Artigos - Poéticas Visuais

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Artigos - Poéticas Visuais
Pensar a Arte Pós-Moderna: um sucinto
recorte da contemporaneidade
Thinking Postmodern Art: a brief outline of the contemporaneity
Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho* &
Maria do Mar Vázquez y Manzano**
*Mestrando em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, Ouro Preto, MG. É bolsista
CAPES/Reuni. Licenciado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Natal, RN.
** Professora Doutora de História da Arte no Centro Audiovisual (CAV) de São Bernardo do Campo, São Bernardo do
Campo, SP.
Resumo
O termo “pós-modernidade” é considerado problemático no intuito de abarcar a produção hodierna. Talvez
sua fragilidade conceitual, marcadora de um tempo seja justamente o que poderia se aplicar à obra de arte pós-moderna. Além disso, ela exige uma retomada contextual, o que convida, de certa forma, a arte a posicionar-se
no tempo e voltar-se ao passado. Contudo, esse retorno é feito de maneira especial: paródia, ironia, cópia. Assim,
mais do que definir um conceito para a arte, tentou-se elencar algumas problemáticas concernentes ao seu âmbito,
que fazem jus ao chamamento pós-moderno que a diferencia (e ao mesmo tempo rememora) as artes inspiratórias.
Palavras-Chave: arte, pós-moderno, contemporâneo, obra de arte, paródia.
Abstract
The term “postmodernism” is considered problematic in order to cater to nowadays’ production. Perhaps its
fragility conceptual, marker of time is something that can be applied to the work of postmodern art. Moreover, it
requires a contextual resumption, which invites somehow, the art to position itself in time and go back to the past.
However, this return is made in a special way: parody, irony, copy. Thus, rather than defining a concept for art, we
tried to list some issues concerning to its scope, which entitled to call postmodern that differentiates (while recalls)
the arts inspiratory.
Keywords: art, postmodern, contemporary, artwork, parody..
W
alter Benjamin, com as suas “Teses sobre o conceito de História” de 1940, coloca em questão o modo como a história é contada, além de, ao longo de sua obra, colocar a obra de
arte como um ponto de pensamento do seu tempo, exigindo para tanto um posicionamento
quanto ao seu estado, preferindo uma “politização da estética” em vez da autonomia da arte
pela arte. A arte contemporânea parece responder a esse chamamento, na medida em que, volta seu olhar
para o passado e passa a ter um olhar crítico.
Partindo de sua teoria, tentou-se pensar a arte contemporânea à partir da possibilidade de resposta
a esse pensamento peculiar. O resultado foi uma leitura em que a história apresenta-se como preocupação, mas sabendo-se sua impossibilidade de retorno pleno. Assim, não se busca uma nostalgia, mas uma
postura crítica para refletir o posicionamento da arte que se produz hodiernamente, principalmente, em
virtude de uma ausência de “senso geográfico” da arte, em que não se sabe em que lugar ela se encontra
no espaço, como será possível reconhecer na definição de Zygmunt Bauman.
O conceito de “pós-modernidade” aceito aqui, mostra, todavia, uma certa fragilidade, o que é
debatido por alguns (como exemplo Lipovetsky, Danto e Cauquelin) e defendido por outros (Bauman,
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Jameson e Hutcheon). Essa fragilidade mais do que prejudicar a arte, parece revelar mais sobre sua própria
condição atual, na medida em que coloca, constantemente, em discussão a sua validade. Esse debate que surge
em torno, através e além do termo já demonstra a possibilidade de se pensar a arte pós-moderna, produzida na
contemporaneidade, como algo que diverge e ao mesmo tempo interage com toda a produção passada.
Esse trabalho é parte da monografia de conclusão de curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, contudo, serve como uma forma de pensar e entender a
arte à partir das discussões que giram em torno de si. Não há a intenção de se esgotar o debate, mas de elencar
algumas problemáticas que integram o discurso pós-moderno, mostrando mais a necessidade de pensa-la consoante com o contexto e integrada interdisciplinarmente a outros campos de saberes.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 Contexto Contemporâneo
A arte modernista foi marcada pela ruptura com seu passado, pelo desejo de abandonar a tradição
canônica, devido, sobretudo, a Primeira Grande Guerra. Num misto de tragédia e espera pela redenção, chegou a Segunda Grande Guerra, confirmando os agouros sentidos. Walter Benjamin demonstrou melancolicamente e acertadamente o resultado de uma sociedade que se desenvolvia no mito do progresso, na aliança do
investigador histórico que se unia aos vencedores para escrever a história, criando a noção ilusória, porém
ideologicamente da evolução da raça humana. Todo o mal estar da modernidade com seus resquícios de guerra culminaram no período a que foi atribuído o nome de pós-modernidade. Esse termo ainda é controverso.
Enquanto Gilles Lipovetsky (2004) acredita vivermos o período do exacerbamento (hiperbólico) da modernidade, denominando-o de Hipermodernidade: “[h]ipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo,
hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper?” (LIPOVETSKY, 2004, p.53). Seu
conceito para essa forma da sociedade contemporânea advém da ideia de que
[...] longe de decretar o óbito da modernidade, assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado,
na mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental até a ‘morte’ desta,
numa individualização galopante (idem).
Ainda há a problemática abordada por Danto (2006, p. 15) em que a melhor caracterização para esse período seria a de pós-histórica, porque o “[...] período se define pela falta de uma unidade estilística, ou pelo
menos do tipo de unidade estilística que pode ser alçada à condição de critério e utilizada como base para o
desenvolvimento de uma capacidade de reconhecimento [...]”. A questão problemática de tais concepções
reside na tentativa de a primeira manter uma “evolução” do modernismo, que o próprio Danto ressalta pela
impossibilidade de haver uma continuidade, intenção que é nítida na tentativa de empregar o seu termo; no segundo devido a uma ruptura brusca com a história, que nos parece ser uma grande preocupação desse período
que denominaremos como pós-modernismo.
O que percebemos e acreditamos ser condizente com as posições de Fredric Jameson (2006), Linda Hutcheon (1991), David Harvey (2010) e Zygmunt Bauman (1998) é a de que a pós-modernidade extrapola o âmbito
da contiguidade do moderno e a ruptura com a História. A partir desse eixo, a pós-modernidade poderá ser
(provisoriamente) denominada como o esfacelamento do projeto da modernidade, ou seja, o seu esgotamento
tem origem na própria falácia conceitual do binômio que o engendra: razão/racionalismo = progresso. Primeiro, refuta-se aqui a ideia de Hipermodernidade, porque exigiria o pensamento da possibilidade de vanguarda
(ou seria uma hipervanguarda?). Segundo Bauman (1998, p. 121), a vanguarda (Avant-garde ) só é possível
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“[n]um mundo em que se pode falar [...] ‘para a frente’ e ‘para atrás’” e que por isso, tem “[...] dimensões espaciais e temporais”. Talvez resida aí a intenção de Danto: definir um conceito para um período que não se sabe o
que está a “frente” e o que está “atrás”. Se não se é mais capaz de definir espacialmente e temporalmente esse
período, também não seria possível falar em hipermodernidade – pois uma de suas principais características,
a vanguarda, não encontra sustentação conceitual. Jameson (2006), Harvey (2010) e Bauman (1998) fazem a
mesma referência ao fato de que a pós-modernidade é sincrônica e não diacrônica. Sendo assim, tudo parece
acontecer simultaneamente, num presente perpétuo.
Por que não abordar tão simplesmente esse período como contemporaneidade? Nesse caso, concordamos
com Danto (2006, p.14) quando este afirma que existe “[...] a relativa fraqueza do termo ‘contemporâneo’
como passível de comunicar um estilo”. Um estilo que é característico, ou melhor, preocupação do modernismo. A pós-modernidade apresenta ao mesmo tempo a sua aceitação de que surgiram de preocupações modernas, sem, claras, consequências previstas, como também de certa ruptura com ela, ao se voltar para o passado
que tanto a modernidade negava e necessitava constantemente negar. O “[...] período dos manifestos” como
aborda Danto (2006) é característica da modernidade, pela necessidade não somente de buscar o novo, mas
antes de tudo, negar o passado. Portanto, ao utilizar o termo pós-moderno ou pós-modernismos (no plural)
pretendemos dar conta desses fragmentos que incorporam o próprio pós-moderno: a de que não se pode recusar a influência e “ajuda” dos movimentos modernos para a concepção da pós-modernidade, como também
não se pode recusar a “morte” da história como parte desse processo. Hutcheon (1991, p. 20) denomina o pós-moderno como “[...] a presença do passado”. Partimos então, da definição de pós-moderno da autora como
eixo conceitual da pesquisa aqui desenvolvida:
[...] o pós-modernismo é um empreendimento fundamentalmente contraditório: ao mesmo tempo, suas formas de
arte (e sua teoria) usam e abusam, estabelecem e depois desestabilizam a convenção de maneira paródica, apontando
autoconscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a elas são inerentes, e, é claro, para sua
reinterpretação crítica ou irônica em relação à arte do passado (ibidem, p. 43).
Ou seja, há uma postura eminentemente crítica no processo da concepção pós-moderna, seja da arte ou da
teoria, envolvendo um processo paródico. Essa maneira paródica é muito importante para a compreensão da
pós-modernidade nos termos de Hutcheon (1991) – ao qual retornaremos futuramente. A contradição, outra
das características do pós-moderno, faz com que se absorvam num mesmo sistema (econômico, social, político, artístico, filosófico etc.) posturas contraditórias ou se construam pensamentos a partir dessa contradição,
pois:
[a] contradição é típica da teoria pós-modernista. A descentralização de nossas categorias de pensamento sempre
depende dos centros que contesta, por sua própria definição [...]. Os adjetivos podem variar: híbrido, heterogêneo,
descontinuo, antitotalizante, incerto (ibidem, p.87).
É o pensamento dialético existente e reforçado nesse período. Ou seja, ao mesmo tempo em que “[...] o
pós-modernismo contesta alguns aspectos do dogma modernista: seu conceito sobre a autonomia da arte e
a deliberada separação entre arte e vida” também “[n]um nível formal, considera-se que o modernismo e o
pós-modernismo compartilham a auto-reflexividade, a fragmentação e uma preocupação com a história[...]”
(ibidem, p.p. 67-77).
Para tentarmos compreender a possível diferença entre a modernidade e a pós-modernidade, é preciso con
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ceituar essa modernidade. Segundo BERMAN (apud HARVEY, 2010, p.21), a modernidade é “[...] encontrar-se num ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação [...] ao mesmo
tempo, que ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”. Dessa forma, existia a “[...] sensação avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudança caótica” (HARVEY, 2010, p.21).
Ao contrário dessa sensação que, parece, gerava desespero, a pós-modernidade vive essa fragmentação, essa
efemeridade e essas mudanças caóticas. Leonard B. Meyer (apud BAUMAN, 1998, p. 122) sugere que essas
mudanças constantes e caóticas são, justamente, o que provocam uma “[...] constância”, “[...] uma espécie de
móvel estagnação” e ainda, acrescenta: “[...] toda unidade isolada está em movimento, mas há pouca lógica
nesse mover-se [...]”. Porque, esse “mover-se” acontece nas microestruturas, num plano político, econômico e
cultural definido e localizado. Além disso, a abertura dos campos (social, político e cultural) a outras vozes – os
excluídos – possibilita a preocupação com esses grupos, não mais com uma macroestrutura, que visa modificar
o mundo humano. Ou seja, “[...] a ‘micropolítica’, [...] corresponde à emergência de uma grande variedade de
práticas políticas de pequenos grupos, sem base em classe social, é um fenômeno profundamente pós-moderno
[...]” (JAMESON, 2006, p.322). Não há maior pretensão para a construção de um projeto político global
(HARVEY, 2010), mas em menor medida, a preocupação com grupos – étnicos, sexuais, religiosos, geográficos. Além disso, com a multiplicidade desses grupos aparecendo e a descentralização, com vias a, como nos
críticos do modernismo, evitar a totalização do conhecimento, eles adquirem maior importância e constituem
uma forma de luta antiestablishment: contra o capitalismo, contra a sociedade ocidental masculina e branca.
Conforme Hutcheon (1991, p.65):
[o] pós-modernismo questiona sistemas centralizados, totalizados, hierarquizados e fechados: questiona mas não
destrói. Ele reconhece a necessidade humana de estabelecer a ordem, e ao mesmo tempo observa que as ordens não
passam disso: elaborações humanas, e não entidades naturais ou preexistentes.
A concepção da própria cultura também sofre mudanças, por volta de meados do primeiro quarto do século XX, na passagem para o pós-modernismo. Enquanto Adorno e Horkheimer (2006) preocupavam-se em
tecer duras críticas à indústria cultural, denunciando a tentativa de criar uma massa de consumidores de seus
produtos mass media do sempre-igual, a pós-modernidade aceitou essa condição e a integrou a suas características. “[...] [N]a cultura pós-moderna, a própria ‘cultura’ se tornou um produto” (JAMESON, 2006, p.18).
Só que, como ainda assinala o autor “[...] a interação do cultural com o econômico não é uma rua de mão
única, mas uma contínua interação recíproca, um circuito de realimentação” (idem). Essa interação, que seria
repudiada por Adorno, ocorreu devido à perda da Aura, na concepção benjaminiana, que permitiu não mais
uma preocupação com o caráter único, uma distância próxima, da obra de arte. A reprodução passou a ser
integrante da arte, da cultura. Essa constatação põe em relevo o fato de não ser “[...] o poder da imagem ou
o poder arrebatador da voz que decide a ‘grandeza’ da criação, mas a eficiência das máquinas reprodutoras e
copiadoras” (BAUMAN, 1998, p.130). Há uma completa hibridização do antes que era denominado de alta
cultura e cultura de massa. Tanto que Jameson (2006), seguido por Harvey (2010), acusam a pós-modernidade
de ser superficial. Segundo Jameson (2006, p.35) existem diferenças significativas entre “[...] o momento do
alto modernismo e o do pós-modernismo”, entre o sapato de Van Gogh e os sapatos de Andy Wahrol, utilizado
como exemplo: “[a] primeira [...] o aparecimento de um novo tipo de achatamento ou de falta de profundidade,
um novo tipo de superficialidade no sentido mais literal, o que é talvez a mais importante característica formal
de todos os pós-modernismos”.
(JAMROZIAK apud BAUMAN, 1988, p.135). Ou ainda, conforme Matos (2010, p.231), recuperando a
crítica baudelairiana, “[...] não é a de ser interessada, mas simplesmente interessante – de onde desaparece a
preocupação platônica de qualquer ‘influência moral’”. Além disso, há uma abertura, em que a participação do
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indivíduo-espectador torna-se inerente à obra. E é nessa relação que poderia nascer o sentido de obra de arte
que pretendemos abordar.
2.2 Obra de arte na Contemporaneidade
Os pós-modernismos, antes de qualquer coisa, colocam em crise qualquer conceito. Isto faz com que aja a
constante necessidade de refletir sobre o que se faz e o próprio processo. Ainda mais a arte que se anima sobre
essa condição. Pós-moderno é um termo frágil, constantemente questionado quando a sua validade. Contudo,
pode ser essa fragilidade e a necessidade de revisá-lo, com o intuito de não recair em erros, que o faz ser um
termo adequado ao momento em que se vive. Com relação à obra de arte isso não é diferente. Sua própria
condição de obra (um termo também questionado revivendo cânones de beleza, ordem e equilíbrio que já não
constituem as principais preocupações dos artistas) e de arte (um âmbito que retira qualquer coisa de sua condição de coisa ou objeto e a transforma em arte) já é questionada. Tudo que se gera são conceitos temporários,
líquidos e frágeis sobre a arte ou a sua obra. Alguns tentam reconstruir os castelos de areia em meio ao mar, no
intuito desesperado de ter meios de criticar e entender a obra que se produz hodiernamente. Jameson (2006, p.
20-21) retoma a constatação da morte da arte hegeliana com o intuito de afirmar, tão somente, a morte da obra
de arte, “[...] e a chegada do texto”. Na intenção de situar o sujeito, em vez de procurar sua essência, a obra
de arte também adquire a função de contextualizar: o processo, o pensamento, o contexto do artista. Há uma
necessidade textual para a elaboração da obra de arte na contemporaneidade. Mas, não devemos, simplesmente
tornar a obra um texto, como Jameson (2006) afirma. Há uma tentativa de objetivação da própria conceituação
da obra de arte, com o intuito de apreendê-la. Reduzi-la a um texto, implica na possibilidade de pensá-la à
partir de técnicas semióticas de análise, reifica-la em um objeto acabado, esperando o ato da critica, também
textual. A relação seria mais fácil para analisar a obra de arte. Com isso, concordarmos com Adorno (2006,
p.77) que afirma: “[t]otalmente objectivada, a obra de arte, por força da sua pura legalidade, torna-se simples
factum e suprime-se assim como arte. A alternativa, que se abre na crise, é a seguinte: ou sair da arte, ou transformar o seu conceito”. Dessa forma, ela não é tão somente um texto, mas um “[...] fenômeno” (ibidem, p.
129), que pode adquirir, por força de seu contexto de situação do sujeito e da necessidade de revisão da própria
história, a forma de um texto, utilizando-se de seus elementos para se fazer. Assim, ter-se-ia uma textualização
com a finalidade de situar a obra de arte no seu contexto pós-moderno, com o intuito de não mais cometer os
mesmos erros do passado.
Contudo, deve-se entender a confusão e redução da obra de arte a um texto, pois tanto Jameson (2006),
como Hutcheon (1991), levam em consideração a necessidade da contextualização e da intertextualidade da
obra de arte na contemporaneidade. Assim assinala Jameson (2006, p.101):
[...] os objetos que antes eram ‘obras’ podem agora ser relidos como imensos conjuntos ou sistemas de
textos de vários tipos, superimpostos uns aos outros por meio das várias intertextualidades, sucessões de fragmentos ou, ainda mais uma vez, por puro processo (daqui por diante chamado de produção textual ou textualização). A obra de arte autônoma, desse modo – juntamente com o velho sujeito autônomo ou ego –, parece ter
desaparecido, ter-se volatilizado.
Ao ser necessário a intertextualidade e contextualização, para a apreensão da obra de arte, ela o faz de maneira integrada ao seu processo e não como o resultado textual. Como já abordamos, a obra de arte não é um
texto, ela se imiscui com o texto para se fazer arte, porque, mais do que textualizar-se, a obra procura desvelar
seu próprio processo, como parte de uma reflexão crítica sobre sua elaboração, com o intuito de se reconhecer
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como integrante de uma história (ou mesmo descortinar uma história), seus modos de produção, para não
recair na totalização, que tantos os autores aqui temem incorrer. Existe também outra característica que, na
necessidade de intertextualidade, pode confundir essa transformação em texto: a apropriação, a citação e a
paródia.
Uma das possibilidades do pós-modernismo, como já foi discutida, é sua intenção de retorno ao passado,
de modo crítico, revisando a história. Mas, como Hutcheon (1991) já abordou, não há a intenção de qualquer
recuperação desse passado, mas uma possibilidade de entender o próprio presente. Uma necessidade que o próprio Benjamin já havia expressado. Assim, esse retorno se dá de forma, muitas vezes, irônica. Hutcheon (1991)
e Eagleton (2005) dão importância a essa postura irônica como forma de perceber a pós-modernidade. Essa
atitude também está presente na obra de arte. É a ironia que possibilita o retorno ao passado, sem, no entanto,
esperar a utopia de viver o que já foi. A todo o momento, a ironia lembra esse retorno como um simples acesso
ao que já foi e não retorna mais. Hutcheon (1991, p.62) afirma que “[n]ão podemos deixar de perceber os discursos que precedem e contextualizam tudo aquilo que dizemos e fazemos, e é por meio da paródia irônica que
indicamos nossa percepção sobre esse fato inevitável”. A paródia serve como o espaço em que reconhecemos
a impossibilidade de recuperação do passado, mas ao mesmo tempo fazemos dessa impossibilidade a temática
da obra de arte, com o intuito de transcender a nossa cultura cultivando uma “[...] disposição mental irônica”
(EAGLETON, 2005, p. 138).
Para entender melhor isso, faz-se necessário conceituar o nosso entendimento dessa possibilidade para a
obra de arte, a paródia. Para isso, corroboramos com Hutcheon (1991, p.70) que afirma: a paródia “[...] tem a
declarada intenção de impedir que qualquer leitor ignore o contexto moderno e o contexto social, e também
estético [...] O passado é sempre colocado criticamente – e não nostalgicamente – em relação com o presente”.
Com a paródia, a obra de arte se permite a possibilidade de inserção de quaisquer elementos da história da
arte, sem, no entanto, ser nostálgico em relação ao passado. Além disso, num desencantamento com o próprio
mundo, a ironia e a paródia, ou cinismo como denomina Canton (2001, p. 107) torna-se uma forma de descrença. Ou seja, como afirma ainda a autora, “[...] estrutura-se conceitualmente como oposição resultante de uma
consciência de que é impossível aos artistas conciliar uma produção de acordo com as convenções culturais e
éticas vigentes e, ao mesmo tempo, atingir uma sinceridade”. Assim, fazemos uso de elementos de outras obras
de arte, para expressar e dizer o presente, subvertendo, muitas vezes, os próprios elementos e cânones dessas
obras. Por fim, é importante lembrar que:
[e]ssas ironias também impedem o antiquarismo: não existe valor no passado em si ou por si. É a reunião entre o
passado e o presente que tem a intenção de fazer-nos questionar – analisar, procurar compreender – a forma como
fazemos nossa cultura e a forma como atribuímos sentido a ela (HUTCHEON, 1991, p. 288).
É importante destacar que esse próprio ato de apropriar-se de outras obras, ou de seus elementos, sendo
paródico ou não, transformou, conceitualmente, a própria noção de obra de arte, inserindo novos elementos e
novas possibilidades para seu entendimento e elaboração. Ao mesmo tempo, lidamos com uma condição inerente à obra de arte do passado: a autoria e sua aura. Com o uso da paródia, a própria noção de originalidade
foi contestada. Porque, inicialmente, parodiar implica em um retorno a algo já realizado e subverter com o intuito de construir uma crítica ao presente. Olhar para o passado ironicamente a fim de compreender o presente.
Como ficaria nesse caso a questão de originalidade? Em vez de construir algo novo, de formar uma vanguarda
em busca do futuro, a obra de arte passa a refletir sobre o passado e seu próprio processo de produção. Como
já assinalamos, sem uma noção de para onde ir, em que a única certeza é sua ausência, não há possibilidade
de saber onde estão as pontas que seriam o início e o fim de qualquer coisa. O que seria ser original na pós-
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-modernidade? Sem essa necessidade, a obra de arte e seus artistas vislumbraram a possibilidade de libertação.
Dessa forma, Archer (2008, p. 156) esclarece:
[a] novidade não mais podia ser critério de julgamento pois a novidade ou a originalidade, como eram percebidas,
não podiam ser alcançadas, podendo até mesmo se mostrar fraudulentas. Tudo já havia sido feito; o que restava era
juntar fragmentos, combiná-los de maneiras significativas. Portanto, a cultura pós-moderna era de citações, vendo o
mundo como um simulacro.
Não havendo mais nenhuma necessidade de inovar, a obra de arte tornou-se um misto de citação, uma obra
que necessita de uma contextualização, de hipertextos, para se tornar compreensível. Além do apreço do pós-moderno pela “[...] impropriedade de uma arte que se realizava por meio do empréstimo” (idem), havia seu
apreço pela reprodução e pela hibridização do que antes era denominado de alta cultura e cultura de massa. A
reprodução passou a poder ser uma possibilidade de se pensar e elaborar a própria obra de arte. Já que Benjamin constatara a perda da aura, aquela distância na proximidade, um caráter único que lhe atribuía uma aura
de coisa única e digna de adoração foi abandonada pelos artistas na pós-modernidade. O cotidiano, o que está
próximo, o trivial da vida passaram a serem as temáticas. As microculturas, micropolíticas e todas as incertezas que cercam o pós-moderno tornaram-se as principais preocupações das temáticas das obras de arte. Nessa
hibridização, a obra passou também a se relacionar com o mercado, num misto de subversão e pactuação com
as condições de comércio. Jameson (2006, p.30), percebendo isso, constata “[...] a produção estética hoje está
integrada à produção das mercadorias em geral”. Aquilo a que Adorno e Horkheimer (1985) chamam a atenção, negativamente, sobre a integração da cultura como indústria, passa a ser participante da obra de arte que
se produz, porque, ela se relaciona cada vez mais com sua espetacularização e não somente com sua expressão.
Tão importante quanto ter algo a dizer é como dizer. Não se trata de questionar a realidade, nem de criar uma
realidade, mas do como e para que isso deve ser feito.
Realidade e originalidade parecem estar relacionadas ao fato de que ambas dependem de qualquer condição
que as estabeleça como verdade. A reprodução das imagens, sua espetacularização e, consequentemene, o
descolamento do significado, colocam em evidência a fragilidade de ambos os termos. Contudo, não se trata
somente de perceber a cópia como simulacro do real, mas antes como uma possibilidade de real, tratando-se
que ambas as realidades nada possuem de originalidade. Da mesma forma que a pós-modernidade permite
a convivência delas, sem que precisem se destruir, ambas existem como possibilidades críticas das demais.
A obra de arte participa e anima-se nessas possibilidades. Elabora a convivência de contrários e diferenças,
articula-os dialeticamente, mostrando-se, na sua articulação, o seu processo, para que se saiba da consciência
da obra em relacioná-los. Assim, “[...] nada é feito às escondidas” (ARCHER, 2008, p.190). A obra de arte se
propõe como possibilidade de um local de encontro que, “[...] age como iniciador e ponto central da subseqüente investigação do significado”. (ibidem, p. 236).
A iniciação se dá no próprio processo da obra de arte. É no processo de elaboração e, principalmente, no
seu registro que a obra de arte na contemporaneidade desvela-se, não se esconde e, muitas vezes, faz desse
processo a própria obra. Porque a história da obra pode ser mais importante que o resultado. Ela deve mais
propor questionamentos do que resoluções estéticas, possibilitar problemáticas mais que ditar valores de gosto.
Isso, porque, a obra de arte integra um sistema. Ela é parte de uma rede, conectada a outras redes que definem
esse sistema como o campo da obra de arte. Ao aceitar e integrar o mercado de consumo à obra de arte, a arte
também se mostrou como um mercado. Pois, não há o que esconder. A comunicação constante e em velocidade
torna essas redes, incluindo-se a obra de arte, num verdadeiro sistema infinito. Ao mesmo tempo em que percebemos a obra de arte como parte de uma constelação, de forma que ela não é única e não é original, ela parece
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ficações da rede, ela mesma torna-se um nó, promove a construção e, consequentemente, a continuação da
própria rede. Para melhor entendermos, recorremos a Cauquelin (s/a, p. 51) para definir o sentido de rede, com
o qual concordamos: “[...] a rede é um sistema de ligações multi-polares, ao qual pode ser ligado um número
não definido de entradas, podendo servir cada ponto da rede geral de saída para outras micro-redes. Isto quer
dizer que o conjunto é extensível”. Além de sua extensão ganhar proporções inimagináveis, ela também cria a
sensação de descentralização. Ao mesmo tempo em que integra uma rede, não se pode mais saber onde está o
centro dessa rede, de forma que tudo possibilita uma nova ramificação e se torna centro dessa ramificação. Daí
a importância crescente do “micro” – micropolítica, microeconomia, microcultura. As microestruturas ganham
força, mas também se desfazem de suas ligações com outras microestruturas, gerando a rede. Assim, o movimento é mais importante que esses microcentros. Cauquelin (s/a) denomina essa incapacidade de sair da rede
e ao mesmo tempo criar as ramificações de anelação. A obra de arte que perdeu sua aura, sua originalidade e
as funções que essas coisas possuíam, não foi somente por que permitiu possibilidades de experimentação por
parte dos artistas e preocupações com outras questões do que a necessidade de originalidade, mas foi por que
se percebeu como parte do mercado. Negar sua condição de produto de um mercado era condição para que ele
mais se mantivesse como mercado. Assim nos diz a autora:
[...] não só já não se pode sair da rede, uma vez que se está ramificado (há uma memória de rede), como ainda, uma
vez que não há orientação principal mas uma infinidade de pontos e de nós, cada entrada é ela própria o seu começo
e o seu fim. Cada parte da rede é virtualmente a rede total. A circularidade, cujo princípio é a reversibilidade sempre
possível, conduz então ao que podemos chamar de tautologia (ibidem, p. 52).
É importante ressaltar alguns pontos da afirmação da autora. Quando, no caso da obra de arte, uma pode ser
virtualmente a rede total, Cauquelin (s/a) não só constata a impossibilidade de um retorno da obra a qualquer
um de seus cânones anteriores, como articula toda a obra num plano geral. Ou seja, ela adquire sentido devido
ao todo, mas ainda mantém algo de específico em si. A nominação tem essa função, conforme a autora. É ele
que adquire a função de criar a diferença na obra de arte, para que ela não se dissolva no todo, que também
representa: “[o] nome cria uma diferença, marca um objeto sobre a rede indiferenciada das comunicações”
(ibidem, p.53). Mas ao mesmo tempo, somente a nominação não destrói a participação da rede. Aqui, poderemos recuperar o conceito de constelação, que tanto Benjamin quanto Adorno tentaram construir como um
sistema filosófico: “[...] A constelação salvaguarda a particularidade mas rompe com a identidade, explodindo
o objeto num leque de elementos conflitivos e assim liberando a sua materialidade à custa da permanência da
identidade” (EAGLETON, 1993, p.240). A obra de arte nesse sentido, com a nominação, tenta manter a particularidade de seus elementos, mas ao mesmo tempo configura-se como parte da rede e representação desta.
Contudo, a problemática que se cria à partir dessa virtualidade da obra ser a rede cria a sensação de tautologia.
A sensação de que não se sai do lugar, de que se perdeu o rumo e de que as coisas se repetem, como numa
constante maldição, promove um mal estar com relação à arte que se produz. Ao mesmo tempo em que há uma
maior aproximação filosófica com a obra de arte, essa aproximação se faz pelo sentimento de que a arte pode
estar duvidando de si, necessitando de algo que a afirme, mas ao mesmo tempo essa aproximação não é suficiente. Cauquelin (s/a, p.62) afirma: “[d]ito de outro modo, a arte (as obras) têm ainda alguma realidade nelas
próprias, vindas das suas próprias qualidades e podendo ser julgadas como tais – uma espécie de autonomia
– ou são então tributárias da imagem que a comunicação pode fazer circular?”.
Dessa forma, a sensação de tautologia poderia estar conectada com certa necessidade da obra em construir
uma imagem em torno de si, espetacularizar-se, para se tornar parte do mercado ou da rede e ao mesmo tempo
construir uma nominação que a diferencie. Ou ainda, como conclama Adorno (2006, p. 154) as obras de arte
22
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 15-25, 2013.
“[...] abandonam-se mimeticamente à reificação, ao seu princípio de morte”. Isso se aplicava à obra moderna.
No caso das obras de arte na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que o fazem, abandonam-se, carregam
consigo a reificação à própria morte. Ao tomar o próprio produto industrial, integrá-lo ou, muitas vezes, tê-lo
como a obra, faz com que haja uma objetivação por arrancá-lo à “[...] imediatidade da sua vida” (idem). O
crédito da morte se dá na possibilidade de questionar-se e ver o processo da obra. Ao se “abrir” para o mundo,
a obra desvela sua “fabricação”, desde o pensamento, as anelações e o resultado: o que se chamaria de obra
de arte.
