualquer linguagem90: sendo dada uma - Cf. Quine [1996]: 161; Davidson [2001]: 211-4. - Sobre este ponto, ver o debate entre Quine, Putnam, Sellars, Dummett, Davidson e outros in Synthese, vol. 27, [1974]: 471508. 89 - Cf. Rodrigues, A. e Sàágua, J. [2002]: 147-9. 90 - Para uma exposição mais desenvolvida ver Davidson [1985]: 12554, Platts 87 88 218 Apostila de Semiótica Jurídica elocução de uma frase, f, de uma linguagem, L, a teoria deverá começar por especificar as condições que tornam essa elocução de f verdadeira para os falantes de L. Capitalizando sob essa especificação, a teoria mostrará como se constrói o significado de f. É claro que não estamos a afirmar que esta construção e aquela especificação representam o que se passa ‘na cabeça’ dos falantes de L quando eles comunicam verbalmente. Os falantes de L serão, em geral, ilustres desconhecedores da teoria e, em particular, podem até ser analfabetos. Aquilo que se está a afirmar é que a teoria dá conta, de modo adequado e informativo, do processo interpretativo que leva à construção, pelos falantes de L, dos significados das expressões desta linguagem. Sendo L a linguagem para cujas elocuções estamos a construir a teoria, a teoria será escrita na metalinguagem de L. Como disse já, não necessitamos de supor à partida que conhecemos os significados das expressões de L, mas é claro que temos que supor à partida que compreendemos a metalinguagem na qual escrevemos a teoria, ou os seus resultados permaneceriam para nós próprios incompreensíveis, o que é absurdo. Tendo por objecto dar conta do processo interpretativo que leva à construção dos significados das linguagens que usamos para comunicar, a nossa teoria é, claro está, uma teoria empírica. Não é uma teoria formal e dedutiva. Mas, é uma teoria. Não é um amontoado de observações e de opiniões. Sendo assim, ela terá uma estrutura lógica complexa. Em particular, ela terá teoremas e axiomas. Os teoremas constroem o significado das frases de L, um por cada frase. E os axiomas constroem o significado das expressões que ocorrem nas frases de L, um por cada expressão de L. Uma primeira massa de teoremas da teoria resulta directamente de conjecturas particulares feitas com base no primeiro género de regularidades descrito acima. Os axiomas serão construídos depois, para sistematizar a teoria. E a partir dos axiomas podemos deduzir novos teoremas. Mas todos, os primeiros teoremas, os axiomas e os teoremas deduzidos, devem ser testados empiricamente. Os axiomas são testados via teoremas. E os processos de construção e teste da teoria são processos iterativos e abertos; não são levados a cabo de uma só vez. Para ilustrarmos o carácter empírico dos primeiros teoremas [1997]: 43-96 e Sàágua [2002b]: 146-228. 219 José Diniz de Moraes da teoria, imaginemos, então, que um falante do português, um intérprete radical, como podemos chamar- lhe, foi catapultado para o interior de uma comunidade de falantes, cuja linguagem e cultura, ele desconhece totalmente. Chamemos simplesmente L* à linguagem que aí é falada. Num dado tempo, t, ele observa que y, um dos falantes dessa linguagem comunicou com outro, digamos, w, usando a seguinte cadeia de sons: “Cadí ta catasuna”91. Na perspectiva do intérprete português deste pequeno acontecimento de comunicação verbal entre y e w, aquilo que de mais relevante aconteceu nesse tempo t foi que uma chuvada torrencial se abateu sobre os três: y, w e o próprio intérprete. Conjecturando que este segundo acontecimento - a chuva - de algum modo causou o primeiro - a elocução - o nosso intérprete arrisca o seguinte teorema, que especifica as condições de verdade da frase “Cadí ta catasuna”. “Cadí ta catasuna” é verdadeira em L* quando pronunciada por um falante y num tempo t se, e só se, está a chover perto de y em t. A supor que o teorema (1) representa correctamente as condições de verdade da frase “Cadí ta catasuna”, construiremos a partir dele o significado desta frase como: “Está a chover”. Agora precisamos de testar o teorema (1). Na presença de outro acontecimento chuvoso, interrogamos um falante de L*: “Cadí ta catasuna? ”. E esperamos obter assentimento. E já agora repetimos a pergunta na ausência de chuva. Cada reacção de assentimento ou dissentimento do falante de L*, a esta pergunta, serve de instância de teste do teorema, nenhuma reacção o confirma completamente. Nos casos em que exista uma relação homofónica entre a linguagem para a qual estamos a construir os significados e a metalinguagem na qual estamos a levar a cabo essa construção, os teoremas da nossa teoria parecem roçar a trivialidade. Imaginemos que um certo falante, x, profere, num tempo, t, a seguinte elocução “O quarto está arrumado”. Na nossa metalinguagem construiremos imediatamente, por descitação, um teorema para esta sua elocução. Assim: “O quarto está arrumado” é verdadeira em português quando pronunciada por um falante, x, num tempo t se, e só se, o quarto ao qual x se refere estiver arrumado em t. 91 - Exemplo já por mim elaborado em Sàágua [2002a]. 220 Apostila de Semiótica Jurídica Mas a trivialidade aqui é apenas aparente, e isto por duas razões. Primeiro, porque não temos a certeza que x atribui a “arrumado” o mesmo significado que nós próprios lhe atribuímos. Esta, sim, é uma constatação trivial para quem tem ou teve filhos pequenos. Ela mostra-nos que a descitação não pode ser um princípio de construção da teoria, mesmo que, enquanto comunicantes, ela seja a melhor táctica que temos para interpretar em concreto e tão rapidamente quanto precisamos os outros comunicantes; isto, claro está, quando existe uma relação homofónica entre a sua linguagem e a nossa. Segundo, e não menos importante, porque queremos explicar como é que cada expressão que ocorre nas frases para as quais possamos vir a ter teoremas, contribui para determinar a verdade dessas frases. Imaginemos, então, que temos disponível um primeiro conjunto razoavelmente extenso de teoremas para uma dada linguagem, L. Estes teoremas foram obtidos, como (1), por observação e indução e passaram mesmo já uma primeira bateria de testes, de modo que estamos inclinados a aceitá- los como teoremas correctos. Que nos falta agora fazer? Organizar a informação sobre L disponibilizada nos teoremas. Como? De um modo tal que seja possível satisfazer conjuntamente duas condições. Primeira condição: é necessário que essa organização da informação dê conta das eventuais relações de consistência e de consequência existentes entre as frases de L para as quais temos teoremas. Quando fizermos isso estaremos certamente em condições de especificar como é que cada expressão de L concorre para determinar as condições de verdade das frases em que ocorre; questão que acima associámos ao teorema (2). E, segunda condição: é necessário que essa organização da informação dê conta do fenómeno de criatividade linguística em L: novas frases podem sempre vir a ser produzidas, nascendo assim novos significados em L. Esta é a fase de elaboração dos axiomas da teoria. E é para ela que a Lógica dá o seu contributo decisivo. Com efeito, a única maneira até hoje conhecida através da qual podemos satisfazer conjuntamente estas duas condições consiste na construção de uma teoria recursiva do significado para L, a qual consiste, por sua vez, numa versão modificada da definição recursiva de verdade de Tarski. É claro que não posso entrar aqui nos detalhes técnicos desta construção. Mas vale a pena, mesmo assim, dar uma ideia do que ela é. Consideremos um predicado qualquer, chamemos-lhe F. para o 221 José Diniz de Moraes qual queremos ter uma definição ou uma teoria. Esse predicado tanto pode ser “número natural”, como “frase de L”, como “significado em L”, como outro qualquer. Há predicados para os quais será talvez mais adequado ter uma definição, e. g., “frase em L”, e outros para os quais será mais adequado termos uma teoria, e. g., “significado em L”, mas não vou elaborar este ponto. Uma definição terá cláusulas, uma teoria axiomas. Agora, F pode ser objecto de uma definição recursiva ou de uma teoria recursiva, se ele puder ser caracterizado, nessa definição ou teoria, do seguinte modo: através de um conjunto finito de cláusulas de base, ou axiomas de base, especificamos o que é para certos itens serem F; através de um conjunto finito de cláusulas recursivas, ou axiomas recursivos, especificamos o que é para certos itens serem F, na condição de que outros itens o sejam já. Deste modo, as cláusulas recursivas ou os axiomas recursivos começam por se aplicar aos itens das cláusulas ou axiomas base especificando o que é para novos itens serem F, e aplicando-se reiteradamente aos resultados das suas próprias aplicações, especificam o que é para infinitos novos itens serem F. No caso das teorias recursivas cada aplicação de um axioma recursivo a um ou mais axiomas de base, gera um teorema da teoria. A construção de uma teoria recursiva do significado para L do tipo que se pretende, envolve os seguintes quatro passos: 1°) As frases de L que já foram objecto de teoremas, serão sujeitas a uma análise lógica através da qual a forma lógica de cada frase será determinada e, simultaneamente, as expressões identificadas como componentes dessas frases serão divididas em duas categorias sintácticas, léxico e partículas. Capitalizando sobre os resultados desta análise, define-se recursivamente frase de L. Se L for o português, expressões como, por exemplo, “é de esquerda” aparecerão no léxico; e expressões como, por exemplo, “e” aparecerão nas partículas. No que respeita à forma lógica das frases, e por razões de tempo, apenas direi que é sobre esta forma lógica que a teoria deve depois vir a ser capaz de explicar, nos seus segundo e terceiro passos, casos como o que a seguir se exemplifica. Por que razão semântica, digamos assim, se Manuel está com uma insuportável dor de cabeça e lê no letreiro de uma farmácia a frase “Benuron actua mais depressa do que a Aspirina”, é plausível supor que Manuel entre na farmácia e peça: “Benuron”; mas se, na mesma desagradável situação, Manuel lê no letreiro da farmácia a frase 222 Apostila de Semiótica Jurídica “Nada actua mais depressa do que a Aspirina”, não é plausível supor que Manuel entre na farmácia e peça: “Nada”92. 2°) As expressões classificadas como pertencendo ao léxico de L, receberão cada uma delas um axioma base, que especificará o modo como elas contribuem para determinar a verdade das frases em que ocorrem; Por exemplo, teríamos para o português um axioma do género: um indivíduo, x, satisfaz o predicado “é de esquerda” se, e só se, Y onde Y será substituído por uma expressão da metalinguagem que especifica do modo que se considerar mais informativo as condições que x deve satisfazer para ser de esquerda. A expressão “é de esquerda”, agora usada na metalinguagem, é, pelas razões tácticas a que já aludi alguns parágrafos acima, a primeira candidata a essa substituição. Caso surjam dúvidas sobre se o significado desta expressão na metalinguagem específica do modo como é usada pelos falantes do português que estamos a interpretar, especificam-se outras condições que x deve satisfazer para ser de esquerda; desejavelmente algumas dessas condições remetem para algo que seja observável93. Aquelas condições que não considerássemos como comuns a todos os falantes do português que estamos a interpretar, mas apenas a alguns deles, seriam registadas como variações do significado da expressão “é de esquerda”; ou, à escolha, como diferenças nas crenças que os falantes do português têm acerca do que é ser de esquerda94. 3°) As expressões classificadas como pertencendo às partículas de L, receberão cada uma delas um axioma recursivo, que especificará também o modo como elas contribuem para determinar a verdade das frases em que ocorrem; Por exemplo, teríamos para o português um axioma do género: uma frase que seja construída a partir de duas outras com o auxílio da expressão “e” é verdadeira se, e só se, essas outras duas o forem. Outras expressões, como “mas”, ou “todavia” receberiam um axioma idêntico, a despeito do seu carácter adversativo. - Sobre forma lógica, ver: Davidson [1980]: 105-48; LePore [2000]; Sàágua [2001]: 195-322 e [2002b]: 59-74 e 204-14; e Preyer e Peter (org. ) [2002]. 93 - Mais sobre isto em Sàágua, J. [2002]: 214-224. 94 - Por razões de espaço não me é possível desenvolver aqui a relação entre crença e significado. Ver, Davidson [1985]: 141-55 e Sàágua, J. [2002b]: 195-200, 214-24, 226-8. 92 223 José Diniz de Moraes Terminados estes três passos estamos já na posse de uma teoria recursiva do significado para L. O primeiro passo consistiu num trabalho lógico-sintáctico sobre L, que é preparatório do trabalho mais especificamente semântico realizado pelos dois passos seguintes. Este trabalho preparatório é crucial. Sem ele não teríamos conseguido ultrapassar nunca a consideração holofrástica das frases de L que é inerente ao modo como foram obtidos os teoremas que estamos a querer axiomatizar. Esta análise lógicosintáctica das frases projecta sobre elas um conjunto de conjecturas acerca do modo como estas estarão construídas, por exemplo, por predicação, por negação, por condicionalização, por quantificação, etc., etc. A supor que conseguimos aplicar essas conjecturas às frases, será sobre as expressões e construções de L que foram identificadas por via dessa aplicação, que poderemos implementar os segundo e terceiro passos de construção da teoria. Considerando agora especificamente o carácter recursivo da teoria, vemos que, partindo dos axiomas construídos no segundo e terceiro passos, poderemos gerar como teoremas da teoria não só aqueles que já tínhamos antes do trabalho de axiomatização, mas também novos teoremas para novas frases de L que eventualmente nunca ouvimos antes. Estes novos teoremas resultam da construção de novas frases de L em conformidade com o que estiver previsto na definição recursiva de frase em L, que é disponibilizada pelo primeiro passo95. A essas novas frases de L, geradas já pela teoria, podemos depois associar os axiomas base e recursivos correspondentes, disponibilizados pelo segundo e terceiro passos, para especificar as suas condições de verdade e, por essa via, construir o seu significado. Acresce ainda que, no decurso da nossa exposição prolongada a L, novas frases podem ser registadas nas quais reconheçamos novos itens linguísticos que não constam da teoria. Isto levar-nos-á a alargar a teoria, de modo a incluir nela axiomas para esses itens, sem mesmo assim alterar drasticamente a sua estrutura geral. Vemos assim que a teoria tem um carácter essencialmente aberto e inacabado, como convém a qualquer teoria empírica. Mas, como sabemos se a teoria que vamos construindo para L é a correcta? É para responder a esta questão que precisamos de um quarto passo, que testa a teoria. Ora, dados o carácter empírico da 95 - Cf. Davidson [1997]: 38m-48m. 224 Apostila de Semiótica Jurídica teoria e a nossa caracterização inicial da comunicação verbal, a único modo que temos de realizar o teste de correcção da teoria é: 4°) Usar a teoria para comunicar verbalmente com os falantes de L. Se, usando a teoria, conseguirmos alguma fluidez na conversação com os falantes de L e alguma facilidade nas negociações, a teoria serve; pelo menos até que um bloqueio de comunicação a venha pôr em causa. Esse eventual bloqueio obrigará a revisões mais ou menos drásticas na teoria. Estamos agora em condições de responder, por atacado, à questão de saber como se articulam no âmbito de uma teoria desta natureza os cinco aspectos do significado que descrevemos na secção anterior. O significado das elocuções dos comunicantes de L será especificado a partir dos teoremas da teoria, se essas elocuções forem frases, ou a partir dos axiomas, de base ou recursivos, se se tratarem de itens lexicais ou de partículas, respectivamente. Assim se deu conta do primeiro aspecto do significado. Duas frases de L terão o mesmo significado se, considerando a teoria, verificamos que elas têm aproximadamente as mesmas condições de verdade; duas expressões de L, itens lexicais ou partículas, terão o mesmo significado se, considerando a teoria, verificamos que elas contribuem aproximadamente do mesmo modo para as condições de verdade das frases. À luz da teoria, a noção de sinonímia em L, que era o segundo aspecto da noção de significado, tem, então, um tratamento gradativo. E está muito bem assim. A objectividade dos significados, terceiro aspecto da noção, é dada pela sua especificação nos axiomas e teoremas da teoria conjugada com o teste empírico da teoria (quarto passo da sua construção). Assim especificados, os significados não estão dependentes das representações mentais dos falantes. Como a teoria se testa comunicando, os significados adquirem por essa via a intersubjectividade e, portanto, o carácter social que lhes reivindicamos. O quarto aspecto do significado, a sua articulação com a referência, permite-nos remover do caminho uma má teoria da referência: a teoria atomista da referência96. Segundo esta teoria, 96 - Contra a teoria atomista da referência, ver: Davidson [1985]: 3-, 219-221. 225 José Diniz de Moraes primeiro explicam-se os aspectos semânticos (i. e., o significado e a referência) das expressões simples da linguagem: os nomes e os predicados simples. Em especial, explica-se o seu significado a partir do seu modo de referir. Depois, explicam-se os aspectos semânticos das expressões complexas construídas a partir dos primeiros: os termos singulares complexos e os termos gerais complexos. Por fim, numa espécie de salto no vazio, explicam-se os aspectos semânticos (significado e verdade) das frases construídas a partir das expressões simples e complexas. A teoria é atomista porque faz das expressões simples os átomos semânticos da linguagem. A esta concepção a nossa teoria contrapõe. O carácter referencial da linguagem está resumido na verdade das frases. Por isso mesmo, são estas, e não as expressões que as constituem, as unidades primárias do significado. O significado das expressões que entram na composição das frases só é pensável derivativamente, como o contributo que essas expressões dão para as condições de verdade dessas frases97. E é neste contexto que os significados de algumas dessas expressões serão construídos pela teoria como instruções mais ou menos vagas para determinar as referências dessas expressões (veja-se, por exemplo, o que disse acima sobre o axioma para a expressão “é de esquerda”). Mas, mesmo essas instruções são abstraídas da verdade (ou falsidade) que os comunicantes atribuem às elocuções das frases. Esta teoria é holista porque dá a primazia semântica às frases sobre as expressões que as compõem. Mais ainda: exceptuando-se algumas frases que tomadas holofrasticamente podem ser consideradas como reportes de observação, serão conjuntos mais ou menos inclusivos das frases, e não frases tomadas individualmente, que terão massa semântica, i. e., que constituirão uma unidade de significado. Contudo, isto não obsta a que seja cada uma das frases, tomadas individualmente, que possa ser considerada como verdadeira ou falsa. Por fim, quinto aspecto da noção, a criatividade dos significados é dada pela própria estrutura recursiva da teoria. - Os significados das expressões «são abstracções das condições de verdade das frases» que contêm essas expressões, como observou Quine (ver Quine, W. [1981]: 69). E Davidson é também enfático sobre este ponto: «as palavras individualmente consideradas não têm significados. Elas têm um papel na determinação das condições de verdade das frases» (Davidson, D. [2001]: 79). Ver, ainda, Davidson [1985]: 220. 97 226 Apostila de Semiótica Jurídica Termino com duas considerações que conectam Semântica e Pragmática. A presença de elementos performativos nas frases, que ocorre em muitas delas, é geralmente considerada como um obstáculo, por vezes intransponível, a que essas frases sejam sequer parcialmente explicadas por recurso à especificação das suas condições de verdade. Com efeito, quais são as condições de verdade da frase “Feche a porta, por favor. ”? Parece óbvio que a pergunta certa a fazer é, antes: quais são as suas condições de sucesso? Nada tenho contra uma resposta a esta segunda pergunta, resposta que virá certamente da Pragmática. Mas, mesmo nestes casos o recurso às condições de verdade é explicativo. Observe-se, em primeiro lugar, a inexistência de marcadores performativos canonicamente associados por convenção à representação de certas modalidades da força ilocutória98. Nem mesmo a flexão interrogativa, ou a sua transcrição sob a forma de um ponto de interrogação pode ser dita marcar por convenção as performativas interrogativas. Por exemplo, uma elocução da frase “Julgas que o Carlos é estúpido? ” tanto pode ser considerada como uma elocução de uma pergunta, como pode ser considerada como uma elocução de uma frase que nega que Carlos seja estúpido. Observe-se, em segundo lugar, que em qualquer frase performativa é possível detectar uma certa autonomia do significado, aquilo acerca de que a frase é, digamos assim. A estupidez de Carlos, no caso do exemplo que acabei de dar. Conjugando estes dois aspectos é possível analisar qualquer frase performativa de um modo que torna relevante a noção de condições de verdade dessa frase. Este género de análise das performativas que é complementar do trabalho da Pragmática, e não alternativo a este99, considera uma frase performativa como consistindo, de facto, numa síntese de duas frases: uma primeira que indica a força ilocutória da seguinte, uma segunda que descreve aquilo acerca do qual a frase performativa é. Por exemplo, a frase “Põe o teu chapéu”, se enunciada com força imperativa, seria analisada da seguinte forma: “A minha próxima frase tem força - Em Davidson, D. [1985]: 265-80, este autor argumentou, a meu ver de forma inteiramente convincente, neste sentido. 99 - Cf. Davidson, D. [1985]: 113-4, 127, 164-5, 274-5. 98 227 José Diniz de Moraes imperativa. Tu pões o teu chapéu”100. É óbvio que cada uma destas duas frases é declarativa e tem um valor de verdade. As condições de verdade destas duas frases e o conhecimento destas condições por parte do indivíduo que é o destinatário da frase imperativa são cruciais para a compreensão do que foi comunicado na elocução. Em particular, o conhecimento das condições de verdade dessas duas frases é um momento essencial das condições de sucesso da frase imperativa que foi analisada nessas duas. A minha segunda consideração retoma, da primeira secção, a noção de sentido e contrasta-a com a de significado. Chamemos “sentido de uma elocução de uma frase” ao resultado conjunto de todos os processos envolvidos na sua elocução numa situação concreta de comunicação verbal. Chamemos “significado de uma elocução de uma frase” à especificação das condições de verdade dessa elocução da frase. Determinar o sentido de uma elocução de uma frase implica que saibamos responder a três perguntas: “O que é o seu locutor disse? ”; “Porque é que ele escolheu aquelas expressões e não outras para dizer o que disse? ”; “Porque é que ele disse o que disse? ”. A construção do significado apenas responde à primeira destas perguntas, especificando o que é ele disse101. Sugiro ainda que a explicação do sentido completo de uma frase pressupõe a construção do seu significado; mas, em que acepção de “pressupõe”? Não na acepção de anterioridade cronológica. Parte-se sempre das situações concretas de comunicação verbal onde tudo acontece em simultâneo: algo foi dito, foi dito de uma certa forma e por uma certa razão. Nem na acepção de ser a mais importante. Se percebêssemos sempre o significado das frases enunciadas, mas nunca as razões da sua enunciação, não poderíamos de todo afirmar que explicámos a comunicação que usou essas frases. Pressupõe apenas na acepção em que não podemos responder às perguntas acerca das razões da escolha de tal ou tal modo de expressão, ou, mais importante ainda, das razões da enunciação, se não tivermos uma ideia do significado do que nos foi comunicado. As elocuções que proferimos quando comunicamos são, reitero- Cf. Davidson, D. [1985]: 120. - Que isso é insuficiente foi argumentado desde Platão, Fedro, 275b- d, até Dummett [1981]: 295-363, e reivindico que deve ser aceite pela teoria. Mas, ver ainda, Davidson [1986] e [1997]: 40m-52m; Putnam [1991] 11-15. 