o Brasil em cada plano O cinema de

Transcrição

o Brasil em cada plano O cinema de
MuriloSalles
O cinema de
o Brasil em cada plano
O cinema de Murilo Salles – O Brasil em cada plano
Mattos, Carlos Alberto; Salles, Murilo (orgs.)
1ª Edição
Julho de 2016
ISBN 978-85-66110-25-8
Coordenação editorial Carlos Alberto Mattos e Murilo Salles
Capa & projeto gráfico Guilherme Lopes Moura
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro
com fins comerciais sem prévia autorização dos organizadores.
A CAIXA é uma das maiores patrocinadoras da cultura no Brasil e destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos culturais em
espaços próprios e espaços de terceiros, com ênfase especial para exposições de artes
visuais, peças de teatro, mostras de cinema, espetáculos de dança, shows musicais,
apoio ao artesanato brasileiro e festivais de teatro e dança em todo o território nacional.
Os projetos são escolhidos através de seleção pública, uma opção da CAIXA para
tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas
as unidades da federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos
recursos da empresa em patrocínio.
A mostra O cinema de Murilo Salles — O Brasil em cada plano traz todos os longas-metragens do diretor, fotógrafo, roteirista e produtor carioca, além de curtas e filmes nos
quais ele assinou a direção de fotografia. O evento tem curadoria de Mariana Bezerra e também promove um bate-papo, dois debates e uma masterclass com o diretor homenageado.
Esta é uma oportunidade de conhecer profundamente o trabalho de Murilo Salles,
desde seus primeiros curtas, como Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo
(1971), codirigido com Ronaldo Foster; sua estreia em longas-metragens, com Nunca
fomos tão felizes (1984) – que participou da Quinzena dos Realizadores do Festival de
Cannes e ganhou os prêmios de Melhor Filme nos festivais de Brasília e de Gramado, e
o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno, passando por documentários para televisão e cinema que revelam sua forte ligação com as artes plásticas: Sergio Camargo,
Fevereiro 1984 (1984) e Tunga – Registros (2012), até seus trabalhos mais recentes,
como O fim e os meios (2014), vencedor do Prêmio de Melhor Roteiro no Festival do Rio.
Através da mostra O cinema de Murilo Salles — O Brasil em cada plano a CAIXA reafirma sua política cultural, sua vocação social e a disposição de democratizar o acesso aos seus
espaços e à programação artística, cumprindo, desta forma, o papel institucional de estimular
a disseminação de ideias, mantendo viva a vocação de abrigar e promover a cultura nacional.
Caixa Econômica Federal
Sumário
11 ‧ Ver e ouvir Murilo ‧ por Mariana Bezerra
textos do Murilo
17 ‧ Como é bom pensar sobre cinema
29 ‧ Depoimento a Lúcia Nagib
43 ‧ Filmes-faróis de Murilo Salles
sobre o cinema do Murilo
51 ‧ Como nascem os filmes ‧ por Maurício Lissovsky
57 ‧ Crônica das afetividades eletivas ‧ por Lírio Ferreira
61 ‧ Um documentarista contemporâneo ‧ por Carlos Alberto Mattos
69 ‧ Cinema para adultos ‧ por José Geraldo Couto
75 ‧ A violência endêmica como gesto criador ‧ por Marcelo Miranda
81 ‧ Entre deslocamentos e deslocados ‧ por Cleber Eduardo
85 ‧ A arte de filmar a arte ‧ por Paulo Sérgio Duarte
filmes e vídeos dirigidos por Murilo
93 ‧ Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo
95 ‧ Estas são as armas
99 ‧ Nunca fomos tão felizes
111 ‧ Sérgio Camargo, fevereiro 1984
113 ‧ Faca de dois gumes
119 ‧ Pornografia
123 ‧ Todos os corações do mundo
129 ‧ Como nascem os anjos
137 ‧ 50 anos de TV brasileira
139 ‧ Seja o que Deus quiser!
147 ‧ És tu, Brasil
151 ‧ Nome próprio
155 ‧ O espetáculo e a delicadeza
159 ‧ Tunga – registros
161 ‧ Aprendi a jogar com você
163 ‧ Passarinho lá de Nova Iorque
167 ‧ O fim e os meios
alguns filmes fotografados por Murilo
177 ‧ Carro de bois
178 ‧ Lição de amor
179 ‧ Árido movie
Biofilmografia
196 ‧ Índice de fotos
198 ‧ Agradecimentos
199 ‧ Créditos
183 ‧
11
Ver e ouvir Murilo
Mariana Bezerra
Conheci o Murilo em Gramado, no ano de 2007. Ele estava lançando Nome próprio,
trabalho que levou todos os prêmios a que estava concorrendo na competição.
Um filme apaixonante e completamente sintonizado com o momento que vivíamos,
quando o hábito de leitura começava a migrar dos livros para os blogs e a internet começava efetivamente a fazer parte da nossa rotina e do cotidiano dos relacionamentos
amorosos. A partir daí, fui revisitando sua obra. Fiquei maravilhada com Como nascem os
anjos, um dos filmes mais bonitos, sobre o absurdo social que divide os moradores das
favelas e os habitantes do asfalto. Faca de dois gumes deixou-me completamente impactada com a frieza e paixão dos personagens. Chorei assistindo Nunca fomos tão felizes,
que aborda a eterna busca e angustiante ausência da figura paterna como referência.
Passaram-se muitos anos até que eu estava produzindo a mostra Faróis do Cinema, quando chamamos o Murilo para dar seu depoimento no projeto, como diretor
convidado. Mais uma vez, me encantei com a sua capacidade de nos envolver, agora
pessoalmente, com suas deliciosas histórias de cinema e de vida.
Foi ali que nasceu a ideia de ouvi-lo novamente e saber mais sobre esse cineasta
que, de forma tão intensa, busca o encontro com o povo desse nosso Brasil de tantas
lutas. De tantas alegrias e de tantas desgraças também.
Passou-se mais um tanto de anos para que eu por fim tivesse a coragem de lhe
fazer um convite, no ano passado. Que tal montarmos uma retrospectiva completa de
sua prestigiada carreira?
E então, no final de 2015, tive a oportunidade de trabalhar com ele no lançamento
12
simultâneo de seus três filmes, e mais uma vez fiquei encantada com a sua capacidade
de nos surpreender com O Fim e os meios, em que ele trouxe para esse momento político que vivemos um filme tão necessário, reflexivo, que desloca a temática da corrupção
para o campo do comportamento humano. E me enchi de admiração pelo Brasil com
os personagens escolhidos nos documentários Passarinho lá de Nova Iorque e Aprendi
a jogar com você.
Foi no início daquele mesmo ano que veio a notícia de que o projeto da retrospectiva de sua obra havia sido selecionado e que iríamos, por fim, realizar a nossa mostra.
Murilo: diretor, fotógrafo, contador de histórias, mestre, ouvinte, confidente e amigo. E, principalmente, sempre apaixonado pelo nosso país e interessado por suas contradições. Que continue por mais muitos anos nos mostrando esse vasto Brasil em
cada um de seus planos.
Mariana Bezerra é produtora cultural, curadora e organizadora desta mostra.
14
15
Textos do Murilo
17
Como é bom pensar
sobre cinema
Murilo Salles
1. O filósofo Michel Foucault nos diz que a marca do Autor encontra-se na “singularidade de sua ausência”. Isso pode soar como um paradoxo, pois afirma dois conceitos
opostos: a singularidade e a ausência do autor.
Cabe-nos tirar proveito dessa questão, fazê-la render.
Primeiro, pensar o que seria “a ausência” do Autor, aquele que pensa o filme, que
conduz a narrativa, portanto a emoção do público. A aura de pequeno Deus a que os
Diretores de cinema estão submetidos. O Autor nunca está ausente. Os filmes de Autor
são filmes que, quanto mais original e brilhante for o autor, mais ele estará presente em
sua narrativa. O exemplo claro disso é JL Godard, que, depois de uma certa evolução
na sua carreira autoral, passa a estar presente fisicamente nos seus filmes.
Deveríamos entender a frase então pela relação entre as palavras singularidade e ausência. Tomar isso como metáfora, não como um paradoxo. Singularidade de sua ausência
pode significar um autor presente, que tem narrativa e poética próprias, mas inteligentemente se faz ausente, como estratégia, fazendo com que o filme se imponha na tela, para além
do seu Autor. Portanto que não haja uma exibição narcisista da poética. Pelo contrario, haja
um recolhimento voluntário e pensado da explicitação autoral. Pode ser que seja isso.
Não sei se acredito que isso seja possível, o Autor produzir essa ausência estratégica dos traços que o definem como autoral, pois, quando isso se apresenta verdadeiramente, o que é raro, para mim, é desejável. O que seria de Fellini sem sua poética?
Os próprios Godard, Antonioni, Buñuel...
Por outro lado, ainda não estou certo de que a exibição de poética própria e origi-
18
nalidade significa autoralidade cinematográfica. O exemplo mais claro disso é Woody
Allen em grande parte de seus filmes. Ele é autoral, tem poética e tem visão de mundo
própria. Mas seu pensamento cinematográfico é conservador. Sua mise-en-scène serve
para enquadrar atores falando o que ele quer dizer. É pouco para Woody Allen.
No seu oposto, temos Gus Van Sant em Elephant, que reconta uma história já
filmada, mas, certamente, pela inteligência de encontrar uma forma singular para essa
narrativa inaugura um capítulo novo no pensamento cinematográfico contemporâneo.
Talvez ao que Foucault se refira com “a singular ausência da autoralidade” seja o cinema que está sendo praticado por Van Sant, pelos primeiros filmes dos irmãos Dardenne, por Bruno Dumont, por Nuri Bilge Ceylan, por Carlos Reygadas e Lucrecia Martel,
entre poucos outros. É um cinema que se exibe pensando o que ele é, o que significa.
Aí está, sim, a renovação do pensamento do cinema, aquele que se preocupa em
reinventar-se narrativamente, e que pensa a representação a partir da imagem e dos
sons não entendidos apenas pelo registro do que o ator fala ou a adição do som captado, mas, sim, filmes que proponham novas formas para afetar o espectador.
Foucault, na sua jornada por uma arqueologia dos sistemas de pensamento, talvez
tenha querido nos lembrar que cinema é uma forma de pensar, e que os cineastas devam construir seus filmes a partir desse entendimento. O que não é nada fácil.
O cinema das imagens que enquadram atores que falam para entendermos o que
se deseja narrar e que agem para mover a história para frente é o cinema das imagens-clichê, que nada mais dizem por tanto se repetirem.
O desafio do cineasta, hoje, é pensar e criar imagens que abram as mentes para
novas percepções sensíveis, elevando e surpreendendo o espectador com as narrativas da complexidade do ser no mundo contemporâneo.
2. O cinema é tridimensional.
Fala-se muito de tempo. Mas a questão do espaço é fundamental no Cinema. A cria-
19
ção ou escolha desse espaço onde se desenhe, melhor, onde se coreografe a narrativa,
valorizando-se a questão da espacialidade da ação.
A mise-en-scène, i.é. a relação dos atores com a espacialidade do set e a relação
desses (atores e espaço) com o movimento da câmera, potencializado pela decupagem, que são os recortes exercidos para criar-se as cenas da ação, todo esse processo, objeto do conhecimento cinematográfico do Diretor, precisa ser libertado de uma
visão bidimensional, herdada da pintura. A mise-en-scène pode ser pensada tridimensionalmente. Isso não quer dizer fazer travellings giratórios em torno dos personagens,
que é bidimensional também, pois existem o ator e o espaço em torno.
Temos que pensar a liberdade escultural do espaço. Os corpos, a ação e o movimento (ou não) da câmera utilizados numa coreografia libertadora dos limites clássicos
da bidimensionalidade.
Que odioso e empobrecido é o campo-e-contracampo. Ele existe para que os
atores deem suas falas. Para que o cinema dê seu recado literário. Igualmente, certas
“posições de olhar”, tais como over-the-shoulder, que apenas servem para dar maior
visibilidade à fala (pois “estabelece” quem escuta), como se isso fosse o que interessa
no cinema. Igualmente desgastados estão os closes, que apenas servem para dar destaque à emoção do ator.
A emoção no cinema deve vir de saber usar com propriedade e inteligência os seus
meios. E quanto mais tridimensional for nossa compreensão espacial, mais cinematográfico o filme será.
3. A câmera ocupa um lugar determinado no espaço. Ela é um olhar inteligente que se
desloca criando uma narrativa, fazendo opções de olhar, que, inclusive, exclui da cena
aquilo que não quer ver. A câmera é uma danada. Não dá para dissimular isso. Não
existe o efeito de câmera “invisível”. A câmera é um “poder estabelecido”. Sem trabalhar essa consciência, só iremos reproduzir ideologias.
20
4. A prioridade para o diretor é o filme. Para o ator é o personagem. Algum Diretor cujo
nome não me lembro escreveu isso.
Trata-se de um ponto de partida a meu ver bastante equivocado. Uma visão simplificadora da questão. Se para o Diretor a prioridade é o filme, e se for um cinema narrativo,
tanto o personagem quanto o ator que o encarna são absolutamente questões prioritárias.
Um Diretor que não pensa a representação de seu personagem, e que, principalmente, não tem a consciência de que existe um sistema simbólico de representações
estabelecido como verdade narrativa, onde cada personagem tem um valor moral e
uma posição simbólica nessa estrutura, que é dada e se reproduz enquanto “modelo da
narração universal”, estará apenas reproduzindo esse senso comum narrativo.
E pior, talvez se torne um ideólogo desse sistema, porque existe essa máxima de
que se a história contada não se encaixa nesse “sistema de valores morais da narrativa”, o filme está fadado ao fracasso. Isso cada vez mais é uma crença religiosa entre
os cineastas e, principalmente, os roteiristas. O que só faz estratificar, sedimentar, e
portanto banalizar as narrativas. Por esse mesmo motivo, os filmes de entretenimento
têm se tornado tão previsíveis.
No caminho inverso, existem Diretores/Narradores que estão questionando esse
sistema, e, em certos filmes, radicalmente. Um bom exemplo disso é Embriagado de
amor, de Paul Thomas Anderson, onde o protagonista Barry Eagan, representado por
Adam Sandler, tem reações tais como destruir um banheiro porque entra em crise fóbica num primeiro encontro com uma mulher que acabou de conhecer, Emily Watson.
Sua fobia por mulher (pois rodeado por 17 irmãs dominadoras/controladoras) leva Barry
a ter essas reação de tipo “ordem do feminino”, que é uma reação histérica. Essa inversão rende cenas hilárias no filme, onde PT Anderson “inverte” os papéis do simbólico
(o que é masculino e o que é feminino) dentro dessa “estrutura” chamada “narrativa
cinematográfica” que pré-existe na cabeça do espectador. O protagonista masculino
não pode nem deve reagir histericamente e destruir um banheiro porque está inseguro
21
num encontro, pois isso é entendido – moralistamente - como uma reação feminina.
Portanto, fazer cinema é também pensar como lidar principalmente com essas “estruturas narrativas” estratificadas e monolíticas, cheias de valores que cada vez mais se
solidificam nas cabeças dos espectadores. Esse é um dos grandes desafios.
5. O que leva um Diretor a escolher determinado tema para o seu próximo filme?
Sempre tive problemas com essa questão. Leio entrevistas de cineastas que dizem que
no seu próximo filme irão discutir “tal tema”. Escolher o tema passa a significar que se tem
algo a dizer. E, por oposição, se não consigo definir com clareza, desde o início, o tema do
meu próximo filme, quer dizer que não tenho nada a dizer? Isso sempre me angustiou um
pouco, nunca ter o tal do “tema” como a motivação iniciante do processo cinematográfico.
Mas, pensando bem, talvez isso seja bom. Sou mais simples nas minhas escolhas,
tenho imagens que vão surgindo na minha cabeça, ou questões que começam a me
desafiar. Na verdade sempre fui descobrindo o que estou falando durante o próprio
processo de realização dos filmes. Isso é duro, porque angustiante, e parte de um
ponto desconcertante: você não sabe aonde vai chegar, portanto você se coloca o
tempo todo diante de um desconhecido. Isso é difícil, mas não tem jeito, é a minha
forma de escolher coisas. Por outro lado, acho isso enriquecedor, pois, para mim, o
que motiva fazer cinema é querer descobrir alguma coisa que não sei. Talvez por não
saber, me obrigue a procurar e querer saber mais, e por não ter a arrogância do já
saber o que dizer. Sou movimentado, como o cinema, por questões. Perguntas diante
do desconhecido. E pelo simples desejo de aprender, compreender e responder às
questões que me inquietam.
6. O plano é uma experiência em si.
O plano não é uma parte. O plano é um todo. E um filme vira “de cinema” se montado com planos que possuam essa ideia. Isso não é um teoria, é uma constatação
22
a partir da História do cinema. Várias vezes, lembramo-nos de certos filmes porque
lembramo-nos de alguns de seus planos. O cinema moderno tornou isso evidente primeiro com Orson Welles. Depois com Antonioni.
7. A questão da linguagem cinematográfica.
No dicionário Aurélio a definição de linguagem é o uso da palavra articulada ou
escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas. O vocabulário específico numa ciência, numa arte, num metiê. Língua. Vocabulário. Tudo quanto serve
para expressar ideias, sentimentos, modos de comportamento. Todo um sistema de
signos que são os meios de comunicação entre indivíduos e que podem ser percebidos
e articulados por órgãos dos sentidos.
No cinema, a linguagem cinematográfica começou a ser codificada com Griffith. Ela
se desenvolveu e ganhou corpo tal como conhecemos hoje, ligada aos desenvolvimentos técnicos e tecnológicos do cinema. O tipo de câmera, as lentes, as traquitanas para
movimentar a câmera, para iluminar a cena. A grua, o steadicam, as objetivas sensíveis,
o peso das câmeras, a sensibilidade dos microfones e dos negativos, o cinema digital,
tudo isso interage com a gramática cinematográfica. A linguagem está ancorada nessa
técnica/tecnologia. E é a nossa caneta.
A linguagem também se codificou a partir da necessidade de se criar uma “narrativa”. Precisava-se contar histórias com imagens. Como fazer? Primeiro pensou-se a
narrativa a partir da estrutura que usamos para falar e pensar, e em seguida, sofisticou-se, incorporando itens constitutivos da narrativa do teatro - com a dramaturgia, entre
outros, e depois, com as figuras de linguagem das narrativas literárias.
Esses dois vetores criativos/constitutivos da linguagem cinematográfica precisaram
se codificar, se estabelecer. Hoje existe esse código, que pode ser estudado em escolas de cinema, ou conhecido através de livros. Portanto o cinema criou sua linguagem.
A linguagem cinematográfica.
23
Como vimos, ela foi constituída por dois suportes: um técnico/tecnológico e outro,
o narrativo, que veio do teatro e da literatura.
Chegamos hoje no ponto onde se faz necessário re-pensar o cinema a partir desse
código que ele estabeleceu. Pensar o cinema a partir “do cinema”.
De um lado a técnica/tecnologia, mesmo atrelada ao capital e às necessidades da
indústria, desenvolveu o cinema digital que agora nos liberta um pouco das amarras do
grande capital. Hoje podemos usar a matriz de captação digital com resultados surpreendentes de qualidade a custos de operação bastante libertários. Outra questão que
se coloca é que o tamanho e o peso das câmeras digitais abrem uma nova dimensão
para a relação câmera/espaço/ator. Essa gama de possibilidades e posicionamentos da
câmera vai interferir criativamente na narrativa. A câmera agora pode ser tomada como
extensão do olho, com possibilidades de olhar de onde se quer. Isso coloca questões,
nos faz pensar, portanto, abre novas possibilidades para o cinema.
Mas o ponto relevante aqui é a construção da narrativa. O pensamento do cinema.
Como vimos, a linguagem “narrativa” surge da apropriação/adaptação dos códigos da
ação - dramaturgia - e de elementos das narrativas teatral e literária. E é nesse domínio
que o cinema pode e deve ser repensado: no seu sistema de representação.
O cineasta tem que revisar seus códigos narrativos a partir da constatação de que
ele pensa com imagens, ele pensa audiovisual. Trabalhar para ir além da tradição narrativa baseada nas figuras de linguagem literárias. Tratar a imagem agora como um grande
“acontecimento”. Pensar o Plano como uma “unidade em si”. Tentar fazer o espectador
“sentir” o cinema pulsar na tela. Linguagem como sensação. Propor uma experiência
sensorial que estabeleça algum grau de conhecimento novo no encontro com o espectador. A questão agora é, portanto, como criar esses planos, como construir essa narrativa
que irá afetar o espectador de maneira que o faça perceber novas possibilidades de
conhecimento? Como sensibilizar o espectador com algo novo e significativo?
24
8. O que é “Escrever” um Roteiro ?
Essa função, “escrever” um roteiro, isto é, abraçar esse fluxo que impulsiona o ato
de escrever nos coloca uma questão: como desenvolver uma narrativa a partir de um
fluxo ancorado nas palavras? Será que estamos comprometendo/aprisionando/submetendo nossa narrativa à forma da representação literária?
Quero perguntar mais objetivamente: serão “as palavras” a melhor ferramenta para
descrever uma cena de cinema?
Pensar o cinema é criar narrativas a partir de imagens+sons que nos remetam a um
estado de “suspensão”. Que nos afetem. Essa é a contribuição que Deleuze faz para a
nova equação do cinema. Nos faz pensar a partir daí.
Escrever um roteiro, e então agora acho melhor dizer “fazer roteiro”, é pensar um
sequencial de cenas com poderes de afetar as pessoas por conter “sentidos” e “narrativas”. Cenas que provoquem/tenham o poder de fazer pensar e afetar a partir delas
próprias. Uma cena única, singela e brutal, entendida aqui como força de significação
que abre canais para uma “percepção acima do senso comum”.
Cada cena desse Roteiro deveria nascer de uma imagem-sensação. Da procura incessante por essa imagem. O que seria isso? Por exemplo, a Antonia Pelegrino, Roteirista,
me contou uma cena escrita por ela que relata a relação conturbada de um casal onde a
mulher espera um filho de um sujeito que não quer assumir essa paternidade. É uma cena
onde eles estão no meio de uma discussão, e por causa disso, mas subitamente, rompe-se a bolsa d’água da gravidez de sete meses da personagem. A imagem do líquido amniótico jorrando da mulher é uma imagem poderosa. Ela tem essa contundência imagística.
Procurar imagens contundentes - essa é a tarefa dos Roteiristas.
Portanto, trabalhar a “Ideia do Cinema” quando se faz um Roteiro é deixar correr
o fluxo do nosso pensamento e de nossa sensibilidade, através dos/pelos signos,
criando a sensação de que acontecem a partir da imagem, a imagem aqui entendida
como acontecimento.
25
9. O Cinema de Liturgia
Procurei por um tempo um conceito que pudesse definir um certo cinema que
persigo e aprecio. Não sou um cineasta que faz o “cinema de poesia” conceituado por
Pasolini, tal como Ruy Guerra em Estorvo ou Julio Bressane em Filme de amor.
Meus filmes são narrativos, gosto de afetar, gosto do “como contar”, quer dizer,
gosto de linguagem, gosto de pensar a questão da representação no cinema.
Portanto, persigo um cinema que se constrói pela imagem e, principalmente, na
imagem. Por isso gosto do Elephant do Gus Van Sant, de A humanidade do Bruno
Dumont e recentemente de Os três macacos do Ceylan, que são filmes que narram
histórias, mas construindo sua forma específica e absolutamente criativa de narrar: pela
imagem e através da imagem. Ser narrativo não é oposto de ser inventivo, criativo. Bertolucci é narrativo e Godard faz cinema de poesia. Eu gosto muito de ambos.
Faço cinema para me entender no mundo e entender o mundo. Gosto de olhar, não
é à toa que sou fotógrafo. Acho que o Cinema passa necessariamente por uma levada
contemplativa. Radicalizo até: sem contemplação não há cinema.
Temos que descobrir “a forma” para contar cada história. E pensar que essa história vai ser contada por uma linguagem, por uma narrativa que através de uma (forma)
estética vai se singularizar.
Então, preciso definir o que seria essa estética para o cinema que quero fazer. Fui
procurar um conceito que definisse essa narrativa imagística. Nessa busca, me lembrei
da minha primeira comunhão. Sim, sou de família católica, principalmente meu pai. Fiz
primeira comunhão. Vivi o ato da minha “primeira comunhão” com muita intensidade.
Essa lembrança me levou ao insight de que a intensidade simbólica da comunhão
é muito cinematográfica e define com bastante clareza o que procuro quando penso
como fazer um filme.
O momento da “comunhão”, com seu ritual, com os sinos tocando, com o mantra
rezado pelo padre, o eco dos sons na igreja, o gestual do padre em “elevar a hóstia”, o
26
cálice de ouro, os crentes de joelhos, tudo isso adiciona sentido, criando uma narrativa.
É pura imagem, é pura encenação. A música, isto é, os sinos tocados pelo sacristão, o efeito do eco entendido como sinal da espacialidade da igreja, a locação, a igreja
de estilo gótico, na rua Áurea, em Santa Tereza, onde morava, o ator/personagem, o
padre, com sua reza percebida como mantra. Tudo é som+imagem, poucas falas.
Tudo formatando uma narrativa de sensações para criar emoções.
Poderia dizer o mesmo de uma cerimônia de casamento judaico, ou um ritual de
iniciação no Candomblé. São encenações de sentido narrativo a partir de uma extrema
força visual.
Por isso intitulo a ideia do cinema que persigo de “cinema de liturgia”.
10. Estado de Suspensão.
Gosto de dizer que o filme que realmente nos afeta nos deixa em estado de suspensão. Suspensão literalmente. Saímos do cinema imersos numa espécie de “transe”,
absorvidos aleatoriamente por imagens, falas, sensações, meio anestesiados e cansados por tanta afetação, que nem sentimos os pés no chão. Mas estado de suspensão é uma das possíveis e eficazes ferramentas de atuação
política do cineasta para tirar o espectador da zona de conforto das narrativas estratificadas, propondo novas formas de perceber o cinema, portanto, a vida.
As narrativas (a linguagem) entraram percepção humana adentro, sedimentadas da
ética e dos valores das forças dominantes dos processos sociais. As ideologias. O bem e o
mal. O dominador e o dominado. O que é belo e o que é feio. O que é a força e a fraqueza.
Quem vence e quem é o perdedor. O que é riqueza e o que é pobreza.
Não tem jeito. É assim. Essas “verdades” alicerçam nossa relação com o mundo,
mediando inclusive nossos sentimentos na relação com as narrativas. Parece que precisamos dessa ética das narrativas, somos viciados nela, no tempo em como elas são
contadas, tempo esse ligado a valor. Tempo é dinheiro, não temos tempo a perder, é a
27
ética da produção e da produtividade. Só há sucesso de público dentro desse código
de valores. Isso é tão claro quanto o conceito de beleza significar o que há de mais
palatável com essa ideia, no senso comum.
Então, para cada autor, cada cineasta que se propõe expandir a sensibilidade humana para além do senso comum, faz-se necessário ter que mexer com essa ética narrativa. Com seus valores de representação. Para encontrar novas formas de perceber o
humano fora desse dualismo simplificador.
Para isso, nossas narrativas têm que procurar uma forma para suspender esses
valores simplificadores e moralistas. Formas que causem estranhamento no mundo
do senso comum. A beleza nasce desse estranho, querendo descobrir o incomum, a
complexidade dos humanos. E nas descobertas feitas na jornada para perceber isso
tudo. Procurando novas formas de construir narrativas onde a suspensão da ética do
simbólico leve o espectador a experimentar novas formas sensíveis, sensoriais, e que o
faça repensar essa relação com o cinema.
11. O Sentido do cinema sempre foi um só: encontrar o que lhe é específico, o que o
torna singular, o que ele pode conter e como ele pode narrar eventos com uma forma
particularmente sua e, a partir desse ponto, pensar o mundo e o ser no mundo, que é
o objetivo disso tudo.
Publicado originalmente no livro Contente em ler cineastas. Renata Boldrini, Maiz de Oliveira e Fernanda Cortez
(orgs.). Usina de Letras, 2009
29
Depoimento a Lúcia Nagib
Murilo Salles
Meu avô adorava me levar ao cinema. Com ele, assistia aos seriados infantis que passavam na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Então posso dizer que a minha formação primeira
foram os desenhos animados de Tom & Jerry no Metro Passeio. Aos 14 anos assisti a Oito
e meio, de Fellini, filme que certamente marcou a mudança do meu olhar sobre o cinema.
Em 1968 e 1969 participei do Festival de Cinema Amador patrocinado pelo Jornal do
Brasil, provavelmente “o evento” formador da minha geração. No festival de 1969, com
ajuda de alguns amigos, fiz três filmes de 1 minuto que concorreram com 300 outros. Ganhamos uma menção honrosa pelo filme Amém. Foi o pontapé inicial. No ano seguinte, já
sob a censura do AI-5, realizei meu primeiro documentário: ABC montessoriano – pois era
obrigatório o tema educativo - sobre o método Montessori, que era a coisa mais inovadora
à época. Fomos felizes, tiramos o segundo lugar, cujo prêmio era em dinheiro e latas de
negativo, o que permitiu realizar meu segundo filme, o documentário Sebastião Prata ou,
bem dizendo, Grande Otelo, em coautoria com Ronaldo Foster, em 35 mm e em cores.
Cursei a ECO, Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sou formado em Teoria da Informação. Havia um cadeira de Semiótica, ministrada
pela professora Heloísa Buarque de Holanda, que, nessa época, era ligada ao Cinema
Novo e nos levou para assistir Macunaíma numa pré-estreia privada no Museu de Arte
Moderna. Os filmes Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe foram dissecados
com bisturi no curso da Helô. Uma bela formação.
Durante o final dos anos 1960 e inicio dos 70, fervia um clima cinematográfico intenso no Rio de Janeiro. Assistíamos aos filmes do Cinema Novo nas salas de cinemas co-
30
merciais (principalmente no Alvorada). Existia a “Cinemateca do Cosme Alves Neto“, no
MAM, que passava de tudo: os badalados cinemas polonês e húngaro, as pré-estreias
dos filmes da Belair do Bressane e de Sganzerla, até uma retrospectiva completa de
Buster Keaton. O máximo. O Consulado Americano, sentindo-se culpado pelo golpe de
1964, promovia ciclos sobre o cinema underground americano; o Instituto Goethe trazia
cópias do que havia de melhor no jovem cinema alemão. A Aliança Francesa promovia
sessões dos realizadores franceses em seu teatro enquanto o Cine Paissandu fazia retrospectivas de Godard. No Museu da Imagem e do Som havia sempre a chance de ver
o filme que tínhamos perdido no cinema, como Caçada humana, de Arthur Penn, e O
ano passado em Marienbad, de Alain Resnais. Posso afirmar que o Rio de Janeiro, nessa época, era uma das capitais mundiais do cinema. Eu assistia a mais de 350 filmes
por ano. Além disso tinha o bar da Líder, na Álvaro Ramos, onde a gente podia esbarrar
a qualquer hora com o Nelson Pereira ou o Glauber. Tinha ainda o Jangadeiros, para a
turma mais de Ipanema: Joaquim Pedro, o Ruy Guerra, entre outros.
