Comece a ler a aventura agora!
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Comece a ler a aventura agora!
Brasília – Paraty Somando pernas para dividir impressões Weimar Pettengill © by Weimar Pettengill – 2009 Ficha Técnica Revisão e Composição Marcelo Carota e Jarbas Junior Programação Visual e Ilustrações Michelle Cunha Arte Final Flávio Lopes Arte de Capa Weimar Pettengill e Michelle Cunha Fotos © Weimar Pettengill e Adauto Belli Supervisão Victor Tagore Impressão Thesaurus Editora ISBN: 978-85-7062-855-8 P499b Pettengill, Weimar Brasília – Paraty, somando pernas para dividir impressões / Weimar Pettengill. – Brasília : Thesaurus, 2009. 256 p. ; il. CDU 910 CDD 910 Contatos com o autor: www.desbrava.com / [email protected] Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou informação computadorizada, sem permissão por escrito do Autor. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356 - CEP 70610-480 - Brasília, DF. Fone: (61) 3344-3738 - Fax: (61) 3344-2353 * End. Eletrônico: [email protected] *Página na Internet: www.thesaurus.com.br Composto e impresso no Brasil Printed in Brazil Notas do Autor Larissa e Guilherme – meus filhos, a vida é feita de escolhas. Podemos escolher o caminho do comum, e até ser feliz se a opção for consciente, ou viver de lamúrias e ressentimentos, imaginando como seria se... Podemos permitir que outros tomem as decisões por nós, o que, de tudo, acho o mais lamentável. E podemos escolher sonhar e buscar, com toda a nossa energia, realizar o sonho. No sucesso, conhecemos a glória do empreender, do inovar, do renovar. No fracasso, conhecemos os verdadeiros amigos. Pai, mãe, irmão, primos, tios e tias, princípios aprendemos em casa, no seio da família. Orgulho de ser fruto da mesma árvore que vocês. Aos amigos, patrimônio único que nos acompanhará eternamente, com vocês aprendo diariamente a identificar o caminho que devo trilhar. E nos momentos difíceis, é com a energia de vocês que conto. Obrigado. Aos maus motoristas, aos que tentaram me derrubar, aos que me jogaram para fora da pista, um aviso: estou mais forte. Aos Cariris, Botocudos, Tupiniquins, Tupinambás, Preto Velho, Pai Joaquim, Deus, Buda, Alá, Shiva, Zeus e claro, Vênus, minha bicicleta sempre terá espaço para dar uma carona aos fortes bem intencionados. Weimar Pettengill Sumário Caro Leitor.............................................................................................. 9 Capítulo 1 O Projeto.................................................................................................13 Capítulo 2 Alinhando Expectativas.......................................................................... 25 Capítulo 3 A preparação..........................................................................................29 Capítulo 4 Brasília – Unaí........................................................................................33 Capítulo 5 Unaí – Brasilândia de Minas................................................................. 45 Capítulo 6 Brasilândia de Minas – Pirapora............................................................57 Capítulo 7 Pirapora – Santo Hipólito......................................................................77 Capítulo 8 Santo Hipólito – Diamantina.................................................................87 Capítulo 9 Diamantina – São Gonçalo do Rio das Pedras.....................................95 Capítulo 10 São Gonçalo do Rio das Pedras – Conceição do Mato Dentro......... 107 Capítulo 11 Conceição do Mato Dentro – Morro do Pilar..................................... 121 Capítulo 12 Morro do Pilar – Bom Jesus do Amparo.............................................125 Capítulo 13 Bom Jesus do Amparo – Catas Altas................................................... 133 Capítulo 14 Catas Altas – Ouro Branco................................................................. 