Gertrude van Tijn

Transcrição

Gertrude van Tijn
Índice
Prólogo........................................................................................ capítulo um · «Uma mulher destruída»............................... capítulo dois · Refazer vidas................................................ capítulo três · «Os navios da morte».................................. capítulo quatro · A guerra de Gertrude............................. capítulo cinco · Missão a Lisboa......................................... capítulo seis · Crise de consciência...................................... capítulo sete · Apoio aos que partem.................................. capítulo oito · Negociar com o inimigo.............................. capítulo nove · Até ao fim.................................................... capítulo dez · Última saída de Amesterdão........................ capítulo onze · O rescaldo................................................... capítulo doze · Um ajuste de contas................................... Epílogo......................................................................................... 9
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Fontes.......................................................................................... Abreviaturas................................................................................ Notas............................................................................................ Referências.................................................................................. Agradecimentos.......................................................................... 329
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Mar
do Norte
Groningen
Leeuwarden
Assen
Hooghalen
Westerbork
Wieringen
Schoorl
IJsselmeer
Bentheim
Zwolle
IJmuiden
Zandvoort
Amesterdão
Blaricum
Haia
Hengelo
Deventer
Apeldoorn
Enschede
Utreque
Hoek van Holland
Arnhem
Roterdão
Waal
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Breda
Vught
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Eindhoven
BÉLGICA
Bruxelas
Maastricht
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50 km
Holanda, 1940
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Prólogo
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uma manhã de maio de 1941, Gertrude van Tijn — judia
de meia-idade, portadora de passaporte holandês — aterrou
no aeroporto de Lisboa depois de uma viagem aventurosa
desde Amesterdão, ocupada pelos nazis.
A capital portuguesa era, na época, um sítio caracterizado por es­tranhas incongruências e inversões de valores: uma ilha de paz num
continente em guerra, sede de governo de um Estado policial autoritário que se gabava de ser o «aliado mais antigo» da Grã-Bretanha,
e polo de atração para a intriga internacional. A cidade era também o principal porto de embarque para refugiados provenientes da
Europa sob domínio nazi, que desesperavam pela obtenção de passagens para o hemisfério ocidental.
Quem era Gertrude van Tijn e o que motivara a sua ida a Lisboa?
Fora ali numa missão de misericórdia. Embora a própria ainda
não tivesse plena consciência disso, a sua viagem era um esforço
de 11 horas para evitar um massacre. O seu objetivo era arrancar
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milhares de judeus da Holanda e das garras dos nazis. Realizou a
viagem com o beneplácito das autoridades alemãs, que, na altura,
estavam ainda dispostas a tolerar, mais do que isso, ansiosas por
encorajar, a emigração dos judeus. Em Lisboa, encontrar-se-ia com
representantes da American Jewish Joint Distribution Committee,
instituição de caridade preocupada com o destino dos judeus da
Europa. Pretendia indagar se a Joint, como era conhecida, estaria
disposta a financiar o êxodo de judeus da Europa ocupada para o outro lado do Atlântico. Parecia improvável que os nazis autorizassem
uma mulher judia, sem estatuto evidente, a realizar essa missão.
No entanto, o voo de Gertrude para Lisboa não foi uma fantasia,
mas uma bizarra realidade.
Ficou hospedada no Hotel Palácio, na zona balnear do Estoril.
Estabelecimento luxuoso, perto do casino, ninho de monarcas exilados, o Palácio revestia-se de charme e mistério. Espiões dos Aliados
e do Eixo cruzavam-se no lobby com correspondentes estrangeiros
e exilados prósperos. O jornalista americano Eric Sevareid, que ali
estivera hospedado semanas antes, descreveu o bar do Palácio como
sendo o «centro da espionagem durante a Segunda Guerra Mundial».1 Terá sido ali que, em meados de 1941, Ian Fleming, oficial
dos serviços de informação da Marinha britânica, conheceu Duško
Popov, nome de código: «Triciclo», um agente duplo que trabalhava
na Abwehr (serviços de informação) alemã em prol dos britânicos.