O que me levou a fazer cinema foi esse clima efervescente: o Cinema Novo logo ali, num
cinema da esquina, as discussões radicais sobre a vida e tudo, com os amigos no Lamas
do Largo do Machado, e os filmes da Cinemateca. Foi fundamental também a possibilidade
de realizar filmes gerada pela existência do Festival Brasileiro de Cinema Amador do JB. Eu
tinha orgulho de estar vivendo isso tudo e queria me jogar nessa história mais visceralmente.
Minha formação cinematográfica se deu numa época muito sectária. A única coisa
que me interessava era assistir e pensar cinema. Não queria saber muito das coisas, lia
pouca literatura. O que aprendi sobre a vida se deve muito ao que se passava nas telas,
nos filmes. Além disso, esta minha formação foi muito influenciada por um certo purismo de não se deixar impregnar pela estrutura narrativa literária. Então dediquei minha
ignorância ao cinema: dos 18 aos trinta e poucos anos não lia romances para não me
deixar influenciar. Só aos trinta e tantos fui perceber a estupidez que estava fazendo.
Minha formação acadêmica foi completamente “anos 60”. Havia as leituras obri-
31
gatórias, por exemplo, quem não lesse a Antropologia estrutural de Lévi-Strauss não
estava com nada. Tínhamos que sair com As palavras e as coisas debaixo do braço ou
não arrumávamos namoradas. Tínhamos que estar por dentro de Althusser e Saussure.
Tudo isso fez parte da minha formação e confusões.
A CARREIRA
Bruno Barreto era um garoto inteiramente apaixonado por cinema. Aproximei-me dele
justamente por isso. Em 1968, eu tinha 17 anos e Bruno, 13, mas ele tinha uma maturidade e uma informação cinematográfica impressionantes. Foi Bruno quem me apresentou Truffaut. Eu era godardiano radical, admirador de Louis Malle e Alain Resnais, mas
não conhecia Truffaut, achava meio bobinho. Ele me fez descobrir Os incompreendidos
e Jules e Jim, que são dois filmes fundamentais na história do cinema.
Na verdade, nessa época, eu vivia intensamente um conflito, estava me iniciando em
cinema, mas era muito politizado. Tinha muitos amigos que entraram para a luta armada, alguns se exilaram, isso me dividia muito: o que fazer? Sentia-me um personagem
de La chinoise. Então, na faculdade, tentando resolver essa contradição, formamos
um grupo que criou a Corisco Filmes, uma produtora com pretensões de fazer cinema
coletivo. Conseguimos realizar um documentário sobre a Rádio Nacional. O filme reflete
bem a pretensão dessa proposta. Era difícil para mim ter uma prática pretensamente
politizada na produtora e uma vida profana, mas muito produtiva, com o Bruno Barreto.
Mas o coletivo da Corisco se dissolveu nas pretensões individuais de seus fundadores.
Pelo menos, realizamos a produção de Carro de bois, o primeiro documentário colorido de Humberto Mauro. Foi um projeto maravilhoso criado pela Valéria Mauro, neta de
Humberto, e seu marido Sérgio Santos. Tive a honra de fotografar este filme e conviver
durante um mês com Humberto Mauro, nosso primeiro grande mestre na busca por um
cinema voltado para as questões da brasilidade. Moramos um mês em Volta Grande,
no estúdio de Humberto Mauro. Foi sensacional.
32
Voltando a 1969, realizei três filmes em 16 mm para concorrer no V Festival Brasileiro de Cinema Amador. O Bruno fotografou um deles e me emprestou a Bolex para eu
fazer os outros dois. Logo depois ele começou a fazer uma série de curtas-metragens
já em 35 mm, preto-e-branco, e me chamou para ajudá-lo. Agarrei-me àquela oportunidade com unhas e dentes: acabei fotografando os curtas Este silêncio pode significar
muita coisa, A bolsa ou a vida e Emboscada, além de ajudá-lo na montagem e na produção. Enfim, minha escola foi essa: a prática. Um luxo.
O primeiro longa do Bruno foi Tati, a garota (1972), baseado no conto de Aníbal
Machado, um filme despretensioso, feito com muita garra. Bruno nessa época tinha
17 anos, eu, 21. Fiz a direção de fotografia. Tati foi “feito em casa”, com uma equipe
mínima: Bruno, eu, Mariza Leão - que era a continuísta -, um assistente de câmera, um
eletricista, um maquinista, a produção foi de dona Lucíola (avó de Bruno) e da Lucy
(mãe). Os atores Dina Sfat e Hugo Carvana, acredito, estavam muito motivados pelo
frescor de fazer um filme tão jovem. Isso passou para o filme: a paixão e a tenacidade
do Bruno, mais a juventude de uma equipe de amigos e dois atores extraordinários.
Não deu outra, o filme foi um sucesso de bilheteria que surpreendeu até o Luiz Carlos
Barreto. Tati provocou uma revolução dentro da casa dos Barretos.
Luiz Carlos cria então a ICB (Industria Cinematográfica Brasileira), que produz Guerra conjugal, de Joaquim Pedro de Andrade, e A estrela sobe, de Bruno Barreto, entre
outros. Bruno me convida novamente para fotografar o filme, agora numa estrutura
mais “industrial”. Foi um prazer ter feito A estrela sobe (1974), com a Betty Faria, uma
grande estrela e gente muito fina. O filme tem momentos singelos de brasilidade, é talvez um dos melhores filmes do Bruno, que já era um cineasta adulto. Eu levava aquilo
ainda meio na brincadeira. Muito da fotografia do filme se deve ao Bruno me desafiando
sempre para fazer melhor. O Bruno daria um excelente fotógrafo, tal como o pai.
Em seguida, fui convidado por Eduardo Escorel, montador de Terra em transe, um
cineasta do Cinema Novo, para fotografar seu documentário de curta-metragem, Relação
33
de visita feita a fortificações portuguesas do litoral nordeste do Brasil. Foi imensa a satisfação em receber esse convite do Eduardo, ele nem imagina, sobretudo porque eu era
considerado um apêndice do Bruno, que fazia filmes comerciais, então rolava uma certa
indiferença dos cardeais do Cinema Novo com o filho do Barretão, quanto mais comigo.
Eduardo tinha montado Isto é Pelé para o Luiz Carlos Barreto, que foi um sucesso de
bilheteria. Logo depois, ele iniciou a produção de Amar, verbo intransitivo, que virou Lição
de amor (1975), filme que fotografei com o coração batendo no gogó e considero até hoje
um dos grandes trabalhos que realizei. Quando assisti à primeira cópia do filme fui possuído de um sentimento delicioso: a certeza de que tinha me transformado num fotógrafo de
cinema. Eduardo Escorel é um grande cineasta, e sinto um baita orgulho de ter fotografado
esse excelente filme, um marco de qualidade e sensibilidade no cinema brasileiro.
Em seguida, Bruno Barreto embarcou no Dona Flor e seus dois maridos (1976), um
megaprojeto de seu pai. Foi o filme mais caro produzido no Brasil até então, dirigido
corajosamente e com uma tenacidade absurda, que o Bruno tem até hoje. Na época
o Bruno tinha apenas 21 anos, e eu fiz 25 no set de filmagem, uma festa noturna inesquecível na piscina do Salvador Praia Hotel.
Dona Flor era até pouco tempo o maior sucesso histórico do cinema brasileiro. O
filme é um encontro de vários grandes talentos: Sônia Braga, José Wilker, Chico Buarque, Francis Hime, um roteiro magnífico do Eduardo Coutinho e do Leopoldo Serran,
baseado no romance desse grande escritor que é Jorge Amado. Lembro bem quando
assistimos ao filme com o público, foi emocionante. Na época, o cinema brasileiro tinha
a fama de ser mal feito, sem foco, fotografia lavada, som inaudível, e Dona Flor deu um
banho de rigor técnico, tudo em foco, exposição correta, impecável. Aquela música
extraordinária do Chico Buarque, aqueles jovens atores magníficos, a apresentação do
Rudy Bohn, a direção supermadura do Bruno; enfim, foi um puta orgulho ter participado
de um produto feito com tanta excelência. Foi o terceiro filme meu com o Bruno, tudo
era grandioso e demorado, era muita responsabilidade pela grana envolvida e pelo
34
equipamento muito precário: os refletores colossais e pesados, a maquinaria antiga e
até a câmera, uma velha Cameflex. Foi dureza, mas o que ficou foi um sentimento muito
bom. Até hoje admiro o Bruno pela coragem de, aos 20 anos, encarar um projeto desta dimensão. Tentei persuadi-lo a desistir do filme várias vezes durante a preparação.
Ainda bem que não consegui.
Quando terminei de filmar Dona Flor, fui para a Europa, me autoexilei. Passei dez meses em Paris, reencontrei amigos, frequentei assiduamente a Cinemateca Francesa, via
cinco filmes a cada sábado, enfim, tirei meu atraso cinematográfico imposto pela ditadura.
No retorno para o lançamento de Dona Flor, recebi um convite de Ruy Guerra para
ir a Moçambique. A ideia era fazer um documentário por ocasião do III Congresso da
Frelimo, partido marxista-leninista que tinha tomado o poder havia um ano, com o 25
de Abril em Portugal. Chegamos em Maputo cheios de tesão e o documentário acabou
não acontecendo por falta de equipamento. Uma frustração. Para aproveitar a minha
presença, dei algumas palestras improvisadas sobre fotografia em cinema, afinal, à
época, era o fotógrafo top brasileiro, de Lição de amor e Dona Flor. As palestras foram boas (com a ajuda do Ruy) e acabei convidado para dar um curso no Instituto de
Cinema durante um ano. Topei de cara. Com a bagagem para passar uma semana em
Moçambique, lá fiquei por dois anos. Foi muito bom, porque era o conselheiro tecnológico do Instituto de Cinema. Ajudei a colocar o laboratório para funcionar, colaborei na
montagem de um estúdio de som, tive uma cinemateca à minha disposição, com filmes
de Marcel Carné a Godard na moviola, indo e voltando, discutindo cada plano com os
alunos. Com o tempo, fui descobrindo antigos filmes documentários do tempo colonial
e do processo da luta armada da Frelimo, que estavam nas prateleiras. Fui para a moviola e fiz um filme de montagem, Estas são as armas (1978), cuja proposta era materializar imagisticamente o conceito de imperialismo para o camponês moçambicano. Foi
muito emocionante o sucesso, o filme estreou numa praça de touros local, em sessões
contínuas, noite adentro. Foi cobrado o ingresso de um centavo para sabermos a quan-
35
tidade de pessoas que estavam assistindo ao filme: foi o recorde histórico de bilheteria
de Moçambique. O filme ainda ganhou a Pomba de Prata no Festival de Leipzig, em
1978, até então o melhor festival de filmes documentários que existia.
Esse foi o trabalho que me devolveu à condição de diretor. Fotografar, por incrível
que pareça, nunca foi minha escolha, sempre quis dirigir filmes, mas esse desvio, provocado pela minha amizade com o Bruno, foi fundamental na minha formação, pois
acabou por me dar muita intimidade com a câmera.
Voltei para o Brasil a convite de Carlos Alberto Prates Correia para fotografar Cabaret mineiro, filmado na região de Montes Claros. É um filme agro-godardiano, impregnado do universo mineiro-montes-clarense do Carlos Alberto, com discos voadores e
muitas fantasias eróticas. Enfim, uma bela volta ao Brasil. Busquei fazer uma fotografia
que ressaltasse o incrível tom da terra de Grão-Mogol e os azuis e verdes dos rios. Foi
isso: exploramos ao máximo as cores locais. Expusemos sempre no limite da latitude.
Os interiores-dia filmávamos em sua maior parte à noite, para termos o controle total da
luz e do contraste. Na época, essa radicalidade técnica teve muito impacto no circuito
de fotógrafos de cinema. Com ela, ganhei os prêmios de melhor fotografia nos festivais
de Gramado e Brasília. Foi um belo retorno ao Brasil.
Já Eu te amo (Arnaldo Jabor, 1981), o filme seguinte que fotografei, é expressionista
no sentido da pincelada forte, com exageros propositais, é a “fotografia pela fotografia”,
num exercício barroco de iluminação e cor.
Eu te amo, com Tabu [1982], de Júlio Bressane e Cabaret mineiro — os três filmes
— talvez tenham essa coisa muito especial, a minha volta depois de quase cinco anos
fora, poder ‘olhar’ novamente o Brasil.
Fazer Eu te amo foi um prazer. Trabalhar novamente com Sônia Braga, madura
e arrasadora; com Vera Fischer fazendo seu début cult; com o Zé Tadeu Ribeiro de
assistente (mais que assistente, um amigo que fotografou meus dois primeiros longas
de ficção); com o Waldir Monteiro maquinista no seu auge, numa relação de simbiose
36
comigo, fazendo travellings maravilhosos sem nenhuma marcação, ao simples sinal de
meu indicador. Mas antes de tudo, fazer um filme com o Jabor, um grande “maestro’
com sua equipe e atores, um cineasta que inteligentemente sabe extrair o nosso melhor, foi um dos trabalhos mais enriquecedores que fiz. Com esse filme, ganhei meu
segundo Kikito de melhor fotografia no Festival de Gramado e a ótima sensação de ter
dominado completamente o meu métier.
A seguir, Bruno me chamou para fotografar O beijo no asfalto (1980), uma adaptação
da peça de Nelson Rodrigues. Foi ótimo, uma grande oportunidade de inventar moda.
Como a locação principal era muito apertada e eu queria que a luz viesse da altura de
um abajur, então desenvolvi com o Betão (o chefe eletricista) um sistema de luz móvel: eu
segurava o refletor com as mãos e o movimentava na medida da evolução do plano. Era
o refletor voador... Também fiz um exercício de contraste de iluminação bastante radical.
Fico atormentado hoje em dia vendo a cópia de O beijo na televisão. Fizeram uma telecinagem horrível, desrespeitosa com o trabalho, clarearam tudo,provocando uma baixa
de contraste artificial, o que lavou e granulou todo o filme. A ideia de alto contraste que
contribuía fundamentalmente para o clima rodrigueano do filme foi para o espaço. Espero
que um dia isso seja corrigido, porque é um trabalho feito com muito carinho e coragem.
Trabalhar em Tabu foi juntar fome com vontade de comer. O cinema do Júlio é imagético
e seu trabalho é totalmente voltado para a invenção. O que mais pode querer um fotógrafo
que trabalha com essas mesmas ferramentas? Foi um belíssimo encontro. A ideia era fazer
com que o filme, quase todo rodado em locações exteriores, tivesse um aura artificial. Tive
que trabalhar para descolar a imagem das externas do naturalismo fotográfico que é dominante no cinema. Para realizar essa façanha, contei com o gênio foquista de César Elias, realmente meu grande parceiro no filme. Sem o César, Tabu não seria o que é. Outro principio
adotado foi fazer muita filtragem na câmera. Há muito tempo vinha pesquisando criar filtros
específicos que respondessem melhor ao clima fotográfico da cena. Comecei a adotar timidamente essas novas filtragens em Eu te amo, do Jabor, mas em Tabu a ideia de criar uma
37
filtragem específica para cada cena tomou conta do trabalho, em função do clima de cor que
eu queria adotar: procurei muito os tons turmalina, esmeralda, azul petróleo (acinzentado),
que tinham a ver com os climas. Portanto, juntava várias gelatinas de Color Correction criando uma filtragem especial que rendesse um tom de cor específico para cada cena.
Enquanto fazia Tabu, comecei a querer voltar a dirigir, que era a minha intenção desde que voltei de Moçambique. Ganhei de presente de aniversário O cego e a dançarina,
o primeiro livro de João Gilberto Noll, que na minha opinião é um dos escritores brasileiros mais talentosos. No livro, por causa de conversas com o João Gilberto, descobri
no conto Alguma coisa urgentemente um clima que estava procurando para imprimir no
que seria o meu primeiro longa. Trabalhei longamente numa adaptação com o meu primo José Joaquim Salles. Depois procurei o Alcyone Araújo, um sólido dramaturgo que
se tornou grande amigo e foi quem escreveu o roteiro que conquistou financiamento na
Embrafilme em dois meses. Bons tempos...
Então nasceu Nunca fomos tão felizes (1984). O filme foi selecionado para o Festival
de Cannes, na Quinzena dos Realizadores. Ganhou o Leopardo de Bronze no Festival
de Locarno e, em Brasília, ganhou o prêmio de Melhor Filme dos júris oficial e popular.
Nunca fomos tão felizes é um filme muito delicado e minimalista, uma metáfora sobre a
questão da ditadura militar vista através da relação entre pai e filho.
Meu segundo longa-metragem, Faca de dois gumes (1989), é um thriller. Queria
provar que era diretor, que sabia conduzir uma história contada através de ‘planos de
cinema’. Dispunha de dois grandes atores, Paulo José, que foi um verdadeiro parceiro,
e Marieta Severo. Aliás, todo o elenco do Faca é muito bom. A equipe era maravilhosa.
O Faca é o meu maior sucesso de bilheteria e com ele ganhei o Prêmio de Melhor Diretor do Festival de Gramado. Foi um filme feliz, na filmagem e nos resultados.
COMO NASCEM OS ANJOS
Então veio a época da “grande depressão Collor”. Para reagir, escrevi Como nascem os an-
38
jos. Fiquei com aquele roteiro em cima da minha mesa por uns bons dois anos. Foi quando
o Governo do Estado de São Paulo criou o Prêmio Banespa, uma luz no fim do túnel: mandei
o roteiro e fui selecionado. Mas o Banespa só liberava os R$ 300 mil se comprovássemos
ter o valor total da produção. O orçamento era de R$ 1,3 milhão. Aí, tudo parou novamente.
O impeachment do Collor fez o Itamar Franco virar presidente e criar o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro com o saldo do caixa da Embrafilme. Anjos foi contemplado
com R$ 500 mil pelo Prêmio Resgate. Em seguida, consegui patrocínio da Riofilme e,
depois, do BNDES, para a finalização.
Tenho a tendência de achar Como nascem os anjos meu melhor filme. É o sentimento de ter encontrado uma dramaturgia singular. Os Anjos provoca um desconforto nas
pessoas: ninguém sabe muito bem que filme é esse, porque ele confunde: tem começo,
meio e fim, mas não estabelece direito quem é o protagonista, quem é o personagem
do bem, quem é do mal. Como gênero, é uma tragédia, mas com uma forte levada
cômico-absurda que, ao mesmo tempo em que envolve o espectador, vai decompondo
os elementos que o prendem à narrativa. Toda a sua construção é ambígua, pois é uma
brincadeira em torno do conceito de verossimilhança: todas as cenas são inverossímeis,
mas vão sendo trabalhadas e encenadas para se tornem verossímeis, críveis, como, por
exemplo, a cena onde Maguila pede para usar o banheiro na casa de William porque não
mija na rua. É engraçado e absurdo, eu me divirto muito, vou confundindo, quando o
espectador acha que vem um sim, eu digo não, tal como na música de Caetano.
O cinema está precisando de um salto qualitativo, de reinventar formas diferentes
de contar e enquadrar o grande hipertexto. Estamos muito parados desde as inovações
formais de Godard, Straub, Jancsó e das grandes personalidades cinemáticas como
Fellini, Antonioni e Welles. Penso que ainda há grandes espaços para se pensar o discurso narrativo. Como nascem os anjos talvez seja meu primeiro passo nessa direção.
Tem muita gente procurando formas singulares e sensíveis de narrar. O filme de Edward
Yang, As coisas simples da vida, é um belo exemplo.
39
Nos Anjos eu quis prestar uma homenagem a O anjo nasceu, do Júlio Bressane.
Sou muito impressionado pelos filmes iniciais do Bressane e pelo Rogério Sganzerla de
O bandido da luz vermelha e A mulher de todos. São filmes que fizeram muito a minha
cabeça. Sou carioca, nascido e criado em grande cidade, me identifiquei muito com
esse tipo de cinema que surgiu no Rio com o Bressane, em São Paulo com o Sganzerla, com A margem, do Ozualdo Candeias, e com Bang-bang, do Andrea Tonacci. A
estrutura básica do meu filme é a mesma da desses filmes: o diálogo com o absurdo.
Naquela época havia a ditadura militar, mas ainda hoje o absurdo é matéria-prima criativa, um convincente recorte sobre o Brasil.
Ismail Xavier, na revista Cinemais, disse não entender por que eu usei um personagem americano, questionando a tendência de certos filmes brasileiros de utilizarem
atores americanos para “vender” lá fora. Comigo foi exatamente o contrário que aconteceu. A curadoria internacional, em geral, não gostou do fato de usar americanos no
filme, achando o mesmo que Ismail. A ironia toda é que Anjos é meu filme que menos
vendeu internacionalmente. Acho que até os curadores ficam confusos com o filme.
Mas o Ismail? Poxa... A verdadeira razão de ter escolhido um americano foi que nenhum
morador do Rio de Janeiro teria problema com o fato de Maguila chegar à sua porta
e pedir para mijar. No máximo ia desconfiar desse tipo de pedido. Os cariocas já se
acomodaram ao, no mínimo, desconfortável e absurdo conflito entre morro e asfalto.
Um personagem burguês carioca provavelmente teria dito: “Pô, cara, agora não dá, tô
de saída, atrasado... fica pra próxima...”, enquanto isso iria fechar a porta da garagem
e pronto. Aí, o filme não aconteceria.
Essa situação só é possível acontecer - pois ela é inverossímil - se a casa pertencer
a alguém que tenha uma grande cerimônia ou uma tremenda ingenuidade, que não
encaixa com quem nasceu num país com desníveis sociais tão profundos. Por isso tive
que escolher um gringo. Ele obviamente não sabe lidar com essa situação. Um gringo
nunca vai entender Maguila com duas crianças vestidas para o colégio pedindo para ir
40
ao banheiro. William é pego de surpresa, fica meio sem saber o que fazer, então Branquinha entra na garagem para explicar a situação e aí aparece o motorista/segurança
querendo controlar a situação, fica assustado com Maguila, que grita para largarem
sua mulher (“Que mulher? Esta criança andrógina é mulher do mastodonte?”). Apesar
dos pedidos do patrão-gringo, o motorista atira no ameaçador Maguila, que por sua
vez acaba matando-o. Tudo ao acaso, uma situação absolutamente inverossímil sendo
construída e encenada de forma a tornar-se verossímil.
Larry Pine é um ator impressionante. Injustamente não é muito conhecido, apesar de
ter sido protagonista de Sunday, um filme que ganhou o Festival de Sundance. Além de
excelente ator é uma grande pessoa, topou fazer o filme abraçando o projeto com uma
garra e uma dedicação impressionantes. Passou um mês em Nova York ensaiando uma
língua que desconhecia. Depois, mais dez semanas exaustivas interpretando William em
português. Qualquer ator sabe a dificuldade que significa representar sem conhecer a língua que está falando: o diálogo é um dos principais suportes da emoção do ator.
Hoje reconheço em Como nascem os anjos a coragem das minhas ‘brincadeiras’
dramatúrgicas. E fico contente vendo filmes semelhantes aparecerem por aí, excelentes, com uma certa ‘irmandade’ com Os anjos, como Buffalo 66, de Vincent Gallo, e,
principalmente, Terra de ninguém, do esloveno Danis Tanovic.
TODOS OS CORAÇÕES DO MUNDO
Um presente dos deuses. Imaginem a situação: eu estava na festa do Prêmio Colunistas do Rio de Janeiro, quando Mauro Richter, um amigo produtor, encosta ao meu
lado e pergunta se eu estava interessado em dirigir um documentário sobre a Copa do
Mundo de Futebol! Foi exatamente assim. Eu não acreditei. No dia seguinte, estava no
centro da cidade, numa reunião com os produtores do filme e, dois meses depois, estava em Chicago filmando o jogo de abertura. Parece conto de fadas, não?
O grande desafio desse projeto era produzir um documentário de envergadura em
41
apenas um mês antes de começar a Copa. Conseguimos reunir um grupo de fotógrafos maravilhosos, de superprodutores, de quatro diretores talentosos para as unidades
móveis e todo o resto da equipe, assistentes, finalizadores; enfim, para ser justo com a
garra e o talento da galera, teria que citar todo mundo.
Embarcamos 100 pessoas para os Estados Unidos uma semana antes de começar
a Copa. Nas primeiras duas semanas foi aquela loucura, dormíamos duas horas por
noite. Demos muita sorte com a equipe: todos, sem exceção, compraram o projeto, se
dedicaram dia e noite ao filme. Era um sonho estar vivendo uma Copa do Mundo tão por
dentro, com tanta intimidade. Não vou esquecer nunca que, quando terminou a final,
Brasil tetracampeão, depois que o estádio se esvaziou, nossa equipe se apoderou do
gramado para comemorar. O Walter Carvalho tem um registro memorável disto. Deitei
no gramado debaixo do travessão do gol em que foram disputados os pênaltis. Fiquei
ali, emocionado, quieto, olhando aquela baliza na qual, meia hora antes, 2 bilhões de
espectadores concentravam suas atenções. Incrível, não? Comemoramos tardiamente
porque, no momento da conquista, emocionados, com olhos em lágrimas, filmávamos.
Eu, embargado, pedia no rádio para os 14 câmeras: filmem, não parem de filmar! Mas
depois nos esbaldamos no mesmo gramado em que os jogadores brasileiros deliraram
de felicidade, enquanto os italianos expunham sua amargura.
Todos os corações do mundo exala a felicidade, o tesão enorme e a garra surpreendente de toda a equipe que fez o filme. Mas, principalmente, um pé-quente extraordinário: tive a felicidade de realizar o filme oficial da Fifa sobre a Copa do Mundo em que
o Brasil sagrou-se tetracampeão. Precisa mais?
Publicado originalmente em O cinema da retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90, de Lúcia Nagib.
São Paulo: Editora 34, 2002, pp. 406-415
Depoimento colhido em julho de 1999. Revisto em fevereiro de 2002 e em junho de 2016.
(Pesquisa: Mariângela Coelho Jacomini Bonetti)
42
43
Filmes-faróis
de Murilo Salles
comentados por ele mesmo
8 e ½ (1963), de Federico Fellini Assisti no cine Petrópolis durante as férias escolares, provavelmente em 1965, com 14 anos
de idade. O filme era proibido para menores de 18, mas eu estava com meus pais. Aquelas
imagens, do Marcelo Mastroianni aprisionado no carro, uma outra, a dos braços pendurados
às janelas do ônibus e, em seguida, a do personagem que sai voando, libertando-se daquele
pesadelo, certamente ficaram muito fortes no meu imaginário. Sensualidade e religiosidade.
Eu vivia essas questões. A educação católica repressora e persecutória. A história de um
cineasta preparando um filme enquanto rói as unhas. As tetas de Saraghina. Mulheres: céu
e inferno. Esse filme me ensinou que cinema é vertigem, tal qual o pesadelo de Guido, que
em pleno voo, súbito, desaba ao mar. Corta. Cinema é magia, suspensão e vertigem. Um
mergulho no desconhecido da criação. Coragem e encantamento… As dúvidas de Guido em
relação ao ato criador. Honestidade? Feitiçaria? Encantamento? O que dizer, se não tenho
nada a dizer? Fellini fala em seus planos, seus travellings, criando esse estado de vertigem.
A imagem. Fellini é antes de tudo a descoberta da potência da imagem do cinema. Encantamento, sedução, vertigem, medo. Isso deve estar guardado em algum lugar dentro de mim.
Blow up – Depois daquele beijo (1967), de Michelangelo Antonioni
Assisti no Cine Odeon. Esse é “o meu filme” seminal. Em tudo, na sua forma, no seu
conteúdo, nas atitudes dos personagens. Esse foi o filme que mais deixou marcas em
mim. Eu queria estar ali, dentro daquele filme. O mistério, a narrativa tensa que carrego
em meus filmes. Antonioni, acredito, não só em Blow up, mas em toda a sua obra, me
44
influenciou no modo de narrar e no seu recorte de mundo: o desamparo, a fragilidade, a
delicadeza, o feminino. Por outro lado, o seu pensamento cinematográfico, a sua tenacidade em procurar uma estrutura narrativa própria do cinema, imagística, por mais que
isso pareça hoje meio sem sentido, foram inovadores e fundamentais para mim e para
minha geração. É exatamente o que anda faltando em nossos filmes atuais. Antonioni é
meu cineasta predileto. Por tudo, pela atitude e política como cineasta, pelos filmes que
fez e por ter-se casado (mesmo que por um tempo) com Monica Vitti.
O eclipse (1962), de Michelangelo Antonioni
Adoro A aventura, com seus planos maravilhosos e fotografia impressionante, mas a
genialidade de Antonioni ganha radicalidade em O eclipse, para mim seu grande filme,
que gira em torno de uma mulher. Monica Vitti vive uma insatisfação (em seus filmes,
todos os burgueses são insatisfeitos, uma ingenuidade política da época), um vazio em
seus relacionamentos, até que se fixa num sujeito. Parece que encontrou alguém, mas
na verdade não... Ele está ali, mas ela é inquieta, não se sacia. O que interessa nesse
filme, muito acima da história, é a coragem narrativa radical de fazer desaparecer a protagonista, por completo, nos últimos dez minutos do filme. O que é novo aqui é que a
câmera passa a ser a protagonista e percorre os espaços dos possíveis encontros, espera a chegada de alguém nos pontos de ônibus, nas ruas, na esquina do apartamento.
Tudo está vazio e ninguém chega, porém a câmera continua lá, filmando esse vazio
da vida, nos provocando... É impressionante a coragem cinematográfica. Dez minutos
finais sem resolução, sem redenção e tudo mais, num profundo silêncio.
No Cine Paissandu fui abduzido pela poética da Nouvelle Vague, que, pelo excesso
de novidade, me encantou muito. Acossado (1960) – Godard + Truffaut – Os incompreendidos (1959). Esses dois filmes iluminam até hoje as telas com a liberdade e o
encantamento de um cinema que está sendo inventado enquanto filmado.