100 101 228 Apostila de Semiótica Jurídica o, uma acção intencional. Sem perceber o sentido dessa acção, não conseguirei compreender adequadamente o que me foi comunicado. A Pragmática, quando procura formular uma teoria geral das acções intencionais verbais, torna-se essencial para explicar essa compreensão. Mas, as elocuções que proferimos quando comunicamos são uma acção intencional com um conteúdo semântico. É a compreensão que, enquanto comunicantes, temos desse conteúdo que deve ser explicada pela Semântica, sob rubrica: “teoria geral do significado”. Isto articula, in limine, Pragmática e Semântica; e torna a segunda não a teoria da comunicação verbal que desejamos vir a ter, mas uma componente essencial dessa teoria. BIBLIOGRAFIA Aristóteles “On Interpretation” in Barnes, J. (org. ) [1984] The Complete Works of Aristotle, Princeton University Press, Princeton. AA. VV. [1974] Synthese, vol. 27, D. Reidel Pub. Co, Dordrecht Barrett, R. e Gibson, R. (org. ) [1990] Perspectives on Quine. Basil Blackwell, Oxford. Block, N. [1986] “Advertisement for a Semantics for Psychology” in Midwest Studies in Philosophy, vol. 10, [1986], University of Minnesota Press, Minneapolis. Carnap, R. [1942] Introduction to Semantics. Harvard Univ. Press, Cambridge, Mass. [1947] Meaning and Necessity. Chicago Univ. Press, Chicago. Church, A. 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Formalmente teremos: S é um signo de D para I na medida em que I se dá conta de D em virtude da presença de S. Assim, a semiose é o processo em que alguém se dá conta de uma coisa mediante uma terceira. Trata-se de um dar- se-conta-de mediato. Os mediadores são os veículos sígnicos, os dar-se-conta-de são os interpretantes, os agentes do processo são os intérpretes. Antes de mais convém salientar que esta análise é puramente formal, ela não tem minimamente em conta a natureza do veículo sígnico, do designatum ou do intérprete. Os factores da semiose são factores relacionais, de tal ordem que só subsistem enquanto se implicam uns aos outros. Só existe veículo sígnico se houver um designatum e um interpretante correspondentes; e o mesmo vale para estes dois últimos factores: a existência de um deles implica a existência dos outros. Isto tem o seguinte corolário, que é da maior importância: a semiótica não estuda quaisquer objectos específicos, mas todos os objectos desde que participem num processo de semiose. Estas considerações são sobretudo pertinentes relativa mente aos designata. Os designata não se confundem com os objectos do mundo real. Pode haver e há signos que se referem a um mesmo Charles Morris, 1959, Foundations of the Theory of Signs, Chicago: University of Chicago Press. 102 232 Apostila de Semiótica Jurídica objecto, mas que têm designata diferentes. Isso ocorre quando há interpretantes diferentes, ou seja, quando aquilo de que é dado conta no objecto difere para vários intérpretes. Os designata podem ser produtos da fantasia, objectos irreais ou até contraditórios. Os objectos reais quando referidos constituem apenas uma classe específica de designata, são os denotata. Todo o signo tem, portanto, um designatum, mas nem todo o signo tem um denotatum. A semiose é tridimensional: ela contempla sempre um veículo sígnico, um designatum e um intérprete (o interpretante dar-seconta de um intérprete, pelo que por vezes se pode omitir). Ora desta relação triádica da semiose podemos extrair diferentes tipos de relações diádicas, nomeadamente as relações dos signos aos objectos a que se referem e as relações entre os signos e os seus intérpretes. As primeiras relações cabem na dimensão semântica da semiose e as últimas na dimensão pragmática. A estas duas dimensões acrescenta-se necessariamente a dimensão sintáctica da semiose que contempla as relações dos signos entre si. Cada uma destas dimensões possui termos especiais para designar as respectivas relações. Assim, por exemplo, “implica” é um termo sintáctico, “designa” e “denota” termos semânticos e “expressa” um termo pragmático. É deste modo que a palavra ’mesa’ implica (mas não designa) a sua definição ’mobília com um tampo horizontal em que podem ser colocadas coisas’, denota os objectos a que se aplica e expressa o pensamento do seu utilizador. As dimensões de um signo não têm todas o mesmo realce. Há signos que se reduzem à função de implicação e, por conseguinte, a sua dimensão semântica é nula - vejam-se os signos matemáticos! -, há signos que se centram totalmente na denotação e, portanto, não têm uma dimensão sintáctica, e há signos que não têm intérpretes efectivos, como é o caso das línguas mortas, e, por conseguinte, não têm dimensão pragmática. Em suma, a divisão da semiótica em sintaxe, semântica e pragmática, decorre da análise do processo semiósico em que uma coisa se torna para alguém signo de uma outra coisa. Capítulo 4 - As propriedades sintácticas do signo Os signos formam-se e agrupam-se segundo regras. Isto é, os 233 José Diniz de Moraes signos organizam-se, não se amontoam. Este é o ponto de partida da sintáctica. 4.1 Signos simples e signos complexos Não é difícil apreender a distinção entre signos simples e signos complexos. A palavra “cavalo”, por exemplo, é um signo simples, enquanto “cavalo branco” é um signo complexo, formado a partir de “cavalo” e “branco”. Os signos simples podem unirse para formar diferentes signos complexos: “cavalo cinzento”, “gato branco”, etc. Os signos associam-se para formar outros signos dos quais se tornam elementos. No cinema, imagem, acção e som, associam-se para formarem um signo complexo que pode significar algo simples ou algo complexo. é importante notar que as propriedades sintácticas do signo apenas se referem ao significante ou veículo sígnico. Um signo simples do ponto de vista sintáctico pode ser um signo complexo do ponto de vista semântico. Vejam-se, por exemplo, os termos “talher” e “universidade”. O significado de talher envolve pelo menos mais do que um elemento do conjunto de garfo, faca e colher, e o significado de “universidade” envolve os significados de alunos e professores. Poder-se-ia imaginar um conjunto sígnico apenas composto por signos simples. Para os exemplos acima referidos “cavalo branco”, “cavalo cinzento”, “gato branco”, inventar-se-iam termos sintacticamente simples, à semelhança de “talher” e “universidade”. Contudo, a inexistência de signos complexos aumentaria tremendamente o conjunto das unidades sígnicas e torná-lo-ia tão rígido que seria impossível utilizá-lo. Desde logo o suposto dicionário de uma língua natural composta apenas por signos simples seria incomensurável. Deixaria de haver substantivos, adjectivos, advérbios, verbos, conjunções, frases, parágrafos, asserções, interrogações, etc. E, com isto, vemos que depressa a imaginação de um conjunto exclusivo de signos simples aplicado a uma língua natural nos levaria ao absurdo. Por outro lado, sem signos complexos seria impossível exprimir novos significados e designar novas situações. É que a novidade só é apreensível através de signos complexos, cujos elementos já são conhecidos. Uma notícia referente a um acontecimento da actualidade nunca poderia ser expressa sob a forma de um signo simples. 234 Apostila de Semiótica Jurídica O facto de os signos simples se poderem agrupar em signos complexos representa um dos fenômenos mais importantes a estudar pela semiótica, na medida em que, a partir de um número limitado de signos simples, é possível construir um número ilimitado de signos complexos e, assim, qualquer pessoa utilizar novos signos complexos que uma outra pessoa entende, dado conhecer os respectivos signos elementares. 4.2 Os elementos sígnicos ou as unidades mínimas. Para uma teoria dos elementos. Feita a distinção entre signos simples e signos complexos, necessário se torna estudar os signos simples, elaborar uma teoria dos elementos. A esta caberá estudar as unidades mínimas, a natureza dos signos, e a sua identidade. Desde logo a questão relativamente à distinção entre signos simples e signos complexos que se coloca é algo linear, embora o não seja a sua resposta. Perante um signo, como decidir se é um signo simples ou um signo complexo? Na análise (e domínio! ( de qualquer sistema sígnico esta é uma das questões mais relevantes. Distinguir os elementos do conjunto sígnico é fundamental para compreender as relações que entre eles existem e compreender a própria natureza do conjunto. A busca dos elementos não significa de modo algum um retorno ao substancialismo. Uma das preocupações maiores dos linguistas estruturalistas é justamente a de fixar as unidades mínimas da língua, verificar em que consistem, qual a sua natureza, e qual a sua identidade. A investigação de Saussure neste campo é exemplar. A questão da unidade do signo é diferente da questão sobre a sua identidade. Se à unidade se opõe a pluralidade, à identidade opõe-se a alteridade. A questão da unidade é atinente ao problema de demarcar os elementos básicos da língua. A questão da identidade interroga-se sobre a mesmidade do signo nas suas diferentes aplicações. Segundo Saussure, as entidades da língua são concretas. “Os signos de que a língua se compõe não são abstracções, mas objectos 235 José Diniz de Moraes reais.” 103 Mas em que consiste a natureza concreta do signo? Em primeiro lugar, na sua estrutura dupla de significante e significado. “A entidade linguística só existe pela associação do significante e do significado; quando só retemos um destes elementos, ela desaparece; em vez de um objecto concreto, temos diante de nós uma pura abstracção (...) Uma série de sons é linguística se é o suporte de uma ideia; tomada em si mesma só pode ser matéria para um estudo fisiológico”. 2 Isto é,os objectos da língua, as entidades linguísticas, apesar de psíquicos são algo bem concreto, definido, “palpável”. A determinado significante corresponde um conceito e vice-versa. A concreção reside justamente na associação concreta entre este significante e aquele significado, e não entre possíveis outros. Em segundo lugar, a concreção da língua reside na sua delimitação, isto é, é concreta porque tem contornos bem definidos. Ela é uma unidade. “A entidade linguística só fica completamente determinada quando está delimitada, livre de tudo o que a rodeia na cadeia fónica. São estas entidades delimitadas, ou unidades, que se opõem entre si no mecanismo da língua.” 3 Mas esta delimitação é feita justamente pela associação de significante e significado. Considerada em si mesma, a linha fónica é uma linha contínua em que o ouvido não distingue quaisquer unidades. Estas só surgem com a associação de determinadas porções de sonoridade dessas linhas a determinados conceitos. Para apurar as entidades concretas da língua há que saber, portanto, delimitá-las no todo da língua. Assim, chegamos à importantíssima noção de corte ou segmentação. O método de corte consiste em estabelecer duas cadeias paralelas, uma de significantes e outra de significados, e fazer corresponder a cada elo da primeira um elo da segunda. Este corte não é um dado da experiência, nem é um dado perceptível; o corte é comandado pela língua. Uma pessoa, por mais que ouça um discurso em chinês, se não souber chinês, não conseguirá distinguir, cortar ou delimitar, as respectivas unidades. A questão da identidade das entidades da língua diz respeito à Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Lisboa: Publicações D. Quixote, 1986, p. 176 103 236 Apostila de Semiótica Jurídica mesmidade do signo nas suas diferentes aplicações. O que se questiona, pois, é a identidade “em virtude da qual declaramos que duas frases como ‘não sei nada’ e ‘nada nos falta’ contêm o mesmo elemento.” 104 É que dois sons diferentes e até com significado algo diferente podem ser identificados sincronicamente. Saussure dá exemplos, onde, apesar de variação aos dois níveis, fónico e semântico, a identidade se mantém, isto é, afirmamos que se trata da mesma unidade linguística. “Quando, numa conferência, ouvimos repetir várias a palavra Senhores!, temos a certeza de que se trata sempre da mesma expressão e, todavia, as variações de elocução e a entoação apresentam-na, nas diversas passagens, com diferenças fónicas muito apreciáveis..., além disso, esta certeza da identidade persiste, se bem que no plano semântico não haja a identidade absoluta de um Senhores! a outro, quando uma palavra pode exprimir ideias bastante diferentes sem que a sua identidade fique seriamente comprometida (cf. “adoptar uma moda” e “adoptar uma criança”, “a flor da cerejeira” e “a flor da sociedade”.” 105 Esta observação leva-nos a perguntar: se a identidade da unidade linguística não reside na linha fónica, nem na linha semântica, então onde reside? No seu valor. Trata-se de uma identidade funcional. Deste tipo é a identidade de dois rápidos que partem às 8.30, com vinte e quatro horas de intervalo, ou a de uma rua que foi completamente reconstruída. Em contrapartida a identidade material é a identidade de um casaco que permanece o mesmo tanto nas diferentes combinações de vestuário como quando é vestido por pessoas diferentes. A questão do valor só é inteligível à luz das dois elementos da língua: sons e conceitos. Uns sem os outros não têm forma. Sem os sons, o pensamento é disforme, “amorfo”, “indistinto”. É uma “nebulosa em que nada é necessariamente delimitado”. Trata-se de um “reino flutuante”. 6 Por seu lado, “a substância fónica não é mais fixa nem mais rígida; não é um molde a que o pensamento se deva adaptar; mas uma matéria plástica que, por sua vez, se divide em partes distintas para fornecer os significantes de que o pensamento necessita."7 Olhados abstractamente em si, pensamento e matéria fónica são 104 105 Ibidem, p. 184. ibidem, p. 185. 237 José Diniz de Moraes amorfos, nebulosas, matérias plásticas, que se podem moldar posteriormente. Só na sua união ganham contornos definidos. A língua pode-se, assim representar “como uma série de subdivisões contíguas desenhadas ao mesmo tempo sobre o plano indefinido das ideias confusas e sobre o igualmente indeterminado plano dos sons.” 106 Posto isto, não se pode considerar a língua como um simples veículo do pensamento, algo exterior ao pensamento que nada tem a ver com ele. “O papel característico da língua nas suas relações com o pensamento não é criar um meio fónico material para a expressão das ideias mas servir de intermediário entre o pensamento e o som, de tal forma que a sua união conduz necessariamente a limitações recíprocas de unidades. O pensamento, caótico por natureza, é forçado a organizar-se, por decomposição. Não há nem materialização das ideias, nem espiritualização dos sons, mas tratase de algo misterioso: o ’pensamento-som’ implica divisões, e é a partir das duas massas amorfas que a língua elabora as suas unidades.” 107 A língua não é exterior ao pensamento ordenado. O pensamento ordena-se à medida que se exprime linguisticamente. É como se dois líquidos, sem determinada forma, se solidificassem ao contacto um com o outro e, assim, ganhassem formas bem de terminadas. A língua, diz ainda, Saussure é o domínio das articulações. Nós podemos dizer, é o domínio das solidificações mínimas. “Cada termo linguístico é um pequeno membro, um articulus em que uma ideia se fixa num som e em que um som se torna o signo de uma ideia.”108 Só que esta associação determinadora de pensamento e sons é de ordem funcional, isto é, as entidades concretas, as unidades por ela criadas, são formas, não substâncias: “A linguística move- se num terreno limítrofe em que se combinam os elementos dos dois níveis; esta combinação produz uma forma, não uma substância.”109 Que se deve entender por isto, de que as unidades criadas são formais, não substanciais? é que a solidificação em causa, a ibidem. ibidem. 108 ibidem, p. 192. 109 ibidem. 8 9 238 Apostila de Semiótica Jurídica determinação recíproca de pensamento e sons, não pode ser encarada como independente das outras solidificações. Estas são articulr. articulações. A determinação de uma unidade tem a ver com as determinações de todas as outras unidades da língua. A língua não pode ser vista como um aglomerado de elementos, mas tem de ser vista como um todo, como uma estrutura. “Além disso, a ideia de valor, assim determinada, mostra-nos que é uma grande ilusão considerar um termo apenas como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolálo do sistema de que faz parte; seria acreditar que podemos começar pelos termos e construir o sistema a partir da sua soma; pelo contrário, é do todo solidário que temos de partir para obtermos, por análise, os elementos que ele encerra.”110 É nisto que reside o estruturalismo de Saussure: não é possível entender nem compreender um signo, a sua unidade, sem entrar no jogo global da língua, isto é, sem saber o seu lugar e a sua função no todo linguístico. 4.3 Sistema e paradigmáticas. estrutura. Relações sintagmáticas e As identidades linguísticas residem no seu valor, mas este, como se viu, estabelece-se num sistema de relações e oposições. Ou seja, “a língua é um sistema completamente assente na oposição das suas unidades concretas.”111 Quer isto dizer que não nos interessam os signos em si, substancialmente, mas sim formalmente, funcionalmente. O que interessa à linguística são as relações entre os signos e que verdadeiramente constituem os signos enquanto signos. Quais são essas relações? Como é que funcionam? São estas as perguntas. Na língua Saussure distingue dois tipos de relações, que também podem ser considerados como os dois eixos da língua: as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas ou associativas. “As relações e as diferenças entre termos linguísticos desenrolam- se em duas esferas distintas, cada uma das quais gera uma certa 110 111 ibidem, p. 193. Ibidem, p. 182. 239 José Diniz de Moraes ordem de valores; a oposição entre estas duas ordens ajuda a compreender a natureza de cada uma. Correspondem a duas formas da nossa actividade mental, igual mente indispensável à vida da língua.”112 Para compreender um destes tipos de relação é preciso compreender o outro; é que também eles se definem por oposição, como tudo na língua. Um é de tipo horizontal e outro de tipo vertical. Primeiro, temos o plano sintagmático assente na linearidade do signo linguístico. Além de arbitrário e mutável/imutável, o signo linguístico caracteriza-se também por ser linear. Esta linearidade distingue o signo linguístico na medida em que, enquanto acústico, o distingue dos signos visuais, passíveis de ser apreendidos simultaneamente. Os signos linguísticos sucedemse uns aos outros numa mesma linha, encontram-se numa cadeia, estabelecem relações ao nível dessa linearidade: “No discurso, as palavras contraem entre si, em virtude do seu encadeamento, relações que assentam no carácter linear da língua, que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Eles dispõem-se, uns após outros, na cadeia fónica. Estas combinações que têm como suporte a extensão podem ser chamados sintagmas.”113 Um sintagma é, portanto, uma combinação entre dois ou mais signos de uma mesma cadeia linear. “O sintagma compõese sempre de duas ou mais unidades consecutivas (por exemplo: re-ler, contra todos, a vida humana, Deus é bom, amanhã saímos, etc.). Num sintagma, o valor de um termo surge da oposição entre ele e o que o precede, ou que se lhe segue, ou ambos.”114 Antes de aprofundar mais a definição de sintagma, convém desde já, diferenciá-la da de paradigma: “Por outro lado, fora do discurso, as palavras que têm qualquer coisa em comum associam- se na memória, e assim se formam grupos, no seio dos quais se exercem relações muito diversas. Por exemplo, a palavra ausente fará surgir diante do espírito uma série de outras palavras (ausência, ausentar, ou então presente, clemente, ou 112ibidem, p. 207. p. 207-208. 114 Ibidem, p. 207-208. 113 Ibidem, 240 Apostila de Semiótica Jurídica ainda distante, afastado, etc.), de uma forma ou doutra, todos têm qualquer coisa de comum entre si.”115 Este tipo de relações entre os signos é completamente diferente do sintagma. “O seu suporte não é a extensão; a sua sede está no cérebro, fazem parte do tesouro interior que a língua representa para cada indivíduo. Chamar-lhe-emos relações associativas.” 116 A diferença entre os dois tipos de relações é que um é feito in praesentia, o sintagmático, e o outro in absentia, o associativo ou paradigmático: “A relação sintagmática é in praesentia; refere-se a dois ou mais termos igualmente presentes numa série efectiva. Pelo contrário, a relação associativa une termos in absentia numa série mnemónica virtual.”117 Saussure dá o exemplo célebre da coluna dórica para ilustrar a diferença entre relações sintagmáticas e paradigmáticas: “Segundo este duplo ponto de vista, uma unidade linguística é comparável a uma determinada parte de um edifício, a uma coluna, por exemplo; esta encontra-se, por um lado, numa certa relação com a arquitrave que a suporta: este ajustamento de duas unidades igualmente presentes no espaço lembra a relação sintagmática; por outro lado, se essa coluna é de ordem dórica, ela evoca a comparação mental com as outras ordens (jónica, coríntia, etc.), que são elementos não presentes no espaço: a relação associativa.”20 No artigo “Sintagma e paradigma”, no Dicionário das Ciências da Linguagem, Oswald Ducrot formaliza a noção de sintagma e liga-a à de relação sintagmática: “Não há nenhum enunciado, numa língua, que não se apresente como a associação de várias unidades (sucessivas ou simultâneas), unidades que são susceptíveis de aparecer também noutros enunciados. No sentido lato da palavra sintagma, o enunciado E contém o sintagma uv se, e somente se, u e v forem duas unidades, não obrigatoriamente mínimas, que apareçam, uma e outra, em E. Diremos ainda que há uma relação sintagmática entre u e v (ou entre as classes de unidades X e Y) se pudermos formular uma regra geral que determina as condições de Ibidem, p. 208. Ibidem, p. 208. 117. Ibidem. 115 116 241 José Diniz de Moraes aparecimento, nos enunciados da língua, de sintagmas uv (ou de sintagmas constituídos por um elemento de X e um elemento de Y). Daí um segundo sentido, mais estrito, para a palavra “sintagma” (é o sentido mais utilizado, e o que será agora aqui utilizado): u e v formam um sintagma em E, não só se estão co-presentes em E, mas também se se conhece, ou se julga poder descobrir, uma relação sintagmática que condiciona essa co-presença. Saussure, especialmente, insistiu na dependência do sintagma com a relação sintagmática. Para ele, apenas se pode descrever o verbo “desfazer” como um sintagma compreendendo os dois elementos “des” e “fazer” porque existe em português um “tipo sintagmático” latente, manifestado também pelos verbos “des-colar”, “des-vendar”, “desbaptizar”, etc. Senão, não haveria nenhuma razão para analisar “desfazer” em duas unidades.”118 Os sintagmas não dizem respeito apenas à combinação de unidades mínimas, mas também à de unidades complexas de qualquer dimensão e de qualquer espécie. Por outro lado, há que ter em conta dois tipos de relação sintagmática: o das partes entre si, e o das partes com o todo: “Não basta considerar a relação que une as diversas partes de um sintagma entre si (por exemplo, contra e todos em contra todos, contra e mestre em contramestre); é preciso tomar em conta a que liga o todo às suas partes (por exemplo, contra todos opõe-se por um lado a contra, por outro a todos; contramestre relaciona-se com contra e com mestre)”119 Um exemplo fora da linguística podia ser tomado numa relação entre dois elementos, onde não só estes se relacionam entre si, mas também com o próprio todo da relação. A distância entre Lisboa e Porto é uma relação com dois elementos, mas é possível relacionar Lisboa ou o Porto com a própria distância. Atendendo aos sintagmas frásicos, Saussure interroga-se se o sintagma é da ordem da língua ou da fala. Sendo o sintagma uma combinação e pertencendo as combinações das unidades linguísticas à fala, parece não ser esta questão do foro da linguística (que estuda apenas a língua), mas da fala. “O sintagma pertencerá à fala? Julgamos que não. O que é próprio da fala é a liberdade das combinações; temos, por isso, que investigar se todos os sintagmas Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, Dicionário das Ciências da Linguagem, Lisboa: Dom Quixote, 1991, p.135 119Saussure, ibidem, p. 209. 