Com isso, além de libertar a obra de qualquer intenção mística, colocando-a no mundo como possibilidade
de experiência humana e meio de conhecimento, a obra abandona-se também à história, pois, torna-se essencial conhecer as estruturas e superestruturas que a conceberam. Ao desvelar seu processo, a obra integra a
história como um importante fator em sua construção, já que ela adquire significado num conjunto histórico
que a permita. Assim, “[a] história é imanente às obras, não é nenhum destino exterior, nenhuma avaliação flutuante [...]” (ADORNO, 2006, p.217). O modernismo, em cada manifesto e movimento, tentava romper com o
passado, ou seja, com a história e dar um novo caminho e sentido à arte. Contudo, na pós-modernidade, essas
questões da história e do passado tornaram-se fatores importantes no próprio pensamento da obra. Não é tão
importante encontrar a essência do ser humano, que já é considerado fragmentado, mas ao situá-lo – pois não
há um ser para que se possa estabelecer alguma essência – há uma concentração na história. Tendo a história
como uma das mais importantes fontes e meios de se pensar e criar a obra de arte na contemporaneidade, outro
fator, anteriormente desconsiderado e/ou desprestigiado, aparece à obra como uma das preocupações: a memória. Como nos confirma Canton (2009d, p. 21), “[a] memória [...] tornou-se uma das grandes molduras da
produção artística contemporânea [...]”. Além disso, também já reconhece em Benjamin ecos da importância
de se pensar a contextualização da obra e, consequentemente, a importância da memória. (ibidem, p. 27-28).
A memória é recuperada após um período de negação de sua presença, de tentativas de rupturas. Em vez de
ser um elemento da cultura e do ser humano que deveria ser abolido dessa mesma cultura e da essência desse
ser, para que se possibilitasse o novo, a memória recupera a importância de fonte de aprendizagem, partilha e,
principalmente, retorno ao passado, através de sua lembrança. A importância disso está no fato de se constatar
que, em vez de liberdade, almejada pelo homem moderno quando tentou abolir as suas memórias, juntamente
com suas experiências, foi que ele se tornou mais aprisionado. Ou seja, “[é] a perda da memória, e não o culto
à memória, que nos fará prisioneiros do passado” (PORTOGHESI apud HUTCHEON, 1991, p.52).
Márcio Seligmann-Silva (no prelo, p. 2), aborda três formas (anedotas) para se compreender a memória:
“[...] louvor aos grandes feitos, [...] culto dos mortos e, [...] desejo de poder selecionar o que queremos nos
lembrar e, portanto, também de poder determinar de quais dados preferiríamos nos esquecer”. O primeiro é
composto pelos monumentos conhecidos que são homenagens a indivíduos famosos da história. O segundo
está relacionado com o sentimento de “[...] piedade [...]” (idem), como descreve o autor e o último é associado às produções mais atuais, que se realizariam através dos antimonumentos. Na terceira situação que geram
os antimonumentos, a memória e o passado são problemáticas que interferem na nossa vida, integram nosso
contexto porque participam de nossa identidade, na medida em que “[...] aparece a imagem de um passado
que não é mero conjunto de fatos que podem ser guardados [...]” (ibidem, p. 3). Contudo, em vez de se ter
uma comemoração, característica do monumento, tem-se a admoestação, a lembrança fúnebre, daqueles que
sofreram, como exemplo Auschwitz, e que precisam ser lembrados. Esses antimonumentos estariam ligados
não mais à perpetuação da memória, mas estariam aliados à sua precariedade e efemeridade, dando-se preferência a “[...] matérias e rituais mais efêmeros, apostando justamente na força das palavras e dos gestos, mais
do que no poder das representações bélicas [...] ou triunfais [...]” (ibidem, p. 6). Assim, antimonumento pode
ser conceituado como:
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O antimonumento se desenvolve, portanto, em uma era de catástrofes e também de teorização do trauma,
com a psicanálise. Ele corresponde a um desejo de recordar de modo ativo o passado (doloroso), mas também
leva em conta as dificuldades do “trabalho de luto”. Mais ainda, o antimonumento, que normalmente nasce do
desejo de lembrar situações limite, leva em si um duplo mandamento: ele quer recordar, mas sabe tanto que é
impossível uma memória total do fato, como também o quanto é dolorosa essa recordação. Essa consciência
do ser precário da recordação manifesta-se na precariedade tanto dos antimonumentos, como dos testemunhos
dessas catástrofes. Estamos falando de obras que trazem em si um misto de memória e de esquecimento, de
trabalho de recordação e resistência (idem).
Na medida em que a memória passa a ser necessária, os indivíduos possibilitam-se o contato com questões
que talvez não desejem lembrar, mas esquecer. Mas ao mesmo tempo em que há a disputa dialética entre
lembrar e esquecer, a dor e a importância de lembrar-se dessa dor, é que se podem criar condições críticas de
analisar o passado, não se desviando o olhar do obscuro desse processo. É trazendo a céu aberto essas feridas
do passado, que elas poderão oxigenar-se e cicatrizarem. Contudo, sabendo-se que além de todo o doloroso
processo, a marca permanecerá lá como única, e talvez principal, indício da obra, do processo – uma fonte de
lembrança. Assim, na pós-modernidade vive-se o vintage, porque somente através da memória e do resgate
dos destroços do passado é que o ser humano e a arte poderão pensar em ir para algum lugar ou lugar nenhum.
Além disso, a obra de arte tem a possibilidade de pensar-se como objeto de memória, lugar de recuperação da
memória, lembrança e constituição de rupturas dolorosas para a possibilidade de lembrar.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao contrário da modernidade, a pós-modernidade enfrenta um conflito conceitual, na medida em que há
uma série de tentativas para definir esse período, que ora parece estar em continuidade (Lipovetsky), ora parece
ser uma ruptura, uma espécie de virada no tempo (Danto). Todavia, parece que ambos enfrentam-se, permanecem em conflito, abarcando as duas possibilidade e tantas outras. A fragilidade da “pós-modernidade”, por um
lado, ressalta a arte como acontecimento microestruturado em muitas possibilidades, na lógica da soma “e” e
não mais da exclusão “ou”. Ao reivindicar um lugar da arte, ela está em acordo com a modernidade, mas ao
mesmo tempo refaz os caminhos para o passado, de modo paródico como bem salienta Hutcheon, com o intuito de construir ligações, sejam irônica (corroendo as problemáticas consideradas resolvidas) ou rememorando
(os antimonumentos de Seligmann-Silva), arte que se desenvolve na contemporaneidade é uma mixórdia de
elementos, o reconhecimento do movimento constelar, de difusão e reunião para possibilitar lugares, antes exclusos, a tantas vozes e vertentes quantas existam no período, fragilmente, denominado pós-moderno. O corpo
entra em cena e com ele a importância da memória, seja como possibilidade de reconhecimento do processo
da obra, seja como temática da obra de arte.
A arte pós-moderna também responde à descentralização. A multiplicidade de entendimentos, de construções teóricas, que paradoxalmente a fragiliza – no sentido de que não há mais uma verdade-guia – cria uma espécie de mal estar, porque há certa efemeridade conceitual, ou a impossibilidade que ora se percebe de abarcar
a obra com um conceito. O movimento proporciona essa descentralização (pense-se na rede proposta por Cauquelin), ao mesmo tempo em que questiona a noção centro-periferia, que antes predominava na modernidade.
Isso exige cada vez mais do crítico, filósofo, historiador e do próprio artista, a percepção do movimento para
sua inserção, respondendo às necessidades da corrente ao qual se filia, proporcionando inclusive a “escovada
a contrapelo”, que tanto desejava Benjamin.
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DANTO, Arthur C. Após o fim da Arte: A arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Odysseus
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DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. 1 reimp. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
EAGLETON, Terry. A idéia de Cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2002.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
LIPOVETSKY, Gilles. Os Tempos Hipermodernos. 4 reimp. São Paulo: Barcarolla, 2004.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA. Minientrevista. [mensagem pessoal] Mensagem pessoal por em 23 set
2011.
Recebido em 28 de Maio de 2013.
Aprovado para publicação em 12 de Setembro de 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 15-25, 2013.
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Impressionismo: Paris e a Modernidade
Notas sobre a mostra no CCBB
Impressionism: Paris and Modernity - Notes on shows in CCBB
Marcos José Mantoan
Formado em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, PUCCAMP, Campinas,
SP, e mestre em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP. Doutorando em
Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Atualmente
é gerente geral do Centro Cultural Banco do Brasil. Tem experiência na área de Comunicação, Artes, História
da Arte, Teoria da Arte.
Resumo
Em 1995, a mostra The Gates of Hell, pelo escultor francês Auguste Rodin, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, atraiu cerca
de 180 mil visitantes durante os 38 dias de exposição. Considerado um fenômeno público, no momento, o show se tornou um
marco na história dos grandes eventos na cidade de São Paulo. Isto evidenciou a possibilidade de maior desenvolvimento de
projetos, criação e recuperação de instituições culturais, através de exposições temáticas internacionais, envolvendo mudanças
profundas nos grandes centros urbanos em todo o mundo: como São Paulo, e exigindo novas estratégias para a imersão da arte
na cidade. Na verdade, o show marcou o processo de aproximação do público em geral com instituições culturais.
Édouard Manet, O tocador de pífano, (detalhe – capa de catálogo e cartazes da mostra)
As grandes filas que têm se formado para visitar algumas exposições recentes, como a de Caravaggio, a dos pintores impressionistas, demonstram
que boas iniciativas, desde que bem organizadas, empolgam e atraem os
brasileiros de todas camadas sociais, que dão Vida e relevância ao museus.
(Pronunciamento de Dilma Russeff, durante a posse da Ministra da Cultura,
Marta Suplicy, em 13 de setembro de 2012).
Palavras-Chave: mostra de arte, exposição, eventos, modernidade, impressionismo
Abstract
In 1995, the show The Gates of Hell, by the French sculptor Auguste Rodin, at the Pinacoteca from the State of Sao Paulo, attracted nearly 180,000 visitors during the 38 days of exposure. Considered a public phenomenon at the time, the show became a
landmark in the history of the great events in the city of São Paulo - this evidenced the possibility of major project development,
creation and retrieval of cultural institutions through thematic international exhibitions, involving profound changes in large
urban centers worldwide such as Sao Paulo, and requiring new strategies for immersion of art in the city. In fact, the show
marked the approximation process of the general public with cultural institutions.
Keywords: show of art, exposition, events, modernity, impressionism
26
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 26-38, 2013.
Introdução
A
s grandes filas que têm se formado para visitar algumas exposições recentes, como a de Caravaggio, a dos pintores impressionistas, demonstram que boas iniciativas, desde que bem
organizadas, empolgam e atraem os brasileiros de todas camadas sociais, que dão Vida e
relevância ao museus. (Pronunciamento de Dilma Russeff, durante a posse da Ministra da
Cultura, Marta Suplicy, em 13 de setembro de 2012).
Em 1995, a mostra A Porta do Inferno, do escultor francês Auguste Rodin, na Pinacoteca do Estado
de São Paulo, atraiu cerca de 180 mil visitantes durante os 38 dias da exposição. Considerada um fenômeno de público à época, a mostra de tornou um marco na história dos grandes eventos na cidade de São
Paulo – constatava-se ali a evidência de grandes projetos de desenvolvimento, criação e recuperação de
instituições culturais, através de exposições temáticas de itinerância internacional, envolvendo profundas
mudanças em grandes centros urbanos mundiais, tais como São Paulo, e exigindo novas estratégias para
a imersão da arte na cidade. De fato, a mostra assinalou o processo de aproximação do grande público
com as instituições culturais.
Depois de Rodin na Pinacoteca, seguiu-se a exposição Monet – O Mestre do Impressionismo, reali
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
27
zada no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 1997. A mostra trouxe vinte e três telas do pintor francês,
sendo que 21 delas pertenciam ao Museu Martomottan-Monet e duas outras restantes pertenciam ao Acervo do
MASP. No mesmo ano, o MASP, trouxe obras do mestre renascentista Michelangelo, na mostra Michelangelo
na História da Arte Italiana. Era a primeira vez que obras deste artista eram expostas ao grande público no Hemisfério Sul. Naquele ano, o MASP teve um fluxo de público que girou em torno dos 850 mil visitantes. Outros
casos de grandes exposições podem ser citados de lá para cá, tais como, Pablo Picasso e Leonardo Da Vinci,
mostras realizadas na Oca, no Parque Ibirapuera, em 2004 e 2007 respectivamente. E até mesmo Caravaggio
e seus seguidores, realizada no MASP, em 2012.
É inegável que essas mostras agitaram a cidade e levaram milhares de visitantes aos museus e centros culturais. Estas instituições, por sua vez, reformularam seus próprios conceitos e instrumentalizaram a arte para
a educação de um grande público, proporcionando experiências e ligações afetuosas entre público e arte. Nas
conexões entre cidade, público e instituição cultural, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) sempre multiplicou esforços para atuar no espaço ao seu redor, proporcionando uma grade de eventos interdisciplinar e de
interação com seu público.
Quando o CCBB é criado, em 2001, no centro da cidade, São Paulo está incorporada ao circuito das grandes
mostras de forma decisiva. À época, a população do entorno é vista como “público natural”, ou seja, visitantes
que iriam ao centro cultural espontaneamente. As pesquisas para implantação do centro cultural apontavam
que este público era composto predominante pelas classes mais populares e desprovidas de acesso a produtos
culturais. No mesmo ambiente, as classes mais abastadas não dispunham de ofertas culturais próximas aos
seus locais de trabalho (RELATÓRIO PERFIL DA PROGRAMAÇÃO CENTRO CULTURAL BANCO DO
BRASIL SÃO PAULO, 2000). A perspectiva de se ter uma programação interdisciplinar (artes, música, teatro,
cinema e outras ações) era considerada como fator positivo. As diversas áreas despertariam um tipo de público
motivado por interesses profissionais ou específicos e, ainda, atrairia aos jovens que não levariam em consideração obstáculos a acessibilidade e a distância (IDEM).
Para os seus organizadores, desde os primeiros momentos de implantação, o grande desafio do novo centro
cultural estava em trazer de volta pessoas que deixaram de frequentar o centro e seduzir os jovens que ainda
não o conheceriam. As atividades definiram o volume e o perfil do público e, sobretudo, as opiniões dos envolvidos com a formação do novo espaço – a opinião geral concentrava-se na defesa de que uma programação
consistente e permanente formaria o público (IDEM).
Quanto à adoção de eixos temáticos, para alguns dos idealizadores do CCBB era imprescindível a existência
de ações segmentadas para que se atingisse uma profundidade no trabalho, evitando-se a “política de eventos”,
na qual não se acumularia experiência. Para outros, a diversidade do público exigiria uma ação mais abrangente (IDEM). Porém, o que daria unicidade a programação era o atributo de oferecer um espaço onde as pessoas
poderiam viver experiências enriquecedoras e únicas, nas quais seriam estimuladas ao autoconhecimento e à
ampliação da percepção de mundo. A programação e o espaço do CCBB, desde o seu início, teve como missão
ser um contraponto ao ambiente caótico e à cultura de massa (IDEM) Essa opção veiculou-se à imagem do
Banco do Brasil, visto como um incentivador diferenciado da cultura, em oposição a outros bancos ou empresas que investem na área interessados principalmente na arte como espetáculo comercial. Nesse sentido, as
principais linhas de ação para a programação do CCBB fixaram-se “em educar, formar público e sensibilizar
plateias através de programas de médio e longo prazo, concebidos dentro de um projeto de arte-educação feito
especialmente para o local” (IDEM).
A programação inicial do CCBB foi decorrente de um longo debate sobre o emprego de um “rumo curatorial
definido” versus “mostras diversificadas”. A imersão no centro da cidade com um público tão heterogêneo não
permitiu fechar a programação em um nicho específico. A opção concentrou-se em trabalhar com o histórico
e o contemporâneo, conciliando-os na grade de eventos. Hoje, a curadoria profissional é valorizada, uma vez
que sua existência garante a conexidade entre os eventos e o público, assim como as parcerias com reconheci-
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dos museus e centros internacionais. Nessa direção em outubro de 2011, o CCBB recebeu o convite do Museu
d’Orsay para ser parceiro e trazer ao Brasil uma exposição sobre os impressionistas.
Naquele momento, iniciavam-se as ações para se abrigar essa mostra nas sedes do CCBB na cidade do Rio
de Janeiro e em São Paulo. Uma mostra sobre os impressionistas e tendo como parceiro uma das instituições
mais significativas nesse âmbito consistia em oportunidade relevante para o cenário cultural nacional. O Museu d’Orsay, localizado em Paris, conta com o maior acervo de pinturas impressionistas do mundo. Inaugurado
em 1986, o museu ocupa o edifício da antiga estação ferroviária Gare D’Orsay, construído para a Exposição
Universal, em 1900. A integração do museu com a cidade de Paris é destacada por AJZENBERG (2013):
Entre as obras do fantástico acervo, as motivações reflexiva e estética, o visitante tem acentuações de uma visão
externa ao museu, como uma magnífica vista sobre o Sena e as Tulherias, disponível no terraço lateral. Ressaltam-se as
motivações divididas entre a parte interna que o museu oferece e as conexões externas da cidade ao redor.
Vistas Externa e Interna do Museu d’Orsay, Paris (França).
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
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Atualmente, o Museu d’Orsay é considerado um dos principais museus do mundo – uma referência em museologia que recebe mais de 3 milhões. Essa estimativa de público demonstra a empatia do público visitante
ao movimento impressionista – um dos mais marcantes da História da Arte. Entre o público brasileiro, a força
do impressionismo já teria sido comprovada na mostra Monet – O Mestre do Impressionismo, realizada em
1997, no MASP. O Impressionismo representou uma das vertentes mais revolucionárias na História da Arte
Ocidental. Manifestação estética ocorrida, principalmente, entre os anos de 1874 e 1886, o Impressionismo
atribuiu gramática visual ao estudo da cor – isto representou uma inovação plástica marcada pela pesquisa e
pela tradução da transparência e da luminosidade (GOMBRICH, 1998).
Claude Monet, A estação Saint-Lazare” (“La gare Saint-Lazare”), 1877, Museu d’Orsay, Paris (França)
Claude Monet, A estação Saint-Lazare” (“La gare Saint-Lazare”), 1877, Museu d’Orsay, Paris (França).
A decisão de trabalhar ao livre, ou seja, diante do próprio tema, somada ao desejo de imprimir à obra as
sensações do artista, integraram a temporalidade à pintura. É possível estender esse conceito para tudo o que é
mutável: céus, águas, folhagens. Ou, ainda, tudo o que transforma a natureza e a cores, entre esses elementos:
luz, clima, hora e estações (verão, outono, inverno, primavera). Nesse sentido, tudo o que era transitório – tal
como neve, neblina, aurora e crepúsculo – tornou-se a motivação dos pintores impressionistas. Esse novo procedimento estético implicou na renuncia da definição dos contornos. Não se pode esquecer que a pintura ao ar
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livre não permitia uma longa elaboração semelhante ao trabalho pictórico nos ateliês que poderia durar meses
e, mesmo anos, para o término.
Claude Monet, Madame Monet e seu filho, 1875. Museu d’Orsay, Paris (França)
Os artistas impressionistas também optaram por excluir de suas paletas cores, tais como: o preto, os “terras”, os cinzas e o branco puro. A preferência dos pintores estava voltada às “vibrações coloridas”, através da
justaposição de pinceladas cada vez mais fragmentadas de cores primárias e complementares. Note-se que a
mistura das cores não se dava na paleta, mas decorria de uma sensação óptica que tendia a diluir as formas.
A princípio essa nova proposta artísticas não agradava à crítica e ao público que se interessava por arte.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
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Tanto que na exposição de 1874, em razão da tela Impressão: sol nascente, de Monet, o crítico francês Louis
Leroy denominou de forma sarcástica de “impressionistas” para o grupo de artistas que realizava obra semelhante (IDEM). O movimento impressionista reduzia-se a um ínfimo número reduzido de artistas e intelectuais
que encontraram nos jovens pintores, tais como Manet, Monet, Coubert, Renoir e Degas, a ruptura com um
passado acadêmico e conservador. Embora, deva-se mencionar que Manet, por exemplo, sempre permaneceu
adotando, em seus trabalhos, tons mais escuros e, Degas continuou a trabalhar no ateliê. O que unia esses
artistas aos aspectos impressionistas era a possibilidade da ação pictórica livre e criativa. Esse desejo é facilmente compreendido quando se recorda o período Acadêmico, no qual o artista constantemente estava preso
aos ateliês dos grandes mestres da pintura neoclássica, obedecendo aos princípios estéticos rígidos na busca da
perfeição. Para os artistas acadêmicos, o sinônimo de “belo” na arte concentrava-se na capacidade de imitação
e reprodução das convenções e das técnicas disciplinares.
O Impressionismo, de certo modo, se opôs ao academismo (às escolas de “fazer arte”), desempenhando um
papel pioneiro na quebra dos paradigmas da representação da visualidade que, até aquele momento, estavam
intrinsecamente atrelados aos cânones acadêmicos. Em outras palavras: a diluição da mimese representou
modo inovador de ver, compreender, interpretar e sentir a natureza. Assinala-se, ainda, que duas influências
importantes para a compreensão do Impressionismo: a gravura japonesa e a fotografia. O exotismo da cultura
oriental, no século XIX, traz consigo a admiração pela gravura japonesa que atribui valor essencial à representação da natureza e do equilíbrio que esta proporciona. Já o advento da fotografia realizou o sonho da humanidade de fixar e gravar com objetividade as imagens da percepção visual. Foi em 1839, em curso a Revolução
Industrial, que Joseph-Niecephore Niépce e Louis Jacques Mandé Daguerre simultaneamente fixaram uma
imagem, traduzindo sutilmente a luz e a sombra de sua essência para uma forma permanente (KOSSOY, 2001).
É significativo que os inventores dos primeiros processos fotográficos tenham sido pintores, entre eles: Daguerre. Os pintores por muito tempo tentaram retratar a realidade. Era a única maneira de conservar o momento
ou instante efêmero. Escolas como o Naturalismo, entre outras, levaram esse dado às últimas consequências.
No entanto, experiências como Impressionismo libertaram a pintura da obrigação da objetividade – talvez, esse
movimento não tivessem sido possível, caso não existisse o advento da fotografia. Muitos autores consideram
que o Impressionismo não foi uma escola, mas principalmente, uma pesquisa artística centrada em interesses
comuns (HAUSER, 1972). Na forma de expressividade, os artistas impressionistas (tanto Renoir como Monet
ou qualquer outro) queriam levar ao extremo sua fluidez colorida. Esses artistas compartilhavam da vontade
maior de captar os efeitos ópticos, tais como eram as propostas anunciadas na física moderna, e notadamente
estas inovações fazem surgir no cenário das artes visuais a fotografia e a difusão das estampas (especialmente,
as gravuras japonesas) que auxiliaram a propagar a idéia das cenas bucólicas, campesinas, barcos em repouso,
casarios, tipos humanos burgueses que animavam as festas e os salões parisienses do período.
A exposição Impressionismo – Paris e a Modernidade, realizada em parceria entre o Museu d’Orsay e o
CCBB explorava todos os elementos estéticos e históricos do movimento impressionista. Monet, Van Gogh,
Manet, Gauguin, Renoir, Degas e Toulouse-Lautrec são apenas uns dos grandes nomes desse movimento, que
pela primeira vez desembarcaram no Brasil. Organizada em seis módulos, reunia um conjunto de 85 obras-primas do acervo do Museu d’Orsay, tendo como foco a cidade de Paris e seu protagonismo no contexto cultural
mundial durante o século XIX. A cidade melancólica, a capital moderna por excelência, animada e luminosa,
que atraiu os maiores pintores do século, é apresentada a partir de diversos pontos de vista, complexa e multifacetada diante de tantas transformações pelas quais passou no período. Em contraposição ao papel central da
cidade, são apresentadas obras dos mesmos artistas que partiram para o campo, em busca do mito do selvagem
e do primitivo, ou que abordaram temas como: a vida moderna, os caminhos de ferro, as estações e as pontes
metálicas. Os módulos expositivos são: Paris, a cidade moderna: um atelier a céu aberto; a vida urbana e seus
autores; Paris é uma festa; fugir da cidade; convite à viagem (terras prometidas) e, a vida silenciosa.
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Com o intuito de seduzir o público brasileiro, os três módulos eram dedicados à vida na metrópole:
“Paris: a cidade moderna”, “A vida urbana e seus autores” e “Paris é uma festa”. As telas representam
panoramas do rio Sena e da catedral de Notre-Dame de Paris retratadas por Pisarro e Gauguin; as cenas
burguesas de Renoir; o cotidiano mundano das prostitutas em telas como “Femme au boa noir”, de Toulouse-Lautrec; as bailarinas de Degas; e as plateias dos cabarés e teatros representadas em “La troisième
galerie au théâtre du Chatelet”, de Félix Vallotton.
Os outros três módulos – “Fugir da cidade”, “Convite à viagem” e “A vida si-lenciosa” – envolveram trabalhos de artistas que escaparam do ritmo acelera¬do de Paris para uma vida calma e reservada.
Entre esses artistas, colocaram-se Claude Monet, que se mudou para Argenteul, no interior da França, e
depois para Giverny; Van Gogh, que decidiu seguir para Arles, com a finalidade de formar uma colônia
de ar¬tistas; Gauguin e Émile Bernard, que foram viver na Bretanha; e Cézanne, que regressou a Aix-en-Provence para redescobrir a luz.
A exposição Impressionismo – Paris e a Modernidade, CCBB, São Paulo, 2012. Fotografia: Danilo Verpa
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
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Fonte: Relatório Anual do CCBB, 2012
A exposição Impressionismo – Paris e a Modernidade, CCBB, Rio de Janeiro, 2012/2013.
Fotografia: Alexandre Macieira/Riotur.
A primeira edição da mostra ocorreu em São Paulo, entre os dias 04 de agosto e 07 de outubro de 2012, com
curadoria de Guy Cogeval (presidente do Museu d’Orsay), Caroline Mathieu (conservadora-chefe do Museu
d’Orsay) e Pablo Jimenez Burillo (diretor-geral da Fundación Mapfre). Vindas em seis aviões em seis dias diferentes após cerca de um ano e meio de negociações com o d’Orsay, as obras precisaram de uma aclimatação
especial no CCBB. De São Paulo, a mostra partiu para o Rio de Janeiro e depois seguiu “percurso internacional”, chegando a Madri, na Espanha.
Com entrada franca, na cidade de São Paulo, imediatamente, a população atendeu ao apelo da exposição: a
média do público girou em torno de 6.000 pessoas por dia. Ações de comunicação e ampliação de atendimento
foram necessárias para suprir a demanda do público.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 26-38, 2013.
O horário de disposição da mostra ao público foi ampliado (das terças às quintas-feiras, das 10h00 às 22h00;
sexta-feira, das 10h00 às 23h00 e, nos sábados e domingos das 8h00 às 23h00), assim como a capacidade de
recepção das salas expositivas e no programa educativo (capacidade de 1000 pessoas/dia). Além disso, ocorreram três edições de “viradas impressionistas”, ou seja, a CCBB ficou aberto 24 horas nessas ocasiões para
atender ao público visitante. Com relação às ações de comunicação, diversas mídias sociais foram empregadas
para informar ao público as melhores oportunidades de visita à mostra. Concursos culturais que envolviam a
exposição e as condições nas filas de espera para acessa à exposição foram organizados pelo CCBB.
O CCBB também investiu na divulgação da mostra no entorno da região na qual está imersa a instituição
cultural. Banners e demais peças publicitárias modificaram o centro da cidade de São Paulo. Note-se que algumas intervenções educativas também utilizaram o espaço da cidade. Desse modo, o visitante entrava e saía da
mostra com a possibilidade de estabelecer relações entre a cidade de Paris do século XIX com o centro urbano
de São Paulo de inspiração francesa. Impressionistas e público eram aproximados pela identidade visual que se
empregou ao redor do CCBB. Esse fato também estimulou a mídia espontânea e a visitação da mostra.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
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Por último, o Top of Mind 2012, pesquisa realizada em 26 estados mais o Distrito Federal, de 07 a 10 de
agosto de 2012, indicou que o Banco do Brasil era uma das marcas mais lembradas da nova categoria Top Finanças, com 13% das menções. Isto significou um grande retorno à instituição financeira que mantém o CCBB.
A boa repercussão da exposição Impressionismo – Paris e a Modernidade, em todos os níveis (no campo cultural, educacional, social e institucional), confirmou de maneira sólida o cenário nacional como ponto de entrada
das grandes mostras internacionais. Ao longo de sua existência o CCBB sempre buscou apresentar ao público
diversas mostras nacionais e internacionais de artistas e movimentos reconhecidos, porém, a realização deste
projeto, envolvendo grande complexidade na logística da programação dos eventos e gestão do patrimônio
histórico e artístico deu ao CCBB uma projeção em plano mundial. A partir desta mostra, novos projetos culturais, como grandes exposições, nascem e apoiam-se em experiências anteriores. Percebe-se claramente que
o público brasileiro corresponde às grandes iniciativas que envolvem organizações e parcerias internacionais
e, mais ainda se forem acompanhados por momentos significativos da História da Arte, como era o caso do
Impressionismo.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna, São Paulo: Cia das Letras, 1993
Fachada Principal do CCBB, em São Paulo, 2012.
BENJAMIM, Walter, A obra de arte no tempo de sua técnica de reprodução – Sociologia da Arte, Rio de janeiro: Zahar, 1969.
CANTON, Kátia. Retrato da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FRANCASTEL, Pierre. A Pintura e Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
GOMBRICH, E.H. A História da Arte, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 1988.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo, Mestre Jou, 1972.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 2ª ed. rev. São Paulo, Ateliê Editorial, 2001.
MANTOAN, Marcos. Experiências em Arte Contemporânea: Centro Cultural Banco do Brasil. São Paulo:
Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo, 2010
(dissertação).
OSBORNE, Harold. Estética e Teoria da Arte: uma introdução histórica. Trad. Octávio Mendes Cajado. São
Paulo, Cultrix, 1968.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Poética da Memória: Maria Bonomi e Epopeia Paulista. São Paulo: ECA
Agência Banco do Brasil, Rua da Quitanda, São Paulo, 2012.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 26-38, 2013.
37
Projeto “Te Vejo na Escola”
USP, 2008 (Tese de doutoramento).
RELATÓRIO PERFIL DA PROGRAMAÇÃO CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL SÃO PAULO,
2000.
RELATÓRIO IMPRESSIONISMO – PARIS E A MODERNIDADE, São Paulo: CCBB, 2012.
Sites:
AJZENBERG, Elza. ORSAY: Trajetória de Desafios e Inspirações. Revista Museu. http://www.revistamuseu.
com.br/18maio/artigo.asp?id=32819. Acesso em 18 de maio de 2013.
Museus e Instituições Culturais se Propõem a uma Reformulação dos Próprios Conceitos e Mostram a Arte
como Ferramenta para a Educação. In: Olhar Apurado. www. sescsp/sesc/revista/revistas.link.cfm?edicao.
id=305&Artigo.ID=4771&DCategoria=5451&reftype=2. Acesso em 19 de maio de 2013.
Integração de graduandos através da elaboração de material visual
artístico para o Ensino Fundamental
Project “See You in School”
Integration of undergraduates through the development of visual and artistic material for Elementary School
Talitha Placido Palhaci* & Maria do Carmo J. P. Palhaci**
*Orientadora pedagógica do Projeto, Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação para Ciência da
Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista, Unesp-Bauru, Bauru, SP. **Professora doutora lotada no
Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade
Estadual Paulista, Unesp-Bauru, Bauru,SP. Pesquisadora na área de artes e tecnologia.
.
Resumo
Recebido em 18 de Maio de 2013.
Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2013.