45
O demônio das onze horas / Pierrot le Fou (1965), de Jean-Luc Godard
É um “caso” especial. Talvez o filme que mais tenha visto na minha vida. É o meu “Filme
de Geração”. Um filme-tese, existencial. A quebra dos gêneros. Invenção e Poesia.
Música e Revolução. CHEGA? Depois dele, fica a questão: Qu’est-ce que je vais faire?
Je ne sais pas quoi faire.
O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais Assistido no cinema do Museu da Imagem e do Som, na Praça XV. Rigor cinematográfico & Nouveau Roman. Presente e passado se fundem e se confundem. Real, memória
& imaginação. Cinema-Cérebro. Vozes suspensas no ar. Delphine Seyrig se oferecendo
à câmera, num extasiante assombramento. Com certeza o cinema, com Marienbad,
inventa uma forma de pensar. Talvez, vendo hoje, pareça esquemática e muito racional,
mas foi uma forma que libertou o cinema da narrativa literário-hollywoodiana, nos abrindo principalmente a cabeça. Por isso continua valendo.
O “Descobrimento do Brasil”: Como um garoto de classe média, urbano, descobre o Brasil?
Na Cinemateca do MAM de Cosme Alves Neto. No turbulento e significante ano de 1968,
assisti Deus e o Diabo na Terra do Sol. Um choque de realidade. Esse filme fez minha
vida mudar. E nesse mesmo ano assisti a Terra em transe (no Ópera, na praia de Botafogo)
e O bandido da luz vermelha (na Cinemateca do MAM). Com eles funda-se uma cinematografia; funda-se uma identidade; constitui-se um corpo. SIM. O Cinema Brasileiro passa a
ter um corpo próprio, isto é, inventa uma linguagem própria, com luz e imagem e narrativas
singulares. E isso tem fundamento conceitual: com o espírito ‘traquitana’ de Edgar Brasil –
principalmente em Limite + o conceito da imagem foto-jornalística, urdido por Glauber – e
que se impõem magistralmente em Vidas secas. E essa cinematografia fala com o mundo
com O bandido da luz vermelha, que se pergunta ao espelho: Quem sou eu? – Tal como
Ana Karina, linda, saltitante, mas casada com o Godard (coitada…) em ‘Ferdinand le fou’.
46
O bandido Giuliano (1962), de Francesco Rosi
Foi um impacto. Ressalta primeiro a fotografia de Gianni di Venanzo, que atinge aqui seu
apogeu, apesar de Fellini 8 e 1/2. O filme me inquietou muito, pois parece um documentário, mas com uma narrativa incrível, ousada, que não respeita cronologia, vai para frente
e volta em flashbacks, e que nos mantém aparafusados à cadeira. Para mim, esse filme
‘inaugura’ o ‘mix italiano’ que influenciou enredos de filmes mundo afora: o estamento do
poder, a política e a máfia. Um filme mais que marcante, um verdadeiro ‘sol’.
Teorema (1969), de Pier Paolo Pasolini
Assisti no Condor Largo do Machado. Vital. Brilhante. Talvez o filme dessa época que mais
tenha se tornado contemporâneo. Pasolini funda a possibilidade de filmar o singular dentro
de uma visão marxista da burguesia. O ‘desbunde’ de uma burguesia que não dá mais
conta do mundo pós-maio de 68. Teorema é um anjo exterminador que detona o discreto
charme da burguesia. Uma síntese buñuelesca com o cine-poesia de Pasolini. Teorema se tornou contemporâneo porque nasceu contemporâneo. À frente de sua época.
O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci
Assisti enquanto começava a fazer cinema fotografando Tati, a garota. Outro filme
FODA. Para mim significa a descoberta de Bernardo Bertolucci e Vittorio Storaro. O
Cinema como ‘Ética do Plano’ tão pregada por Godard, mas com uma filiação direta
de Orson Welles e Gregg Toland. Um Citizen/Conformist. Mais um filme dos anos 1970
tentando dar conta da decadência da burguesia pós-68, mas aqui sob o prisma do
fascismo. Dominique Sanda linda, enigmática e desafiadora + os seios e o nariz de Stefania Sandrelli! Política & Eros. Potência Imagística: a ‘cinematografia’ reinventada por
Storaro. Um cinema profundamente encantado pelo próprio Cinema.
47
Bem, chegamos a ele, Luis Buñuel. Difícil dizer qual dos seus filmes me ilumina. Sua obra
é marcante e única. Ele é um cineasta fora de todos os ‘eixos’. Me descarrilou já nos dois
primeiros filmes, Um cão andaluz e A idade do ouro. E depois, com Viridiana, Os esquecidos, O anjo exterminador, A bela da tarde, O discreto charme da burguesia, O fantasma
da liberdade. Com seu último, Esse obscuro objeto de desejo, ele me olha desafiando:
‘diz aí Murilo?!’ Sempre fiquei sem saber ‘onde estava’ ao final dos filmes de Buñuel. Isso
é incrível. Seu cinema é desestabilizador. Seu espírito é indomado, surreal, iconoclasta,
cruel, nega valores estabelecidos, critica cruelmente a burguesia, mas seu inconsciente
é assombrado pela religião católica, e ele persegue, acima de tudo, a liberdade, por mais
que negue que ela exista! Esse é Buñuel. O meu Como nascem os anjos é uma pequena
e singela homenagem a esse que foi um dos grandes gênios do Cinema.
48
49
Sobre o cinema
do Murilo
51
Como nascem os filmes?
Mauricio Lissovsky
Pátio, de Glauber Rocha, realizado em 1959, anuncia-se como um “film experimental”. Em cena, um casal de atores (Sólon Barreto e Helena Ignês) ou talvez de personagens (um homem, uma mulher). Sobre o piso quadriculado de azulejos, movimentos
extenuados mas não desprovidos de desejo recusam a racionalidade do tabuleiro de
xadrez. O pátio está cercado por um muro de alvenaria, mas uma de suas bandas volta-se para o mar e descortina o horizonte. Além-muros, folhas de bananeiras balançam
com o vento. Talvez as plantas espiem o que acontece no pátio, pois, com o entardecer,
as sombras orgânicas dos vegetais rivalizam com a geometria da cerâmica: preto sobre
branco sobre preto e branco em preto e branco.
O que se experimenta aqui? O cinema — é a resposta mais evidente. O jovem cineasta experimenta-se com o cinema — diz-se também. Mas essas respostas, fáceis,
imediatas, descartam algo que está posto ali desde o início — o experimento. Esses
corpos selvagens expostos ao sol, ao vento, ao rumor das folhas, ao odor do mar, dispostos contra a retícula civilizada, cuidadosamente observados pela retina cinefotográfica. Já vimos isso antes, nas fotografias feitas por Portman dos andamanenses, no sul
da Índia na segunda metade do século XIX. O fundo pintado com pequenos quadrados
regulares pretos e brancos fora desenvolvido pela Sociedade Etnológica inglesa com
vistas à medição comparativa dos corpos nativos das colônias britânicas. A abstração
geométrica era um requisito tão fundamental da fotometria antropológica que Portman
recomendava manter a folhagem em torno do sujeito fora de foco quando não fosse
possível usar o tecido xadrez. Mas em Pátio a folhagem não é mantida à parte. Ela inva-
52
de o quadro, suas sombras movediças disputam os corpos com os azulejos estáticos
do piso. Glauber tem consciência do choque entre esses elementos, a catástrofe que
se abate sobre os personagens. A primeira coisa que distinguimos claramente na banda
sonora do film é uma sirene proclamando a urgência do cinema.
Pátio não é o primeiro “filme experimental” do Brasil, mas acredito que seja nosso
primeiro cinema-de-experimento, categoria em que poderíamos incluir, por exemplo,
Teorema, de Pasolini, de 1968, e boa parte da obra ficcional de Murilo Salles com seus
personagens confinados, deslocados, palmilhando a estreita linha imaginária que divide
civilização e barbárie. Mas enquanto o pátio de Glauber se transforma na plataforma de
lançamento para um cinema épico, com Murilo ele ganha uma cobertura provisória, que
nos permite permanecer ali um pouco mais, na expectativa de testemunhar as histórias
que as sombras farão brotar nas juntas desgastadas dos azulejos.
É de lá que emerge Gabriel, de Nunca fomos tão felizes, diante do mar em Copacabana, em um apartamento quase tão despido quanto o pátio de Glauber. A penumbra
ressalta o desenho dos tacos no piso. Pelos princípios experimentais de Murilo Salles,
não há cinema — ou história — se não há desalojamento, se não há um por-se fora
(a loggia não é um pátio, mas um corredor externo ou um pórtico, por onde se circula
ou se entra nos palácios florentinos). Por-se loja afora, nos filmes de Murilo, nunca é
um exercício de liberdade, mas mover-se de um confinamento a outro, de um internato
a outro: dos padres católicos ao pai comunista; dos muros do colégio às paredes do
aparelho. Mas o segundo confinamento não é o início ou o primeiro capítulo de uma
história, é o local do experimento: “o que aconteceria se...?”
Não se trata mais de um cinema de observação, mas de experimentação ativa
onde o personagem é exposto à história e aos hormônios, tendo que compreender,
sem manual de instruções, o efeito de ambos em seu corpo e em sua alma. Há uma
aposta teórica nesse filme, como em várias obras subsequentes de Murilo: cinema é
tábula rasa. Não apenas superfície de inscrição, mas lugar de raspagem, de irritação.
53
Quanto mais Camila, de Nome Próprio, lava e esfrega as escadas, mais se entrega ao
experimento e menos em casa ela se sente.
O “pátio” assume diversas configurações em sua obra: um apartamento vazio de
frente para o mar (Nunca fomos tão felizes), a laje de um edifício em Copacabana (O
fim e os meios), quitinetes em São Paulo (Nome próprio), a casa do gringo em São
Conrado (Como nascem os anjos) e a própria metrópole paulistana (Seja o que Deus
quiser!). O nomadismo desses protagonistas, quase todos em fuga ou acossados por
forças que os transcendem amplamente, nunca os joga “na estrada”. Movem-se para
que deles disponha a tábula rasa do cinema. E é ali, sobretudo ali, que eles se revelam
irremediavelmente falhados, inconclusos, irredimíveis. Mas o experimento-cinema de
Murilo Salles não é psicológico, é sociológico. São as marcas do socius que o diretor
quer ver aflorar de seus personagens desamparados e, frequentemente, disfuncionais.
Uma vez capturados pelo experimento, as pequenas ilusões que cimentam os egos vão
se esgarçando, o polimento se perde, e emergem, em sua mais crua e pura forma, os
males fundamentais da cultura e da sociedade brasileiras: o mandonismo, o sadismo,
o preconceito, o conformismo, o improviso.
O primeiro movimento, portanto, é esse esforço de abstração. Mas o cineasta está
convencido de que não é possível raspar tudo, pois há algo indelével nas superfícies
contemporâneas: as imagens eletrônicas. As telinhas sempre povoaram suas histórias:
a TV de Gabriel e o computador de Camila ocupam o centro da sala, o mesmo acontece
com o laptop de Paulo na laje de Copacabana. Os protagonistas, por sua vez, evoluem
de espectadores a produtores de imagens (blogueiras, jornalistas, publicitários). Mas
igualmente, cada um à sua maneira, de observadores a observados, de anônimos a
infames. A exposição dos personagens à mídia eletrônica que começa a conta-gotas
em Nunca fomos tão felizes assume proporções cavalares em O fim e os meios.
Há uma boa razão para isso. No mundo hipermidiatizado em que vivemos, o simples desalojamento dos personagens não é suficiente. A maioria de nós já adquiriu a
54
dupla cidadania que nos confere trânsito livre no país das imagens digitais. Mas ao
contrário da cidadania nacional, que nos é dada por inteiro, por meio de um ato natural
(o nascimento) ou cívico (a naturalização), a cidadania digital deve ser constantemente
alimentada por novas imagens. Ela é o Minotauro iconófago. Quando não lhe fornecemos seu quinhão diário de imagens perecemos no labirinto das redes sociais. Não
surpreende, portanto, que Camila seja a única personagem a sobreviver íntegra ao experimento. No último plano do filme a escritora e seu duplo postam-se lado a lado. Ela
aprendeu a retroalimentar-se das próprias imagens.
Ao conferir estatuto de personagem literário a seu duplo, Camila escapa daquilo
que Roland Barthes chamou “metafísica parva” da fotografia, a mera constatação que
nos aprisiona na reiteração e na tautologia. PQD, de Seja o que Deus quiser!, não tem
a mesma sorte de Camila. Desalojado de seu habitat natural no Complexo do Alemão,
no Rio de Janeiro, foge para São Paulo onde é assediado por imagens das quais não
consegue mais desvencilhar-se, como a de “negão do Comando Vermelho”, por exemplo. Mas em um dos poucos momentos de paz que lhe é concedido, a única conclusão
a que logra chegar — mastigando alegremente um sanduíche — é um primor de “metafísica parva”: “São Paulo é São Paulo... e um cheeseburguer é um cheeseburguer”.
Será preciso aprisionar-lhe o corpo para que sua imagem agora “livre” transforme-se
em sucesso musical na internet. O encarceramento de PQD é, enfim, um destino menos
trágico que o de Beto, pai guerrilheiro de Gabriel em Nunca fomos tão felizes, que precisou ser assassinado para que o filho finalmente pudesse possuir seu retrato.
O atravessamento do “pátio” por um crescente fluxo de imagens eletrônicas nos
permite ver o que estava posto desde o início. O experimento-cinema de Murilo Salles
não é apenas o lugar onde a trama dispõe dos personagens, mas o lugar onde o filme
os expõe. De nada valeriam os desalojamentos e confinamentos sucessivos se não
houvesse ali um dispositivo público de visibilidade. Seu lugar próprio, portanto, não é o
pátio interno nem a loggia corredor, mas a verandah.
55
O escritor mexicano Salvador Elizondo dedicou um breve ensaio à palavra inglesa
verandah, sem se dar conta de sua origem portuguesa — varanda, que os britânicos
devem ter aprendido na Índia. “Situada entre o bangalô burocrático coberto e a selva e
a ribeira” — escreve ele —, “a verandah é o ponto fronteiriço entre a civilização e a natureza, entre a ciência e a magia, entre o ‘progresso’ e a ‘barbárie’. É na varanda que se
conversa e se narram as histórias do Império. Na verandah sentam-se Kipling e Conrad,
fumando seus cachimbos e bebendo whisky ou gin. Se não fosse pelas varandas de Singapura e do Congo, sugere Elizondo, metade da literatura inglesa moderna não existiria.
É numa verandah em São Conrado que o “gringo” William, de Como nascem os
anjos, senta-se com seu bourbon, servido por D. Conceição, e contempla o “longo crepúsculo dos trópicos” que amplifica os “ruídos da selva às suas costas”, enquanto “nos
campongs do outro lado do rio” os nativos acendem as fogueiras em que cozinham
“sua precária noção de arroz e batak”. Mas, em virtude de uma reviravolta improvável,
a mansão do colonizador é tomada por Japa e Branquinha. Borra-se a linha divisória
entre a “selva” e o “bangalô burocrático”, entre o recesso e a paisagem, o bom senso
e a loucura. Em uma das cenas antológicas do cinema brasileiro, sob as luzes dos
refletores da TV, Japa dança. A varanda agora pertence aos bárbaros, cujos olhos não
buscam o horizonte mas o próprio corpo que a cada movimento, com os novos tênis
de marca, converte-se alegremente em imagem. O vazio do pátio, o vazio dos ambientes. o vazio do cinema alcança o indizível. William e sua filha não têm nada a relatar.
Quedam-se por aí, perplexos, sem ação, como essas malas de dinheiro que transitam
pelos filmes do Murilo, sempre prontas para viajar sem jamais chegar a lugar algum.
Murilo Salles faz da reiteração de certas situações seu modo de persistir no cinema. A existência confinada de Gabriel, no colégio interno, rebate sobre a de PQD, no
presídio. Os extremos das duas trajetórias se encontram no mesmo gesto: a solitária e
sem graça chutação de bola contra um muro. Que motivo têm para insistir nesse arremedo de jogo? A banalidade do ato exclui a motivação. A repetição serve antes para
56
nos confrontar com a obstinação do cineasta em realizar, a cada vez, seu novo (mesmo)
experimento. Pois nem tudo no cinema evapora, há sempre algo que resta, um precipitado qualquer que nos ajuda a compreender melhor a nós mesmos e ao mundo em que
vivemos. Bola mole em pedra dura — será que um filme fura?
Mauricio Lissovsky é historiador, roteirista e professor da Escola de Comunicação/UFRJ.
57
Crônica das afetividades
eletivas
Lírio Ferreira
Eram os últimos suspiros da claudicante ditadura militar no Brasil e chegava eu
atrasado ao antigo Cinema Veneza encravado no decadente centro da cidade do Recife
para assistir a um filme que possuía um título extremamente transcendental. Já fazia
tempo, o cinema brasileiro não produzia algum petardo significativo sobre a distopia do
regime militar, e a película jogava delicadamente um potente refletor HMI sobre esse
período sombrio da nossa história recente, que, tal qual a última noite de nitrato, estávamos vivenciando naquele instante. Ao mesmo tempo em que desnudava a relação
de um misterioso pai ausente militante de esquerda com um arrogante filho carente à
procura de identidade e de amor, Nunca fomos tão felizes era um thriller psicanalítico,
dirigido por um jovem diretor estreante, que mergulhava de escafandro nas masmorras
do horror do estado de exceção. Um filme sobre o vazio de quem sente, pulsa, ama,
mas não consegue falar. Metáfora maior não havia sobre a ditadura militar.
Ainda sob o impacto daquela nublada sessão vespertina de um mês qualquer do
ano de 1985, de súbito, decidi: seria também cineasta. Se eu tinha alguma dúvida,
naquele instante me veio a certeza. Eu tinha 20 anos de idade, estudava jornalismo na
Universidade Federal de Pernambuco e mal sabia o que o destino estava desenhando
para mim dali por diante.
Após alguns filmes curtos e outros amores líquidos, eis que me encontro no Festival
de Brasília para apresentar Baile perfumado, meu primeiro longa-metragem, que acabara de dirigir junto com meu parceiro de faculdade Paulo Caldas. Na competição oficial
havia outro filme dirigido por aquele, já não tão jovem assim, diretor inquieto que alguns
58
anos antes me instigara a cometer o desvario do crime da imagem. Durante o festival,
o conheci de maneira informal e, feito uma rajada de vento, dissipada.
Pouco tempo depois, numa noite fria de São Paulo, navegando sem mastro pela
vistosa Rua Augusta, quase tropeço numa comitiva que acabara de sair da pré-estreia
do filme Como nascem os anjos no cinema de Adhemar. Havia visto o filme no referido
Festival de Brasília e tinha gostado muito. Uma comédia de poucos erros e de grandes
acertos. À frente da turba, o crítico José Geraldo Couto me aponta o diretor do filme
que, sorridente, me convida para jantar. De pronto aceito, me junto à trupe e não me
arrependo. Pela primeira vez, bebemos e conversamos apaixonadamente sobre aquela
luz que ao mesmo tempo nos une politicamente e nos isola poeticamente e nos torna
sujeitos vulgares e silvestres.
Já morando no balneário do Rio de Janeiro e com um roteiro quase pronto do próximo filme que viria a fazer anos depois, eis que me encontro no Baixo Gávea observando
a liturgia da noite, sentado numa mesa tomando chopes, e à procura de um produtor
que acreditasse mais na dúvida do que na certeza, mais nas perguntas do que nas
respostas, que acreditasse mais no estranho do que no óbvio. Enfim, que tolerasse a
liberdade em infinitas doses de loucura. Criatura difícil de encontrar naqueles tempos
onde a mediocridade se mostrava assanhada nos estertores da incipiente indústria do
audiovisual. Mais difícil ainda encontrar naquele antro paquidérmico, ou não?
Juro, eu morava nas redondezas há algum tempo, frequentava aquelas mesas com
uma devoção monástica e nunca tinha visto antes daquela fatídica noite, o cineasta
Murilo Salles adentrar naquela catedral hedonista. Duas rodadas de chope mais tarde,
tinha se esboçado à minha frente um dínamo contemporâneo, a “parêa” dos meus devaneios mais recônditos.
O acaso, quando se alvoroça, mostra as suas garras mais afiadas.
Num segundo encontro, foi logo se oferecendo também para ser fotógrafo. Seu
último trabalho como diretor de fotografia fora em Tabu, de Julio Bressane, e já havia
59
passado duas décadas que não fazia uso do fotômetro. Apesar de já ter cometido uma
fotografia das Gerais de Guimarães em Cabaret mineiro, nunca tinha colocado no seu
matulão filmográfico uma fotografia eminentemente telúrica do sertão nordestino. Como
eu procurava para o filme um retrato perdido nos anos 1970, esmaecido e desbotado
pelas memórias afetivas, aquela me parecia uma excelente oportunidade. Antes de
pedirmos a saideira, foi logo me dizendo:
— Quero fazer em Árido movie a fotografia colorida de Vidas Secas.
Se o fazer cinema é uma atividade extremamente pretensiosa, por que não exercê-la
na sua plenitude?
Murilo optou por uma fotografia contrastada em seus interiores encurralados por pouca
luminosidade, que explodia nos exteriores em cores e luzes impressionistas superexpostas
pelo sol cabralino de dois canos projetado na complexidade do cinemascope anamórfico.
E assim foi a nossa primeira quimera...
Murilo Salles é um animal cineasta. Um cineasta da alma. Seus poros exalam nitrato de celulose. Suas retinas fatigadas nos observam sempre na contra luz. Seus
instantâneos revelam-se sempre no lusco-fusco. Seus olhares transcendem o cinema e
dialogam com novas e imprescindíveis apreensões.
Se desde a sua invenção o cinema é uma arte de irmãos, Murilo é meu irmão de
nitrato com quem até hoje costumo dividir minhas dúvidas e os meus anseios sobre o
olhar que me apraz. Costumo também dividir um cabrito à caçadora no Cesare, mas
essa é outra história e o chá já está quase apitando...
Recife, junho de 2016
Lírio Ferreira é cineasta
61
Um documentarista
contemporâneo
Carlos Alberto Mattos
Embora seja mais conhecido por seus premiados filmes de ficção, Murilo Salles
possui até agora um igual número (seis) de longas-metragens documentais na carreira.
Por pouco, essa mostra não incluiria o seu sétimo documentário, um filme ensaístico
sobre a Baía de Guanabara. Isto sem contar seus poucos curtas, quase todos conectados diretamente com o real. Vale a pena examinar como essa produção dialoga com
sua faceta de ficcionista e como ajuda a forjar sua personalidade autoral.
Como muitos cineastas, Murilo gosta de relativizar a distinção entre documentário
e ficção, apontando os deslizamentos frequentes entre os dois registros. No entanto,
para efeito desta rápida análise, consideraremos a fronteira que leva cada filme a ser
classificado como uma coisa ou outra.
Diante dos seis longas e seis curtas documentais programados na mostra, sem
muito esforço verificamos que eles constituem uma espécie de lastro conceitual de
certos temas que Murilo desenvolve no subtexto dos filmes de ficção: a formação da
identidade (seja ela pessoal ou nacional), os traços de improvisação e malandrice supostamente inerentes ao caráter brasileiro. Os documentários atuam também como
áreas de expansão para a veia plástica do realizador, em cuja formação destacaram-se
a fotografia e as artes visuais.
Filho de um jornalista estudioso de História, Alínio Tavares Ferreira de Salles, e de
uma pintora e professora de História da Arte, Yedda Navarro de Salles, Murilo acredita
ter deles herdado o interesse pelos dois campos. O treinamento do seu olhar para a
fotografia e as obras de arte pode ter origem no hábito adolescente de fotografar livros
62
de arte para a mãe exibir em aula. Sem querer forçar ilações biográficas, parece natural
que o cineasta tenha se tornado um exímio documentarista do fazer artístico.
Duas grandes questões me interessam de maneira especial no Murilo Salles documentarista. Uma delas é sua constante indagação/celebração de uma identidade brasileira através das expressões artísticas. A outra é a dialética entre presença e ausência
do cineasta na gênese e na filmagem de seus documentários.
O Brasil dos artistas
Para considerar o primeiro aspecto, tomemos os seus documentários sobre arte. A começar por Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo, trabalho de juventude realizado em parceria com Ronaldo Foster. Nesse curta influenciado pelo experimentalismo
godardiano, um ícone da cultura brasileira é enfocado não pela sua face gloriosa nem
pelo currículo já então consagrador. Otelo, ou bem dizendo, Sebastião é visto em trajes
domésticos, na casa modesta de classe média, falando de aspectos constrangedores
ou trágicos de sua vida. Sucesso (mais que conhecido), dissabores e mágoas convivem
numa síntese eloquente da condição do artista brasileiro. A linguagem descontínua e
“nouvelle-vagueana” do filme ajuda a compor a imagem de um ator que serviu igualmente à chanchada e ao cinema marginal, ao melodrama e ao Cinema Novo.
Grande Otelo prenunciava, de certa maneira, os personagens DJ Duda e Cícero
Filho dos futuros documentários Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova
Iorque, que haveriam de ilustrar a vida difícil do artista periférico. Nesses dois filmes
bem mais recentes, Murilo enfoca as estratégias de trabalho e sobrevivência de dois
produtores de arte alheios aos grandes centros. Uma vez que a produção dos shows
e CDs do DJ e empresário, assim como a dos filmes do cineasta, é sempre em escala doméstica, vale dizer que os documentários captam a um só tempo o trabalho e
a vida das duas famílias. Emerge daí o retrato díptico de artistas desglamourizados,
envolvidos até o pescoço no processo de “se virar” e “dar o seu jeito”. Processo este
63
que evoca as “cavações” dos cineastas brasileiros do início do século XX e pressupõe
toda uma prática composta de pedidos, espera, gambiarras, esperteza, criatividade e
miúdas corrupções do dia a dia.
Esses dois documentários foram lançados em 2015 simultaneamente com a ficção
O fim e os meios, mais um filme sobre um casal tentando ganhar a vida e enfrentando
as atribulações de seu ofício. À margem das classificações, portanto, esses três filmes
falavam, em níveis diferentes, de uma condição brasileira que atravessa classes sociais e
áreas de atividade. Da mesma forma, Aprendi... e Passarinho... dialogam com a comédia
social Seja o que Deus quiser!, que coloca um músico negro da periferia carioca na situação de objeto de um sequestro armado por playboys paulistas. A inversão de sinais e o
deslocamento de perspectivas são dispositivos dramatúrgicos muito caros a Murilo Salles
desde que ele renovou a temática da ditadura no cinema com Nunca fomos tão felizes.
Os documentários sobre DJ Duda e Cícero Filho são enfeixados no projeto És tu,
Brasil II, que previa filmes sobre quatro artistas de periferia. São também uma inversão
de sinais e um deslocamento de perspectiva em relação ao documentário És tu, Brasil, que os antecedeu em aproximadamente dez anos. Aqui, ao contrário, Murilo trata
de quatro artistas plenamente bem-sucedidos no mainstream nacional e internacional. Tunga, Deborah Colker, Carlinhos Brown e Alexandre Herchcovitch personificam a
criatividade brasileira estabelecida como fator de identidade nacional, elemento que a
coreógrafa não deixa de colocar em xeque numa fala do seu episódio.
Murilo, entretanto, encampa com seus próprios rosto e fala, na abertura do filme, a
ideia de que os quatro criadores representariam uma “imagem pensada” do Brasil – país
que, segundo ele, é muito mais “imaginado” do que constituído como realidade palpável. Sendo assim, os processos criativos testemunhados em És tu, Brasil perpassam
diversas junções formadoras da nossa nacionalidade e a projeta para cenários estrangeiros. Tunga, em sua primeira performance, leva pessoas nuas à floresta para celebrar
a sensualidade das formas naturais e escultóricas; na segunda, forja e estilhaça peças
64
de vidro numa capela francesa para interferir sobre a propagação da luz no lugar. Em
sua coreografia, preparada para uma apresentação em Berlim, Deborah vasculha os
cantos de uma “Casa” promovendo a conexão entre brincadeira e arte, espaço real e
estruturas imaginárias. Por sua vez, Carlinhos Brown, enquanto grava um disco para
lançar na Espanha, passeia pelas reflexões autobiográficas e remonta a suas origens
africanas. Brown é o artista que opera as pontes entre centro e periferia, entre a informalidade pré-consumo e a cultura de massa, um lado e outro do universo criativo do
próprio Murilo Salles. Já o estilista Herchcovitch (o terceiro a trabalhar com corpos no
filme) prepara desfiles para São Paulo, onde é celebridade absoluta, e Paris, onde é
um David lutando contra Golias. Herchcovitch põe em pauta a potência imaginativa do
transformismo e da mistura (de gêneros, materiais e posturas), característicos também
de um Brasil urbano, contemporâneo e liberado.
O olho que potencializa
Isso nos leva aos filmes mais propriamente “de arte” do realizador. Já em 1984, para
uma série da Rioarte, ele dirigiu o vídeo Sérgio Camargo — fevereiro 1984, em que
explora as esculturas do artista como um olho visitante. A câmera varre lentamente as
superfícies, circunda as peças, demora-se sobre detalhes e transfigura volumes através
da iluminação. O princípio do olho visitante vai voltar em vários dos 21 ensaios visuais
sobre artistas contemporâneos reunidos sob o título O espetáculo e a delicadeza, parte
do projeto Arte brasileira contemporânea- um prelúdio.
Nesse conjunto de ensaios, Murilo alterna o olho visitante — em galerias e exposições já montadas — com a documentação do preparo de obras e da realização de
performances. O olho visitante, diga-se logo, não é uma câmera passiva que observa
as obras, mas um olhar inquiridor que decompõe os espaços (como na belíssima instalação de Ernesto Neto no Panthéon de Paris), torna cinéticas as justaposições estáticas
de José Resende ou “narra” a partir da descoberta gradual da obra, de suas surpresas
65
e efeitos (caso da galeria de Tunga em Inhotim). O passeio pelo ateliê de Nuno Ramos
é um mergulho no caos criativo do artista, assim como as continuidades criadas entre
o trabalho de Carlos Vergara no seu ateliê e no descampado das Missões Jesuíticas
atestam a coerência do processo do pintor.
O registro de performances é um lugar privilegiado para o diálogo entre o cinema
e as artes cênico-visuais, e Murilo o tem frequentado com razoável assiduidade. Além
dos vários exemplos presentes em O espetáculo e a delicadeza, despontam os quatro
vídeos produzidos durante as cinco performances de Tunga na inauguração da Galeria
Psicoativa em Inhotim. Embora, modestamente, afirme que nada criou, Murilo certamente potencializou o resultado daqueles atos mediante o desempenho da câmera, os
pontos de vista escolhidos e a cadência adotada na edição. Se no vídeo das xifópagas
ele privilegia a mobilidade e a ideia de extensão e fluxo, no das mulheres e cerâmicas
ele susta o movimento da câmera para melhor capturar o movimento dos corpos, dos
gestos e das formas dentro do frame. O que está sempre em evidência é a procura
de uma linguagem que não só revele, mas também amplie e até comente a impressão
causada pela performance.