Julga-se que o Casino do Estoril terá sido a inspiração de Casino
Royale, o primeiro livro da série James Bond, de Fleming, e que
Popov terá servido de modelo para a criação do herói. Seja ou não
verdade, o Palácio sumptuoso e algo suspeito não era destino condizente com uma dona de casa respeitável, de meia-idade, proveniente de Amesterdão.
Como foi Gertrude parar àquele ambiente surreal, encarregada
de tamanha responsabilidade? Qual foi precisamente a natureza da
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Prólogo
relação que manteve com os seus contactos nazis e a comunidade
judaica na Holanda? Terá sido apenas um peão dos nazis ou terá
sido a sua viagem uma oportunidade genuína de salvar inúmeros
judeus da morte nas câmaras de gás? Como foi recebida pelos seus
interlocutores em Lisboa? Como foi encarada pelos governos dos
Estados Unidos e de outras nações a suposta disposição dos alemães para permitir a saída de judeus? É um conjunto de questões
sobre as quais me debruço nestas páginas.
Porém, a missão de Gertrude a Lisboa tratou-se apenas de um
episódio numa vida atribulada que suscita questões históricas mais
abrangentes. Num contexto de ocupação e repressão inimiga, a proteção da vida humana ter-se-á sobreposto a todos os outros valores?
Perante o mal absoluto do nazismo, terá havido um meio-termo
entre a resistência absoluta e a submissão abjeta? Que cedências
poderá um indivíduo achar necessário fazer para participar eficazmente numa ação coletiva com fins humanitários?
A interseção entre o percurso pessoal de Gertrude e os horrores
a que sobreviveu ajuda a esclarecer essas questões históricas mais
abrangentes que marcaram a sua época. Mantém-se a dúvida mais
fundamental de todas: qual foi a moralidade que a norteou quando
confrontada com o mal absoluto?
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capítulo um
«Uma mulher destruída»
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«Q
uase tudo o que recordo da minha infância são atos
de rebeldia», escreveu Gertrude van Tijn nas suas memórias inéditas.1 Definiu-se a si própria como uma
«criança exasperante», e o espírito independente com que encarou
todos os aspetos da sua vida tinha raízes profundas na sua personalidade e nas circunstâncias em que foi criada.
Gertrud Franzisca Cohn, como foi registada na certidão de nascimento, veio ao mundo «durante a pior tempestade de sempre», no
dia 4 de julho de 1891, em Braunschweig (Brunswick), a histórica
«Cidade do Leão» na Saxónia. O seu pai, Werner Cohn, comerciante
nascido em 1854, na pequena localidade de Seehausen, mudara-se
para Braunschweig em 1879. A mãe, Thekla, apelido de solteira:
Levisohn, 10 anos mais nova do que o marido, casou-se com este
cinco anos antes de a filha ter nascido.2 Gertrude tinha dois irmãos:
Ernst, o mais velho, e Walter, o mais novo da família, por quem a
irmã nutria um carinho especial. Os Cohns pertenciam à respeitável
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classe média e Gertrude foi desde cedo imbuída da postura social
e moral da burguesia germânica: delicadeza rigorosa; arrumação;
ordem; asseio; disciplina; e respeito pelas autoridades, educação e
moralidade convencional.
Embora a família fosse de origem judaica e assim estivesse oficialmente registada, apagara praticamente essas raízes da memória.
O avô paterno de Gertrude, Abraham Cohn, fora comerciante em
Seehausen. De acordo com descrição posterior da neta, tratara-se de
«um dos maiores promotores da emancipação» e ajudara a criar a
famosa escola Israel-Jacobson.3 Fundada em 1801, em Seesen, ao pé
da região montanhosa de Harz, perto de Braunschweig, tratou-se
de uma escola pioneira, dedicada aos princípios dos iluminismos
alemão e judaico. Foi desde o início uma escola interconfessional,
com alunos judeus e cristãos.4 O pai de Gertrude e os seus oito irmãos foram ali instruídos e absorveram as influências do judaísmo
reformista aculturado. Porém, os rituais judaicos não eram, de todo,
praticados em casa de Werner Cohn e, tal como os seus irmãos, este
afastou-se da fé dos pais.