147 Capítulo 15 Ouro Branco – Lagoa Dourada........................................................... 161 Capítulo 16 Lagoa Dourada – Capela do Saco....................................................... 169 Capítulo 17 Capela do Saco – Carrancas..................................................................181 Capítulo 18 Carrancas – Caxambú.......................................................................... 187 Capítulo 19 Caxambú – Paraty................................................................................ 201 Diário de Bordo................................................................................. 222 Caro leitor, Não tenho a pretensão de encerrar discussões históricas. Tampouco me preocupei em seguir uma metodologia científica na qual pudesse validar os argumentos aqui expostos – sejam quais forem. Tive sim a intenção de provocá-lo, de instigar sua curiosidade, contextualizando a aventura que viveremos juntos, a partir de agora, num cenário de relevante importância para a história de um país adolescente chamado Brasil. Muito mais do que os fatos conhecidos e publicados como verdade absoluta – imagino como foram criados os mitos sobre nossos antepassados, cuidei de expor o tal “conhecimento popular”, descobrir e registrar o que as pessoas assimilaram como verdade no decorrer dos tempos, como criaram em suas mentes a imagem que retrata o Brasil, a economia, a geografia, a política, enfim, a vida. Criaram e ainda hoje criam – diante de qualquer coisa que lhes saltem aos olhos, como por exemplo, uma bicicleta dupla cruzando o país. Casos curiosos, interpretações nem sempre afinadas com os livros de história, mas repletos da sabedoria do povo, o que tanto me fascina. Importante, logo assim, no começo, é dizer que qualquer desculpa é louvável, por mais esfarrapada que seja, se sua intenção é provar da atmosfera de Minas Gerais. As serras, montanhas, cachoeiras, veredas, rios, a gastronomia, a hospitalidade. 10 BRASÍLIA - PARATY O povo. E o jeito todo especial de falar. Tentarei transcrever a emoção envolta no sotaque, arrastado, às vezes vindo do fundo da alma. Nó! Leia pausadamente. Se necessário, repita baixinho, ou alto mesmo. A língua presa no céu da boca por alguns instantes – quanto mais prolongado, maior o espanto do mineirinho que não economiza tempo nos trejeitos. Economia mesmo só no final das palavras – se todos entendem, não precisa ir até o fim: Uaaai! Bunitin dimaaais, sô! Mas para que isso possa fluir, uma recomendação: acomode-se confortavelmente, respire profundamente. Uma, duas, dez vezes. Deixe de lado o estresse, as preocupações, afinal nossa jornada está prestes a começar. E você é meu convidado. Caso sinta-se mais seguro, deixe à vista um capacete de ciclismo, você poderá sentir-se instigado a utilizá-lo – uma descida mais íngridi (íngreme), uma curva mais fechada, uma erosão, um motorista desavisado, ou maldoso. Quadro de distâncias / Planejamento inicial Dias Partida Chegada KM 29/01 Brasília Unaí 160 30/01 Unaí Brasilândia 142 31/01 Brasilândia Pirapora 167 01/02 Pirapora Corinto 140 02/02 Corinto Diamantina 110 03/02 Descanso 04/02 Diamantina Serro 64 05/02 Serro Conceição do Mato Dentro 63 06/02 Conceição do Mato Dentro Itabira 70 07/02 Itabira Ouro Preto 100 08/02 Ouro Preto Santana dos Montes 73 09/02 Descanso 10/02 Santana dos Montes Prados 69 11/02 Prados Capela do Saco 75 12/02 Capela do Saco Airuoca 110 13/02 Airuoca Itamonte 59 14/02 Itamonte Cachoeira 95 15/02 Cachoeira Paulista Paraty 130 Capítulo 1 O Projeto — Alô! — Sim. — Gostaria de falar com o Adauto. — Pois não. — Bom dia Adauto. Não nos conhecemos ainda. Meu nome é Weimar, o Othon meu deu seu telefone e estou querendo te fazer um convite. — Uma correção. Eu te conheço. Já participei do 100km de Cerrado. Você é que não me conhece. E dizem que o cego sou eu! — Sim! Claro. Então você me conhece e eu não te conheço. Mesmo assim, aí vai o convite: Estou querendo fazer uma viagem de Brasília até Paraty, pela Estrada Real, pedalando numa tandem, e gostaria de compartilhar essa experiência com um deficiente visual. Me informaram que você é um dos poucos que daria conta, e que teria coragem de aceitar. O que você acha? — Partimos quando? Amanhã? Hoje não dá. Estou ocupado. 