Esse envolvimento com o espaço da arte ecoa nitidamente nos filmes ficcionais
de Murilo através da relação entre personagens e direção de arte. Basta observarmos
o tratamento dos interiores em filmes como Nunca fomos tão felizes e Nome próprio,
verdadeiras instalações, ou o estilo visual hip hop de Seja o que Deus quiser!
Filmar ou não filmar
Por fim, quero tratar, ainda que rapidamente, dos diversos níveis de interferência com que
Murilo se presentifica nos seus documentários. Por circunstâncias de produção ou por opção metodológica, são poucos os que contaram com sua presença efetiva nos locais de
filmagem. Murilo, afinal, vê a direção de documentários como uma questão de projeto inicial
e de montagem. A captação seria um trabalho mais ligado à execução que à concepção.
66
Dos seis longas documentais que já assinou, três foram propiciados por convites.
Em Moçambique nos anos 1970, o “Camarada Brasileiro” — como era por lá chamado
— recebeu a incumbência de montar um filme a partir de materiais de arquivo das lutas
de independência. Assim, nada seria filmado especialmente para Estas são as armas.
Quando foi chamado para dirigir o filme oficial da Copa do Mundo de 1994, incapaz de
estar em todas as cidades, Murilo optou por ficar numa espécie de central de comunicação em Nova York e dali coordenar as diversas equipes espalhadas pelos EUA. Só
entrou em campo na fase final do torneio.
Foi na montagem que Todos os corações do mundo ganhou sua cara de filme sobre gente — fossem os ídolos Maradona, Hagi, Brolin, Preud’Homme, Baggio, Romário,
etc, fossem os torcedores de cada país com suas contribuições criativas. Aqui se faz
interessante notar como esse filme planetário estende para diversas nacionalidades o
tema da identidade perseguido pelo cineasta em seus filmes brasileiros. Ao destacar e
dramatizar a personalidade de algumas seleções, ele procura as almas nacionais empenhadas na mística do futebol-arte.
És tu, Brasil e O espetáculo e a delicadeza, ambos dedicados às artes contemporâneas, são aqueles em que a participação de Murilo é mais efetiva em todas as etapas.
A intervenção é particularmente decisiva no primeiro, já a partir da aparição do diretor
apresentando o projeto no prólogo. Integralmente filmados com a presença de Murilo,
sendo em sua quase totalidade fotografados por ele, os quatro episódios de És tu,
Brasil operam em linguagens bastante distintas. Enquanto as performances de Tunga
sugerem uma abordagem cúmplice, com montagem dispersiva e nenhuma intenção
de “explicar a obra”, nem mesmo “mostrar o processo criativo”, o trabalho de Deborah
Colker dá margem a uma edição ágil e construtivista (a “Casa”), marcada por telas
repartidas e ritmada pela verbalização energética da coreógrafa nos ensaios. Bem ao
contrário, Carlinhos Brown desdobra-se em reflexões sobre suas origens e sua biografia, fala de seu método e inspirações, “tentando explicar como a música surge”. Afro-
67
brasileiríssimo, Brown quebra o projeto observacional de Murilo e se espalha por onde
e como quer. Já Alexandre Herchcovitch atua em perfeita consonância, sem jamais sair
de seu casulo cool. Murilo, porém, dialoga com a androginia do personagem através
do falso documentário, ao colocar atores para comentarem teoricamente o trabalho do
estilista como se fossem membros do seu staff.
No caso dos filmes de observação Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de
Nova Iorque, Murilo comandou a busca de personagens, mas simplesmente não apareceu durante as filmagens. Não queria criar nenhum apego, mas apenas cumprir, posteriormente, o que chama de “exercício de olhar para o material”. Assim, seu trabalho
final estava desde o princípio condicionado ao que seus jovens colaboradores captassem espontaneamente em Brasília ou no Nordeste. Nesse tipo de terceirização parcial,
o realizador abre mão de tudo o que diz respeito ao improviso e à recriação in loco,
dissolvendo um tanto da autoria em troca de uma ação colaborativa dividida em fases
estanques. O método se aproxima mais do praticado em cinejornais, com suas unidades de documentação relativamente autônomas, que do vigente no cinema direto, cujo
funcionamento depende de uma observação “direta” do cineasta-jornalista em ação.
Seja pelo interesse em sondar a nacionalidade através das artes, seja pela postura
incomum perante o fazer documental, a não ficção de Murilo Salles está a merecer uma
atenção que ainda não recebeu. Oxalá esta mostra sirva um pouco para isso.
Carlos Alberto Mattos é crítico e pesquisador de cinema.
69
Cinema para adultos
José Geraldo Couto
Na filmografia de Murilo Salles há um elemento que me parece central, embora
nem sempre apareça em primeiro plano nas leituras de sua obra: o sexo.
Com a possível exceção de Nunca fomos tão felizes e Como nascem os anjos, Eros
permeia as relações de afeto e de poder em todos os filmes de ficção do cineasta. Mais
de poder do que de afeto, a bem da verdade. Vejamos alguns exemplos, tentando evitar
ao máximo os possíveis spoilers. Alguns talvez sejam inevitáveis.
Em Faca de dois gumes (1989), drama policial baseado em livro de Fernando Sabino, toda a ação se desencadeia a partir da relação extraconjugal da mulher do protagonista com o sócio e melhor amigo deste. Os sócios são advogados e o ambiente
em que tudo começa é o de uma civilizada e elegante classe média alta. Rapidamente,
no entanto, as forças do ciúme e da vingança precipitarão uma queda no abismo da
brutalidade. O Brasil, com suas fraturas sociais profundas, arrebenta a redoma inicial e
entra por todos os lados.
Nessa primeira abordagem frontal do erotismo, o olhar de Salles ainda é relativamente simples: há os traidores, movidos pelo desejo, e há o traído, que converterá sua
própria energia libidinosa em impulso de vingança.
Aos poucos esse olhar se tornará mais complexo, matizado, aberto às ambiguidades e contradições.
Em Seja o que Deus quiser! (2002), as coisas começam a se embaralhar. Uma VJ
paulista moderninha e descolada vai a uma favela carioca para fazer uma matéria sobre
a música local para a MTV. Ela seduz um jovem músico negro e passa a noite em seu
70
barraco. Atacada por bandidos vizinhos na ausência do rapaz, acaba acusando-o de
estupro e assalto, e volta para casa para retomar sua rotina de garota liberada. Procurado pela polícia, o músico também vai a São Paulo, num movimento ao mesmo tempo
de fuga e de ajuste de contas.
Claro que no primeiro plano dessa tragicomédia de erros está o questionamento
dos estereótipos sociais e de conceitos como a “democracia racial”, mas o sexo e seu
uso como instrumento de afirmação e dominação não são de modo algum secundários.
Em Nome próprio (2007), baseado em livros semiautobiográficos da escritora e
blogueira Clarah Averbuck, o sexo ganha finalmente o papel central, irradiador de toda
a ação e de toda a tensão. Aqui, a protagonista Camila (numa atuação extraordinária
de Leandra Leal) é ao mesmo tempo vítima e algoz de suas destrambelhadas pulsões
eróticas. Nesse ensaio sobre a intimidade em tempos de exposição pública, há um
movimento perverso e autodestrutivo em curso: ao mesmo tempo em que sofre com a
solidão e falta de afeto, Camila parece destruir voluntariamente todas as pontes que a
ligam ao outro, aos outros. É, em seu corpo e em sua mente, um inventário de desacertos, contradição viva, paradoxal prisioneira da liberdade.
Em O fim e os meios (2014), seu mais recente filme de ficção, obra de plena maturidade ética e estética, Murilo Salles funde indissociavelmente o erótico e o político, duas
linhas de força fundamentais de seu cinema. A promiscuidade da vida política brasileira,
em que relações dúbias e não raro escusas se estabelecem entre empresários, políticos, jornalistas, magistrados e publicitários, atravessa o corpo e a alma de uma mulher,
a jornalista Cris (Cintia Rosa).
Aqui, o respeito à complexidade e ao caráter contraditório dos comportamentos
individuais rendeu ao cineasta a incompreensão de muitos. Cris é uma profissional independente e bem intencionada, que busca manter um certo distanciamento crítico diante
do lamaçal político-moral de Brasília, mas é também uma mulher às voltas com seu
próprio desejo. Há, em sua relação com o assessor de senador para quem seu marido
71
trabalha, um evidente jogo de dominação em que entram um tanto de consentimento,
um tanto de carência, um tanto de brutalidade – tudo ao mesmo tempo, numa confusão
análoga à da “vida real”.
É essa visão adulta e nuançada do comportamento humano, avessa ao maniqueísmo e às simplificações programáticas, em especial no tratamento das interações erótico-afetivas, que distingue, a meu ver, o cinema de Murilo Salles. Existem, por certo,
outros cineastas que abordam o sexo de modo mais explícito e, supostamente, mais
“ousado”. Mas é difícil imaginar uma apreensão mais aguda dos descaminhos e contradições internas do comportamento erótico.
Como estamos falando de cinema, e não de ensaios teóricos, cito três cenas em
que essa abordagem adulta, múltipla e generosa se concretiza. Em Seja o que Deus quiser!, há um momento em que, depois de voltar a São Paulo, a VJ Cacá (Ludmila Rosa)
está fazendo sexo com seu namorado (Marcelo Serrado), playboy paulistano lutador de
jiu-jitsu. Ele está deitado de costas e ela sentada sobre seu rosto, dominando a sessão
de cunilíngua. No auge do ato, quando ela está “perto de um final feliz”, ele a repele com
um gesto bruto: “Desloquei o maxilar”. É um anticlímax cômico e desconcertante. Num
filme erótico, seria considerado um ruído “broxante”, mas por isso mesmo acaba iluminando a mecânica crua de um ato sexual aparentemente rotineiro entre o casal.
Em Nome próprio, quando está no fundo do poço, a protagonista emite um S.O.S.
pela internet e é acolhida por um jovem fã. No apartamento deste, embriagada ao
extremo, ela adormece profundamente. O rapaz a desnuda, fotografa sua vagina e se
masturba, vendo a imagem resultante na tela do computador, de costas para a garota
de carne e osso estendida a menos de dois metros de distância. Não conheço uma
cena tão rica (e verdadeira) sobre as refrações do erótico em nosso tempo em que tudo
é mediado pelas imagens, pela construção da identidade pública, pela ruptura das
fronteiras entre intimidade e exposição.
Por fim, em O fim e os meios, algum tempo depois de ter sofrido um ataque sexual
72
do assessor vivido por Marco Ricca, Cris, solitária em frente ao computador durante
uma das longas ausências do marido, faz nudes para enviar a este. Depois de hesitar
um pouco, acaba mandando suas fotos eróticas também para o assessor/agressor. Os
instantes em que ela vacila, escrevendo e apagando endereços de e-mail na tela do
computador, são de uma tensão erótica tremenda. E a própria cena prévia, do ataque
sexual propriamente dito, é filmada de modo perspicaz e revelador. O homem se impõe
não apenas com a força física, mas também com um discurso em que comparecem
a arrogância do poder, o machismo e o “racismo cordial”. Ela acaba cedendo, mas só
vemos o início do assédio. Depois a câmera se afasta progressivamente do local do
ato, percorrendo os andares e ambientes amplos da casa, com os sons cada vez mais
amortecidos e a reação silenciosa dos empregados. É como se, nesse momento, Murilo
Salles nos dissesse que as relações mais íntimas são incomunicáveis, se não incompreensíveis. É só o reflexo exterior delas que nos chega, refratado e distorcido. Como
podemos ter a pretensão de julgá-las?
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor
Filho e pai
Pai e filho
75
A violência endêmica
como gesto criador
Marcelo Miranda
No cinema de Murilo Salles, a violência é endêmica. Ela não aparece somente nos
temas ou pontos de partida à narração, e sim na estrutura da dramaturgia, a desvelar
caminhos por onde a estética é atravessada e a definir escolhas que fazem dos filmes
objetos artísticos orgânicos e em constante movimento. A violência na ficção de Salles
impregna os planos e a fotografia, as falas e os movimentos, os olhares, as distâncias
e as aproximações entre os corpos; ela é dolorida, pulsante, trágica e castradora dos
afetos, que se impossibilitam enquanto base de encenação. As relações ora se interrompem, ora nem acontecem, por conta das explosões de sangue e brutalidade a dominar
todos os estratos sociais por onde os indivíduos circulam. Nem sempre explícita, às
vezes totalmente oculta da nossa visão direta, essa violência vai das classes altas às
classes desfavorecidas, sempre perversamente democrática, talvez a única (e mais desgostosa) verdadeira democracia a prosperar no Brasil em mais de 515 anos de história.
Os três primeiros longas-metragens de ficção de Murilo Salles - Nunca fomos tão
felizes (1984), Faca de dois gumes (1989) e Como nascem os anjos (1996) - são os mais
violentos de sua carreira. Neles, a contaminação, venha de onde vier, infecta e agride,
“fere, mata e come”, como entoava Maria Bethânia. A trinca inicial de Salles resume parte
de certa historiografia recente do Brasil, tendo por marco os efeitos do golpe civil-militar
de 1964 nas relações afetivas nem sempre diretamente relacionadas ao contexto político.
Nunca fomos tão felizes fala sobre um pai e um filho cuja proximidade é, como
a democracia no período retratado, também interditada. Gabriel (Roberto Bataglin),
estudante de colégio interno, acredita ter sido redescoberto pelo pai como efeito de al-
76
guma ação carinhosa e apaixonada, mas se decepciona ao perceber que Beto (Cláudio
Marzo) continua a se esquivar mesmo depois de instalar o jovem num apartamento em
Copacabana. Os motivos da ausência continuada de Beto são ocultos, mas o espectador sente pela atmosfera que se trata de clandestinidade contra a ditadura. A ação
se ambienta em meados dos anos 1970. A violência do Estado, no auge, reverbera na
incapacidade do pai em ser, de fato, o pai que o filho anseia.
O sangue como elemento líquido e vermelho escorre pouco em Nunca fomos tão
felizes, mas, como símbolo da derrocada familiar, ele é expelido aos litros. O ferimento
derradeiro em Beto não é o que de fato o elimina. Para Gabriel, o pai já era um corpo
morto, o qual era preciso carregar e suportar durante a própria ausência e que se recusava a se fazer presente quando diante do olhar do filho. O instantâneo fotográfico
do defunto - num dos instantes mais devastadores do cinema brasileiro nos últimos 30
anos - carrega mais vida do que o corpo físico de Beto, porque agora haverá a fisicalidade de uma memória. A lembrança, materializada em fotografia e inserida a fórceps
nas fantasmagorias do filho, vai sempre insistir em existir por ser, como escreveu Beatriz Sarlo, “soberana e incontrolável”. Gabriel está condenado a esta presença alternativa do pai, queira ele ou não. Talvez seja a que lhe baste.
Da violência do Estado a invadir os afetos, Salles aponta as lentes para a violência
íntima e pessoal em Faca de dois gumes. Exercício de cinema policial à brasileira, o
filme é antes de tudo um amontoado de situações-limite pelas quais a contaminação do
tecido social está completa e incurável. A ditadura, aqui, nem precisa mais existir, pois
os atos totalitários, excessivos e truculentos vêm das pessoas de cotidiano comezinho,
incapazes de agir para além do individualismo e dos interesses escusos, sejam eles
passionais ou financeiros. A endemia se espalhou por igual, o sangue agora escorre e
explode simbólica e literalmente, o esfacelamento desestrutura as poses das classes
abastadas que prescindem do “outro de classe” (expressão de Jean-Claude Bernardet)
para a existência de tensões e conflitos. Eles destroem-se entre si mesmos.
77
O advogado Jorge (Paulo José) é o homem perdido entre o terror do regime militar
recém-terminado (e nunca mencionado pelo filme) e o ímpeto da violência dentro de
casa. Numa linha sucessiva de atos extremos, não há diferenças entre um ponto e
outro: todos terminam em tragédia e destruição. Como em Nunca fomos tão felizes,
Murilo Salles faz um filme de limitações físicas e afetivas: se Gabriel precisava se isolar
num apartamento e numa Copacabana cuja amplitude de espaço soava apenas ilusória
ao rapaz, Jorge também padece de um confinamento, caracterizado pelas ações e
reações que o mantêm constantemente sem saída, girando num ciclo infinito de sofrimentos infligidos por ele aos outros ou a ele pelos outros.
Das mansões de Faca de dois gumes à favela de Como nascem os anjos, o trajeto
parece se alterar, mas essa impressão é superficial. Logo se retorna ao universo das
classes altas, quando o trio protagonista Maguila (André Mattos), Branquinha (Priscilla
Assum) e Japa (Silvio Guindane) toma como refém uma família norte-americana residente em São Conrado, na zona sul do Rio de Janeiro. A contaminação pela violência
pode dar a impressão de vir de fora para dentro, porém não se pode deixar enganar-se
por ataques sociologizantes: não é que os pobres infernizam a vida dos ricos em Como
nascem os anjos, e sim que a infecção é irrestrita, como deixam evidentes os filmes
anteriores de Salles.
A serenidade do advogado William (Larry Pine) durante toda a ação de Como nascem os anjos, vista num retorno ao filme duas décadas após seu lançamento, se revela
num sentido de caricatura e da idealização algo debochada da figura do estrangeiro.
Os modos educados e austeros do “gringo”, mesmo diante da tensão máxima de armas apontadas a ele e à filha por dois pré-adolescentes do morro, são um fracasso
absoluto, incapazes de conter os ímpetos da pequena dupla. Branquinha e Japa, como
escreveu Andrea Ormond, “barbarizam, mas preservam a ternura, pela total falta de
consciência. Estão dentro e fora dos eventos, pois do nada se dissociam deles e vão
morar nas nuvens da alienação infantojuvenil”.
78
Murilo Salles problematiza, entre a crítica e a ironia, o papel da mídia na construção de mentes e atitudes de parte da juventude brasileira. Há um instante singular em
Como nascem os anjos que, em sua crueldade, resume o sentido do olhar desiludido
de Salles. Encantada pela beleza da “gringa” Julie (Ryan Massey), Branquinha pede que
a moça tire a camisa e mostre os seios. A menina chama Japa para também ver. Ambos se sentam ao chão, diante de Julie desnudada, e pedem que ela se imagine como
se fosse a tela de uma TV, e eles dois os telespectadores. Diante da imobilidade em
choque da estrangeira, Branquinha reclama de que “nada acontece” e finge “desligar”
a TV com um movimento de controle remoto, ordenando que a garota volte a se vestir.
Construída como a possível perversão precoce de Branquinha, a cena é, na prática, a
materialização de um imaginário puramente lúdico, pelo qual atravessam os anseios de
uma menina com o corpo em formação e que vê no outro (estrangeiro ou não) algo que
não lhe parece real, restando então enquadrar, pela mediação da mídia, aquilo que lhe
surge como beleza. O meio é a mensagem.
Ao fim, Japa e Branquinha vão se tornar eles mesmos parte do imaginário midiático
de viés sensacionalista, já adiantado num diálogo na primeira metade do filme, quando
o menino debocha de não querer virar manchete de jornal popular. Ironicamente, com
o sequestro em andamento, a repórter não convence a emissora de TV a noticiar a
ação “durante a novela das sete”, restando apenas “o noticiário da noite”, relegando
as crianças a um tipo entortado de marginalização e invisibilidade eletrônicas. Após o
desenlace abrupto que sela o destino de Branquinha e Japa - numa cena filmada por
Salles com secura nunca antes vista em seus filmes (e talvez nem depois) -, todas as
emissoras se interessam imediatamente pela história. A repórter tenta saber de William
o motivo de tudo aquilo ter acontecido e recebe apenas silêncio como resposta.
Pois o resto é mesmo silêncio. A violência endêmica desses filmes não encontra
razões concretas para existir, exceto na disposição de Murilo Salles em transformá-la
em cinema de choque e em fazer com que ela extravase os sentidos dos enredos para
79
se fixar como imagem construída com exuberância formal. Da amplitude da ditadura,
ficam os olhares vagos de Gabriel em Nunca fomos tão felizes; da crueldade criminosa
de assassinos enciumados e gângsteres de classe alta, resta a frieza do olhar de Jorge
em Faca de dois gumes; do abismo social brasileiro representado pelos limites entre
a favela e o asfalto, sobra o abraço entre uma menina e um menino que, antes de se
matarem, declaram amar-se como irmãos em Como nascem os anjos.
Em todos esses filmes, o gesto de Salles é o de fazer da ação narrativa (daquilo que
compreendemos a partir do que acontece) o enquadre desses pequenos instantes únicos e
simultâneos espalhados pelos filmes. O diretor não ambiciona algum hiperrealismo ou naturalismo, muito pelo contrário: o artifício é o elemento a dar a liga. José Carlos Avellar explicitou lindamente esse mecanismo em relação a Nunca fomos tão felizes, num pensamento
que aqui ousamos estender aos outros filmes comentados: “A narração segue contínua
porque ao ver os fragmentos o espectador vê também o princípio usado para fragmentar a
ação. Vê a ação fotografada e vê também a fotografia. Ou mais exatamente, vê a fotografia
(...) e vê também a ação fotografada”.
Marcelo Miranda é crítico de cinema, pesquisador e jornalista
81
Entre deslocamentos e
deslocados
Cleber Eduardo
Há uma premissa recorrente nos quatro filmes de Murilo Salles protagonizados
por jovens e adolescentes. Há também pequenas variações na extensão do tempo
dramático e dos espaços nas quatro narrativas. E há ainda uma grande diferença de
tom, intensidade e estilo visual entre sua estreia na direção, em 1984 (Nunca fomos tão
felizes), e os outros três filmes, lançados entre 1996 e 2007 (Como nascem os anjos,
Seja o que Deus quiser! e Nome próprio). São pontos de contato e de diferenciações
apresentados em variadas contingências da recente cinematografia brasileira durante
23 anos. Da Embrafilme à Retomada, da película ao digital, os contextos são distintos
Comecemos pelas premissas e pelas recorrências. Em todos os quatro filmes, logo
de cara, protagonistas sofrem um deslocamento. Sofrem porque saem de onde moram no
início e passam as próximas horas, dias ou semanas em lugares onde vivenciam os efeitos
desse deslocamento físico/geográfico e o descontrole de novas contingências negativas.
Os jovens e adolescentes lidam com novos ambientes, situações e pessoas diante dos
quais não têm entendimento preciso sobre as circunstâncias ou sobre si mesmos. No
encaminhamento para os desfechos dos percursos, há adensamento das tensões, encolhimento das opções e mortes violentas no horizonte (ao menos em parte deles).
O adolescente Gabriel é retirado pelo pai misterioso, em Nunca fomos tão felizes,
de um colégio de padres no interior e, sem saber os motivos, passa a morar em um
apartamento vazio no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1970, onde fica por poucos
dias na companhia de guitarra e televisão, com a presença esporádica do pai envolvido
com a luta armada (algo que Gabriel ignora). As crianças Branquinha e Japa saem a
82
contragosto da favela do morro onde moram no Rio de Janeiro em Como nascem os
anjos, por conta de uma confusão com o tráfico, e acabam invadindo após um mal
entendido a mansão de um americano. O descontrole da situação, quase sempre por
acidente, é maior e mais violento.
O jovem pagodeiro PQD também tem de sair de seu morro em favela carioca em
Seja o que Deus quiser!, por conta de uma equivocada acusação de sequestro, e vai
a São Paulo pedir a sua acusadora para retirar a queixa, mas passa a ser usado, após
outro mal entendido, pelo irmão dela em golpes condenados ao fracasso. Já a jovem
blogueira Camila é expulsa do apartamento de seu namorado na primeira cena de
Nome próprio e, no decorrer do filme, mora em diferentes lugares sozinha ou em companhias efêmeras. Em relação aos demais protagonistas, sua questão é mais interior,
mas exposta em seu corpo pelo sexo, pela bebida e por comprimidos.
Há outras opções do diretor que variam minimamente de acordo com o filme. Nunca fomos tão felizes e Seja o que Deus quiser! passam-se em alguns dias. Como nascem os anjos, em algumas horas. Nome próprio, em algumas semanas. São filmes
condensados no tempo dramático, atentos a um momento específico de seus personagens, justamente aqueles em que estão fora de controle, sem saberem quais seus
próximos passos. Em relação aos espaços, há também variações. Nunca fomos tão
felizes e Como nascem os anjos têm uma locação principal onde os personagens ficam
confinados. Há o fora e o dentro. Os outros dois filmes transitam pela geografia e por
diferentes ambientes.
Essas recorrências e variações evidenciam padrões e mecanismos de criação nos
quais o diretor parece se sentir à vontade para explorar o teor mais dramático de seus
personagens. Os deslocamentos físico e existencial de jovens postos em novas contingências e lugares emergem nos quatro filmes como matriz dramática para expor a
vulnerabilidade em relação à novidade não desejada. No entanto, em relação ao tom e
ao estilo de cada filme, é necessário destacar diferenças. Com experiência como diretor
83
de fotografia antes e depois de Nunca fomos tão felizes, Murilo Salles segue dois caminhos opostos entre a estreia em 1984 e os filmes dos anos 90/00.
Nunca fomos tão felizes é um filme de tom baixo, com poucos diálogos, muitas dúvidas, poucas certezas e um fora de quadro informativo, ao menos para o protagonista.
Como elogiaram em seu lançamento diferentes críticos, entre os quais José Carlos
Avellar no Jornal do Brasil (23/04/1984) e Bernardo Carvalho na Folha de São Paulo
(17/05/1984), a imagem se impõe à palavra para criar um pacto de atmosferas silenciosas. O filme perde esse poder formal, justamente, quando há necessidade da palavra.
Trata-se de uma narrativa sobre uma busca de narrativa (do jovem sobre seu pai).
Avellar chega a afirmar sobre o filme que “são pedaços que se quebram de um
conjunto e não se encaixam mais em conjunto algum”. Não é uma reprovação. “Vemos
o pé e a cabeça, imaginamos o corpo”, conclui o crítico. O próprio Murilo Salles, em
entrevista à revista Filme Cultura na época do lançamento, afirmou que, quando escolheu um conto para adaptar de João Gilberto Noll, não estava interessado no contexto
histórico (ditadura, luta armada), mas na possibilidade de um cinema lacunar. Há vazios
dramáticos e, visualmente, além de economia, há rigor de enquadramento. A câmera
está no tripé, calma, mas atenta à tensão.
Parece ser quase o exato contrário de seus filmes seguintes, com câmeras mais
soltas, com a decupagem mais frouxa, com uma sensação de improviso, em busca de
um naturalismo histriônico, como se atores e câmera solassem. O tom é mais intenso,
o diálogo é mais gritado em alguns momentos, o descontrole das coisas é mais enfatizado. O fato de Como nascem os anjos, Seja o que Deus quiser! e Nome próprio
terem personagens contemporâneos ao momento de existência do filme, ao contrário
de Nunca fomos tão felizes (realizado uma década depois do tempo histórico de seus
personagens), talvez explique essa adrenalina visual em sintonia com a pulsação das
situações às quais os jovens estão submetidos.
Pode-se contatar por dentro dos filmes, sem levar em consideração a intenção
84
autoral, que a contemporaneidade retirou o distanciamento e a visão da câmera em
perspectiva de Nunca fomos tão felizes, apesar de seu cultivo do fora de quadro (em
relação ao pai e ao país). A distância histórica, apesar de pequena, gera uma calma. A
proximidade com o presente dos personagens gera uma proximidade de câmera com
seus corpos e com seus sentimentos sem muitas possibilidades de economia e de fora
de quadro, como se fosse necessário colar-se a esses jovens para entender, com o que
há à mão, um pouco mais da complexidade do presente, como se essa proximidade
fosse a estratégia para se ver mais — e não necessariamente melhor.
Cleber Eduardo é crítico de cinema, pesquisador e professor no curso de Bacharelado em cinema
do Centro Universitário Senac SP
85
A arte de filmar a arte
Paulo Sergio Duarte
Murilo Salles é um dos mais versáteis e bem sucedidos cineastas de minha geração. Muito jovem, ainda no final da década de 1960 e início dos anos 70, realiza curtas-metragens, para logo se afirmar como excelente diretor de fotografia. Com Ruy Guerra,
na segunda metade dos anos 1970, segue para Moçambique, e ali acompanha o então
presidente do recém independente país, Samora Machel, o líder da Frente de Libertação
de Moçambique (FRELIMO), em inúmeras viagens pelo país e ao exterior, como seu cinegrafista oficial. Depois, numa temporada em Paris, assiste em média a três longas por dia
— façanha realizada para aproveitar a cidade que apresentava cerca de 200 diferentes filmes por semana, sem falar no cardápio histórico e diversificado da Cinemateca Francesa.
Ao retornar ao Brasil, retoma seu ofício de construtor de imagens como diretor de
fotografia, mas já começa a preparar-se para os longas de ficção. Começa logo com
dois filmes muito bem sucedidos pela narrativa clara, as imagens bem cuidadas e as
questões política e existencial no centro de gravidade: Nunca fomos tão felizes (1984),
baseado num conto de João Gilberto Noll (Alguma coisa urgentemente), e Faca de dois
gumes (1986), cujo argumento tem origem no romance homônimo de Fernando Sabino.
Faca de dois gumes antecipa a tese do historiador Daniel Aarão Reis, que demonstra o
estreito vínculo entre poderosos civis e as Forças Armadas, durante a ditadura, agora
compreendida como civil-militar, sem falar na dimensão da corrupção já entranhada no
sistema político brasileiro, hoje tão em evidência.
Continua seu trabalho, tanto na ficção como nos documentários. Tendo um documentário que merece ser visto com muita atenção — Aprendi a jogar com você (2014) —,
86
sobre uma família de classe média que vive numa cidade-satélite de Brasília, uma espécie
de continuação da série exemplar És tu, Brasil (2003), agora voltando-se para figuras anônimas do cotidiano brasileiro.