Por conseguinte, à semelhança de muitos judeus alemães da
mes­ma geração, durante a sua infância Gertrude quase não teve
consciência de que era judia. Juntamente com a ama e o seu irmão
Walter, ia à igreja todos os domingos e tinha uma «fé inabalável em
Deus e em Jesus».5 Talvez até tenha sido batizada.
Durante os primeiros anos de vida de Gertrude, a família foi relativamente próspera e ela acostumou-se à presença de empregados domésticos. Todavia, quando tinha 11 anos, o seu mundo idílico
desabou subitamente com a morte da mãe. Passado pouco tempo,
um desenvolvimento catastrófico nos negócios do pai levou a que
perdesse a totalidade da sua fortuna. Incapaz de reagir, entregou
Gertrude e Walter a uma série de pais adotivos, à custa de parentes
abastados. Esses acontecimentos tiveram um efeito profundamente
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«Uma mulher destruída»
perturbante na menina. Tornou-se, nas suas próprias palavras, «sorumbática e conflituosa».6 Obrigada a ser autossuficiente, começou
a pensar pela sua própria cabeça — ousadia invulgar e até mesmo
perigosa para alguém do seu sexo, da sua idade e do seu estatuto
social.
Com cerca de 15 anos, Gertrude ficou transtornada ao descobrir
que o pai tivera uma amante. Sempre o considerara um herói; sentia-se agora duplamente abandonada. O desaparecimento da mãe
levara-a a perder a fé num Deus celestial; face ao que considerava uma traição do pai, sentia-se «abandonada pelo meu deus na
Terra».7 Esse episódio assinalou um ponto de viragem na sua vida.
Retrospetivamente, definiu-o como o fim da sua infância.
Por volta dessa altura, a família mudou-se para Berlim. A adolescente da província, que, até então, tivera uma existência pacata e
resguardada, deslumbrou-se com a cultura vanguardista e a excitação social da capital do império. Deliciou-se com concertos, bailes e
peças de teatro.
Teve também as suas primeiras experiências sexuais. Embora já
tivesse tido paixonetas por professores de ambos os sexos, não tinha
vivência sexual. Aos 17 anos de idade conheceu um pintor 30 anos
mais velho, que se apaixonou por ela — «violentamente, como só
um homem mais velho pode apaixonar-se por uma menina muito
nova».8 Gertrude achava-se feia, mas aquele homem deu-lhe, pela
primeira vez na vida, confiança na sua própria beleza. Defendeu-se
das investidas dele, mas meses mais tarde gerou-se um escândalo quando o pintor expôs diversos quadros e uma escultura que a
retratava nua, embora Gertrude tenha insistido que nunca posara
despida para ele.
Em Berlim, frequentou a Lette-Verein, escola especializada dedicada «à promoção da instrução superior e da qualificação profissional do sexo feminino». Ali, concluiu um curso lecionado pela
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assistente social pioneira e feminista judia alemã Alice Salomon, de
quem Gertrude se tornou discípula. Salomon pretendia libertar-se
do que considerava ser a vida inútil e isenta de oportunidades das
jovens burguesas, condenadas a não fazerem nada, exceto «dar de
comer aos canários e fazer naperões».9 Na época não havia o costume de höhere Töchter (jovens senhoras) terem qualquer tipo de trabalho remunerado. Todavia, Salomon tinha o objetivo de preparar
as suas alunas para procurarem carreiras socialmente significativas.
Gertrude revelou-se a sua «melhor aluna». Salomon «passava muito tempo a conversar comigo sobre a necessidade de lutarmos pela
igualdade de direitos para as mulheres».10 A influência de Salomon
ditou o rumo que a vida de Gertrude tomou e a sua opção de enveredar por uma carreira como assistente social.