O aprimoramento e emprego das tecnologias como meios de comunicação, além de sua inserção praticamente imposta à sociedade, é uma realidade incontestável. Pesquisadores enfatizam a importância da elaboração de vídeos no contexto educacional do
Ensino Superior como uma experiência enriquecedora que apresenta benefícios como valorização do trabalho em grupo e a interação
social. O Projeto “Te Vejo na Escola” da Universidade Estadual Paulista de Bauru visa a integração de alunos de diferentes cursos
de graduação através da elaboração, montagem e divulgação de vídeos do tipo documentários para serem utilizados como material
didático auxiliar no Ensino Fundamental. Diante disso, o objetivo deste trabalho é enfatizar a importância da elaboração de vídeos
no contexto educacional e fazer uma síntese de todos os vídeos produzidos até o presente momento pelos alunos do projeto de extensão
mencionado.
Palavras-chave: ensino, tecnologias, comunicação, vídeos.
Abstract
The improvement and use of technologies such as mass media, as well as its insertion practically imposed on society, is an unquestionable reality. Researchers emphasize the importance of developing educational videos in the context of higher education as an
enriching experience that introduces significant appreciation of group work and social interaction. The Project “See You in School”
created at Paulista State University in Bauru aimed integrating students from different degree courses through the manufacture, assembly and dissemination of videos like documentaries to be used as auxiliary teaching material in elementary school. Thus, the objective
of this research is to emphasize the importance of developing educational videos and make a synthesis of all the videos produced until
now by the students of the extension project referred to.
Key-words: teaching, technology, communication, videos.
Introdução
O
aprimoramento e emprego das tecnologias como meios de comunicação, além de sua inserção
praticamente imposta à sociedade, é uma realidade incontestável. O livre acesso a esses meios,
inclusive para o público infantil, levanta uma preocupação com a articulação dos discursos utilizadas. Atualmente é cada vez maior o uso da transdiciplinaridade dos conteúdos dentro das
produções educativas. Diante disso, o presente trabalho enfatiza a importância da elaboração de vídeos no
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contexto educacional e faz uma síntese de todos os vídeos produzidos até o presente momento pelos alunos
do Projeto de Extensão Te Vejo na Escola.
Uso de tecnologias no contexto educacional
Segundo Moran (1997), a internet alcança o lugar de mídia mais promissora deste a implantação da
televisão. O meio de comunicação citado também está explodindo na educação, sendo que a educação presencial tem-se modificado significativamente com as redes eletrônicas:
[...] encontramos vários tipos de aplicações educacionais: de divulgação, de pesquisa, de apoio ao ensino e de
comunicação [...] nas atividades de apoio ao ensino, podemos conseguir textos, imagens, sons do tema específico do
programa, utilizando- os como um elemento a mais, junto com livros, revistas e vídeos (MORAN, 1997, p.01).
Entretanto, não podemos deslumbrar-nos com a internet e deixar de lado outras tecnologias, sendo que
a chave do sucesso está na integração das tecnologias como vídeo, jornal e computador. É necessário a
integração do mais avançado com as técnicas já conhecidas dentro de uma visão pedagógica nova, criativa e aberta: “A profissão fundamental do presente e do futuro é educar para saber compreender, sentir,
comunicar-se e agir melhor, integrando a comunicação pessoal, a comunitária e a tecnológica” (MORAN,
1987, p.02).
Tanto o vídeo como outras tecnologias podem ser utilizados para organizar como para desorganizar o
conhecimento, ocorrência que depende de como são utilizados. É importante o processo dialético da educação, independente dos métodos ou ferramentas auxiliares utilizados, não caia na rotina e perca seu impulso
questionador de superação e inovação (MORAN, 2004).
A internet e as novas tecnologias trazem desafios pedagógicos para as universidades e escolas, tornando
necessária a preparação dos professores com relação ao gerenciamento dos vários espaços e a integração dos
mesmos de forma aberta, equilibrada e inovadora. O primeiro desses espaços é a nova sala de aula equipada
com atividades diferentes, integrada as idas ao laboratório conectado em rede para desenvolver atividades
de pesquisa e de domínio técnico-pedagógico (MORAN, 2004).
Vale salientar que atualmente se torna fundamental planejar e flexibilizar, no currículo dos diferentes
cursos, o tempo e as atividades com relação a presença física na sala de aula e as atividades que envolvem o
uso da internet. Somente desse modo melhoraremos a qualidade na educação através de uma nova didática
(MORAN, 2004).
Martiani (1998) e Shewbridge e Berge (2004) afirmam que, por ser um trabalho desenvolvido em equipe,
a produção de vídeos apresenta muitos benefícios, dentre os quais a valorização do trabalho em grupo e a
interação social.
Em pesquisa de Vargas e colaboradores (2007), observa-se que a atividade de produção de vídeos no ambiente universitário é viável a apresenta grande potencial educacional. Além disso, percebe-se que apesar de
ocorrerem dificuldades por parte dos alunos responsáveis pela elaboração do material, isso não impediu que
as atividades fossem realizadas e tampouco influenciou negativamente em seus desempenhos. Isso indica
que essa atividade não apresenta restrições de público, podendo ser realizada nos mais variados contextos
educacionais com diferentes propósitos.
Bottentuit Junior e Coutinho (2009) também realizaram pesquisa relacionada a elaboração de vídeos
40
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 39-51, 2013.
por alunos do Ensino Superior e afirmam que a produção dos materiais foi uma tarefa muito enriquecedora
que permitiu uma maior integração dos alunos em prol da construção de vídeos com qualidade. Além disso,
despertou a motivação dos estudantes para o uso de tecnologias como o vídeo digital em sala de aula, assim
como nas futuras prática pedagógicas como professores.
É possível observar que a elaboração de vídeos por alunos de graduação é uma metodologia que tem
apresentado bons resultados diante de seus propósitos que podem ser os mais variados possíveis.
Breve histórico do projeto “Te Vejo na Escola”
Iniciado em 2009, o projeto visa a integração de alunos de diferentes cursos de graduação através da
elaboração, montagem e divulgação de vídeos do tipo documentários para serem utilizados como material
didático auxiliar no Ensino Fundamental. Desse modo, até o presente momento já participaram do projeto
alunos de diversas áreas como Ciências Biológicas, Pedagogia, Design, Jornalismo e Rádio e TV. O conteúdo dos vídeos é diversificado, abordando temas como tecnologias, alimentação, poluição, corpo humano entre outros. Os vídeos apresentam como personagem principal um Mico Leão Dourado, denominado
“Mico”, habitante da “Matinha que resta”. A seguir na Figura 1 o protagonista “Mico” e na Figura 2 o seu
ambiente, a “Matinha que resta”.
Figura 1: Personagem “Mico”.
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41
ano de 2013 a “matinha que resta” passou por alterações novamente apresentando imagens com tonalidades e sombras mais próximas da realidade, sendo que as folhas e os troncos das árvores apresentam uma
maior definição como é possível observar na Figura 04. Além disso a área de projeção do vídeo se tornou
mais larga, designada pelo termo em inglês “widescreen”.
Figura 2 : A “Matinha que resta”.
Após a definição que o público alvo dos vídeos seria o Ensino Fundamental, os participantes do grupo
decidiram mesclar a linguagem da animação com a de vídeo, ou seja juntar entrevistas com profissionais da
área com a montagem de uma cena (formada por captação de imagens ou edição de fotos ou ilustrações) e
o desenho animado que presume-se já fazer parte do cotidiano do público infantil. No final, o vídeo, após
toda sua elaboração, é formado por uma junção de todo esse conteúdo, criando uma história simples que
passa por diversos pontos abordados em determinado tema, intercalando ações e conversas do personagem
animado com o narrador e com as entrevistas realizadas que aprofundam o assunto.
A escolha do personagem protagonista e seu ambiente que serviriam como plano de fundo no desenrolar
da explicação dos temas visaram criar uma identidade ao projeto e ao mesmo tempo uma familiaridade com
os telespectadores. No intuito de valorizar os ambientes brasileiros, pensou-se em utilizar algum animal de
nossa fauna, escolhendo desse modo o Mico Leão Dourado que se encontra-se em risco de extinção. Já a
“Matinha que resta” simboliza uma floresta preservada onde mora o “Mico”, sendo que o mesmo pode visitar a cidade próxima ou até mesmo o espaço como acontece em alguns episódios. Com relação a estética do
cenário, foram utilizadas imagens com técnicas de colagem com muitas cores e texturas realistas que geram
um ambiente agradável e atraente ao público infantil.
Com o tempo, o desenho do ambiente “matinha que resta” foi passando por modificações. O ambiente
ilustrado anteriormente na Figura 02 foi o utilizado no início das animações em 2009, sendo formado por
imagens elaboradas com técnicas de colagem com cores e texturas diferentes. Já em 2011 decidiu-se alterar
o desenho do ambiente (Figura 03) adicionando cores mais vivas as imagens do mesmo. Posteriormente no
42
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 39-51, 2013.
Figuras 3: Mudanças feitas na “Matinha que resta” em 2011.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 39-51, 2013.
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Figura 4: Mudanças feitas na “Matinha que resta” em 2013.
Visando a ampliação do acesso as produções do “Te Vejo na Escola”, os participantes do projeto estão
em processo de elaboração de uma plataforma de compartilhamento de vídeos. Nesse espaço virtual destinado aos materiais elaborados, estarão disponíveis para alunos, professores e demais interessados, todos os
vídeos já produzidos, além de textos informativos ligados ao tema trabalhado. Por enquanto, até que esta
plataforma seja concluída, os materiais elaborados até o presente momento podem ser acessados no sítio de
compartilhamento de vídeos denominado “You tube”.
Salientamos que a importância do Projeto não está somente na conclusão de um produto final, que no
caso seriam os vídeos, mas sim em todo o processo que envolve estudo e pesquisa, assim como interação
entre os alunos dos diferentes cursos de graduação da UNESP para a elaboração dos materiais. Esse tipo de
integração é primordial para os estudantes, visto que essa convivência entre as diferentes áreas auxilia no
processo de autonomia, comunicação e criatividade dos alunos.
Figura 5: 1˚vídeo produzido intitulado “Fumaça!”.
O segundo vídeo elaborado (Figura 06) intitulado “O que são satélites mesmo?” integra uma parte animada na qual o Mico faz uma pesquisa no espaço tirando foto dos satélites e uma explicação sobre satélites
naturais e artificias proferida por um professor pesquisador da área de astronomia.
Vídeos elaborados pelos alunos do projeto
O primeiro vídeo elaborado (Figura 05) foi intitulado “Fumaça!” e aborda o tema poluição, integrando
uma parte de animação onde o Mico visualiza uma fábrica e um vídeo com uma explicação relacionada ao
aquecimento global proferida por um integrante do Instituto Vidágua.
Figura 6: 2˚vídeo produzido intitulado “O que são satélites mesmo?”.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 39-51, 2013.
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No terceiro vídeo (Figura 07) elaborado foi intitulado “Comer bem faz bem” e nesse material é abordado
o tema nutrição através da pirâmide de alimentação. No início do vídeo do vídeo o mico aparece pulando de
um cipó para outro quando fica fraco e cai. Diante disso se desenvolve a abordagem do tema.
Figura 8: 4˚vídeo produzido intitulado “Corpo humano”.
No quinto vídeo (Figuras 09) elaborado e intitulado “Energia” começa a chover na “Matinha que resta”
e em seguida é fornecida uma explicação sobre a meteorologia. Posteriormente surge o sol e a partir disso
é abordado o tema energia.
Figura 7: 3˚vídeo produzido intitulado “Comer bem faz bem”.
O quarto vídeo (Figura 08) elaborado foi intitulado “Corpo humano” e na animação o “Mico” aparece
cansado por ter jogado bola sem ter realizado alongamentos. Posteriormente é realizada uma breve explicação sobre os sistemas muscular e os outros sistemas do corpo humano.
Figuras 9: 6˚vídeo produzido intitulado “Energia”.
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O sexto vídeo (Figuras 10) elaborado foi intitulado “Ciências da Terra” e já aparece com um formato
novo com cores mais vivas. Nele o “Mico” aparece procurando bananas mas não as encontra devido a época
do ano e, diante disso, é apresentada uma explicação sobre cada uma das estações do ano e porque ocorrem.
Figura 11: 7˚vídeo produzido intitulado “Reprodução”.
O último vídeo (Figuras 12, 13 e 14) elaborado até o momento foi intitulado “Reciclagem” e no início
mostrando a “matinha que resta” poluída seguida de uma explanação com imagens de caminhões de recolhimento de lixo, lixões e aterros. Após isso é fornecida uma explicação sobre a coleta seletiva de lixo e como
deve ser disposto o mesmo de acordo com a cor das latas de recolhimento.
Figuras 10: 5˚vídeo produzido intitulado “Ciências da Terra”.
No penúltimo vídeo (Figura11) elaborado e intitulado “Reprodução” a narradora conta para o “Mico” que
vai ser tia e pergunta se ele sabe de onde vem os bebês. Após isso é fornecida uma explicação sobre as diferenças entre os gêneros proferida por uma aluna do curso de Psicologia da Universidade e posteriormente
uma explicação sobre a gestação proferida pela narradora.
Figura 12: “Mico” Recolhendo o lixo no 8˚ vídeo produzido.
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como pessoal e social desses estudantes.
Referências
BOTTENTUIT JUNIOR, João Batista ; COUTINHO, Clara Pereira . Desenvolvimento de Vídeos Educativos com Windows Movie Maker e o YouTube: Uma experiência no Ensino Superior. In: 8 Congresso
LUSOCOM - Comunicação Espaço Global e Lusofonia, 2009, Lisboa. Actas do 8 Congresso LUSOCOM.
Lisboa - Portugal: Universidade Lusófona, 2009, p. 1052-1070.
MARTIANI, L. A. O vídeo e a pedagogia da comunicação no ensino universitário. In: PENTEADO, H. L.
Pedagogia da comunicação – Teorias e Práticas. Ed. Cortez, 1998, p. 151 – 195.
MORAN, José Manuel. Como Utilizar A Internet Na Educação. Ciência da Informação, BRASÍLIA. V. 26,
n.2, 1997, p. 146-153.
Figura 13 Lixo sendo jogado no lixão.
MORAN, José Manuel. Os novos espaços de atuação do professor com as tecnologias. In: XII ENDIPE: Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 2004, Curitiba - PR. Conhecimento Local e Conhecimento
Universal: Diversidade, Mídias e Tecnologias na Educação. Curitiba: Campagnat. V. 2. 2004, p. 245-253.
SHEWBRIDGE, W.; BERGE, Z. L. The role of theory and technology in learning video production: the
challenge of change. International Journal on E-Learning, V.3, n.1, 2004 p. 31-39.
VARGAS, Ariel; DA ROCHA, Heloísa Vieira; FREIRE, Fernanda Maria Pereira.. Promídia: produção de
vídeos digitais no contexto educacional. RENOTE. Revista Novas Tecnologias na Educação. V. 5. 2007, p.
1-12.
Recebido em 23 de Setembro de 2013.
Aprovado para publicação em 30 de Outubro de 2013.
Figura 14 “Mico” mostrando como se deve separar o lixo reciclável.
Considerações finais
Reafirmamos, concordando com a literatura levantada, a importância da elaboração de vídeos para uma
formação educacional que auxilie no desenvolvimento da valorização do trabalho em grupo, da interação
social, da comunicação e da criatividade nos alunos do Ensino Superior. O Projeto “Te Vejo na Escola”
proporciona esses benefícios mencionados aos seus integrantes e, como já está em seu quarto ano de desenvolvimento e continuamente sofre mudanças com relação a seus membros, a integração entre alunos mais
antigos no projeto com os mais novos se mostra muito produtiva para o desenvolvimento tanto educacional
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“VírusMutante” na Paisagem de Bauru
“VirusMutante” in Landscape of Bauru
Sidney Tamai
Professor doutor do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Unesp-Bauru, Bauru, SP, Brasil. Área Especifica de Pesquisa: Campo expandido entre Arte e Arquitetura.
.
(maioria), artes e design.
O grupo se auto(de)nomina de VIRUSMUTANTE, pois são várias formas de arte, experiências análogas, estudos e entendimentos que se contaminam e que contaminam o público que em sua resistência e/ou
residência as incorpora e modifica sua estrutura e lógicas para sua próxima ação, estabelecendo um ciclo em
espiral de no mínimo duplo eixo que age como mola impulsionadora, se remetendo a um outro: contamina,
é contaminado pra novamente contaminar. A logomarca VirusMutante procura apresentar esses conceitos
em sua estrutura de imagem.
Resumo
Esse artigo busca apresentar o trabalho do grupo VirusMutante da Extensão “Projetos de Arte Pública na cidade de Bauru” da FaacUnesp. Expõe seus vários projetos, estruturas de ação, suas abordagens, processos, procedimentos, resultados e reflexão, além de
problematizar a questão de um grupo de Arte Pública articulado a Universidade.
Palavras-chaves: Arte Pública, instalações, arquitetura, campo expandido arte-arquitetura, intervenção espaço-temporal.
Abstract
This paper presents the work of the VirusMutante. A group which belongs to a subject extension called “Public Art Projects in Bauru
City” from FaacUnesp. It exposes its designs, structures, approaches, procedures, results and reflections, as well as it discusses the
point of a Public Art group being associated to the Public University.
Keywords: Public art installations, architecture, field expanded Arts Architecture, space-time intervention.
O
Apresentação
objetivo desse artigo é apresentar e problematizar os trabalhos “Work in Progress” do grupo
VírusMutante ao refletir sobre a produção inicial e atuação do grupo que atua a partir do
projeto de extensão “Projetos de Arte Pública na Paisagem de Bauru” da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicações da Unesp, Faac-Unesp, o qual propus e coordeno a partir 2012.
O trabalho do grupo VírusMutante se propõe a criar turbulência na posição fechada e complementar
do sujeito em relação a um lugar. Na interação com as obras, abandonar a posição de abandono ou exclusão
do cotidiano. Abandonar posições simétricas alienantes com a cidade panópticamente controladora1 , através de práticas de divergências, revelando aspectos invisibilizados; inventando evento e lugar onde existam
fragmentos ou espaços de alta redundância. Entendendo a cidade no que ela propõe, da hierarquia e centralização do espaço clássico industrial ao rizomático das cidades redes do sistema de produção internacional
e assim propor jogo aberto entre cidade e cidadão na mediação via arte pública.
Os Projetos do grupo de arte pública são inter e trandisciplinares, em resposta a cidade, e sua prática
por vezes é composta por técnicas e processos de disciplinas variadas, as vezes da escultura, arquitetura,
pintura, instalação, grafiti e outras formas e procedimentos re-combinantes na medida, específica, da necessidade.
Origens
A proposta “Projetos de Arte Pública na Paisagem de Bauru” nasceu de iniciativa de atuar diretamente na cidade de Bauru, após demonstração de interesse e contato pela comunidade. Foi criada via Extensão em 2012 da FaacUnesp, para durar até 2014 para realizar trabalhos com dinâmicas de mão dupla entre o
tempo das atividades acadêmicas e o que o trabalho efetivamente pede ao realizar-se na cidade. Tivemos 20
participantes no primeiro ano e no segundo ano estamos iniciando com 32 alunos dos cursos de arquitetura
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2013.
Logo “VirusMutante”
Justificativas e Abordagens:
- O Campo Ampliado e Dissimetrias
O grupo VirusMutante de caráter transdisciplinar articula em continuidade, de transito, entre Artes,
Arquitetura e Paisagem como conjunto de espaço público. O que permite amplas formas de escolhas de
atuação.
Os partidos, formas, materiais, processos e procedimentos, são definidos considerando as relações
de Campo expandido entre arte/arquitetura/cidade e a especificidade dos lugares para repensar o contemporâneo da cidade em suas adições e contradições. O trabalho enquanto ato é sempre registrado e sua divulgação nas várias mídias é entendida como Campo Ampliado e faz parte da extensão e persistência na memória
da cidade.
O campo expandido é entendido como continuidade dinâmica em busca de potência, na diversidade
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 52-64, 2013.
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de processos e meios artísticos experimentados. Procura, portanto, atuar de forma semelhante como são
as ações do cotidiano, transdisciplinares, simultâneas, efêmeras e complexas. Difícil é nomear e colocar
limites disciplinares em um tipo de trabalho cuja origem é a transdisciplinaridade presente no cotidiano, nas
propostas, nos participantes e na própria cidade que acabam por colocar em crise um urbanismo essencialmente normativo.
Os participantes do grupo procuram operar em uma estrutura de Campo, acolhem e escolhem seus
princípios, suas estruturas, materialidades. Essa diversidade disposta permite recorte único e, portanto invenção específica de novos arranjos espaços-temporais. Essa ação pode garantir invenção singular através
de conexões não convencionais de potência e continuidade crítica entre campos, mesmo dentro de um
contexto cultural de convergência das diferenças pela unificação da base digital por onde parece passar a
própria cultura. Essa dissimetria entre as artes, processos e procedimentos constrói nas diferenças potencia
na especificidade.
Nessa forma de pensar e agir, dentro de campo elástico, plástico, o artista, arquiteto, designer, a comunidade, tem como possibilidade a troca de lugar funcional onde as ações atuam como parâmetros e novas
formas de ver e refletir umas às outras.
Dito de outra forma “...finalizando, a potencia signica se da na passagem entre artes, processos e
procedimentos quem nem sempre são de mesma origem, não simétricas, mas que mantém interfaces transitáveis. Esse conjunto de atividades aumenta o campo de escolhas e ao mesmo tempo aumenta a especificidade do que quer seja, da arquitetura a instalação, da escultura a performance. Essa passagem que resiste
a tradução fácil pede ao inventor que ele se posicione e faça escolha gerando resultados singulares2 em
autores singulares.” (Sidney Tamai)
O Campo Expandido tem na cidade entendida como sites specifics seu par, operando também enquanto um campo ampliado de meios e procedimentos e a diversidade de leituras da cidade nos diz que cada
tipo de realidade propõe condicionantes específicos e determina respostas específicas para cada situação.
O Campo Ampliado possibilita lançar a ideia que a Potência inventiva se encontra na diferença, na
dissimetria entre os fenômenos. Uma maneira de fazer essas diferenças gerarem o novo é a transducção3
(Simondiana) que atua como invenção mudando a base material e os procedimentos, mas preservando a
potência dos signos. É uma tradução dúctil, plástica e inventiva, onde a invenção se faz no ato de traduzir.
Há potencias distintas em contato e portanto uma mudança de base de uma linguagem, material ou técnica
resiste e obriga a uma re-invenção dos códigos.
- Caráter das Intervenções espaços-temporais
A questão recolocada por Argan, sobre o tipo e o modelo4, talvez possa nos trazer alguns esclarecimentos nas formas de Intervenções Espaço-Temporais propostas. Argan nos diz que há dois tipos de Arquiteturas e Arquitetos, os que fazem Representação Espacial e que representam os espaços, e os que fazem
Determinação Espacial.
A representação espacial trabalha por composição de formas, utilizando formas com valores pré-estabelecidos. Formas simbolizadas, redundantes e são associadas por contigüidade. É típica, não tópica.
Há uma clara tendência de o fluxo de tempo fluir linearmente por diacronias. Portanto pouco interessa as
proposições do grupo VirusMutante.
A determinação espacial propõe a determinação formal e uma atitude projetiva geradora de espaços
através de formas não simbolizadas. Formas icônicas/indiciais, baixa redundância e que são associadas por
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 52-64, 2013.
similaridade. É tópica, não típica. Aqui parciais e pequenos fenômenos fluem sensivelmente e polisensorialmente em várias escalas e direções com tempos em sincronias. O Efêmero está na constituição da proposta,
do tempo de permanência, do tempo entendido enquanto duração de intensidade variada e não cronométrica,
da durabilidade dos materiais, dos processos de produção, da montagem, interatividade e fruição pública.
Esse conjunto de atitudes, portanto está mais próximo das intenções do grupo VirusMutante.
Associadas ao conceito de campo estendido e o de potencia dissimétrica no processo inventivo,
essas intervenções espaços-temporais são mais entendidas no sentido de adoção, de escolhas dos espaços
públicos ou proto-públicos virtualmente potentes. Essas associações complexas e estruturadas por coordenação propiciam lógicas de invenção pelo eixo de Similaridade, mais aberto na estrutura, operado por
sincronia e sem pré-destinações.
Os projetos de intervenção são também entendidos, em sua maioria, na sua transformação efêmera
e na medida do que o site specific sugere, além ainda, dos limites técnicos, culturais, referenciais do grupo.
Não simetriza simbolicamente, proposta e espaço público, mas desloca ambos rumo a uma experiência com
diversidade singular.
- Base Repertorial
Ideias e conceitos iniciais foram discutidos e incorporados a partir da leitura de artigos, experiências
análogas e das próprias reflexões das ações.
Os projetos procuram pensar os espaços públicos da cidade de Bauru como ações espaços-temporais. Seu
caráter é de Intervenção, mas na observação das condicionantes locais, culturais, políticas e históricas que
impulsionam sua ação.
Para um maior entendimento da dimensão do trabalho uma série de artigo foi lida e discutida em relação
a questão dos Lugares, Cidades, Deslocamentos e formas de Intervenções. Estabeleceram-se estratégias
para a leitura dos Artigos da Extensão 2012
- Artigos sobre Lugares (site specific, in situ, etc) como o de Zalinda Cartaxo,
-Artigos sobre o entendimento das Cidades (sobreexposta, big, transparente) como os de Michel Certeau,
Aldo Arantes, Jorge Bassani e Martí Peran.
-Artigos sobre o tempo e deslocamento nas Cidades – Sandra Rey, Situacionistas.
-Artigos sobre as formas de intervenção, os partidos, na cidade – ação Post It.
Esse conjunto de atitudes do Grupo favorece propostas mais definidas e participação mais equilibradas do grupo de alunos envolvidos.
Acomodações do grupo na Universidade
A ocupação proposta pelos sistemas e poderes que planejam as cidades empurra para a marginalidade o não normativo. Essa exclusão gera ações de caráter “marginal” de ocupação e de, ao mesmo tempo,
novos sentidos para a cidade levando a novos entendimentos do papel do arquiteto-artista de trazer essa
estrutura de reflexão para a sociedade a partir de práticas divergentes espacio-temporais na cidade.
O grupo produz um tipo de atividade acadêmica, o projeto construtível em diálogo com a arquitetura
e a cidade, explorado em todos os níveis possíveis dentro dos limites da universidade pública. Um trabalho
desse tipo gera conflitos entre a estrutura pedagógica dos cursos, as lógicas de ensino e aprendizado, os
procedimentos de intervenção e o entendimento da sociedade. Por isso trata-se de um Projeto de Extensão,
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 52-64, 2013.
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para navegar de forma a aumentar as áreas de contato do grupo e seus interlocutores.
Como vimos até o momento a produção e reflexão artística são entendidas enquanto campo expandido. O campo artístico-arquitetônico ampliado é estruturado pelo processo de invenção transdisciplinar,
tendo como loccus de ação o espaço público e a cidade que cada vez mais possuem novas práticas de uso e
pedem novas soluções como lugares.
Essas escolhas justificam-se nos Cursos de Artes e Arquitetura da Faac Unesp, pois o primeiro tem
entre seus focos a tríade Arte, Tecnologia e Cidade, cuja disciplina “Arte-Cidade: invenção transdisciplinar”
sou professor. No segundo, o curso de Arquitetura e Urbanismo, através da proposição de indissociabilidade
entre teoria e prática e o entendimento de que a especificidade do arquiteto é a intervenção espacial, como
descrito no site do curso de arquitetura e urbanismo. Conceitualmente o objetivo é aproximar, inicialmente,
os cursos que compõem a FAAC (Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicações) através das atitudes
inter e transdisciplinares.
Tipos de situação, projetos e ação via universidade/cidade
A Relação entre Obra, Lugar e Espectador é dinâmica. A obra e o lugar procuram ser pensados
juntos. O lugar oferece, sugere, exige formas, materiais e processos e procedimentos específicos. O lugar
pode não estar claramente colocado com limites espaciais, mas articulado a partir da temporalidade. Pode-se
saber do fato no lugar em outro tempo sem a necessidade de simetria entre fato e repercussão. O espectador
é sempre convidado a uma troca, seja ela física, portanto parcial como um olhar ou cinestésica, sendo totalmente indicial e também reflexiva.
Nessa relação busca-se: 1º Potencializar as qualidades do signo artístico ao transitar entre as várias
formas de arte, materialidades e processos distintos. 2º Buscar novas formas de fazer Arte e Arquiteturas
ao compreender e rever os corpos disciplinares posto em crise ao contato com novas ações intercessoras
e mobilizadoras. 3º Entender o espaço público e a cidade como legítimos lugares de intervenção/adoção e
invenção artística para a formação acadêmica e de cidadania. Essa organização permite pensar os projetos
possíveis.
A proposta possível foi a Intervir espaço-temporalmente na cidade de Bauru com trabalhos de complexidades variadas e processos contínuos que alimentem os trabalhos posteriores, onde surgem propostas
de curto, médio e longo prazo.
-curto prazo: intervenções com baixa tecnologia, processos e procedimentos. Rápidas, fáceis, etc. Para
serem feitos vários projetos durante o ano.
-medio prazo: maior complexidade de projeto e execução. Para se fazer poucas, durante o ano mas que
deixa legado para as de longo prazo
-longo prazo: Projetos + complexos, que envolve maiores dificuldades tecnológicas, amplo público, e
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1 , p. 52-64, 2013
incorpora algo dos eventos anteriores.
As propostas têm dois eixos para esse segundo ano de atividade, um nomeado de Paisagem Crítica,
com atuações na dinâmica da cidade através de intervenções tri e quadrimensionais, envolvendo construções
e deslocamentos interativos. Outro eixo é nomeado de Gráficas Urbanas, com foco nas intervenções planas,
mais rápidas e fáceis execuções.
-Paisagem Crítica: Atividade de caráter espaço-temporal, quadrimensional
onde se lê a diversidade espaço-temporal do ambiente e dela procurar tomar partido apresentando as
contradições e divergências da vida na cidade.
São esculturas, instalações, performances, arquitetura e urbanismo, ou Artes Entre.
Em ambos os grupos de projetos, tanto o paisagem crítica como o de grafias urbanas procuro na
medida da necessidade e do possível desenvolver algumas questões como as relações entre Transparência
Literal e Fenomenal5, os conceitos de Corte e Dobra6 nas superfícies-membranas tensas estruturais contidas
em vários projetos e as relações entre Ocultamento e Apagamento7 que possa ter uma Obra.
Essas relações permeiam a arte e arquitetura contemporânea. A Transparência Literal dada diretamente pelos materiais como vidro e a Fenomenal pelo posicionamento, espacialização, deslocamento e
forma de apropriação. O Corte e a Dobra na superfície de um material nos trazem: via corte o espaço, através de seu rasgo, abertura e o tempo através de suas dobras que nos propõem percursos visuais, corporais e
indiciais. Em um momento de excessiva visibilidade dos coisas do mundo parece útil a discussão da relação
de Ocultamento e Apagamento: ocultamento enquanto como potência do virtual e apagamento como adição
por subtração.
-Grafias Urbanas: Explora as relações entre as intervenções gráficas e os espaços da arquitetura
e da cidade. Interações cujas lógicas de intenção estão visceralmente articuladas. Espacializam as grafias
urbanas, sejam dando vozes às paredes ou modificações das sintaxes espaços temporais, por continuidades,
descontinuidades, sobreposições, elisões, etc. Um exemplo é a vírgula que na cidade podemos entender a
inflexão de uma esquina que se vê modificar ao transitar por ela. Vírgula do espaço urbano. Um desaparecimento espacial que fica em registro como passado e memória no tempo, ao se deslocar para a outra quina
visível. Seu suporte ativo é a cidade e sua materialidade é composta de desenhos, pinturas, fotografias,
vídeo-mapping, grafitis, colagens, grafias, post-its.