Mas tudo isso que falei até agora é do conhecimento dos cinéfilos brasileiros. O
que eu vou narrar talvez não seja. Os pais de Murilo – Yedda e Alínio Salles, tinham um
gosto refinado. Yedda Navarro Salles tinha a formação em Belas Artes, foi uma excelente aquarelista e possuía um extenso conhecimento de História da Arte. Mantinha
em sua casa grupos de estudo de aquarela e de História da Arte que orientava. Foi
minha primeira professora de História da Arte, tendo me iniciado, ainda na infância, nos
códigos de representação da hierarquia angélica, a partir de reproduções de ícones
bizantinos e russos. Com ela, aprendi como se representavam anjos, arcanjos, serafins,
querubins e tronos, e porque não podia haver perspectiva na representação da igreja
ortodoxa: representar a profundidade era uma mentira, a antecipada planaridade dos
ícones russos tinha razões teológicas. Depois, verifiquei, graças às precoces lições de
Yedda, e pude entender melhor o salto de Malevich para o quadrado preto sobre preto
e o branco sobre branco. Aquele elogio da verdade do plano estava instalado numa
longa tradição popular religiosa.
Alínio foi, durante muitos anos, o gestor do Correio da Manhã, o cotidiano por excelência do Rio de Janeiro na época de Paulo Bittencourt, junto com O Jornal, do grupo
Diários Associados de Assis Chateaubriand, o Diário de Notícias, de Orlando Dantas, e
os então vespertinos O Globo, dirigido por Roberto Marinho, e Última Hora, de Samuel
Wainer (para os jovens: vespertino era um jornal que só saía à tarde, com notícias mais
recentes, para as famílias lerem à noite). Vejam como se lia jornais naquela época, isto
sem falar nos populares O Dia, de Chagas Freitas, e a Luta Democrática, de Tenório
Cavalcanti. O Correio da Manhã se afirmou como um símbolo da resistência da imprensa à ditadura, já sob a direção de Niomar Moniz Bittencourt, viúva de Paulo, e uma das
fundadoras e presidente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Alínio, pai de
87
Murilo, cultivava a música clássica, mas, graças a Yedda, mantinha sua atenção para
as artes visuais e fazia pesquisas de opinião, em família, sobre as histórias em quadrinhos publicadas no caderno dominical infantil do Correio da Manhã. Isto bem antes
das histórias em quadrinhos se tornarem uma moda pop. Foi nesse meio que Murilo foi
educado, a formação de seu olhar não caiu do céu.
Nada estranho que toda uma parte da obra de Murilo esteja voltada para a arte de
filmar a própria arte. Uma das mais importantes obras da arte contemporânea sobre
suporte fílmico, Ão (1981) de Tunga, exibido pela primeira vez no Centro Cultural Candido Mendes, em Ipanema, Rio de Janeiro, posteriormente apresentada na Bienal de São
Paulo (hoje em exibição permanente no Instituto Cultural Inhotim, Brumadinho, Minas
Gerais), teve como artífice da realização da ideia de Tunga o nosso Murilo Salles. Não
era tarefa fácil. A obra de Tunga estava explorando, nesse momento, a figura topológica
do toro. Em topologia o toro é uma figura homeomorfa. Não vamos entrar aqui em detalhes matemáticos topológicos. Vamos apenas lembrar que qualquer câmara de ar de
um pneu, seja de uma bicicleta, seja de um caminhão, cheia de ar, se assemelha a um
toro (retirando o bico para enchê-la, é claro). Tunga havia materializado o toro em diversas esculturas em aço. Até segmentando-o. Mas a ideia de Tunga era filmar o interior
de um toro. Para isso, Tunga e Murilo escolheram o segmento em curva de um túnel do
Rio de Janeiro. Murilo se pôs numa câmera subjetiva, na qual vemos a vida interminável
no interior de um túnel que não tem entrada nem saída. Para completar a obra, não
basta a projeção, ela se realiza no espaço, com o imenso loop materializado no filme
que materialmente atravessa a sala, reproduzindo o loop do filme na sua materialidade
concreta. Só vendo para se ter ideia de como a inteligência pode conciliar conceito e
materialidade física com realização visual.
Mas isso foi só o início de uma longa parceria entre Tunga e Murilo. Murilo realizou
mais do que documentários de performances de Tunga, produziu uma documentação
plástica de uma sensibilidade ímpar sobre performances em riachos das montanhas da
88
Barra da Tijuca até salas de exposição de Marseille. Uma dessas realizações encontra-se
no DVD de Arte brasileira contemporânea – um prelúdio, parte do livro de minha autoria,
sob o mesmo título, no momento da reinstalação da obra True Rouge, em Inhotim. As
performances das atrizes dirigidas por Lia Rodrigues são captadas de forma impecável
no limite da beleza plástica do corpo feminino com a erótica interação com os materiais
da obra que está sendo construída diante de nossos olhos. A delicadeza da filmagem
faz, efetivamente, o espectador participar, no melhor sentido, da construção da obra.
Se nós formos relembrar És tu, Brasil, vemos a amplitude de interesses de Murilo
em relação à arte. Além de Tunga, temos Deborah Colker e sua invenção de um balé físico que literalmente escala paredes, Carlinhos Brown e a timbalada, até Alexandre Herchcovitch e a invenção na moda. Essa preocupação com diversas vertentes exemplares
da criação artística no Brasil cedeu lugar a uma investigação sobre as personalidades
anônimas. O mesmo foco, a mesma atenção, a mesma sensibilidade estão mantidas
por toda parte de sua obra, desde a ficção, os documentários, até as filmagens de
obras de arte que são outras obras de arte. Este é o Murilo Salles.
Rio de Janeiro, 6 de junho de 2016.
Paulo Sergio Duarte é crítico de arte, professor-pesquisador da Universidade Candido Mendes.
89
90
91
Filmes e vídeos
dirigidos por Murilo
93
Sebastião Prata, ou bem
dizendo, Grande Otelo
Filmado na intimidade de sua casa e junto à família, Grande Otelo fala do homem Sebastião Prata.
Cenas de filmes e curtos depoimentos complementam esse sintético perfil em linguagem de documentário experimental.
Brasil ∙ 1971 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 11 min
Fotografia Murilo Salles e Ronaldo Foster
Direção Murilo Salles, Ronaldo Foster
Montagem Murilo Salles e Ronaldo Foster
Produção Murilo Salles e L B Barreto
Som direto Juarez Dagoberto
“Ainda muito jovem, era metido a godardiano. Junto com o Foster, nos lançamos
na aventura de fazer um filme experimento, não narrativo, com uma montagem desconstrutiva, tomadas longas, mas sobre o Grande Otelo! Acho que fomos de uma
enorme e descabida pretensão diante do grande ator que estava à nossa frente, um
ícone brasileiro. Vendo de hoje, ainda bem que restam momentos incríveis: principalmente um precioso e emocionado depoimento de Otelo sobre seus fantasmas.
Um ator e um ser humano maior, aberto, ao lado de sua família, disponível para
aqueles dois garotos que, pretensiosos, estavam mais preocupados com afirmações canônicas europeias. Os Tristes Trópicos nos levam a essas imaturidades.”
Murilo Salles
94
Grande Otelo doc
Maria do Rosário Caetano
Em 1971, os jovens Murilo Salles e Ronaldo Foster realizaram ótimo curta-metragem
sobre Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo. O artista, então com 55 anos,
é visto em sua modesta casa, ao lado da volumosa esposa e dos três filhos pequenos
(Mário Luiz, Carlos Sebastião e José Antônio). Fala de seu trabalho, mostrando sempre
invejável domínio da língua portuguesa. E apresentando raro jogo de cintura ao fugir de
dois assuntos complicadíssimos: o suicídio de sua primeira mulher (que antes do trágico gesto matara o filho) e a má fama, naquele começo dos anos 1970, de estar faltando
a compromissos de trabalho por razões etílicas.
(Publicado originalmente na Revista de Cinema, 02.12.2015)
95
Estas são as armas
Documentário que conta 30 anos de história de Moçambique, do colonialismo português à independência e ao conflito com a Rodésia, atual Zimbábue.
Moçambique ∙ 1979 ∙ 35mm ∙ Preto e branco ∙ 60 min
Montagem Murilo Salles, com a assistência de
Direção Murilo Salles.
Ophera Hallis
Assistente de Direção Luís Simão
Som Direto Luís Simão
Texto Luís Bernardo Honwana
Técnico de som e mixagem Ron Hallis
Produção Instituto National do Cinema
Locução Américo Soares e Maria Cremilda
Imagens Fernando Silva, Murilo Salles
e Luiz Simão
« Festival de Leipzig, Alemanha – Pomba de Prata
96
“Estas são as armas é o meu primeiro longa-metragem como diretor. Tive que sair
do Brasil para realizar o rito de passagem da fotografia para a direção. Isso se deu
com um filme militante. O Presidente Samora Machel insistia ser necessário que se
fizesse um filme para explicar aos moçambicanos o que era imperialismo. Assumi
a tarefa. Tinha à minha disposição um precioso material de registro da luta armada
da Frelimo, além dos arquivos de centenas de cinejornais portugueses da época
colonialista. O filme foi montado para emocionar um povo que se esforçava para
entender o que era uma revolução marxista-leninista, mas estava muito orgulhoso
de poder construir sua própria nação.”
Murilo Salles
97
98
99
Nunca fomos tão felizes
Após oito anos de isolamento num colégio interno religioso, um adolescente, órfão de mãe, recebe a notícia de que seu pai, desaparecido há oito anos, veio buscá-lo para viverem juntos no
Rio. Na viagem entre o colégio e a nova residência, as atitudes do pai dão a entender o quanto será difícil o reencontro afetivo com o filho, perplexo diante daquela pessoa distante e misteriosa em sua memória. Na ânsia pela busca da figura paterna, Gabriel acaba se deparando
inevitavelmente com os percalços de sua própria identidade.
Brasil ∙ 1984 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 90min
Direção Murilo Salles.
Produção Murilo Salles, Morena Filmes
Baseado no conto Alguma coisa urgentemente,
de João Gilberto Noll
Adaptação cinematográfica Jorge Durán,
Murilo Salles
Roteiro Alcione Araújo
Montagem Vera Freire
Produção executiva Mariza Leão
Produtor associado Fabio Barreto
Fotografia José Tadeu Ribeiro
Diretor assistente José Joaquim Salles
Coordenador de Produção Rômulo Marinho Jr.,
Gilberto Loureiro
Montagem Vera Freire
Música Sérgio Saraceni
Cenário, figurinos e maquiagem Carlos Prieto
100
Edição de som Valéria Mauro
« Festival de Locarno, Suíça, 1984
Abertura e letreiros Jair de Souza, Valeria
Leopardo de Bronze
Naslausky
« Festival de Brasília 1984
Técnico de som e mixagem Roberto Carvalho
Melhor Filme” dos júris oficial e popular; Melhor
Efeitos especiais José Farjala
Roteiro e fotografia
Elenco Roberto Bataglin, Claudio Marzo, Susana
Vieira, Antonio Pompeo, Meiry Vieira, Enio
Santos, Ângela Rebelo, Fábio Junqueira, José
Mayer, Marcos Vinicius, Tonico Pereira
« Festival de Gramado 1984
Melhor Filme do Júri da Crítica; Melhor Roteiro e
Fotografia
Seleção Oficial Quinzena dos Realizadores Festival
de Cannes, 1984
“Enquanto a esquerda revolucionária se exterminava numa guerra contra a ditadura,
a nação brasileira, em nome de quem ela lutava, se prostrava diante da televisão,
entorpecida com as novelas e se encantando com as promessas do ‘milagre brasileiro’. Esta é a questão do filme: olhar essa relação tortuosa, metaforizando-a numa
relação entre pai e filho. Assim chegamos ao cerne desse intrincamento, descobrindo que estas questões estão embaraçadas em nossa identidade profunda. Restou-nos, portanto, chorar pelos afetos tronchos, desfeitos e perdidos. E pelas mortes.
Mas é morrendo que renascemos.”
Murilo Salles
101
Perdidos no espaço
Bernardo Carvalho
As interpretações já começam a se esboçar. Triste necessidade, essa nossa. Não poderia ser de outra forma. Até o próprio diretor ameaça cair na mesma armadilha: Nunca
fomos tão felizes começa a ser cimentado — triste sina — como metáfora do Brasil dos
anos da repressão. Tudo bem, isso é até possível (vale tudo nesses lados ocidentais).
Só que, aqui, esse eterno retorno em busca de um mesmo graal da cultura brasileira recente não tem outra realidade senão esconder o que este filme tem de verdadeiramente
significativo, o lugar que ocupa na situação estética do cinema brasileiro atual.
Fala-se muito em crise econômica no cinema, mas se esquece talvez propositalmente da crise estética. A bem dizer, o cinema no Brasil não possui uma possibilidade
estética reconhecível (afasto o termo identidade, intencionalmente, pelo vício que carrega, levando a conotações fáceis de nacionalidade e a leituras psicanalistas baratas)
desde o Cinema Novo. Na massa da produção desde então, vê-se em geral a presença
de um espírito tributário, talvez por isso mesmo desprovido de inovações significativas
ou de maior criatividade. A classificação exata seria diluição. E, nesse caso, convém
abordar a principal herança, vulgarizada, pelo excesso, ao longo de aproximadamente
15 anos: a alegoria.
Se no Cinema Novo — independentemente das críticas que pode e deveria suscitar, para o próprio enriquecimento dos filmes realizados no pais — o procedimento
alegórico marcava sua entrada no cinema brasileiro, constituindo-se como uma de suas
características mais fortes, numa certa produção subsequente (existem exceções, é
claro), a alegoria se transformou numa das principais camisas-de-força, marca imprescindível, na maior parta das vezes, para o reconhecimento da identidade brasileira na
película. Como uma rígida determinação, uma regra (culpa?), os cineastas, na grande
102
maioria, não conseguiam mais justificar seus filmes sem o apelo à dimensão do simbólico. E, na radicalização desse procedimento, chegou-se a fazer da alegoria até mesmo justificativa para a ausência de qualidade. O filme podia ser ruim (digo esteticamente, e sem o
menor escrúpulo quanto às possíveis objeções ao caráter subjetivo da qualificação), mas
lá no fundo, bem no fundo, não era mesmo a metáfora do Brasil que estava representada?
Brasil grande, vale frisar, como a sede dessa arte impotente de abarcar uma totalidade.
Um mecanismo que acabou se tornando patológico, a tal ponto que, no momento em que
um filme parece quebrar essa limitação ideológica, tudo no aparelho ao redor (viciado pela
prática dos anos) continua puxando-o para o mesmo terreno significante.
Metáfora por metáfora, seria mais interessante, inclusive, colocar Nunca fomos tão
felizes como imagem do próprio cinema brasileiro, essa entidade que, como o adolescente do filme, encontra-se num impasse, sem pai, ao invés de circunscrevê-lo no mesmo
e desgastado espaço da representação — de intenções grandiosas — da nação. O pai,
por exemplo, diz, sintomaticamente, em várias seqüências, que é melhor não falar nada.
Como um cinema que atravessa uma crise profunda e ainda não encontrou uma forma
definida para se expressar. Mas isso seria apenas deslocar o sentido simbólico para cair
no mesmo círculo vicioso de interpretações. Apenas mais outra, que também não seria
suficiente para fazer de Nunca fomos tão felizes o grande filme que ele realmente é.
Se o planeta se resumisse ao Brasil (pelo menos ao que conhecemos), é quase
certo que manifestações como o Zen e outras ideias e práticas que privilegiam o microscópico, o mínimo e o aparentemente banal, deslocando-os para fora dos códigos
significantes estabelecidos, jamais encontrariam espaço para germinar. Todos estariam
preocupados com coisas mais importantes e nobres, como a busca de suas identidades (todas elas, inclusive e principalmente a nacional) e a construção de uma cultura essencialmente brasileira (a tão aclamada brasilidade, funcionando mais por acúmulo que
por seleção) para poderem prestar atenção a assuntos tão desprezíveis como aqueles.
Acontece que, em última instância (e convém lembrar que essa também é uma interpre-
103
tação; afinal, se por um lado, para se sustentar uma obra, não deveria ser necessário
recorrer a interpretações, por outro, como combatê-las sem entrar no mesmo ringue?),
Nunca fomos tão felizes é um filme sobre o vazio.
Vejamos, inicialmente, como funciona o cenário. Grande parte do filme de Murilo
Salles se passa dentro de um apartamento. A tradição do cinema brasileiro (à que vinha
me referindo) daria um tratamento bastante especifico — e já quase clichê — a um filme que possuísse essa característica. Em primeiro lugar (e sem intenções caricaturais),
encheria o apartamento de tucanos, araras, bananas, abacaxis e coqueiros, ou, se pretendesse ser ligeiramente sutil, espalharia apenas alguns indícios tropicais em algumas
poucas sequências, deixando que as próprias contradições da sociedade aflorassem
nos outros objetos comumente encontrados no cotidiano de tais apartamentos. Em
seguida, o povoaria com personagens-tipos, alegorias de classes, de forma que toda
a sociedade — ou a parte que o cineasta pretendesse focalizar — estivesse representada. Esses personagens passariam então a gritar ou fazer discursos, ou, caso mais
raro, apenas agir e falar, de maneira que pudessem ser socialmente reconhecidos como
personagem alegóricos. O microcosmo estaria formado e o apartamento seria, sem
tirar nem pôr, um grandioso resumo especular da nação brasileira.
Nem frutas nem aves tropicais
O apartamento de Nunca fomos tão felizes, no entanto, é radicalmente outro. Murilo,
tratando de um tema aparentemente político (suas dimensões, na realidade, escapam
a todas as definições oficiais), utiliza-se do apartamento sem se aproximar, em momento algum, desse reconhecimento de microcosmo evidente (mesmo que, fora do filme,
ainda esboce, às vezes, tal definição, gênero pai subversivo, filho classe média/povo).
O apartamento foi esvaziado das frutas e aves tropicais empalhadas. Não existem mais
gritos nem discursos, apenas poucas palavras, poucos móveis, as janelas, um luminoso
de hotel (bem mais característico de uma mitologia americana ou, por consequência,
104
cinéfila, do que brasileira) e a imensidão do mar. É o nada, o vazio que é central.
E isso se dá principalmente pelo trajeto de Murilo. Não é o discursivo que o interessa, mas a própria imagem no que possui de especifico e poético. Murilo esvazia o
ambiente em prol do cinema; uma opção radical pela imagem. “Sempre pensei muito
em imagem. O filme é interior à imagem, recusa a tradição verbalizante”. Neste cenário
seco, silencioso, a câmera se movimenta intermitente, como numa coreografia delicada, frisando, com seus deslocamentos suaves, um pequeno gesto ou objeto, um pequeno ângulo, minimalidades. O normalmente banalizado é sublinhado pelos travellings
microscópicos e pela música incidental, criando uma poética sobre objetos menores e
desprezíveis. Com isso, o que ocorre não é exatamente o privilégio desses objetos, mas
da própria imagem. O filme aponta para uma experiência eminentemente cinematográfica, interior à imagem (como diz o cineasta), de quem vê cinema. “A lente é um pouco
a continuidade dos meus olhos.” As imagens se remetem umas às outras, não dentro
de um espaço fechado, mas aéreo, amplo (o mar, o horizonte, as janelas abertas); elas
se sucedem como tomadas de ar, reincidindo umas sobre as outras num espaço aberto
onde não existe nada além delas mesmas. Em duas passagens esse mecanismo chega
a ser explicitado pela própria narrativa. Na primeira, quando o adolescente chega no
apartamento, examina-o, e, abrindo um armário, não encontra nada além de sua própria imagem refletida num espelho em seu interior. A outra, quando tendo colocado uma
fotografia de mulher (a também misteriosa e esquiva dona do apartamento) na janela,
o rapaz dá um violento soco no vidro (a transparência), arrebentando-o e derrubando
a fotografia numa tentativa impotente, para descobrir que atrás das imagens existem
apenas outras imagens (a paisagem).
Na realidade, isso fica bastante claro em todo o filme. A impossibilidade de conhecimento, de comunicação, não é mais que consequência dessa intransponível descoberta: não existe nada além de imagens superpostas. Os personagem não podem
habitar outro meio que não o da própria imagem. Por ela são forjados. Só lhes resta
105
saber como apropriá-la para suas próprias vidas. Nesse sentido, o apartamento transforma-se em espaço neutro, imaginário, deserto, onde tudo está por se construir, e o
espectador passa a ser astronauta, nômade, vagando pelo espaço infinito da tela de
cinema, numa viagem imóvel dentro da sala de projeção. A televisão, com seus noticiários (os outros seriados apenas contribuem para o estabelecimento de uma dimensão
fantástica, de ficção), e algumas manchetes de jornais são os únicos indícios de um
possível real nesse espaço onde os personagem se encontram perdidos, flutuantes,
sem territórios significantes fixos onde possam estabelecer suas identidades (alegóricas ou não), efetivamente inexistentes. Se o pai é terrorista, traficante de tóxicos ou o
que quer que seja, isso pouco importa. Esse conhecimento não é mais possível (imagem sobre imagem). Tudo, no final das contas, pode ser apenas a produção imaginária
do adolescente. A sequência em que a polícia cerca o edifício e vai embora, momentos
depois, sem explicações, com outro preso provavelmente, ou a morte do pai, também
inexplicável, sem ferimentos, são exemplares. E é isso que torna o filme interessante. A
ambiguidade e a sutileza foram introduzidas, fazendo do apartamento esse lugar imaginário, sala de cinema, centro de produção de imagens, onde a Polaroid, a televisão e a
guitarra (elementos — som e imagem — primordiais para uma construção cinematográfica) adquirem uma importância fundamental. O vazio tem por finalidade a inauguração
de uma outra sensibilidade até então ausente no cinema brasileiro recente. Não existe
mais a grandiloquência do discurso, mas o silêncio. “Não sou intelectual que usa o cinema para se expressar, eu sempre estive dentro do cinema (...) O filme é fiel ao conto
e ao roteiro, só que ficou mais haicai.”
Não se trata de atiçar uma guerra (entre estrelas). Mas apenas alertar para uma
nova condição, uma saída, que é colocada concretamente dentro do próprio cinema
brasileiro e que, subitamente, começa a ser boicotada pelas leituras que insistem em
remetê-la ao que lhe é anterior e completamente oposto. Uma nova condição, sim.
Uma sensibilidade delicada. Perdidos no espaço da tela de cinema, nós (espectadores)
106
e os personagem, sem identidades reconhecíveis, nos encontramos numa experiência
estritamente cinematográfica. E por que não? Quantas outras aventuras não podem
ainda surgir daí?
(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 27.03.1984)
107
A literatura fotográfica
José Carlos Avellar
Um detalhe a destacar em Nunca fomos tão felizes: a fotografia. O filme procura mostrar para o espectador que cinema se faz em parte da cena que se passa diante da câmera
e em parte da fotografia dessa cena. E essa forma de construção se deve não apenas
ao fato de que seu realizador venha de uma experiência de dez anos como fotógrafo de
filmes. Ela se deve a uma exigência interna da história que ele se propõe contar. O protagonista vive uma situação que se mostra para ele como um conjunto de fotografias. Fixas.
Isoladas. Fechadas sobre detalhes. Uma cena, um detalhe pode explicar melhor.
Gabriel está sozinho no pátio do colégio interno. Não quis sair para passar o fim
de semana em casa de um colega de turma. Preferiu ficar no colégio. Sozinho, joga
bola com a parece. A ação é filmada em dois planos. No primeiro a câmera está quase
deitada no chão. Colada no calcanhar de Gabriel, vê o chute, a batida da bola contra
a parece, a volta, o novo chute, a nova rebatida da parede, mais um chute. No plano
seguinte a câmera está de pé diante do rosto de Gabriel. Cabeça baixa, ele olha para o
chão e se mexe de um lado para o outro. Acompanha a corrida da bola entre seu pé e
a parede — imaginamos. A cena não aparece inteira na imagem. Vemos detalhes. Um
pé. A bola. A parede. A cabeça baixa. A ação propriamente dita se completa em nossa
imaginação, de modo natural e imediato. Não importa a brusca mudança de ângulo de
visão, do calcanhar para o rosto de Gabriel. O movimento da cabeça, o olhar atento
para baixo e mais a continuidade do som, o ruído do chute e da rebatida na parede
mantido sobre a imagem do rosto de Gabriel, liga o segundo plano ao primeiro. Os detalhes aparecem como partes de um todo e não cada um deles como um todo à parte.
Talvez seja melhor e mais exato dizer que cada um dos detalhes aparece ao mesmo
tempo como um todo à parte e como parte de um todo.
108
Cada plano de Nunca fomos tão felizes é construído como se fosse coisa independente. Como um fragmento que só pode mesmo ser percebido como um fragmento. Pedaço que se despregou de um conjunto.
Pedaço que não se encaixa mais em conjunto algum. Vemos o pé. Vemos a cabeça. Imaginamos o corpo que não se vê.
De um certo modo cada detalhe é absolutamente independente do conjunto a que
pertence.
Enquanto está na tela não pode ser apanhado como continuação do gesto iniciado
no plano anterior nem como o início de um gesto que continua no plano seguinte, é algo
acabado em si mesmo.
De um certo modo cada detalhe é absolutamente dependente do todo, da forma
de ser do todo, do que determina que cada uma de suas partes apareça assim, como
fragmento independente.
Na verdade, no cinema a compreensão e o sentimento do que se vê não depende
exclusivamente do reconhecimento da ação ou dos objetos dentro do plano. Depende
também e principalmente da estrutura que dispõe esses detalhes numa determinada ordem. Cada coisa acabada em si se relaciona com outra coisa acabada em si. O
que recebemos, compreendemos, sentimos e vemos de fato é esta relação, é a informação de que o que quer que se passe aí se passa num tempo e espaço fragmentado,
estilhaçado, sem corpo.
A narração é assim porque o autor faz de conta que vê do mesmo ponto de vista
e com o mesmo sentimento de Gabriel. Para contar a sua história o filme situa seu
narrador, seu personagem invisível (a câmera), na pele de Gabriel, para narrar como
se percebesse o mundo tal como ele é visto pelo garoto que, um dia, oito anos depois
de abandonado num colégio interno, é apanhado pelo pai que mal conhece e levado
para um apartamento vazio em frente à praia de Copacabana, que ele nunca vira antes.
109
Deixado lá, diante do mar, abandonado de novo, ele tenta descobrir onde se encontra
e quem é o pai que sumiu, apareceu e sumiu de novo. Mexe nas poucas coisas esquecidas no armário: caixas de fósforo, um pacote de dinheiro, um jornal, uma fotografia,
roupas no cabide, passagens de avião, una pequena mala fechada.
No cinema o espectador vê o filme mais ou menos como Gabriel vê as coisas largadas no apartamento vazio. Ou o mar e o letreiro luminoso do lado de fora da janela.
Ou o vendedor de cachorro quente. O pedaço de filme na televisão. As mulheres no
clube noturno. A torta de chocolate – fragmentos aparentemente desligados de tudo. E
deste modo, na visão, na maneira de ver, no primeiríssimo momento da imagem, antes
mesmo de ver as pessoas, os objetos ou as ações, no lado mais aparente e exterior
da a imagem, o espectador compreende o que o personagem sente. Compreende que
o mundo se revela para Gabriel assim como o filme se revela para o espectador: algo
essencialmente fragmentado.
E ao mesmo tempo o espectador vê esta coisa fragmentada como uma narração
organizada, coordenada, linear, contínua. Compreende a fragmentação não como uma
falha de construção, mas como um artifício de composição, como uma forma de revelar
algo que é própria ao contexto (o Rio de Janeiro na década de 1970, às vésperas do
seqüestro do embaixador suíço), um artifício que da à coisa filmada um significado duplo:
aquele que a pessoa, paisagem ou o objeto filmado tem e mais o significado que adquire
dentro daquela particular forma dramática que ele ajuda a compor. A narração segue contínua porque ao ver os fragmentos o espectador percebe também o princípio usado para
fragmentar a ação. Vê a ação fotografada e vê também a fotografia em ação. Mais exatamente: vê a fotografia que aparece aqui em primeiro lugar e também a ação fotografada.
(Publicado originalmente no site Escrever Cinema: www.escrevercinema.com)
111
Sérgio Camargo,
fevereiro 1984
As esculturas em mármore de Sérgio Camargo são vistas em plena interação com a luz e o
movimento do olho-câmera. Vídeo realizado para a série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea.
Brasil ∙ 1984 ∙ U-Matic ∙ 13 min
Música Robert Fripp, Meredith Monk, Brian Eno
Direção, roteiro e edição Murilo Salles
Produção executiva Solange Padilha
Coordenação geral Everardo Miranda
Produção Rioarte, Prefeitura da Cidade do Rio
Câmera Luís Gustavo Hadba, Pedro Varella
de Janeiro
“Este vídeo é a materialização de um exercício para perceber o processo escultural
de Sérgio Camargo, a lógica do acaso, fenômeno essencial na produção desse artista que muito me ensinou sobre o tempo e o pensamento necessários para abordar
uma forma. O vídeo é a tentativa de homenagear essa sabedoria.”
Murilo Salles
112
Diálogo íntimo
Glória Ferreira e Viviane Matesco
Explorando as nuances das formas com particular atenção à incidência da luz, o vídeo de Murilo Salles é um leitura extremamente poética e autoral do trabalho de Sérgio
Camargo. Assim como o método do artista se afirma como processo de decantação,
a ação da câmara e da iluminação vai apresentando imagens cada vez mais limpas e
abstratas, minimalistas, poderíamos dizer. Parte dos mármores brancos, em que se
acumulam estruturas geométricas em uma relação de tensão e equilíbrio, para chegar
ao limite das formas nas esculturas em mármore belga.
Optando por um tratamento não-documentário, o cineasta utiliza-se da câmara
como um elemento para nos fazer ver curvas, reentrâncias e imagens, enfim, para
desvelar volumes. Dialogando intimamente com as esculturas, busca evidenciar sua
dinâmica e fluxo.
(Publicado originalmente no catálogo da série “Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea”)
113
Faca de dois gumes
Jorge Bragança, advogado, marido apaixonado, descobre que sua mulher o está traindo com
seu sócio e melhor amigo. Jorge planeja uma vingança, meticulosamente bem preparada. Mas
sua atitude passional acaba por levá-lo a se envolver numa série de acontecimentos imprevistos que transformam sua vida.
Brasil ∙ 1989 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 97 min
Diretor Murilo Salles
Produtor Patrick Moine
Produtores associados VideoFilmes e Murilo
Salles
Adaptado do livro Faca de Dois Gumes de
Fernando Sabino
Adaptação cinematográfica Leopoldo Serran,
Murilo Salles e Patrick Moine
Roteiro Leopoldo Serran com colaboração de
Murilo Salles
Produção Executiva Flavio Tambellini
Fotografia José Tadeu Ribeiro
Música Victor Biglione
Cenografia Maria Helena Salles
Montagem Isabelle Rathery
Figurinos Bárbara Mendonça
114
Edição de som Valéria Mauro, Virgínia Flores
« Festival de Gramado. 1989
Diretor de produção Jaime Schwartz
Melhor Direção, Fotografia, Cenografia, Som.