14 BRASÍLIA - PARATY — Como? Você mal me conhece, nunca pedalou comigo e me responde assim, de pronto? — Se você foi louco de me convidar, não serei louco de recusar. Um convite desses não bate na minha porta com frequência. Você deve saber. Simples assim. Desliguei o telefone me sentindo meio mineirinho. Desconfiado, ressabiado. Ou é bobo e não tem a menor noção do que está falando, ou arrumei de fato um companheiro de viagem. De qualquer forma, o sentimento de que “estou no caminho certo” começou, com esse telefonema, a perseguir todos os movimentos quando o assunto era Brasília – Paraty, Somando Pernas para Dividir Impressões. De onde surgiu a ideia? Eu conto. O ano de 2008 foi muito intenso para mim. Começou mal, com um grande susto envolvendo a saúde de uma pessoa que muito admiro: meu pai – felizmente resolvido. Mas os tempos seguiram vigorosos. Tempos de muito estudo, intercalados por outros de muito trabalho. Algumas conquistas no esporte aliviaram a tensão, mas a sensação de não estar fazendo nada que agradasse a alma perseguia meus sonhos, preenchia os momentos de ócio. Sabe aquela incômoda sensação de que o tempo, acelerado tempo, não dá tréguas? O dia amanhece e quando menos espero, já é noite. Segunda e sexta-feira parecem que são um após o outro. Um dia comemoro a estação seca em Brasília, tempo de dedicação total aos esportes de aventura e aos eventos ao ar livre, noutro estou comemorando o início da chuva, que finalmente dá uma trégua à secura e ao pó que dominam o planalto central, no auge da estação. Sigo sempre escravo do relógio, achando que o próximo mês será melhor, que terei mais tempo, que poderei planejar algo, que poderei mudar algo. Isso me incomoda. Já WEIMAR PETTENGILL 15 tenho quase quarenta anos. Como pode? Tirei minha carteira de habilitação há tão pouco tempo... Dia desses me peguei pensando no futuro. Em quanto tempo ainda conseguiria manter o nível de atividade que tenho segurado até aqui. E concluí, determinando que será assim: minha vida começará aos quarenta. Tenho três anos para preparar meu renascimento. Mas como? O que eu posso fazer? E pior do que isso. Quando paro para pensar no mundo que deixarei para meus filhos, tenho vergonha. Não gostei do que recebi, mas isso não quer dizer que não tenho responsabilidades e a obrigação de tentar fazer mais, de fazer diferente, de tentar achar a solução para alguma coisa, por menor que seja, de fazer a diferença para alguém. Pior do que a omissão dos que tem por obrigação agir é o silêncio de quem não move uma palha por achar que alguém o fará. E quando associo esse pensamento aos assuntos que são manchetes diárias na mídia, fico de fato incomodado. Aquecimento global, alterações climáticas, capitalismo sem controle, crise financeira, consumismo, trânsito caótico, violência, emprego, distribuição de renda, acessibilidade aos portadores de necessidades especiais, só para citar alguns. O que eu posso fazer? É certo que não posso fazer muito, ainda mais sozinho. Mas me recuso a cruzar os braços e me lamentar achando que “as coisas são assim”. Certo dia, treinando para o Multisport, uma prova de aventura que envolve corrida, ciclismo e canoagem em rio e lago – que adotei como objetivo para o ano de 2008, comecei a esboçar algo em que acreditar, alguma coisa da qual pudesse me orgulhar. Não. Não gosto de acordar cedo. O relógio desperta e eu me pego praguejando, caindo da cama, irritadíssimo. Dei- 16 BRASÍLIA - PARATY xar o conforto dos lençóis quentes para colocar uma roupa apertada, pegar a bicicleta e sair, ainda