Durante algum tempo, foi acompanhada de perto pelo irmão
mais velho, Ernst. Escapando à sua vigilância, conheceu um aluno
de Direito num baile de máscaras e teve a sua «primeira experiência romântica». Os dois arrendaram um quarto e fizeram amor.
A primeira experiência sexual de Gertrude foi «tão bonita, tão terna», que a encheu de uma felicidade serena.11 Quando Ernst, um
homem francamente antiquado, descobriu, enviou padrinhos à
procura do amante de Gertrude, com o fito de desafiá-lo para um
duelo. Perante as súplicas insistentes dela, o jovem recusou o desafio. No entanto, Gertrude ficou «irreversivelmente destruída» aos
olhos do irmão.12 Na esperança de evitar a desonra pública, despachou-a para casa de parentes abastados em Londres.
Aos 20 anos, Gertrude tornara-se numa jovem dinâmica, convicta
e confiante. Recusou a proposta do tio de continuar a hospedá-la e de
lhe oferecer um cargo no seu banco, mudou-se para uma pensão e
encontrou emprego sozinha. Trabalhou primeiro como secretária do
proprietário alemão de uma empresa no setor do papel, com sede perto
das docas, posteriormente como faz-tudo para um advogado e autor.
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Começou a ter aulas de música com um professor de canto vienense, pupilo de Schoenberg. «Tal como tantas vezes me aconteceu ao longo da vida com homens muito mais velhos» (escreveria
Gertrude mais tarde), este tentou fazer amor com ela.13 Nesse preciso momento, a sua esposa entrou na sala. «Fui-me embora e nunca
mais voltei a vê-lo.»14 Em vez disso, apaixonou-se por uma professora de canto, uma escocesa que morava em Hampstead. Gertrude
tornou-se hóspede em casa dela. Descobriu mais tarde que a professora era lésbica e concluiu que também se «poderia ter tornado
lésbica, assim ela me tivesse dado o menor incentivo».15
Era um período de grande agitação social e política em Inglaterra. Abalada pelo contraste entre a opulência das casas dos seus
parentes nos bairros mais apetecíveis de Londres e a deterioração
das condições de vida da classe operária nos bairros pobres da East
End, Gertrude empenhou-se profundamente em causas sociais.
A sua senhoria incitou-a a aderir ao movimento das sufragistas,
cuja campanha prolongada pelos direitos políticos das mulheres
atingia então o auge. Muitos anos mais tarde, Gertrude escreveu
uma carta à sua filha, onde sugeriu que lesse a obra Testament of
Youth (1933), de Vera Brittain: «É exatamente assim a minha geração; eu própria poderia ter escrito um texto assim. Também fiz parte do “Movimento Feminista”.»16 Gertrude juntou-se à organização
de Millicent Garrett Fawcett, que, ao contrário das «sufragistas»
mais militantes, utilizava métodos estritamente legais na sua campanha a favor do direito de voto para as mulheres. A família parece ter-lhe dado algum apoio. «Um dia, o meu tio ofereceu-me
10 libras para o movimento [uma quantia avultada no período anterior à Primeira Grande Guerra] se eu fizesse um discurso em
Hyde Park Corner. Assim fiz e fui imediatamente escorraçada
para dentro do lago. Pagou-me 20 libras, 10 pelo discurso e 10 pelo
mergulho.»17
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O início da guerra, em agosto de 1914, constituiu um possível
conflito de interesses para Gertrude. Enquanto cidadã de uma nação inimiga, foi-lhe exigido que se apresentasse regularmente às
autoridades. Prosseguindo o seu trabalho e a sua atividade política,
juntou-se também a alguns dos seus parentes ingleses numa campanha humanitária em prol das dezenas de milhares de belgas que
fugiram para Inglaterra no seguimento da invasão alemã do seu
país. Foi o primeiro contacto que teve com refugiados, cuja causa se
tornaria num tema recorrente ao longo da sua vida.
Em 1915 foram-lhe dados 10 dias para deixar o país. Se ali tivesse
permanecido, teria sido detida com os restantes civis alemães até
ao final do conflito. Por ser «ferozmente antialemã», preferiu partir
para um país neutro a retornar à pátria.18 Hesitou entre mudar-se
para a Suíça ou para a Holanda. Fatidicamente, calhou-lhe em sorte
fixar-se na segunda durante as três décadas seguintes.