118 242 Apostila de Semiótica Jurídica são igualmente livres.”120 Existem combinações solidificadas pela língua, que não são do âmbito da fala. Um estrangeiro que aprende a língua tem de as aprender na sua composição já determinada: "... um grande número de expressões pertencem à língua; são locuções estereotipadas que não podem ser alteradas, embora possamos distinguir, pela reflexão, as suas partes significativas (cf. pois é, vá lá!, etc.). O mesmo se passa, embora em menor grau, com expressões como perder a cabeça, dar a mão a alguém, pôr-se no olho da rua, ou ainda estar mal de..., à custa de..., por pouco não..., etc. cujo emprego habitual depende das particularidades da sua significação ou da sua sintaxe. Tais expressões não podem ser improvisadas, são-nos fornecidas pela tradição.”24 Obviamente a fronteira entre os sintagmas estereotipados da língua e as combinações livres da língua não é clara nem, por vezes, fácil de traçar. Quanto às relações associativas há a dizer desde logo que são múltiplos os seus tipos e de vasta extensão: “Os grupos formados por associação mental não se limitam a pôr lado a lado os termos que apresentam qualquer coisa de comum; a inteligência capta também a natureza das relações que os ligam em cada caso e cria tantas séries associativas quantas as diversas relações. Assim, em ausente, ausência, ausentar, etc., há um elemento comum a todos os termos, o radical; mas a palavra ausente pode encontrar-se implicada numa série com outro elemento, o sufixo (cf. ausente, presente, clemente, etc.); a associação pode assentar também na simples analogia dos significados (ausente, distante, afastado, etc.) ou, pelo contrário, na semelhança das imagens acústicas (por exemplo, tangente, justamente). Umas vezes há comunidade dupla de sentido e de forma, outras apenas de sentido ou de forma. Qualquer palavra pode sempre evocar tudo o que é susceptível de lhe ser associado duma maneira ou doutra.”25 As séries associativas podem ser de ordem fónica, sintáctica ou semântica. Basta haver um elemento comum, por analogia ou oposição, para que a associação tenha lugar. “Ao passo que um sintagma traz imediatamente à ideia uma ordem de sucessão e um número determinado de elementos, os termos de uma família associativa não se apresentam nem em número definido, nem numa ordem 120ibidem, p. 209. 243 José Diniz de Moraes determinada.”121 Existem, portanto, duas características da série associativa relativamente à sintagmática: i) ordem indeterminada; ii) número indefinido. No entanto, só a primeira, a ordem indeterminada, se verifica sempre. Há séries associativas em que os elementos são definidos, i. e., de número limitado, por exemplo, os casos de uma declinação em latim. 4.4 A combinação dos signos. Regras de formação e de transformação. A partir de signos simples constróem-se signos complexos. De Leibniz a Chomsky este tem sido um tema intensamente estudado por filósofos, lógicos, semióticos e linguistas. Leibniz concebeu uma ars characteristica, como a ciência a que incumbiria formar os signos de modo a obter, através da mera consideração dos signos, todas as consequências das ideias correspondentes, e uma ars combinatoria, como um cálculo geral para determinar as combinações possíveis dos signos. Noam Chomsky propôs uma teoria sintáctica de cariz generativo cuja tarefa seria traçar a forma geral de um cálculo gerador de todas as expressões.122 Assim, dever-se-á poder, a partir de um conjunto finito de elementos básicos e usando um conjunto finito de regras obter todas as expressões possíveis numa língua. A característica do modelo chomskiano reside no facto de a estrutura de uma expressão, enquanto cadeia de signos simples, poder ser descrita mediante a descrição da sua produção. As regras de formação determinam a construção de proposições e as regras de transformação determinam as proposições a inferir de outras proposições. As primeiras regras indicam-nos se uma proposição é ou não bem formada, as segundas estipulam as inferências entre proposições, isto é, determinam o cálculo proposicional. Os signos complexos podem ser estudados analítica ou sinteticamente. Do ponto de vista analítico tomam-se os signos complexos como ponto de partida e procede-se à análise dos seus 121 122 Ibidem, p. 212. Noam Chomski, Estruturas Sintácticas, Edições 70, Lisboa, 1980. 244 Apostila de Semiótica Jurídica elementos, e depois á análise destes, até aos elementos simples. Do ponto de vista sintético parte-se dos elementos simples e introduzem- se regras na síntese de signos cada vez mais complexos. O método de segmentação ou corte aplicado por Saussure à investigação das unidades mínimas e o método da comutação de Hjelmslev são do tipo analítico. As regras de formação são de tipo sintético. A abordagem analítica de signos complexos adequa-se sobretudo ao estudo de sistemas sígnicos naturais e a fenómenos culturais onde é difícil descortinar os elementos básicos, como sejam a dança, os gestos, a arquitectura e o cinema. A abordagem sintética faz-se sobretudo nos sistemas sígnicos artificiais, na lógica e na matemática, e nas línguas naturais. Contudo, mesmo que o procedimento inicial seja analítico, pode-se sempre reconstruir os signos complexos utilizando as mesmas regras do seu desmembramento. A elaboração da gramática de uma língua natural pode seguir e segue normalmente um processo analítico, mas a utilização dessa mesma gramática pode ser de ordem sintética, isto é, a gramática estipula ou permite que se construam ou não determinadas cadeias de signos. Exemplos de regras de formação são as regras de construção sintáctica nas línguas naturais, como as regras de concatenação de artigos, substantivos e adjectivos, regras de concordância em género e número, etc. As regras de transformação de signos complexos correspondem às conhecidas regras de inferência lógica, e constituem o cálculo proposicional. 4.5 A sintáctica, a gramática e a lógica A afinidade da sintáctica enquanto ramo da semiótica com as disciplinas da gramática e da lógica é muito grande. Desde logo porque a divisão da semiótica em sintáctica, semântica e pragmática, ao copiar a divisão medieval do trivium, gramática, dialéctica (lógica) e retórica, faz corresponder sintáctica a gramática. De certo modo, a sintáctica constitui um alargamento da gramática. Assim, é possível utilizar a termo gramática numa acepção lata que cobriria o significado de sintáctica. Ao falar-se da gramática da pintura, da música, do cinema ou do teatro, é por uma extensão do seu significado. 245 José Diniz de Moraes A afinidade entre sintáctica e lógica, entendida esta como doutrina das regras de inferência, é cada vez mais notória à medida que a lógica, enquanto logística, tem vindo a utilizar uma denotação própria e mais sofisticada. A diferença reside no facto de a sintáctica incidir sobre todas as relações dos signos entre si, ao passo que a lógica se circunscreve às relações de inferência. Seja a sintáctica o ramo da semiótica que estuda as relações dos signos entre si, a gramática a disciplina linguística que estuda a organização das línguas naturais, a lógica a disciplina filosófica que estuda as regras de inferência, o que as une fundamentalmente é a consideração formal que fazem das relações que estudam. Qualquer uma destas disciplinas abstrai do conteúdo semântico, lexical, material, dos objectos que estudam. A aproximação que aqui se faz às noções de gramática e de lógica tem o intuito de salientar a dimensão formal das relações sígnicas e da importância do estudo dessas relações formais para a semiótica. Os signos podem ser estudados, e profundamente estudados, independentemente do que significam. O que se estuda são as formas que os signos podem tomar e as relações entre essas formas. Capítulo 5 - As propriedades semânticas dos signos 5.1. O problema da significação. Sentido e referência Todos os signos significam, quer dizer, têm um significado. Por natureza e por definição não há signos sem significado, pois que o significado é precisamente aquilo pelo qual estão para alguém. Agora o que é o significado, esse é um dos problemas maiores de toda a semiótica e que constitui o campo da semântica. Sirva como introdução à problemática semântica a crítica que Saussure faz à concepção nomenvlaturista de língua, que mais não é do que uma concepção vulgar de significado. Contra a ideia de que as palavras são nomes das coisas e que, portanto, são as próprias coisas os significados das palavras, aquilo pelo qual estas estão, Saussure faz notar em primeiro lugar que essa concepção parte do pressuposto errado de que as ideias são anteriores às palavras. Se a assunção das palavras como nomes parece plausível à primeira vista, no tocante a objectos físicos, essa plausibilidade é depressa 246 Apostila de Semiótica Jurídica posta em causa quando se repara que a mesma palavra pode designar muitos objectos físicos e por vezes muito diferentes uns dos outros. As palavras “homem” ou mesmo “cadeira”, por exemplo, dificilmente terão como significado determinado objecto físico. E a dificuldade aumenta logo que se consideram palavras que não designam objectos físicos, como “liberdade”, “ir”, “então”, “embora”. Ninguém pode negar que estas palavras têm um significado, mas não se vê do que seriam elas nomes. As outras críticas de Saussure à teoria nomenclaturista são a que “não nos diz se o nome é de natureza vocal ou psíquica”, e ainda a que “deixa supor que o laço que une um nome a uma coisa é uma operação simples”.123 Numa obra marcante da semântica do Século XX, The Meaning of Meaning de 1923, Ogden e Richards apuram nada menos que dezasseis definições de significado, desde a definição de significado como propriedade intrínseca às palavras, passando pelas definições, entre outras, de significado como conotação, essência, consequências práticas, emoção, até às definições de significado como sendo o que é referido. Desde a obra de Ogden e Richards muita investigação foi feita no âmbito da semântica, por filósofos, linguistas, e até psicólogos. Contudo, uma distinção básica tem guiado a investigação semiótica contemporânea deste século, a distinção entre significado e referência, feita inicialmente por Frege.124 Frege chega à distinção entre significado e referência partindo da questão sobre a igualdade. É a igualdade uma relação de objectos ou uma relação de nomes ou signos de objectos? Frege defende que a igualdade é uma relação de signos. Ele argumenta do seguinte modo: as proposições “a = a” e “a = b” possuem valores cognitivos diferentes; enquanto a primeira é, em linguagem kantiana, um juízo analítico que nada de novo nos ensina, a segunda representa bastas vezes uma importante ampliação do conhecimento. A descoberta de que é o mesmo sol, e não um novo, que cada manhã nasce constitui um dos conheci mentos de maior alcance na astronomia. Ora se a igualdade fosse uma relação entre objectos - isto é, entre aquilo a que “a” e “b” se referem - então “a = a” e “a = b” não seriam proposições diferentes. E que nesse caso, apenas se afirmaria a Saussure. ibidem. p. 121. Gottlob Frege, Estúdios sobre Semântica, Editorial Ariel, Barcelona, 1973, pp. 49-84. 123 124 247 José Diniz de Moraes relação de igualdade de um objecto consigo mesmo. Mas isso não nos traria um novo conhecimento. Aqui há que introduzir um novo elemento. Para além da referência deve-se considerar o significado do nome ou do signo. O significado consiste na forma como o objecto é dado. A mais valia cognitiva da proposição “a = b” relativamente a “a = a” reside justamente em “a” e “b” se referirem de modo diferente ao mesmo objecto. Têm significados diferentes e uma mesma referência. “A estrela da manhã” não significa o mesmo que “a estrela da noite” mas ambas as expressões referem o mesmo objecto. Por estrela da manhã entende-se (significa-se) o último astro a desaparecer do céu com a aurora, ao passo que por estrela da noite entende-se o primeiro astro a aparecer no firmamento ao entardecer. Num e noutro caso designa-se o planeta Vénus. O significado de um nome ou signo é apreendido por quem conhece a língua ou o conjunto dos signos em que esse signo se enquadra. Normalmente um signo tem um significado e a esse significado corresponde uma referência. O mesmo significado e a correspondente referência têm em diferentes línguas diferentes expressões. Nem sempre a um significado corresponde uma referência. A expressão “o corpo mais afastado da Terra” tem certamente um significado, mas é questionável se ela refere algum objecto. Frege sublinha enfaticamente que o significado não é uma representação subjectiva. O significado é objectivo. A representação que uma pessoa faz de um objecto é a representação dessa pessoa e é diferente das representações que outras pessoas têm do mesmo objecto. A representação de uma árvore, por exemplo, varia de pessoa para pessoa, e isso torna-se bem patente quando lhes pedimos para desenhar uma árvore. Cada uma fará um desenho diferente. O significado de árvore, em contrapartida, é comum a todos aqueles que o apreendem. Mas a distinção entre significado e referência não se restringe aos nomes próprios, entendendo-se aqui por nomes próprios quaisquer designações como sejam “Aristóteles”, “o professor de Alexandre o Grande”, “4”, “2+2”. Segundo Frege, também as proposições têm um significado e uma referência. O significado de uma proposição é o pensamento ou a ideia que ela exprime. Admitindo que uma proposição tem uma referência, a substituição de um seu elemento por um outro com a mesma referência, não 248 Apostila de Semiótica Jurídica alterará a referência da proposição. No entanto, o sentido poderá ser muito diferente. As proposições “a estrela da manhã é um planeta iluminado pelo sol” e “a estrela da noite é um planeta iluminado pelo sol” exprimem ideias diferentes de tal modo que alguém pode aceitar uma e negar a outra. Em termos de referência nada, porém, se modificou. Se a ideia expressa pela proposição constitui o seu significado, então qual é a sua referência? A questão é importante na medida em que em muitas frases com significado o sujeito não tem referência. A frase “Ulisses aportou a Itaca enquanto estava a dormir” é certamente uma proposição com significado, embora não se possa garantir que Ulisses tenha uma referência. Aliás, tenha ou não tenha Ulisses uma referência, o significado da proposição não se altera. A questão é ainda mais evidente na frase “Um círculo quadrado é uma impossibilidade geométrica”. “Círculo quadrado” não designa manifestamente nada, mas a frase é cheia de significado. Tem aqui cabimento perguntar se uma proposição não terá apenas significado. Frege responde que se assim fosse, isto é, que se uma proposição tivesse apenas significado, então não faria sentido investigar a referência de um dos seus elementos, pois que bastaria o significado desse elemento. Ora o que efectivamente se passa, é que em regra preocupamo-nos com saber se um elemento da frase tem ou não referência. Sendo assim, então teremos de admitir que também as proposições têm referência. Ademais o valor do pensamento expresso na proposição depende da referência dos seus elementos. Esse valor é justamente o valor de verdade da proposição. Quando se trata de ficção mitológica ou literária o nosso interesse prende-se exclusivamente ao significado das proposições, é irrelevante se os nomes próprios integrantes nas proposições têm ou não referência. Porém, quando não se trata de ficção, então a questão referencial dos elementos da proposição é fundamental para aquilatar da verdade da proposição. E justamente no respectivo valor de verdade que Frege vê a referência de uma proposição. Valor de verdade de uma proposição significa tão somente o facto dessa proposição ser verdadeira ou falsa. Não havendo outros valores de verdade que a verdade e a falsidade, conclui-se que toda e qualquer proposição tem como referência ou o verdadeiro ou o falso. Todas as proposições verdadeiras têm a mesma referência, o verdadeiro, e todas as falsas o falso. O que ficou dito aplica-se às proposições principais, que podem 249 José Diniz de Moraes ser consideradas também como nomes próprios, como designações da verdade ou da falsidade. Quanto às proposições acessórias o caso é diferente. Considerem-se as proposições integrantes começadas por “que”. Nestes casos há que distinguir entre referência directa e indirecta. Quando alguém se quer referir ao significado das palavras e não aos objectos por estas designados, então essa referência é indirecta. Assim, quando uma pessoa cita em discurso directo as palavras de uma outra pessoa, as próprias palavras referem-se às palavras do outro e só estas últimas é que têm a referência habitual. A referência directa consiste, portanto, nos objectos designados, a indirecta no significado habitual das palavras ou dos signos. As frases integrantes têm uma referência indirecta, isto é, a sua referência coincide com o seu sentido habitual e não com o respectivo valor de verdade. E assim que o diferente valor de verdade das proposições acessórias não modifica o valor de verdade da proposição principal no exemplos seguintes: “Copérnico julgava que as órbitas dos planetas eram circulares” e “Copérnico julgava que a ilusão do movimento solar era provocada pelo movimento real da terra”. Ambas as proposições citadas são verdadeiras, embora no primeiro caso a referência directa da proposição acessória seja falsa. Só que não se trata aqui de avaliar se o juízo de Copérnico estava correcto ou errado, mas sim se efectivamente ele julgava isso. A questão não se prende, portanto com a referência, mas com o sentido da frase. Por isso mesmo, a primeira proposição é tão verdadeira como a segunda. A distinção fregeana entre significado e referência abre caminho à distinção hoje mais comum entre intensão e extensão e de extrema importância na semiótica actual. A intensão de uma expressão é o conjunto de atributos (qualidades e propriedades) das entidades a que a expressão se refere, e a extensão da expressão o conjunto de objectos ou características a que se refere.125 5.2 Concepções duais e concepções triádicas dos signos. Feita a distinção entre significado e referência, mais fácil se toma compreender a diferença entre as concepções duais e as Veja-se a entrada “Intension vs. Extension”, Enciclopedic Dictionary of Semiotics, pp. 354-384. É uma das entradas mais extensas deste Dicionário. 125 250 Apostila de Semiótica Jurídica concepções triádicas de signo. A concepção dual de signo abstrai da referência, considera-o uma questão ontológica e não semiótica, enquanto a concepção triádica de signo considera o referente uma parte integrante da relação sígnica. Saussure e Peirce são respectivamente os representantes máximos das concepções de signo referidas. Saussure considera o signo linguístico como uma entidade psíquica de duas faces, que pode ser representado pela figura: Conceito ------ Imagem acústica “Estes dois elementos estão intimamente unidos e postulamse um ao outro. Quer procuremos o sentido da palavra latina arbor; quer investiguemos qual a palavra com que o latim designa o conceito “árvore”, é evidente que só as aproximações consagradas pela língua nos aparecem conformes à realidade e, por isso, afastamos qualquer outra que se pudesse imaginar.”126 Em ordem a demarcar o signo enquanto totalidade desta entidade de duas faces e a impedir a sua identificação com a imagem acústica, Saussure procede a uma precisão terminológica: “Propomos manter a palavra signo para designar o total e substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de marcar a oposição que os separa entre si e que os distingue do total de que fazem parte.”127 A partir da acepção do signo linguístico como entidade de duas faces, Saussure procede à sua caracterização. Desde logo, Saussure apura a arbitrariedade do signo. A associação entre significante e significado é arbitrária. O vínculo que une as duas faces do signo é de natureza convencional, ele assenta num hábito colectivo. “Assim, a ideia de “pé” não está ligada por nenhuma relação à cadeia de sons [p] + [e] que lhe serve de significante; podia ser tão bem representada por qualquer outra: provam-no as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas diferentes”.128 “Podemos, portanto, dizer que os sinais puramente arbitrários realizam melhor do que os outros o ideal do processo semiológico; é por isso que a língua, o mais complexo e o mais difundido dos ibidem, p. 122. ibidem, p. 124 128 ibidem. 126 127 251 José Diniz de Moraes sistemas de expressão, é também o mais característico de todos; neste sentido, a linguística pode tomar-se o padrão geral de toda a semiologia, ainda que a língua seja apenas um sistema particular.”129 É pela arbitrariedade que o signo se distingue do símbolo: “O símbolo nunca é completamente arbitrário; ele não é vazio; há sempre um rudimento de ligação natural entre o significante e o significado.”130 Mas que quer dizer arbitrário? Quando dizemos que o signo é arbitrário isso “não deve dar a ideia de que o significante depende da livre escolha do sujeito falante; queremos dizer que ele é imotivado, isto é arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem, na realidade, qualquer ligação natural.”131 É justamente devido à arbitrariedade do signo linguístico que Saussure considera a língua como o mais característico de todos os sistemas semiológicos, podendo, por isso mesmo, a linguística tomar-se o padrão geral de toda a semiologia.132 Como segunda característica do signo linguístico Saussure aponta a linearidade do significante. “O significante, porque é de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo e ao tempo vai buscar as suas características: a) representa uma extensão, e b) essa extensão é mensurável numa só dimensão; é uma linha.”133 Esta linearidade caracteriza o signo linguístico na medida em que, enquanto acústico, o distingue dos signos visuais, passíveis de serem apreendidos simultaneamente. “Por oposição aos significantes visuais (sinais marítimos, etc.), que podem oferecer complicações simultâneas em várias dimensões, os significantes acústicos só dispõem da linha do tempo; os seus elementos apresentam- se uns após outros; formam uma cadeia. Esta característica aparece mais nítida quando os representamos na escrita: a linha espacial dos sinais gráficos substitui a sucessão no tempo.”134 Ibidem, p. 125. ibidem, p. 126. 131 ibidem. 132 Ibidem, p. 125. 133 ibidem, p. 128. 134 ibidem. 129 130 252 Apostila de Semiótica Jurídica A terceira característica do signo reside na sua mutabilidade e imutabilidade. Paradoxalmente, o signo linguístico é simultaneamente mutável e imutável. Parece ser uma contradição, mas a contradição desaparece atendendo às diferentes perspectivas em que o signo é mutável e imutável. O signo é imutável pela sim pies razão de que “relativamente à comunidade linguística que o emprega, o signo não é livre mas imposto. A massa social não é consultada, e o significante escolhido pela língua não poderia ser substituído por qualquer outro. (...) Não só um indivíduo seria incapaz, se o quisesse, de modificar no quer que fosse a escolha que foi feita, mas a própria comunidade não pode exercer a sua soberania sobre uma só palavra: ela está ligada à língua tal como é.”135 A língua aparece pois como um corpo imutável, independente não só do sujeito como da própria comunidade linguística. “Em qualquer época, e por muito que recuemos, a língua aparece como uma herança duma geração precedente. O acto pelo qual, num dado momento, os nomes foram distribuídos pelas coisas, e que estabeleceu o contrato entre os conceitos e as imagens acústicas esse acto, podemos imaginá-lo, mas nunca foi verificado. A ideia de que tudo se tivesse passado dessa forma é-nos sugerida pela nossa consciência muito viva da arbitrariedade do signo.”136 A língua aparece pois como um bem adquirido e acabado que aceitamos em bloco e não como algo informe. Saussure apresenta quatro razões para a imutabilidade dos signos linguísticos. Antes de mais o carácter arbitrário do signo. E que “para que uma coisa seja posta em questão é preciso que assente numa norma racional. Podemos, por exemplo, discutir se o casamento monogâmico é mais racional do que o poligâmico e apresentar argumentos a favor de um ou do outro. Podíamos também atacar um sistema de símbolos, porque o símbolo tem uma relação racional com a realidade significada; mas na língua, sistema de signos arbitrários, não temos esta base e sem ela não há fundamento sólido para discussão; não há nenhum motivo que leve a preferir irmã a soeur, ox a boi, etc.”137 Segundo, a enorme quantidade de signos necessários para 135ibidem, p. 129. p. 130. 137ibidem, p. 132. 