escuro, para treinar, não me seduz. Passados vinte minutos, o dia começa a clarear, as pernas parecem “azeitadas”, o coração entra num compasso que mais parece um transe, os cotovelos se aproximam do corpo, aquele frio todo agora parece reduzido a uma brisa e a temperatura só é denunciada pela orelha e pelo nariz, gelados. A bicicleta parece extensão do corpo. Nasci colado nela, viajo. Começo a transpirar, a acelerar, a dominar os batimentos cardíacos, a respiração. Tudo parece perfeito. O sol nasce, já estou quente. Alguns motoristas passam e a buzina curta, dois ou três toques, parece um estímulo extra. Alguém pensando: esse aí que é feliz. E sou mesmo. Aliás, estou mesmo. Prometo não praguejar ao sair da cama no próximo dia. Sei que não vai adiantar, mesmo com toda a alegria de voltar para casa às 8h, tendo rodado 60, às vezes 80 quilômetros. Um banho e um senhor café da manhã. Ah! Que alegria comer, comer, comer, de tudo um pouco – sou um chocólatra assumido, e ao final de um mês ir ao nutricionista mudar a dieta, pois não paro de emagrecer. Ah! Pedalar. E o dia rende, com aquela satisfação de dever cumprido durante a aurora. Mais um dia vendo o sol nascer. Mas nem sempre é só alegria. Aliás, todo dia um quase acidente. Alguém achando que você não tem o direito de estar na pista. Que ela pertence apenas aos automóveis. Na verdade, acho que a maioria dos motoristas não sabe que o próprio Código de Trânsito Brasileiro prevê a bicicleta como meio de locomoção, que os carros devem guardar a distância lateral mínima de 1,50m, e que devem protegê-la, pois na escala de preferência, o maior protege o menor. Sempre acontece uma situação dramática, é preciso manter a calma, e antes de mais nada, evitar acidentes. Mas que dá vontade de apelar, isso dá. WEIMAR PETTENGILL 17 Numa dessas manhãs, embalado pela motivação de pedalar pelas ruas da Capital do Brasil, me lembrei da Estrada Real. Já devidamente consolidado no imaginário popular, o projeto turístico encabeçado por Minas Gerais – envolve ainda os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, é um convite à aventura. Poder trilhar o mesmo caminho utilizado pelos aventureiros há 300 anos – e alguns trechos pelos indígenas pré-cabral, por si, é um convite do tipo que não se cogita ignorar. Já havia feito uma parte dele, de moto, saindo de Brasília e seguindo por estradas de terra até Diamantina. As paisagens fabulosas – imaginei – se apreciadas na velocidade de uma bicicleta, com todo o esforço implícito. É isso! Farei a Estrada Real, de preferência o Caminho Velho, conectando o Planalto Central ao Caminho do Diamante, e este ao Caminho do Ouro, por onde escoavam as pilhagens portuguesas em solo pátrio, no período Colonial. Começaram as pesquisas. Históricas, de infra-estrutura, de acessos, de possíveis problemas, de cronograma, de época ideal, do quadro de distâncias, de possíveis relatos de algo semelhante. Mas alguma coisa ainda me incomodava. A certa altura, me senti egoísta por não compartilhar um “passeio” como este. E me lembrei que havia adquirido, no começo do ano, uma bicicleta tandem – conceito há muito utilizado na Europa e mesmo nos EUA, que consiste basicamente em dois quadros unidos, comportando dois ciclistas ligados por um único conjunto motor. Quando comecei a considerar esse veículo, uma nova janela de perspectivas se abriu. Poderia compartilhar uma série de situações. E o prazer de pedalar. E o prazer de vencer distâncias, obstáculos. Vencer desafios. Claro, vou de tandem – na que meu filho Guilherme batizou de Indiona – ainda sob o efeito de ter sido, há pouco, apresentado ao Dr. Jones – Indy, para os íntimos. 