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Projetos executados
Foram realizados dois Projetos completos, um parcial e outros quatro, em andamento, se iniciaram
em 2012. Assim são apresentados três projetos o Voo a Vela, Tenso Túnel e Paralaxe Pelé (parcial) e analisados com ênfase nas relações: Transparência literal/fenomenal; Corte/Dobra; Ocultamento/Apagamento
Voo a Vela:
Projeto que considerou a tradição da cidade de Bauru como a “capital do Voo a Vela” do Brasil. A Instalação procurou trazer por similaridade e ao nível do chão dos olhares citadino o voo lento, silencioso e
elegante dos planadores, com seus loops longos e fluídos. Um planar sem motor que substancia o espaço e
desafia a gravidade.
modifica a observação da praça através de um prolongamento da percepção dos olhares e das experimentações sensíveis corporais pelo percurso.
-Corte e Dobra nas superfícies-membranas
Os cortes deixavam entrever as arvores e o céu associada a altura variável do objeto em relação ao plano
do chão e sua forma geral apresentava uma superfície aerodinâmica análoga aos planadores. As dobras em
curvas prolongavam a leitura da superfície com tempos distintos, mais rápidos ou mais lentos dependendo
da inclinação da dobra ou da altura e continuidade relativa do conjunto plástico. A experiência de tempos
múltiplos e lentos contaminava as árvores e a praça.
-Ocultamentos/Apagamentos
De certa forma se eliminou a semelhança icônica do objeto planador para (por uma espécie de ocultamento formal) se revelar as qualidades indiciais do voo a vela.
Tenso Túnel:
Estação Cultura - Parceria com Ligia Moreira Rodrigues.
Tecidos flutuantes em lycra light com Projeções de imagens fotográficas, edições sonoras e multivisuais
Noturnas.
Realizado entre 17 a 24 de outubro de 2012. Rotatória da Usp na avenida Octavio Pinheiro Brizola – Bauru. Evento
associado a X Semana de Arquitetura da FaacUnesp – Bauru.
Materiais: tecido lycra light, argolas, cabos e bambu.
Projeto com experimentação em escala natural
–Transparência literal e fenomenal
O tecido lycra light permitiu transferir para experiência sensível a amplitude das distâncias do voo a
vela de dia e de noite com as luzes da praça. Através do deslocamento a pé e também de carro ou ônibus
ao redor lançou várias escalas de percepção de transparências literais e também fenomenais ao comparar a
translucidez das e suas sombras do objeto com a das árvores a sua volta. Essa inferência dos dois fenômenos
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Projeto realizado na semana de 20/27 de outubro – em Campinas na Estação Cultura, junto as comemorações do VI
Festival Hercule Florence. Parceria com Ligia Moreira Rodrigues que articulou esse projeto como experimental de
seu TFG.
Materiais: tecido lycra light, argolas e cabos (cordas e aço)
Projeções no tenso túnel de imagens fotográficas, vídeos, em edições multivisuais e sonoras. Superfícies
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 52-64, 2013
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ancoradas e solidarias com o espaço interior da estação ferroviária de Campinas.
–Transparência literal e fenomenal
Por ser uma apresentação noturna o tecido recebia as luzes da Antiga estação ferroviária e dos canhões/
datashow que projetavam as imagens. As superfícies brancas tensionadas se construíam como um Estranho
Branco no espaço rebuscado da ferroviária inglesa do século XIX. Atropelava as funções dos espaços que já
não existiam enquanto ferroviária. Era possível ver através literalmente de fora da ferroviária para dentro e
de dentro para fora na direção dos trilhos supostamente infinitos.
-Corte e Dobra nas superfícies-membranas
Os cortes deixavam atravessar luzes que eram a própria informação, sem necessidade de serem transportadores de imagens. As dobras deformavam as imagens, cujas imagens fotográficas ou videográficas
tiravam partido das curvas e torções formando duplas entre suporte e projetáveis. As superfícies em dobra e
corte ainda conflitavam pelas suas características sintáticas com as da estação ferroviária, deixando entrever
diferenças de tempos construtivos, tempos históricos e tempos de fluidez do local.
-Ocultamentos/Apagamentos
As pessoas criavam pequenos lugares envoltos nos tecidos e brincavam com suas imagens ocultadas
através de sua projeção de silhueta em pretos nos tecidos brancos. Algumas dançaram protegidas pela escuridão geral da noite e pelas luzes de projeções de imagens instáveis e de baixa definição dos sujeitos. Outras
simplesmente adotavam esses limites para um diálogo lúdico.
Paralaxe Pelé
Realizado em setembro. São primeiros estudos do Construção do Pelé com sua famosa “bicicleta”. A
imagem do Pelé foi construída a partir de três outras imagens que melhor o caracterizavam e rapidamente
era identificado, junto a relação preto e branco, binária. Preto-Negro Pelé e branco da camisa do Santos
futebol Clube. Por se tratar de um estudo plano, a bola é que se movimentou na parede descrevendo uma
trajetória possível. Foi executada na parede de uma das salas totalmente grafitada da universidade para ver
se um trabalho que explora o tempo através das distâncias espaciais com certa coerência seria observado
naquela empena beirando o grau zero de informação.
- Transparência literal e fenomenal
Junção da relação preto e branco, binária. Preto-Negro Pelé e branco da camisa do Santos futebol Clube. Simplificação do signo ao máximo para identificação direta como um tempo da bola da Bicicleta desencadeada pelo jogador.
Pelé flutua na fusão com a parede fundo e na altura dos olhos do observador tornando-a ficcionalmente realística.
-Corte e Dobra
A superfície é plana e os recortes no espaço e intervenções de outros grafites permite lançar a bola do
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2013
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lance em três momentos do espaço plano, sugerindo o deslocamento em parábola do chute. A intenção
era também verificar em um ambiente repleto de ruídos informacionais, ver o quanto o deslocamento virtual
de uma imagem que transfere temporalidade ao conjunto seria percebida.
-Ocultamentos/Apagamentos
O corpo do Pelé é visível por apagamento, com o uniforme branco do Santos Futebol Clube em continuidade com o fundo branco. Na oposição binária, segue o Pelé em preto chapado em imagem construída a
partir de três fotografias com o objetivo de tornar redundante e identificável a sua imagem. Leitura análoga,
não igual, foi originalmente feita por Décio Pignatari em um de seus livros. O apagamento da bola chutada
por Pelé e seu aparecimento em apenas três momentos e em posições distintas, traz uma continuidade temporal pela união imaginária desses pontos de deslocamentos pelo espaço.
Projetos em andamento: “Work in Progress”
Serão apresentados alguns exemplos de projetos para mostrar a caminhada futura do grupo VirusMutante
de Extensão.
Projetos de Paisagem Crítica:
Projeto 1
-Do rio que se (h)ouve
Trazer para cima da rua o som dos rios que passam debaixo do centro da cidade de Bauru. Trazer de
forma indicial através da audição.
Meios:-barra de ferro fincada no piso sobre 3 rios da cidade com dispositivo auricular (estetoscópio) para
audição; ampliações etc.
-Projeto de curto prazo (até final do 2. Semestre de 2013)
“aqui sob seus pés passa um rio”
Projeto 2
-Paralaxe Pelé
Utilizar o principio da Paralaxe horizontal para que por deslocamento, apresentar o jogador Pelé dar uma
“bicicleta” e fazer o gol. Lembrando que Pelé faz parte da história da cidade ao iniciar aí sua carreira no
futebol.
-Projeto de curto prazo (até final do 2. Semestre)
3 elementos (Pelé, bola, zagueiros)
Material: papelão, Duratex, compensado, leds.
Local: av Nações Unidas nos dois sentidos
- Estudos experimentais efetuados como a Paralaxe Anhanguera: http://www.youtube.com/watch?v=73K_
kfFw9Og&feature=youtu.be
(por Lauro E. Franzé Filho)
Projeto 3
-CitySound
Captar a variedade de som, movimento e luz da cidade e transformá-los em saídas de luz e sons musicais.
Meios: placas arduínos, sensores de movimento e luz com linguagem de programação.
(até inícios do 1º Semestre de 2014)
Otávio, Marcos, Enzo, Guilherme, Mayra, Ana Flávia,
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Projeto 4
-Meteora
Projeto de tenso-estrutura com características de arquitetura têxtil. Cobertura de caráter permanente com
aproximadamente 35m², situada entre dois blocos de sala de aulas no campus da UnespBauru.
Prazo do projeto: agosto, com execução em outubro de 2013
Todos os componentes da equipe
Projetos de Grafias Urbanas:
-HaikaiMPB
Espacializar a escrita linear e plana, por interação, na sintaxe quadrimensional da cidade. Um exemplo é
o “Você saí do gueto, mas o gueto não sai de você” do Marcelo D2. Colocar em uma quina da es-quina “Você
saí do gueto” e na contínuidade do outro lado “Mas o gueto não saí de você”. Funcionam como vírgula ou
mudança de parágrafo, de ideías, reflexões da cidade. No diálogo, o muro inicial pode estar em uma avenidade e a do outro é uma ruazinha-gueto, a fonte pode ser tipoganguetudojuntoetorto, etc.
Projetos de curta duração com técnicas variadas (grafiti, colagem, still)
Conclusões
Nesses trabalhos executados não se percebe claramente a repercussão na cidade através de seus
cidadãos-usuários. No caso do trabalho “Voo a Vela” mudou a rotina do percurso de grande parte da cidade,
onde havia uma rótula virou praça, e também certo reconhecimento das relações entre voo livre e tecidos
flutuantes e transparentes na altura dos olhos citadinos. No trabalho “Tenso Túnel” o contraste entre os lugares, uma estação ferroviária do século XIX, pé direito amplo, com todos os seus elementos de memória
na justaposição com os tecidos tectônicos que projetavam imagens e sons eletrônicos geraram um lugar de
luz único na estação de longo espaço horizontal aberto e escuro noturno. Quanto ao ParalaxePelé plano, sua
presença na parede grafitada e próximo ao grau zero de informação não foi observado por muitos alunos,
deixando entrever a distância no tempo entre Pelé e estudantes, além de não reverter a entropia evidente da
empena.
Os trabalhos feitos e os futuros projetos permite-nos encaminhar as novas investigações no campo
das interações e flexibilidades do Objeto Cidade em direção da cidade Evento, do espaço para o tempo. Cidade não como ideia de progresso futuro de ideal racionalista, mas com procedimentos, técnicas e meios na
direção da temporalidade da experiência, dos processos e memórias, provavelmente inventando os próprios
meios próximos a performances e instalações dinâmicas que queremos repercutir na recepção da cidade, na
atuação do estudante participante e no ensino/aprendizado da arte-arquitetura.
Referências
Livros
-ARGAN, Giulio Carlo, Projeto e Destino. São Paulo, Ed. Atica, 2004.
-BASSANI, Jorge - As Linguagens Artísticas E A Cidade - Editora:Formarte - SP 1ª Edição – 2003 ISBN:
8589606015 ISBN-13: 978858960601
-DORNBUNG, Julia Schulz. Arte y arquitectura: nuevas afinidades. Barcelona, Editorial Gustavo Gili,
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 52-64, 2013
63
2000.
-KRAUSS, E. Rosalind. A escultura no campo ampliado. Tradução de Elizabeth Carbone Baez. In: Revista
Gávea nº.1, Rio de Janeiro, ed. Puc RJ, 1978.
________________. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo, Livraria Martins Fontes Edtora Ltda,
1998.
-SIMONDON, Gilbert. “El modo de existência de los objetos técnicos”. Buenos Aires, Editora Prometeo,
2008.
Leitura de Artigos, bibliografia, resenha e discussão em grupo
- ARANTES, Antonio A. - “A Guerra dos Lugares” - http://pt.scribd.com/doc/52663496/A-Guerra-dos-Lugares-A-Arantes - 2012.
- CARTAXO, Zalinda
“Arte nos espaços públicos: a cidade como realidade”
http://www.seer.unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/431 - RJ - 2012
-CERTEAU, Michel de - “Andando na Cidade” – Revista do patrimônio histórico e artístico nacional – 2001
-MORAIS, Frederico. Corte, dobra, ferro. In Revista Módulo, Rio de Janeiro 1983.
- PERAN, Martí, “Post-It City. Cidades Ocasionais”,ECA-USP – Funarte - Brasil, 2009
-ROWE, Colin (com Slutzky, Robert). Transparência: literal e fenomenal. In revista GAVEA Nº2. Rio de
Janeiro, Ed. PUC RJ, 1985.
-TAMAI, Sidney In: “Potencia signica na passagem dissimetrica entre artes” st - : “Potencia signica na passagem dissimetrica entre artes” – Arte e Tecnologia – 2011 – UNB
-VALLE, Marco Antonio Alves; Processo de apagamento em escultura: limites entre o Moderno e o Contemporâneo. Oculum (PUCCAMP). , v.2, p.60 - 70, 1992., Oculum Ensaios (PUCCAMP), Vol. 2, pp.60-70,
Campinas, SP, BRASIL.
Art and Death: “Passage for Life”
Elza Azenberg
Professora Titular da Escola de Comunicações e Artes, ECA, da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP. É
coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes, ECA, Universidade de São Paulo,
USP, São Paulo, SP.
Resumo:
A morte é sempre uma ruptura. É um fato. Uma passagem com várias possibilidades de leituras. A visão do mundo, expectativas futuras, crenças podem “orientar” esta passagem. Constitui questões que acompanham há milênios as culturas. É temática constante
da arte e continua presente nas manifestações estéticas contemporâneas. Sítios arqueológicos, literaturas do oriente e do ocidente,
coleções, inúmeras criações elegem a morte como tema.
Palavras-Chave: Morte. Manifestações Estéticas. Crenças. Arqueologia.
Abstract:
Death is always a break. It’s a fact. A passage with several potential readings. The vision of the world, future expectations, beliefs
can “steer” this passage. Is issues surrounding cultures for millennia. It’s constant theme of art and is still present in contemporary
aesthetic manifestations. Archaeological sites, literatures of East and West, collections, numerous creations elect death as a theme.
Keywords: Death. Aesthetic manifestations. Beliefs. Archaeology.
Notas de Rodapé
1.”Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.” Giorgio Agamben, in: http://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/
2.TAMAI, Sidney In: “Potencia signica na passagem dissimetrica entre artes”
3.SIMONDON, Gilbert – transducção: tradução por analogia
4 ARGAN, Giulio Carlo – “Projeto e Destino” – pág 19
5.ROWE, Colin (com Slutzky, Robert). Transparência: literal e fenomenal. In revista GAVEA Nº2. Rio de Janeiro, Ed. PUC RJ,
1985.
6.MORAIS, Frederico. Corte, dobra, ferro. In Revista Módulo, Rio de Janeiro 1983
7.VALLE, Marco Antonio Alves; Processo de apagamento em escultura: limites entre o Moderno e o Contemporâneo. Oculum
(PUCCAMP). , v.2, p.60 - 70, 1992., Oculum Ensaios (PUCCAMP), Vol. 2, pp.60-70, Campinas, SP, BRASIL
Recebido em 30 de Julho de 2013.
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Arte e Morte: “Passagem para a Vida”
Aprovado para publicação em 5 de outubro de 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2013
O
s registros artísticos podem acompanhar várias questões: a esperança em uma vida que continua
numa outra dimensão, rupturas, dúvidas e observações, como um mistério a ser desvendado –
“decifra-me ou devoro-te”, lembrando a metáfora da “esfinge”. Artistas de diferentes épocas
criam imagens, monumentos, literaturas, manifestando sonhos e expectativas sobre essa temática.
A presença de rituais, música, dança, carpideiras acompanham as cerimônias funerárias em várias
religiões. Essas ações tornam esse momento mais tênue (ou menos terrível)? É difícil uma resposta linear.
Os momentos de transição da vida para a morte podem expressar a ideia de viagem, como entre os
antigos egípcios, na travessia de um lado, para o outro do rio Nilo e a inserção de barcos em seus funerais.
A grande produção artística egípcia tem a perenidade como fator essencial. As pirâmides, as mastabas e os
hipogeus, assim como as pinturas, inúmeros artefatos e rituais expressam a crença na vida além-túmulo.
“Falar do morto é fazê-lo viver de novo”. Os cânones que orientam o dia-a-dia do egípcio fazem parte de
seus paradigmas e da crença de uma “passagem para uma vida que continua”.
Para egípcio, o além-túmulo significa uma existência também corporal. A alma abandona o corpo no
momento da morte, mas se espera que possa voltar a ele através da eternidade. É por isso que os egípcios
mumificam os mortos: para que seus corpos fiquem livres da decadência. O complicado embalsamamento e
os túmulos abastecidos com diversas guarnições asseguram uma casa para o KA (ou alma) e para o BA (ou
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 65-71, 2013
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vitalidade física), que se afasta do corpo na hora da morte. O morto é julgado por Osíris – deus dos mortos.
Segundo Heródoto, o ritual de embalsamento pode levar até 70 dias, caso o morto seja pessoa de posse. Para o pobre, um dia ou dois bastam. Esses cuidados com a eternidade sempre estão presentes em seus
textos (Livro dos Mortos), monumentos e obras-primas. Constitui significativo acervo dos museus e para a
reflexão do homem contemporâneo.
Entre os gregos, essa passagem esta associada à tradição de colocar uma moeda na boca do morto
para apresentá-la a barqueiro em sua viagem. Esses momentos extravasam graves tensões em catarses como
nas tragédias clássicas gregas, no teatro, ou em homenagem ao deus Dioniso. Parte dessas catarses chega
aos dias de hoje, beneficiando pesquisas psiquiátricas e tratamentos de saúde.
A ruptura que acompanha essa transição pode sinalizar também metáforas do sofrimento de um povo,
momentos históricos, perdas e dores de famílias ou individuais – presente em épicos, como na Ilíada e na
Odisséia de Homero, ou em Guerra e Paz, de León Tolstoi (1828-1910), tratados também em filmes ou em
pinturas, como as de Candido Portinari (1903-1962). Pode-se pensar em datas, como 1937, na Guernica de
Pablo Picasso (1881-1973).
Pode, ainda, sinalizar a importância do poder. O primeiro imperador da China tem apenas 13 anos
quando inicia a construção de seu túmulo, mas seus planos para a vida no além são tão grandiosos quanto
suas ambições terrenas. Para morada final, Qin Shihuang (c. 259-210 a. C.) cria detalhes em domínio subterrâneo sobre qual espera reinar. Hoje é possível continuar avaliando, através de escavações, mais de três
mil guerreiros elaborados (como retratos individuais), várias faces deste monumento: desenvolvimento
sociopolítico e técnico-científico do contexto. Engenharia, arquitetura e arte testemunham não apenas a expectativa da eternidade do imperador, mais um contexto bem mais amplo que vai do poder de uma dinastia
ao cotidiano, passando por conquistas e frustrações de uma época.
Guerra e Paz (Leon Tolstoi) e Guernica (Pablo Picasso)
Qin Shihuang (c. 259-210 a. C.)
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Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 65-71, 2013
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O artista Flávio de Carvalho (1899-1973), conhecido pela suas ousadias e irreverência, em 1947,
registra os últimos momentos de sua mãe. O observador normalmente se surpreende diante desta Série Trágica (1947) e se pergunta: qual ou quais sentimentos o artista procura manifesta? Teria sido fixar os últimos
instantes de vida da mãe? Esses instantes resgatam um novo nascimento dele próprio? Talvez, a resposta
seja tão intangível quanto a profundeza da própria morte.
No século XIX, Claude Monet (1840-1926), tão admirado pela suas aberturas cromáticas, registra, em
18 peças, a agonia e a morte de sua amada Camile Doncieux (1847-1879) em tons cinza. Em momentos mais
próximos, Ron Mueck (1958) retrata num tridimensional de pequenas dimensões Dead Dad, 1996/1997
(Galeria Saatchi, Londres), em silicone e acrílico, o pai morto. Em tratamento hiperrealista, nu, colocado
diretamente no chão, o que pode ter transmitido o artista? Um abandono? Um grande choque diante da morte
paterna?
Flavio de Carvalho e trecho da “Série Trágica”
Camile Doncieux (1847-1879)
O artista norueguês Edward Munch (1863-1944), desenvolve, ao longo de sua carreira, uma pintura
que tangencia o tema com frequência. Filho de um médico de doentes pobres, a quem acompanha desde a
infância nas suas visitas, Munch vê a mãe e a irmã mais velha morrerem de fome. A sua produção é dedicada
à expressão de estados subjetivos (às vezes mórbidos), à angustia e à solidão, refletidos em obras como o
Grito, 1893, e suas obras inquietantes influenciam gerações expressionistas e obras dramáticas ao longo do
século XX. São obras em sintonia com problemáticas do próprio tempo.
Mathias Grünewald (1480?-1528) elabora uma obra-síntese e comparativa do sofrimento de Cristo na
cruz com perseguições, torturas e mortes sofridas pela comunidade do seu tempo. Trata-se da Crucificação
do Altar de Isenheim, Colmar – concluído, provavelmente, em 1515. O artista alemão não busca nessa obra
padrões de beleza, tal como os mestres italianos concebiam. Pelo contrário, nada poupa para mostrar os horrores dessa cena de sofrimento: o corpo agonizante de Cristo é distorcido pela tortura, os espinhos da coroa
do flagelo agarram-se às feridas ulceradas que cobrem todo o rosto. Nas suas questões estéticas, Grünewald
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opta por expressar a face do sofrimento. Afasta-se, portanto, de padrões agradáveis de cânones artísticos.
Prefere o abismo que a criatividade pode revelar.
Distantes no tempo e soluções plásticas, mas próximos na busca de metáforas comparativas o artista
Marc Chagall (1887-1985) utiliza representações das dores de Cristo na cruz, conjugadas ao sofrimento de
milhares de mortes de judeus durante o Holocausto da II Guerra Mundial.
O Cristo sofredor, despido, morto na cruz não é temática de referência para os primeiros cristãos.
Comentar “a morte na cruz” não é episódio digno de um Salvador (morte na cruz associa-se à morte de
bandidos). Ao longo da Idade Média, por exemplo, Cristo é pregado na cruz vestido como rei ou sábio. O
que pode ser visto nos belos exemplos do Museu Românico, em Barcelona, Espanha.
Em estilo mais realista, o Cristo morto, na cruz, torna-se cada vez mais presente no período Barroco.
Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814), representa Cristo na cruz (que para ele deve ser observado pelos pés, em sinal de humildade), aproximando o sofrimento e morte de Cristo ao sofrimento e à
doença do artista, no final de sua vida.
A morte em uma batalha pode ter outro referencial. A obra Batalha de São Romano (dividida em três
partes e exibidas nos museus de Londres, Paris e Florença), de Paolo Uccello (1396-1476), representa a
vitória de Niccolo de Talentino, capitão de Florença, sobre as tropas de Siena, em 1433. Teórico da perspectiva, Uccello substitui (ou atenua?) as atrocidades da batalha pela elegância do desenho, cores, volumes e
o ritmo das lanças. Filmes, em certos exemplos, preferem exaltar mais “efeitos plásticos”, como, em Kagemusha – A Sombra do Samurai, 1980, de Akira Kurosawa.
A morte às vezes é retratada pelo artista com olhos mais objetivos e científicos. Em 1632, Rembrandt (1606-1669) pinta a Lição de Anatomia do Dr. Tulp, com o cirurgião no momento de dissecação de um
homem executado (dos sete personagens que o acompanham nenhum é médico). Como avaliar esta obra
diante da morte?
Séculos depois, observa-se Francisco Goya (1746-1828), com suas metáforas testemunhando a opressão, as matanças e as crueldades ocorridas na Espanha. Saturno devorando o seu filho (1819-1823) ou é o
poder espanhol devorando os seus próprios filhos? Ou a denominada Série Negra (proibida à visitação pública até o final do poder de Franco), ou a série nas quais coloca monstros ou fragmentos de pessoas destroçadas – de grande morbidez? O que Goya pode ter extravasado com essas obras? A realidade de seu tempo?
Uma reação sociopolítica? Não se pode esquecer que uma das obras épicas da História da Arte, também de
Goya, é o Fuzilamento de 3 de Maio, 1808. Imagens fortes e dramáticas revisitadas por Serguei Eisenstein
(1898-1948) na escadaria de Odessa, no filme O Encouraçado Potemkin, 1925, e por Luis Bruñel (19001983) no Fantasma da Liberdade, 1974. As obras de Goya continuam sendo revisitadas por artistas contemporâneos, como Jake e Dinos Chapman (1966 e 1962, respectivamente), na obra Great Deeds Against The
Dead, 1994 (Galeria Saatchi, Londres).
Nos exemplos citados não se pode pensar na arte associada à ideia tradicional de beleza (ou agradável
de ser vista): o equilíbrio de formas e a harmonia de linhas e cores. Em vários momentos, a arte aproxima-se
mais do termo grego kalos (não propriamente traduzido para o português) e que pode indicar: Belo – Bem
– Verdadeiro. Um conteúdo mais denso do que possa ser “belo” (ou “feio”?). Para Juan Miró (1893-1983),
arte é sedução. Para Paul Klee (1879-1940), revela o invisível; para algumas culturas, o “lugar onde Deus
brilha”. A época contemporânea expressa processos nos quais o que pode ser pensado como arte está ligado
mais a desconstruções, não se ligando a “uma aura” ou fórmulas.
É preferível ter a arte em seu conteúdo mais denso, expressando metáforas que indicam as profundezes do ser. Ou, ainda, permitindo mergulhar nas passagens de vida e de morte. É importante situar a arte em
um “território livre” e o artista como termômetro de seu próprio tempo. Neste contexto, a arte passa a ser
também um grande aprendizado.
O que se pode concluir sobre as interfaces estéticas e a temática morte? A morte é uma certeza para
todos. Culturas e teologias pontuam esperança numa vida que continua ou na visão da morte sendo “uma
passagem para a vida”. Artistas, religiosos, gestores culturais procuraram e procuram expressar a intensi-
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dade desse momento. Essas ações podem alimentar os registros artísticos e históricos. Nesse contexto, a
expectativa é favorável ao aperfeiçoamento humano e às buscas de criações compartilhadas que valorizam
a sensibilidade estética.
Principais Referências
TOLSTOI, León. Guerra e Paz. São Paulo, L&PM, 2011.
PICASSO, Pablo. Guernica. Ano: 1937 Técnica: Óleo sobre tela Tamanho: 349,3cm x 776,6cm. Museu:
Museu Rainha Sofia, Madri, Espanha.
CARVALHO, Flávio de. Série Trágica IX, carvão s/papel, 1947, col. Museu de Arte Contemporânea, MAC,
Universidade de São Paulo, USP.
Recebido em 25 de agosto de 2013.
Aprovado para publicação em 18 de outubro de 2013.
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Integração entre texto literário e fotografia:
o exemplo pioneiro da obra
“Nadja” de André Breton
Integration between literary and picture: the example of the pioneering work of
“Nadja” by André Breton
o cinema, o teatro, o intervencionismo, a pintura, a literatura, as artes gráficas, influenciando até mesmo
manifestações artísticas mais recentes como o design, a televisão e a publicidade.
Neste período da história (inicio do Século XX), após o menosprezo recebido no século anterior, a fotografia
estava no auge de seu reconhecimento como arte e o movimento surrealista soube cooptar também o prestígio desta arte a seu favor sendo que a publicação desse romance singular intercalando texto e fotografias,
em 1927 por André Breton é a prova cabal dessa consciência e desse atrevimento técnico e artístico.
O autor de Nadja
Eliana Kátia Pupim
Mestre em Ciência da Informação e bibliotecária da Universidade Estadual Paulista, Unesp, Câmpus de Tupã, Tupã,
SP. Docente dos cursos de Enfermagem e Nutrição da ESEFAP.
Resumo
Há 80 anos o francês André Breton revolucionou a arte através de seus experimentos lingüísticos conhecidos como Movimento Surrealista, através do qual tencionava transmitir através de uma linguagem livre de racionalismos o que se passava na mente dos ilustres
artistas pertencentes ao grupo adepto ao surrealismo. Entre a vasta produção surrealista optou-se por analisar a obra de maior
proeminência: Nadja. Obra esta em que Breton utiliza a escrita automática para construir a narrativa de seu encontro com uma bela
jovem francesa em meio às suas andanças sem rumo nas ruas de Paris. O elemento de distinção da obra é a presença de fotografias em
um momento histórico em que a inclusão de imagens fotográficas não era adotada em livros para ilustrar textos, e muito menos para
substituir a descrição de pessoas, cenários e objetos, como é o caso desta obra.
Palavras-chave: Movimento Surrealista. André Breton. Fotografia. Nadja. Literatura Francesa.
Abstract
Eighty years ago, André Breton pioneered art through his linguistic experiments known as Surrealist Movement intending to communicate what was on the minds of noble artists supporters of surrealism through a language free from rationalism. The work chosen for
analysis was his most outstanding writing, Nadja, in which Breton uses automatic writing in order to build the narrative of his encounter with a beautiful young French woman while wandering through the streets of Paris. This work includes as a distinction element
photographs of a historical moment when images were not used in order to illustrate words, people, background or objetcs.
Keywords: Surrealist Movement. André Breton. Photography. Nadja. French Literature.
Introdução
O
objetivo do presente estudo é compreender como a obra Nadja alinhavou em seu bojo o texto e a
fotografia. A obra foi conhecida como um anti-romance e como referência da produção literária
de André Breton, expoente da literatura surrealista na França.
O movimento surrealista conhecido mundialmente por suas manifestações na pintura, com a participação de nomes como Salvador Dali e Max Ernst, que se constituíram, nesse sentido, seus representantes
máximos, surgiu na França e espalhou-se pelo mundo todo, mas poucos sabem do fato de que o movimento
se originou a partir de reflexões e da criação em literatura.
Com a obra de André Breton, o estranho movimento surrelista adentrou as diversas esferas das artes como
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André Breton nasceu em Tinchebray, França, no dia 18 de fevereiro de 1896, sua imagem está intimamente
ligada com o surgimento do surrealismo, movimento artístico ocorrido nas primeiras décadas do século
XX e que floresceu no curto período entre-guerras, embora tenha tido repercussões até os anos 1960. O
movimento envolveu a poesia, a prosa, a escultura, o cinema, a fotografia, a pintura e o intervencionismo.
O grupo Surrealista formado por André Breton, Louis Aragon, Max Ernst e Philippe Soupault, dentre outros, originou um movimento contra a forma de controle da arte, inspiravam-se no Dadaísmo e nas teorias
de Freud, influenciando artistas como Salvador Dali e Pablo Picasso, dentre tantos artistas e pensadores do
início do século XX.
Naquele período do século XX, encontramos o estudante de medicina e psiquiatria André Breton prestando
serviço na I Guerra Mundial, onde aplicava em seus pacientes os modernos métodos de psicanálise de Freud.
No período que serviu ao exército conheceu na enfermaria psiquiátrica o jovem e rebelde soldado Jacques
Vaché, fato que modificou sua trajetória intelectual e artística. A partir desse encontro o jovem estudante das
artes médicas acabou por não se qualificar, preferindo dedicar-se às artes como a poesia e o romance. Anos
mais tarde, em Nadja sua obra mais conhecida e de maior repercussão nos meios literários, ele fornecerá
elementos que levam o leitor a entender esse seu abandono da psiquiatria. Vaché por sua vez morreu aos
vinte e três anos de idade, em 1919, sendo a causa mortis overdose de ópio. Apesar da morte prematura suas
idéias estéticas expressadas em cartas dirigidas aos amigos foram publicadas em Lettres de guerre (1919) e
influenciaram toda a geração do movimento Dadaísta.