136ibidem, 253 José Diniz de Moraes constituir qualquer língua torna o sistema tão pesado que é quase impossível substitui-lo por outro. Terceiro, a complexidade do sistema. A língua é um sistema tão complexo que mesmo a maior parte dos falantes desconhecem o mecanismo que lhe está subjacente. Por fim, há a resistência da inércia colectiva a todas as inovações linguísticas. Saussure considera mesmo que, de entre todas as instituições sociais, a língua é a mais resistente à mudança na medida em que é a mais utilizada pelo maior número de indivíduos de uma comunidade. “A língua é, de todas as instituições sociais, a que oferece menor margem às iniciativas. Ela incorpora a vida da comunidade, e esta, naturalmente inerte, aparece antes de mais como um factor de conservação.”16 Numa outra perspectiva, porém, o signo linguístico aparece como mutável. Como instituição social também a língua está sujeita à acção do tempo. “O tempo que assegura a continuidade da língua, tem um outro efeito, à primeira vista contraditório em relação ao primeiro: o de alterar mais ou menos rapidamente os signos linguísticos, e, num certo sentido, podemos falar ao mesmo tempo de imutabilidade e da mutabilidade do signo.”17 A mutação provocada pelo tempo sobre a língua consiste fundamentalmente num desvio na relação entre significante e significado. A concepção triádica do signo é bem ilustrada no célebre triângulo de Ogden e Richards, em que na base do triângulo se encontram o símbolo, no lado esquerdo, e o referente, no lado direito, e no topo o pensamento ou referência. Como na base do triângulo não há uma relação directa entre símbolo e referente, a relação entre estes dois é indirecta, mediada pelo pensamento ou referência que se encontra no topo. A terminologia de Ogden e Richards tem sido substituída por outras terminologias, de que são exemplo as de Peirce, representamen ou signo em vez de símbolo, interpretante em vez de pensamento, objecto em vez de referente, ou a de Morris, respectivamente veículo sígnico, interpretante e designatum. Contudo a Pensamento/ Referência 254 Apostila de Semiótica Jurídica Símbolo Referente Figura 5. 1: Triângulo de Ogden e Richards estrutura triádica do signo mantém-se a mesma. Utilizando a distinção de intensão e extensão de uma expressão, dir-se-á que o interpretante constitui a intensão de um signo e que a sua extensão reside na classe de objectos que o signo pode referir mediante o interpretante. À luz do triângulo semiótico pode representar-se a teoria dos signos de Saussure como contemplando apenas o lado esquerdo do triângulo. Significante corresponderia a símbolo e significado a pensamento ou referência. Ora tal como Saussure também Peirce considera que a relação entre signo e interpretante é convencional (ao contrário de Ogden e Richards, que consideravam haver relações causais nos dois lados do triângulo). A diferença reside efectivamente na dimensão extensional do signo que a semiótica de Saussure não contempla. 5.3 As noções de verdade e objectividade A importância das investigações de Frege sobre o significado e a referência para a semântica em particular, e para a semiótica em geral, reside em pela primeira vez se associar a questão da verdade à questão do significado. As teorias clássicas da verdade como correspondência partiam do significado como algo dado à partida. Não questionavam o significado da proposição cuja verdade cabia investigar, ou melhor, julgavam que era possível inquirir o significado de uma proposição independentemente de saber o que é que a tomava verdadeira ou falsa. Ora o mérito de Frege consiste justamente em ter mostrado que é impossível apreender o significado de uma frase sem reconhecer as condições da sua verdade. Só em conjunto é possível explicar as noções de verdade e significado, justamente enquanto elementos de uma mesma teoria. No modelo triádico de signo a relação entre interpretante e objecto é uma relação sujeita aos critérios de adequação. Ora a 255 José Diniz de Moraes verdade tem sido entendida desde Aristóteles como uma adequação entre o pensamento e a realidade. O signo pode ter um significado correcto e, no entanto, não ser verdadeiro. É que a correcção do signo (significante, representamen) situa-se no lado ascendente do triângulo, o lado esquerdo, ao passo que a sua adequação situa-se no seu lado descendente, o lado direito. As palavras dos contos de fadas têm um significado correcto, mas não há uma adequação aos objectos referidos. Charles Morris considera justamente que a questão central da semântica reside no estabelecimento da regra semântica a qual determina sob que condições um signo é aplicável a um objecto ou a uma situação. “Um signo denota o quer que se conforma às condições estabelecidas na regra semântica, enquanto a própria regra estabelece as condições de designação e, desse modo, determina o designatum.”18 Quer isto dizer que a dimensão semântica de um signo só existe na medida em que há regras semânticas que determinam a sua aplicabilidade a certas situações sob certas condições. A diferenciação e classificação dos signos em índices, ícones, símbolos e outros, explica-se pelas diferentes espécies de regras semânticas. Assim, a regra semântica de um signo indexical como o apontar estipula que o signo designa a qualquer momento aquilo que é apontado. Neste caso, o signo não caracteriza o que denota. Em contrapartida, ícones e símbolos caracterizam aquilo que designam. Se o signo caracterizar o objecto denotado por mostrar nele mesmo as propriedades que um objecto tem, como acontece com as fotografias, os mapas ou os diagramas químicos, então o signo é um ícone; se não for esse o caso, então trata-se de um símbolo. A regra semântica também se estende às proposições. Aqui a regra que estipula as condições de aplicabilidade da proposição a um determinado estado de coisas envolve necessariamente a referência às regras semânticas dos signos que a compõem. 5.4 Os múltiplos níveis de significação. Denotação e conotação. Hjelmslev fez a distinção entre uma semiótica denotativa e uma semiótica conotativa. A primeira não teria como objecto um sistema sígnico, as passo que a segunda teria como objecto no plano 256 Apostila de Semiótica Jurídica da expressão um sistema semiótico.138 A partir da distinção de Hjelmslev Roland Barthes desenvolve toda uma teoria da estratificação de sentidos. Existem sentidos primeiros, sentidos segundos assentes sobre os primeiros, sentidos terceiros assentes nos segundos, etc. O sentido aparece como um composto de camadas sucessivas de sentidos. No posfácio às Mitologias Barthes define o mito como um sistema semiológico segundo construído sobre uma série semiológica já existente antes dele. Esta série constitui o significante do signo que o mito é. A língua, enquanto sistema semiológico primeiro, é a matéria prima ou a linguagem objecto do mito enquanto sistema semiológico segundo. Barthes mostra, mediante o exemplo do jovem negro vestido com um uniforme francês fazendo a saudação militar à tricolor, como o sentido primeiro dessa imagem constitui o significante de um outro signo. O sentido primeiro é o de um jovem soldado de cor fazendo continência à bandeira francesa. Mas o sentido segundo que assenta no primeiro sentido é bem diferente. Essa imagem significa “que a França é um vasto Império, que todos os seus filhos, sem distinção de cor, servem fielmente sob a sua bandeira, e que não há melhor resposta aos detractores dum pretenso colonialismo do que o zelo deste negro em servir os seus pretensos opressores.”139 Aqui o que importa é saber como o sentido segundo se constrói sobre o sentido primeiro, isto é, descortinar como é que se dá a estratificação dos sentidos de um mesmo objecto. No caso apontado, o sentido segundo tem como significante aquilo que constitui o sentido formado pelo sistema semiológico prévio, a saber, “um soldado negro faz a saudação militar francesa”. Este sentido pode ser encarado de dois diferentes pontos de vista: como termo final da decifração da imagem ou como termo inicial de uma mensagem. Terminologicamente, Barthes chama-lhe sentido enquanto termo final e forma enquanto termo inicial. O mito enquanto sistema 138“... denotative semiotic, by which we mean a semiotic none of whose planes is a semiotic. It still remains, through a final broadening of our horizon, to indicate that there are also semiotics whose expression plane is a semiotic and a semiotics whose content plane is a semiotic. The former we shall call connotation semiotics, the latter metasemiotics.” Prolegomena to a Theory of Language, Madison: The University of Wisconsin Press, 1961, p.114. 139Mitologias, Lisboa: Edições 70, 1988, p. 187. 257 José Diniz de Moraes semiológico tridimensional (significante, significado, signo) vai buscar ao sentido do sistema linguístico a sua forma (o significante). O ponto de encontro dos dois sistemas é por natureza ambíguo. Se, visto do primeiro sistema, esse ponto é cheio (é o sentido), visto do segundo ele aparece como vazio (é a forma). No exemplo citado, esse ponto é “um soldado negro faz a saudação militar francesa”. Se alguém olha para a imagem do jovem negro vestido com um uniforme francês fazendo continência à tricolor o primeiro sentido que obtém é que se trata de um soldado negro a fazer a saudação à bandeira francesa. Porém, visto do segundo sistema, esse ponto comum é vazio. É aqui que surge a pergunta: “Muito bem, trata-se de um soldado negro a fazer a saudação à bandeira francesa, mas que é que isso significa?” E agora procura-se o sentido segundo da imagem. Esse sentido pode ser o da universalidade do império francês. O segundo sentido apoia-se sobre o primeiro, mas os dois não coexistem pacificamente. Focar um implica desfocar o outro.140 Contudo, a mudança de focagem é a todo o momento possível. Muitas vezes, sem se dar conta, a percepção de um sentido resvala para a do outro. É como se um torniquete entre um e outro se abrisse e se fechasse sucessivamente. Mas há uma diferença. E possível alguém quedar-se pelo sentido primeiro e nunca chegar ao sentido segundo, mas o sentido segundo pressupõe sempre o primeiro, nunca o dispensa completamente.141 Na focagem e desfocagem de sentidos correm-se sempre riscos. Se alguém se ficar pelos sentidos primeiros poderá ser acusado de curto de vistas e de ingénuo, mas se alguém procurar em toda a parte sentidos segundos correrá o risco de ver gigantes onde há “Ao tomar-se forma, o sentido afasta a sua contingência; esvazia-se, empobrece-se, a história evapora-se, nada mais resta do que a letra. Há uma permutação paradoxal das operações de leitura, uma regresssão anormal do sentido à forma, do signo linguístico ao significante mítico.” ibidem, p. 188. 141 “O sentido será para a forma como que uma reserva instantânea de história, como que uma riqueza submissa, que é possível convocar ou afastar numa espécie de alternância rápida: importa que sem cessar a forma possa voltar a enraizar-se no sentido e nele alimentar-se naturalmente: importa sobretudo que possa nele ocultar-se. é este interessante jogo de esconde-esconde entre o sentido e a forma que define o mito.” ibidem, p. 189. 140 258 Apostila de Semiótica Jurídica apenas moinhos de vento e de ficar cego para os sentidos originários. Em Elementos de Semiologia Barthes sistematiza mediante a noção de semiótica conotativa de Hjelmslev a teoria da estratificação dos sentidos. Os sistemas semiológicos conotados são aqueles cujo plano de expressão (significante) é constituído ele próprio por um sistema de significação.142 Os sistemas primeiros são os denotados. Toda a conotação pressupõe uma denotação que lhe serve de significante ou, como Barthes lhe chama, conotador. “As unidades do sistema conotado não são forçosamente do mesmo tamanho das do sistema denotado.”143 Como conotadores podem servir grandes fragmentos do discurso denotado. Assim, por exemplo, o tom de um texto pode remeter para um único significado ao nível da conotação. Segundo Barthes, há um ponto comum para o qual remetem todos os sistemas conotativos: a ideologia. Quer isto dizer que todos os significados das conotações desembocam na ideologia ou, mais exactamente, “a ideologia é a forma dos significados de conotação.”144 Em contrapartida, a retórica é a forma dos conotadores. A semiologia enquanto ciência das formas de significação tem um papel desideologizante da cultura. É que a ideologia encontra-se sempre num sentido segundo, mais ou menos escondida, e o semiólogo o que faz é expor os sistemas semiológicos pelos quais é produzida e em que existe. Por isso mesmo, todo o semiólogo é de certo modo um mitólogo, aquele que decifra os mitos constituintes da civilização. Barthes apresenta a semiótica da conotação como a semiótica do futuro e a razão que dá para isso reside no facto de “a sociedade desenvolver constantemente, a partir do sistema primeiro que lhe é fornecido pela linguagem humana, sistemas segundos de sentido, e esta elaboração, umas vezes exibida, outras disfarçada, racionalizada, é quase como uma verdadeira antropologia Elementos de Semiologia, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 75. p. 77. 144 ibidem. 142 143ibidem, 259 José Diniz de Moraes histórica.”145 Aliás, grande parte do labor intelectual de Barthes consiste em decifrar as múltiplas estruturas de significação que como nervos vitais percorrem toda a tessitura da cultura humana. 5.5 Os códigos Introduzido por Saussure como sinónimo de língua, o termo “código” ganhou um sentido mais lato como um repertório de signos e constitui um dos termos centrais da semiótica.146 A definição extensional de código como conjunto ou classe, no sentido em que se fala de um código de leis, penal ou de estrada, há a acrescentar uma definição intensional de código.147 Do ponto de vista intensional um código consiste em dois conjuntos correlacionados um com o outro numa relação de correspondência dos seus elementos. No domínio da comunicação há o universo dos significantes e o universo dos significados. A natureza intensional do código está em fazer corresponder a cada elemento de um conjunto um elemento do outro conjunto. O código assume, assim, várias funções, consoante a sua intensão ou extensão. Por um lado, constitui um repertório e possibilita uma enumeração de um conjunto de signos, associados por um atributo comum. Por outro lado, fornece o princípio de formação do próprio repertório, tanto em modo de codificação como de descodificação. O dicionário de uma língua natural é extensionalmente um código lexical, na medida em que abarca as unidades da língua, e é intensionalmente um código semântico, na medida em que fornece os significados dos termos, fazendo corresponder a cada termo uma explicação semântica do mesmo. Se Saussure empregou o termo código para designar o sistema da língua é porque nesta existem os planos dos significantes e dos significados numa correspondência de um a um, em que a cada significante corresponde um significado e vice-versa. Dominar o ibidem, p. 76. Veja-se Umberto Eco, A Theory of Semiotics, 1076, em que a semiótica é apresentada como uma teoria de códigos. 147 Sobre as definições intensional e extensional de código confira-se a entrada “Code” no Enciclopedic Dictionary of Semiotics, pp. 123-132. 145 146 260 Apostila de Semiótica Jurídica código da língua é saber qual o significado que corresponde a determinado significante. As noções de “cifrar”, “codificação”, “descodificação”, “chaves do código” aplica das aos signos derivam justamente da natureza intensional dos códigos. Uma dimensão importante dos códigos nos sistemas sígnicos é a economia que representam no uso dos signos.148 Um exemplo simples tornará clara esta dimensão. Para sinalizar os quartos de um hotel é comum hoje usar números de três algarismos em que o primeiro algarismo designa o andar e os dois últimos o número do quarto. E uma maneira mais económica, embora menos simples, do que a de atribuir a cada quarto um número de uma única série. A economia neste caso é conseguida mediante uma hierarquização de dois códigos, o código dos andares e o código dos quartos de cada andar. Um outro tipo de economia nos signos reside em adaptar o código às circunstâncias específicas em que se faz a descodificação e, desse modo, reduzir o número de unidades codificadas. Quando um camionista faz numa estrada, em determinadas circunstâncias, o sinal de pisca à esquerda, significa com isso, não o significado legal e habitual de que vai virar à esquerda ou que quer ultrapassar, mas simplesmente de que o carro que vai atrás dele não o deve ultrapassar naquele momento. As circunstâncias, a proibição de cortar à esquerda, o andamento lento do camião que não dá para ultrapassar, reduzem o leque de unidades significativas a descodificar naquele momento. Neste último caso encontramo-nos já no domínio das propriedades pragmáticas do signo. Capítulo 6 - As propriedades pragmáticas do signo 6.1. A natureza pragmática do interpretante signo. A noção de Foi o pragmatismo, a corrente filosófica iniciada por Peirce, que prestou especial atenção à relação entre os signos e os seus utilizadores. O pragmatismo compreendeu que para além das Sobre o tema veja-se a obra de Luis Prieto, Mensagens e Sinais. São Paulo: Cultrix, 1973. , cuja segunda parte se intitula “Economia” (pp. 75151) 148 261 José Diniz de Moraes dimensões sintáctica e semântica na análise do processo sígnico há uma dimensão contextuai. Isto é, o signo não é independente da sua utilização. A novidade da abordagem pragmatista da semiose está em não remeter a utilização dos signos para uma esfera exclusivamente empírica, sociopsicológica, mas encarar essa utilização de um ponto de vista lógico-analítico. A dimensão pragmática é, tal como as dimensões sintáctica e semântica da semiose, uma dimensão lógico-semiótica. De certo modo a pragmática surge como um desenvolvimento imanente do processo semiótico. Com isto quer-se dizer que tal como a análise das formas sígnicas (sintáctica) leva necessariamente à consideração dos valores semânticos como critério para definir as unidades sintácticas, assim também a análise do significado induz à consideração das condições e situações da sua utilização. Bobes Naves traça muito bem o desenvolvimento da análise semiótica conducente à pragmática: “Ao estudar as formas e as relações dos signos, (...) somos levados necessariamente a ter em conta os valores semânticos como critério para definir as unidades, mesmo no plano estritamente formal. E ao analisar o significado, e sobretudo o sentido, dessas unidades e dos processos sémicos em geral, surgem problemas acerca dos diferentes modos de significar e sobre a forma em que os usos adoptam as relações de tipo referencial, ou as de iconicidade, ou os valores simbólicos, etc.; toma-se necessário determinar os marcos lógicos, ideológicos ou culturais em que se dão os processos semiósicos; as situações em que colhem sentido os diferentes signos; os indícios textuais que orientam os sujeitos que intervêm no processo de comunicação (deícticos, apreciações subjectivas, usos éticos e étimos do signos codificados, etc.), de modo que qualquer estudo semântico ou sintáctico conduz inexoravelmente à investigação pragmática. Tanto as unidades sintácticas como o sentido do texto estão vinculados à situação de uso, às circunstâncias em que se produz o processo de expressão, de comunicação, de interpretação dos signos objectivados num tempo, num espaço e numa cultura. Por outro lado, a relação dos sujeitos que usam os signos num processo semiósico em que partilham o enquadramento situacional e todas as circunstâncias pragmáticas, pode estabelecer-se num tom irónico, sarcástico, metafórico, simbólico, etc., que condiciona o valor das referências próprias dos signos. As relações dos sujeitos com o próprio texto constituem uma clara fonte de sentido. Os signos, 262 Apostila de Semiótica Jurídica incluindo os codificados, mas sempre circunstanciais, adquirem um valor semiótico concreto em cada uso, um sentido (...) para além do que possam precisar nos limites convencionais do mesmo texto. O desenvolvimento interno da investigação semiológica conduz, por conseguinte, de um modo progressivo, da sintaxe à semântica e desta à pragmática enquanto consideração totalizadora de todos os aspectos do uso do signo nos processos semiósicos.”149 Assim como as regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos e as regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos, assim as regras pragmáticas estabelecem as condições em que algo se toma um signo para os intérpretes. Isto é, o estabelecimento das condições em que os termos são utilizados, na medida em que não podem ser formuladas em termos de regras sintácticas e semânticas, constituem as regras pragmáticas para os termos em questão.150 Efectivamente, o emprego, por exemplo, da interjeição ’0h!’, da ordem ’Vem cá’, do termo valorativo ’Felizmente\ é regido por regras pragmáticas. O estabelecimento da regra pragmática permite traçar a fronteira entre o uso e o abuso dos signos. Qualquer signo produzido e usado por um intérprete pode também servir para obter informações sobre esse intérprete. Tanto a psicanálise, como o pragmatismo ou a sociologia do conhecimento interessam-se pelos signos devido ao valor de diagnose individual e social que a produção e a utilização dos signos permite. O psicanalista interessase pelos sonhos devido à luz que estes lançam sobre a alma do sonhador. Ele não se preocupa com a questão semântica dos sonhos, a sua possível verdade ou correspondência com a realidade. Aqui o signo exprime - mas não denota! - o seu próprio interpretante. Graças ao carácter diagnóstico da utilização dos signos, é possível e é “perfeitamente legítimo para certos fins utilizar signos simplesmente em ordem a produzir certos processos de interpretação, independentemente de haver ou não objectos denotados pelos signos ou mesmo de as combinações de signos serem ou não formalmente possíveis relativamente às regras de 110 Maria del Carmen Bobes Naves, La Semiologia, Madrid: Síntesis, p. 97. Charles Morris, ibidem, p. 25. 150Cf. 263 José Diniz de Moraes formação e transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são normalmente utilizados.”151 Os signos podem ser usados para condicionar comportamentos e acções tanto próprios como alheios. Ordens, petições, exortações, etc., constituem casos em que os signos são usados sobretudo numa função pragmática. “Para fins estéticos e práticos o uso efectivo dos signos pode requerer vastas alterações ao uso mais efectivo dos mesmos veículos sígnicos para fins científicos. (...) o uso do veículo sígnico varia com o fim a que se presta”.152 O abuso dos signos verifica-se quando são usados de modo a darem uma aparência que efectivamente não têm. O abuso toma usualmente a forma de mascaramento dos verdadeiros objectivos visados com a utilização dos signos. Um exemplo de abuso dos signos é o caso em que para obter certo objectivo se dão aos signos usados as características de proposições com dimensão sintáctica e semântica, de modo a parecerem ter sido demonstrados racionalmente ou verificados empiricamente, quando efectivamente o não foram. Morris considera que se trata de um abuso da doutrina pragmatista identificar verdade com utilidade. “Uma justificação peculiarmente intelectualista de desonestidade no uso dos signos consiste em negar que a verdade tenha outro componente para além do pragmático, de jeito que qualquer signo que se preste aos interesses do utilizador é considerado verdadeiro.”153 Trata-se de um abuso pois que a verdade é um termo semiótico e não pode ser encarado na perspectiva de uma única dimensão. “Aqueles que gostariam de acreditar que Verdade’ é um termo estrita mente pragmático remetem frequentemente para os pragmatistas em apoio da sua opinião, e naturalmente não reparam (ou não percebem) que o pragmatismo enquanto uma continuação do empirismo uma generalização do método científico para fins filosóficos e que não poderia afirmar que os factores no uso comum do termo Verdade’, para os quais se tem vindo a chamar a atenção, aniquilariam factores reconhecidos anteriormente.”154 ibidem, p. 27. p. 28. 153 ibidem. 6 ibidem. 