18 BRASÍLIA - PARATY Mas quem eu chamo? Comecei a fazer uma relação de amigos que talvez, talvez eu disse, topassem a empreitada. Não fui muito longe. Lembrei-me então de um projeto criado por um grupo de amigos em Brasília, que me chamou a atenção logo no primeiro contato. Chama-se DV na Trilha. Compraram várias bicicletas para duas pessoas e fizeram um cadastro de deficientes visuais, e de guias. E passaram a distribuir a emoção da liberdade sobre duas rodas, levando os cegos para percorrem trilhas, para praticar uma atividade aeróbica. Sou fã de quem descruza os braços e age. Fechamos um ciclo. A ideia pronta, parceiro escolhido. Falta o quê? O óbvio. Foi o Adauto quem me ajudou a enxergar isso. Minha proposta, agora nosso objetivo, era na verdade uma oportunidade. Para falar de mobilidade através da bicicleta, da sua importância no contexto atual e nas possibilidades futuras, para falar de acessibilidade aos portadores de necessidades especiais – a possibilidade de fazer essa ideia cruzar fronteiras me sensibilizou, e claro, a bandeira que atuo com mais frequência: saúde e qualidade de vida. A importância da prática de atividade física. Agora sim, cabe um projeto. E pronto. Algo para me orgulhar. Só uma coisa ainda me incomoda. Não conheço meu companheiro. E não é uma aventura qualquer, serão dezoito dias de relativa dependência um do outro. Quer saber? Resolvi que seria assim. Liguei para o Adauto e sugeri um tempero a mais. Vamos evitar ao máximo o contato entre nós antes da partida. Nos encontramos cinco vezes apenas, no intervalo de sessenta dias. E no primeiro encontro, talvez ansioso para encontrar razões para continuar apostando no projeto, identifiquei no parceiro dois motivos para me tranquilizar. WEIMAR PETTENGILL 19 O primeiro foi o bom humor. Que não tem preço! Acho uma das maiores virtudes que o homem pode estimular, e zelar. Poucos minutos foram suficientes para entender que problemas seriam resolvidos, primeiramente, com bom humor. Me contou passagens hilárias do cotidiano dele, enquanto esperávamos um ônibus. Começou a praticar corridas de rua um ano atrás, e já estava colhendo índices invejáveis – fazendo 10km para 33 minutos. — Moro num setor de chácaras perto de Brasília. Quando precisava fazer alguma coisa fora, atender clientes, supermercado, ou qualquer outra coisa, o ônibus era meu meio de transporte. — Você mudou recentemente para a cidade? — Estava morando em Belo Horizonte antes. Chegava à parada de ônibus perguntando: tem alguém aí? Tem? Não? Ah! Então não tem ninguém aqui? E o ônibus passava... não o tinha visto se aproximar! Horas na parada. Quer saber? Vou começar a correr. Hoje quase tudo que faço é correndo. Virou meu meio de transporte. — Mas como assim? Sozinho? Então você enxerga? — Um pouco. Vejo muito para quem não vê nada, e nada para quem tem uma visão normal. Tenho retinose pigmentar, e é degenerativo. Isso quer dizer que já enxerguei, e tenho na memória muitos registros. — Correr no asfalto, desde que liso, é relativamente fácil, pois consigo perceber o contraste da faixa branca sobre o preto da pista, e dá pra seguir assim, com ouvidos atentos. Só não dá para atravessar a pista. Aí o barulho não é claro se vem da esquerda ou da direita, a velocidade com que o carro vem, nem dá pra perceber se estou tendo um campo seguro de visão – de audição, nesse caso. — Que situação! Você é mesmo tinhoso. — Outro dia estava no Setor Comercial Sul, querendo atravessar a pista. Percebi que uma pessoa chegou próximo a 20 BRASÍLIA - PARATY mim, pelo volume nas costas e pelo barulho julguei que era um catador de latas de alumínio. Beleza, tô feito! Colei nele e pensei: quando ele for, eu vou. Aí o cara ensaiou a travessia, deu uns três passos, eu na cola, e ele voltou correndo. Na terceira vez que isso aconteceu, o cidadão me deixou no meio da rua e saiu correndo, não sei pra onde, gritando: então vai você! Achando certamente que eu estava brincando de sombra com ele. No meio da rua, carros buzinando, braços levantados: me tirem daqui! — E você ri disso? — O que eu posso fazer? Você já experimentou explicar um problema para alguém, e depois pedir alguma coisa? Se fizer