Em 1919, André Breton, então também, um jovem de vinte e três anos, juntamente com Philippe Soupault
e Louis Aragon, ambos com vinte e dois anos, fundam a revista Littérature, veículo que se tornou palco das
inúmeras experimentações literárias e imagéticas de Breton e de seus amigos. A partir dessas experimentações é que surgiria mais tarde o surrealismo, termo cunhado por Guillaume Apollinaire e que significa
um super-realismo, a verdade que vai além da realidade. (BRADLEY, 1999). A palavra irá correr mundo,
traduzida em todas as línguas, inclusive para o Português.
Apesar do grupo surrealista ter contado com inúmeros artistas proeminentes Breton ficou conhecido como
o pai do surrealismo por ter sido ele o redator e o editor do Manifesto do Surrealismo (1924), publicado
na revista Littérature, no qual definiu as principais características do movimento. O texto teorizava que a
elaboração da arte em suas amplas modalidades não deveria passar pelos filtros do consciente, não deveria
seguir uma ordem rígida ou imposta, mas sim vir do inconsciente, nascer livremente do acaso, da correlação
espontânea das idéias.
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Figura 1 – Grupo Surrealista de 1924 (primeiro plano Naville, Simone Collinet-Breton, Morise, Marie-Louise Soupault, e segundo plano Baron, Queneau, Breton, Boiffard, de Chirico, Vitrac, Eluard, Soupault, Desnos, Aragon).
Fonte: (PANDOXEIO, Acesso 29 Out. 2008).
Nesse seu Manifesto do Surrealismo Breton descreve também a “escrita automática”, a busca por
uma escrita que acompanhasse a velocidade do pensamento, acreditando ser possível a transcrição do pensamento tal como ele vinha a mente, sem nenhuma interferência do consciente, sem censuras ou quaisquer
correções. O processo consistia em registrar toda a torrente de frases e palavras pensadas, de forma que não
sobrando tempo para que fosse ouvida ou pensada duas vezes não pudesse ser reelaborada para ser, enfim,
transcrita. Para ele, o resultado deveria ser inesperado e sobre isso, o autor explicou: “[...] É com efeito muito difícil apreciar em seu justo valor os diversos elementos presentes, diga-se mesmo, é impossível apreciá-los numa primeira leitura.” (BRETON, 1924, acesso 21 jul. 2008).
Em outra ocasião, ele definiu desta forma o movimento:
Surrealismo, S. M. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar –
verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamento do
pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral.
(BRETON apud BRADLEY, 1999, p. 13).
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Basicamente os artistas surrealistas desprezavam toda forma de imposição da razão à arte e pelo seu
caráter de artistas politicamente revolucionários acabaram por filiar-se ao Partido Comunista em 1926, o que
causou uma grande divisão no grupo. Por exemplo, Soupault e Antonin Artaud (nascido em 4 de setembro
de 1896, na cidade de Marselha, e morto em um hospício de Paris no ano de 1948) fundaram um braço não
político do movimento surrealista, que nunca foi aceito por Breton.
Em 1927 Breton dá vida a Nadja, e em 1928 é publicada a obra reconhecida como o ícone do movimento surrealista. Como liderança surrealista, Breton esteve à frente de grupos internacionais que promoveram e disseminaram o movimento surrealista em outras partes do mundo, como na Inglaterra, no México,
no Japão e nos Estados Unidos.
Em 1932 houve por parte do editor inglês Edward W. Titus um convite para que o “pai do surrealismo” escrevesse um fascículo especial da revista This Quarter, sobre o tema. Além de seu próprio texto, no
qual descreveu a origem, a trajetória e os princípios do surrealismo, Breton incluiu nesse fascículo um vasto
material de Salvador Dalí, Benjamin Péret, Paul Éluard e Creve, além de desenhos de Giordio de Chirico,
Man Ray e Max Ernst. A publicação de materiais em língua inglesa abriu as portas para que o surrealismo
se tornasse conhecido mundialmente e em 1936 acontecia a Primeira Exposição Surrealista Internacional
nas New Burlington Galerie de Londres, tendo atraído um grande público. Em paralelo à exposição foram
proferidas palestras que, além da presença de Breton contavam com Paul Éluard e Salvador Dalí dentre
outros surrealistas. Findadas a exposição e o ciclo de palestras, foi instituído o grupo surrealista inglês.
(BRADLEY, 1999).
A chegada do surrealismo na América Latina deu-se com a primeira viagem ao México em 1937, na
qual Breton ficou fascinado com a obra de Frida Kahlo, que mesmo sem aderir a qualquer movimento, era
vista com admiração pelo escritor francês que chegou a mencionar que seus quadros eram “intuitivamente
surrealistas”. Em 1940, a Cidade do México recebeu a quarta Exposição Surrealista Internacional, que obteve, igualmente, muito sucesso. (BRADLEY, 1999, p. 60,).
No período de ocupação nazista da França, os artistas surrealistas viram-se obrigados ao exílio, e
como tantos outros nestas mesmas circunstâncias e em razão das facilidades encontradas, optaram pelos
Estados Unidos. Instalados em solo americano Breton, Masson, Ernst, Tanguy, Man Ray e Roberto Matta
Echaurren (pintor chileno) fundaram a revista VVV. A adaptação de Breton ao novo país não foi nada fácil
para ele. Viveu insatisfeito nos Estados Unidos, pois, além de se recusar a aprender o inglês, já que temia
que o conhecimento da nova língua o fizesse perder a criatividade de seu inconsciente, ficou decepcionado com a postura de Dalí, que, por sua vez, adaptou-se muito bem ao modo de vida americano, vendendo
sua arte aos milionários estadunidenses que desejavam ser retratados em inusitadas situações surrealistas.
(BRADLEY, 1999).
André Breton dedicou toda sua vida e todo seu tempo ao movimento surrealista. Esteve presente durante toda a trajetória do movimento não só como criador do surrealismo, mas trabalhando para a divulgação
e o seu reconhecimento na França e no mundo. Mas Breton não se contentou somente em disseminá-lo, queria que permanecesse puro e fiel às suas origens, para tanto defendeu com grande veemência a integridade
do movimento, não se constrangendo em afastar elementos que possivelmente promovessem a miscigenação com outras linhas de pensamentos, mostrando nesse ponto uma personalidade inflexível. Em palestra
proferida a estudantes parisienses na Universidade de Yale, disse:
Com o devido respeito a esse punhado de coveiros impacientes, acho que posso compreender um
pouco melhor do que eles o que significa o fim do surrealismo. Será o nascimento de um novo movimento
com um poder de libertação ainda maior. Além disso, graças a essa mesma força dinâmica que continuamos
a prezar acima de tudo, para mim e para meus melhores amigos seria uma questão de honra aderir imedia
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tamente a esse movimento. (BRETON apud BRADLEY, 1999, p. 64).
André Breton volta para Paris em 1946, e lá ao lado de Benjamin Perét fecha-se em um pequeno grupo
com pretensões de certificar aos novos artistas que surgem o que é surrealismo, enquadrando-os em suas
convenções. Quando Breton morre em conseqüência de problemas cardíacos na cidade de Paris, em 1966,
o surrealismo perde a agitação que produzia e acaba por se diluir em várias influências e com nenhuma
herança definida.
O anti-romance Nadja
A Europa da década de 1920 observou o surgimento de uma nova figura feminina do pós Primeira
Guerra Mundial, uma mulher contemporânea que rompeu com várias convenções da sociedade de então, foi
trabalhar nas indústrias, comércio e fábricas, substituindo funções anteriormente destinadas aos seus pais,
maridos e filhos, que tinham sido enviados à Guerra. Desafiou as autoridades familiares com seus trajes,
sem espartilhos, e com seus cabelos agora curtos. Amadureceu o comportamento sexual, adotando o uso de
anticoncepcionais, o divórcio e a intensificação da vida social. Velhos pré-conceitos foram rechaçados por
essa nova mulher e outras condutas foram sendo incorporadas em âmbitos profissional e familiar.
Nessa época em que uma nova mulher é delineada, surge o surrealismo, como sucessor do dadaísmo e
de outros movimentos denominados vanguardas. Ele compôs, como elemento estético da pintura e da literatura, um período marcado pela alegria superficial, em que todos queriam esquecer os traumas da Guerra e viver a vida no presente. Não era mais a Belle époque de antes da grande guerra, mas les années folles, os anos
loucos, da moda extravagante, das festas, da vida fruída ao máximo, sem muita preocupação com o futuro.
Nadja, a obra objeto de nossa reflexão aqui, veio ao mundo através da escrita automática. Nela, Breton
narra passagens que diz serem reais de uma história de amor que não teve um final feliz. Nadja, a mulher,
existiu e emprestou seu nome à obra mais conhecida do surrelismo. No entanto, como acontece com toda
obra literária, não temos maiores informações sobre a estranha figura que despertou tanta paixão no surrealista.
A escritora canadense Susan Elmslie, publicou que apresenta-se como uma admiradora da mulher
Nadja musa de Breton em Nadja. Em seu artigo narra as andanças que fez de forma voluntária e em determinados momentos até mesmo inconsciente que fez pelas locações parisienses indicadas na obra de 1927.
Relata fatos sobre a vida real da personagem de Breton, como seu nome real, Léona Camille Ghislaine D.,
sua data de morte, quarta-feira, 15 de janeiro de 1941e também o acesso à vinte e sete cartas escritas por
Nadja e endereçadas à Breton disponíveis na rede. Apesar de seus trabalhos, também não lançou muitas
luzes sobre a mulher da vida real. (ELMSLIE, Acesso 28 Jul. 2008).
André Breton conheceu e amou Nadja, tanto que ela contribuiu para que ele se aprofundasse no processo de auto-conhecimento, mas o que se passou entre os dois não é possível saber além do que Breton nos
relata e talvez nem nos interesse enquanto leitores desse fabuloso romance. Esse é o caso, por exemplo da
personagem Capitu, do romance Dom Casmurro de Machado de Assis, de quem o Brasil está comemorando,
com pompa e circunstância, o centenário de morte neste ano de 2008, nunca saberemos se ela traiu ou não a
Bentinho ou se toda a história não passa de uma “encanação”, de uma suposição de um narrador paranóico
que vive a sua loucura (literária) sob os nossos olhos de leitores atentos há quase um século. A força do
fenômeno literário talvez seja justamente essa de se desligar do real, permitindo-nos desligar-nos e duvidar
da própria razão.
Para começar, no livro, Breton escreve mais sobre si mesmo do que sobre Nadja. A loucura da personagem é aí apenas um pretexto para que Breton explore e escreva sobre suas próprias loucuras. E apesar de
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sua constante busca pelos elementos que o permitam destituir toda a racionalidade e lógica superficial, ao
contrário da sua protagonista, Breton considera que seu instinto de preservação ainda é mais presente do que
a necessidade da loucura e tem claro em sua mente que por mais que ouse em suas vivências, há momentos
em que a racionalidade é imperativa.
Para o desenvolvimento do trabalho optamos pela segunda edição de Nadja lançada no Brasil em 2007
pela Editora Cosac & Naify, editora que publicou outros títulos voltados ao tema surrealista. O tradutor,
como na primeira edição, é Ivo Barroso; a apresentação da obra é de Eliana Roberts Moraes e o posfácio de
Anne Le Brun. Trata-se de edição primorosa que além do pósfácio, tem ensaios e críticas sobre Breton e sua
obra escritas por Walter Benjamin com o artigo Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia;
por Murilo Mendes, com o texto André Breton; e também o pensamento de Michel Beaujour, com o artigo
O que é Nadja?; texto do escritor Maurice Blanchot, intitulado Le Demain joueur. Como se não bastasse, a
edição apresenta, por Alejandra Pizarnik, Uma releitura de Nadja, de André Breton e, finalmente, uma contribuição técnica específica de Rosalind Kraus sobre as As condições fotográficas do Surrealismo. Cada um
deles contribuindo sobremaneira para a compreensão da obra. Enfim, uma edição crítica de muita utilidade a
todos os leitores, como deveriam ser todas aquelas que tratam de uma obra prima no país, traduzidas ou não.
Nadja surge de uma narrativa de Breton em que descreve, em tom medical, o caso de amor que ele
próprio viveu com a personagem que dá título à obra, como a conheceu em seus passeios ociosos pelas ruas
de Paris, no início do século XX. Ele relata-nos os encontros em que a jovem mulher expunha suas dificuldades materiais e suas idéias desconexas. Escreve sobre a afinidade que sentia pela pureza e pela ingenuidade
da jovem e sobre suas preocupações com o futuro dessa femme-enfant, mas declara, desde o início de seu relato, que não se sentia apto a intervir em seu destino. Em sua obra declara também sobre os desenhos que ela
produzia tinham significados fugiam até dela própria, e que justamente por esse motivo tinham uma ligação
muito estreita com o surrealismo, uma vez que o movimento pregava que quando a arte deve ser explicada,
ou quando o é, ela perde seu estatuto de arte. Na sua opinião, poderá ser qualquer outra coisa, menos arte.
Breton, ao saber do destino de Nadja, que após um acesso de loucura foi internada no hospício de Vaucluse, tece uma crítica sobre os manicômios e prisões, o que fornece indícios ao leitor mais atento para uma
possível compreensão do motivo que o levou a desistência da carreira médica: “O desprezo que em geral
tenho em relação à psiquiatria, às suas pompas e obras, é tamanho que ainda não me atrevi a procurar saber o
que aconteceu com Nadja” (BRETON, 2007, p. 131). Breton procura aplacar sua culpa por não tê-la auxiliado acaba justificando-se por não ter percebido que Nadja não apresentava mais o instinto de sobrevivência.
A obra Nadja talvez não alcançasse a notória repercussão obtida não fosse o fato de Breton apresentar
fotografias mostrando imageticamente os lugares de Paris freqüentados pelos dois personagens (o narrador
e Nadja), sendo que as imagens fotográficas foram introduzidas com o intuito declarado de substituir as
descrições detalhadas sobre os personagens, as locações e os objetos que são mencionados pelo narrador
durante o desenvolvimento do texto surrealista.
No início dos anos de 1930, o conhecimento da técnica fotográfica já se tornara secular, mas a utilização da fotografia aliada ao texto era novidade. O uso da fotografia junto ao texto deu origem ao fotojornalismo, que por sua vez surgiu com raízes fortemente vinculadas à Alemanha. Durante o curto período que
durou a República de Weimar (1918-1933), a liberalidade instalada foi propícia para o crescimento da vida
intelectual e artística alemã. Vários foram os fatores que contribuíram para o desenvolvimento do fotojornalismo alemão, como os avanços tecnológicos que possibilitavam a utilização de equipamentos mais ágeis e
discretos; fotógrafos com educação aprimorada, freqüentemente filhos de famílias abastadas que perderam
suas fortunas e mantiveram o status; o interesse dos fotógrafos, editores e redatores por novas experiências;
o interesse pela vida privada de personalidades públicas. Com estes elementos contando a favor surgem as
revistas ilustradas, merecendo destaque a Berliner Illustrierte e a Müncher Illustrierte Presse, que juntas
ultrapassaram 4 milhões de tiragens. O sucesso alcançado pelas revistas alemãs serviu de modelo para pu
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blicações similares em outros países. (FREUND, 1995).
No mesmo momento em que o anti-romance de Breton foi publicado, também era impresso o artigo
de Benjamin A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. Nesse artigo encontra-se a análise das revistas da época, revistas ilustradas como a estadunidense Life que trazia juntamente com o texto, a fotografia,
ilustrando-o. Essa inovação gráfica culminaria em uma nova linguagem impressa. Era isso também que André Breton estava fazendo ao ilustrar Nadja com inúmeras fotos dos lugares em que ele a sua “personagem”
divagavam pela Paris dos anos vinte do século passado. (KRAUSS, 2007, p. 173).
A iniciativa de Breton era ainda mais ousada do que poderiam supor, pois propunha não só ilustrar a
obra como já vinham fazendo as revistas ilustradas, corroborando para o entendimento do leitor, mas com
Nadja a fotografia substituía o texto.
A fotografia e o texto
Na década de 1920 do século passado, a fotografia era presente na sociedade há mais de cinquenta
anos e apesar disso o seu uso em conjunto com texto era recente, senão inusitado. O fotojornalismo com
raízes fortemente vinculadas à Alemanha - precisamente durante o curto período de duração da República
de Weimar (1918-1933), onde a liberalidade instalada foi propícia para o crescimento da vida intelectual
e artística alemã - espalhava-se pelo mundo todo e apesar da expansão das revistas ilustradas, o desenvolvimento e as técnicas de captação, como de impressão das fotografias ainda careciam de muitos avanços.
(FREUND, 1995)
A partir do surgimento da revista Littérature, em 1919, deu-se vazão à experimentação surrealista,
principalmente as inovações foram enfáticas quanto à representação imagética, haja visto, as inúmeras técnicas inovadoras utilizadas pelos pintores ligados ao surrealismo, com mescla de técnicas, colagens, etc..
Um dos aspectos significativos no uso de fotografias pelos surrealistas era sua posição contrária a tudo
o que representava a objetividade, e para o senso comum naquele momento da história, desconhecendo o
estatuto fotográfico em profundidade, acreditava que era nada mais objetivo do que uma fotografia.
Qual a intenção de Breton ao se valer precisamente desse recurso então considerado racionalista em
Nadja?
Nesse sentido Kossoy (2002, p. 22) contribui para o entendimento da questão na medida em que
afirma que as fotografias “[...] são plenas em ambigüidades, portadoras de significados não explícitos e de
omissões pensadas, calculadas, que aguardam pela competente decifração”.
As imagens fotográficas [...] não se esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são apenas o ponto de
partida, a pista para tentarmos desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como foram (estética/ideologicamente) congelados num dado
momento de sua existência/ocorrência. (KOSSOY, 2002, p. 21).
Por outro lado, para Sontag nada poderia ser mais surreal do que a fotografia, vista como objeto que
através de raro esforço produz a si mesmo, esse objeto é surreal pois a cada acidente que possa vir a ocorrer,
vem corroborar para sua beleza e para seu efeito. A autora discorda dos surrealistas somente quando creditam à surrealidade das fotografias às montagens. Para a autora, a foto é uma criação do surreal pelo próprio
tempo que marca a mensagem do passado, como também vinca suas sugestões a respeito das classes sociais.
(2004, p. 68) e não pelo tratamento que possa lhe ser dado como maquiagem à posteriori.
Para Breton o surrealismo consistia na criação de imagens mentais que, registradas automaticamente
e sem a censura da razão ou do estilo ou da preocupação com a organização da forma, deveria exteriorizar
o pensamento puro e, portanto, igualmente a forma ideal. Para ele, o surrealismo é imagem, e nada mais
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surreal do que a fotografia.
[...] O surrealismo aproxima-se em fotografia porque é um despertar súbito de um estado de petrificação. O que toma são imagens; não invariantes, sujeitos sem consciência e sem história, a que poderiam ser
neutralizados pela visão convencional, mas imagens históricas em que o sujeito, no que tem de mais íntimo,
toma consciência de si como exterioridade, como imitação de uma realidade sócio-histórica [...]. (ADORNO, acesso em 21 jul. 2008).
Em seu Manifesto do Surrealismo (1924), Breton descreve seu menosprezo às descrições físicas de
personagens e dos cenários, descrições estas que acha enfadonhas e que evita reproduzir em sua obra. Vemos que o uso de fotos por Breton faz parte de uma estratégia anti-literária, dentre outras que ele buscava
para fazer uma literatura diferente de tudo o que houve antes. O autor surrealista rejeitava as enfadonhas
descrições de pessoas e lugares presentes até nas aclamadas obras de literatos reconhecidos há séculos.
Esse seu posicionamento estético perdura pois ao retomar Nadja, trinta e quatro anos após sua publicação
comentando-a, o autor justifica ainda a vasta utilização da imagem fotográfica, em vista de que a narrativa
desenvolvida pela escrita automática é tomada por um tom médico, no qual inexiste preocupação com estilo,
mas sim com o registro integral e sem corte ou censura de tudo o que aconteceu e de todos os pensamentos
que possa ser imobilizados e guardados pela escrita, como numa fotografia. (BRETON, 2007, p. 19-21).
Veremos que seja pela vertente da imobilidade do registro da escrita, ou pelo da escrita automática,
espontânea, sem censura ou controle, o texto surrealista pode se aproximar, em muitos aspectos, da fotografia, pois a fotografia registra todos os elementos que se apresentam em sua objetiva, independente da ordem
em que o referente se encontre. Ele é fotografado nos mínimos detalhes, sem que uma ordenação dos elementos importe no resultado. O expectador da fotografia é quem irá ordenar (ou não) e dar sentido à imagem
resultante, aos elementos presentes na fotografia. Ora, essa é precisamente a situação que deve acontecer
com a criação surrealista a partir da técnica de escrita automática. Por isso é que podemos afirmar sem medo
de errar que com o que foi exposto por André Breton no Manifesto do Surrealismo (1924) podemos entender
que a escrita automática está para a literatura como a fotografia está para a pintura e vice-versa. Não há,
assim, incompatibilidade entre a propagada objetividade da fotografia e a sua utilização artística por Breton
na composição do seu romance, ou melhor do seu anti-romance Nadja desse recurso para a consecução dos
seus objetivos de escola artística. Pelo contrário, a fotografia naquele momento e mais tarde, como o próprio
autor o reconheceu, servia aos interesses estéticos e técnicos do surrealismo, das manifestações do inconsciente e daquilo que eles denominavam escrita automática.
Breve Análise Comparativa
Com esses pressupostos e com base principalmente em Kossoy (2002) e Sontag (2004) realizaremos
agora uma análise da segunda realidade representada em algumas das quarenta e sete fotografias incluídas
por Breton no texto de Nadja. Dessas imagens, quinze são registros de lugares públicos e abertos por onde
os personagens flanaram; oito são retratos de pessoas próximas do autor ou que ele teve contato de alguma
forma; quinze outras fotografias referem-se a documentos e por fim nove fotografias representam desenhos
criados por Nadja, pinturas de artistas surrealistas ou objetos pertencentes à Breton. Trata-se de um conjunto
bem singular que tem, por parte do autor, a intenção de dar verossimilhança à narrativa, de comprovar os
conteúdos narrados, dando-lhes credibilidade a partir da demonstração imagética dos locus citados. É como
se o narrador afirmasse também. Veja! Tudo o que estou contando é verdade. A fotografia endossa minha
afirmação. O lugar existe. Você, leitor, pode vê-lo. É algo facilmente constatável (à época)!.
Quase um século depois de sua publicação, no entanto, se o texto mantém muito da sua qualidade lite
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rária e do seu valor referencial (a questão dos questionamentos do inconsciente, por exemplo), essa
coleção imagética muda completamente de figura e torna-se em si mesmo um objeto de estudo intrigante e
de reflexão sobre aquela Paris registrada nas fotos por várias razões. Em primeiro lugar, os edifícios captados entre 1918 e 1927, como afirma Breton situando no tempo a sua locação literária, não foram construídos
nesse período. Eles estavam lá naquela ocasião, mas eram provavelmente, o resultado de construções, técnicas e realizações da segunda metade do século XIX, provavelmente da época da grande revolução arquitetônica levada a efeito por Hausmann, o arquiteto de Napoleão III que, a partir de 1851, fez uma enorme
reformulação da cidade dando-lhe suas características “modernas” (do século XIX). Além dos grandes boulevares suas inovações contemplavam seqüências intermináveis de prédios (maisons) burgueses, geralmente
do mesmo número de andares, que eram idênticos uns aos outros tanto no aspecto externo, como na utilização de cada um dos seus andares (o térreo era a loja, o primeiro andar, o depósito ou estoques, o segundo, os
escritórios e os locais de negócios, de recebimento dos fornecedores, o terceiro e quarto andares, a moradia
dos proprietários, o quinto andar e as mansadas, o alojamento da criadagem, etc.). Somente no século XX é
que cada andar pôde ser alugado ou vendido separadamente, desmembrando-se numa propriedade autônoma que, aliás, ainda guarda na denominação imobiliária atual francesa o nome de co-propriété. Os prédios
são, pois, aparentemente, os mesmos, mas suas realidades internas são completamente outras, tanto no uso,
quanto em suas realidades jurídicas e de uso.
Figura 2 – Fotografia do Palacete des Grands Hommes.
Fonte: Fotografia à pág. 80 (BRETON, 2007, p. 30); fotografia acima (MAISONS, Acesso 21 Jul. 2008).
A primeira referência fotográfica de uma locação é a fachada do Palacete dos Grands Hommes (Hôtel
des Grands Hommes), onde Breton vivia no ano de 1918, período coincidente com suas experiências iniciais
pelas veredas surrealistas (Figura 2).
A fotografia da direita referente à Figura 2 foi obtida em site e não é datada, mas pela observação da
segunda realidade (KOSSOY, 2002) nota-se características atuais: foto colorida e digitalizada, estacionamento com modelos de carros recentes no lugar da estátua e gradil de ferro anteriores, ausência de veículos
com tração animal, sinalização de trânsito contemporânea e iluminação elétrica.
Através da observação dessa fotografia contemporânea do referido palacete, recuperada na internet
em 2008, pode-se notar que apesar da distância temporal de oitenta anos entre os dois registros, tanto o palacete quanto o solar apresentam-se grosso modo com as mesmas características arquitetônicas que possuíam
no início do século XX, salvo alguns detalhes que constituem alterações da ordem quase natural das coisas,
tais como a chegada da eletricidade ou a mudança dos carros de tração por cavalos por carros de motores a
explosão.
Na seqüência Breton nos oferece a foto do Solar d’Ango (Manoir d’Ango) local que morava no ano de
1927, momento em que seus trabalhos intelectuais sobre o surrealismo já se encontravam em estágio mais
avançado (Figura 3).
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Figura 3 – Fotografia do Solar d’Ango.
Figura 4 – Fotografia do Palacete Henri IV, Praça Dauphine.
Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 31); fotografia de baixo (FLICK, Acesso 28 Jul. 2008).
Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 80); fotografia de baixo (SUR LES ...,
Acesso 21 Jul. 2008).
Devido à evolução tecnológica dos equipamentos de captação de imagens e também ao aporte que
disponibiliza massivamente as imagens via web, pode-se apreciar uma fotografia do “rancho” sem a necessidade de se deslocar até Paris. A qualidade da imagem permite uma maior nitidez dos relevos e detalhes da
arquitetura que constroem as paredes do solar, o que não é possível identificar com a primeira foto impressa
no livro, que foi produzida com as tecnologias próprias da época. Nota-se que com a apresentação destas
das imagens dos locais em que morou (Figuras 2 e 3), percebe-se que Breton demarcou o espaço, Paris, e o
tempo, de 1918 a 1927.
Na Figura 4, nota-se o lugar onde Nadja e Breton jantaram acompanhados de vários incidentes estranhos. Na imagem pode-se reconhecer que um jardim vazio, não há transeunte, com várias árvores e percebe-se que a iluminação pública já existia naquele momento.
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A fotografia da direita captada na Internet mostra que os edifícios históricos já existentes no início do
século XX, pouco mudaram. A fotografia mostra que mesmo hoje há lojas ou restaurantes no piso térreo. E o
sentimento ao localizar a fotografia, é de alívio peloa memória de Breton e Nadja permanecerem preservada
em alguns dos locais pelos quais passaram.
Vemos em Sontag (2004) que Breton e os surrealistas influenciaram muito mais do que as artes. Em
suas flaneries eles procuravam mais os becos obscuros de Paris e as estreitas ruas, onde havia, por exemplo,
lojas de artigos de segunda mão e os conhecidos brechós do que lugares freqüentados pela vanguarda e de
estética apurada, como acontece até nossos dias.
O autor escreve sobre o hábito de vasculhar [...] objetos que não se encontram em nenhuma outra
parte [...] (BRETON, 2007, p. 56).
O encontro de Breton com sua musa acontece, assim, num desses ambientes menos cotados social
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mente, na Rua La Fayette, que Breton prefere grafar como Rua Lafayette, o que talvez fosse apenas
a notação correta de seu tempo.
Figura 5 - Fotografia da Livraria do L´Humanité, jornal comunista, na Rua Lafayette
e que foram citadas no anti-romance, mas o grau de importância de seus companheiros pode ser percebido
pela ordem e pelo destaque com que brinda cada um deles.
Neste momento do estudo, muda-se o enfoque da análise e passa-se a aprofundar nas contribuições
com que cada integrante do núcleo original do surrealismo efetivamente proporcionaram ao movimento
surrealista.
Sobre as fotografias das pessoas, as primeiras ilustram os companheiros surrealistas Paul Éluard e
Benjamin Péret. Apesar de descrever as sensações originadas pelos fatos inusitados que os ligaram, Breton
não descreve os amigos, mas prefere apresentá-los em fotografias. Pode-se supor que, segundo sua linha
de pensamento surrealista, preferia mostrar a imagem do companheiro a escrever sobre ele, possibilitando
ao leitor a constatação que tal personalidade realmente existiu e fez parte da vida de Breton, pelo menos
naqueles tempos de efervescência surrealista.
A fotografia de Paul Éluard mostra-o em um estúdio fotográfico, sentado e com as mãos unidas na
altura da cintura, com seus traços visivelmente retocados o que era muito comum para a época (fotografia
da esquerda referente à Figura 6).
Figura 6 –Paul Eluard.
Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 64); fotografia de baixo (SUR LES PAS..., Acesso 21 Jul.
2008).
No térreo, livraria de materialistas-históricos, no primeiro andar, o letreiro anti-iluminista anuncia:
“Benze-se aqui”. A fotografia registra uma contradição de posturas diante da vida na cidade de Paris, registrada por André Breton ao incluir essa foto em seu livro. No mesmo local da Rua La Fayette (imagem da
direita) hoje é um lugar neutro, sem contradições, equívocos e ambigüidades talvez estejam aí as marcas
pobres de uma época.
Personagens e Personalidades Surrealistas
No romance de Breton todos os personagens são reais, de certa forma, um ou outro tiveram um contato direto com o autor, mas nota-se que, como lhe é peculiar, ele não descreve as pessoas com que se relaciona
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Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 34); fotografia de baixo
(BIBLIOTHEQUE, Acesso 28 Jul. 2008).
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É interessante ressaltar que Eugène-Émile-Paul Grindel, ou seja, o poeta surrealista Paul Eluard (nascido a 14 de dezembro de 1895, Saint-Denis, Paris, faleceu em decorrência de problema cardíaco em 18 de
novembro de 1952 em Charenton-le-Pont) foi amigo pessoal de Breton, e juntamente com Benjamim Perét
frutificou em quantidade e qualidade, contribuindo em muito para a divulgação do surrealismo.
Procurando a cura para sua tuberculose no sanatório Clavadel, na Suíça, Eluard conheceu o poeta
brasileiro Manuel Bandeira, contudo no decorrer de sua vida outros nomes de destaque da intelectualidade
brasileira cruzaram seu caminho, como Cícero Dias e Carlos Drummond de Andrade. Para essa análise procurou-se captar uma foto com data mais recente (fotografia da esquerda na Figura 6), a imagem deixa visível
a passagem do tempo pelos sulcos ao redor de seus olhos e pelos cabelos mais ralos e grisalhos foi captada
pela Internet, e ainda assim a fotografia parece retocada como se a essência, o caráter, não houvesse mudado
com o passar dos anos. Como seus amigos surrealistas, Eluard ingressou no partido comunista e no ano de
1942 seu poema Liberte foi lançado pelos aviões ingleses sobre a França, o que promoveu o encorajamento
da Resistência Francesa durante a ocupação nazista. O poeta da Resistência viveu do coração, como morreu.
Já a fotografia de Benjamin Péret (nascido em 4 de julho de 1899 em Paris, morto em 18 de setembro
de 1859) com um ângulo mais aberto mostra um meio sorriso, e é o olhar o punctum barthesiano que o aproxima do expectador, como confidentes.
Figura 7 –Benjamin Péret.