151 152ibidem, 264 Apostila de Semiótica Jurídica 6.2 Sistema e performance. uso. Língua e fala. Competência e Os signos são elementos de um sistema e os signos têm um uso. Esta é uma distinção capital para a semiótica e fundamental para uma compreensão correcta da pragmática. O sistema de que o signo faz parte está aquém do uso que se faz dos signos. O sistema, como bem viu Hjelmslev,155 é uma realidade puramente formal, o conjunto das relações abstractas existindo entre os seus elementos. Do ponto de vista sistemático não há diferenças entre uma língua viva e uma língua morta. É do sistema que decorre a natureza vinculativa e a uniformidade do signo. O uso, por seu lado, constitui a particularidade e a irrepetibilidade do signo na sua realização concreta. O primeiro grande toar de force de Saussure foi justamente o de fixar o sistema da língua como sistema semiótico, de, a partir da tremenda multiplicidade de elementos diversos, ter abstraído (extraído) a estrutura formal da língua. Saussure começa por, analisando o famoso esquema comunicacional entre um emissor e um receptor, distinguir entre elementos físicos, fisiológicos e psíquicos e por centrar o seu estudo exclusiva mente nestes últimos. Num segundo passo, separa o que ele chama o facto social da língua, o facto de que “todos os indivíduos reproduzirão - não exacta, mas aproximadamente - os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos”156 dos actos individuais da fala. Saussure demarca a língua tanto da linguagem, como da fala. Face à linguagem a língua caracteriza-se por ser uma parte determinada, essencial, da linguagem. Enquanto a linguagem é multiforme e heteróclita, estendendo-se sobre vários domínios, físicos, fisiológicos e psíquicos, individuais e sociais, sem uma unidade própria, a língua enquanto sistema de sinais para exprimir ideias é uma instituição social entre outras instituições sociais. A Louis Hjelmslev, Prolegomena to a Theory of Language, The University of Wisconsin Press, Madison, 1961, p.28. 8 Ferdinand de Saussure, Curso de Linguística Geral, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1986, p. 40. 7 265 José Diniz de Moraes língua é um todo em si e compete-lhe a ela servir de princípio de classificação à linguagem. Relativamente à fala que é individual e acidental, a língua distingue-se por ser social e essencial. “A língua não é uma função do sujeito falante, é o produto que o indivíduo regista passivamente; ela nunca supõe premeditação. Ela é um objecto bem definido no conjunto heteróclito dos factos da linguagem. Podemos localizá-la no momento deter minado do circuito em que uma imagem auditiva se vem associar a um conceito, é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila.”157 Relativamente à caracterização saussureana da língua escreve Roland Barthes a paráfrase: “Como instituição social, ela não é um acto, escapa a qualquer premeditação; é a parte social da linguagem; o indivíduo, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; é essencialmente um contracto colectivo, ao qual nos temos de submeter em bloco, se quisermos comunicar; além disso este produto social é autónomo, maneira de um jogo que tem as suas regras, pois só o podemos manejar depois de uma aprendizagem.”158 A distinção saussureana entre língua e fala corresponde a distinção entre competência e performance na linguística de Noam Chomski. A competência significa o domínio que um falante de uma língua tem sobre ela como sistema, podendo com isso entender frases que nunca ouviu, construir frases nunca antes construídas. A performance está na realização pontual dessa competência linguística. O que a pragmática vem acrescentar à semiótica é a descrição das regras de uso dos signos. Sintaxe e semântica estudam exclusivamente o sistema, a pragmática estuda o uso dos elementos do sistema. A esta cabe definir as regras do uso dos signos, que são diferentes das regras do sistema. Segundo as regras do sistema é possível formar uma cadeia de signos gramaticalmente correcta que, ibidem, p. 41. Roland Barthes, Elementos de Semiologia, Lisboa: Edições 70, 1989, p. 11. 157 158 266 Apostila de Semiótica Jurídica no entanto, se revela de uso impossível. Em termos linguísticos, a dimensão pragmática é exposta principalmente na questão de enunciação. Tarefa da pragmática é estudar as condições de enunciação. Não basta que uma frase esteja correcta do ponto de vista gramatical, é preciso também que ela se adeque ao contexto para que possa ter o sentido pretendido e possa ser entendida nesse sentido. 6.3 Contextos. Todo o signo é usado dentro de um contexto e há diversos tipos de contexto.159 Contexto pode ser desde logo o con-texto das unidades mais vastas que as proposições estudadas pela sintáctica. A linguística desenvolveu técnicas de análise do discurso capazes de tratar largas unidades de texto, conversação e argumentação. O signo é determinado não só pelas relações próximas, de tipo sintagmático, mas também por relações longínquas de narração e argumentação. Sem atenção a estas vastas unidades con-textuais do signo, este não poderia muitas vezes ser descodificado tanto no seu significado (denotação), como sobretudo no seu sentido (conotação). Em segundo lugar há um contexto existencial em que o signo é determinado pela relação com o seu referente. Pode-se falar de um contexto referencial, do mundo dos objectos e das ocorrências, em que referentes, mas também emissores e receptores, pela sua posição existencial condicionam e determinam o signo. As expressões indexicais ou deícticas como “eu”, “tu”, “este”, “hoje” constituem casos bem visíveis de uma contextualização existencial. Os contextos situacionais são contextos consistindo de uma vasta classe de determinantes de ordem social. Esses determinantes podem ser instituições, como hospitais, recintos desportivos, palácios de justiça, restaurantes, etc. Dentro de cada um destes ambientes há regras próprias de comunicação a que os signos empregues se submetem tanto na sua relação com outros signos, como no seu significado. Por outro lado, as posições sociais que os intervenientes da comunicação assumem, posições hierárquicas, Sobre a noção de contexto em pragmática ver “Pragmatics” no Enciclopedic Dictionary of Semiotics, pp. 651-761. 159 267 José Diniz de Moraes etc., também determinam os signos utilizados. Em quarto lugar, os próprios actos de uso dos signos são contextos que podem ser designados por contextos de acção. A teoria dos actos de fala proposta por Austin considera os signos linguísticos como acções de determinada força com aplicações diversas. O que o signo é ou não é depende da acção que ele cumpre e, segundo ponto a ter em consideração, da intenção com que é realizado. Os actos de fala são acções intencionais. Da intencionalidade dos contextos de acção surge um quinto contexto que se pode designar de psicológico, na medida em que categorias mentais e psicológicas entram na teoria pragmática da linguagem. É que acções e interacções são atribuídas a intenções, crenças e desejos. 6.4 O signo como acção. Com as palavras não se dizem apenas coisas, também se fazem coisas. Fazem-se promessas, afirmações, avisos. É nisso que reside a força ilocucional da língua, na terminologia de Austin. “Faço coisas ao dizer algo ( . . . ) O acto locucional tem um sentido, o acto ilocucional tem uma certa força no dizer-se algo.”160 Que é a força ilocucional, isto é, a capacidade de fazer coisas com a língua? Para se dar uma resposta, há que fazer a distinção austiniana entre constatativos e performativos. Constatativos são todas aquelas afirmações que verificam, apuram, constatam algo: “A mesa é verde”, “sinto-me cansado”, “O João é mais alto que o Pedro”, “Deus está nos céus”. São afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas. Por sua vez, os performativos não descrevem, não relatam, não constatam nada, não são verdadeiros nem falsos, eles fazem algo ou então são parte de uma acção. O noivo que diz: “Eu, fulano tal, aceito-te, fulana tal, como minha legítima esposa” na cerimónia do casamento, não narra coisa alguma, ele está pura e simplesmente a fazer uma coisa: a casar-se com a fulana tal. E não se casa, se não disser (fizer) isso. O acto de fala, o fazer falando, tem assim uma determinada força: a força ilocucional. Mas uma acto de fala, enquanto acção, J. L. Austin, How to make things with words, Oxford University Press, Oxford, 1975, p. 121 160 268 Apostila de Semiótica Jurídica pode resultar ou não resultar. Um acto de fala resulta quando entre o elocutor e o ouvinte se estabelece uma relação, justamente a visada pelo elocutor, e o ouvinte entende e aceita o que o elocutor lhe diz. Para que os performativos tenham lugar há que satisfazer certas condições. Austin enumera justamente seis regras que têm de ser seguidas por quem pretenda realizar actos de fala. Em primeiro lugar, tem de haver um procedimento convencional, geralmente aceite, com um certo efeito convencional, em que esse procedimento inclui o uso de certas palavras por determinadas pessoas em determinadas circunstâncias. Segundo, as pessoas e as circunstâncias específicas num dado caso têm de ser apropriadas para invocar o procedimento específico apropriado. Terceiro, todos os intervenientes têm de cumprir o procedimento correctamente. Quarto, têm de o cumprir completamente. Quinto, nos procedimentos para cujo cumprimento as pessoas têm de ter determinados pensamentos ou sentimentos, então as pessoas envolvidas têm de ter efectivamente esses pensamentos ou sentimentos e agir de acordo com eles. Sexto, os intervenientes têm de agir também posteriormente de acordo com eles.161 Se uma das condições não for satisfeita, então o acto de fala não se realiza. Austin chama ao insucesso dos actos de fala infelicidades. As infelicidades, porém, não são todas idênticas. Quando resultam do incumprimento às primeiras quatro condições ou regras, chamam-se falhas, quando são infracções às duas últimas regras são designadas por abusos. Exemplos de infracções a estas regras ajudam a compreendê- las.162 Uma infracção relativa à primeira regra ocorre quando, por exemplo, alguém desafia para um duelo um habitante de um país onde a instituição do duelo é totalmente desconhecida. Uma infracção à segunda regra ocorre quando uma pessoa dá uma Ibidem, p. 14-15. Os exemplos que se seguem são extraídos da exposição que Wolfgang Stegmüller faz da teoria dos actos de fala de Austin; Hauptstrõmungen der Gegenwartsphilosophie II, Stuttgart: Alfred Krõner Verlag, 1987, pp. 64 e ss. 161 162 269 José Diniz de Moraes ordem a outra, sem contudo estar investido (em geral ou numa determinada situação) de autoridade para o fazer. Infracções à terceira e quarta regras ocorrem principalmente no direito, porque aí se exigem determinados rituais ou formas rigorosas. Na vida do dia a dia estes casos são habitualmente ignorados, na medida do possível. Porém, pode-se dizer que há uma infracção à regra três quando, por exemplo, alguém “desmarca a actividade desportiva marcada para amanhã” sem indicar de que actividade desportiva se trata; ou se alguém “deixar em testamento a alguém uma casa”, possuindo, no entanto, oito casas, e não indicando de que casa se trata. Uma infracção à quarta regra ocorre quando fulano diz a sicrano: “aposto contigo que...”, mas sicrano não aceita a aposta. Vista de uma perspectiva jurídica, uma aposta é um contrato entre dois lados. O que aqui existe é apenas a proposta para se fazer um contrato, mas que não teve seguimento. O que é comum a todos estes tipos de infracções é o facto de o acto de fala intendido não chegar a ter lugar. Se qualquer uma das quatro primeiras regras não for cumprida, o acto de fala pura e simplesmente não chega a ter lugar. As infracções às últimas duas regras são de tipo bem diferente. O não cumprimento destas regras não implica só por si a não realização do acto de fala. Um exemplo típico de infracção a estas regras é uma promessa não cumprida. Se a pessoa A quando disse: “prometo-te que vou ter contigo ainda hoje” não tiver a intenção de ir lá, então existe uma infracção à quinta regra. Se A tinha de facto a intenção de cumprir a promessa, mas mais tarde reconsiderou em contrário, então trata-se de uma infracção à última regra. Mas aqui importa salientar o seguinte: apesar das infracções a promessa foi feita. Mesmo que o promitente não tenha à partida a intenção de cumprir a promessa, ele faz na mesma a promessa, unicamente a promessa não foi leal; se não cumprir o prometido, a promessa não deixa de ter sido feita, só que há um rompimento da promessa. 6.5 Enunciação ou a lógica da comunicação 6.5.1 Enunciação Enquanto o objectivo da análise linguística é a descrição explícita das regras que há que dominar para se poder produzir 270 Apostila de Semiótica Jurídica frases gramaticalmente correctas, a teoria dos actos de fala procura descrever o sistema fundamental de regras de uma competência enunciativa, isto é, já não de construção de frases, mas sim da sua aplicação correcta em enunciados. Não basta saber construir frases correctas à luz da gramática, há também que saber enunciá-las e isso é algo de diferente. O que está em causa, portanto, são as condições de enunciação. Que condições são essas? Isto é, quais são as condições gerais de comunicação? Vamos ver que não basta a gramaticalidade de uma frase como condição da sua enunciação. Se L for uma língua natural e GL o sistema de regras gramaticais dessa língua, então qualquer cadeia de símbolos é considerada uma frase de L se tiver sido construída de acordo com as regras de GL. A gramaticalidade de uma frase significa, em termos pragmáticos, que a frase quando enunciada é compreensível a todos os ouvintes que dominam GL. Mas não basta uma frase ser compreensível, para ser um enunciado. Um enunciado tem também de ser verdadeiro, na medida em que diz algo acerca do mundo que percepcionamos, tem de ser sincero na medida em que traduz o pensamento de quem o enuncia, e tem de estar correcto na medida em que se situa num contexto de expectativas sociais e culturais. A frase para o linguista apenas tem de obedecer às condições de compreensibilidade, ou seja, de gramaticalidade. No entanto, uma vez pronunciada, tem de ser vista pragmaticamente sob outros aspectos. Além da gramaticalidade, o falante tem ainda de ter em conta o seguinte: i) escolher a expressão de modo a descrever uma experiência ou um facto (satisfazendo determinadas condições de verdade) e para que o ouvinte possa partilhar o seu saber; ii) exprimir as suas intenções de modo a que a expressão reflicta o seu pensamento e para que o ouvinte possa confiar nele; iii) levar a cabo o acto de fala de modo que satisfaça normas aceites e para que o ouvinte possa estar de acordo com esses valores. Estas três funções pragmáticas, isto é, de com a ajuda de uma frase descrever algo, exprimir uma intenção e estabelecer uma relação entre o elocutor e o ouvinte, estão na base de todas as funções que um enunciado pode tomar em contextos particulares. A satisfação dessas funções tem como bitola as condições universais de verdade, sinceridade e correcção. Todo acto de fala pode, assim, ser 271 José Diniz de Moraes analisado sob cada uma destas funções: i) uma teoria da frase elementar investiga o conteúdo proposicional do enunciado na perspectiva de uma análise lógico-semântica; ii) uma teoria da expressão intencional investiga o conteúdo intencional na perspectiva da relação entre subjectividade e intersubjectividade linguística; e a teoria dos actos de fala investiga a força ilocucional na perspectiva de uma análise inter-activa do estabelecimento de relações inter-pessoais. 6.5.2 A dupla estrutura da fala Há muitos tipos de actos de fala: gritar “fogo!”, celebrar um contrato, fazer um juramento, baptizar, etc. Mas a forma padrão de um acto de fala é aquela em que encontramos no enunciado duas partes: uma ilocucional e outra proposicional. Tomem-se alguns exemplos para clarificar esta distinção: Peço-te que feches a porta / Peço-te que abras a porta Ordenote que feches a porta / Ordeno-te que abras a porta Pedir ou ordenar são a parte ilocucional - aliás essas são expressões tipicamente ilocucionais; o abrir a porta e o fechar a porta são a parte proposicional. Há uma certa independência entre estas duas partes: podem variar independente mente uma da outra. Tal independência permite uma combinatória de tipos de acção e conteúdos. Tome- se outro exemplo: “Afirmo que Pedro fuma cachimbo”, “Peço- te Pedro para fumares cachimbo”, “Pergunto-te, Pedro, se fumas cachimbo?”, “Aconselho-te, Pedro, a n ã o fumares cachimbo”. Ora como a afirmação, a petição, a pergunta e o conselho, podiam ter outros conteúdos proposicionais, há no acto de fala dois níveis comunicativos em que elocutor e ouvinte têm de se entender simultaneamente, caso queiram comunicar as suas intenções. Por um lado, o nível da subjectividade em que quem fala e quem ouve estabelecem relações mediante actos ilocucionais, relações que lhes permite entenderem-se; por outro lado, o nível das experiências e estados de coisas sobre os quais querem entender-se no nível intersubjectivo. Todo o enunciado pode ser analisado sob estes dois aspectos: o aspecto relacional, intersubjectivo, e o aspecto de conteúdo, sobre o qual se faz a comunicação. Correspondentemente, distinguimos dois tipos de compreensão: uma compreensão ilocucional e outra predicativa. A primeira tem a 272 Apostila de Semiótica Jurídica ver com o nível intersubjectivo do enunciado, a segunda com o nível proposicional, o nível das experiências. Ilocucionalmente compreendemos a tentativa de estabelecer uma relação interpessoal, predicativamente compreendemos o conteúdo proposicional de um enunciado. Exemplos destes dois tipos de compreensão são fáceis de encontrar: Alguém faz uma pergunta, mas não compreendemos o que é que pergunta. Isto é, entendemos que está a fazer uma pergunta, mas não deciframos o que está a perguntar. Um aluno apanhado distraído pela pergunta que o professor lhe faz oferece um caso comum de compreensão ilocucional em que não se compreende o conteúdo proposicional. Outras vezes é ao contrário, alguém falanos sobre determinado assunto, por exemplo: das suas dificuldades económicas, e ao fim perguntamo-nos: está a dar-me uma notícia, ou a pedir-me dinheiro? Estes dois níveis de compreensão são, assim, não só distintos, como de certo modo independentes. 6.5.3 Modos de comunicação Austin julgava poder fazer uma clara divisão entre constatativos e performativos.163 Os primeiros diriam alguma coisa e seriam verdadeiros ou falsos; os segundos fariam alguma coisa e teriam ou não sucesso. Porém, as investigações subsequentes a Austin mostraram que também os constatativos têm uma parte ilocucional. Os actos locucionais de Austin foram substituídos a) por uma parte proposicional, que todo o enunciado explicitamente performativo tem, e b) por uma classe especial de actos ilocucionais, que implicam a exigência de verdade - os actos de fala constatativos. A inclusão dos constatativos nos actos de fala revela que a verdade é apenas um de entre outros critérios de validade que o elocutor coloca ao ouvinte e que se propõe satisfazer. Um acto de fala implica sempre certas condições, isto é, faz sempre exigências de validade. As afirmações (os constatativos), tal como outros actos de fala (avisos, conselhos, ordens, promessas) só resultam quando estão satisfeitas duas condições: a) estar em ordem; b) estar certas. Actos de fala podem estar em ordem relativamente a contextos delimitados, mas só em relação a uma exigência fundamental que o Segue-se aqui de perto a exposição de Jürgen Habermas em “Was heisst Universalpragmatik?” in Apel, Karl-Otto (org.), 1982, pp. 174-259. 163 273 José Diniz de Moraes elocutor faz com o acto ilocucional é que podem ser válidos (estar certos). Em que se distinguem as afirmações dos outros actos de fala? Não na sua dupla estrutura performativa e proposicional, também não pelas condições de contexto geral, que variam de modo típico em todos os actos de fala; distinguem-se por implicarem antes de mais um critério de validade: a pretensão de verdade. Outras classes de actos de fala também têm critérios de validade, mas é por vezes difícil dizer quais os critérios específicos. A razão é a seguinte: a verdade, enquanto critério de validade dos actos de fala constatativos, é de certo modo pressuposta por actos de fala de qualquer tipo. A parte proposicional de qualquer performativo pode ser explicitada numa frase de conteúdo proposicional e, assim, tornar-se-á clara a pretensão de verdade que coloca. Conclusão: a verdade é um critério universal de verdade; essa universalidade reflecte-se na dupla estrutura da fala. Quanto aos dois níveis em que a comunicação se desenrola, a saber, o nível da intersubjectividade e o nível das experiências e estados de coisas, pode-se na fala acentuar mais um que o outro; dependendo dessa acentuação o uso interactivo ou o uso cognitivo da língua. No uso interactivo da língua tematizamos as relações que elocutor e ouvinte assumem, seja enquanto aviso, promessa, exigência, ao passo que apenas se menciona o conteúdo proposicional de enunciado; no uso cognitivo tematizamos o conteúdo do enunciado enquanto proposição sobre algo que ocorre no mundo, ao passo que a relação interpessoal é apenas mencionada. É assim que no uso cognitivo omitimos geralmente o “afirmo que...”, “constato que...”, “digo-te que...”, etc. Pois que no uso cognitivo da linguagem tematiza-se o conteúdo, só se admitem nele actos de fala em que os conteúdos proposicionais podem tomar a forma de frases enunciativas. Com esses actos reivindica-se para a proposição afirmada a satisfação do critério de verdade. Por sua vez, no uso interactivo, que acentua a relação interpessoal, reportamo-nos de modos vários à validade da base normativa do acto de fala. Quer isto dizer que tal como no uso cognitivo da linguagem temos como critério de validade a verdade do que afirmamos, no uso interactivo temos também critérios de validade, só que doutro tipo. A força ilocucional do acto de fala, que cria entre os participantes uma relação interpessoal, é retirada da 274 Apostila de Semiótica Jurídica força vinculativa de reconhecidas normas de acção (ou de valoração); na medida em que o acto de fala é uma acção, actualiza um esquema já estabelecido de relações. E sempre pressuposto um conjunto normativo de instituições, papéis sociais, formas de vida socioculturais já habituais, isto é, convenções. Um acto de fala realiza-se sempre na base de um conjunto de instituições, normas, convenções. Por exemplo, uma ordem, uma aposta, etc., implicam um certo número de condições para que se possam realizar. Para apostar, por exemplo, pressupõe-se que se aposta alguma coisa acerca de algo sobre o qual os dois apostantes têm pontos de vista diferentes. Mas não só os actos de fala institucionais (cumprimentar, apostar, baptizar, etc.) pressupõem uma determinada norma (regras) de acção. Também em promessas, proibições, e prescrições, que não se encontram reguladas à partida por instituições, o elocutor coloca uma pretensão de validade que, caso queira que o acto de fala resulte, deverá ser legitimada por normas existentes, e isso quer dizer: pelo menos, pelo reconhecimento fáctico da pretensão de que essas normas têm razão de ser. Ora tal como no uso cognitivo da linguagem a pretensão de verdade é posta, assim também este conjunto de normas é pressuposto como condição de validade no uso interactivo da linguagem. Ainda outro paralelismo: Tal como no uso cognitivo apenas são admitidos actos de fala constatativos, assim também no uso interactivo apenas são aceites os actos de fala que caracterizam uma determinada relação que elocutor e ouvinte podem assumir relativamente a normas de acção ou de valoração. Habermas. chama a estes actos de fala “regulativos”. Com a força ilocucional dos actos de fala, a validade normativa - correcção ou adequação - encontra-se alicerçada tão universalmente nas estruturas da fala como a pretensão de verdade. Contudo, só em actos de fala regulativos é que essa exigência de um fundo normativo é invocada explicita mente. A pretensão de verdade do conteúdo proposicional desses actos fica apenas implícita. Nos actos constatativos é exactamente o inverso: a pretensão de verdade é explícita e a pretensão de normatividade é implícita. No uso cognitivo da linguagem tematizamos mediante constatativos o conteúdo proposicional de um enunciado; no uso 275 José Diniz de Moraes interactivo da linguagem tematizamos mediante actos de fala regulativos o tipo de relação interpessoal estabelecida. A diferente tematização resulta da escolha de uma das pretensões colocadas pela fala: no uso cognitivo a reivindicação de verdade, no uso regulativo a reivindicação de uma norma. Uma terceira reivindicação que a fala faz e que marca o uso expressivo da linguagem é a da veracidade. A veracidade