Assistentes de direção Alice de Andrade,
« VI Rio Cine Festival. 1990
João Henrique Jardim
“Sol de Ouro” de Melhor Filme do Júri Oficial ,
Títulos Fernando Pimenta
Melhor Montagem e Música
Maquiagem Luiz Michelotti
« Air France (Lumière)
Cabelos Renato David, Miro Messias
Melhor Diretor
Mixagem Roberto Lima (CTAV)
« Golden Metais
Elenco Paulo José, Marieta Severo, José de
Melhor Filme, Diretor, Ator - Paulo José, Monta-
Abreu, Flavio Galvão, José Lewgoy, Imara
gem, Roteiro, Música, Som.
Reis, Rosita Tomás Lopes, Ursula Canto, Pedro
« Seleção Oficial New Films, New Directors –
Vasconcelos, Paulo Goulart, Fernando Peixoto,
MoMa / Lincoln Center – Nova Iorque 1990
Raí Alves
“O filme é sobre paixão e poder, tentando arriscar caminhos para além do gênero
thriller, mergulhando fundo com seu protagonista. Tinha que ser assim. Jorge —
Paulo José, numa magistral performance — é um advogado cerebral e sofisticado.
Mas é engessado em sua educação elitista. Descobre-se traído. Sua vingança vem
carregada de ódio, um ódio perverso que faz explodir uma caixa de pandora que
revela as veias do Brasil.”
Murilo Salles
115
Murilo Salles e a ética do alheamento
Jurandir Freire Costa
O que dirão os críticos, não sei. Para um leigo como eu, Faca de dois gumes, de
Murilo Salles, é certamente um dos mais interessantes produtos do recente cinema brasileiro. O filme, livremente baseado num conto de Fernando Sabino, narra uma estória
com outros ingredientes comuns ao gênero policial: ciúme, crime, culpa e castigo. As
primeiras imagens evocam A hora e a vez de Augusto Matraga e previnem o espectador
de que um acerto de contas está por vir. A seguir, tudo corre em ritmo de suspense.
Mas, longe do estilo whodunit, como chamava pejorativamente Hitchcock, desde o
início sabemos quem é o culpado. A surpresa está na culpa. Personagens e público
esperam a resolução de um crime, quando o que está em causa é um outro crime. Na
expectativa do desfecho a tensão cresce e, no final, quase tudo se desvenda, entendemos que a faca não tem dois, tem muitos gumes.
Até aí, pode-se pensar, nada além de um thriller como tantos outros: tempo da
narrativa adequado; enredo plausível e solução convincente. Falsa impressão. Como
no filme noir ou nos romances de Chandler ou Hammett alguma coisa transborda a
intriga e fala do mundo social e humano em que se movem mocinhos e bandidos. Já
se disse que o mérito da literatura e do cinema policiais feitos nos Estados Unidos nos
anos 1930 e 40 foi mostrar o avesso do sonho americano. Detetives e criminosos, perseguindo uns aos outros, acabam revolvendo e trazendo à tona a sordidez subjacente
à riqueza das nações e dos donos do poder. Grand monde e bas fond, unidos, montaram uma sociedade inabalável no culto ao dinheiro e na exploração inescrupulosa das
fraquezas humanas. A contraface da democracia institucional, mostrava a ficção, era
o medo, a insegurança, o arrivismo, a hipocrisia e a canalhice dos convertidos ao mito
do american way of life.
116
Em Faca de dois gumes, ao contrário do sonho, fala-se do pesadelo: da galhofa
geral brasileira. Além do fuso horário, outras pequenas coisas distinguem as duas situações. Uma é fundamental. Lá se esbanjava dinheiro; aqui, falta muito. Por isso as
disputas são talvez mais ferozes, e o que sobra delas mais feio. Ninguém pode permanecer indiferente ao que se passa neste país, adverte Murilo Salles. E, tendo ou não
consciência disto, cedo ou tarde paga-se o preço. Este é o drama dos personagens.
Alheios ao que acontece ao redor, Paulo José e Marieta Severo — soberbos! — perguntam, numa certa cena: por que nós? Nós que fomos educados na Suíça! Nós que
aprendemos tudo o que era conveniente saber e tudo o que convinha ignorar! Por que
agora, parecem dizer, esta terra e essa gente pedem-nos o que não podemos dar? Implacável, Murilo Salles manda que olhem em volta. E, como um clínico diagnosticando
a doença, aponta para o principal sintoma: a ligação do pai com o filho.
Com sensibilidade, a câmara vasculha pai e filho, pelo interior, perguntando: o que
não deu certo? Por que em vez de se amarem, eles sempre foram tão infelizes? O que
é ser pai e o que é ser filho, naquela exata circunstância social? O pai, complacente
na autocomiseração, vive para o tédio blasé dos que se habituaram a ter tudo, sem
perguntar por quê. Bastam-lhe o pequeno sofrimento de hoje, o ciúme de amanhã e o
gozo hic et nunc. O resto é resto. Com dinheiro no bolso e sobrenome famoso, tudo o
mais vem por acréscimo. Quando o filho pede reconhecimento, responde com o olhar
vago de quem não sabe se, de fato, é o destinatário do pedido. Quando o filho insiste
na demanda do amor, ameaçando-o de trocar de time, reage com a apatia de quem
nada tem a defender. Nem mesmo a suposta paixão pelo Botafogo contra o arquiinimigo Flamengo. Quando por fim dá-se conta de que o mundo em torno ruiu, ainda assim,
é incapaz de reconhecer no filho um filho. Aproxima-se dele, mas para suborná-lo: para
fazê-lo cúmplice de uma culpa que é sua, e não para restituir-lhe o amor negado.
Do desencontro do mau encontro nasce a tragédia. Em Nunca fomos tão felizes,
foi preciso que o pai morresse para que o filho pudesse dizer “este é meu pai”. Agora, é
117
preciso que o filho aceite o pacto da culpa, em troca da ilusão do acesso ao pai. Tudo é
preferível ao alheamento paterno. A violência que se segue seria excessiva se não metaforizasse o subsolo social brasileiro e o sacrifico como prova de amor. As cenas truculentas dizem que o alheamento é o grande crime; a mais dura das impiedades. É uma faca
de dois gumes, que não poupa os indiferentes nem as vítimas de suas inconsequência.
Vivendo parasitariamente da corrupção e da injustiça, os personagens centrais do
filme são perfeitos inocentes inúteis, para parafrasear um jargão da direita política dos
anos 1960. Belos em modos e aparências, existem para enfeitar as fachadas de um
mundo sujo. Sem tempo para amar ou para pensar, fazem da vida um desfile de modas,
na crença tola de que o mal é sempre destino dos outros, dos que não são de chez
nous. Até que a miséria invade a sala de jantar. Nesse instante, como os Finzi-Contini,
perguntam: por que nós? E espantam-se com as respostas cínicas de seus pares.
No trecho do filme em que a trama se esclarece, cinismo e credulidade confrontam-se num diálogo empolgante. Mas como?, diz o corrupto. Então você não sabia? Não
acredito! Na tela é só isso: ou pouco mais que isso. Na cadeira, o eco da conversa
prossegue: então você não sabia de onde vem seu dinheiro e seu bem-estar? Não lhe
ensinaram que abaixo do Equador não existe pecado? Pois bem, aprenda: entre nós
não se morre por amor. Vive-se, mata-se por dinheiro e poder. Se desconhecia a regra,
por que sentou-se à mesa? Ao mau jogador, as contas do jogo!
O inocente inútil compreendeu, tarde demais, a estupidez da vida vivida e a crueldade da inocência. Reservaram-lhe o papel de fantoche, sem direito a voz e sentimentos próprios. Por comodidade, ele aceitou. Só que, na hora H, quem puxa os fios diz
como, onde e quando quer ser obedecido. O que aconteceu não tinha conserto. O
crime era sem perdão, porque quem poderia perdoar não tinha como estar presente ao
julgamento. Restava assumir a culpa e representar a farsa do crime punido, destinada a
reabilitar a lei, quando a lei já não mais importava. No universo da desfaçatez, as vítimas
têm carteira de identidade, mas o crime não se paga com a prisão de um e sim com a
118
responsabilidade de todos. Coisa que muitos teimam em não entender.
Faca de dois gumes é um filme dos tempos presentes para os homens presentes,
como diria Drummond. Dele pode-se dizer tudo, salvo que pecou por alheamento.
(Publicado originalmente no Jornal do Brasil)
119
Pornografia
Um filme-manifesto. Um desabafo contra a execução sumária do cinema brasileiro pelo Governo Collor. Simples e direto: sexo explícito, texto na tela e o Hino Nacional.
Brasil ∙ 1992 ∙ 35mm ∙ 6 min
Assistente de direção e elaboração de textos
Direção Sandra Werneck e Murilo Salles
Bebeto Abrantes
Fotografia Murilo Salles
Elenco Gaúcho e Luciana
Edição Toth Brondi
Narração Paulo César Pereio
Produção executiva Sandra Werneck
“Pornografia tem a contundência das coisas que vêm das entranhas: polemiza e
emociona. Fala de perdas e danos. O filme é um relacionamento que não acontece
— é pura performance. Curto, cru e grosso, Pornografia é uma pancada na razão
cínica. Filme-síntese, é a afirmação de uma vontade, é um troco — coisa de cineasta
indignado. O cinema brasileiro informa.”
Murilo Salles
120
Um desabafo poético em forma de hino erótico
Artur Xexéo
Na tela, durante seis minutos, um casal – profissional de shows de sexo explícito em
boate – mostra suas habilidades artísticas. A iluminação da cena utiliza um tom verde
e amarelo. A trilha sonora se limita a uma execução do Hino Nacional. O filme — o
curta-metragem Pornografia, de Sandra Werneck e Murilo Salles — promete sacudir
o Festival de Gramado. Mas por mais que a mistura de cenas de sexo explícito com
as cores da bandeira brasileira e o Hino Nacional seja explosiva, Pornografia bate forte
no espectador com o manifesto que em letras garrafais cobre, durante todos os seis
minutos, a cena erótica.
Pornografia é o desabafo poético de uma classe — a cinematográfica — arrasada
pelo governo Collor. Nunca se fez tão pouco cinema no Brasil como no período em que
descidas de rampa se tornaram a mais criativa manifestação artística que o Estado
consegue patrocinar. Pornografia não é pornográfico nem desmoraliza os símbolos nacionais. É verdade que o filme se apropria do Hino Nacional (hino que simboliza uma nação, de acordo com definição do Aurélio), mas só para ajudar o espectador a se apropriar também da revolta da classe cinematográfica. Sem o hino, o manifesto de Murilo
Salles e Sandra Werneck diz respeito apenas a eles e a seus colegas. Com o hino, a
revolta dos diretores, atores e técnicos que estão impedidos de trabalhar é a mesma
revolta dos cidadãos que tiveram suas contas bancárias confiscadas e espantam-se
com as revelações da CPI do PC.
Pornografia é chocante. Vai escandalizar as senhoras de alguma cidade do interior
de Minas, alguns militares vão reclamar da má utilização do Hino Nacional, os habitantes da Casa da Dinda vão ficar com raiva. Mas ninguém, nem mesmo os fantasmas do
PC, vão poder dizer que é um filme ruim. É bonito à beça. E emocionante. E a utilização
121
do Hino Nacional só reforça a emoção que o filme transmite. Além do mais, escândalo
por escândalo, os que a arte provoca são sempre mais estimulantes.
(Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 16.08.1992)
123
Todos os corações
do mundo (Two Billion Hearts)
Muito mais do que o filme oficial sobre a Copa do Mundo de 1974 nos Estados Unidos, esta é
uma viagem através da paixão pelo futebol, da alma dos torcedores, das façanhas de seus ídolos. O filme mostra os melhores momentos da Copa e acompanha o show das torcidas dos 24
países nos Estados Unidos, para onde viajaram 300 mil amantes do futebol de todo o mundo.
As câmeras caçam ainda corações apaixonados em outros seis países, em lugares tão distantes como a Floresta Amazônica, no Brasil, e a Fontana di Trevi, em Roma.
Brasil/EUA ∙ 1995 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 106 min
Direção Murilo Salles
Produção Leonardo Gryner, Carlos Roberto
Osório, Sergio Villela
Produção executiva Mauro Rychter, Richard A.
Levine
Diretor de produção Romulo Marinho Jr.
Diretores das equipes móveis Andrucha Waddington,
Belisário Franca, Luciano Moura e Roberto Berliner
Diretor assistente Vicente Amorim
Concepção fotográfica César Charlone
Direção de fotografia Carlos Pacheco, César
Charlone, José Roberto Eliezer, Lúcio Kodato e
Pedro Farkas
Direção de fotografia das equipes móveis Breno
Silveira, Nonato Estrela, Roberto Amadeo e
Walter Carvalho
124
Montagem José Rubens Hirsch, com a participação
1º Assistente de direção Rosane Svartman
de João Lourenço Tuco e Gustavo Cascon
2º Assistente de direção Ricardo Favilla
Trilha original Lalo Schifrin e Gary Stockdale.
Som direto Jorge Saldanha
Vídeo grafismo Jair de Souza
Produtor de pós Rosane Svartman
Câmeras Adrian Tejido, Jacques Cheuiche,
Edição de som Miriam Biderman, Eliza Paley,
Toca Seabra, Joel Lopes, Christian Lesage,
Barbara Parks, Ron Bochar
Jorge Pfister, Claudio Leone, Pompilho Tostes,
Texto George Vecsey, Armando Nogueira
Francisco Tortuga, Lito Mendes, Gilberto Otero,
(versão brasileira)
Tuca Moraes, Guy Gonçalves, Felipe Daviña
Narração Liev Schreiber, Antonio Grassi (versão
Equipe de produção Alex Mehedff, Jaime A.
brasileira)
Schwartz, Fernando Serzedelo, Lula Leite
Franco, Fernando Zagallo, Paulo Callado, Flavio
« The New York TV Programming & Promotion
Chaves, Simon Gregory. José Joaquim Salles e
Festival, 1996 — Medalha de Bronze
Tereza Gonzalez
“O filme foi construído para contar uma história, tal como ficção. A história da emoção da Copa, dos torcedores e sua paixão pelo futebol. Acho que conseguimos
realizar um documentário que emociona apesar de ser um evento muito exposto.
Foi uma aventura muito especial. Um filme feito para que as pessoas se transportem
novamente para o evento. Foi nossa primeira experiência de fazer um documentário
que se impusesse pela sensorialidade. Num misto de montagem eisensteiniana com
um beat Rei Leão. Nosso ponto de vista nunca foi o factual, muito menos o jornalístico. Quisemos fazer uma experiência eminentemente cinematográfica sobre o evento
esportivo mais importante desse planeta.”
Murilo Salles
125
Murilo Salles filma um épico do futebol
Luiz Zanin Oricchio
Todos os corações do mundo – A paixão do futebol não é apenas uma proeza técnica. Esta justificaria elogios a um produto impecável, o que também é o caso. Mas a maior
virtude do filme talvez não esteja propriamente no uso de 22 câmeras, 30 toneladas de
equipamento pilotado por profissionais de primeira, etc., e sim em sua concepção de produto cinematográfico, que vai além do registro meramente documental.
A prova dos noves foi tirada na exibição para convidados terça-feira à noite no (hotel) Maksoud Plaza. Muita gente que não gosta de futebol, e nem acompanhou direito a
Copa nos Estados Unidos, se emocionou com a projeção.
Isso porque Murilo Salles, ao receber a incumbência de dirigir o filme oficial da Fifa,
driblou qualquer obrigação de seguir o modelito chapa branca. Equilibrou e distribuiu
os espaços de cada seleção segundo importância e méritos. O que dá ao filme um tom
de imparcialidade emocionada, que não cai nunca na patriotada, apesar de o Brasil ter
se sagrado campeão do mundo.
Mas o maior acerto do cineasta foi ter concebido Todos os corações do mundo
como um épico, com suas figuras trágicas, seus heróis, um ou outro vilão, o grande
coro grego representado por uma plateia planetária. Murilo devolve ao futebol o que é
do futebol: mais que um jogo, é uma fatia de vida em 90 minutos, de função catártica,
que revela muito do caráter de seus participantes e da nação que representam. Nelson
Rodrigues dizia que a seleção brasileira era a pátria em chuteiras. Murilo Salles assumiu
esse espírito, deixando de lado apenas a parcialidade contida na frase. Mas é no eixo
da paixão que trabalha o tempo todo.
Medida certa — Emoção com inteligência. Como cineasta e narrador, sabia que
é difícil dar coerência dramática a um torneio fragmentado em 52 jogos. Para driblar
126
essa dificuldade estrutural, construiu alguns bolsões temáticos iniciais, acompanhando
mais de perto três seleções: a Bulgária, que foi mais longe do que se poderia acreditar;
a Alemanha, que chegou aos Estados Unidos vergada pelos seus sucessos anteriores;
e a Itália, que como sempre começou hesitante e cuja escalação era, a cada jogo, uma
equação quase impossível de ser fechada pelo treinador Arrigo Sacchi.
Os outros países não desempenham papel periférico mesmo nesse mosaico inicial.
Algumas figuras da saga se destacam. A principal e a mais trágica delas: Maradona, em
seu tango triste, eliminado quando o exame antidoping acusou uso de substâncias proibidas. No contraponto, o romeno Hagi, sensação de algumas das primeiras partidas,
artista da bola, dono de jogo refinado, sutil, sistemático sem deixar de ser inspirado.
Quando surge a seleção nacional, um gigante se destaca: Romário. A cada jogo,
em cada jogada, vai surgindo na tela uma verdade que se impõe como evidência matemática: dificilmente o Brasil teria ganho aquela Copa sem ele. Guardadas as devidas
proporções, Romário talvez tenha sido para a Copa dos Estados Unidos o que Garrincha
foi para a do Chile: individualidade tão forte que parece se sobrepor a um jogo coletivo
por excelência. Impossível imaginar quem poderia ter substituído esses dois jogadores.
Há também a participação das seleções menos badaladas, que causaram sensação. Em 1994, foi a Nigéria, como em Copas anteriores tinha sido a de Camarões. Os
nigerianos encantaram pelo futebol alegre – e também pela euforia de sua torcida. O
filme registra, e enfatiza, esse aspecto ecumênico, que é também próprio do futebol. Há
sacadas de cineasta para caracterizar cada seleção. Se a Nigéria é filmada de maneira
descontraída, quase casual, quando se fala do caráter militar do time alemão a técnica
se altera: as cenas são tomadas em contraplongée, de baixo para cima, para criar a
sensação de grandiosidade marcial.
O filme tem essa preocupação de unidade estrutural e se apega também a pequenos detalhes decisivos. Há aqueles momentos ternos, como o dos brasileiros comemorando a vitória sobre os Estados Unidos e sendo cumprimentados pelo zagueiro
127
americano. Há a cena engraçada do goleiro italiano Pagliuca acariciando a trave que
rebateu uma bola do ataque brasileiro.
Salles conduz o filme para seu clímax lógico, aquele 0 a 0 infernal com a Itália,
no tempo normal e na prorrogação. O texto da narração é suspenso e só se ouve a
trilha sonora (o Réquiem de Siegfried, de Richard Wagner) e, no fundo, sons abafados
do jogo, uma chuteira batendo na bola, o apito do juiz, o ruído da torcida. Um final
arrepiante. Todos os corações do mundo é um filme à altura do seu tema. Não é dizer
pouco, quando esse tema é o futebol.
(Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 02.02.1996)
129
Como nascem os anjos
O bronco Maguila mata sem querer o chefe do tráfico no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro.
Perseguido pelos “soldados” do tráfico, ele é obrigado a fugir da favela com Branquinha, uma menina de 13 anos que, apesar da diferença de idade, diz ser mulher de Maguila. Na confusão, acabam levando também o menino Japa. Na fuga, invadem a mansão de um advogado americano,
onde viram reféns de uma situação que, num crescendo de tensão, nos leva a rumos inesperados.
1996 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 96min
Direção Murilo Salles
Produtores Murilo Salles, Romulo Marinho Jr.,
Cláudio Kahns
Coprodutores Secretaria do Audiovisual do
MinC, Riofilme, Banespa, Quanta
Roteiro Murilo Salles, Jorge Durán, Aguinaldo
Silva e Nelson Nadotti
Fotografia César Charlone
Direção de arte Marlise Storchi
Figurinos Maria Helena Salles
Som direto Marc Van Der Willigen
Montagem Isabelle Rathery, Vicente Kubrusly
Música Victor Biglione
Produção executiva Romulo Marinho Jr.
Elenco Larry Pine, André Mattos, Priscilla Assum,
Silvio Guindane, Ryan Massey, Maria Silvia
130
« XXIII Festival de Cine Iberoamericano de
Prêmio Andi pelos direitos da infância, Prêmio
Huelva, Espanha. 1997
Saruê de melhor momento do festival pelo Correio
Melhor Filme do Júri Oficial – Prêmio Colón de Oro
Braziliense, Prêmio Melhor Filme da OCIC - Orga-
« Festival de Gramado. 1996
nização Católica Internacional de Cinema
Melhor Filme do Júri da Crítica, Melhor Diretor,
« Festival de Berlim, Seleção Oficial FORUM
Prêmio Especial do Júri para os atores Silvio Guin-
« Melhor Filme do Ano: Associação de Críticos
dane e Priscila Assum, Melhor Fotografia, Melhor
de Cinema do Rio de Janeiro
Música, Melhor Montagem
« Melhor Filme do Ano: Associação Paulista de
« Festival de Brasília. 1996
Críticos de Arte
Melhor Filme do Júri Popular, Prêmio Especial
« Melhor Filme, Melhor Diretor: Prêmio da
do Júri para os atores Silvio Guindane e Priscila
Crítica e do Júri Popular - SESC SP. 1997
Assum, Melhor Atriz Coadjuvante para Maria Silvia,
“O filme surge da minha inquietação, como cidadão, com o conflito favela/asfalto,
tão presente no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Como cineasta, tento pensar
uma nova forma de encarar esse conflito que o cinema brasileiro vem retratando ao
longo de sua história. O que mais me motivou foi não fazer um painel moral desse
conflito. Não se trata de um filme que aposta no politicamente correto, no bom personagem, tampouco no mau. É um filme que ousa explorar o humor do lado patético
da tragédia social e de incorporar o acaso como condutor da narrativa e levar o
espectador a um estado para além das questões simplificadoras das sobredeterminações, para remetê-lo a um estado de puro absurdo, experimentado na violência
das desigualdades sociais no Brasil”
Murilo Salles
131
Os diálogos afiados e o
humor nervoso dos anjos
Ivana Bentes
Um filme de roteiro, que se sustenta nos diálogos afiados e no humor nervoso que
nasce de uma situação de confronto social insuportável. O novo filme de Murilo Salles
não tem nada do lirismo de Nunca fomos tão felizes nem a estrutura de thriller policial
de Faca de dois gumes. É um filme seco, de grande tensão, um “laboratório” social que
explora o intolerável no cotidiano brasileiro.
Como nascem os anjos começa frio, com uma espécie de prólogo no morro Santa
Marta. Mas o “filme do morro” não é o eixo da narrativa. O cinema brasileiro dos anos
1990 ainda procura saber como filmar a favela. Uma relação com o “outro” que o cinema, ao longo de sua história, vem tentando mapear e explorar: Cinco vezes favela, filme
coletivo ligado ao projeto CPC, Rio 40 graus e Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos
Santos, O anjo nasceu, de Júlio Bressane, além do cinema que romantizava a favela,
como Orfeu do Carnaval ou Favela dos meus amores. Em Como nascem os anjos, a
favela não é o território a ser explorado, é um espaço virtual e um trampolim, um espaço
de ambientação e apresentação dos personagens, que não se impõe como cenário real.
Uma favela é uma rede intrincada, tem uma vida e uma aparente desordem de colmeia,
uma topologia de labirinto vertical que faz dela um território singular que resiste a qualquer
invasão dos curiosos, da polícia, da TV e do cinema. As câmeras, os equipamentos, a equipe
de um filme têm de se adaptar a uma topologia e cultura singular para entrar nesse território
e chegar a ver algo. Daí a solução radical da televisão de montar favelas cenográficas que facilitam o deslocamento das equipes e criam um puro espaço televisivo. Ficcionalizar a favela?
O cinema brasileiro ainda não encontrou a forma de subir os morros para fazer ficção. Nesse
ponto, a referência ainda são os filmes e a experiência estética radical do Cinema Novo.
132
No filme de Murilo Salles a favela, enquanto território real, é quase pano de fundo.
A câmera toma distância dos “figurantes” do Santa Marta que atravessam o quadro de
forma indiferente. Só interessa aí caracterizar e tornar verossímeis os três personagens
principais, saídos da favela: Branquinha, Japa e Maguila. Ao mesmo tempo, a favela
atravessa todo o filme como território virtual. A favela estará presente virtualmente nas
luzes da Rocinha vistas da mansão e, o que é mais importante, nas referências diretas
à cultura do morro: na fala suingada e ferina, nos gestos e atitudes dos personagens.
A história engrena quando esses três personagens vindos da favela são deslocados
do seu meio e colocados numa situação de confronto dentro de uma mansão. De um
lado, duas crianças do morro, Branquinha e Japa (Priscila Assum e Sílvio Guindane) e
um adulto meio bronco ligado ao tráfico de drogas, Maguila (André Matos); e de outro
lado, um empresário americano, William (Larry Pine), sua bela filha (Ryan Massey) e a
empregada, Dona Conceição (Maria Sílvia).
O filme começa quando os seis personagens tornam-se reféns uns dos outros. A
situação simbiótica, de confronto e dependência entre os sequestradores acidentais
e seus reféns, é exemplar de um jogo social que dissolve as fronteiras do que é justo
ou injusto, certo ou errado, amoral ou ético. Como nascem os anjos cresce pela ambiguidade dos personagens e ausência de moralismo. As crianças do morro são espertas, cruéis e adoráveis ao mesmo tempo. Os dois jovens atores seguram o filme com
falas incisivas e todo um gestual trabalhado. O bandido bronco Maguila é simpático
na sua boçalidade. O grupo dos pobres não é caricaturado. Em muitos momentos o
espectador oscila e se pergunta se o sofrimento dos personagens (os ricos, cidadãos
americanos ou os pobres) vai comovê-lo. Na maior parte do tempo, o espectador se
identifica com o olhar das crianças do morro, ponto de vista privilegiado a partir do qual
a narrativa evolui. Mas a narrativa tem mobilidade para deslocar o espectador para o
ponto de vista oposto, o drama e humilhação dos ricos, o ódio ou sadismo das crianças
que surge nos momentos de tensão.
135
O fato de duas crianças do morro tornarem-se circunstancialmente marginais, “sequestradores”, e exercitarem sua dose de crueldade cotidiana não os torna abomináveis. Ao espectador não é dado julgar ninguém. A situação é quase de cumplicidade
cortada pelo cúmulo, o humor nervoso, de algumas situações. O filme, e esse é outro
dos seus méritos, não trabalha com a piedade. A câmera é frontal e fria. A fotografia,
neutra. Não há virtuosismo cinematográfico nenhum. O set é teatral. As cenas se passam entre quatro paredes, em suspense e suspensão.
O filme não esconde seu artificialismo, o de tornar verossímil uma situação de
“laboratório”. Entretanto, o “racionalismo” do roteiro é atravessado por momentos de
clímax e cúmulo. Daí o impacto das sequências em que a tensão se mistura com um
certo deslumbramento e gosto pelo espetáculo: o garoto que dança funk para os jornalistas da TV, sob os holofotes e a mira da divisão antisequestro da polícia, ou a menina
que exige que a loura americana fique nua e assiste a tudo como se visse uma cena de
nudez na telinha.
A televisão é um personagem importante na narrativa. Já nas primeiras cenas do
filme, uma equipe de TV alemã surge no Santa Marta fazendo jornalismo e sociologia.
A disseminação da miséria e da violência a níveis planetários faz das favelas cariocas
produto número um da globalização. “Miséria é miséria em qualquer canto”, cantam os
Titãs. Michael Jackson e Spike Lee no Santa Marta já tinham nos ensinado que a folclorização e estetização da miséria é uma tendência internacional. Daí terem escolhido
o morro para cenário de um videoclipe. As revistas de modas também já descobriram o
Terceiro Mundo e a miséria urbana como pano de fundo da publicidade e do mercado
da moda. Pobre is beautiful ou fashion!
No filme de Murilo Salles trata-se de avançar um pouco mais nessa realidade. A
televisão é ponto de referência para os três personagens da favela. Como disse o traficante Marcinho VP, numa entrevista ao Jornal do Brasil, ele não precisa ir à universidade
para estar antenado e informado com o que acontece — a televisão é a sua escola.
136
Todos os barracos do morro têm parabólicas captando o mundo via satélite. Se os policiais do filme parecem tão caricaturais é porque a polícia brasileira tem como modelo
o policial americano dos seriados de TV e do cinema. Não é o filme que usa clichês, é a
realidade que copia a TV, o mundo que é um clichê e um decalque da TV.
“Você não assiste TV?” — é a pergunta irônica do moleque ao americano que tenta enganá-lo com um truque manjado dos seriados policiais. Os ídolos do menino do
morro são os jogadores de basquete americanos, a menina fica deslumbrada com a
estética Barbie de sua refém. A relação de fascínio dos meninos por esses personagens
que moram bem, vestem bem e falam inglês é total. A televisão também aparece como
mediadora na resolução do sequestro. A possibilidade de se ver na TV, de existir no
telejornal, leva os garotos a correr todos os riscos. Se o filme é uma tentativa de tirar o
horror da banalidade cotidiana, ao mesmo tempo se alimenta dele, um pouco como na
TV. Mas o tratamento que o filme dá a esse horror e violência é mais cru e cruel. Em geral, a violência se dá na fala e nos gestos, não em cenas de violência espetacularizada.
Como nascem os anjos não faz hipóteses sobre o que narra, se contenta em contar
de forma distanciada o conflito entre excluídos e incluídos. É sintomático que no filme
os pobres se matem entre si. Constatação que tem algo de sinistro socialmente. O filme não chega a se indignar com isso, simplesmente narra. Os anjos brasileiros, conta
Murilo, já nascem mortos.
(Publicado originalmente em folder da distribuidora Riofilme)
137
50 anos de TV brasileira
Vídeo criado para a exposição 50 anos de TV e +, onde era exibido em looping permanente.