Péret e sua esposa, a cantora brasileira Elsie Houston-Péret, instalam-se no Brasil de fevereiro 1929 a
dezembro de 1931, período em que trava relacionamento com a elite intelectual da época através da Revista
de Antropofagia. Nesta passagem pela América do Sul, desenvolve pesquisas sobre a arte brasileira e suas
raízes afro-índias resultando na obra Quilombo de Palmares e Revolta da Chibata.
O escritor e poeta surrealista Benjamin Perét (Figura 7) é expulso do Brasil pelo Governo Getúlio
Vargas por defender idéias socialistas.
Em Nadja, como no Manifesto do Surrealismo (1924), Breton nos apresenta através de fotografia o
poeta por Robert Desnos outro poeta pertencente ao grupo surrealista, que mereceu destaque.
Figura 8 –Robert Desnos.
Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 38); fotografia de baixo
(SURREALISM..., Acesso 28 Jul. 2008).
Fonte: Fotografia de cima (BRETON, 2007, p. 37); fotografia de baixo (MARXISTES,
Acesso 28 Jul. 2008).
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Em Nadja vê-se que Breton escreve sobre o domínio que o fazia admirar o jovem escritor. Ele, Breton, ilustra sua estima pelo jovem ao inserir duas fotos do poeta surrealista em estado de semi-consciência
(Figura 8).
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É entre os anos de 1922 e 1923 que ocorre por parte dos surrealistas uma grande experimentação da
linguagem e de todas as suas possibilidades. Nesse momento Robert Desnos junta-se ao grupo e participa
das experiências vívidas com a escrita automática, o sono hipnótico, histórias de sonhos ou fantasias. Era
considerado um prodígio da escrita automática, um verdadeiro laboratório de línguas, em meio aos transes ele produzia espécies de aforismos de alto valor que obtinham inúmeras possibilidades de linguagem
poética, sua capacidade é digna de uma homenagem por parte de Breton no Manifesto Surrealista. (UN
BRÈVE..., Acesso 29 Out. 2008).
Em 1927, com a filiação política do grupo surrealista e sua ligação com o Partido Comunista, inicia-se
um desgaste e com ele o movimento começa a perder alguns de seus integrantes entre eles o jovem Robert
Desnos. Cansado de suas aventuras surrealistas Desnos rompeu com o movimento e tornou-se jornalista
escrevendo muitos livros, assim como matérias para jornais de circulação diária como também se enveredou
pelo radialismo, sendo profícuo em tudo o que fez. No Segundo Manifesto Surrealista há seis páginas sobre
o poeta surrealista, mas desta vez não são elogios o teor do que lá se encontra. (UN BRÈVE..., Acesso 29
Out. 2008).
O mote de sua separação do grupo foi a vinculação dos surrealistas com o Partido Comunista, não por
que Desnos evitasse comprometimento político, pelo contrário, engajou-se não só através de sua arte como
também ativista reconhecido nos movimentos de resistência, caracterizando de forma coerente sua postura
de socialista radical, amante da liberdade e do humanismo. Desnos publica livros que ridicularizam os fanáticos alemães, o que custará sua liberdade, é preso e levado a inúmeros campos de concentração até que
em abril de 1945, já muito debilitado chega a um campo na Checoslováquia. Sua participação relevante nos
grupos de resistência durante a Segunda Guerra o fez conhecer um fim trágico (Figura 9). Robert Desnos,
nascido Robert Creeley em 4 de julho de 1900 em Paris, morre em 8 de junho de 1945 em Theresienstadt,
na Tchécoslovaquie de febre tifóide. (UN BRÈVE..., Acesso 29 Out. 2008).
Figura 9 –Robert Desnos, em campo de concentração nazista.
Figura 10 – Capas das edições brasileiras de “Nadja”, de 1964 e 2007.
Fonte: Fotografia da direita (INSPIROHIDES, Acesso 21 Jul. 2008);
fotografia da esquerda (BRETON, 2007).
Foi assim que ocorreu com a foto que ilustra a capa da segunda edição da obra Nadja (Figura 18),
a primeira vista pode ser uma alusão à personagem feminina, às mãos de Nadja que conduzem o autor à
flânerie sobre si mesmo, compreende-se que a proposta da fotografia se trata de uma referência à técnica da
escrita automática utilizada para a criação do texto surrealista.
A fotografia de várias mãos sobrepostas pode ser encarada como as várias influências que pesam sobre
um autor ao escrever uma obra literária, a mão que escreve apresenta várias “mãos” que querem direcioná-la
ou domá-la, cabe a ela entregar-se ou fugir.
Considerações Finais
Fonte: (SURREALISM..., Acesso 28 Jul. 2008).
A escrita do inconsciente se dá quando os objetos e pessoas da vida real tomam outra forma, e só neste
ambiente de quase-sonho, inconsistente e difuso é que as coisas reais (objetos, pessoas, lugares, imagens)
tomam um sentido claro e subjetivo.
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Na ponta do movimento criado por ele, André Breton procurou dar vazão ampla à criatividade e
ao inconsciente, desprezando qualquer forma de controle imposto ao artista. Ao escrever Nadja em 1927,
inaugura uma nova linguagem estético-literária ao aliar, pela primeira vez, fotografia e texto em uma obra
literária, utilizando a imagem nos momentos em que carecia fornecer ao leitor mais informações sobre seus
personagens, cenários e objetos envoltos na trama, além de buscar dar credibilidade às suas afirmações enquanto narrador de seu texto.
Ele utiliza a fotografia como uma forma de apresentar ao leitor o que não quer descrever, pois não
teria prazer em fazê-lo, além de julgar que a fotografia é uma rica maneira de dizer sem descrever com palavras tal como preconiza Kossoy (2002, p. 22) que afirma serem as fotografias “[...] plenas em ambigüidades,
portadoras de significados não explícitos e de omissões pensadas, calculadas”, aguardando decifrações,
interpretações.
Para Breton a imagem fotográfica suprime a descrição romanesca balzaquiana e reafirma, ao mesmo
tempo, a veracidade dos fatos narrados, enfatiza que sua obra não é um romance como os outros feitos na era
de ouro do gênero, no século XIX, mas que um outro tipo romance pode tomar outras formas na nova fase
da modernidade, recorrendo a outras modalidades da arte, enriquecendo-se, nem que seja para continuar
falando da mesma matéria, do ser humano, de suas indagações, mistérios e aspectos prosaicos.
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A realidade exterior aportada ao texto pela fotografia no contexto de Nadja possibilita ao leitor um
exercício mental na tentativa de decifrar o autor-narrador e a sua criação e com isso muito provavelmente
chegar a uma proximidade relativa de uma primeira realidade subjetiva a ele(s). Em outras palavras, essa
mescla de texto com fotografias leva a uma certa proximidade da vida real que é, no entanto, circunscrita
e introjetada pelo autor. Breton pretendeu que o leitor visse as pessoas e objetos do jeito que ele próprio os
tinha visto. Trata-se de uma transmissão de experiências, de um diálogo entre inconscientes, bem ao gosto
da escola que ele liderava.
Como somente a Breton, o pai do surrealismo, coube, durante toda a sua vida ligada ao movimento
libertário, conduzir, centralizar e controlar os integrantes do movimento, aplicando sanções e afastamento
de pessoas que ele próprio acreditava estivessem fugindo às convenções impostas pelo grupo surrealista,
a sua obra nos traz, com relação a ele, uma relação igualmente autoritária, com mais questionamentos do
que respostas. Talvez tenha sido essa, simplesmente, a intenção do autor. Porém, com o seu gesto artístico
inusitado ele não apenas dá status de arte à fotografia, como a consagra, em definitivo, unindo-a a literatura.
UN BRÈVE biographie de Robert Desnos. Disponível em: <http://clg-beaumarchais.scola.ac-paris.fr/Bm_
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Recebido em 21 de agosto de 2013.
Aprovado para publicação em 8 de julho de 2013.
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A Arte de Recriar Lendas e Mitos:
Intertextualidade e Antropofagismo
The art for recreating legends and myths: Intertextuality and Antropofagism
Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins
Professora doutora em Letras do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista, câmpus de
Bauru, Bauru, SP. Trabalha com a linha de pesquisa estudo do mito e análise e produção de texto.
Resumo
O folclore brasileiro é rico em estórias que povoam o imaginário popular e que se acreditava terem se originado entre os indígenas
locais ou entre os africanos escravizados pelo colonizador português. Entretanto, ao se comparar tais estórias a lendas de toda a Península Ibérica, observa-se que muitos dos elementos das lendas do Brasil refletem nitidamente, por exemplo, aspectos das narrativas
populares da Galícia e de Portugal, como As mouras e a Lenda da Yara, o Trasno e o Saci-Pererê. O objetivo deste trabalho é o de
analisar esses traços culturais, a partir da Literatura Comparada e da Intertextualidade, observando como o contexto, a ideologia
reinante, os aspectos socioculturais retomam as estórias já conhecidas por uma cultura e as adapta, segundo os hábitos de outra,
produzindo um novo texto-discurso com características locais.
Palavras-chave: Literatura Comparada; Intertextualidade; Lendas Ibéricas e Lendas Brasileiras; mito
Abstract
Brazilian folklore is rich in legends that inhabit in the imaginary of people and are believed to have originated among Brazilian indigenous peoples and the Africans who were enslaved by Portuguese settlers. However, when those stories are compared with the legends of
the Iberian Peninsula , one can notice that a lot of elements in the Brazilian legends clearly reflect, for example, aspects of the popular
narratives from Galicia and Portugal, such as “The moors” and “Yara’s legend”; “O trasno” and “Saci pererê”. The objective of
this paper is to analyze those cultural traces by means of Comparative Literary and Intertextuality analysis, by observing how the
context , the ruling ideology, and both social and cultural aspects retake the stories that are known to a certain culture and readapt
them according to the traditions of another, thus producing new discourse-texts with local characteristics.
Keywords: Comparative Literature; Intertextuality; Iberian and Brazilian legends; myth
Introdução
O
Brasil é conhecido como um caldeirão de culturas, que une desde o indígena que habitava a terra,
quando chegaram os colonizadores portugueses, há 500 anos, e estabeleceram os primeiros contatos com os índios e com sua cultura; até os africanos, escravos, além dos imigrantes espanhóis,
alemães, italianos, japoneses, coreanos, que aportaram no país nos séculos posteriores. Os jesuítas como Padre José de Anchieta e Manuel da Nóbrega ensinaram noções civilizatórias aos selvagens, porém
o homem branco não conseguiu escravizá-lo, uma vez que o real dono da terra não se submetia ao invasor.
Dessa forma, passaram a chegar os navios negreiros, com grande contingente de africanos, que trouxeram
seus hábitos, religiões e culturas características.
Essas três etnias mesclaram seus conhecimentos e tradições, surgindo comidas como a farinha de
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mandioca (com sua lenda), a tapioca, o pirão, o beiju, além do hábito de se saborear várias frutas nativas
como o caju, a goiaba, o maracujá. Com o africano veio o caruru, o vatapá, o acarajé e a pamonha. Os portugueses trouxeram as bebidas destiladas, o vinho, o pão, o leite, o açúcar, a canela e a carne seca. Da mescla
dessas culturas surgiram pratos como a canjica, “uma pasta de milho puro até receber o leite, o açúcar e a
canela dos portugueses ganhando adaptações de acordo com o preparo, como o mungunzá, nome africano
para o milho cozido com leite, e o curau, feito com milho mais grosso”. (CASCUDO, 1983, p.151)
A contribuição dos falares desses povos também atuou de forma contundente na língua portuguesa,
quer na inserção de novos vocábulos, quer nas construções frasais mais simplificadas e nas formas de tratamento. Um exemplo é caso do pronome você: a forma empregada pelos portugueses era o cerimonioso Vossa Mercê, mas o termo empregado na atualidade surgiu de uma variante utilizada pelos escravos, vassuncê,
que gerou vancê, chegando ao você, adotado em várias regiões brasileiras na linguagem oral.
Quanto à religião, se os portugueses trouxeram o cristianismo, fosse com os católicos tradicionais
ou com os cristãos-novos (judeus convertidos pela Inquisição), os índios já possuíam seus próprios deuses
e rituais, bem como os africanos que trouxeram seus orixás. A miscigenação de hábitos e costumes fez com
que também as narrativas desses povos adquirissem características intertextuais, no Brasil. Dessa forma, algumas lendas ibéricas foram antropofagizadas, mesclando-se às narrativas indígenas, o que também ocorre
com as estórias trazidas pelos africanos.
Neste artigo serão abordadas as interferências desses povos sobre os costumes e lendas brasileiras,
sob a ótica da Literatura Comparada, a partir de suas vertentes multidisciplinares envolvendo os estudos
antropológicos e literários, bem como a intertextualidade, observando-se aspectos relativos à ideologia e
ao contexto sócio-histórico, com o objetivo de se analisar os aspectos intertextuais que se manifestam nas
lendas trazidas pelo colonizador ibérico ao Brasil, em contraste com as lendas dos indígenas naturais da
terra e com a cultura do escravo africano.
1.Inspiração, arte e criação literária
A literatura e as artes em geral sempre estiveram marcadas pelas menções a obras anteriores, a partir
de um mesmo tema ou utilizando processos criativos similares aos de que se servira o autor precedente.
Assim, em Oscar Wilde observa-se que O retrato de Dorian Grey (1891) retoma o poema trágico Fausto,
de Goethe, publicado em 1808, conferindo-lhe alguns aspectos contextualizados e imprimindo ao formato
romance as características literárias do próprio Wilde e de sua época, embora a temática básica de vender a
alma ao diabo se mantenha, por diferentes propósitos: em Goethe, a sede conhecimento, mas não o amor;
em Wilde, a vaidade e a solidão.
Também em clássicos como Os Lusíadas de Camões se observam claras referências à Odisséia e
Ilíada, de Homero, bem como à Eneida, de Virgílio, pois Camões chega a repetir certos episódios, como o
da ilha da feiticeira, que transforma todos os portugueses em porcos, da mesma forma que ocorre com os
gregos na ilha de Circe. O mesmo Camões, em sua lírica, retoma o poeta italiano Petrarca.
Na pintura, exemplos como O Narciso de Caravaggio (pintado entre 1594 e 1596) e Metamorfose de
Narciso (1937) de Salvador Dali mantêm o mesmo tema, o do mito grego de Narciso, conhecido há dois mil
anos e que também inspirou autores da literatura, como Ovídio (Metamorfoses, livro III) e Stendhal, além
de poetas como John Keats.
No cinema, as refilmagens de grandes clássicos (ou grandes bilheterias) procuram repetir o sucesso
dos filmes anteriores, por vezes utilizando-se de novos recursos audiovisuais da moderna tecnologia ou parodiando um tema, anteriormente tratado com seriedade. Nas últimas décadas, muitas foram as refilmagens:
“O homem que sabia demais”(1956) e o de mesmo título e diretor (Hitchcock) de 1934, além dos juvenis
“A fantástica fábrica de chocolate” (Gene Wilder, 1971; e Johnny Depp, 2005) e “A máquina do tempo”
1960 e 2002), citando-se apenas alguns exemplos.
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A questão é que a inspiração deve, necessariamente, vir de algum lugar, para que o artista recrie sua
obra a partir de outra, mas imprimindo-lhe suas próprias características. A arte, muitas vezes procura inspiração no passado para uma nova criação, à qual o autor imprimirá novos elementos do contexto histórico e
social, além de sua própria ideologia, sob outra ótica, conferindo-lhe traços de sua própria autoria. Fiorin
batiza de “ilusão da liberdade discursiva” essa noção da autoria individual e a exemplifica com a expressão
de Edward Lopes: “combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma trapaça: ele simula ser meu para dissimular que é do outro” (LOPES, 1978, cf. FIORIN, 1999, p.35).
Bakhtin, ao discutir o conceito de dialogismo, coloca em pauta a discussão de que o discurso não se
constrói sobre si mesmo, “mas se elabora em vista do outro” (FIORIN, 1999, p.29). Os procedimentos de
utilização de outros textos em novas obras, a partir dos estudos bakhtinianos e mais tarde dos de Kristeva,
levaram a indagações sobre quais motivos teriam levado o autor do texto mais recente a reler material anterior, ou que novo sentido seria atribuído a esses textos, assim deslocados em um novo contexto, ao serem
relançados e/ou copiados. A partir dessas indagações surgiram estudos com base na Teoria Literária, na
Literatura Comparada, na Semiótica e na Análise do Discurso, assumindo diferentes abordagens acerca do
fenômeno ocorrido no texto ou no discurso-texto.
(CARVALHAL, 2009, p.48). Dessa forma, o texto não reproduziria as “vozes” da história como unidade,
“mas como jogo de confrontações” (IDEM)
Para Bakhtin o texto literário não possui apenas uma voz, mas é atravessado por várias vozes, tanto
direta como indiretamente, o que conduz a noções diferenciadas. A partir dessa idéia, Julia Kristeva cunha
o termo intertextualidade, que seria o dialogismo aplicado a textos diferentes. Dessa forma, passa-se da influência para a referência, uma vez que todo texto faz referências literárias e tem uma matriz que o precede.
Portanto, usando as palavras de Kristeva, todo texto é um “mosaico de citações”, isto é, “o texto literário
é uma rede de conexões”(NITRINI, 1998, p. 162).
Uma figura de grande destaque para os estudos comparatistas no Brasil, Antonio Cândido observou
que a questão da influência estaria relacionada a um sistema integrado e dinâmico de autores, obras e público, o que contribuiria “para formar a continuidade no tempo e para definir a fisionomia própria de cada
momento” (CANDIDO, s/d. cf. NITRINI, 1998, p. 204).
Para Nitrini (1994, pp.477-478) as áreas de estudo em que determinado momento se organizaram a
Teoria Literária e a Literatura Comparada no Brasil estariam distribuídas em dez linhas, estabelecendo essa
rede de conexões para além do texto literário entre as quais destacamos, para este trabalho:
1.1.O formalismo e as bases para o comparatismo: os textos clássicos
1)Literatura e sociedade: trata-se de determinações básicas da obra de arte literária no sistema de comunicação da literatura. Essa linha de estudos entronca-se diretamente nas vertentes centrais da tradição da
crítica literária no Brasil, voltada desde as origens para os problemas decorrentes da inserção do texto num
contexto particular, para o relacionamento entre as obras e o público e as questões da própria forja estética
em seus vínculos complexos com o processo históricosocial.;
2)Estudos comparativistas da literatura, voltados para a história da literatura comparada e de suas
relações com as teorias e a crítica literária bem como para o estudo das relações da literatura brasileira com
outras literaturas e da literatura com outras artes. (NITRINI, 1994, p.478)
Na primeira década do século XX, os estudos comparatistas tiveram impulso entre os estudiosos do
Círculo Linguístico de Moscou, surgindo como uma reação às raízes positivistas da crítica em vigor, que
primava pela historicidade e pela erudição. No intuito de redirecionar esses estudos, os formalistas reagiram contra essa crítica impressionista, subjetivista e tendenciosa, acreditando que seus estudos na área
da literatura deveriam direcionar-se para a literariedade, ou seja, para o conjunto de traços distintivos que
conferiria qualidade a uma obra. O fato literário, acreditavam, possuiria características próprias, imanentes
do próprio texto, a ser adotado como objeto de estudo.
Os primeiros estudos focalizaram a busca de aspectos fonoestilísticos, a partir da métrica e dos aspectos sintáticos dos versos; depois se direcionaram para os elementos semânticos e para as questões estilísticas (uso de metáforas, aspectos fraseológicos etc.), para em um momento seguinte estudarem os gêneros
(romance-novela, principalmente), a forma e a importância do fator tempo na estrutura do texto. Também
observaram que questões de caráter ideológico, cognitivo ou emocional somente poderiam ser estudadas a
partir de sua manifestação em um corpus, não devendo ser analisadas separadamente. Tynianov, do Círculo
Linguístico de Moscou, passou a defender a noção de que a obra de arte não estaria isolada, mas correlacionada a um sistema:
(...) a literatura contemporânea não pode ser estudada isoladamente. A existência de um fato literário
depende de sua qualidade diferencial (isto é, de sua correlação seja com a série literária, seja com uma série
extraliterária), em outros termos, de sua função (TYNIANOV, 1971, p.109)
Para o autor, se um elemento fosse retirado de seu contexto e colocado em outro, já não seria mais
o mesmo, posto que inserido em outro sistema; também teria sua função original e sua natureza alteradas.
A obra literária, portanto, constituiria uma rede de relações diferenciadas, não linear, com os textos que a
antecederam, que lhe são simultâneos, ou ainda com os que não possuem caráter literário. Mukarovský, do
Círculo Linguístico de Praga, retomou posteriormente os estudos de Tynianov para trabalhar as questões de
correlações estabelecidas em uma obra de arte, a partir dos termos “função” e “dominante”, cunhados pelo
estudioso russo.
O resgate da história na obra de arte, que havia sido negligenciado pelos primeiros formalistas, apenas com Bakhtin é restabelecido, sob uma perspectiva diacrônica, em que o texto deve ser interpretado
não apenas “como uma construção polifônica, onde várias vozes se cruzam e se neutralizam, num jogo
dialógico, mas também interpretando essa polifonia romanesca como um cruzamento de várias ideologias”
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Kristeva, na década de 60 do século XX, a partir dos estudos do Círculo de Praga, já concluíra que a
produtividade de um texto literário estaria relacionada à assimilação de outros conteúdos, existindo a produtividade em virtude de todo texto ser absorção e transformação de outro texto, como o processo de escrita
resultante da assimilação ocorrida no contato com um corpus literário anterior: “O texto, portanto, é absorção e réplica a outro texto (ou vários outros)” (CARVALHAL, 2009, p.50). Em 1969, Kristeva utiliza o
termo “intertextualidade” para um procedimento natural e contínuo da reescrita de textos. Os procedimentos
de utilização de outros textos passaram, a partir desses estudos, a serem observados com base em indagações referentes às razões que teriam levado o autor do texto mais recente a reler o material anterior, ou que
novo sentido seria atribuído a esses textos, assim deslocados em um novo contexto, ao serem relançados e/
ou copiados. Segundo Samoyault (2008):
A literatura se estabelece numa relação com o mundo e numa relação consigo mesma, com sua história, com a história de suas produções, com a longa caminhada de suas origens. Enfim, ela carrega sua própria
memória, consubstanciada na conhecida e polêmica teoria da intertextualidade. ( cf. NITRINI, 2010, p.145).
O processo de apropriação de um texto por outro se dá, segundo Jenny (cf. CARVALHAL, 2009,
p.51), a partir de um texto transformador, que comanda o sentido, o qual direciona um trabalho de transformação e de assimilação de outros textos. Dessa forma, o texto produzido, utilizando-se de mecanismos da
ordem da paráfrase, da estilização, da apropriação, da paródia, da alusão ou da citação resgata elementos
pertinentes aos efeitos de sentido que se deseja produzir. Exemplo desse processo pode ser observado nas
lendas da Coca (um dragão), na Península Ibérica; e da Cuca (um jacaré, no Brasil), que serão retomadas
no próximo capítulo.
Toda retomada de um motivo possui uma carga de intencionalidade, seja para dar continuidade, para
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modificar, subverter ou para atuar com o texto antecessor: “A verdade é que a repetição, quando acontece,
sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o (...) o re-inventa (...). A imitação é um procedimento
de criação literária”. (CARVALHAL, 2009, p.54)
Para Sant’Anna (2003, p.28) a paródia se constrói sobre a “intertextualidade das diferenças”, produzindo um efeito de deslocamento, de deformação do texto original. Já a paráfrase ocorre a partir da “intertextualidade das semelhanças”, ou seja, trata-se de um novo discurso em repouso, onde ocorre o reforço,
sob um efeito de condensação. Mas se a paródia e a paráfrase estabelecem uma polarização, a paródia e a
estilização apresentam-se paralelas: para Tynyanov (cf. SANT’ANNA, 2003, pp 13-14), a paródia e a estilização estão mais próximas, embora na paródia, os dois planos devem ser necessariamente discordantes,
deslocados: a paródia de uma tragédia será uma comédia (não importa se exagerando o trágico ou substituindo cada um de seus elementos pelo cômico); a paródia de uma comédia pode ser uma tragédia. (IDEM,
p.14)
Na estilização ocorre a concordância dos dois planos: “o do estilizando e o do estilizado, que aparece
através deste. Finalmente, da estilização à paródia não há mais que um passo; quando a estilização tem uma
motivação cômica ou é fortemente marcada, se converte em paródia”. (IBIDEM)
Apesar de se sustentar nos modelos formalistas, no início de seus estudos, Sant’Anna (2003) termina por elaborar um modelo de análise que não se restringiria à literatura, mas se estenderia a outras
manifestações artísticas. Assim, reavalia os três termos de retomada iniciais da seguinte forma: a paráfrase
constituiria um desvio mínimo em relação ao texto anterior; a estilização, um desvio tolerável; e a paródia,
um desvio total. Sob essa ótica,
a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Já a paráfrase reafirma
os ingredientes do texto primeiro conformando seu sentido. Enquanto a estilização reforma esmaecendo,
apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura. Por isso é lícito dizer que a paráfrase e a
estilização fazem parte de um mesmo conjunto em oposição à paródia. (p.41)
O outro processo a que se refere Sant’Anna e a que denomina “apropriação”, consiste na colocação
de um elemento que já existe, dentro de uma obra de arte. Essa técnica teria chegado à literatura por meio
das artes plásticas, do dadaísmo, a partir de 1916:
Identifica-se com a colagem: a reunião de materiais diversos encontráveis no cotidiano para a confecção de um objeto artístico. Ela já existia nos ready-made de Marcel Duchamp, que consistia em apropriar-se
de objetos produzidos pela indústria e expô-los em museus ou galerias, como se fossem objetos artísticos
(...) volta ao uso em torno dos anos 60, quando surge a pop art. Aqui os artistas manipulavam objetos da sociedade industrial para construírem suas obras. Por exemplo, Andy Warhol apropriou-se de algumas latas de
sopa Campbel!. Ou melhor, retratou, de maneira quase fotográfica, 200 latas daquela marca de sopa sobre
uma tela (1962) como se fossem objetos artísticos (...) (SANT’ANNA, 2003, pp 43-44)
O autor esclarece que essa técnica artística considerada moderna, utiliza, na verdade, o mesmo princípio do deslocamento que se aproxima do estranhamento e do desvio, ou seja, “tirado de sua normalidade,o
objeto é colocado numa situação diferente, fora de seu uso” (IDEM, p.45)
A partir dos elementos já expostos, Sant’Anna apresenta a paráfrase e a estilização aproximadas por
um conjunto de similaridades, enquanto a paródia e a apropriação pertenceriam a um conjunto de diferenças. Também esclarece que há uma gradação a ser considerada, pois se no primeiro conjunto a paráfrase é
o grau mínimo de alteração do texto e a estilização o desvio tolerável; na paródia ocorreria a inversão do
significado, cujo extremo é a apropriação: “pode-se dizer que a paráfrase é a apropriação de cabeça para
baixo” (Ibidem, p.48)
Observa-se que, mesmo entre os clássicos ocorre esse processo de intertextualidade. Camões inspira-
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-se em vários expoentes da literatura da Antiguidade, sendo Os Lusíadas produto dos acontecimentos que
marcaram a Europa no final do século XV, quando surge o Renascimento. A releitura (e imitação) de Homero, Virgílio e Ovídio, como procedimento de criação literária para o renascentista, é estabelecida a partir dos
gregos e romanos, que possuíam uma visão mais completa e humana da natureza, ao contrário dos homens
medievais.
Com relação ao tema deste trabalho, a intertextualidade entre as lendas trazidas pelo colonizador
ibérico pode ser analisada, também, a partir do que no Modernismo brasileiro se chamou movimento antropofágico que, à semelhança do que Bakhtin denominou dialogismo e carnavalização – e que mais tarde
Kristeva irá denominar intertextualidade – vários autores brasileiros não ignoraram as influências europeias,
mas as assimilaram, à medida que as reverteram, introjetaram e reordenaram de acordo com seu próprio
estilo (ZANI, 2003). Na visão de Stam, “O artista de uma cultura dominada não pode ignorar a presença
estrangeira; é preciso que dialogue com ela, que a engula e a recicle de acordo com objetivos nacionais”.
(2000, p. 55).
Monteiro Lobato foi um desses autores que retomaram vários motivos europeus e os transformaram
de acordo com a cultura brasileira nas primeiras décadas do século XX. Lendas gregas como a do Minotauro, Hércules e seus doze trabalhos são alguns dos textos recriados pelo autor; além da própria Cuca (ou Coca
ibérica), que assumirá características abrasileiradas, passando de dragão a jacaré e com novas acepções.
2.
O folclore e suas definições
Houaiss (web dicionário) define folclore como “conjunto de costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservado através da tradição oral, por um povo ou grupo populacional; cultura
popular, populário”. Ou ainda “ciência das tradições, dos usos e da arte popular de um país ou região” (...);
[por extensão]:“ coisa fantasiosa, inverídica (...), aspecto ou característica pitoresca ou antiquada”
Também esclarece que o termo originou-se do inglês folk do final do século XII, para designar “povo,
nação, raça”. Esse termo, por sua vez, teria se originado de uma raiz germânica Volk, mais lore , do inglês
do século X, que significava “ato de ensinar, instrução, educação, lição”, que teria gerado to learn “aprender,
instruir-se”.
Para Brandão (1984, p.28) o composto saxão Folk-Lore (folklore) sugere um “saber tradicional de
um povo”, algo colhido aqui e acolá, e muito antes de receber essa denominação por parte da ciência,
“historiadores, literatos, músicos eruditos,arqueólogos, antropólogos, antiquaristas, linguístas,sociólogos,
outros especialistas e alguns curiosos” (IDEM, p.26) dedicavam-se aos “costumes e as tradições populares”.
Tais pesquisadores fizeram a coleta e a análise comparativa, muitas vezes associando em uma obra diversas
espécies de semelhante filiação: contos e lendas, como produções literárias; refrões, máximas, sentenças
editos, por analogia de índole; usos, crenças, tradições, cerimônias e o clássico ‘trajes e costumes’. (VEGA,
1960, cf. BRANDÃO, pp.27-28)
Posteriormente, em 1878, fundou-se em Londres a Sociedade do Folclore, a qual determinou que
folclore (em minúscula) estaria relacionado ao saber do povo e Folclore (maiúscula), a um “saber erudito”
dedicado ao estudo do “saber popular”. Dessa forma, o objeto de estudo desse novo campo da ciência, ao
qual se dedicaram historiadores, antropólogos, filósofos, psicólogos, etnógrafos etc., ficou dividido da seguinte forma:
1)
as narrativas tradicionais, como os contos populares, os mitos, lendas e estórias de adultos
ou de crianças, as baladas, “romances” e canções;
2)
os costumes tradicionais preservados e transmitidos oralmente de uma geração à outra, os
códigos sociais de orientação da conduta, as celebrações cerimoniais populares;
3)
os sistemas populares de crenças e superstições ligados à vida e ao trabalho, englobando,
por exemplo, o saber da tecnologia rústica, da magia e feitiçaria, das chamadas ciências populares;
4)
os sistemas e formas populares de linguagem, seus dialetos, ditos e frases feitas, seus rePoéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 92-111, 2013.
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frões e adivinhas. (BRANDÃO, 1984, p.28)
Em muitos países da Europa e nos Estados Unidos, a noção de folclore está relacionada ao que pode
ser incorporado à categoria de literatura oral, ou seja, às produções orais do saber popular, que excluiriam
os processos de produção e os produtos deste saber sob a forma de cultura material (IDEM, p. 29).