isso uma ou duas vezes por dia, vá lá. Mas a todo momento, todos os dias, para o resto da vida, não dá. Na hora fico louco, mas depois dou muita risada da situação. Você leitor, certamente tem conta no banco. Imaginou a dificuldade para sacar dinheiro no caixa eletrônico sem conseguir identificar o que está aparecendo na tela? — Sou cliente do Banco do Brasil. Já bloqueei o cartão centenas de vezes. Memorizei a sequência de telas para sacar dinheiro. Mas o banco, volta e meia, coloca telas de propaganda, sei lá mais do que. Lascou. Outro cartão bloqueado. Isso sem falar na semana passada que um daqueles “posso ajudar”, virou-se para mim, preocupado, e disse: — Olha, vou te dar um conselho. Acho melhor o senhor procurar um médico e usar óculos. Também não gosto de óculos, mas tem que usar, caso contrário o senhor não vai conseguir enxergar as coisas corretamente. — Muito obrigado. Disse eu, bravo. Saí do banco e caí na gargalhada. Acho que vou ao médico mesmo. — Inacreditável. — E os motoristas de ônibus? Têm preguiça de falar o itinerário, parece que o QI é tão limitado que não ocorre que a pessoa não pode ler a placa. Uma vez entrei no ônibus, deixando um pé na calçada, e perguntei se ia para a rodoviária. O mo- WEIMAR PETTENGILL 21 torista disse vai, e arrancou. Puxei rapidamente a outra perna. Cego e aleijado deve ser mais complicado, pensei na hora. — Não – disse o motorista. — Hã? — Vai não ir, respondeu o motorista com o veículo já em movimento. — Então pára. Ele parou. Na beira do barranco. Irritado, coloquei o primeiro pé para descer, mas já era tarde. Não havia fundo. Um buraco na beira da estrada. E lá vai o Adauto pro chão. — Por isso começou a correr? Entendo perfeitamente. — Pois é. E gostei. Estou treinando para correr solo a Volta ao Lago da Caixa – 100km. — O quê? Tá louco? — Quero mesmo é correr ultra-maratonas, mas preciso ir aos poucos. — Cego, você é louco! Meu espanto foi também minha alegria. Ele é atleta, e bem humorado. Isso quer dizer que posso conversar com meu parceiro de igual pra igual. Dor, sofrimento, privação. Nada disso nos tira o foco no objetivo para o qual estamos apontando. Segundo grande argumento para continuar as apostas. Não sei se isso acontece com todo mundo que tem um pouco desse lado atleta. Mas parece que tudo de ruim que você passa, não importa o quanto, some da mente. Vira uma mera lembrança, algo distante. Claro que na hora incomoda, que abala crenças, que aparece aquela pergunta irritante: Será que vou conseguir? Mas passa. E esquecemos. Essas duas qualidades do Adauto me tranquilizaram. Muito. Mas me apontaram outra direção. De fato tenho uma noção considerável do que estamos planejando fazer. Consigo avaliar a dimensão e o que está envolvido. Precisamos divulgar, contar às pessoas o que estamos fazendo, e quem sabe contaminar outros com a mobilidade: se uma bicicleta vai de Brasília à Paraty, o que mais poderia ser feito? 22 BRASÍLIA - PARATY E a acessibilidade? Imagino o projeto DV na Trilha tendo versões no Brasil inteiro. Já não me sinto sozinho e acho que posso sim plantar uma semente. Um passeio de férias para mim pode se transformar em outra perspectiva de vida para um número considerável de pessoas. E tudo começa a tomar forma. Mas ainda faltam alguns itens fundamentais para a partida. Procuramos o fisiologista Dr. Guilherme Pontes. Na avaliação física que fizemos uma semana antes do início, uma surpresa. O Adauto é uma máquina. Com cinco por cento de gordura corporal, foi orientado a não entrar num hospital sem informar sua condição de atleta. — O homem precisa de no mínimo 4% de gordura para sobreviver. Clinicamente seu caso é de internação, disse-nos o profissional. E o VO2 dele se iguala ao de atletas olímpicos. Isso tudo me deu a tranquilidade de saber que ele é forte, mas também uma preocupação a mais. Ele não tem reservas de gordura – fonte de energia que devemos ter por