Brasil ∙ 2000 ∙ Betacam ∙ 9 min
Direção Murilo Salles
Edição Murilo Salles, Felipe Lacerda
O evento apresentou também vídeos realizados por Eduardo Coutinho, Arthur Omar, Belisário Franca, Alice Andrade, Raquel Couto, Eder Santos, Gabriela Greeb, Carlos Nader, Marcelo Tas, Andrea
Tonacci, Chico Faganello, Hique Montanari, Renato Barbieri, José Araripe Junior, Kátia Mesel, Torquato Joel e Rosemberg Cariry.
“O vídeo propõe um insight gestaltico sobre a TV brasileira, no dia do seu aniversário
de 50 anos. De meia-noite de 17 de setembro de 2.000 até a meia-noite seguinte, no
limiar do dia 18, foi gravado tudo o que entrou no ar em todos os canais abertos no
Rio de Janeiro, durantes essas 24 horas. Rendeu 1.440 minutos de gravação. Depois foi realizada uma edição randômica, onde foram pinçados quatro segundos de
imagem de cada canal, de 28 em 28 minutos. Esses quatro segundos foram montados em ordem, repetindo-se sempre a mesma, dos canais em números crescentes.
Foram feitos, em alguns momentos, pequenos ajustes para que os quatro segundos
pinçados cortassem melhor. Nesses nove minutos da projeção, temos uma ideia
clara do imaginário televisivo brasileiro.”
Murilo Salles e Felipe Larcerda
139
Seja o que Deus quiser!
Após se envolver com uma VJ da MTV, músico que vive em favela carioca acaba sendo denunciado sob a acusação de ter armado um assalto contra ela. Decidido a limpar seu nome, ele parte rumo a São Paulo para encontrá-la, mas acaba se envolvendo com um universo de personagens de outro “planeta”.
2002 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 90 min
Direção e produção Murilo Salles
Roteiro Murilo Salles, com a colaboração de
João Emmanuel Carneiro e Maurício Lissovsky
Produtora associada Zita Carvalhosa
Produção executiva Flávio Frederico, Rômulo
Marinho Jr.
Fotografia Gustavo Hadba
Montagem Pedro Amorim
Música Instituto, com participação de
Fernandinho Beatbox
Direção e produção de arte Dárida Rodrigues,
Mônica Costa
Figurinos Laís Salles, Marise Vonklay
Produção de elenco Sérgio Luz, Pedro Paulo de
Souza
140
Conceituação da direção de arte Jair de Souza,
Rômulo Marinho Jr., Paula Garcia, Jonathan
Pedro Paulo de Souza
Haagensen, Daniel Granieri, Stela Prata, Nicete
Direção de produção Mirela Zunino, Guto Vaz
Bruno, Marcelo Serrado, Antônio Pompeu, Elisa
Elenco Marília Pêra, Rocco Pitanga, Ludmila
Lucinda, Nildo Parente, Frejat
Rosa, Caio Junqueira, Débora Lamm, Sabrina
Greve, Bárbara Paz, Silvio Guindane, Tânia
« Festival do Rio Br 2002
Ripardo, Lúcio Andrey, Fernando Fechio,
Melhor Filme Júri Popular
“SqDq! é um chute no pau da barraca. Escancaramos o confronto Rio/São Paulo
como metáfora de Brasil, mas sem fazer sociologia. O negócio aqui é a ironia, a
comédia sarcástica sobre as diferenças de classes e de culturas. Começamos pelo
país da origem, negro e popular: o país de PQD, músico do Morro do Alemão, espaço onde a música e o tráfico — por mais condenável que seja — são índices de
afirmação de identidade e de sobrevivência econômica. Esses são signos do Rio de
Janeiro. O ‘negão’ cheio de boas intenções vai para o país que dá certo, que produz
60% do nosso PIB, país de Cacá, repórter de TV, seu irmão, Nando, e a amiga Ruth.
PQD quer provar a inocência do morro. Para ‘suspender’ os espectadores, criamos
uma grande confusão, invertendo os clichês: o malandro carioca se torna refém de
dois paulistas cujo objetivo imediato é ir numa rave em Botswana. No confronto
dessas culturas e raízes tecemos narrativas possíveis do Brasil, numa cruel, mas
sincera homenagem a Gilberto Freyre. Seja o que Deus quiser!”
Murilo Salles
141
O que “Deus quer” é cruel
Ismail Xavier e Leandro Saraiva
Em 1996 Murilo Salles já era um cineasta experiente, formado nos tempos em que
Cinema Novo e Cinema Marginal disputavam os rumos de nosso cinema, com uma carreira de diretor de fotografia, seguida pelo trabalho como diretor de vários curtas e cinco
longas. Naquele incerto momento pós-Collor, Murilo apresentou ao país Como nascem
os anjos, filme fundamental para o chamado “cinema da retomada” por ter reposto em
pauta, sob formas contemporâneas, a escandalosa desigualdade social brasileira. O filme
foi inaugural na criação de motivos que se tornariam marcantes ao longo da década seguinte: uma situação de impasse criada pelo encontro inusitado entre personagens vindos
de pólos sociais opostos, a TV como referência onipresente e mediadora das ações, os
favelados tentando superar o estigma (e a opressão) do narcotráfico pela alternativa integradora da performance musical.
Seja o que Deus quiser! retoma e aprofunda caminhos abertos pelo pioneiro filme anterior. Novamente, a comédia de erros é o modo de dar forma dramática às relações entre
ação individual e padrões sociais. Em Como nascem os anjos a sucessão meio absurda
de equívocos envolvia não só tensões interclassistas, como “mancadas” entre os pobres,
que acabavam por precipitar a catástrofe. Na História de PQD, jovem músico negro e
pobre que se vê enredado num mundo que lhe é estranho, quem age, de golpe em golpe,
são os jovens “moderninhos” da elite.
O título já anuncia a ironia: a aparência errática e vertiginosa assenta- se sobre os
pilares de nossa tradição de “ordem e progresso”. O que “Deus quer” é cruel, como descobre PQD. Sujeito cordato e de boa vontade, armado de versos de rap e partido alto, ele
é exceção, vítima de um enxame de figuras vampirescas “plugadas” nos circuitos de um
“outro planeta”, movidos a narcisismo e música eletrônica.
142
De início, vislumbra-se uma ponte sobre o abismo do quase-apartheid nacional: a
aproximação charmosa do músico da favela e da VJ da MTV, Cacá, sugere a possibilidade
de uma comédia romântica de integração social, na qual o valor de PQD poderia sobrepujar percalços e mal-entendidos. Mas o tom farsesco não demora a se estabelecer, ganhando impulso nos comportamentos grotescos dos malandros do asfalto virtual. O traço
caricatural do desenho dos personagens que cercam PQD ajuda a compor a imagem da
sociedade como engrenagem implacável, que tritura o herói e sua ingênua crença ética,
segundo a qual “tudo vai se resolver se a gente conversar numa boa”.
Nando, o irmão de Cacá, é mestre de cerimônias da comédia de erros. Ele é “puro
estilo” em roupas, trejeitos, fala, sexo, drogas e baladas. Sua amiga Ruth, com seu apartamento de história em quadrinhos, lhe faz par na vida vivida como videogame canalha,
onde tudo e todos são ou objetos de prazer, ou instrumentos para o próximo lance, o
próximo golpe, que os fará mudar de fase e ir para “uma rave em Botswana”. Tudo ágil,
mágico e colorido, como uma navegação speed na internet.
Através da mãe de Nando a farsa amplia seu diagnóstico social. Ele e Cacá vêm de
uma família de ares aristocráticos e antepassados militares, que vivem momentos finais de
decadência, deixando aos filhos somente a herança da desenvoltura dos bem nascidos.
Marília Pêra interpreta Dona Fernanda num tom levemente maluco, de quem perdeu o pé
mas não perdeu a pose. Murilo Salles caracteriza o clima de dissolução que envolve a família
pelo esvaziamento do “palácio” (como chama Ruth) onde vive Dona Fernanda, entre poucos
móveis e objetos de arte, prontos para serem vendidos. O diretor retoma, noutra chave, um
recurso de Nunca fomos tão felizes, onde o esgarçamento do laço familiar causado pela
ausência do pai militante tinha como cenário um apartamento vazio. É deste vazio que vem
a palavra final concedida à matriarca, que abençoa o sucesso da prole numa cena social
feita de aparências, pose e oportunismo ágil, navegando entre “virtualizações” de tempo,
espaço, subjetividades e história. A nova onda recobre, com estilo, seu compromisso de
continuidade da tradição, pois não é outra sua lógica senão a da violência e da exclusão.
143
Seja o que Deus quiser! acaba por concluir que, apesar de tantas novidades, as
coisas não mudaram muito.
(Publicado originalmente em folder do evento Encontros com o Cinema Brasileiro, do Centro Cultural Banco do
Brasil SP)
144
Murilo Salles radicaliza clichês
em comédia cruel
José Geraldo Couto
Cacá (Ludmila Rosa), uma VJ da MTV, vai fazer uma reportagem de música numa favela
carioca e acaba na cama com o sambista PQD (Rocco Pitanga, filho de Antonio e irmão de
Camila). Atacada por desconhecidos, ela denuncia o rapaz à polícia, por suspeitar de sua
conivência com os bandidos. PQD foge para São Paulo à procura da moça para limpar a
própria barra. Por uma série de acasos, acaba ficando à mercê de Nando (Caio Junqueira),
o irmão clubber de Cacá, que quer usar o músico para dar um golpe e faturar muita grana.
Desse entrecho Murilo Salles construiu uma comédia de erros sobre o choque de
classes e culturas no Brasil de hoje, tema já presente, num outro registro, em seu Como
nascem os anjos”.
O filme tem causado perplexidade, se não mal-estar, em suas pré-estreias e exibições
especiais. Não é difícil entender por quê. Seja o que Deus quiser! realiza uma operação
de risco ao desprezar simultaneamente dois elementos que estão se tornando dogmas no
cinema nacional: o naturalismo e a catarse pacificadora. Vejamos um de cada vez.
Exige-se hoje de um filme brasileiro que mostre “a favela como ela é”, “o Carandiru
como ele é”, ou “o sertão como ele é”. Nada contra as obras que buscam essa veracidade
documental. O problema é o retorno à crença ingênua na arte como reprodução fiel do
mundo existente, que faz lembrar o caso de alguém que, diante de uma pintura de Matisse, exclamou: “Mas essa mulher tem a barriga verde!” Ao que o pintor respondeu: “Isso
não é uma mulher, meu senhor. É um quadro”.
Pois bem. Já em suas primeiras imagens, tomadas por uma câmera acoplada ao lado
de um carro que entra na favela, fazendo os transeuntes se desviarem e olharem para esse
objeto invasor, o filme se apresenta como uma intervenção na realidade, e não uma tentativa
145
de retrato servil. O que se verá a seguir, dizem as imagens, será uma construção cinematográfica, que tem aspectos do real - o morro do Alemão, o prédio da MTV, a rua Augusta,
automóveis, computadores e gente de todas as tribos - como elementos de composição.
E a composição que Salles escolheu fazer é uma comédia cruel, uma fábula sem moral sobre as fraturas sociais e culturais brasileiras, conduzida por uma narrativa cartunesca,
no limite do verossímil, com personagens unidimensionais, à beira da caricatura. Mais que
na injustiça social e na opressão de classes, Seja o que Deus quiser! coloca seu foco
nos descompassos culturais e de linguagem, nos deslocamentos de sentido que ocorrem
quando algo ou alguém de um meio social ingressa em outra esfera - um pouco como
acontecia em O invasor, de Beto Brant.
A diferença é que Murilo Salles radicaliza o embaralhamento de clichês. Ao sair da
favela e adentrar o universo da “nite” paulistana, o pacato e afável PQD (já em si um clichê
do sambista gente boa) se transforma à revelia no “negão do comando vermelho”.
Uma operação oportunista de marketing em torno da vitimização de PQD é apresentada na TV como “campanha política de solidariedade”. O filme transborda sarcasmo e
ironia. Numa cena surpreendente e controvertida, uma senhora aparentemente indefesa
(Nicette Bruno, excelente) saca um 38 e mete bala no jovem que supostamente tentava
roubar seu carro. Noutra, uma perua que torra seu dinheiro no bingo (Marília Pêra, impagável) regateia com sequestradores o resgate do filho.
Passemos ao segundo dogma ignorado por Seja o que Deus quiser! - e, de resto,
também por O invasor -, o da catarse. A maioria dos novos filmes brasileiros centrados
em problemas sociais acaba por anestesiar as plateias por uma dessas duas vias (se não
por ambas): as lágrimas piedosas ou o banho de sangue.
Seja pela violência espetacular, seja pela purgação sentimental da culpa, são filmes
dos quais o espectador sai “de alma lavada”. De Seja o que Deus quiser! ela sai tão suja
quanto entrou.
(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 26.09.2003)
147
És tu, Brasil
Uma investigação sobre o que se pode entender como “identidade brasileira” através dos perfis de quatro artistas brasileiros arrojados, cujos trabalhos ganham notoriedade no cenário cultural internacional. Em cena, os processos criativos do músico Carlinhos Brown, do estilista Alexandre Herchcovitch, do artista plástico Tunga e da coreógrafa Deborah Colker. Em seu conjunto,
esses quatro perfis revelam atos de produção criativa carregados de traços dessa tal brasilidade.
Brasil ∙ 2003 ∙ Betacam ∙ Cor ∙ 110 min
Direção de arte Rodrigo Lima, Apavoramento
Direção e roteiro Murilo Salles
Sound System
Projeto Beatriz Jaguaribe, Mauricio Lissovsky,
Trilha sonora da abertura Apavoramento Sound
Murilo Salles, com a colaboração de João
System
Ximenes Braga
Músicas de Tunga Paulo Vivacqua / Henrique
Fotografia e câmera Gu Ramalho, Murilo
Drach / Chelpa Ferro / Tom Zé / Pedro Amorim
Salles e Janice D’Avila com a participação de
Deborah Colker Berna Ceppas e Alexandre
Isaac Chueke, Markão e Tijz Van den Donk na
Kassin (Trilha Casa)
performance Energia da separação / Energia da
Carlinhos Brown Carlinhos Brown e Concerto
conjunção.
para piano, opus 16 de Grieg
Montagem final Pedro Amorim
Alexandre Herchcovitch Malu Miranda e Pedro
Marcelo Moraes montou Tunga; Alexandre
Amorim e trilhas dos desfiles
Herchcovitch foi montado por Célia Freitas,
Produção executiva Suzana Amado
Carlinhos Brown por Pedro Amorim e Tina
Direção de produção Ana Murgel e Gabriela
Saphira; Deborah Colker por Ana Teixeira, José
Weeks, assistidas por Jenifer Marques
Rubens Hirsh e Edson Mandu.
148
“Sabemos que nenhum país existe só por causa de suas fronteiras. Como todas
as nações, o Brasil foi primeiro imaginado, inventado, reinventado, muitas vezes e
por muita gente ao longo de nossa história. E esse país imaginado sempre foi, para
nós, muito mais verdadeiro do que o país dos heróis da nossa história oficial. Essa
questão é que nos leva aos artistas, pois foram eles, principalmente, que cunharam a ‘imaginação que fazemos de nós mesmos’ e ainda são eles que estão dando
forma aos ritos em que a brasilidade está sendo reinventada todos os dias. É daí
que surge esse nosso projeto. O desejo de olhar com delicadeza e atenção alguns
artistas operando seus processos cotidianos de criação. Dá para sentir, nos rituais
onde nascem suas obras de arte, as forças da imaginação criando e recriando, em
procedimentos que no fundo nos pertencem. Foi assim que surgiu a ideia de um tu,
um tu pessoal e autoral, mas que é também um tu coletivo: Tu, Brasil! Foi assim que
surgiu: ‘És tu, Brasil!’”
Murilo Salles
149
Murilo Salles apresenta faces brasileiras
José Geraldo Couto
Um documentário sobre a identidade cultural brasileira – tema tão velho quanto a
carta de Caminha – poderia descambar para o óbvio. Nas mãos de um cineasta inquieto
como Murilo Salles (Como Nascem os Anjos), entretanto, a única coisa óbvia que restou
foi o título: És tu, Brasil.
Para investigar o que chama de “novas faces da brasilidade”, Salles resolveu retratar
quatro artistas brasileiros atuais de expressão internacional: a coreógrafa Deborah Colker,
o músico Carlinhos Brown, o artista plástico Tunga e o estilista Alexandre Herchcovitch.
Tunga e Colker estão na primeira parte. Salles procura filmar o corpo a corpo de cada um
deles com seu trabalho, seus materiais, seu desejo de expressão.
No segmento dedicado a Tunga, por exemplo, a voz do artista em off se sobrepõe a
imagens de suas obras/performances, uma delas ao ar livre numa floresta brasileira, outra
numa antiga capela de Marselha, na França.
A câmera de Salles capta cada nuance de luz, a sensualidade das formas e dos movimentos, assim como o tanto de mistificação que envolve o retratado. Ao mostrar um espetáculo
de Deborah Colker para a Ópera de Berlim, o cineasta a certa altura divide a tela em duas:
numa delas mostra os ensaios; na outra, as mesmas cenas durante a apresentação no teatro.
Herchcovitch é flagrado na preparação e nos bastidores de dois desfiles: o São Paulo
Fashion Week e a Semana da Moda de Paris. Acompanhamos em cada detalhe a concretização de sua visão da moda como expressão teatral. Brown, por sua vez, apresenta o
mundo em que foi criado, o bairro do Candeal, em Salvador, e dialoga com seus mestres
no batuque e no candomblé. Há um momento especialmente inspirado: sobre a imagem
do músico regendo os tambores de sua timbalada, uma peça de Grieg.
O Brasil de Murilo Salles tem muitas caras – e não se envergonha de nenhuma delas.
(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 15.08.2003)
151
Nome próprio
Camila tem a escrita como sua grande paixão. Intensa e corajosa, busca criar para si uma existência complexa o suficiente para que possa escrever sobre ela. Sua vida é sua narrativa. Quer a
literatura como ato de revelação. Para tal, cria vínculos. Carente, os destrói. Por excesso, apego,
paixão. Ela escreve compulsivamente em um blog, que, paradoxalmente, faz com que ela se sinta cada vez mais sozinha. Para Camila, a vida floresce das cicatrizes de seu processo de entrega absoluta e vertiginosa.
Brasil ∙ 2007 ∙ HD ∙ Cor ∙ 120min
Direção Murilo Salles
Produção executiva Flávio Frederico
Produtores associados Suzana Villas Boas,
Lionel Combecau
Roteiro Elena Soarez, Melanie Dimantas, Murilo
Salles, baseado no livro Maquina de pinball e em
textos publicados no blog de Clara Averbuck
Textos escritos e narrados no filme Viviane Mosé
Fotografia Fernanda Riscali, Murilo Salles
Montagem Vânia Debs
Música Sacha Amback
Direção de arte Pedro Paulo Souza
Figurinos Marina Pamplona Iavelberg
Direção de produção Priscila Torres
Diretora assistente Marcela Lordy
Design gráfico e letreiros Rodrigo Lima, Inez Torres
152
Edição de som Virginia Flores
« Melhor Filme e Direção de Arte no Festival de
Mixagem Cláudio Valdetaro
Gramado 2008
Elenco Leandra Leal, Juliano Cazarré, Munir
« Melhor Atriz (Leandra Leal) nos festivais de
Kanaan, Reginaldo Faidi, Alex Didier, Martha
Gramado (2008), SESC e Cineport (2009), no
Nowill, Frank Borges, Fabio Frood, Milhem
Grande Prêmio do Cinema Brasileiro (2009) e no
Cortaz, David Katz, Norival Rizzo, Rosanne
Prêmio Qualidade Brasil (2008).
Mulholland, Ricardo Garcia, Paulo Vasconcelos,
Alan Medina, Gustavo Machado, Luciana Brites,
Ricardo Galli
“Quando descobri o livro Máquina de pinball, de Clara Averbuck, achei que a internet pudesse ser o meu tema, pois é um espaço que os brasileiros estão conquistando, fruto de uma nova individualidade que brota nos poros das grandes cidades,
sem complexo de nascença, sem problema de afirmação de origem. Uma geração
que simplesmente procura seu espaço identitário fora do complexo de vira-lata ou
da barbárie. Descobri que o tema da história que procurava era o feminino em sua
complexidade, seu transbordamento. Para essa tarefa, com muito esforço e concentração, me tornei a melhor Camila. Foi a forma que encontrei para poder estar no
filme, só assim isso ia ganhar sentido e verdade para mim.”
Murilo Salles
153
Com a alma nas pontas dos dedos
Carlos Alberto Mattos
É particular e apreciável a maneira como Murilo Salles tem se inserido no discurso
geral do cinema brasileiro desde os anos 1980. Quando começávamos a refletir sobre a
ditadura militar como parte do nosso passado, ele retratou a solidão e o vazio de uma nova
geração vivendo certa orfandade. Era Nunca fomos tão felizes, um primeiro filme que a
gente nunca esquece. No momento em que o governo Collor fodia com a vida brasileira,
ele e Sandra Werneck traduziram a situação no curta-protesto Pornografia. Mais adiante,
quando apenas se insinuava a onda de violência urbana que assola o cinema brasileiro
recente, ele deslocou o ângulo para o imaginário de crianças da favela durante uma ação
desastrada. Era Como nascem os anjos, um clássico do gênero.
Mesmo no aparentemente menos ambicioso — e muito incompreendido — Seja o
que Deus quiser!, Murilo não deixou de surpreender com uma inversão de estereótipos
que dizia muito sobre equívocos e obsessões do Brasil atual. A juventude continuava a ser
o seu plantel predileto de personagens. E nada mais é que um porre de juventude a sua
obra-prima que chega agora às telas. Nome próprio é talvez o filme mais contemporâneo
que o cinema brasileiro poderia produzir neste momento.
Estamos a muitas milhas de distância tanto dos chavões da violência quanto dos
xavecos das historinhas bem comportadas que têm garantido ao filme brasileiro alguns favores do público. Nome próprio disputa plateias com os bons filmes europeus e asiáticos
da praça, ou com os melhores quitutes provenientes dos EUA. Isso porque, como poucos
outros, troca a cor local pelos tons de um “país” interior, mais recôndito e insondável. Sua
ação se passa dentro de uma cabeça, e não é de uma cabeça qualquer.
Camila Lopes, filtrada da autobiografia ficcional de Clara Averbuck, é uma criação
arrebatadora de Murilo Salles e Leandra Leal. Uma menina com a alma nas pontas dos de-
154
dos e o destino a curto prazo condicionado pelo tempo da conexão discada (estamos em
2001). Algo predadora, dada a barracos, criança e tigresa alternadamente, Camila tenta
destilar sua solidão nos encontros de bar, nos copos de vodca e na devora de cigarros, na
fantasia de um príncipe online, no corpo-a-corpo com as palavras que espalha pela rede
sem esperar retorno nem compensação. Tudo é mar onde ela quer se dissolver. Tudo é
vício, paixão e poesia.
Ela é a síntese de uma sensibilidade nova, que o cinema brasileiro ainda não tinha
conseguido (na verdade, nem procurado) representar. E o desafio brilhantemente vencido
por Murilo Salles foi o de tornar palpável diante de nós os sinais dessa sensibilidade. Sua
câmera flutua sobre os corpos, acaricia-os ou espreita-os como um olho livre, sem peso.
Mas o que esse olho desmaterializado vê é de uma visceralidade transbordante. As unhas
raspadas de Camila; sua relação corporal com o set, os objetos e os demais personagens;
a exteriorização das frases como textos sobre a tela – tudo isso remete a um movimento
no sentido de transformar o sentimento em matéria exposta. Todas as dicotomias que
dilaceram e ao mesmo tempo produzem essa Camila que nos é dado conhecer — angústia e hilaridade, decepção e dissipação, virtualidade e fisicalidade — ganham expressão
poderosa nesse objeto fílmico singular.
Ao final, depois de desnudar-se em tantos sentidos quantos possamos imaginar, Camila se reparte em duas para, quem sabe, se apaziguar. A quebra da identidade é a
suprema realização de um desejo de dar-se ao mundo e ao mesmo tempo manter-se
coladinha a si mesma. Desconfio que Nome próprio é sobre essa inquietação tão comum
em tempos de desmaterialização, interação desenfreada e, contraditoriamente, isolamento cada vez maior.
(Publicado originalmente no site Críticos, 12.08.2008)
155
O espetáculo e a delicadeza
Um registro de obras de 21 artistas que acompanha o livro Arte brasileira contemporânea – um
prelúdio, organizado por Paulo Sergio Duarte e destinado a oferecer uma articulação de informações de especialistas, relacionando as múltiplas manifestações de arte e oferecendo algumas chaves para sua compreensão e fruição. O trabalho é composto por ensaios visuais feitos
por Murilo Salles sobre obras desses 21 artistas, envolvendo seus processos criativos e lançando um olhar atento sobre as obras.
Brasi ∙ 2008 ∙ HD ∙ Cor ∙ 57 min
Obras Hélio Oiticica, Carmela Gross, Iole de
Direção Murilo Salles
Freitas, Lenora de Barros, Eder Santos, Adriana
Curadoria Paulo Sergio Duarte
Varejão, Carlos Vergara, Chelpa Ferro, Paulo Vi-
Fotografia Murilo Salles, Markão Oliveira,
vacqua, Fernanda Gomes, Brígida Baltar, Marce-
Léo Bittencourt, Gustavo Moura
lo Silveira, José Damasceno, Lucia Koch, Marilá
Montagem Silvia Hayashi
Dardot, Ernesto Neto, Nuno Ramos, Waltercio
Música Sacha Amback
Caldas, José Resende, Cildo Meireles, Tunga
Locução Julia Lemmertz
156
“Sempre gostei de filmar obras de arte, pois o desafio é perceber a relação entre
elas e o espaço que as ampara. Isso requer olhar preciso, exato, que dê conta dessa
‘relação’. É um exercício delicado, pois essa transmutação acaba ressignificando a
obra. Portanto é uma relação ética. Uma ‘negociação’ entre o cineasta e a obra de
um outro artista. Nesse tipo raro e prazeroso de fazer cinema, desenvolvo uma visualidade puramente escópica, que está presente quando faço um filme ficcional, mas
aqui é onde essa intuição se impõe radicalmente. Um desafio maravilhoso.”
Murilo Salles
157
Dois polos
Paulo Sergio Duarte
No livro, afinamos ideias e conceitos para nos aproximar desse terreno muito complexo que se encontra em formação há mais de 50 anos, que é a arte contemporânea.
Esta aproximação, no DVD, feita em livres improvisações sobre 21 artistas, possibilita
distinguir a arte contemporânea se desenvolvendo entre dois polos: o espetáculo e a
delicadeza.
No mundo em que a cultura se tornou a commodity por excelência, o espetáculo é
visto por muitas pessoas de uma forma negativa. A arte estaria submetida à mercantilização generalizada vigente no mundo de hoje. Não é verdade. As dimensões espetaculares que podem adquirir obras de artistas que preservam uma força crítica e mantêm
desafios à sensibilidade comum vão na contramão do universo de comunicação fácil da
publicidade. Pelo seu impacto e visibilidade, essas obras de arte nos levam a pensar
sobre o que estamos vendo. E como estamos viciados pelo que nos é oferecido pelos
meios de informação.
De outro lado, outros artistas trabalham no outro polo, o da delicadeza. São obras
que passam despercebidas pelo olhar leigo e viciado pela velocidade do mundo da
comunicação de massa. Deslocadas para o meio de arte, essas obras nos formam e
nos educam, nos despertam para dimensões inusitadas da presença de arte no meio
de tanta grosseria e brutalidade da cultura que absorvemos na vida cotidiana. Aí, na
delicadeza, podemos flagrar o momento do aparecimento da arte no mundo, seu primeiro instante de vida. E se ela sobrevive, é porque nas brechas, nos interstícios de um
sistema muito bem articulado, existe espaço para se explorar um campo simbólico que
está aceso em cada um de nós e que não podemos deixar apagar.
Entre esses dois polos, o espetáculo e a delicadeza, todo um continente se des-
158
dobra diante de nós. Como não existe uma linguagem e não existe um tradutor, são
inúmeras as linguagens desenvolvidas pelos artistas. E a aproximação de cada um
produz a sua própria tradução.
(Texto de introdução do DVD)
159
Tunga: registros
Registro de cinco performances do artista na abertura da Galeria Psicoativa Tunga em Inhotim,
em 6 de setembro de 2012.
Brasil ∙ 2012 ∙ HD ∙ Cor ∙ 33 min
Make up coincidence – a prole do bebê (7 min)
Direção Murilo Salles
Montagem Vinícius Nascimento
Fotografia Luz Guerra, Gu Ramalho,
Música Sacha Amback
Leo Bittencourt, Markão
Produção Fernanda Abreu
Experiência física sutil & Inside out, upside down
a walk in Venice (10 min)
Xifópagas capilares (9 min)
Montagem Vicente Kubrusly
Montagem Marília Moraes
Música, edição de som e mixagem João Jabace
Música Sacha Amback
Tereza (7 min)
Montagem Murilo Salles, Silvia Hayashi
Música Arnaldo Antunes
Base sonora, edição de som e mixagem
João Jabace
160
“São propostas de olhar experiências — um cinema specific. Como filmar cinco performances simultâneas num espaço e tempos determinados. Foi muito difícil, pois
as performances aconteciam junto à participação do público na abertura da galeria.
No mais, essas ‘construções’ que apresento foram pensadas pós registro — montagem — tentando dar conta da relação da imagem captada com as performances.
Existia para nós — cineasta e artista — a preocupação de fazer perceber a imantação proposta pela galeria. Isso foi construído em Xifópagas capilares. É sempre
muito enriquecedora e formadora essa relação da imagem cinematográfica com as
performances do Tunga. Um prazer e um desafio. Enormes.”
Murilo Salles
161
Aprendi a jogar com você
A luta e o empenho do DJ Duda e de sua esposa, a cantora Milka Reis, para transformar o sonho de ‘estourar’ uma música em realidade. Um filme sobre como viver de arte na periferia dos
grandes centros culturais. O dia a dia dessa família de Samambaia, cidade-satélite de Brasília,
se desdobrando para dar conta da sobrevivência. Salta à tela a performance de um saber bem
brasileiro. O documentário integra o projeto És tu, Brasil II.
Brasil ∙ 2013 ∙ HD ∙ Cor ∙ 87 min
Direção e produção Murilo Salles
Projeto És tu, Brasil II Beatriz Jaguaribe,
Maurício Lissovsky, Murilo Salles
Fotografia, câmera e som direto André Lavaquial,
Leo Bittencourt
Roteiro Eva Randolph, Murilo Salles
Montagem Eva Randolph
Produção executiva Mariana Vianna, Tainá Prado
Edição de Som Rodrigo Sacic
Mixagem Vinícius Leal
162
“Depois de quase dois anos de pesquisas, em Samambaia, na periferia de Brasília,
encontramos o DJ Duda e sua esposa Milka Reis. Um casal que se joga, com a cara
e a coragem, na luta para fazer acontecer uma música que transforme suas vidas.