Franz Boas, alemão dedicado ao estudo da antropologia cultural norte-americana, definia o folclore
como um aspecto da Etnologia, uma disciplina da Antropologia, não uma ciência voltada para a literatura
tradicional dos povos de qualquer cultura, o que relaciona o folclore à cultura primitiva, aos mitos, lendas e
cantos como os das sociedades tribais indígenas (IBIDEM, p.30). Da mesma forma, outros estudiosos irão
relacionar o folclore à literatura tradicional, ou seja, aos mitos, contos, fábulas, música, poesia, provérbios,
elementos de uma sabedoria tradicional e anônima. Sob essa ótica, as estórias da tradição oral foram transmitidas entre os aldeões ao longo dos séculos, sendo compiladas no século XVI por Perrault, na França, e
pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, e pelo historiador Franz Xavier Von Schönwerth, que viveu entre
1810 e 1886 na Alemanha, recentemente redescoberto.
Para Cascudo (2001, p.240) “folclore é a cultura popular, tornada normativa pela tradição” e que
“compreende técnicas e processos utilitários, além de sua funcionalidade”, sendo que os dados recentes
tornar-se-iam tradicionais, a partir da assimilação do fenômeno coletivo:
O folclore inclui nos objetos e fórmulas populares uma quarta dimensão, sensível ao seu ambiente.
Não apenas conserva, depende e mantém os padrões do entendimento e da ação, mas remodela, refaz ou
abandona elementos que se esvaziaram de motivos ou finalidades indispensáveis a determinadas sequências
ou presença grupal (IDEM)
Ultrapassando a definição de William John Thoms, Cascudo acrescenta que “qualquer objeto que
projete interesse humano, além de sua finalidade imediata, material e lógica, é folclórico” (IBIDEM). Dessa
forma, mesmo elementos da alta tecnologia, como os aviões, os transatlânticos, a indústria e o laboratório
de química, serão considerados folclóricos, caso gerem projeções culturais no plano popular: “O folclore
estuda a solução popular na vida em sociedade”. (CASCUDO, 2001, p.241)
Paul Sebillot, entre o final do século XIX e início do século XX, considerava o folclore como “uma
espécie de enciclopédia das tradições, crenças e costumes das classes populares ou das nações pouco avançadas” (cf. BRANDÃO, 1984, p.29) . O aspecto que interessa a este trabalho é o que envolve a cultura
primitiva, os mitos, lendas e cantos de um povo, seja do Brasil, seja da Península Ibérica, que também
abrange a capacidade do povo de criar e recriar, como forma de manter a tradição popular, os rituais que
se manifestam nas danças, nos cantos, nas atividades religiosas, nas lides domésticas do cotidiano com os
animais, nas vestimentas, na comida, nos instrumentos de trabalho, nas receitas culinárias, nos bordados,
nas canções de ninar etc.
2.1. Lendas e tradições
Para Cascudo (2001, p.328) a lenda “Liga-se a um local, como processo etiológico de informação,
ou à vida de um herói, sendo parte e não todo biográfico e temático. Conserva as quatro características do
conto popular: antiguidade, persistência, anonimato,oralidade” (2001, p.328). Dessa forma, um fato folclórico define-se como a parcela do conhecimento humano que se transmite no tempo e no espaço, de geração
a geração, de camada cultural a camada cultural, consistindo em elemento dinâmico de uma cultura, que
se modifica e transforma de região para região, de acordo com o meio físico e social. É o modo de pensar,
sentir e agir de um povo, preservados pela tradição popular e pela imitação, pela linguagem e pela literatura
popular. “Nada melhor que as tradições para retemperar a saúde de nossa alma gaúcha”1 . A palavra tradição
vem do latim “tradio” que significa entregar, transmitir, ensinar.
Na tradição da palavra seja ela cantada ou narrada incluem-se as lendas e contos populares, que no
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Brasil são chamados de “causos” pelo caboclo ou homem do campo, e que envolvem orações, maldições,
encantamentos, além das canções de ninar como a do “Boi da cara preta”, que já fez muita criança dormir,
embora assuste pequenos de outras culturas: “Boi, boi, boi,/ boi da cara preta/ pegue esta criança/que tem
medo de careta...”
Entre os personagens que povoam o anedotário popular brasileiro estão o Curupira (menino de cabelos vermelhos, protetor da fauna e da flora, que tem os pés virados para trás, para enganar os caçadores e
quem o persiga pelas matas), o Saci-Pererê (menino negro de uma perna só, que usa uma carapuça vermelha, fuma um cachimbo e costuma fazer travessuras como dar nó na crina dos cavalos), o Boto Rosa (que
encanta as moças ribeirinhas e as seduz) e sua versão feminina, a Iara ou Mãe d’água, além de muitos outros
como a Cuca, a Mula-Sem-Cabeça, o Boitatá, o Negrinho do Pastoreio (de cunho religioso) etc.
2.1.1. Os mitos e as lendas
A origem das lendas, em muitas culturas, pode ser encontrada em seus livros sagrados que contam
a vida de homens considerados santos e que na tradição oral assumiram diferentes versões. Na Península
Ibérica há a estória de Santiago de Compostela e de Santo Antonio de Lisboa, além da de Nossa Senhora de
Fátima, por exemplo. No Brasil, a lenda que narra como a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a padroeira do país, foi encontrada em duas partes, primeiramente o corpo e depois a cabeça, quando
a rede foi novamente lançada pelos pescadores no Rio Paraíba do Sul, é um exemplo. A lenda do Negrinho
do Pastoreio, da época da escravatura, une elementos religiosos a acontecimentos comuns como fazendeiros
que maltratavam seus escravos e a intercessão da Virgem Maria.
Entretanto, como “quem conta um conto, aumenta um ponto”, como se diz no Brasil, algumas lendas
adquiriram características diferenciadas em várias regiões do país, de acordo com as características locais.
Assim ocorre com as que envolvem homens sedutores e valentes do Nordeste, como Ojuara – o homem que
desafiou o diabo (CASTRO, 2006); e do Sul, como o Capitão Rodrigo Cambará, imortalizado na obra de
Érico Veríssimo O tempo e o vento (2009), inspirado no herói riograndense Bento Gonçalves. Em comum,
o fato de serem apaixonados por aventuras e mulherengos; mas se tanto o herói nordestino, quanto o gaúcho são picarescos típicos, o Capitão Rodrigo também traz em suas veias o desejo de pelejas que envolvam
causas políticas, como as revoltas riograndenses e a Guerra dos Farrapos.
Kothe (1986) faz a distinção entre heróis clássicos (vindos das classes mais altas da aristocracia,
como reis, príncipes, ou filhos de deuses com mortais, como Ulisses, Hércules ou Teseu e cujas aventuras
devem transmitir valores morais, a partir de seu sofrimento e aprendizado); trágicos (também das classes
aristocráticas, mas perseguidos por um destino cruel, como Édipo Rei e Antígone); e picarescos (os das classes mais baixas, preguiçosos, boêmios, desprovidos de bons propósitos e que procuram ridicularizar, por
vezes, os membros das classes mais altas, como exemplo, Macunaíma, do modernista Mário de Andrade)
Para o antropólogo Mircea Eliade (2002) há uma nítida distinção entre o mito e a lenda: o mito narra
uma estória sagrada, na qual estiveram presentes os seres que participaram dos “começos” da humanidade
(cosmogonia) ou em um término de ciclo (escatologia). Para o homem das sociedades arcaicas tudo quanto
aconteceu ab origine (nos começos) é explicado pelo mito, uma vez que não possuíam a ciência para lhe
esclarecer certos fenômenos da natureza, por exemplo.
O mito é retomado através dos rituais, quando os recitam e representam, em uma época, lugar e em
momentos especiais (geralmente no inverno, ao redor de uma fogueira ou em uma caverna, à noite, como
parte dos ritos de iniciação do jovem à idade adulta): “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem
das coisas (..) não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer
com que reapareçam quando desaparecem” (ELIADE, 2002, p.18). Dessa forma, os jovens devem conhecer
os segredos para manterem a tradição e a união da tribo, assumindo suas responsabilidades para com seus
membros. Em sua visão, a lenda estaria no terreno do anedotário popular, das “estórias falsas”, que não necessitariam de ocasião, ritos ou locais particulares para serem narradas. Pertenceriam a esse rol as estórias
envolvendo os coiotes entre os índios norte-americanos e, no Brasil, a Cuca, o Homem do Saco, o Boitatá
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etc.
Cascudo (2001) define mito não como um acontecimento, mas como um “objeto ou ser fabuloso,
fictício, inexistente fisicamente, em geral disforme ou monstruoso, às vezes com figura de gente ou de
animal” (p.388) e acrescenta que existe ao redor do mito sempre uma lenda transmitida no trato oral e, por
isso, sofrendo sucessivas modificações ao ser relatada. Observa-se, dessa forma, que ocorreria uma mistura
com a lenda, segundo a visão de Eliade, pois Cascudo acrescenta que os mitos, no Brasil, sob influência
portuguesa, africana e indígena, seriam O Saci, a Mula-Sem-Cabeça, o Negrinho do Pastoreio, o Caipora,
que Eliade classificaria como lendas, pois nada têm de sagrado.
Houaiss (web dicionário) as define como tipo de “narrativa de caráter maravilhoso em que um fato
histórico, centralizado em torno de algum herói popular (revolucionário, santo, guerreiro), assume características grandiosas ao ser transformada “sob o efeito da evocação poética ou da imaginação popular”. Também é vista como “narrativa ou crendice acerca de seres maravilhosos e encantatórios, de origem humana
ou não, existente no imaginário popular, frequentemente explicando fenômenos da natureza, o que a relaciona, por extensão, à ‘tradição popular’. Seria explicada por certos antropólogos como uma degeneração
popular do mito que, transmitido oralmente de uma geração a outra sofreu várias transformações, perdendo
seu caráter sagrado. Considerando esse aspecto, serão abordadas lendas ibéricas, em contraste com lendas
brasileiras de mesma temática, estabelecendo seus aspectos intertextuais e/ou antropofágicos.
(e nesse caso devem ser desencantadas com um beijo) ou têm asas e vivem em um lugar mítico conhecido
como “mourama”. Segundo Leite de Vasconcelos, “são seres obrigados por oculta força sobrenatural a viverem em certo estado de sítio como que entorpecidos ou adormecidos, enquanto determinada circunstancia
lhes não quebrar o encanto”.As lendas descrevem as mouras encantadas como jovens donzelas de grande
beleza ou encantadoras princesas e, segundo Alexandre Parafita, “perigosamente sedutoras” [2]. As mouras
aparecem frequentemente cantando e penteando os seus longos cabelos, louros como o ouro ou negros como
a noite, com um pente de ouro e prometem tesouros a quem as libertar do encanto2.
3
3. As lendas dos imigrantes e a intertextualidade
Neste item serão apresentados alguns exemplos de lendas cujo tema se repete, seja na Península
Ibérica ou no Brasil, com variações que se adaptam aos costumes de cada cultura e que refletem os valores
de cada sociedade, em épocas distintas. Anteriormente já se mencionou os aspectos intertextuais refletidos
nas estórias narradas pelos caboclos brasileiros, em cuja veia corre também uma mistura de sangue do colonizador, do habitante da terra e do escravo africano.
O colonizador e os jesuítas trouxeram o cristianismo e a perseguição aos judeus que aqui aportavam,
havendo a obrigatoriedade da adoção do catolicismo e de seus santos, embora o ibérico tivesse uma crença
muito forte em poções, amuletos, bruxarias, feitiços ou encantamentos, um traço que ainda se observa,
principalmente em regiões como o norte de Portugal e na Galícia espanhola. Já o indígena, ainda que catequizado, possuía seu próprio panteão de deidades, relacionadas à natureza, como Tupã (o trovão), Jaci (a
lua), Ci (a mãe criadora), o Caipora (protetor da floresta), entre outros. Com os africanos também chegaram
o candomblé e suas divindades: Oxalá (deus da criação), Iansã (deusa das tempestades), Oxóssi (deus das
matas), Oxum (deusa das águas doces)etc. Do sincretismo entre essas religiões nasceu a Umbanda, em que
se mesclam Oxalá (representado no altar pela figura de Jesus), os Caboclos (índios), Pretos velhos (ex-escravos), Iemanjá (deusa do mar/ Nossa Senhora da Conceição), Oxóssi (São Jorge), Iansã (Santa Bárbara)
entre outros.
Muitas das lendas narradas no Brasil irão refletir aspectos relacionados a esses hábitos e crenças
religiosas, como se verá a seguir:
As mouras (Portugal)
As mouras encantadas ou moiras encantadas são imaginadas no folclore português como jovens enfeitiçadas para guardar os tesouros abandonados pelos mouros expulsos da Península Ibérica. Aparecem
junto de nascentes, rios, grutas, ruínas de fortalezas pré-históricas conhecidas como “castros” ou “citânias”.
Túmulos pré-históricos como os dólmens (comuns em Portugal, onde são chamados antas, palas, orcas ou
arcas) são muitas vezes chamados de “casa da moura” ou “toca da moura”. Vistas a cantar e se pentear com
pentes de ouro, as mouras prometem seus tesouros a jovens dispostos a desencantá-las com certas oferendas
(geralmente de pão ou leite), de preferência no dia de São João. Vale notar que, em tempos pagãos, pão era
oferecido aos mortos e leite às fontes e às serpentes. Às vezes, as mouras tomam a forma de mulher-serpente
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As Mouras (Espanha)
Apesar de muitos as poderem confundir com as mulheres dos mouros, nada tem a ver com isso. São
outros seres, umas formosas mulheres encantadas que habitam lugares relacionados com a água, como fontes e rios, ou em ruínas de antigas construções como os castros. Tem longos cabelos loiros ou vermelhos,
pele branca, bochechas rosadas e vestem roupas de seda. São donas de grandes tesouros e passam o tempo
lavando, tecendo fiando ou dando de comer aos animais das pessoas que vivem perto delas.
Não se sabe muito bem o motivo de seu encantamento, mas alguns relatos informam que cada uma
delas havia sido no passado uma jovem a quem o pai, como castigo ou tratando de evitar que mantivesse
relações com quem não devia, impunha-lhe algum tipo de feitiço, para logo deixá-la abandonada junto a um
grande dote em ouro, em algum lugar de onde não poderia sair. Ela procurava, então, seduzir com sua beleza
e sua riqueza qualquer homem que passasse, oferecendo-lhe seu ouro, se a libertasse de sua condenação.
Pedia-lhe que voltasse à meia noite, advertindo-o de que não se assustasse com o que fosse encontrar. Chegado o momento, aparece transformada em uma serpente a quem o homem deve beijar. Se assim o fizer, ela
lhe dará seu amor e seu tesouro. Caso contrário, enfurecida, pode chegar a matá-lo. Essas mulheres recebem
nomes como Encantos, Senhoras, Donzelas, Princesas, Damas, Senhoritas, Rainhas, Donas.. (MARTÍN,
2008, s/n) [livre tradução]
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extensa Tróade, Argivos e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que aconteceu na nutrícia
terra (p.161)
A lenda da Iara
Iara é uma linda sereia que vive no rio Amazonas, sua pele é morena, possui cabelos longos, negros
e olhos castanhos. Costuma tomar banho nos rios e cantar uma melodia irresistível; dessa forma, os homens
que a veem não conseguem resistir a seus desejos e entram no rio. Ela tem o poder de cegar quem a admira
e levar para o fundo do rio qualquer homem com quem ela deseje se casar.Os índios acreditam tanto no
poder da Iara que evitam passar perto dos lagos ao entardecer. Segundo a lenda, Iara era uma índia guerreira, a melhor da tribo e recebia muitos elogios do seu pai, o pajé, despertando a inveja de seus irmãos, que
resolveram matá-la, à noite, enquanto dormia. Iara, que possuía um ouvido bastante aguçado, ouviu seu
plano e os matou; mas com medo da reação de seu pai, Iara fugiu. O pajé realizou uma busca implacável,
até conseguir encontrá-la, e como punição pelas mortes, a jogou no encontro dos Rios Negro e Solimões.
Entretanto, alguns peixes levaram a moça até a superfície e a transformaram em uma linda sereia.
Outra lenda nacional apresenta a Iara como uma esplêndida sereia das águas amazônicas, de pele
alva, olhos verdes e cabelos cor de ouro. Sua voz encantadora enfeitiça e atrai índios e pescadores enamorados que, sem a menor possibilidade de lhe resistirem, mergulham nos rios e são por ela arrastados para o
fundo das águas. Nem seus corpos são encontrados. Deve-se fechar os olhos e tapar os ouvidos, assim que
se notar a presença da Iara nos rios e lagos. Um talismã feito com escama de boto vermelho também pode
livrar seu portador da sedução da Iara4.
Observa-se na comparação entre os dois mitos que os aspectos intertextuais que se inter-relacionam
referem-se à sedução, à sensualidade e à morte. Também remete às sereias europeias, que encantaram Ulisses, na Odisseia de Homero. Câmara Cascudo as classifica como um “mito do ciclo atlântico, posterior à
poesia de Homero, para quem as sereias eram aves e não peixes cantando” (2001, p.348). Chevalier & Gheebrandt (1996, p.814) também afirmam que eram metade mulheres e metade pássaros, sendo que apenas
mais tarde,nas lendas nórdicas, surgirão como metade peixe: “Elas seduziam os navegadores pela beleza
de seu rosto e pela melodia de seu canto para, em seguida, arrastá-los para o mar e devorá-los” (IDEM).
Na Odisseia Ulisses ordena a seus homens que tapem os ouvidos com cera, para não ouvirem o canto das
sereias e não se atirarem ao mar, mas também determina que o amarrem ao mastro do navio, pois deseja
ouvir esse canto. Na tradução (em prosa) do texto de Homero (2002), as Sereias cantam:
Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz.
Jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos
lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas coisas, porque nós sabemos de tudo quanto, na
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Também Terezinha V.Z. Silva, em seu artigo “Mito em Clarice Lispector”, declara que a sereia é metade mulher e metade animal e por isso é capaz de despertar no homem o que há de mais primitivo, instintivo
e inconsciente. Ao ouvir seu canto, amarrado ao resistente mastro, Ulisses demonstra a força máxima de
autodomínio do homem sobre a sua parte animal. (2008, p.30).
Sob a ótica de Sant’Anna (2003) observa-se que tanto a lenda da Iara, quanto a das Mouras ibéricas
(Portugal e Espanha) remetem às sereias mitológicas e apresentam um traço comum, na estilização, em
que o desvio aumenta, mas não há abandono do sentido primeiro do texto – mulheres, água, sedução e
morte – nem uma direção oposta à do primeiro. Ambas fazem alusão a um abandono (familiar ou não) que
as condenou à sua sorte e da qual pretendem escapar, ainda que seja à custa da morte de homens. Para Cascudo (2001), a Iara é simplesmente uma forma literária brasileira para representar a lenda mediterrânea da
sereia sedutora ou da Mãe D’Água do folclore africano, e não um mito autenticamente brasileiro. Se a Iara
apresenta, como as mouras o traço da sedução e da sensualidade, a Mãe-d’água, o mito autêntico, ligado à
origem, aos mistérios e a temores da água, é o do Ipupiara (o que reside ou mora nas fontes). Ao contrário
do mito mediterrâneo e do africano, o mito brasileiro do Ipupiara refere-se a um homem-marinho, gênio
protetor das nascentes e olhos d’água e como tal, de certo modo, inimigo dos pescadores, marisqueiros e
lavadeiras.
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A Lenda do Trasno (Espanha)
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Trata-se de um pequeno e astuto duende doméstico, com barba, gorro e coxo de uma perna. Anda
mancando pela casa durante a noite, incomoda os animais, sobretudo faz tranças nas crinas dos cavalos. Por
isso, quando de noite se ouvem ruídos nos forros das casas ou os animais de casa se assustam sem nenhum
motivo aparente, sem dúvida se trata de algum Trasno que anda fazendo das suas. Mas, ainda que ele seja
bastante aborrecedor, não é perigoso e é bastante ordeiro, pois volta a deixar tudo em seu lugar ao amanhecer. Para livrar-se dele deve-se benzer a casa. Às vezes, basta acender a luz para que ele escape, mas volta.
Há quem deixe um recipiente com grãos de milho. Ele os pega e se põe a contá-los, mas como sabe contar
somente até dez, passará a noite toda contando e recontando os grãos sem incomodar. O melhor é retirar
seu gorro. Para o recuperar, estará disposto a qualquer coisa, inclusive a ir embora. (MARTÍN, 2008, s/p)
O trasno de Alqueidón (Resumo)
O trasno de Alqueidón Inés e Diego teñen unha casa con faiado; unha noite, tras apagárense tódalas
luces, escoitaron uns peíños pequenos correndo polo faiado e a caída de caixas e mobles. Despois de varias
probas da nai descobren que non eran ratos senón un trasno e, para librarse de l, a avoa recomenda pór no
faiado unha cunca con arroz para que bata con el e o tire; como os trasnos non saben contar, enfadarase e
marchará. Pero a Inés e mais a Diego dálles pena o trasno e esa noite deciden botarlle unha man6.
O Saci Pererê
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Mito do folclore Brasileiro, bastante difundido de a Norte a Sul, através de inúmeras variantes: Saci
Cererê, Saci Taperê, Mati Taperê, Matinta Pereira, Martim Tapirera e Martim Pererê. O mito tem procedência ameríndia, de fonte tupi-guarani. Teria sido, primitivamente, um mito ornitomórfico: pássaro encantado
e, ainda hoje, em diversas versões, o saci é uma ave. Transformou-se, depois, em mito antropomórfico:
negrinho de um pé só, com uma carapuça vermelha e cachimbo na boca. De todas as formas esta última é
a mais popular. É uma espécie de duende que vive de noite, a perturbar os viajantes e tropeiros, pedindo
fumo e fazendo-os errar os caminhos. É interessante que mesmo nos dias atuais, entre os roceiros, coloca-se
fumo para o Saci nos galhos de árvores a fim de afastar as suas diabruras. Dizem que, de noite, faz trança
nas crinas dos cavalos e costuma assobiar e gritar: “Saci Pererê, minha perna dói como o quê!”. Tudo que
se encontra revirado, da noite para o dia, nas fazendas do interior, é atribuído a esse pitoresco demônio do
folclore Brasileiro. Além disso, tem especial prazer em azedar o leite, gorar os ovos das galinhas e impedir o
milho de pipoca de rebentar. No extremo-norte, onde a influência ameríndia é mais intensa, o primitivo mito
ornitomórfico sobrevive sob forma do pássaro encantado Matinta Pereira, que traz desgraças e sofrimentos.
A antropomorfização do mito primitivo apresenta um influxo indireto do elemento negro. O Saci adquiriu
feição de moleque brincalhão. Outra transformação, mais complexa, é a versão de Romãozinho, também
um negrinho notívago que faz estripulias nos terreiros e, às vezes, dentro das próprias casas. Em torno desse
personagem se formou uma lenda: Romãozinho era um negrinho desobediente e mau, que bateu em sua mãe
e foi condenado a perambular de noite pelos campos e matos7.
Quem é o Saci
O Saci-Pererê é um dos personagens mais conhecidos do folclore brasileiro. Possuí até um dia em
sua homenagem: 31 de outubro. Provavelmente, surgiu entre povos indígenas da região Sul do Brasil, ainda durante o período colonial (possivelmente no final do século XVIII). Nesta época, era representado por
um menino indígena de cor morena e com um rabo, que vivia aprontando travessuras na floresta. Porém,
ao migrar para o norte do país, o mito e o personagem sofreram modificações ao receberem influências da
cultura africana. O Saci transformou-se num jovem negro com apenas uma perna, pois, de acordo com o
mito, havia perdido a outra numa luta de capoeira. Passou a ser representado usando um gorro vermelho
e um cachimbo, típico da cultura africana. Até os dias atuais ele é representado desta forma. O comportamento é a marca registrada deste personagem folclórico. Muito divertido e brincalhão, o saci passa todo
tempo aprontando travessuras na matas e nas casas. Assusta viajantes, esconde objetos domésticos, emite
ruídos, assusta cavalos e bois no pasto etc. Apesar das brincadeiras, não pratica atitudes com o objetivo de
prejudicar alguém ou fazer o mal. Diz a lenda que ele se desloca dentro de redemoinhos de vento, e para
o capturar é necessário jogar uma peneira sobre ele. Após o feito, deve-se tirar o gorro e prender o saci
dentro de uma garrafa. Somente desta forma ele irá obedecer a seu “proprietário”. Mas, de acordo com o
mito, o saci não é voltado apenas para brincadeiras. Ele é um importante conhecedor das ervas da floresta,
da fabricação de chás e medicamentos feitos com plantas. Ele controla e guarda os segredos e todos estes
conhecimentos. Aqueles que penetram nas florestas em busca destas ervas, devem, de acordo com a mitologia, pedir sua autorização. Caso contrário, se transformará em mais uma vítima de suas travessuras. A
crença neste personagem ainda é muito forte na região interior do Brasil. Em volta das fogueiras, os mais
velhos contam suas experiências com o saci aos mais novos. Através da cultura oral, o mito vai se perpetuando. Porém, o personagem chegou aos grandes centros urbanos através da literatura, da televisão e das
histórias em quadrinhos. Quem primeiro retratou o personagem, de forma brilhante na literatura infantil,
foi o escritor Monteiro Lobato. Nas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o saci aparece constantemente.
Ele vive aprontando com os personagens do sítio. A lenda se espalhou por todo o Brasil quando as histórias
de Monteiro Lobato ganharam as telas da televisão, transformando-se em seriado, popularizado na década
de 1970. O saci também aparece em vários momentos das histórias em quadrinhos do personagem Chico
Bento, de Maurício de Souza8.
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Diz também a lenda que os Sacis nascem em brotos de bambus, onde vivem sete anos e, após esse
tempo, vivem mais setenta e sete para atentar a vida dos humanos e animais, depois morrem e viram um
cogumelo venenoso ou uma orelha de pau9.
Essas duas lendas estão muito próximas na temática, pois ambos têm problemas com a perna, fazem
estripulias na casa e tranças ou nós nas crinas dos cavalos e farão qualquer trato para recuperarem sua carapuça (a do Saci lhe dá poderes mágicos), caso ela seja roubada. Cascudo informa que o saci não é mencionado nas lendas do Brasil colonial, “Parece ter nascido no século XIX ou final antecedente” (p.610). Também
o relaciona ao Kilaino, duende dos bacaeris, caraíbas de Mato Grosso, variante do Caipora ou do Curupira
(p.318). Entretanto se em muitos aspectos o saci parece uma paráfrase do trasno, no Brasil, sendo que em
uma aproximação com os povos africanos assumiu características de moleque negro e endiabrado. Em sua
retomada antropofágica, assume aspectos nacionalistas brasileiros bem marcantes, o que tende à estilização
e, sob certos aspectos, como o de fazer travessuras como fazer o feijão queimar, esconder objetos, jogar
os dedais das costureiras em buracos e etc., constitui quase uma paródia do Trasno, que é bem mais comportado. A menção a prendê-lo em uma garrafa, se por um lado remete aos gênios da lâmpada dos contos
maravilhosos orientais; por outro, está relacionado a uma lenda do Nordeste do Brasil, em que muitos fazendeiros desejavam ter um diabinho (ou Cramunhão) preso em uma garrafa, para lhes atender os pedidos.
A lenda da Coca (Portugal)
Nas margens do Rio Minho, onde as veigas verdejantes da Galiza se alcançam em duas braçadas, as
gentes minhotas do concelho de Monção mantêm um velho costume que consiste em celebrar todos os anos,
por ocasião dos festejos do Corpo de Deus, o lendário combate travado entre S. Jorge e o Dragão. A luta tem
lugar na Praça de Deu-La-Deu, cujo nome consagrado na toponímia local evoca a heroína que, com astúcia,
conseguiu que as forças leonesas levantassem o cerco que impunham àquela praça. Perante uma enorme
assistência, a Coca - nome pelo qual é aqui designado o dragão! - procura, pesadamente e com grande estardalhaço, escapar à perseguição que lhe é movida por S. Jorge que, envolto numa longa capa vermelha e
empunhando alternadamente a lança e a espada, acaba invariavelmente por vencer o temível dragão.
O dragão é representado por um boneco que se move com a ajuda de rodízios, conduzido a partir
do exterior por dois homens e transportando no seu bojo outros dois que lhe comandam os movimentos da
cabeça. Depois de o guerreiro lhe arrancar os brincos que lhe retiram a força e o poder, a besta é vencida
quando S. Jorge o conseguir ferir mortalmente introduzindo-lhe a lança ou a espada na garganta, altura em
que de uma bolsa alojada do seu interior escorre uma tinta vermelha que simula o sangue da coca.
Esta tradição, que representa a supremacia do Bem sobre o Mal, encontra-se intimamente ligada às
lutas travadas pela soberania nacional, sendo notória a utilização dos símbolos portugueses por parte de S.
Jorge. Com efeito, este culto foi introduzido no nosso país pelos cruzados que vieram combater nas hostes de D. Afonso Henriques nomeadamente a quando da tomada de Lisboa aos mouros. A sua invocação
em forma de grito de guerra começou, contudo, durante o reinado de D. Afonso IV e teve como objectivo
demarcar-se da invocação de S. Tiago que era feita pelos exércitos leoneses. Mas foi, sobretudo, a partir do
reinado de D. João I que este culto veio a adquirir verdadeira dimensão nacional, passando sua imagem, a
partir de então, a integrar a procissão do Corpo de Deus. Ainda hoje, a sua simbologia é empregue nos meios
castrenses, principalmente para representar o exército português.
O culto a S. Jorge que ainda se pratica em Portugal e cuja festa da coca que se realiza em Monção
constitui um exemplo do seu cunho popular, possui as suas origens em antigas tradições da Síria segundo
as quais, S. Jorge foi um valente soldado da Palestina que, por ter confessado a sua fé cristã, veio a ser feito
mártir.10
A Coca (Espanha)
Conta a lenda que na região de Redondela habitou em outros tempos, uma formosa moça que, entristecida por um amor não correspondido, chorou sem consolo até que, sem se dar conta, de tanto chorar
começou a transformar-se em um terrível dragão. Suas lágrimas acabaram formando um caudaloso rio que
a arrastou em suas águas até o mar, de onde viveria a partir desse momento. Dali, voltava de vez em quando
até o povoado, para atacar a moças da localidade, a quem devorava sem piedade. Um dia, fartos de seus
ataques, os aldeões se reuniram e escolheram vinte e quatro entre eles que, armados de espadas, esperaram a volta da fera; então a rodearam e a mataram. Imediatamente, os homens, com suas espadas em riste,
formaram uma roda em torno da besta, em uma espontânea dança para celebrar sua morte, a que se uniram
as mulheres com suas filhas nos ombros, dando lugar a um popular baile, com o qual se comemora, ano após
ano, o final do terrível dragão.
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A lenda da Cuca no Brasil
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Na procissão dos Passos, em Portimão, havia um indivíduo vestido de túnica cinzenta e coberto com
um capuz, a quem chamavam coca (...) Adiante dessa soleníssima procissão era costume, ir o pregoeiro,
Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 92-111, 2013.
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chamado Farricoco ou Morte, vestido de uma camisola de pano de cor preta, tendo na cabeça um capuz do
mesmo pano, que lhe cobria o rosto com dois buracos na altura dos olhos, e lhe caía sobre o peito... sendo
que as crianças, ao avistarem esse feio personagem, ficavam apavoradas, pois umas choravam e outras tapavam com as mãos os seus olhos” (CASCUDO, 2001, p.168) . Papão feminino, fantasma ameaçador, que
devora crianças, papona. Já a cuca paulista, é em tudo semelhante ao vago papão luso-brasileiro, ao bicho
e ao tutu de vários estados. Em Pernambuco significa mulher feia, espécie de feiticeira. (Idem) A cuca é um
bicho imaginário criado e usado para fazer medo às crianças choronas que não querem dormir.