é a reivindicação que o elocutor faz ao exprimir as suas intenções. A veracidade garante a transparência de uma subjectividade que se expõe linguisticamente. Paradigmas do uso expressivo da linguagem são frases como: “tenho saudades tuas”, “gostaria...”, “tenho a dizer-te que...” etc. Também a exigência de veracidade é uma implicação universal da fala. Obtemos, assim, o seguinte esquema: Modos de Tipos de actos comunicação de fala Cognitivo constatativo Interactivo regulativo Expressivo representativo Tema Conteúdo proposicional Relação interpessoal intenção Pretensões de validade verdade Adequação, correcção Veracidade do elocutor 6.5.4 O fundamento racional da força ilocucional Em que consiste a força ilocucional de um enunciado? Antes de mais, sabemos quais os seus resultados: o estabelecimento de uma relação interpessoal. Com o acto ilocucional, o elocutor faz uma proposta que pode ser aceite ou rejeitada. Em que casos é essa proposta inaceitável (não por motivos contingentes)? Aqui interessa examinar os casos em que é o elocutor o culpado do insucesso dos seus actos, da inaceitabilidade das suas propostas. Portanto, quais são os critérios de aceitabilidade de qualquer proposta ilocucional? Austin estudou as infelicities e misfires, quando há infracções às regras vigentes que regem as instituições (casamento, aposta, etc.). Contudo, a força específica dos actos ilocucionais não se pode 276 Apostila de Semiótica Jurídica explicar através dos contextos delimitados dos actos de fala. A regra essencial, isto é, a condição essencial para o sucesso de um acto ilocucional consiste em o elocutor assumir um determinado empenho de modo a que o ouvinte possa confiar nele. Este empenho significa que, na sequência da proposta feita ao ouvinte, o elocutor se dispõe a cumprir os compromissos daí resultantes. Diferente do empenhamento é a sinceridade do empenhamento. O vínculo que o elocutor se dispõe a assumir ao realizar um acto ilocucional, constitui uma garantia de que ele, na sequência do seu enunciado, cumprirá determinadas condições, por exemplo: considerar que uma questão foi resolvida, ao receber uma resposta satisfatória: abandonar uma afirmação quando se descobre a sua não-verdade; aceitar um conselho se se encontrar na mesma situação do ouvinte. Portanto, pode-se dizer que a força ilocucional de um acto de fala aceitável consiste em poder levar o ouvinte a confiar nos deveres que o elocutor assume ao realizá-lo, isto é, nos deveres decorrentes do acto de fala. Locutor e ouvinte colocam, com os seus actos ilocucionais, pretensões de validade e exigem o seu reconhecimento. Em última instância o elocutor pode agir ilocucional mente sobre o ouvinte e este, por sua vez, sobre o primeiro, justamente porque os deveres decorrentes dos actos de fala encontram-se vinculados a exigências de validade verificáveis cognitivamente, isto é, porque os laços recíprocos têm uma base racional. O elocutor empenhado associa o sentido específico, em que desejaria estabelecer uma relação interpessoal, normalmente com uma exigência de validade, realçada tematicamente, e escolhe então um determinado modo de comunicação. Daí que o conteúdo do empenhamento do elocutor seja determinado pelos dois factores seguintes: i) pelo sentido específico da relação interpessoal a estabelecer (pedido, ordem, promessa, etc.); ii) pela exigência de validade universal, realçada tematicamente. Em diferentes actos de fala, o conteúdo do empenhamento do elocutor é determinado por uma referência específica a uma exigência universal de validade, realçada tematicamente. Para os três usos da linguagem: cognitivo, interactivo e expressivo, temos três tipos específicos de deveres decorrentes da referência a uma exigência universal de validade: i) Um dever de fundamentação no uso cognitivo. Os constatativos contêm a 277 José Diniz de Moraes proposta de, se necessário, recorrer às fontes da experiência que estão na base da certeza do elocutor. ii) Um dever de justificação no uso interactivo. Os actos regulativos contêm a proposta de recorrer ao contexto normativo que está na base da convicção do elocutor. iii) Um dever de fiabilidade no uso expressivo, isto é, mostrar nas consequências ao nível do agir que o elocutor exprimiu exactamente a intenção que tinha efectivamente em mente. Resumindo: Um acto de fala resulta, isto é, estabelece uma relação interpessoal que o elocutor pretende, se: i) é compreensível e aceitável e ii) é aceite pelo ouvinte. A aceitabilidade de um acto de fala depende, entre o mais, da satisfação de duas condições pragmáticas: i) a existência de um contexto delimitado típico ao acto de fala; ii) um reconhecível empenhamento do elocutor ao assumir deveres típicos aos actos de fala. A força ilocucional de um acto de fala consiste em poder levar um ouvinte a agir sob a premissa de que o empenhamento do elocutor é sério; essa força pode o elocutor i) obtê-la, no caso dos actos de fala institucionalmente vinculados, à força obrigatória de normas vigentes; ii) no caso de actos de fala não institucionalmente vinculados, criá-la ao induzir ao reconhecimento de exigências de validade. Elocutor e ouvinte podem influenciar-se reciproca mente no reconhecimento de exigências de validade, visto que o conteúdo do empenhamento do elocutor é deter nado por uma referência específica a uma exigência de validade, realçada tematicamente, e em que o elocutor i) com a pretensão de verdade aceita o dever de fundamentação; ii) com a pretensão de correcção (adequação, justeza) o dever de justificação; iii) com a pretensão de veracidade, o dever de fiabilidade. 278 Apostila de Semiótica Jurídica Texto 10 - Danilo Marcondes: A Pragmática na Filosofia Contemporanea Introdução A divisão do estudo da linguagem, em uma perspectiva filosófica, em sintaxe, semântica e pragmática tem sua origem no texto Fundamentos de uma teoria dos signos (1938), do filósofo norte-americano Charles William Morris (1901- 1979), da Universidade de Chicago. O texto serve de introdução à Enciclopédia Internacional de Ciência Unificada, da qual Morris foi um dos organizadores, junto com os membros do Círculo de Viena, Otto Neurath e Rudolf Carnap. Este projeto, que visava formular os fundamentos epistemológicos e metodológicos de uma ciência unificada, fora iniciado anos antes, ainda na Europa, por Neurath. O filósofo alemão Rudolf Carnap (1891-1970) foi para os Estados Unidos após a ascensão do nazismo, entre 1936 e 1952 e lecionou na Universidade de Chicago, onde trabalhou com Morris. Posteriormente, Carnap retomou e desenvolveu em suas obras a distinção entre sintaxe, semântica e pragmática como áreas de estudo da linguagem. Morris foi também influenciado pelo filósofo norte- americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), que pode ser considerado um dos precursores da pragmática. Em sua discussão sobre a natureza e a função dos signos, Peirce destaca a importância do uso, enfatizando o papel do interpretante na relação entre o signo e aquilo que este designa. Não devemos, contudo, confundir o pragmatismo de Peirce, uma concepção filosófica mais ampla que estabelece como critério de validade de proposições científicas seus resultados com a pragmática enquanto dimensão do estudo da linguagem e do processo de significação. Sintaxe, semântica e pragmática Segundo a definição tradicional encontrada em Morris e em Carnap, a sintaxe examina as relações entre os signos; a semântica estuda a relação dos signos com os objetos a que se referem; e a pragmática diz respeito à relação dos signos com seus usuários e 279 José Diniz de Moraes como estes os interpretam e os empregam. Essa distinção e a definição de cada uma dessas áreas tiveram uma grande influência no desenvolvimento dos estudos sobre a linguagem no pensamento contemporâneo, não só na filosofia, mas também na linguística e na teoria da comunicação. A sintaxe e a semântica receberam tradicionalmente mais atenção. A sintaxe estuda as relações entre os signos como unidades básicas no processo de formação de complexos como proposições — abstração feita do significado desses signos. Caracteriza-se como uma ciência formal, definindo as regras de formação das proposições, enquanto entidades abstratas, a partir das combinações possíveis entre os signos. Isso pode ser ilustrado com um exemplo da sintaxe da língua portuguesa. A sentença “João fora lá corre” é uma combinação sintaticamente incorreta, uma vez que, de acordo com as regras da língua portuguesa, os diferentes signos linguísticos utilizados na formação desta sentença não estão corretamente relacionados. O correto seria “João corre lá fora”. A semântica estuda o significado dos signos linguísticos, ou seja, seu modo de relação com os objetos que designam. Assim, por exemplo, “Júlio César concluiu a conquista da Gália em 51 a. C. ”, é uma sentença dotada de significado, já que os signos que a compõem têm significado e estão corretamente articulados, referem-se a objetos no real e a sentença descreve adequadamente um fato histórico ocorrido, sendo verdadeira. A semântica diz respeito, portanto, ao conteúdo significativo dos signos e à verdade das sentenças em que os signos estão incluídos. Pode-se dizer que, no caso das sentenças de uma determinada língua, a sintaxe é um pressuposto da semântica. Isso ocorre porque se os signos não estiverem corretamente articulados, a própria sentença não terá significado nem valor de verdade, não poderá descrever adequadamente fatos ocorridos e, portanto, não será nem verdadeira, nem falsa, mas sem sentido. Como, por exemplo, “51 Gália conquista da concluiu Júlio César a. C. ” em que os mesmos signos da sentença anterior se encontram impropriamente articulados. O modo de relação entre os signos também altera o significado da sentença. Por exemplo, “João ama Maria” é diferente de “Maria ama João”, embora os signos em ambas as sentenças sejam rigorosamente os mesmos. A pragmática, por sua vez, diz respeito à linguagem em uso, 280 Apostila de Semiótica Jurídica em diferentes contextos, tal como utilizada por seus usuários para a comunicação. É, portanto, o domínio da variação e da heterogeneidade, devido à diversidade do uso e à multiplicidade de contextos. É por este motivo que Carnap, por exemplo, considera a pragmática um domínio da linguagem de difícil análise, uma vez que qualquer tentativa deste tipo envolveria uma abstração dessa diversidade e dessa multiplicidade de uso, em busca de elementos comuns que permitissem um tratamento mais teórico e sistemático. Na verdade, a pragmática consiste na nossa experiência concreta da linguagem, nos fenômenos linguísticos com que efetivamente lidamos. Contudo, o estudo da linguagem parece pressupor a passagem deste nível concreto da experiência da linguagem para a semântica e a sintaxe, que envolvem níveis gradativamente maiores de generalização. Assim, a semântica faz abstração de variações de uso específicas e considera o significado dos termos independentemente dos usos. A sintaxe faz abstração do significado e considera apenas as classes ou categorias de signos para examinar as regras formais segundo as quais se relacionam. É nisso que consiste o que denominaremos de problema de Carnap; ou seja, é possível analisar a linguagem de um ponto de vista pragmático? Podemos dizer que, para Carnap, a resposta seria negativa. Como vimos anteriormente, uma análise da linguagem em um sentido mais sistemático e teórico se dá na passagem para os planos da semântica e da sintaxe. Examinaremos em seguida, contudo, algumas tentativas dentro da filosofia da linguagem contemporânea de dar uma resposta positiva ao problema de Carnap, levando em conta os desenvolvimentos mais recentes destas propostas. Podemos considerar que há duas linhas de desenvolvimento da pragmática na filosofia da linguagem. A primeira a considera como uma extensão da semântica, isto é, a pragmática trataria especificamente do que Yehoshua Bar- Hillel chamou de dêixis ou de expressões indiciais. Para ter significado, essas expressões dependem do contexto, sem o que não podem ter a sua referência determinada. Por exemplo, “Ele veio ontem aqui”. A compreensão dessa sentença é impossível sem a determinação da referência das palavras “ele”, “ontem”, “aqui”, o que só pode ser feito levando-se em conta o contexto específico em que a sentença foi utilizada. Pronomes pessoais, demonstrativos, advérbios de tempo e de lugar, seriam tipicamente dêiticos ou expressões indiciais. Nessa acepção a 281 José Diniz de Moraes pragmática consideraria tanto a contribuição dessas expressões linguísticas quanto a necessidade de interpretá-las de acordo com o contexto para determinar o significado das sentenças em que são empregadas. Posteriormente o papel do contexto na constituição do significado será ampliado, estendendo-se a outras expressões da linguagem. Outra possibilidade de compreender a pragmática consiste em considerar o significado como determinado pelo uso, mesmo que originariamente os autores que formularam essas concepções não tenham utilizado este termo em relação às suas propostas. Essas concepções acrescentam à consideração do contexto a ideia de que a linguagem é uma forma de ação e não de descrição do real. Vamos nos concentrar nesta segunda alternativa por considerarmos que ela apresenta efetivamente o desenvolvimento de uma filosofia pragmática da linguagem. Encontramos, por sua vez, dois tipos de desenvolvimento dessa segunda alternativa. O primeiro é representado pela concepção de significado como uso, de Wittgenstein, que, embora considerando que é possível analisar a linguagem em uso, não propõe um tratamento sistemático deste uso, nem pretende formular uma teoria. O segundo é a Teoria dos Atos de Fala inicialmente formulada por John L. Austin. Essa teoria considera possível um tratamento sistemático da linguagem de um ponto de vista pragmático, desde que se adotem as categorias adequadas para isso; ou seja, desde que se analise a linguagem enquanto ação. Wittgenstein e a concepção de significado como uso O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) desenvolveu, sobretudo em suas Investigações filosóficas, o que podemos considerar uma concepção pragmática. Ele considerou o significado de uma palavra como o seu uso em um determinado contexto (IF, §43, 432) e introduziu a noção de jogo de linguagem (IF, §7). Segundo Wittgenstein, o significado não deve ser entendido como algo de fixo e determinado, como uma propriedade imanente à palavra, mas sim como a função que as expressões linguísticas exercem em um contexto específico e com objetivos específicos. O significado pode, por conseguinte, variar dependendo do contexto em que a palavra é utilizada e do propósito deste uso. As palavras não 282 Apostila de Semiótica Jurídica são utilizadas primordialmente para descrever a realidade, como a semântica tradicional parecia supor, mas para realizar algum objetivo como fazer um pedido, dar uma ordem, fazer uma saudação, agradecer, contar anedotas etc. (IF, § 23). São inúmeros esses usos e não há por que privilegiar um sobre o outro já que tudo depende dos objetivos particulares de quem usa a linguagem. A mesma palavra pode, assim, participar de diferentes contextos com diferentes significados. São esses diferentes contextos de uso com seus objetivos específicos que Wittgenstein caracteriza como jogos de linguagem. Essa noção visa estipular que as expressões linguísticas são sempre utilizadas em um contexto de interação entre falante e ouvinte, que as empregam com um objetivo determinado. A linguagem é sempre comunicação e a determinação do significado de uma palavra ou expressão depende da interpretação do objetivo de seu uso nesses contextos, não sendo, portanto, determinada de modo definitivo. Não podemos, então, generalizar, definindo como que uma entidade abstrata que seria o significado da palavra. Essa impossibilidade de generalização e a ênfase na análise do contexto são alguns dos traços fundamentais que levam a classificar a concepção wittgensteiniana como pragmática. Isso pode ser ilustrado através da análise do próprio termo “jogo” que encontramos nas Investigações filosóficas (§66-70). O que haveria em comum entre o uso desse termo para designar coisas tão diferentes como o jogo de xadrez e o jogo de futebol, o pôquer e o tênis? Empregamos esse termo em relação a jogos competitivos e recreativos, a jogos solitários como a paciência ou em equipe como o basquete. E, talvez, não devamos buscar algo comum entre todos esses usos, como uma essência ou característica básica definidora que todos devem compartilhar. Porém, é possível que haja apenas alguns traços característicos que nos permitem aproximar esses usos, sendo que alguns estão mais próximos, outros mais distantes. Wittgenstein usa a imagem da semelhança de família (IF, §67) para explicar isso. Segundo ela, os membros de uma mesma família se parecem, sem que haja necessariamente algo comum a todos. Podemos perceber essa semelhança em um retrato de grupo, mas talvez não quando olhamos para cada indivíduo separadamente. O caráter genérico do significado seria como uma semelhança de família. A metáfora do tecido também é utilizada nesse sentido na mesma passagem das Investigações. A variedade de usos forma uma espécie de tecido, no qual os diferentes fios se 283 José Diniz de Moraes entrelaçam para formar o todo, mas não há um único fio que percorra todo o tecido. Wittgenstein considera, assim, que a análise filosófica deve trazer as palavras do plano metafísico para o uso comum (IF, §161). Os problemas filosóficos devem ser elucidados levando-se em conta os usos das palavras e expressões que incluem. Dessa forma a maioria dos problemas tradicionais não seriam resolvidos, mas dissolvidos. Quando se examina o uso concreto das expressões, percebe-se que em grande parte dos casos os equívocos resultam de confusões, falsas analogias, semelhanças superficiais, incapacidade de perceber distinções. Por usar as expressões “Tenho uma nota de dez reais no meu bolso” e “Tenho uma ideia em minha mente” é que sou levado a crer que a mente é um espaço interior que tem como conteúdo ideias, tal como o bolso pode conter uma nota. Uma análise do emprego do verbo “ter” nesses casos revela, contudo, que se tratam de usos inteiramente distintos do mesmo verbo. Um exame dos diferentes contextos, dos jogos de linguagem e do uso das palavras neles contidos revela essas distinções e permite o esclarecimento dos problemas. Os jogos são jogados de acordo com regras que podem ser mais ou menos explícitas, mais ou menos formais. Do mesmo modo, os jogos de linguagem possuem regras que definem o que é ou não válido, segundo as quais os objetivos podem ser alcançados. São regras de uso, regras pragmáticas (IF, §54, 82-8, 567), constitutivas dos jogos, que tornam possíveis os atos realizados por aqueles que jogam. Analisar o significado das palavras consiste em situá-las nos jogos em que são empregadas e em perguntarmos o que os participantes nos jogos fazem com elas. Ou seja, consiste em mapearmos as regras segundo as quais jogam e realizam lances válidos nesses jogos. Assim, como no jogo de xadrez, o que importa não são as figuras das peças, mas a maneira como funcionam no jogo, também na linguagem o que importa são as funções que as palavras podem exercer nos jogos de linguagem. As regras estabelecem como e para que podemos usá-las e em que circunstâncias isso pode ser feito. A concepção wittgensteiniana do método de análise pode ser ilustrada pela seguinte passagem das Investigações filosóficas (§77): “Diante dessa dificuldade pergunte sempre: como aprendemos o conceito dessa palavra “bom”, por exemplo? De acordo com que exemplos, em que jogos de linguagem? Você verá então mais 284 Apostila de Semiótica Jurídica facilmente que a palavra deve ter uma família de significações.” Além disso, devemos sempre considerar vários tipos de uso, compará-los e contrastá-los. “Uma causa da principal das doenças filosóficas − dieta unilateral: alimentamos nosso pensamento apenas com uma espécie de exemplo” (IF, §593). A Teoria dos Atos de Fala A proposta de Austin. Pode-se dizer que a Teoria dos Atos de Fala foi apenas esboçada em Quando dizer é fazer e em alguns outros artigos que o filósofo inglês, da Universidade de Oxford, John Langshaw Austin (1911-1960) escreveu sobre este tema. Isto porque esse livro foi publicado postumamente, em 1962, sem ter passado por uma revisão pelo autor. A teoria tal como proposta por Austin consiste numa tentativa de dar conta de modo sistemático dos fenômenos pragmáticos, isto é, do uso da linguagem. Austin procurou mostrar que este uso pode ser objeto de uma análise sistemática desde que sejam adotados os instrumentos conceituais adequados para isso. Uma análise pragmática da linguagem não seria assim, em princípio, incompatível com uma abordagem teórica, ao contrário da posição de Carnap, examinada anteriormente. A concepção básica de Austin sustenta que os constituintes elementares do uso e da compreensão da linguagem natural são atos de fala que têm condições de sucesso e de felicidade para sua realização. Eles não são apenas sentenças que possuem condições de verdade, tal como mantido na filosofia da linguagem pelas teorias do significado da tradição semântica. O ponto de partida de Austin é a, hoje famosa, distinção entre Constatativos e performativos, isto é, entre o uso de sentenças para descrever fatos e eventos e sentenças que são usadas para realizar (to perform) algo e não para descrever ou relatar. Um exemplo de constatativo típico é “João está brincando no quintal”, e de performativo, “Prometo que lhe pagarei amanhã”. Um constatativo pode ser verdadeiro ou falso em relação aos fatos que descreve. Ou seja, a sentença anterior é verdadeira se, de fato, João está brincando no quintal no momento em que a enuncio. Um performativo não é realmente verdadeiro nem falso, uma vez que não descreve um fato. Mas ele deve ser considerado como bem ou mal sucedido, dependendo das circunstâncias e consequências da 285 José Diniz de Moraes realização do ato — por exemplo, no caso acima, uma promessa. A natureza contratual desses atos é enfatizada por Austin ao mostrar que proferir um ato de fala nas circunstâncias adequadas equivale a assumir um compromisso com o ouvinte: “Minha palavra é meu compromisso”. É por este motivo que usamos a expressão “Dei a minha palavra”. Mas Austin logo percebeu que essa dicotomia era inadequada, uma vez que o constatativo tem também uma dimensão performativa, isto é, descrever é, também, um ato que realizamos e que pode ser bem ou mal sucedido; assim como os performativos têm uma dimensão constatativa já que mantêm uma relação com um fato — tomando-se o exemplo acima, o fato de eu lhe ter ou não pagado no dia seguinte. Ele propõe, portanto, que sua concepção performativa de linguagem, isto é, do uso das palavras como uma forma de agir, seja estendida para toda a linguagem. O ato de fala passa a ser considerado como a unidade básica de significação, constituída por três dimensões integradas ou articuladas: respectivamente os atos locucionário, ilocucionária e perlocucionário. O ato locucionário consiste na dimensão linguística estritamente considerada, isto é, nas palavras e sentenças de uma língua específica, empregadas de acordo com as regras gramaticais aplicáveis e dotadas de sentido e referência. O ato ilocucionário, que pode ser considerado o núcleo do ato de fala, tem como aspecto fundamental a força ilocucionária. Essa força consiste no performativo propriamente dito, constituindo o tipo de ato realizado. Quando digo, “Prometo que lhe pagarei amanhã”, meu proferimento do verbo “prometer” constitui o próprio ato de prometer, não se trata de uma descrição de minhas intenções ou de meu estado mental. Ao proferir a sentença eu realizo a promessa. A força do meu ato é a da promessa. Portanto, “prometer” é um verbo performativo, e os verbos performativos geralmente descrevem as forças ilocucionárias dos atos realizados. É claro que eu posso fazer uma promessa sem usar explicitamente o verbo “prometer”, dizendo, por exemplo, “Eu lhe pagarei amanhã” e isso conta como uma promessa, dadas as circunstâncias adequadas. O verbo se encontra implícito ou elíptico e o contexto é suficiente para deixar clara a força da promessa. Por outro lado, poderia ser também uma ameaça em circunstâncias diferentes, em outro contexto. Isso revela que atos ilocucionários podem ser realizados com verbos performativos implícitos ou elípticos e, ainda assim, ter a força que