Nem Duda, nem Milka têm empregos que lhes deem sustentação. O que percebemos é uma disponibilidade/coragem para arriscar e romper barreiras em busca
do sucesso. Somos surpreendidos por seus expedientes transgressores, limítrofes,
mas que transbordam verdades de quem vive no mundo onde a ‘viração’ é a lei,
regida pela crueza do econômico.
Quem somos nós para julgá-los?
Sobre o procedimento documental: o filme é tributário da tradição do cinema-direto, e nisso se distancia de um dos paradigmas do documentário brasileiro, que
é a entrevista, com a intervenção em cena do realizador. Nosso filme foi realizado
com um procedimento de direção que vem da experiência de Dziga Vertov.
Não estive presente em nenhuma das filmagens. Minha atuação foi na escolha
dos personagens e na conceituação de filmar sem julgamentos apriorísticos, para depois, sem estar envolvido com o material, descobrir o filme que está ali contido. Para
tal contamos com a participação dos fotógrafos e codiretores Leonardo Bittencourt e
André Lavaquial, mas principalmente da montadora Eva Randolph, com quem durante
quase dois anos fiquei tentando descobrir como ficcionalizar essa história.
Fazer documentários é a melhor forma de aprender a fazer ficção.
Personagens contundentes, inimagináveis, e que, principalmente, não controlamos. O que se impõe, então, é o desafio de construir as narrativas. O maravilhoso
desafio do cinema.”
Murilo Salles
163
Passarinho lá
de Nova Iorque
Autor do filme de enorme sucesso popular Ai que vida!, o maranhense Cícero Filho luta para finalizar seu novo trabalho, o romance dramático Flor de abril. Ele encara a burocracia, a demora dos
patrocinadores e a crise com sua atriz para refilmar uma sequência. Um documentário que narra
o sonho de um cineasta. E integra o projeto de outro cineasta, És tu, Brasil II.
Brasil ∙ 2014 ∙ HD ∙ Cor ∙ 89 min
Direção, roteiro e produção Murilo Salles
Projeto És tu, Brasil II Beatriz Jaguaribe, Maurício Lissovsky, Murilo Salles
Diretor assistente, fotografia, câmera e som direto
Leo Bittencourt
Montagem Murilo Salles, Eva Randolph
Pesquisa de personagem Eva Randolph, André
Lavaquial
Edição de som Rodrigo Sacic
Mixagem Vinicius Leal
164
“Passarinho é um documentário sobre o esforço de um cineasta para conseguir refilmar uma cena. Sobre sua paixão, o cinema. No decorrer da narrativa percebemos
que o procedimento de Cícero é criar ‘famílias’ por onde passa e atua. Essas famílias
são a sustentação de seu processo de produção criativa. Na montagem, descobrimos, por tanto olhar, novas camadas de significação de que tentamos dar conta, os
verdadeiros afetos que ligam Cícero a suas famílias.”
Murilo Salles
165
Cícero Filho, um diretor que chora e resiste
Luiz Carlos Merten
Depois de Aprendi a jogar com você, que apresentou na Semana dos Realizadores, no
Rio, Murilo Salles trouxe à Mostra de Tiradentes seu novo documentário, Passarinho lá de
Nova Iorque. O diálogo é total com o filme anterior. Se em Aprendi a jogar com você Salles
traçou o perfil de um animador cultural à margem do sistema formal de entretenimento, ele
apresenta agora um cineasta totalmente fora do eixo. Cícero Filho, do interior do Maranhão,
é um artesão do seu oficio, mas sonha com o profissionalismo. Filma em digital, exibe seus
filmes — cobrando ingresso — em escolas. E como Woody Allen, ele acredita nos retakes.
Toda a luta de Cícero, enquanto finaliza o novo filme — que Saltes não mostra —, é para
refazer uma cena com a qual não ficou satisfeito. É uma cena intensa no estrutura do filme
que não vemos. Uma mãe que chora o filho morto. Câmera na mão, olho no visor, Cícero
chora acompanhando a cena. O diretor que chora não é um personagem estranho nessa
17ª Mostra de Tiradentes. Passarinho lá de Nova Iorque passou no domingo à noite. À tarde,
o evento exibiu Amador, de Cristiano Burlan, em que outro cineasta também chora.
Burlan ficcionaliza sua dor. O título, Amador, não é casual. O diretor do admirável Mataram meu irmão terminou com a mulher, que também era sua produtora. E agora procura
um rosto feminino para outro filme. Na cena em que chora, a câmera executa um movimento e capta outra câmera que, sozinha, sem operador, continua filmando (gravando?).
Tiradentes apresenta este ano uma programação inteiramente digitalizada. Filmes feitos e projetados digitalmente. Numa cena de Amador, o diretor do filme dentro do filme
fala com o projecionista. Nesta nova economia do cinema, o projecionista vai desaparecer.
Ele projeta suas últimas películas. A luz do projetor, incidindo na película que roda, lança
uma imagem no chão. Cristiano filma aquilo, enquanto o projecionista diz que aquela imagem no chão também vai acabar.
166
O projecionista, o rebatimento do filme no chão — além de emocionante, a cena é
exemplar dentro dessa transição que Tiradentes celebra. É uma outra forma de focar a
mudança da película para o digital. Passarinho já pertence a essa outra economia do
cinema. O digital, a internet, eis o que torna o fenômeno Cícero Filho possível. É um personagem maravilhoso, que permite a Murilo Saltes levar adiante sua reflexão sobre o que
é, afinal, a brasilidade.
Salles é um diretor político, um autor. Cícero é ele e, no personagem, Salles celebra
a resistência, a capacidade que o cinema brasileiro tem de se (re)inventar. Qual é a vida
desse cinema de Cícero, de Salles? Murilo diz que o importante é fazer. Os filmes encontrarão seu espaço. É belo, é romântico, mas existe outra questão. Hollywood domina os
mercados. Não vai desistir. As salas terão de continuar existindo, a pirataria será combatida, porque o dinheiro vem das milhares (milhões?) de salas e do mercado legal de home.
Cícero, que quer se profissionalizar, continuará sendo um amador. Amando a dor?
(Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 28.01.2014)
167
O fim e os meios
Paulo e Cris são um jovem casal que se muda para Brasília a fim de tentar resolver os impasses
da relação. Ela é jornalista, ele é publicitário. A campanha eleitoral de um senador da república desencadeia um jogo de poder em que a mídia e a política convivem de forma perigosa com os desejos e as fraquezas da relação entre homem e mulher. As raízes do Brasil são expostas através
dos sentimentos daqueles que vivem dentro do furacão do poder.
Brasil ∙ 2014 ∙ HD ∙ Cor ∙ 105 min
Direção Murilo Salles
Produção Júlia Moraes
Roteiro Murilo Salles, Fellipe Barbosa
Fotografia Janice d`Ávila
Montagem Karen Harley
Trilha sonora Sacha Amback
Elenco Cintia Rosa, Pedro Brício, Marco Ricca,
Hermila Guedes, Emiliano Queiroz, Elisa Lucinda, Narciza Leão, Tessy Callado, Murilo Grossi,
Fernanda Rocha e Sérgio Sartório.
« Prêmio Redentor de melhor roteiro no Festival
do Rio 2014
168
“O fim e os meios nasce de um desconforto com o Brasil, de como se configura a
crise ética que nos atravessa. A corrupção no Brasil é uma endemia, uma doença. Queríamos perceber a forma como a corrupção se estabelece, corroendo as
pessoas e o país.
Não existe mais, a essas alturas do campeonato, a necessidade de uma busca
pela ‘gênese’ da corrupção no Brasil. Ela virou uma ‘forma’. Todos nós, de alguma
maneira, e com envolvimentos diversos, somos, no mínimo, coniventes e até mesmo
cúmplices da corrupção. Não faz muito sentido perder tempo com um filme-denúncia. A corrupção está nas páginas dos jornais absolutamente todos os dias.
O filme tenta agir na epiderme, contando a história de uma relação implausível
entre duas pessoas, forjada por uma gravidez não desejada, que encontra na decisão de mudar para Brasília a solução para seus impasses. A partir daí começa-se a
perceber nossa capacidade adaptativa, a nossa conhecida acomodação às situações de conflito.
O filme torna-se fluido, impalpável. Não estabelece com clareza com quem identificar-se. Melhor, o filme suspende a identificação. Esse desconforto serve para sublinhar como somos implicados em tudo. Talvez esteja aí uma possível abordagem
desse tema tão esgarçado. Com a corrupção não há vencedores nem vencidos, ela
destrói, silenciosa e lentamente, a tudo e a todos. O Poder reina sobre aquilo que
ele consegue interiorizar.
O fim e os meios é um filme-impasse. É a tentativa de fazer com que ‘imagens de
pensamento’ fiquem no inconsciente, nos incomodando, nos questionando.”
Murilo Salles
169
Brasília, labirinto sem saída?
José Geraldo Couto
Numa semana trepidante na política e repleta de estreias nos cinemas, destaco aqui um
filme tão oportuno quanto incômodo: O fim e os meios, de Murilo Salles. Aliás, num gesto
inédito, o diretor está lançando simultaneamente dois outros trabalhos: os documentários
Aprendi a jogar com você e Passarinho lá de Nova Iorque, ambos sobre artistas populares
(um DJ, uma cantora, um cineasta independente) tentando “se virar” no Brasil atual.
Mas, se a terra treme em Brasília, o filme da hora é O fim e os meios, que acompanha os percalços de dois peixes miúdos — uma jornalista e um publicitário — no mar
de tubarões do poder político e econômico. Não é um filme-denúncia, não toma partido
desta ou daquela facção, não moraliza: simplesmente apresenta dois personagens “comuns” tragados pelo olho do furacão.
Nas bordas da engrenagem
São eles o jovem publicitário carioca Paulo Henrique (Pedro Brício) e a jornalista Cris (Cíntia
Rosa), que só passam a formar um casal depois que nasce a filha deles, fruto de uma relação casual. Eles vão morar em Brasília quando Paulo é convidado a trabalhar de “gestor
de imagem” para um velho senador (Emiliano Queiroz) e Cris se transfere para a sucursal
brasiliense do seu jornal. Ambos falam em topar um “desafio”, uma das palavras mais faladas no filme, quase um eufemismo para “vender a alma, mas só um pouquinho”.
Não cabe aqui entrar em detalhes do enredo. O que importa é que o jovem casal vai
transitar pelas bordas da perversa engrenagem do poder — e sofrer os efeitos psicológicos, afetivos e morais disso. Dinheiro, intrigas, confusão entre o público e o privado,
promiscuidade entre imprensa e poder, em suma tudo isso que conhecemos dos livros
ou de ouvir falar, só que aqui mostrado “por dentro”, vivido por “gente como a gente”.
170
A maneira como Murilo Salles encena e filma esse drama não deixa espaço para o
maniqueísmo, a identificação com um dos lados, a catarse. Sob um céu permanentemente carregado, uma paleta de cores reduzida quase ao preto e branco (até mesmo
quando se filma uma praia paradisíaca do Nordeste), há uma predominância dos planos
gerais, em que os personagens aparecem pequenos, como que oprimidos pelo espaço que os engloba. Poucos closes, recusa sistemática do campo/contracampo, raros
momentos de câmera subjetiva, quase nenhuma música. Ou seja, nada dos recursos
habituais que, na decupagem clássica, induzem à identificação emocional do espectador com este ou aquele personagem.
Desconforto
Tudo é desconforto, como costuma acontecer no cinema de Murilo Salles, em que ninguém é totalmente virtuoso ou totalmente canalha. Inútil tentar buscar aqui referências
a personagens individuais da nossa política. Não é um roman à clef. O senador que
contrata Paulo Henrique tem um pouco de Sarney, um pouco de ACM, mas vai além
desses modelos: é, sim, um coronel nordestino arquetípico, um “faraó embalsamado”
da nossa sociedade oligárquica, mas ao mesmo tempo um personagem de carne e
osso, que não abre a boca durante todo o filme, mas transmite pelo olhar uma gama
enorme de ideias e sentimentos. É quase uma esfinge que nos desafia à decifração.
(Diga-se entre parênteses: que ator extraordinário esse Emiliano Queiroz!)
Oriundo da direção de fotografia, Murilo Salles é um cineasta essencialmente visual,
isto é, alguém que sabe que o cinema, mais do que com ideias e palavras, se faz com
imagens e sons (o que inclui as palavras, mas não se resume a elas). Parece óbvio, mas
quando examinamos nossa filmografia política vemos que há, em geral, muito discurso
e pouco cinema. E O fim e os meios, filme em que a primeira fala só surge depois de
dez minutos (e ainda assim dirigida a um cachorro!), está repleto de imagens fortes e
originais: um homem escondido numa laje na cobertura de um prédio em Copacabana,
171
tomando banho na caixa d’água, mijando numa garrafa de plástico ou procurando um
canto onde o sinal da internet seja melhor; fogo consumindo malas de dinheiro numa
estrada de terra em meio a um canavial; dois casais conversando em volta da mesa
numa mansão em Brasília, com o espaço fragmentado e duplicado por espelhos.
Ao controle absoluto da profundidade de foco soma-se uma “profundidade de
som” que nada tem de naturalista ou aleatória. Há, por exemplo, uma cena em que Cris
conversa com uma possível “fonte” para uma matéria. Os dois estão bem distantes no
fundo do quadro, mas ouvimos perfeitamente a conversa, quase como se eles estivessem “grampeados” por aparelhos de escuta. O procedimento nos estimula a imaginar o
teor das conversas ao pé do ouvido que vemos à distância nas reportagens televisivas
nos espaços do poder em Brasília.
Herança patriarcal
A personagem Cris — jovem, bela, inteligente, altiva, negra — condensa, de certa
forma, as principais tensões em curso. Tudo passa por ela, ou antes, a atravessa: o
racismo, o machismo, a exploração profissional, toda a herança patriarcal da nossa
sociedade. O que provavelmente incomodará muita gente é o fato de que ela não é
uma vítima e tampouco uma heroína: é uma mulher plena de fraquezas e contradições.
Sua atitude ambivalente diante do homem que a agride sexualmente talvez gere revolta
entre feministas mais afoitas. A questão é que ela não está lá para representar a luta das
mulheres, mas o drama de uma única mulher, ela própria.
Mais vale, a meu ver, atentar para a sutileza com que é filmada (ou melhor, omitida)
a cena da violência sexual propriamente dita. Numa elipse visual, a câmera percorre, em
contre-plongée, escadas, forros e tetos da casa, enquanto ouvimos os sons abafados
e distantes do casal no ato. Os olhares silenciosos das empregadas mostram que elas
também ouviram, e isso é o que importa.
Mais do que na frase grosseira do violentador (Marco Ricca) — “Seu marido te cha-
172
ma de ‘neguinha gostosa’?” —, nosso racismo velado, naturalizado, se revela quando
um entregador toca a campainha e diz à protagonista, assumindo que ela seja a empregada: “Entrega para a dona Cris”. “Eu sou a dona Cris”, ela responde, ofendida.
(Publicado originalmente no blog do Instituto Moreira Salles, 04.12.2015)
174
175
Alguns filmes
fotografados
por Murilo
177
Carro de bois
Mesmo que superado por modernas técnicas, o carro de bois ainda faz parte das paisagens do
sertão, indo aonde o caminhão não vai, numa mistura de utilidade e poesia, e transportando o
mais variado tipo de carga. O filme mostra como ele é feito e o artesão que o fabrica. Último filme
de Humberto Mauro e sua única experiência com o filme colorido.
Brasil ∙ 1974 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 10 min
Montagem Sérgio Santos, Gustavo Praça
Direção Humberto Mauro
Narração Hugo Carvana
Fotografia Murilo Salles
Música Walter de Souza
178
Lição de amor
São Paulo, anos 20. Felisberto, criador de gado e pequeno industrial, contrata os serviços de uma
governanta alemã para iniciar seu filho adolescente nas “coisas da vida”, temendo as experiências que ele possa viver fora de casa. Carlos, adolescente perfeitamente normal, a princípio prefere o futebol de rua às aulas de alemão e piano, mas acaba envolvido por Elza, a “Fräulein”, sem
saber ainda exatamente o que eram as coisas que passara a sentir.
Brasil ∙ 1975 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 80 min
Direção Eduardo Escorel
Roteiro Eduardo Escorel, Eduardo Coutinho,
baseado no livro Amar, verbo intransitivo,
de Mario de Andrade
Produção Luiz Carlos Barreto, Eduardo Escorel
Fotografia Murilo Salles
Montagem Gilberto Santeiro
Música Francis Hime
Direção de arte Anísio Medeiros
Elenco Lilian Lemmertz, Rogério Fróes,
Irene Ravache, Marcos Taquechel
« Prêmio Governador de Estado de São Paulo
para melhor fotografia, 1976
179
Árido movie
Um repórter de TV que mora em São Paulo retorna à sua cidade-natal, no interior do Nordeste,
para o enterro do pai, que foi assassinado. No caminho, conhece uma videomaker que investiga
a questão da água no sertão. Ao chegar a seu destino, ele encontra uma parte da família que ainda não conhecia, e que lhe cobra a vingança da morte do pai.
Brasil ∙ 2005 ∙ 35mm ∙ Cor ∙ 115 min
Direção Lírio Ferreira
Roteiro Hilton Lacerda, Eduardo Nunes, Sérgio
Oliveira, Lírio Ferreira
Produção Murilo Salles, Lírio Ferreira
Fotografia Murilo Salles
Montagem Vania Debs
Música Otto, Berna Ceppas, Kassin, Pupilo
Elenco Guilherme Weber, Giulia Gam, José
Dumont, Luiz Carlos Vasconcelos, Mariana
Lima, Selton Mello, Matheus Nachtergaele,
Gustavo Falcão, José Celso Martinez Correa
« Prêmios de Melhor Filme, Diretor, Ator
Coadjuvante (Selton Mello), Fotografia, Edição
e Prêmio da Crítica no Cine PE 2006
180
181
183
Biofilmografia
1950, 2 de outubro
Nasce Murilo Navarro de Salles no Rio de Janeiro
1958
Frequenta seriados infantis e animações na Cinelândia com o avô e se apaixona pelo
seriado Tom & Jerry
1964
Assiste a Oito e meio de Fellini e muda seu olhar sobre o cinema
1966
Começa a fazer fotografia consistentemente, montando laboratório amador em casa
1967
Frequenta a Cinemateca do MAM, o Museu da Imagem e do Som e pontos de encontro
do pessoal do Cinema Novo.
Nos porões da Difilm, levado por Bruno Barreto, acompanha os estudos sobre o cinema
de Eisenstein feitos por Glauber Rocha, Leon Hirszman, José Carlos Avellar e outros
1968
Passa a frequentar o Festival JB-Mesbla de Cinema Amador
184
1969
Premissa menor, Primatas e Amém
Dirige os primeiros curtas realizados para o Festival JB-Mesbla.
Ganha uma menção honrosa por Amém
Divina maravilhosa
Curta: direção de fotografia
1970
ABC montessoriano
Curta documentário: direção, fotografia, montagem
2º Prêmio de Melhor Filme no VI Festival Brasileiro de Cinema Amador
Este silêncio pode significar muita coisa
Curta: direção de fotografia e montagem
Inicia o curso de Comunicação na ECO da UFRJ
1971
Sebastião Prata, ou bem dizendo, Grande Otelo
Curta documentário: direção com Ronaldo Foster, fotografia e montagem
O Barão Otelo no barato dos bilhões
Longa-metragem: assistente de câmera e fotografia adicional
A bolsa e a vida
Curta: direção de fotografia
Funda a produtora Corisco Filmes com Sergio Santos, Roberto Moura, Valeria Mauro e
Monica Segretto
1972
Filmagem de Tati, a garota, o primeiro longa como diretor de fotografia
185
Coisas do arco da velha
Curta documentário da Corisco Filmes: co-direção de fotografia e montagem
Sai dessa, Exu
Curta documentário da Corisco Filmes: direção de fotografia
Emboscada
Curta: direção de fotografia
Lira paulistana
Curta: direção de fotografia
1973
Um edifício chamado 200
Longa-metragem: direção de fotografia
Chega de demanda – Cartola
Curta documentário da Corisco Filmes: direção de fotografia
186
Ataulfo Alves
Curta documentário: direção de fotografia
Augusto dos Anjos
Curta documentário: direção de fotografia
Relação de visita feita a fortificações portuguesas do litoral nordeste do Brasil
Curta documentário: direção de fotografia
Filmagem de A estrela sobe
Longa-metragem: direção de fotografia
Gradua-se em Teoria da Informação pela ECO-UFRJ
1974
Filmagem de Lição de amor
Longa-metragem: direção de fotografia
Carro de bois
Curta ensaístico: direção de fotografia
187
Antonio Maria
Curta documentário: direção de fotografia
Noel Nutels
Curta documentário: direção de fotografia
Tiradentes-Portinari
Curta documentário: direção de fotografia
1975
Filmagem de Dona Flor e seu dois maridos
Longa-metragem: direção de fotografia
1976
Viaja para uma estada de um ano na Europa
1977
Vai para Moçambique e atua como consultor técnico e professor no Instituto Nacional
de Cinema, em Maputo, por dois anos.
1978
Estas são as armas
Longa documentário: direção e montagem
1980
Cabaret mineiro
Longa-metragem: direção de fotografia
188
1981
Eu te amo
Longa-metragem: direção de fotografia
O beijo no asfalto
Longa-metragem: direção de fotografia
Filmagem do túnel/Toro
Parte integrante da Escultura Ão do artista Tunga
1982
Tabu
Longa-metragem: direção de fotografia
Tensão no Rio
Longa metragem: direção de fotografia parcial
1981 a 1990
Dirige e fotografa filmes publicitários para diversas produtoras do Rio e São Paulo.
189
1984
Nunca fomos tão felizes
Primeiro longa de ficção como diretor
Sérgio Camargo fevereiro 1984
Vídeo para a RioArte: direção
1986
Faca de dois gumes
Longa-metragem: direção
1987
Cria a Imagine Cinema
Produtora de filmes publicitários que toca até o ano de 1999
1992
Pornografia
Curta: direção com Sandra Werneck
Cria a produtora Cinema Brasil Digital para concorrer ao edital do Prêmio Resgate do
Cinema Brasileiro, que vence com o roteiro de “Despertar dos Anjos”, mais tarde filmado com o título Como nascem os anjos
1994
Todos os corações do mundo
Longa documentário: direção
1996
Como nascem os anjos
Longa-metragem: direção
190
1998
Magnifications
Intervenção/instalação na exposição Fotogramas: arte e cinema na Marieluise Hessel
Collection
2002
Seja o que Deus quiser!
Longa-metragem: direção
2003
És tu, Brasil
Longa documentário: direção e fotografia
2004
Árido movie
Longa-metragem: direção de fotografia e produção
191
2005
Estereofonia
Videoinstalação a partir de obras de Daniel Senise: direção e fotografia
2007
Nome próprio
Longa-metragem: direção, co-fotografia e câmera
2008
O espetáculo e a delicadeza /Arte brasileira contemporânea - um prelúdio
(DVD): direção e fotografia
2013
Registro de cinco performances de Tunga em Inhotim (vídeo): direção
192
2010/2013
Aprendi a jogar com você
Longa documentário: direção
2011/2014
O Fim e os meios
Longa-metragem: direção
2012/2014
Passarinho lá de Nova Iorque
Longa documentário: direção
2016
Filma novo documentário sobre a Baía de Guanabara.
194
195
196
Índice de fotos
Capa Filmagem de Cabaret Mineiro. Foto: Inês de Teves
Contracapa Filmagem de Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten
Pág. 4 No set de Eu te amo. Foto: Vera Bungarten
Págs. 8 e 9 Com Marieta Severo no set de Faca de dois gumes. Foto: Maritza Caneca
Pág. 10 Silvio Guindane em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar
Pág. 13 Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes
Pág. 16 Com Bruno Barreto no set de Esse silêncio pode significar muita coisa
Pág. 28 Com Lilian Lemmertz e Irene Ravache nas filmagens de Lição de amor. Foto: Ruth Toledo
Pág. 42 Filmagem de Árido movie. Foto: Gilvan Barreto
Pág. 50 Fachada do cinema Paissandu nos anos 1960
Pág. 60 Cícero Filho em Passarinho lá de Nova Iorque. Frames: Leonardo Bittencourt
Pág. 68 Paulo José em Faca de dois gumes. Foto: Maritza Caneco
Pág. 73 Rosane Mullholand e Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes
Pág. 74 Claudio Marzo e Roberto Bataglin em Nunca fomos tão felizes / Paulo José em Faca de
dois gumes. Frames: José Tadeu Ribeiro
Pág. 80 Claudio Marzo e Roberto Bataglin em Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten /
Caio Junqueira, Débora Lamm e Rocco Pitanga em Seja o que Deus quiser!. Foto: Ching C. Wang
Pág. 89 Filmagem da instalação Através, de Cildo Meirelles, para O espetáculo e a delicadeza.
Foto: Leonardo Bittencourt
Pág. 92 Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo. Frames: Murilo Salles e Ronaldo Foster
Pág. 98 Com Claudio Marzo e Roberto Bataglin no set de Nunca fomos tão felizes. Foto: Vera Bungarten
Pág. 122 Equipe de Todos os corações do mundo no gramado do Estádio Rose Bowl logo após
o Brasil se sagrar tetracampeão. Foto: Walter Carvalho
Pág. 128 Com Larry Pine no set de Como nascem os anjos. Fotos: Estevam Avellar
197
Pág. 133 Priscilla Assum em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar
Pág. 134 Silvio Guindane e Priscilla Assum em Como nascem os anjos. Foto: Estevam Avellar
Pág. 143 Rocco Pitanga e Caio Junqueira em Seja o que Deus quiser! Foto: Ching C. Wang
Pág. 146 Alexandre Herchcovitch, Carlinhos Brown, Tunga e Deborah Colker em És tu, Brasil.
Frames: Murilo Salles e Gu Ramalho
Pág. 150 Leandra Leal em Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes
Pág. 156 Filmagem de O espetáculo e a delicadeza. Foto: Leonardo Bittencourt
Pág. 160 Ão, instalação de Tunga na Galeria Psicoativa em Inhotim. Foto: Murilo Salles
Pág. 173 Marco Ricca, Cíntia Rosa e Pedro Brício em O fim e os meios. Frames: Janice d’Ávila
Pág. 176 Filmagem de Carro de bois. Foto: Ruth Toledo
Págs. 180 e 181 Com Geraldo Tolentino e Roque Araújo nas filmagens de A estrela sobe. Foto:
Euclydes Marinho
Pág. 182 Com a câmera Arri II no set de Sebastião Prata ou, bem dizendo, Grande Otelo. Foto:
Ronaldo Foster
Pág. 185 Com Dina Sfat, Hugo Carvana e Bruno Barreto no set de Tati, a garota. Foto: Kunka
Pág. 186 Com Humberto Mauro e Sérgio Santos nas filmagens de Carro de bois. Foto: Ruth Toledo
Pág. 188 Caetano Veloso e Antonio Cícero em Tabu. Foto: Lita Cerqueira
Pág. 190 Selton Mello, Mariana Lima e Suyane Moreira em Árido movie. Foto: Gilvan Barreto
Pág. 191 Set de filmagem de Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes
Pág. 193 Autorretrato no set de Dona Flor e seus dois maridos
Págs. 194 e 195 Com José Wilker, Bruno Barreto e Sonia Braga no set de Dona Flor e seus dois
maridos. Foto: Leonardo Gandelman
Pág. 201 Set de filmagem de Nome próprio. Foto: Emília Groska Marcondes
198
Murilo Salles dedica esta mostra à memória
do querido amigo, companheiro e mestre
José Carlos Avellar.
Agradecimento Especial
Murilo Salles
Agradecimentos
Jurandir Freire Costa
Antonio Laurindo
Leandro Saraiva
Artur Xexéo
Lúcia Nagib
Bernardo Carvalho
Lucy Barreto
Claudia Duarte
Luiz Carlos Barreto
Charly - Charleston Bubble Lounge
Luiz Carlos Merten
Christiane Pereira
Luiz Zanin
Daniella Guimarães
Marcio Lima
Eduardo Santana Toledo
Maria Cristina Cabral
Editora 34 / Nina Schipper
Maria do Rosário Caetano
Frederico Guedes
Octávio Bezerra
Gabi Moscardini
Paula Barreto
Glória Ferreira
Paulo Henrique Veloso
Hernani Hefner
Renata Boldrini
Ismail Xavier
Rosane Nicolau
Ivana Bentes
Rosângela Sodré
Joana Nogueira Lima
Sandra Werneck
João Vinícius Saraiva
Suzana Pereira Lima
José Carlos Avellar (in memoriam)
Vivianne Matesco
José Geraldo Couto
Walter Carvalho
199
CURADORIA Mariana Bezerra
COORDENAÇÃO GERAL & PRODUÇÃO Claudia Oliveira & Mariana Bezerra
PRODUÇÃO EXECUTIVA Breno Lira Gomes
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO Bianca Borges
marketing Daniela Barbosa
WEB DESIGNER Fernando Alvarez
COORDENAÇÃO DE REDES SOCIAIS Bianca Borges
MONITORIA Yasmin Cavalcanti & Urion Castilho
ALIMENTAÇÃO Silvia Nascimento
COORDENAÇÃO EDITORIAL Carlos Alberto Mattos & Murilo Salles
PROJETO GRÁFICO Guilherme Lopes Moura
VINHETA Fernanda Teixeira
ASSESSORIA DE IMPRENSA Claudia Oliveira
REGISTRO FOTOGRÁFICO E VIDEOGRÁFICO Miguel Pinheiro
Crédito fotos: acervo Murilo Salles
apoio
19 a 31 de julho de 2016
CAIXA Cultural Rio de Janeiro
Cinema 1
www.caixacultural.gov.br
Av. Almirante Barroso, 25, Centro
Baixe o aplicativo CAIXA Cultural
facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro
Tel: 21 3980-3815
www.mostramurilosalles.com.br
R$ 4,00 (inteira) e R$ 2,00 (meia entrada)
www.facebook.com/ocinemademurilosalles
Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento.
200
Este catálogo foi composto com a família tipográfica Helvetica Neue, o miolo foi impresso em
papel couché matte 150g/m2, e a capa em papel Supremo Duo Design 300g/m2 na Gráfica Stamppa.

Documentos relacionados