Quando chegou a Amesterdão, instalou-se num hotel barato.
Munida de uma carta de apresentação redigida por um parente em
Londres, dirigiu-se ao gabinete de Pieter Vuyk, banqueiro ao serviço do Nederlandsche Bank voor Zuid-Afrika. Este, evidentemente,
afeiçoou-se à jovem e tornaram-se bons amigos. Apresentou-a a outro banqueiro, que trabalhava nos escritórios vizinhos da Hope and
Co. Carel Eliza ter Meulen era uma das figuras mais destacadas e
respeitadas no setor financeiro holandês. Também ele ficou bem
impressionado com a confiança e a vivacidade de Gertrude, bem
como com o seu inglês quase perfeito, e contratou-a de imediato
como sua secretária particular.
Ambos permaneceram muito ligados a Gertrude para o resto das
suas vidas. Vuyk insistiu que ela saísse imediatamente do hotel e se
instalasse na casa que a sua família tinha em Zandvoort, localidade costeira perto de Amesterdão. Gertrude tinha grande admiração
por Vuyk, descrevendo-o como um dos «melhores e mais sábios»
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homens que conhecera. Considerava-o «extremamente bem-parecido, com um ar algo distinto».19 Vuyk tinha origens calvinistas e a
sua esposa, Jadwiga, era uma judia polaca. O marido tinha fama de
mulherengo. Também a esposa tinha os seus amantes e, durante
algum tempo, teve um caso com Anton Mussert, futuro fundador
do NSB, o movimento nazi holandês.
Terão Gertrude e Pieter sido amantes? Ela negou que o tenham
sido, insistindo que a amizade dos dois «não teria sido possível se
ele não estivesse feliz com o seu casamento e a esposa tivesse tido
ciúmes… A minha relação com o P[i]eter também é prova de que,
em raras circunstâncias, pode existir amizade genuína, sem complicações sexuais, entre um homem e uma mulher».20 Só uma mente
perversa teria interesse em aprofundar a questão. No entanto, não
restam dúvidas quanto à intimidade entre os dois: até ao fim das
suas vidas, almoçaram juntos quase todos os dias em que coincidiram em Amesterdão.
Depois de ter passado alguns dias na residência dos Vuyks,
Gertrude mudou-se para um pequeno apartamento numa casa à
beira do Keizersgracht, um dos canais mais bonitos que atravessam
o centro da cidade. Partiu à descoberta de Amesterdão, pela qual
não tardou a apaixonar-se. Visitou o bairro judeu (os judeus constituíam 10 por cento da população da cidade), as magníficas sina­
gogas antigas e a animada feira de Waterlooplein.
Por volta dessa altura, Gertrude descobriu uma nova paixão: o sionismo. Num jantar, conheceu «um jovem muito atraente» (cujo nome
não refere), que, quando lhe disse que era judia, começou a falar do
sionismo. Convenceu-a a consultar alguma literatura sobre o tema,
nomeadamente Um Estado Judaico, de Theodor Herzl. «De súbito
despertou-me o interesse pelo assunto. Li páginas e mais páginas.
O facto de os judeus poderem orgulhar-se da sua herança e de estarem a trabalhar para um renascimento no seu próprio país foi como
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que uma revelação.» Sentiu que era hora de tomar uma decisão: «Parar de me chamar judia, ou aderir de alma e coração ao sionismo.»21
Gertrude mergulhou de cabeça na defesa da causa nacional
judaica. Quando o pai soube que aderira ao sionismo, censurou
a decisão. «Ele não compreendia», escreveu Gertrude mais tarde,
«logo eu, que tinha sido tão bem criada».22 Trata-se de uma reação
típica de um judeu alemão de classe média já assimilado. Mas tal
como em tantos outros aspetos da sua vida, também neste, depois
de se ter decidido, Gertrude não se deixou demover.