A lenda brasileira é uma variação da lenda portuguesa “Coca” trazida na época da colonização do
Brasil. O bicho dorme uma noite a cada 7 anos, e quando fica brava dá um berro que pode se ouvir a 10 léguas de distância. Pelo fato da Cuca praticamente não dormir, alguns adultos tentam amedrontar as crianças
que resistem em dormir, dizendo que se elas não dormirem, a Cuca irá pegá-las.12
A Cuca de Monteiro Lobato
Segundo a lenda, a Cuca é uma velha com formas de jacaré e dedos de gavião que rouba as crianças
que desobedecem a seus pais. O monstro é um dos principais elementos do folclore brasileiro, principalmente por causa da obra “Sítio do Pica-pau Amarelo”, de Monteiro Lobato, onde a Cuca é o principal vilão
das histórias. O personagem surgiu no livro “O Saci” escrito por Monteiro Lobato em 1921, onde é descrita
apenas como uma bruxa velha com rosto de jacaré, e unhas compridas como as de um gavião. Na série televisiva de 1978, a Cuca era uma espécie de jacaré bípede com cabelo amarelo e uma voz horripilante, que
tinha a ajuda do Saci-pererê. Malvada, morava num lugar escuro (caverna) onde, como se fosse uma bruxa,
ficava fazendo poções mágicas. (8)
Da Cuca trazida pelos portugueses e espanhóis – um dragão que foi morto por um santo – pouco
restou, pois se no início da chegada dos colonizadores era representada por uma velha brava, com cabelos
compridos e desalinhados, com unhas enormes como uma bruxa, e que em certas regiões aparecia principalmente nas procissões, passou ao anedotário popular em uma relação com o “bicho–papão” das cantigas
infantis, que pegava criancinhas para fazer mingau.A Coca da Espanha é a que mais se assemelharia na
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forma à Cuca popularizada pela obra de Monteiro Lobato, aqui antropofagizada em jacaré, o animal nativo
mais próximo do que se pensaria ser um dragão, em um processo de estilização, mas sua origem nacional
não é mencionada. Se a Cuca brasileira for comparada com a da lenda portuguesa, essa relação estará no
terreno da paródia, pois se essa última constituía um símbolo da luta do Mal contra o Bem, vencida por São
Jorge, no Brasil ela se descaracteriza completamente, ao assumir o papel de “papona insaciável do ciclo da
angústia infantil”, segundo Cascudo (2001, p. 168).
Um elemento de aproximação entre os primórdios da colonização e a Cuca portuguesa seria a relação
com seu aparecimento nas procissões, porém com o distanciamento total efetuado por Monteiro Lobato em
um fenômeno de apropriação, a Cuca do sítio do Picapau Amarelo é que se tornou mais presente no ideário
infantil. Cascudo (IDEM) também promove uma miscigenação, ao informar que “cuca é avô em nbundo
[dialeto africano] e trago, que se engole de uma vez, no idioma tupi”, justificando a presença do vocábulo
tanto entre os indígenas, quanto entre os africanos, embora com sentido completamente diferente.
Considerações finais
Traduzir os aspectos intertextuais que levam à adequação das lendas europeias ou africanas aos
padrões brasileiros é uma arte desenvolvida na cultura popular, pois abrange a compreensão dos valores
culturais e ideológicos de ambos os lados. Dessa forma, constroem-se os personagens, adaptando-se os
conceitos de Bem e Mal, ao se criar um ser mais (ou menos) malicioso ou malvado, de acordo com a aceitação popular deste ou daquele povo. No caso das míticas sereias, presentes nas lendas de praticamente
todos os povos do mundo, o encantamento varia desde a punição até a sedução para ter um companheiro, o
que está profundamente relacionado ao contexto social e também histórico dos locais em que essas lendas
foram criadas e o papel desempenhado pela mulher (e o que dela era esperado): a sedutora não era a mãe de
família; a sedutora representava um perigo para os homens e seus lares.
O Trasno, a seu turno, traduz a religiosidade do povo ibérico (basta benzer a casa para ele ir embora)
e seu espírito ordeiro, pois o duendezinho, apesar de fazer diabruras, as desfaz antes de ir embora, deixando
tudo em ordem, um traço do colonizador que educava suas crianças de forma mais rígida o que não ocorria
da mesma forma, por exemplo, entre os índios brasileiros, brincalhões e pouco afeitos ao trabalho do branco por natureza, que Mario de Andrade também evidencia em sua obra Macunaíma, o eterno preguiçoso e
incapaz de aceitar imposições, o que, de certa forma, é também o retrato que o colonizador durante muito
tempo manteve do povo brasileiro.
Conhecer as lendas nacionais e sua interface com as estrangeiras auxilia o indivíduo a compreender
melhor a cultura do colonizador, suas fantasias e os elementos que se desenvolveram em seu anedotário
popular. Ademais, penetra também nos relatos do folclore brasileiro, passando a valorizar suas raízes, compreendendo que não apenas o que vem de fora é louvável, mas também o que nasceu e se desenvolveu em
solo brasileiro.
Referências
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11.Ilustração de Santiago Cuesta Barcala para Mitologia de Galícia, Los Cuadernos de Urogallo, 2008
12.https://sites.google.com/site/lendasregionaisbrasil/a-lenda-da-cuca
Recebido em 24 de julho de 2013.
Aprovado para publicação em 28 de outubro de 2013.
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(6) www.brasilescola.com/folclore/saci-perere.htm. Acesso em 31/05/2013
(7) A lenda da Coca http://falaraportuguesa.blogspot.com.br/2009/10/2nb-lenda-da- coca.html. Acesso
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(8) A Lenda da Cuca - Lendas Regionais-Brasil - Google Sites
https://sites.google.com/site/
lendasregionaisbrasil/a-lenda-da-cuca. Acesso em 02/06/2013.
Notas de Rodapé
1.http://herancadopampa.blogspot.com.br/2011_03_01_archive.html#axzz2Tlv8sQLu.
2.http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Mouras_encantadas
3.Ilustração de Santiago Cuesta Barcala para Mitologia de Galícia, Los Cuadernos de Urogallo, 2008
4.http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/literatura-infantil-lendas-e-mitos-do folclore/folclore-7.php.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 92-111, 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 92-111, 2013.
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Análise: Schenberg
Que condições levam um físico renomado internacionalmente como Mario Schenberg a exercer uma
segunda atividade aparentemente tão dispare como a crítica de arte? Esta é a questão central do livro Schenberg – Crítica e Criação (São Paulo: EDUSP, 2011).
Como crítica e ciência se entrecruzam?
Analysis: How critic and science intersect themselves?
Alecsandra Matias de Oliveira
Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes, ECA, da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo,
SP. Pesquisadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da ECA/USP, São Paulo, SP.
Resumo
A crítica de Mario Schenberg é distinta das demais? A artista plástica Alice Brill, traça uma comparação rápida e descompromissada
entre Schenberg e Geraldo Ferraz: Geraldo Ferraz sempre foi um crítico muito temido, era muito rigoroso e muito exigente. Também
usava uma linguagem mais floreada, menos direta do que a de Mário. Schenberg escreveu (...) com muita eloquência e generosidade
(AJZENBERG, 1996, p. 40). Por não ser um crítico de arte tradicional, parece que Schenberg possuía muito mais liberdade em sua
escrita do que os literatos tradicionais. Sofre hostilidades muitas vezes por possuir seu estilo próprio e despojado dos cânones acadêmicos. Observe o que diz Antônio Gonçalves Filho, na época do lançamento do livro Pensando a Arte, em 1988: “(...) como crítico
de arte é uma figura controvertida, que distribui elogios como incômoda facilidade, quase sempre errando em seu prognóstico (...)”
(GONÇALVES FILHO, 1988). Comentários dessa espécie não abalam a concepção de que Schenberg fixa uma forma de divulgar a
Arte e novos artistas. O crítico de arte, ao invés de julgar as obras plásticas, estabelece relações pessoais com as obras e seus criadores e, através desse mecanismo pessoal, consegue mediar sensações entre obra-artista-público. Logo, seu procedimento perante o ato
crítico é diferente ao de Sérgio Milliet, que credita o sucesso da boa crítica a ação de ponderar sobre as obras de arte.
Palavras-chave: Resenha crítica; Mario Schenberg; Crítica; Ciência; Arte
Abstract
Criticism of Mario Schenberg is distinct from the rest? The artist Alice Brill , draws a comparison between swift and uncompromising
Schenberg and Geraldo Ferraz : Geraldo Ferraz has always been a feared critic, was very strict and very demanding . Also used a less
direct than that of Mario more flowery language . Schenberg wrote ( ... ) with great eloquence and generosity ( AJZENBERG 1996 , p
. 40 ) . Why not be a critic of traditional art , it seems that Schenberg had much more freedom in his writing than traditional literati .
Hostilities often suffers by having your own style and stripped academic canons . Notice what it says Antônio Gonçalves Filho , at the
time of the launch of the book Thinking Arts in 1988 : “ ( ... ) as an art critic is a controversial figure , which distributes praise and
uncomfortable easily, almost always missing in their prognosis ( ... ) “ ( Goncalves Filho, 1988) . Comments of this kind do not shake
the idea that fixed Schenberg a way to promote the art and new artists . Art critic , rather than judging the plastic works , establishing
personal relationships with the works and their creators , and staff through this mechanism , sensations can mediate between work
-artist - audience. Soon , your procedure before the critical act is different to Milliet , who credits the success of good critical action
to ponder the artworks .
Keywords: ritical review; Mario Schenberg; Criticism, Science, Art
Introdução
M
ario Schenberg é considerado uma das mentes mais brilhantes da História da Inteligência
Brasileira. Pioneiro da Física Teórica nacional é citado por Einstein com um dos dez mais importantes cientistas de sua época. Schenberg consegue unir Ciência e Arte: fixa o nome do país
no campo da Física perante o mundo e, simultaneamente, acompanha a trajetória de grandes
artistas brasileiros, demonstrando o quanto o país dispõe de potencial cultural. Em sua forma de pensamento, une ocidente e oriente, marxismo e budismo. É cidadão múltiplo e sem fronteiras ideológicas. Com seu
olhar mágico é admirado, caçado e expropriado de liberdade. Através da intuição interage na sociedade e
perturba as estruturas de poder da Universidade de São Paulo e do Brasil.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
Schenberg – Crítica e Criação (São Paulo: EDUSP, 2011)
Em muitos depoimentos e em conversas informais, diz Schenberg, que os físicos, em geral, ficam
divididos entre a Ciência e a Música (SCHENBERG, 1984, p. 54). Então, por que escolhe as Artes Plásticas? Como é sua iniciação estética? Como se envolve com o circuito artístico, no Brasil? E, principalmente,
como desenvolve o papel de crítico de arte?
Considerações
As respostas a estas indagações podem ser encontradas em Schenberg: Crítica e Criação. O homem
Mario Schenberg atua em várias frentes, relacionando-se com a filosofia, a magia, as religiões, a política,
a fotografia, as ciências e as artes. Sua personalidade é sujeita a diversos desdobramentos, assim como sua
crítica de arte que não se limita a traçar parâmetros restritos ao limite da arte, mas que estabelece intrínsecas
relações com a realidade que a cerca1.
Schenberg dispõe de uma formação essencialmente científica e no exercício de seu projeto crítico há
apreciações estéticas de teor científico. Essa característica transforma sua crítica em algo singular. É em
1942, que Schenberg escreve pela primeira vez sobre arte, destacando a obra de Bruno Giorgio na Revista
Acadêmica. Desse momento em diante, passa a escrever sobre Volpi, Pancetti e Figueira Jr., sem exercer de
forma sistemática a crítica de arte. Estabelece relacionamento com a crítica paulistana, tornando-se amigo
de Lourival Gomes Machado, Sérgio Milliet, Maria Eugênia Franco, Ciro Mendes, Paulo Mendes de Almeida, Osório César e Jorge Amado.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
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A produção crítica de Mario Schenberg é muito vasta, estende de 1940 a 1980, sempre voltada às
Artes Plásticas. Em 1972, dedica-se intensamente aos novos artistas que despontam no cenário cultural paulista, evidenciando nomes tais como: Mira Schendel, Cláudio Tozzi, José Roberto Aguilar, Mário Gruber
e Teresa D’Amico. O crítico e seu trabalho desempenham papel básico no cenário artístico nacional, quer
por sua atuação como articulador e incentivador em prol da renovação constante das artes, que por sua militância política que lhe rende a aposentadoria compulsória das salas de aula na Universidade de São Paulo
e uma dedicação maior ao trabalho como crítico.
A crítica de Mario Schenberg é distinta das demais? A artista plástica Alice Brill, traça uma comparação rápida e descompromissada entre Schenberg e Geraldo Ferraz: Geraldo Ferraz sempre foi um crítico
muito temido, era muito rigoroso e muito exigente. Também usava uma linguagem mais floreada, menos
direta do que a de Mário. Schenberg escreveu (...) com muita eloquência e generosidade (AJZENBERG,
1996, p. 40). Por não ser um crítico de arte tradicional, parece que Schenberg possuía muito mais liberdade
em sua escrita do que os literatos tradicionais. Sofre hostilidades muitas vezes por possuir seu estilo próprio
e despojado dos cânones acadêmicos. Observe o que diz Antônio Gonçalves Filho, na época do lançamento do livro Pensando a Arte, em 1988: “(...) como crítico de arte é uma figura controvertida, que distribui
elogios como incômoda facilidade, quase sempre errando em seu prognóstico (...)” (GONÇALVES FILHO,
1988). Comentários dessa espécie não abalam a concepção de que Schenberg fixa uma forma de divulgar
a Arte e novos artistas. O crítico de arte, ao invés de julgar as obras plásticas, estabelece relações pessoais
com as obras e seus criadores e, através desse mecanismo pessoal, consegue mediar sensações entre obra-artista-público. Logo, seu procedimento perante o ato crítico é diferente ao de Sérgio Milliet, que credita o
sucesso da boa crítica a ação de ponderar sobre as obras de arte.
O incentivo à Arte é a questão central da proposta crítica de Schenberg, pois não é possível negar a
importância de artistas como Alfredo Volpi, Teresa D’Amico, Mira Schendel, Cláudio Tozzi e muitos outros que têm seus talentos reconhecidos, primeiro, por Mario Schenberg. Será que esses artistas podem ser
considerados como “erro de prognóstico”? As trajetórias artísticas e históricas desses artistas respondem
que não. A atitude de apoio a todos os artistas que o procuram não significa, de forma alguma, ausência de
criticidade. Vários artistas testemunham que Mario Schenberg é uma fonte inesgotável de trocas de experiências e elogios, pois Schenberg acredita que qualquer um que conseguisse viver de arte num país como o
Brasil seria um herói - digno de reconhecimento. Alguns físicos, amigos seus, dizem que Mario Schenberg
é muito mais complacente com os artistas do que é com os cientistas. Ser comunista complica a posição de
Mario Schenberg como crítico de arte. Schenberg, militante do Partido Comunista, é líder de uma célula da
qual participam várias personalidades ligadas ao mundo intelectual e artístico, como: Maurício Nogueira
Lima, Jorge Mautner, Dulce Maia, entre outros. Porém, as orientações do Partido com relação à arte politicamente engajada não convergem com as opiniões do crítico de arte, que apóia as correntes não-figurativas,
contrariando, desse modo, a linha do realismo social recomendada pelo PC. A orientação oficial stalinista
não influencia, de forma alguma, a concepção estética do crítico e líder comunista (OLIVEIRA, 1994, P.
135-136) . Schenberg discorda em muitos pontos das orientações do Partido e este é mais um deles.
Ao retomar aos ideais das décadas de 1950 e 1960, é possível perceber o quanto o Grupo Concreto luta para alijar a intuição do processo criativo em Arte, tendo este elemento como “arbitrário”. Para
Schenberg, este valor “arbitrário” chamado intuição é justamente o ponto central da criação artística. Por
essa discordância, em alguns momentos, as posições de Schenberg batem de frente com as defendidas pelo
Grupo Concreto de São Paulo. Sérgio Milliet também discorda de outros pontos do Concretismo paulista,
que possuía Waldemar Cordeiro como seu principal teórico e defensor. Os embates de Cordeiro não se dão
somente com Milliet, mas também com Schenberg e outros críticos de arte.
Após as primeiras experiências, os textos críticos multiplicam-se e o contato com o mundo artístico
também. Na década de 1950, a atividade de Schenberg como crítico conhece uma pausa, cedendo a priori-
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dade às tarefas científicas. É o momento, também, em que atua como diretor do Departamento de Física na
Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Nota-se que a crítica de arte como função principal
realmente toma fôlego após seu afastamento da Universidade, em 1969.
Como propagador de idéias não se pode deixar de levar em consideração os contatos que Schenberg
trava com várias personalidades de sua época. O universo das relações pessoais apresentado pelo crítico de arte é imenso e ricamente povoado por experiências de vida. Todos os que convivem com ele são
marcados pelas longas e continuadas conversas, nas quais as trocas culturais são intensas. Vários artistas
reconhecem, em seus depoimentos, as saudades das reuniões no apartamento da Rua São Vicente de Paula.
Muitos ex-alunos – hoje cientista ou profissionais de diversas áreas – admitem a importância das discussões
compartilhadas com Schenberg para suas vidas. Ao refletir sobre a figura de Schenberg como comunicador,
argumenta-se que seus contatos orais têm ressonância no universo cultural do país. Lígia Clark fornece um
depoimento que ilustra bem a presença/influência de Schenberg sobre os novos artistas:
A influência que ele teve na minha personalidade foi enorme. Eu, sem cultura nenhuma, sugava todas as conversas que com ele tive, incorporando vivências de seu saber e, brincando, dizia: ‘meus ouvidos
foram fecundados por dois seres extraordinários, Mario Schenberg e Mario Pedrosa (GOLDFARB, p. 74).
Schenberg integra muitos artistas novatos aos meios culturais, pois sua rede de relações sociais é vasta. Age, também, como um mecenas, porque muitos desses artistas mencionam que vendiam suas produções
ao Professor. A coleção de Mario Schenberg é acrescida, também, pelas doações - pois em troca das críticas
os artistas doam uma ou mais obras. O impulso oferecido aos novos artistas é uma das mais relevantes
características da crítica de Schenberg. Pode ser considerado como sua maior contribuição ao cenário das
Artes Plásticas, no país. O projeto vanguardista paulista muito depende das argumentações de Mario Schenberg e seus companheiros. É um momento em que a Arte necessita comunicar-se com o público – a obra
e o artista precisam alcançar seus espectadores. O crítico é o intermediário, mas não é o único; os artistas
também refletem e escrevem sobre suas propostas artísticas, porém o crítico “enxergava coisas que os outros
não viam”. A cumplicidade é a ponta dessa comunicação entre crítico-artista-obra-crítico-público – relação
que existe em toda crítica de arte, mas que na obra de Schenberg se realiza de modo especial, pois o crítico
necessita também do olhar do jovem para renovar suas opiniões.
Schenberg possui uma formação científica e se empenha nos estudos artísticos; no seu pensamento
estético é vital o saber científico. Essa característica é um dos elementos que transformam a crítica schenberguiana em algo singular. Há outros fatores na composição das críticas de Schenberg que igualmente
podem ser identificados como pontos de distinção, como exemplo, o uso da intuição como conceito no
processo de criação ou, ainda, a filosofia oriental como sustentáculo das questões teóricas e estéticas. Todos
esses elementos são identificados no início do seu exercício crítico. O período de atuação da crítica schenberguiana, pelo menos nos anos 1950 a 1970, é de transformação na arte, pois coincide com a emergência
das vanguardas brasileiras. Época em que velhos cânones, como o suporte, as técnicas clássicas e a forma
são características artísticas questionadas e reinventadas por artistas extremamente intelectualizados que
procuram um novo significado e uma nova postura diante do fazer artístico – período de questionamento da
arte por ela mesma. A pergunta que norteia as produções é: Arte para quê?
Os artistas expõem suas propostas e muitos criam teorias sobre suas obras e poéticas visuais, mas o
papel do crítico de arte ainda é fundamental, pois o ambiente artístico, mais do que nunca, necessita de um
intermediário entre artista e público. Muitas obras são propostas que precisam de decodificação e legitimação. A arte torna-se, nesse instante, o meio e a mensagem – algo bastante hermético. Para o grande público,
as rupturas são enormes, pois acompanhar as inovações passa a ser assunto para pessoas especializadas ou
iniciadas. O papel do crítico é, essencialmente, fornecer dados para essa iniciação.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
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Mario Schenberg desenvolve um projeto crítico a partir de subsídios que não são de uso recorrente
das outras propostas críticas já citadas. São esses conceitos distintos que dão à crítica schenberguiana novos paradigmas frente à crítica de arte brasileira. O primeiro subsídio concentra-se no pensamento estético
sustentado pela Filosofia e pela Arte Oriental. Elementos do Zen, do hindu e do budismo são tomados para
explicação de suas proposições teóricas. A Filosofia Oriental é muito valorizada por Schenberg, pois significa uma forma diversa de refletir o mundo, a espiritualidade e a realidade:
Esse sermão de Buda é uma das coisas mais impressionantes porque inverte todo pensamento religioso ocidental que conceitua os deuses acima dos homens. Buda mostra que, ao contrário, os homens é que
estão acima dos deuses, quer dizer, apesar de serem deuses, no homem há certa clarividência que só ele pode
ter (...) o homem é um ser axial (SCHENBERG, 1983).
O crítico estabelece um paralelo comparativo entre a Arte Ocidental que valoriza a racionalidade e
que se aperfeiçoa pela profunda elaboração teórica, fixando nas obras artísticas a beleza natural – sua aplicação objetiva e representações claras, realísticas e lógicas – e a Arte Oriental, que ao contrário, procura a
essência da vida nos valores apreendidos intuitivamente e em insinuações espirituais. Na Arte Oriental é
salientado o espírito, suas glórias se alcançam nos domínios da mística contemplativa. Outra característica da pintura oriental é a aversão pela reprodução da natureza e dos objetos, a sua procura é concentrada
na essência do natural e não na sua reprodutibilidade. Nesse sentido, a utilização de valores orientais ou
baseados na Filosofia do Oriente significa um novo conceito – diferente dos ocidentais contemporâneos,
possibilitando alternativas para o progresso científico, artístico e humano. Vivendo em uma sociedade cada
vez mais influenciada por valores regidos pelo capitalismo e pelas raízes ocidentais, Schenberg encontra na
Arte Oriental (ou não européia) auxílio na formação de uma crítica mais imparcial, colocando a Arte como
uma linguagem universal, e não carregada por localismos ocidentais ou orientais, pois Schenberg pregou a
instituição da Arte Cósmica.
Schenberg enfatiza a expressão verdadeira do artista, seus sentimentos em relação à realidade vivida,
ou seja, sua postura perante a vida e o mundo. Baseia-se, em parte, nas especificidades da Arte Oriental para
descobrir a fonte onde o artista encontra sua inspiração e produz a obra.
Em alguns movimentos recentes encontramos influências combinadas de filosofia e artes orientais
hinduístas e budistas com as do surrealismo. Há outras convergências muito interessantes de surrealismo e
orientalismo (SCHENBERG, 1994, p. 70).
Muitos textos críticos assinalam elementos da cultura oriental, como por exemplo, o dedicado ao
artista Carlos Takaoka, “o avanço da arte de Carlos Takaoka corresponde do aprofundamento da sua Cosmovisão panteísta de tipo oriental (...).” (IDEM). Ou o texto dedicado a Mira Schendel “numa segunda série de
monotipias, conseguiu se aproximar do espírito das paisagens Song (...)” (SCHENBERG, 1964). Ou ainda,
o texto que diz sobre a arte de Ismênia Coaracy:
tre outros. A principal linha de distinção usa a conexão entre criação artística e científica. Para Schenberg,
as interações existentes entre esses dois campos do Saber constituem modo de transpassar os limites corriqueiros de uma “arte de senso comum” – entender a criação é lidar com as obras artísticas sem privá-las dos
conceitos científicos. Em muitos textos, o crítico mostra aos artistas os princípios científicos que existem
em seus trabalhos, mesmo que estes não tenham se dado conta da produção de tais efeitos científicos. É o
crítico que descobre essa característica científica nos trabalhos. Talvez fosse uma contribuição ao sentido da
arte de vanguarda. Dessa forma, estabelece elo entre criação artística e científica, compondo metodologia
fenomenológica que avança sobre pesquisas vinculadas às ciências humanas.
Dentro da união entre Arte e Ciência, Schenberg assinala o uso das tecnologias para o fazer artístico
e a melhoria da comunicação entre os homens. Nesse sentido, vai ao encontro das idéias de Mário Pedrosa
e Waldemar Cordeiro. Porém, é importante lembrar que para cada um dos três teóricos da idéia de unir Arte
e Ciência guarda sentidos específicos. Para Mário Pedrosa, por sua formação em Estética e, principalmente,
por basear suas críticas na gestalt, os traços de relação entre Arte e Ciência calcaram-se na problemática
da forma do objeto artístico. Ao ponderar as argumentações e a práxis de Cordeiro, é possível afirmar que
este utiliza recursos tecnológicos e científicos como suporte para o alcance de novos efeitos visuais, ou
seja, a dupla Ciência/Técnica fornece subsídios para a inovação artística. As orientações de Schenberg não
atribuem esse sentido “utilitarista” à Ciência. Não é a Ciência que serve à Arte e nem vice-versa. Na visão
schenberguiana, há uma dinâmica entre os dois campos, ou seja, uma relação dialética.
Os dois primeiros aspectos diferenciadores da crítica de Schenberg com relação aos outros teóricos
estão imersos num terceiro elemento característico na crítica de arte de Schenberg: o uso da intuição como
metodologia da criação e da interpretação artística. Mario Schenberg prega que a intuição deve ser a diretriz
para a criação de obras estéticas; não despreza, de modo algum, o pensamento lógico e racional, mas adverte
que a utilização das capacidades racionais deve ser ponderada pela sensibilidade intuitiva. Em suas análises
artísticas, o crítico tende a valorizar artistas que utilizam a intuição em detrimento das normas racionais, na
ação pictórica ou escultórica. O crítico também usa da intuição para examinar as propostas artísticas que
lhe são apresentadas. Muitos amigos seus dizem que diante de uma obra artística ele observa por horas as
telas ou esculturas; logo após, fecha seus olhos e minutos depois inicia sua apreciação (GOLDFARB, op.
cit., p. 128).
Em síntese, em Schenberg: Crítica e Criação, percebe-se que ao elaborar seu projeto crítico, Schenberg presta-se como intermediário entre artista, obra e público, desvendando a função social do artista que
deve despertar a criatividade na sociedade. Os valores político-sociais em sua biografia são marcantes e a
eles são atribuídas escolhas do cientista/crítico de arte. A adesão ao comunismo indica características ao seu
modelo de divulgação da arte e essas especificidades, a partir da doutrina marxista, adquirem papel diferenciado ao artista, dentro da sociedade. Schenberg, para além das contribuições à crítica de arte nacional,
mostra que a capacidade humana pode romper barreiras, unindo Arte e Ciência.
Ser um expressionista é um estado artístico-existencial, de que a própria artista pode não ter conhecimento racional, como talvez acontecesse com Ismênia durante muitos anos. O Expressionismo não é essencialmente um movimento da arte do século XX, e nem mesmo exclusivo da Cultura do Ocidente. Há uns
mil anos, já havia Expressionismo na arte do Extremo Oriente (...) (SCHENBERG, 1981).
Um segundo aspecto na crítica de Schenberg, talvez o mais evidente ponto característico, é o uso de
termos científicos para explicar as proposições artísticas. Por ser físico teórico, é recorrente a utilização de
termos como: ciência; cósmico; cosmovisão; inconsciente cósmico; física quântica; física clássica; lógica;
raciocínio; matemática; entropia; geometria; esferas concêntricas; universo; reversibilidade; tecnologia, en-
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
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4 A arte funciona para os artistas de vanguarda como a formulação de McLuhan: “o meio é a mensagem”, pois o
meio é que permite e molda a possibilidade de transformação, o conteúdo (mensagem) não tem o mesmo poder transformador que tem o meio, pois muitas vezes mudam os meios, porém não mudam as mensagens. O que está sendo
questionada é a relação do homem com essas mensagens, de que forma e como entra em contato com as mensagens,
e é o meio que media essa relação, será o determinador do modo de conhecer o mundo.
5 A conceituação sobre Arte Cósmica ainda está em estudo, mas em primeira análise é a Arte que envolve aspectos
do universo do artista e do fruidor, ultrapassando as barreiras do cotidiano e conseguindo atingir ideais cósmicos.
GONÇALVES FILHO, Antônio. Folha de S. Paulo, 19.mar.1988, Livros, p.D4.
SCHENBERG, Mario. Pensando a Física. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 54.
.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mario Schenberg: contexto sociocultural da década de 70. In: AJZENBERG, Elza (coord.) Arte e Ciência. São Paulo: ECA USP, 1994, p. 135-136.
Recebido em 28 de julho de 2013.
Aprovado para publicação em 31 de outubro de 2013.
SCHENBERG, Mario. A pintura de flores de Ira Kajimoto, Arquivo do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA/USP, texto nº 221, 12.jun.1983.
SCHENBERG, Mario. Carlos Takaoka. In: AJZENBERG, Elza (org.) Schenberg: Arte e Ciência. São Paulo: ECA USP, (Schenberg, 1), p. 70.
SCHENBERG, Mario. Monotipias de Mira Schendel. Arq. Centro Mario Schenberg de Documentação da
Pesquisa em Artes, Texto nº 6, out. 1964.
SCHENBERG, Mario. A Arte de Ismênia Coaracy. Centro Mario Schenberg. Texto nº 197, 11.jun.1981.
Notas de Rodapé
1 O Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – ECA USP surge a partir da doação realizada
em 1988 à Associação Brasileira dos Pesquisadores em Artes – ABPA. Entre essa documentação, há 415 textos críticos, alguns livros de arte, discos, revistas, catálogos e jornais. Nos dezenove anos do Centro Mario Schenberg diversos eventos e encontros entre intelectuais, pesquisadores, cientistas e artistas acontecem. Esses encontros resultam
em depoimentos (vídeo e cassete) nos quais se expõem temáticas e enfoques das discussões arroladas por Schenberg.
Esse material torna-se básico para a pesquisa aqui apresentada.
2 Schenberg é afastado da Universidade por suas posições políticas, pois, reconhecidamente militante comunista,
sofre perseguições e prisões após a instalação do regime militar, em 1964. “Em 28 de abril de 1969, a Universidade
de São Paulo é atingida. Um decreto datado de 25 de abril resolve aposentar ‘nos cargos que ocupam nos órgãos da
Administração Pública Federal’ 42 pessoas; entre diversos intelectuais, estavam os professores Florestan Fernandes,
Jaime Tiomno e João Batista Villanova Artigas. Um segundo decreto, baixado no dia 29 de abril de 1969, aposenta ou
demite mais de 23 pessoas, entre elas, Mario Schenberg”. Schenberg, a partir desse decreto, é aposentado do cargo
de professor de física teórica e proibido de freqüentar o campus e bibliotecas públicas. “Como físico os empecilhos
eram difíceis deixando como tarefa impossível à atividade científica.”
3 A proposta crítica de Mario Schenberg transforma-se corpus teórico às vanguardas dos anos de 1960 e anos posteriores. Na década de 1940 – quando a crítica schenberguiana dá seus primeiros passos – Mario Schenberg já
disserta sobre a arte de Alfredo Volpi e inicia seu relacionamento com os críticos paulistanos. Quando as correntes
vanguardistas adentram a Arte Brasileira, Schenberg torna-se um significativo alicerce para os novos artistas e suas
renovadoras propostas.
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Poéticas Visuais, Bauru, v. 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
Poéticas Visuais, Bauru, v 4, n. 1, p. 112-119, 2013.
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