pretendem ter. 286 Apostila de Semiótica Jurídica Por isso pode ser dito que a realização de um ato de fala com uma determinada força vai além de seus elementos linguísticos propriamente ditos. E na linguagem ordinária este é um fenômeno bastante comum. Um dos objetivos principais da análise dos atos de fala consiste precisamente em tornar explícita a força do ato realizado, permitindo assim identificar o seu tipo. O ato perlocucionário tem recebido menos atenção dos especialistas. Ele foi definido por Austin como se caracterizando pelas “consequências do ato em relação aos sentimentos, pensamentos e ações da audiência, ou do falante, ou de outras pessoas, e pode ter sido realizado com o objetivo, intenção ou propósito de gerar essas consequências”. Austin caracteriza em seguida as condições pressupostas para a realização dos atos de fala, que consistem em uma combinação de intenções do falante e convenções sociais com diferentes graus de formalidade. A satisfação dessas condições é o critério do sucesso ou fracasso da tentativa de realização do ato. As intenções são consideradas como psicológicas e, portanto, subjetivas, embora em última análise também se originem de práticas sociais. Wittgenstein dizia que não se poderia ter a intenção de jogar xadrez se o xadrez não existisse (IF, §205, 337). As convenções são de natureza social e podem ser mais formais, por exemplo, no caso de um tribunal, ou informais no caso de um grupo de amigos discutindo o resultado do final do campeonato de futebol. Mas em ambos os casos as convenções estão presentes e os falantes estão seguindo regras, normas, procedimentos habituais, com variados graus de formalidade, porém constitutivos de suas formas de conduta. Com frequência, especialmente em circunstâncias informais, essas regras são implícitas, mas estão sendo aplicadas e isso se torna evidente quando são violadas. A doutrina das infelicidades proposta por Austin é precisamente uma maneira de lidar com esse aspecto dos atos de fala. Uma vez que o mapeamento ou a explicitação completa das regras pode ser uma tarefa inexequível, a análise dos motivos pelos quais alguns atos falham, ou são infelizes, é reveladora das regras que foram rompidas nesses casos e, portanto, pode ser uma boa forma de torná-las evidentes. Quando nomeio alguém para um cargo e não tenho autoridade para isso, ou se tenho autoridade mas o indivíduo nomeado não satisfaz as exigências para assumir o cargo, o ato de nomear não se realiza. Isso mostra que, para ser bem-sucedido, “nomear” pressupõe a 287 José Diniz de Moraes autoridade do falante e a adequação daquele que está sendo nomeado. Na última conferência de Quando dizer é fazer, Austin propõe a classificação das forças ilocucionárias dos proferimentos em cinco tipos gerais: 1) veredictivos, “caracterizam- se por dar um veredito”, tais como “absolvo”, “condeno”, “considero”, “avalio”; 2) exercitivos, “consistem no exercício de poderes, direitos ou influências”, por exemplo, “nomeio”, “demito”, “ordeno”; 3) compromissivos ou comissivos, “caracterizam-se por prometer ou de alguma forma assumir algo, comprometem a pessoa a fazer algo”, incluem “prometo”, “juro”, “aposto”; 4) comportamentais, “constituem um grupo muito heterogêneo, e têm a ver com atitudes e comportamento social”, tais como “agradeço”, “saúdo”, “felicito”; e 5) expositivos, “são difíceis de definir... esclarecem o modo como nossos proferimentos se encaixam no curso de uma argumentação ou de uma conversa, por exemplo, “afirmo”, “declaro”, “informo”, “contesto”. Esta classificação é proposta como provisória e Austin procura tornar a definição de cada classe mais clara por meio de exemplos. Seu objetivo ao propor esta classificação de forças ilocucionárias parece ser a identificação do tipo de ato realizado, uma vez que, como vimos anteriormente, nem sempre um performativo explícito é empregado, e a análise dependeria, assim, da identificação do ato para a reconstrução das regras que tornam possível a sua realização. Isso revela que já na formulação inicial de Austin a preocupação com um método de explicitação de elementos implícitos é um dos objetivos centrais da teoria. Contudo, fica claro desde o início que seu objetivo primordial não consistia na apresentação de uma concepção teórica sobre a natureza e a função da linguagem. Não pretendia descrever a natureza da linguagem, mas ao contrário, propor um método de análise de problemas filosóficos por meio do exame do uso da linguagem entendido como forma de ação, isto é, como modo de se realizar atos por meio de palavras. Com efeito, na última conferência, mencionada anteriormente, Austin afirma que “o ato de fala total na situação de fala total é o único fenômeno real que, em última análise, pretendemos elucidar”. Isso deixa claro que Austin define a tarefa da filosofia da linguagem como a elucidação do uso da linguagem, o que permite aproximá-lo de Wittgenstein. Nas 288 Apostila de Semiótica Jurídica observações finais desta conferência, Austin enfatiza a necessidade de aplicar a teoria a problemas filosóficos. Embora Austin tenha deixado a teoria apenas esboçada, ou formulada como um programa, segundo suas próprias palavras, a necessidade de desenvolvê-la foi logo sentida. Sobretudo quando se percebeu sua importância como possibilidade de tratar de forma sistemática os aspectos pragmáticos da linguagem, conforme foi dito anteriormente. A formulação de Searle. Uma questão fundamental para o desenvolvimento da teoria emergiu com o reconhecimento da importância da classificação dos atos ilocucionários proposta por Austin na última conferência de Quando dizer é fazer. O primeiro a tentar reelaborar esta classificação foi o filósofo norte-americano da Universidade da Califórnia, John R. Searle (1932-). Ele desenvolveu sua própria classificação alternativa, em que propõe cinco tipos de atos ilocucionários (assertivo, diretivo, compromissivo, expressivo e declarativo), em substituição aos propostos inicialmente por Austin. Searle considera que Austin não forneceu princípios ou critérios suficientemente claros para a sua classificação dos atos. Ele propõe, portanto, novos critérios em termos dos quais os atos devem ser caracterizados e também podem distinguir um tipo de ato do outro. Posteriormente, esses critérios são reelaborados em um conjunto que ele denomina de componentes da força ilocucionária, em número de sete, definindo o tipo de ato realizado: (1) Propósito ou objetivo ilocucionário. Por exemplo, o propósito de uma ordem é fazer com que o ouvinte faça algo. Trata-se, portanto, de um diretivo. O propósito de uma promessa consiste em o falante assumir uma obrigação; temos então um compromissivo. (2) Grau da força do objetivo ilocucionário. Quando dou uma ordem, o grau da força de meu ato é maior do que quando faço um pedido ou uma solicitação. (3) Modo de realização. Para que uma ordem seja dada é necessário que aquele que a profere tenha a autoridade adequada, mas o mesmo não se dá em relação a um pedido. Portanto, embora em ambos os casos o conteúdo e o objetivo (“levar alguém a fazer algo”) possam ser os mesmos, o modo de realização é diferente. (4) Condição relativa ao conteúdo proposicional. A força tem relação com o conteúdo proposicional. Por exemplo, quando prometo, assumo o compromisso de fazer algo, mas não posso prometer em 289 José Diniz de Moraes nome de outra pessoa, porque não posso fazê-la assumir este compromisso. Portanto, não posso dizer: “Eu prometo que ele fará isso”, com a força de uma promessa. (1) Condição preparatória. São condições pressupostas para o sucesso do ato. Por exemplo, quando prometo, pressuponho que o que prometo é do interesse daquele a quem faço a promessa. Quando faço um pedido devo supor que aquele a quem fiz o pedido é capaz de realizar o ato. (2) Condição de sinceridade. A força ilocucionária está relacionada, em vários tipos de ato, a estados psicológicos que se supõe o falante deve ter. Quando faço uma afirmação, supõe-se que acredito sinceramente no que afirmei. Quando dou os pêsames, supõe-se que sinto pesar. (3) Grau da força da condição de sinceridade. Assim como o propósito ou objetivo ilocucionário pode ser realizado com diferentes graus de força, do mesmo modo a sinceridade do falante e seu estado psicológico ao realizar o ato podem variar de grau. Por exemplo, a diferença entre pedir e implorar. A formulação desses componentes resulta do desenvolvimento de uma ideia inicial de Searle em Speech Acts (1969). Ele afirma que o ato de fala é o resultado da combinação de uma proposição p dotada de um determinado conteúdo semântico, que estabelece sua relação com os fatos no mundo — podendo ser, portanto, verdadeira ou falsa — e da força ilocucionária f que se acrescenta à proposição, levando à realização do ato de fala. Essa relação é representada formalmente pela fórmula f(p). Temos, assim, o exemplo da asserção: “A porta está aberta”, que possui o mesmo conteúdo proposicional que o imperativo “Abra a porta! ”, a interrogação, “A porta está aberta?” e o condicional “Se a porta estivesse aberta... ” — sendo que esses proferimentos possuem diferentes forças ilocucionárias acrescentadas ao mesmo conteúdo proposicional. A proposta de Searle de caracterização desses componentes da força ilocucionária visa dar conta de forma mais elaborada dos elementos intencionais e convencionais constitutivos do ato de fala segundo Austin. O papel de cada um desses componentes na constituição da força permite uma caracterização mais precisa e uma identificação mais clara de cada força como pertencendo a um dos cinco tipos definidos. A proposta da análise do ato de fala em termos desses sete componentes tem por objetivo superar a simples 290 Apostila de Semiótica Jurídica dicotomia entre elementos intencionais e elementos convencionais, já que alguns dos componentes combinam aspectos que poderíamos considerar intencionais e convencionais como objetivo ilocucionário (1), grau do objetivo ilocucionário (2) e modo de realização (3). Componentes como (4) parecem ser mais estritamente linguísticos, enquanto outros como (6) e (7) são mais nitidamente intencionais, ou subjetivos; e (5) parece ser quase sempre convencional. Contudo essa caracterização não é rígida. A questão crucial, contudo, parece ser: qual o papel da classificação ou taxonomia das forças ilocucionárias para o desenvolvimento da Teoria dos Atos de Fala e para a metodologia da análise pragmática da linguagem? Quando Austin fez sua proposta provisória de classificação de forças ilocucionárias, parecia claro que esta tipologia deveria servir para a identificação da força ilocucionária do proferimento nos casos em que o performativo não é explícito, sem deixar de lado os casos em que o verbo performativo e a força ilocucionária não coincidem exatamente, isto é, quando o performativo não descreve adequadamente a força ilocucionária do ato. Por exemplo, “Declaro aberta a sessão” é o proferimento de um performativo explícito, “declarar”, no sentido institucional. Neste sentido, o ato realizado tem a força ilocucionária da declaração e a sessão estará aberta a partir deste proferimento pelo falante dotado de autoridade para tal. Contudo, quando o presidente da sessão profere “Está aberta a sessão”, mesmo sem utilizar o verbo “declarar”, o performativo foi realizado. E isso é diferente do proferimento de alguém da audiência que comenta com o vizinho, “Está aberta a sessão”, simplesmente chamando a atenção dele para o ocorrido. No primeiro caso, trata-se de um exercitivo, um exercício de autoridade pelo presidente da sessão; no outro, temos um expositivo, em que um simples relato é feito. A análise dessas diferenças depende não só de uma consideração da sentença proferida e do significado dos termos e expressões utilizados. Também é necessária a identificação de elementos contextuais, como o papel do falante no contexto, a existência de normas e procedimentos e de instituições que as estabelecem, o reconhecimento dessas normas e procedimentos pelos participantes, assim como as intenções ou objetivos dos falantes e ouvintes. Intenções e elementos subjetivos só podem ser identificados, por sua vez, com base no que é proferido explicitamente e no que é indicado por meio do contexto. Contudo, 291 José Diniz de Moraes esses elementos contextuais muitas vezes permanecem implícitos. Vemos, assim, que numa perspectiva característica da pragmática a Teoria dos Atos de Fala dá conta de como os elementos contextuais contribuem para a realização dos atos. Se a pragmática, não só enquanto área de estudo da linguagem, mas também como concepção filosófica, propõe uma visão de linguagem como ação e a consideração do contexto de uso como indispensável à análise do significado, então um de seus principais desafios consiste em desenvolver um método de análise que leve em consideração especificamente os elementos que vão além do estritamente linguístico. Isso equivale a ir além do significado das palavras e da estrutura sintática e do valor de verdade das sentenças para incluir os elementos contextuais que fazem com que o significado, em uma acepção pragmática, dê conta de mais do que é explicitamente dito na interação linguística e torne possível a análise dos atos realizados por meio da linguagem. Cabe aqui apenas indicar algumas das características centrais de um método que possa cumprir esse objetivo. A teoria dos atos de fala indiretos de Searle é uma das raras tentativas de lidar com essa questão e, mesmo assim, acabou não levando a um desenvolvimento deste tipo de método. Searle mostra que os atos de fala são em grande parte indiretos ou implícitos, e isso ocorre simplesmente porque não é necessário que sejam explícitos. O exemplo dado é o de um colega que diz para o outro (a) “Há um bom filme no cinema da esquina”, ao que o outro responde (b) “Tenho prova de matemática amanhã”. É óbvio que no caso (a), o primeiro proferimento (explicitamente um constatativo, ou declarativo, segundo a classificação posterior) é implicitamente um convite, como de fato é interpretado pelo colega. Este, por sua vez, responde também por meio de um constatativo, ou declarativo explícito (b), recusando o convite. Contudo, os performativos explícitos “Eu o convido... ” e “Eu recuso o seu convite... ” em nenhum momento foram proferidos — e nem precisariam ser. De que maneira, então, funcionam — isto é, possuem a força ilocucionária respectivamente do convite e da recusa estes atos já que nada disso é explicitamente proferido? Eles funcionam basicamente através de elementos contextuais e de pressupostos compartilhados por falante e ouvinte enquanto participantes do mesmo jogo de linguagem e, desse modo, familiarizados com as crenças, hábitos e práticas um do outro. Uma análise de casos deste tipo deve, portanto, necessariamente levar 292 Apostila de Semiótica Jurídica em conta o caráter dialógico da troca linguística realizada, assim como os elementos contextuais compartilhados. Isso vai além daquilo que é proferido explicitamente, isto é, além dos elementos estritamente linguísticos. Um dos principais desafios da Teoria dos Atos de Fala ao analisar o ato de fala total, como propõe Austin, consiste precisamente em delimitar as fronteiras deste ato de fala total, demarcar o que deve ser incluído no contexto e dentre os pressupostos compartilhados. O ato total pode se projetar no futuro, se considerarmos seus efeitos e consequências, assim como pode depender de fatores do passado remoto, se levarmos em conta seus pressupostos. A solução para se evitar esse caráter indeterminado do ato de fala total consiste em reconhecer que toda análise é provisória e que, no fundo, a delimitação do(s) ato(s) de fala depende das questões que servem como ponto de partida para a análise, assim como do escopo desta análise. Nenhuma análise pode jamais pretender esgotar o ato de fala em toda a sua complexidade; além disso, o alcance da análise depende do enfoque adotado. Grice e as implicaturas conversacionais O filósofo inglês Henry Paul Grice (1913-1988), que foi professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, formulou a proposta de uma semântica fazendo a distinção entre significado do falante (speakers meaning) e significado literal. A teoria de Grice consiste em uma análise do significado com base em mecanismos de interpretação pelo ouvinte do significado do falante, por meio de regras e procedimentos que permitem a identificação ou o reconhecimento das intenções do falante ao dizer algo. Essa teoria tinha inicialmente um escopo mais limitado, concentrando-se na distinção entre significado literal e não-literal, porém tornou-se o ponto de partida para a análise dos aspectos intencionais na constituição da força ilocucionária dos atos de fala, sobretudo por propor mecanismos de explicitação e de reconstrução das intenções, o que era considerado desde o início uma dificuldade a ser superada. Segundo essa teoria toda expressão linguística deve ser interpretada levando-se em conta seu contexto de uso. Só a partir da consideração deste contexto podemos decidir se a expressão está sendo usada no que Grice denomina de significado do falante, específico a um contexto determinado, ou em seu significado literal, que não varia de acordo com os contextos. Por exemplo, se 293 José Diniz de Moraes um professor diz a um colega “Neste semestre meus alunos são verdes”, este o interpretará como fazendo um comentário sobre a imaturidade dos alunos e não sobre sua cor. A palavra “verde” neste sentido está sendo usada com o significado do falante e não com o significado literal. O ouvinte entende isso porque interpreta a hipótese do significado literal como menos plausível e decide-se, assim, pela do significado do falante. Dessa forma, em toda troca linguística haveria sempre uma interpretação pelo ouvinte das intenções do falante de modo a decidir-se sobre como entender o significado das expressões utilizadas. A consideração do contexto é decisiva para que essa interpretação se dê; é ele que fornece os elementos que possibilitam ao ouvinte interpretar o falante de uma maneira ou de outra. Grice desenvolve um método de determinação do significado do falante a partir da interpretação das intenções deste ao realizar o proferimento de uma sentença. Esse método baseia-se na noção de “implicatura conversacional”, que visa dar conta de um tipo especial de inferência que ocorre na comunicação e que difere da implicação lógica por ter regras próprias e por seu maior grau de informalidade. As regras lógicas de inferência determinam as possibilidades de relação válidas entre proposições e são regras sintáticas, isto é, independem do significado destas proposições. Como exemplo temos a lei da transitividade: se A é igual a B e B é igual a C, então A é igual a C. As implicaturas conversacionais, ao contrário, dependem fundamentalmente da consideração do contexto em que uma sentença está sendo proferida (suas “circunstâncias de enunciação” segundo Grice) por um falante com a intenção de comunicar algo a seu interlocutor. Pensemos em um estudante medíocre de filosofia que pede uma carta de recomendação a seu professor. Este, sem querer elogiá-lo, mas ao mesmo tempo sem querer omitir a verdade, escreve uma carta recomendando o estudante por sua excelente caligrafia. O leitor da carta certamente se surpreenderá pelo elogio de uma qualidade não relacionada diretamente à área do estudante e em grande parte irrelevante. O elogio de algo sem importância causa a implicatura de que não há nenhuma outra qualidade a ser destacada e que, por conseguinte, não se trata de um estudante de filosofia recomendável. Isso é insinuado, sem que seja efetivamente dito. De fato, a insinuação é um dos casos mais característicos de implicatura conversacional, um modo de constituição de significado 294 Apostila de Semiótica Jurídica para além do que é explicitamente proferido pelo falante. A questão fundamental, portanto, é: como reconhecer essa intenção implícita, não-formulada, do falante? De que modo o ouvinte entende as intenções do falante? Trata-se de um problema semelhante ao da análise dos atos de fala indiretos, visto acima. Torna-se necessário assim um método de análise que permita a reconstrução desse processo de significação indireta. É nisso que consiste a proposta de Grice em “Lógica e conversação”. O ponto de partida é a concepção de que a linguagem é essencialmente dialógica e a troca linguística, a interação entre falante e ouvinte, é regida por um princípio de cooperação, ou seja, falamos para sermos entendidos, caso contrário sequer nos engajaríamos nesse processo. Essa concepção cooperativa define um modelo de como deveria funcionar a interação linguística. Grice dá a seguinte definição do Princípio de Cooperação: “Faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado. ” Este princípio geral, por sua vez, se desdobra em quatro máximas: quantidade, qualidade, relação e modo. A máxima da quantidade se define da seguinte maneira: — Faça sua contribuição tão informativa quanto requerido (para o propósito corrente da conversação). — Não faça sua contribuição mais informativa do que requerido. Sob a categoria da qualidade temos a máxima “Trate de fazer uma contribuição que seja verdadeira”, que se desdobra nas seguintes: — Não diga o que você acredita ser falso. — Não diga senão aquilo para o que você possa fornecer evidência adequada. A máxima da relação se resume a “Seja relevante”. A máxima de modo tem a formulação geral “Seja claro”, com os seguintes desdobramentos: — Evite obscuridades de expressão. — Evite ambiguidades. — Seja breve (evite prolixidade desnecessária). 295 José Diniz de Moraes — Seja ordenado. Grice observa ainda que talvez outras máximas ou submáximas sejam necessárias, mas estas cobrem os principais pressupostos da comunicação bem-sucedida. As máximas não são, obviamente, excludentes, assim como nem todas se aplicam ao mesmo tempo. Sua aplicação depende das características do contexto de comunicação. O modelo proposto visa precisamente dar conta do que seriam os pressupostos ou expectativas dos interlocutores quando se engajam em um processo comunicativo. Por isso dizemos tratar-se de um esquema ou modelo do que deveria ser a comunicação bemsucedida. Evidentemente, em situações concretas de comunicação isso raramente ocorre, mas a questão de Grice é que a violação, ainda que apenas aparentemente, de uma ou mais dessas máximas produz as implicaturas conversacionais. O ouvinte é levado a formular uma hipótese interpretativa sobre os motivos pelos quais o falante não está agindo da forma esperada, uma vez que continua a pressupor que, se o falante tem a intenção de se comunicar, então permanece em vigor a supermáxima ou princípio da cooperação. Se ele se recusa a falar ou dá as costas ao ouvinte, então a comunicação está rompida, mas se isso não acontece as máximas continuam, em princípio, a se aplicar, e o ouvinte construirá suas expectativas com base nelas. No exemplo anterior sobre a carta de recomendação, o professor viola a máxima da relação, ao não ser relevante. Com isso, ele faz com que seu interlocutor, o leitor da carta, busque uma interpretação que torne o que foi dito relevante, ou seja, o candidato não é recomendável porque não tem nenhuma qualidade exceto a da caligrafia, que não é relevante. Como foi dito anteriormente, a insinuação é um dos casos exemplares de implicatura conversacional. Isso acontece porque nesses casos algo é dito de modo indireto ou implícito sem que possa ser tornado explícito, sob pena de constituir-se, por exemplo, em uma calúnia. Quando no Otelo, de Shakespeare, lago pergunta a Otelo sobre o lenço que este teria presenteado a Desdêmona, insinua que ela o teria dado a Cássio, provocando assim o ciúme de Otelo. A simples pergunta de lago sugere a infidelidade de Desdêmona, embora nada seja explicitamente dito lago sabe que Otelo é ciumento e vingativo, o que torna a pergunta relevante e faz com que lago consiga o que pretendia. 