Porque terá adotado essa doutrina, na altura aparentemente
quixotesca, ou até excêntrica? Decerto não teve qualquer motivação religiosa, pois levara uma vida absolutamente secular até então.
Parece, sim, ter encontrado no sionismo um ideal que podia abraçar
incondicionalmente, uma válvula de escape para a sua energia inesgotável e um círculo de jovens entusiastas como ela, com os quais
se poderia dar.
O primeiro contacto formal de que há registo entre Gertrude e
a Organização Sionista foi uma carta enviada em agosto de 1916
para a sede do Fundo Nacional Judaico (FNJ) em Haia. Tratava-se
do braço financeiro do movimento, dedicado à aquisição de terrenos na Palestina para colonização por imigrantes judeus, halutzim
(pioneiros). Pouco depois do começo da guerra, a sede do fundo
fora transferida de Colónia para ali, onde estaria protegido pela neutralidade holandesa. Na sua missiva, Gertrude solicitava «selos do
FNJ no valor de um florim, de preferência com o retrato de Herzl».
Herzl, fundador da Organização Sionista, falecera em 1904; os selos
ilustrados com o seu retrato eram vendidos em campanhas de angariação de fundos. Pediu também «um catálogo de literatura judaica,
se tal coisa existir».23 Tempos mais tarde, visitou o gabinete do FNJ e
foi apresentada ao secretário do mesmo, um partidário do sionismo
socialista natural da Rússia, Shlomo Kaplansky.
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Os seus conhecimentos de inglês, alemão e neerlandês levaram
à contratação de Gertrude para traduzir correspondência e publicações para o FNJ. Em fevereiro de 1917, já dirigia o comissariado do
fundo em Amesterdão. Instalada num gabinete no elegante edifício da Bolsa de Diamantes na zona de Weesperplein, não tardou a
atarefar-se a organizar campanhas de propaganda e angariação de
fundos. As atividades sionistas na cidade estavam em baixa, mas
Gertrude ressuscitou o movimento na capital holandesa. O seu fervor sionista levou-a, inclusive, a admitir a possibilidade de se mudar
para a Palestina, com o fito de trabalhar no gabinete local do FNJ.
Mas o país era palco de operações militares entre os governantes
turcos e o exército invasor dos Aliados, comandado pelo general
Edmund Allenby. De momento, seria por isso inviável fixar-se ali.24
O trabalho de Gertrude apresentou-a às questões fulcrais da causa sionista. Juntou-se a um grupo de entusiastas com horizontes
semelhantes aos seus – na sua generalidade intelectuais jovens, de
classe média, bastantes dos quais viriam a fazer parte da vida
de Gertrude durante muito tempo. Entre eles, incluía-se Max Schloessinger, um estudioso natural da Alemanha, com negócios em
Haia e detentor de um cargo na direção do Fundo Nacional Judaico,
assim como a sua esposa, Miriam Schloessinger-Scheer, e também
Mirjam Gerzon, de quem se tornou amiga íntima. Os Schloessingers
e Gerzon emigraram para a Palestina em inícios da década de 20 do
século passado.
Gertrude travou também conhecimento com vários líderes sionistas, entre os quais Chaim Weizmann. Este vivia a sua fase de
maior prestígio, por ter sido o homem que, em novembro de 1917,
convencera o governo britânico a preparar a Declaração de Balfour,
favorável à fundação de uma Pátria Judaica na Palestina. Tal como
muitos dos que se cruzavam com ele, Gertrude deixou-se cativar
pela imponência da personalidade de Weizmann, pelo pathos da
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D o Holocausto à Salvação
sua oratória e pelo realismo visionário das suas convicções políticas.
Nunca deixou de o estimar.