prioritária durante a expedição. Isso é um problema sério, fomos alertados. Quanto ao metabolismo, temos praticamente o mesmo índice, elevadíssimo se comparado à média tida como normal. Em estado de repouso, gasto cerca de quinhentas calorias a mais do que a tabela estabelece para minhas medidas. Mas ciente do papel da gordura, nas duas últimas semanas mudei a dieta, vivendo praticamente de carboidratos, em oito refeições diárias. Reduzi meus treinos e consegui engordar três quilos. Ainda é pouco, mas os treze por cento de gordura agora são um suplemento de energia que certamente vou precisar. Buscar informações sobre o funcionamento do organismo deve ser a primeira de todas as preocupações. Para cada perfil, uma orientação específica. E a base de qualquer ação deve ser o conhecimento. WEIMAR PETTENGILL 23 O que vamos fazer poderá consumir até dez mil calorias em um mesmo dia. E passaremos dezoito dias de atividades intensas. Que poderão durar até vinte horas em algumas das etapas previstas. Não há o que comer para repor o que vamos perder. O corpo, dependendo do ritmo cardíaco imposto, atacará tudo que ingerirmos, a reserva de gordura e porfim as próprias fibras musculares. É preciso muito cuidado, visto que em função do tempo de duração da viagem e do volume de alimentação, não podemos transportar nada de especial. Teremos que adquirir, conforme seja possível, e transportar apenas os mantimentos entre um trecho e outro, entre uma cidade e outra. E o quê priorizar? Que tipo de alimento? Que quantidade? E os líquidos? Em que proporção? Quais? De quanto em quanto tempo comer e beber? Todas essas questões foram cuidadosamente pensadas. Fosse a proposta apenas fazer cicloturismo, menos grave. Mas manter as metas ambiciosas que criei, com prazos definidos, apenas dois dias de descanso – praticamente sem margens para imprevistos, não nos permitem desinformação. Outro fator importante e última pendência para organizar antes da partida são os apoios. Falando da importância de divulgar o que vamos fazer, conseguimos apoio institucional do Senado Federal – mais precisamente da Comissão de Valorização da Pessoa com Deficiência. Também encampou a ideia a ONG Rodas da Paz, ativista extremamente atuante no cenário da bicicleta no DF. Com a imprensa, conseguimos cobertura do Correio Braziliense – o jornalista Marcelo Abreu impressionou-me com sua percepção e capacidade de retratar nossa aventura. A Rede Globo e o SBT também cobriram o evento, além do Grupo Labor, que se responsabilizou pela Assessoria de Imprensa. Patrocínio da Coca-Cola e apoio da VO2 Max, empresa de Brasília, especializada em tecidos tecnológicos para perfor- 24 BRASÍLIA - PARATY mance esportiva, que já conquistou o Brasil e se prepara para começar a exportar para o exigente mercado norte-americano. Fomos também recebidos pelo Governador do DF, José Roberto Arruda, simpatizante da bicicleta e de quem esperamos a correta iniciativa para concretização de seiscentos e cinquenta quilômetros de ciclovias em Brasília. Na última década, o trânsito do DF matou anualmente cerca de setenta usuários de bicicletas. Um absurdo que tentamos combater a muito tempo. Daí a importância política de ações que deem visibilidade à bicicleta como meio de transporte. Todo esse apoio foi de fundamental importância para que o contexto do Brasília – Paraty tomasse forma, se consolidasse. Estou pronto. Pelo andar da carruagem, o antigo sonho de registrar uma das minhas aventuras em um livro poderá acontecer. Será que teremos elementos suficientes? Pelo sim, pelo não, começo a anotar tudo. Até aqui, muita expectativa. E ansiedade. Somente os amigos de longa data e pessoas muito especiais conseguem perceber a intenção e a importância do projeto para mim, e para o Adauto. E os desdobramentos possíveis. E contabilizamos apoio de muitas frentes diferentes. Um sonho compartilhado aumenta a chance de se materializar.