296 Apostila de Semiótica Jurídica Assim como a insinuação, a ironia é também um dos casos exemplares de implicatura, já que o comentário irônico viola as máximas conversacionais, sem que o falante possa de fato ser responsabilizado, porque nada disse explicitamente. Ele pode sempre recuar da intenção irônica e afirmar que sua intenção foi outra, evitando assim a interpretação de ofensa ou agressão verbal. O modelo proposto por Grice é particularmente importante do ponto de vista do desenvolvimento da pragmática, por propor efetivamente um método de interpretação das intenções do falante e de reconstrução de elementos contextuais que explicam a constituição de um significado específico ao contexto de uso. Esse modelo constitui-se assim em uma ferramenta de grande utilidade na análise, tipicamente pragmática, dos atos de fala indiretos, que mencionamos acima. O funcionamento de modo implícito ou indireto desses atos pode ser reconstruído a partir da análise das implicaturas conversacionais causadas. Dessa forma, uma combinação entre a Teoria dos Atos de Fala de Austin e Searle e a teoria de Grice parece ser um dos caminhos mais eficazes de desenvolvimento de um método de análise pragmática da linguagem. Habermas: Pragmática Universal e Teoria da Ação Comunicativa A concepção de uma filosofia pragmática da linguagem adquire uma nova dimensão na direção de um tratamento sistemático com as propostas do filósofo alemão Jürgen Habermas (1929- ), inicialmente de uma Pragmática Universal e em seguida de uma Teoria da Ação Comunicativa. A discussão sobre a linguagem em Habermas tem como um de seus pontos de partida o texto “Trabalho e interação” (1967), no qual analisa as Lições de Lena, de Hegel. Nessa obra, que antecede a Fenomenologia do Espírito, Hegel considera que o processo de formação da consciência subjetiva no indivíduo se realiza com base no que denomina de uma tríplice dialética: a dialética da vida moral em que se dá a interação com as outras subjetividades; a dialética da linguagem, ou dos processos de simbolização, em que o indivíduo utiliza símbolos para representar o real; e a dialética do trabalho pela qual o indivíduo se relaciona com a natureza de modo a derivar dela seus meios de subsistência. A dialética do trabalho pode ser 297 José Diniz de Moraes entendida como parte da racionalidade instrumental que prevalece no domínio da técnica. Essa racionalidade visa a obtenção de determinados fins e a escolha adequada dos meios necessários para obtê-los, tratando, portanto, a própria natureza como um objeto para a obtenção desses fins. Instrumentos, mecanismos e o próprio trabalho humano seriam assim tratados como objetos, meios para obter os fins. Em algumas das principais linhas de desenvolvimento do pensamento no século XIX, principalmente após a Revolução Industrial, e mesmo no início do século XX, esta racionalidade instrumental teria sido predominante. A concepção de ciência como técnica, que Habermas discute em “A técnica e a ciência como ‘ideologia’” (1968), seria um exemplo disso. O próprio marxismo, ao privilegiar a dialética do trabalho em sua leitura de Hegel, teria compartilhado desta visão, segundo Habermas. O retorno a Hegel, e a textos como Lições de lena, permite rever criticamente este processo e recuperar a dimensão formadora das outras duas dialéticas; de modo a contrapor à racionalidade instrumental uma racionalidade comunicativa que teria uma função emancipadora. A racionalidade comunicativa se constituiria precisamente a partir dos pressupostos da interação e da linguagem. Sua função seria a de possibilitar o entendimento entre os indivíduos, a negociação de seus interesses e objetivos e a formação do consenso na sociedade. Assim, a racionalidade instrumental, ou seja, a definição de fins e meios para obtê-los, deveria ficar subordinada à racionalidade comunicativa da qual essas decisões de caráter técnico deveriam depender. De modo a desenvolver sua concepção de uma racionalidade comunicativa e para uma maior elaboração das noções de linguagem e de interação, Habermas volta a sua atenção a partir dos anos 1970 principalmente para filósofos como Wittgenstein, Austin, Searle e Grice. É exatamente a visão pragmática de linguagem, enfatizando a comunicação e a ação, que lhe interessa nesses filósofos. Além disso, Habermas vai buscar na hermenêutica, sobretudo de Hans Georg Gadamer (1900-2002), a valorização tanto do aspecto histórico na constituição do significado quanto da tradição na transmissão da linguagem. Esses elementos já se encontram na filosofia de Hegel, mas as filosofias da linguagem de Wittgenstein e de Austin parecem ignorá-los, ou ao menos não os enfatizam devidamente. Falta, porém, tanto nessas filosofias da linguagem quanto na hermenêutica, uma dimensão crítica que possibilite a 298 Apostila de Semiótica Jurídica tarefa emancipadora da filosofia. A influência de Karl Otto Apel (1922- ) foi decisiva nesse sentido. Este filósofo já havia denominado de “transformação na filosofia” a mudança que se dá na passagem da filosofia moderna — em que as noções de subjetividade e de consciência têm um papel central — para a filosofia contemporânea — a partir, sobretudo, de Peirce e de Wittgenstein. Esses dois filósofos contribuíram para mostrar como a própria subjetividade é constituída pela linguagem, pela capacidade do indivíduo de tornar-se sujeito linguístico, isto é, alguém capaz de usar de forma bem-sucedida a linguagem nos contextos em que participa. O conceito de intersubjetividade, de uma subjetividade constituída pela interação, toma, assim, o lugar da subjetividade entendida como originária, anterior à linguagem. Habermas propõe-se, então, a encontrar os fundamentos de uma teoria crítica da sociedade na linguagem enquanto comunicação, isto é, enquanto mediadora das relações sociais. Esses fundamentos devem ser derivados das próprias condições constitutivas da comunicação, tendo assim o caráter normativo que seu papel crítico pressupõe. Contudo, para isso é necessária uma análise pragmática da linguagem que vá além de uma consideração meramente empírica dos usos concretos. É esse o sentido da proposta da Pragmática Universal, o primeiro passo em direção à Teoria da Ação Comunicativa, que visa estabelecer as condições de possibilidade da comunicação, em um sentido universal — ou seja, de toda e qualquer comunicação possível. Seguindo Grice, Habermas caracteriza a interação comunicativa como tendo uma natureza essencialmente cooperativa e define quatro condições do que denomina “situação ideal de discurso”: sinceridade, veracidade, inteligibilidade e justificabilidade. Embora no uso concreto da linguagem essas condições, tais como as máximas de Grice, possam não se aplicar, elas são pressupostos do funcionamento bem-sucedido da linguagem e determinam as expectativas que falante e ouvinte têm ao participar de uma troca linguística. Com efeito, para que a comunicação funcione, espera-se que o falante seja sincero, ou seja, tenha a intenção de dizer o que diz e deseje ter esta sua intenção reconhecida pelo ouvinte. O falante deve dizer também aquilo que considera ser verdadeiro, mesmo que eventualmente possa estar errado: o importante é seu compromisso com a verdade do que diz. Seus proferimentos devem ser inteligíveis, ou seja, seguir as normas 299 José Diniz de Moraes linguísticas, ter significado claro, ser acessíveis ao ouvinte. A justificabilidade diz respeito às condições que o falante deve satisfazer para que seu proferimento seja bem-sucedido. Por exemplo, ter a autoridade requerida no caso de um ato que a pressuponha, tal como nomear, eleger, batizar; ou ter o conhecimento devido quando se trata de dar uma informação ou fazer um relato. Como foi dito anteriormente, essas condições caracterizam as expectativas daqueles que se engajam em uma troca comunicacional. Embora possam não se aplicar em situações concretas: por exemplo, posso mentir, posso ser insincero, posso tentar enganar meu interlocutor. Contudo, quando isso acontece, deve ser sempre ocultado, uma vez que o proferimento declaradamente falso, insincero ou sem legitimidade perderá todo o seu efeito comunicacional. Não será mais um lance válido no jogo. Posso mentir, mas devo sempre tentar fazer com que minha mentira tenha a aparência de verdade, caso contrário serei reconhecido como mentiroso e perderei minha credibilidade diante de meus interlocutores. É neste princípio que Habermas baseia a validade de suas condições de possibilidade da comunicação. Embora concretamente elas possam não se aplicar, na medida em que são sempre pressupostas produzem expectativas nos participantes da comunicação. E é em nome desses pressupostos e expectativas que os participantes podem, por sua vez, fazer a crítica do discurso em que essas condições não são seguidas, isto é, podem interpelar o falante quanto à sua sinceridade, veracidade, inteligibilidade e justificabilidade. Caso o falante não satisfaça essa interpelação, pagará o preço de perder a confiança dos demais e, eventualmente, ser excluído do jogo da comunicação. Por que perderia meu tempo ouvindo alguém que considero insincero, ou que é sempre obscuro em sua fala? Habermas deriva as condições que permitem o discurso crítico — isto é, a interpelação por qualquer falante da troca linguística de que participa — da própria natureza comunicacional — isto é, em última instância cooperativa, da linguagem. A possibilidade do entendimento, da negociação e do consenso que a razão comunicativa pressupõe são características intrínsecas à linguagem. A pragmática se insere, portanto, no quadro mais amplo de 300 Apostila de Semiótica Jurídica uma filosofia crítica que tem um objetivo emancipatório e está voltada para a recuperação, em nosso contexto histórico, do lugar central da racionalidade comunicativa. A Ética do Discurso Pode-se considerar que a Ética do Discurso resulta de uma elaboração de algumas das ideias centrais da pragmática encontradas já em suas formulações iniciais na Teoria dos Atos de Fala. Quando Austin, por exemplo, toma a promessa como um performativo paradigmático, ele enfatiza o compromisso que o falante assume em relação ao ouvinte e o caráter de certa forma “contratual” de toda a interação linguística; quando falamos, “damos nossa palavra”. Esse compromisso dá ao discurso enquanto comunicação uma dimensão ética na qual o falante produz certas expectativas no ouvinte e deve se conduzir de acordo com elas, sob pena de insucesso, perda de credibilidade e ruptura na comunicação — características ressaltadas por Grice e por Habermas, como vimos acima. O uso da linguagem teria, assim, intrinsecamente, uma dimensão ética. Karl Otto Apel, o principal formulador da Ética do Discurso, já em seu “O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética” (1967), mostra que devemos partir da constatação de que todo indivíduo, enquanto falante competente de uma língua, pertence necessariamente a uma comunidade de comunicação e é como membro dessa comunidade que interage linguisticamente. Para ser bem-sucedido, seu discurso deve satisfazer as normas de validade dessa comunidade, e o falante deve, portanto, estar sempre preparado para argumentar em favor de seu uso da linguagem, deve ser capaz de justificá-lo perante seus interlocutores. Mesmo o discurso solitário se constitui potencialmente no horizonte de uma comunidade linguística à qual o falante pertence, e de cuja linguagem se apropria enquanto se constitui como falante competente. Ao recorrermos aos princípios que tornam a comunicação possível, por exemplo as máximas de Grice ou a situação ideal de discurso de Habermas, estamos implicitamente assumindo a validade desses princípios e nos comprometendo a segui-los. O uso da linguagem na comunicação envolve, assim, um compromisso ético. Por outro lado, a possibilidade de fundamentação racional da 301 José Diniz de Moraes ética, uma preocupação central da filosofia moderna desde Kant, torna-se viável com base não mais em uma racionalidade considerada em abstrato, mas sim nesses pressupostos da comunicação bem-sucedida. Segundo esses pressupostos, o falante pode interpelar o ouvinte, e vice-versa, quanto às suas justificativas para dizer o que diz e, consequentemente, para agir como age. A ética teria, assim, seus fundamentos nos pressupostos da própria racionalidade comunicativa. A Ética do Discurso é, portanto, uma ética da responsabilidade, uma vez que é no discurso que os agentes assumem a responsabilidade e podem apresentar as justificativas de seus atos e explicitar as normas segundo as quais agiram. Conclusão: desafios atuais da pragmática A pragmática enquanto campo de estudos da linguagem se defronta desde a sua origem com o seguinte dilema: ao se reconhecer que a realidade concreta da linguagem é plural e está sempre em mudança, dependendo dos usos e dos contextos, admitese a dificuldade de se realizar uma análise dos fenômenos pragmáticos do mesmo modo que se analisam a semântica e a sintaxe, como ressaltou Carnap. Por outro lado, quando se pretende sistematizar a pragmática e submetê-la a este tipo de análise, já não se estaria deixando o próprio campo da pragmática? Em última instância, as propostas de tratamento sistemático da pragmática, de Searle a Habermas, prevaleceram na filosofia da linguagem contemporânea. Podemos nos perguntar, contudo, se essas propostas não acarretam efetivamente em uma redução da pragmática à semântica. Quando Searle estabelece as condições de realização do ato e os pressupostos da força ilocucionária, e quando formula a distinção entre conteúdo proposicional e força ilocucionária, não estaria dando um maior peso aos elementos semânticos, ao que antecede o uso da linguagem? Os aspectos genuinamente pragmáticos não seriam os efeitos e consequências dos atos, o que acontece em decorrência da interação linguística? Alguns pontos, contudo, devem ser levados em conta para se considerar uma concepção genuinamente pragmática de linguagem. Deve-se reconhecer que em seu uso concreto a linguagem é muito mais fragmentada e menos estruturada de um ponto de vista lógico e gramatical do que a filosofia da linguagem tradicionalmente 302 Apostila de Semiótica Jurídica pressupõe. Proferimentos implícitos, usos indiretos, frases truncadas, expressões elípticas e oblíquas são corriqueiras em nossa comunicação e nem por isso deixamos de nos entender ou a comunicação deixa de ser bem-sucedida. Um aspecto central da pragmática deve consistir, portanto, na capacidade de dar conta desses fenômenos. Caso contrário, concepções pragmáticas como, por exemplo, a Teoria dos Atos de Fala estariam adotando uma visão idealizada de linguagem e se afastando do que deveria ser o seu objeto de estudo: a linguagem em uso, em que elementos implícitos têm um papel muito maior do que geralmente se admite. Além disso, a Teoria dos Atos de Fala, quando propõe um método de análise da linguagem, parece restringir-se às características manifestas dos atos de fala, não dispondo de ferramentas para uma análise mais profunda que leve em conta elementos implícitos, incluindo o caráter indireto de certos atos e de certos modos de influenciar a ação do interlocutor, tais como a manipulação, o preconceito e outras características oblíquas e não-declaradas, que apesar disso são determinantes da força ilocucionária desses atos assim como de seus efeitos e consequências. Isso nos leva à seguinte questão fundamental: como é possível, nesses casos, que aquilo que não se encontra explicitamente formulado ou que não é explicitamente proferido seja constitutivo do significado das sentenças proferidas e da força dos atos de fala realizados? Como pode nossa análise dos atos de fala dar conta desses elementos implícitos que não obstante reconhecemos não só que estão presentes, mas que são determinantes da ação realizada e de seus efeitos e consequências? É necessária para responder a essas questões, a formulação de um método de análise crítico ou reconstrutivo, que possa tornar explícitos esses elementos implícitos da ação linguística. Há, contudo, uma dificuldade adicional a ser considerada. O exemplo que vimos anteriormente, dado por Searle do diálogo entre dois colegas em que um convida indiretamente o outro para ir ao cinema —, consiste em um caso em que os atos foram realizados de forma indireta. Mas eles podem, se necessário, ser explicitados, ou seja, podem se realizar de forma direta. Um colega pode sempre pedir ao outro que seja mais explícito e o outro provavelmente não terá maiores dificuldades em fazê-lo. Porém, há muitos atos de fala indiretos que são realizados de modo indireto porque por diversas razões, devem permanecer indiretos não podem ter sua força 303 José Diniz de Moraes ilocucionária explicitada, caso contrário fracassariam ou seriam mal sucedidos. A ironia e a insinuação são exemplos disso, assim como a barganha. O exemplo de lago em Otelo deixa isso claro. Como tornar explícitos esses atos que resistem à explicitação é um dos principais desafios que o método deve enfrentar. Podemos dar algumas indicações de como fazê-lo, recorrendo mais uma vez à teoria das implicaturas conversacionais de Grice, que fornece elementos sobre como analisar os pressupostos compartilhados por falante e ouvinte. A teoria de Grice permite que se desenvolva um método de análise que reconstrua os elementos implícitos na realização dos atos de fala, sobretudo dos atos indiretos. As máximas conversacionais possibilitam uma análise das expectativas do falante e do ouvinte em sua interação, mostrando como o entendimento mútuo pode resultar desse tipo de troca linguística. Outra crítica que encontramos em relação à formulação inicial da teoria por Austin e também por Searle consiste em apontar que tanto a definição quanto a análise dos atos de fala por esses dois é excessivamente centrada no falante ou seja, no indivíduo ou, mais precisamente, no sujeito linguístico. Atos de fala são frequentemente examinados isoladamente do contexto mais amplo da troca linguística e de seu papel no discurso. Isso parece contraditório com a caracterização inicial dos atos de fala como essencialmente comunicacionais, ou seja, como parte de um processo de interação. Os atos de fala devem, portanto, ser considerados basicamente como dialógicos, e não apenas como atos de um falante. Porém, parece ter havido pouca preocupação por parte da teoria com a análise, por exemplo, das respostas do ouvinte ao ato do falante, ou das expectativas levantadas pelo falante em relação ao ouvinte e, reciprocamente, das reações do ouvinte a estas expectativas. Falta à teoria uma consideração de como a antecipação da resposta do ouvinte quando assume, por sua vez, o papel de falante, é determinante do ato de seu interlocutor. Embora esse tipo de crítica possa ser considerada correta, não se pode dizer que revele um aspecto particularmente problemático da teoria, no sentido de que não há nada na concepção básica da Teoria dos Atos de Fala que seja incompatível com uma consideração dialógica dos atos de fala. Embora até possa ser dito que a noção de ato de fala é excessivamente centrada no falante individual, mesmo nas versões iniciais da teoria, as definições do ato de fala apontam a necessidade de consideração dos aspectos 304 Apostila de Semiótica Jurídica interacionais de sua realização. A adoção da teoria de Grice sobre o significado do falante para complementar a Teoria dos Atos de Fala indica claramente esse tipo de preocupação. Isso porque a teoria de Grice leva em conta centralmente o ouvinte e o diálogo realizado, na medida em que propõe recursos para a interpretação pelo ouvinte dos propósitos do falante ao fazer seu proferimento. As propostas de Habermas e de Apel são igualmente importantes nessa direção porque introduzem o elemento intersubjetivo, ou seja, enfatizam o papel da interação linguística e da comunicação na própria estruturação da subjetividade. O sujeito linguístico não é originário, não é um ponto de partida dado, mas depende da existência de práticas linguísticas para sua constituição. Isso não quer dizer que essas práticas sejam imutáveis e inquestionáveis, pois efetivamente podem ser interpeladas e alteradas, mas se encontram na origem do diálogo e da realização dos atos de fala. Apel ressalta a importância da comunidade a que falante e ouvinte pertencem como constituindo o horizonte de possibilidades da interação linguística bem-sucedida. Habermas mostra que o consenso em torno de normas e critérios é um pressuposto da validade da comunicação. Corno vimos anteriormente, um dos principais objetivos desta linha de análise dos atos de fala consiste em determinar as condições, ou melhor, dizendo, as pressuposições da realização do ato de fala. A análise dessas pressuposições desenvolve-se em direção a uma tentativa de se estabelecer as condições formais que devem ser satisfeitas para a realização bem-sucedida do ato de fala. O próprio Searle refere-se aos elementos sintáticos e ao conteúdo proposicional desses atos. São aspectos como esses que parecem apontar para a direção oposta à de uma análise pragmática do uso da linguagem. É preciso, contudo, considerar a necessidade de um desenvolvimento pragmático da teoria, complementando essas análises formal e semântica, levando em conta adicionalmente os elementos que explicam os efeitos e consequências dos atos de fala, assim como os critérios de sucesso dos mesmos. A análise do ato de fala do ponto de vista de seus efeitos e consequências caracteriza-se como genuinamente pragmática, uma vez que leva em consideração o sucesso ou fracasso do ato que se pretende realizar. Se uma 305 José Diniz de Moraes análise de pressuposições aponta para aspectos formais e semânticos, uma análise de efeitos e consequências aponta para aspectos pragmáticos. Uma análise pragmática depende muito mais da consideração de elementos contextuais, de aspectos Perlocucionários, da comparação entre objetivo declarado e realização efetiva, do que da consideração de aspectos estritamente linguísticos, o que parece ser o caso em análises formais e semânticas. E certamente esse tipo de análise pragmática tem recebido uma atenção menor do que deveria nos desenvolvimentos recentes da teoria dos atos de fala e na filosofia da linguagem contemporânea de modo geral. Nesse sentido, a doutrina das infelicidades de Austin, que mencionamos acima, e que não recebeu a devida continuidade, é de importância crucial, uma vez que leva em consideração precisamente o caso dos insucessos, das situações em que os atos, por diversos motivos, não são realizados. A análise desses motivos, apenas esboçada por Austin, é um dos principais desafios da pragmática. Em linhas gerais, o desenvolvimento de uma filosofia da linguagem em uma perspectiva genuinamente pragmática deve levar em conta que: a) a linguagem deve ser considerada sempre como ação, como forma de se realizar atos, e não apenas como descrição ou representação simbólica do real, como nos ensinam inicialmente Wittgenstein e Austin; b) os atos de fala devem ser considerados sempre como ao menos potencialmente dialógicos; c) os atos de fala consistem, em sua maioria, em performativos implícitos ou seja, em atos realizados com a força ilocucionária implícita e, portanto, caracterizam-se como atos de fala indiretos; d) um método interpretativo que torne possível a explicitação desses elementos implícitos e a identificação da força ilocucionária dos atos de fala indiretos deve combinar a aplicação das máximas conversacionais de Grice e a taxonomia proposta por Searle, de modo a tornar possível a reconstrução do tipo de ato realizado de acordo com a identificação dos elementos básicos constitutivos da força ilocucionária desses atos; e) em uma análise desse tipo, o caráter crítico e não apenas descritivo é de fundamental importância, e propostas como as de Habermas e de Apel apontam nessa direção ao indicar os elementos 306 Apostila de Semiótica Jurídica que permitem a interpelação e a reconstrução dos usos da linguagem em seus contextos específicos, tendo em vista as regras que os governam. A possibilidade de dar um tratamento pragmático à análise da linguagem tem sido uma das grandes controvérsias da filosofia da linguagem contemporânea. Acreditamos que os pontos aqui indicados podem contribuir de modo decisivo para o desenvolvimento de uma visão pragmática da linguagem. 307 José Diniz de Moraes Referências Bibliográficas e Leituras sugeridas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ABBAGNANO, Nicola. Introdução ao existencialismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ABERLARDO, Pedro. Lógica para principiantes. 2ed.São Paulo: Editora UNESP, 2005. ABREU, António Amórez. Curso de Redação. São Paulo: Ática, 1989. ACERO FERNÁNDEZ J. J., Filosofía y análisis del lenguaje, Madrid 1985. ACERO, Juan J. y otros (eds), El legado de Gadamer. Universidad de Granada, Granada, 2004. ACERO, Juan J. y otros (eds), Materiales del Congreso Internacional sobre Hermenéutica filosófica. El legado de Gadamer, Universidad de Granada, Granada, 2003. 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