Nesse período, teve pela primeira vez contacto com a American
Jewish Joint Distribution Committee (geralmente conhecida por
«Joint»). Terá ficado a dever esse contacto a Pieter Vuyk, que,
durante a guerra, intermediou a comunicação entre o banqueiro e
filantropo judeu Max Warburg, residente em Hamburgo, e a sede da
Joint em Nova Iorque, onde o irmão deste, Felix Warburg, desempenhava um papel fulcral.25 Com o apoio da Joint, Gertrude organizou
o envio de produtos alimentares kosher para prisioneiros de guerra
judeus na Europa Oriental. Embora a Joint lhe tenha apresentado
uma proposta de trabalho a tempo inteiro, com melhor remuneração, preferiu continuar a trabalhar com Ter Meulen, a quem era
então absolutamente leal. Mas o laço estabelecido com a Joint viria
a tornar-se essencial ao longo da sua carreira.
Em fevereiro de 1920, Gertrude casou-se com Jacques van Tijn,
um engenheiro de minas dois anos mais novo do que ela. Conheciam-se desde 1917, altura em que ele ficara admirado com um
discurso fogoso da futura esposa num encontro sionista. Gertrude
achava-o «feio, mas francamente encantador».26 O pai dele era
proprietário de uma fábrica e judeu ortodoxo; a mãe vinha de uma
família abastada de industriais judeus. Homem vivido e polido,
com olho para as mulheres, Jacques passara uma temporada na
Rússia, experiência da qual retivera a predileção por cigarros russos.
Gertrude adquiriu a nacionalidade holandesa por via do casamento.
Talvez o processo de naturalização lhe tenha parecido uma mera
formalidade. Só mais tarde se revestiu de maior significado.
Enquanto geólogo a trabalhar em explorações petrolíferas para
a Real Petrolífera Neerlandesa, Jacques exercia a sua atividade sobretudo no estrangeiro e, ao longo da década seguinte, o casal levou
uma vida peripatética na Suíça, na África do Sul, no México, no
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«Uma mulher destruída»
Uganda e em Tanganica. Enquanto o marido trabalhava e viajava,
Gertrude deu à luz dois filhos: uma menina, à qual deu o nome
hebraico de Chedwah Jochewed (conhecida por «Babs»), nascida em Amesterdão, em 1921; e um menino, David, nascido no
México em 1923. Gertrude pôs de parte a carreira profissional e cuidou das crianças. Enfrentaram vários desafios: cobras, gafanhotos
e incêndios em África; marabuntas, banditismo e a revolução no
México. Viveram vários anos numa bela casa antiga de estilo holandês, com magníficos jardins, numa propriedade de 12 hectares em
Inanda, perto de Joanesburgo. Pareciam felizes com o casamento,
embora ela ficasse muitas vezes transtornada com o mau génio de
Jacques.
Gertrude herdou dessas experiências uma atitude cosmopolita,
um interesse duradoiro em questões de política internacional, uma
resistência estoica face a mudanças súbitas de sorte e nas condições
de vida, bem como a capacidade de tratar com eficácia e frontalidade
com toda a espécie de pessoas, independentemente da classe social,
da raça e do sexo. Reforçou a sua compaixão pelos desamparados
e o desejo ainda vago de fazer tudo o que pudesse para melhorar a
vida deles.
Ao fim de mais de uma década passada no exterior, a família
retornou à Europa. No regresso de África, passaram quatro semanas
na Palestina. Foi a primeira visita de Gertrude à pátria dos sionistas, então governada pela Grã-Bretanha, mandatada pela Sociedade
das Nações. Tiveram oportunidade de constatar os avanços feitos ao
longo da década anterior rumo à fundação da Pátria Judaica. Admitiram, durante pouco tempo, a hipótese de se fixarem ali. Gertrude
adorava a espiritualidade de Jerusalém e o dinamismo juvenil da
cidade nova de Telavive. Passaram alguns dias no kibbutz de Ein
Harod, no vale de Jezrael. Contudo, Jacques não tinha perspetivas de emprego na Palestina e ambos sentiram que «não teríamos
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D o Holocausto à Salvação
coragem para viver numa das colónias e para nos tornarmos camponeses».27 Em inícios de 1932, tornaram a aterrar na Holanda, país
onde Gertrude permaneceria nos 12 anos seguintes e que foi palco
da tragédia histórica fulcral da sua vida.
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